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As elites e os outsiders em Cachoeira do Sul, Exercícios de Sociologia

Adaptação da tese de doutorado em História, sobre Cachoeira do Sul dos anos 1930-45

Tipologia: Exercícios

Antes de 2010

Compartilhado em 10/08/2008

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jeferson-selbach-2 🇧🇷

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Baixe As elites e os outsiders em Cachoeira do Sul e outras Exercícios em PDF para Sociologia, somente na Docsity! Muito além da praça José Bonifácio: as elites e os “outsiders” em Cachoeira do Sul, pela voz do Jornal do Povo. 1930-1945 Jeferson Selbach Muito além da praça José Bonifácio: as elites e os “outsiders” em Cachoeira do Sul, pela voz do Jornal do Povo. 1930-1945 Jeferson Selbach Cachoeira do Sul 2007 Sumário Apresentação ................................................... 11 Prólogo: nostalgia do tempo perdido ..................... 17 Parte I - Textos e contextos 1. Reflexões e inflexões 1.1. Os descaminhos do cotidiano ................................. 65 1.2. Autoridade e legitimidade da escrita ....................... 75 1.3. Jornal do Povo, para a elite .................................. 80 2. O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado 2.1. Das disputas fronteiriças à formação da vila .............. 101 2.2. Independência e alterações urbanas ........................ 107 2.3. Os colonos plantam arroz irrigado e colhem fortunas .............................................. 115 2.4. Metamorfose do espaço habitável ........................... 131 2.5. Refinamento de hábitos: a prática cotidiana da elite cachoeirense .................. 166 3. A economia e a chegada dos novos bárbaros 3.1. Abundância e crise ............................................. 179 3.2 Os novos bárbaros estão chegando! ......................... 212 3.3. O entrincheiramento da elite frente à invasão bárbara ...................................... 228 Parte II - Práticas cotidianas com verniz civilizador 4. Civilidade e convivência 4.1. Regramento de conduta como fortalecimento e diferenciação da elite ....................255 4.2. Até que a morte os separe ................................... 272 5. Deleite: gozo íntimo, prazer pleno 5.1. Lazer ao ar livre: entretenimento em público ............ 277 5.2. Ociosidade, alienação, elevação de espírito .............. 284 5.3. Diversão reservada só nos bailes e eventos sociais ...... 296 6. Transitando no espaço público 6.1. Praças ajardinadas: lócus da sociabilidade ................ 305 6.2. Trottoir do passante ........................................... 312 6.3. Nas ondas dos céus ............................................. 328 7. A classe perigosa deve ser contida 7.1. Influência nefasta dos outsiders ............................. 335 7.2. Canalhada ébria de vinho, tonta de fumaça ............... 346 7.3. Chame a polícia! ................................................354 7.4. Estado policiesco para manter os “de baixo” afastados da elite ............................ 357 7.5. Tipos urbanos: a invenção da subalternidade miserável 366 Parte Final Considerações finais ......................................... 377 Anexos ........................................................... 385 Apresentação É com satisfação que apresento este livro, adaptação da Tese de Doutorado em História, defendida na Unisinos pelo Jeferson Selbach. Tata-se de pesquisador com percurso multidisciplinar. Sua graduação em Ciências Sociais levou-me a conhecer sua capacidade de trabalho principalmente durante o trabalho de conclusão ao qual tive o prazer de orientar. Seu mestrado em Planejamento Urbano foi por vezes discutido comigo, quando as dúvidas assolavam sua auto-confiança. O que é bastante esperado nessa condição de estudos. Seu ingresso no PPG de História assinala o momento em que passei a atuar efetivamente, após a qualificação do projeto. Em todas essas situações, demonstrou o afã e o perfil do pesquisador arguto e disciplinado. Criou uma metodologia de busca, sistematização e disponibilização de banco de dados que utilizou para a coleta de fontes jornalísticas. Terror para qualquer historiador, essa metodologia facilita enormemente o trabalho da escrita historiográfica, permitindo acessar enorme volume de informações com um simples sistema de busca. O princípio teórico dessa história por fragmentos, por certo é da genialidade de Walter Benjamin, mas o candidato soube traduzi-la para o cenário da construção narrativa do século XXI. Historiador das cidades, já trabalhara sobre Novo Hamburgo (RS). No Mestrado, à luz de narradores, mesclando literatura ensaística da fonte jornalística, revelando um traço que é seu, Jeferson, a melancolia do olhar sobre o urbano. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Apresentação, por Rosemary Fritsch Brum12 13 Apresenta-nos Cachoeira do Sul, pela “voz” de um jornal local, o Jornal do Povo. Aplica o mesmo método testado – e aprovado – no Mestrado. Não contente, busca precioso acervos existentes nas instituições públicas da cidade e eis as fotos, os mapas. E temos uma história visual de Cachoeira do Sul. Lança estatísticas e traz o perfil sócio-demográfico das elites, a par do quadro epidemiológico dos “bárbaros que estão chegando” registrando como as elites e as camadas populares têm modos diversos de representação pelas Ciências Sociais. Números que traduzem inserções sociais diferenciadas e portanto valores distintos. Os sobrenomes, pertencem aos primeiros. Sua visão do social é dicotômica, mas não é estática. Se de um lado contextualiza o pêndulo histórico que fez da cidade, a capital do arroz no Brasil, seu momento de glória e afirmação simbólica para o presente próximo da melancolia e de um certo saudosismo de cachoeirenses e seus cronistas, não se fixa nisso. Se olhar simpatiza com aqueles deixados à margem dessa crônica dominante sobre a cidade e seus locais de freqüentação elitista. Embora os traga para a escrita historiográfica à luz da visão conservadora do jornal, como afirma expressamente, essa estratégia mal disfarça sua opção crítica. Sua Tese é uma resposta a uma e apenas uma pergunta: saudades de quem? Se a cidade pode abrir um leque de oportunidades econômicas aos não-proprietários, durante décadas, ela não foi desfavorável para todos, o tempo todo. A melancolia de Benjamin não se aplica, talvez Proust retenha melhor essa sensibilidade de época. A história da cidade de Cachoeira do Sul, que Jeferson nos apresenta “abre novas páginas da história”, como um ex-professor meu costumava dizer nas suas aulas de Teoria da História. O que estava distribuído e relegado ao tempo, foi pacientemente tecido pela narrativa benjaminiana aqui mostrada. A nostalgia ontem e hoje, é relativa a uma historicidade que pertence aos que socializados em determinado imaginário social, lamentam pela cidade que acostumada a ver-se como microcosmos de uma civilidade européia, sofisticada, vê-se estagnada economicamente. Enredada numa vocação que não consegue mais cumprir. Seu olhar de urbanista, aliado ao do sociólogo, conjugam-se para dar ao historiador os argumentos, as balizas para fazer andar essa história urbana. Em momento nenhum apelou para as soluções fáceis, macro-explicativas e técnicas. Percorreu o chão da História, o detalhe, o corte na rotina e na cotidianidade que apontava para o novo compasso do tempo e do espaço e das gentes. Porto Alegre, março de 2007 Rosemary Fritsch Brum o marco divisório para a prática do footing, passeio que se fazia a pé para espairecer e aparecer, era a confluência das ruas Sete de Setembro, ex-rua do Loreto, com a então 24 de Maio, ex-travessa do Ilha, denominada também de rua Cantagalo, atual Silvio Scopel, face sul da praça. O espaço da elite era à direita, a leste, e o da população pobre à esquerda, a oeste. O sujeito “de cor” que tivesse a “petulância” de “entrar na seara alheia” era prontamente retirado. Um novo modelo de chapéu feminino havia sido lançado no Rio de Janeiro e já causava frisson na capital gaúcha. Antes de ser vendido nas lojas locais, o conhecido cachoeirense Balthazar Patrício de Bem, que tinha residência bem em frente à praça, encomendou certa quantidade e distribuiu-os em segredo para suas serviçais, todas mulheres negras, com a condição de exibirem-no na praça do “belo sexo branco”, o que foi feito.3 Em resposta a iniciativa, a elite local protestou com gritos de “não pode”, “abaixo os chapéus” e “fora, fora da praça”. Algumas noites depois, a persistência das mulheres negras de usar o chapéu no espaço destinado às brancas fez exaltar os ânimos. A Revista Aquarela descreveu o fatídico momento da seguinte forma: “Toldaram-se os horizontes e a chuva de pau desandou sobre a praça com violência, onde além da madeira, correu o relho, o rabo de tatu e o facão, enquanto se viam roupas cortadas, chapéus espedaçados e gente ferida”. A luta assumiu aspecto de maior violência, sendo necessário intervenção policial. Embora as diferenciações mostradas nesse episódio tenham-se tornado mais implícitas nos anos seguintes, nem por isso desapareceram completamente. Muitas, na verdade, assumiram novas roupagens, como o sentimento de nostalgia desencadeado pelos descendentes dessa elite cachoeirense. Os escritos jornalísticos dos anos 1980-90, em especial os do Jornal do Povo, ao remeterem a narrativa ao tempo da segregação social explícita que marcou o fazer urbano até a explosão da subalternidade referida, reivindicavam tacitamente o desejo do seu retorno, como pretendo mostrar daqui pra frente. Quando conheci Cachoeira do Sul, no início de 2001, comumente ouvia frases do tipo “nós éramos...” ou “naquele tempo é que era bom, era diferente...”. Essa busca do passado idealizado é presentificada em muitas rodas de conversa atuais. Posteriormente, descobri que esse saudosismo dos “bons tempos”, de lembrar nostalgicamente o passado como o tempo perfeito e idealizado, foi conseqüência do crescimento, na segunda metade do século XX, em menor grau do que outras cidades, o que tirou dela muito do prestígio econômico de outrora. Saltava aos olhos durante as primeiras inserções na pesquisa ao jornal o fato de muitos textos – reportagens, editoriais, crônicas ou mesmo as charges – explicitarem incessantemente em seu conteúdo o tempo passado como “perfeito” e “idealizado”.4 Coincidentemente, remetiam-se a um período onde os indivíduos sabiam o seu lugar na sociedade, onde os territórios espaciais e simbólicos tinham zonas limítrofes bem demarcadas, de certa forma segregadas, e onde a elite transitava com a liberdade de quem comanda o espetáculo da rua. Chamo de nostálgico esse retorno ao passado porque é feito de forma distorcida, mitificada e seletiva, enxerga o ontem em acontecimentos desconexos, resgatando somente partes do ocorrido, normalmente as mais favoráveis, retirando essas partes de seu contexto original de tal maneira que desvirtua a história do momento em questão. Esse olhar nostálgico é feito efusivamente pelo Jornal do Povo, a quem intitulo porta-voz da elite cachoeirense, tanto a dos anos 30-45, quanto sua remanescente dos anos 80-90. Comparo essa nostalgia da elite local, potencializada pela imprensa, ao que Walter Benjamin denunciou de historicismo, olhar histórico que carrega os despojos do passado dos vencedores no cortejo triunfal do presente, espezinhando “os corpos dos que estão prostrados no chão”, dos vencidos na batalha. É o olhar que traz consigo somente os bens culturais dos dominadores ao contar a história, banindo os dos dominados. Para Benjamin, realizar a contra-leitura seria olhar o passado de forma a detectar as falhas que estruturam o presente, única maneira que permitiria a “redenção”. Dar uma espécie de “salto de tigre em direção 3 O autor da brincadeira foi omitido na Revista Aquarela, mas a professora Ione Carlos, do Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul/RS, revelou-me essa informação em 2004. 4 Esta tese nasceu da idéia desenvolvida no projeto de pesquisa intitulado Jornal do Povo 1929-2001: a influência do discurso jornalístico na construção da identidade de Cachoeira do Sul/RS, desenvolvido em parceria com o filósofo Paulo Ricardo Tavares da Silveira, desde 2001, em parte financiada pela ULBRA/Cachoeira do Sul. Por esta razão, o banco de dados de notícias de jornal totalizou 8.017 fragmentos (1.633 páginas) de 1929 a 2001. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido18 19 ao passado”, para buscar o “tempo-do-agora”, saturado de experiências e orientado para a construção das condições de emergência do presente. Ao detectar essas pequenas falhas que estruturam o sentido do passado, o crítico que lança o olhar retrospectivo corrigiria decisivamente a concepção historicista, nesse caso também a nostálgica.5 O olhar nostálgico que impera no Jornal do Povo dos dias de hoje prende- se, ao meu ver, a uma concepção distorcida da realidade porque remete- se ao passado para nele buscar a parte valorizada, as lembranças de determinado grupo social. Na leitura que faço do JP, procuro entender o que esses nostálgicos buscam no passado e o porquê dessa busca. No meu entender, resgatar os chamados tempos áureos no presente dá-se em razão da inconformidade da presença dos “bárbaros” ou outsiders no meio urbano, que na época a que se referem estava livre da sua presença. Sem os pobres ou subalternos, a área central era higienizada e limpa. Acredito que essa busca do tempo perdido esconde no íntimo sentimento elitista, segregacionista e excludente, típico da sociedade dos anos 20- 40.6 Em vários momentos dos anos 1980-90, a nostalgia aparece com muita força nas páginas do Jornal do Povo. No início da década de 80, por exemplo, a coluna Opinião elogiou a iniciativa de promover o carnaval “anos 30”, através da enquete realizada com presidentes de clubes, como José Noeli Lopes, da Sociedade União Cachoeirense (SUC), para quem “reviver o passado é uma das coisas mais lidas que se pode fazer”.7 A coluna Panorama defendeu a feira-livre, algo que deveria ser preservado “com muita carinho”, encarado com “mais ternura”, pois era a “fotografia sempre presente do nosso passado”, quando “a vida era calma, pacata e civilizada”, “gostosa de ser vivida”.8 A mesma coluna desejava a volta do passado glorioso, incentivando os cachoeirenses a mudar o dito popular de “terra do já teve” para “terá de novo e muito mais”, respeitando o passado mas sempre pensando no futuro, sem “contemplações amorfas de um tempo que já está sepultado”.9 A coluna social Helena, assinada por uma das proprietárias do jornal, também contribuiu para este resgate, ao destacar os encontros das senhoras cachoeirenses residentes no Rio de Janeiro, para relembrar “os tempos vividos em Cachoeira do Sul, sua terra natal”.10 Refutou a idéia de que debutar estaria fora de moda, ultrapassado, démodé. Para ela, seria a forma mais elegante de dar notícia para a sociedade de que a jovem passou a constituir o grupo social: “sempre haverá debutantes, enquanto houver sociedade e civilização. Enquanto houver poesia e amor”, ponderou.11 As matérias e editoriais do Jornal do Povo dos anos 90 acentuaram esse apego ao passado. Em 1991, a reportagem Desemprego é a maior preocupação dos cachoeirenses trouxe pesquisa de opinião pública realizada com 347 cachoeirenses da zona urbana, apontando o desemprego como o maior problema da cidade (82,4%). Segundo opinião expressa no texto, Cachoeira sofria com “erros do passado, quando centrou sua economia num comércio e indústria dependentes exclusivamente do setor primário, liderado pela agricultura”.12 No mesmo ano, a coluna Panorama Geral destacou a opinião dos vereadores Natalício Morais, para quem Cachoeira do Sul teve no passado representatividade política que nenhum outro município de porte médio jamais alcançou, “só que os cachoeirenses 5 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ___. Obras Escolhidas 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 3a ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Ver ainda: PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: O Globo, 2003; RICKES, Simone Moschen. A construção da memória e a condição da perda. In: Revista Horizontes, v.23, n.1, jan/ jun 2005, p.39-46 [disponível em http://www.saofrancisco.edu.br/edusf/revistas/ horizontes/ Horizontes-2005-1/horizontes-5.pdf – acessado em 10/1/2006]; POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos, v.2, n.3, Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1989, p.3-15 [disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/ revista/arq/43.pdf - acessado em 10/1/2006] e ENNE, Ana Lucia; TAVARES, Cristine. Memória, identidade e discurso midiático: uma revisão bibliográfica [disponível em http://www. castelobranco.br/pesquisa/vol1/docs/memoria2.doc - acessado em 18/ 3/2006]. Interessante ainda a concepção de MORIN, Edgar KERN, Anne Brigitte. Terra- Pátria. Tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2000, para quem a nostalgia surge com muita força no fim do século XX, em razão da perda das certezas no futuro. 6 Me aproprio, ao longo desta trabalho, do conceito de “estabelecidos” e “outsiders” de ELIAS, Norbert. SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000 7 JP, 6/1/1980 Opinião. Carnaval “Anos 30”, p.2 8 JP, 20/5/1982 Panorama, p.4 9 JP, 3/3/1983 Panorama, p.3 10 JP, 22/7/1984 2º caderno. Helena. As cachoeirenses no Rio, p.3 11 JP, 30/6/1985 2° Caderno. Helena. Debutantes 85, p.3 12 JP, 25/8/1991 Desemprego é a maior preocupação dos cachoeirenses, p.8 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido20 21 não souberam tirar proveito”, e Henrique Möller, que culpou o fato da cidade ter ficado ilhada em meios às rodovias federais.13 Em junho de 1992, o jornal publicou Um Roteiro do passado ao presente, destacando os sinais que “restam” do passado. No itinerário, a Aldeia, núcleo primário do povoamento cachoeirense, a praça Itororó, local da primeira hidráulica, o hospital, o cemitério das Irmandades, o prédio da prefeitura municipal, construído para abrigar cadeia civil, Câmara Municipal e Justiça, o Chateau d’Eau, a catedral Nossa Senhora da Conceição, a praça Balthazar de Bem, o teatro que desabou, a rua Sete de Setembro, cenário de vários prédios históricos, como a sede da União dos Moços Católicos, Clube Comercial, Jornal do Povo, Banco da Província e da Escola Superior de Artes Santa Cecília (ESASC), a praça José Bonifácio, antiga praça do Pelourinho, que abrigou o Mercado Público, o cinema Coliseu e a fonte das Águas Dançantes, a praça Honorato de Souza Santos, local da estação férrea, os bairros Rio Branco e Santo Antônio, e o Parque Municipal da Cultura, com museu, zoológico e jardim botânico.14 Neste resgate nostálgico, as ruínas do Coliseu – o desabamento do telhado ocorreu em 1985 – estariam encobrindo as glórias do passado. Poucos cachoeirenses lembravam-se do tempo em que o prédio abrigara o cinema “mais glamouroso” da região. A reportagem de 1994 resgatou parte de sua história, desde a inauguração em 1938, com “toda a pompa que merecia a então progressista cidade de Cachoeira do Sul”, a sua infra- estrutura sofisticada, com projetores, microfones e eletrola importados, o perfume borrifado pelo auditório, as poltronas de “estilo moderníssimo”, as escadarias de mármore, os lustres, espelhos, galerias e palco, as apresentações teatrais, como a de Procópio Ferreira, até a perda de encanto nos anos 80.15 Três charges de Roni Fortes, publicadas nos anos 90 no Jornal do Povo, mostram a decadência do cinema Coliseu e da Casa da Aldeia. A primeira [fig.1], em 1º de novembro de 1994, exigia o tombamento do cinema antes que causasse algum acidente. A segunda [fig.2], de 1º de junho de 1998, leva a crer que o abandono da Casa da Aldeia seria devido ao pouco interesse da população. Na terceira [fig.3], publicada em 10 de fevereiro de 2001, insinua que a pretensa demolição do Coliseu não apagaria suas lembranças. 13 JP, 12/11/1991 Panorama Geral. Verdades, p.6 14 JP, 4/6/1992 Um Roteiro do passado ao presente, p.7 15 JP, 19/11/1994 Ruína do Coliseu encobre a glória do passado, p.8 Outros dois ícones deste passado perdido foram o porto e o Rota 21. Em 1999, foi lançada a idéia de transformar o porto em centro de lazer e cultura, semelhante à Usina do Gasômetro de Porto Alegre.16 Já em 2000, 16 JP, 6/11/1999 Cultura no Paredão, p.1 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido22 23 Figuras 1, 2 e 3 - Charges de Roni Fortes, publicadas no Jornal do Povo, sobre a decadência do cinema Coliseu e da Casa da Aldeia. Fonte: Jornal do Povo A rememoração mistificada do passado cachoeirense também aparece de forma contundente entre cronistas. Geraldo Hasse foi exemplo por relembrar facetas do cotidiano passado ao longo dos anos 80. A alma cachoeirense seria fugidia, às vezes localizando-se num local, às vezes noutro: habitara o estádio Joaquim Vidal até o Guarani parar de jogar; alegrara o hipódromo do Amorim, o cinema Coliseu, a estação ferroviária, até que todos esses espaços deixaram de ser usados. Parte desta alma estaria “alojada entre as pedras irregulares que constituem o calçamento de algumas ruas”, outra na praça José Bonifácio, nos sinos da igreja, nas partidas de bocha e bolão dos clubes Náutico e Rio Branco, ou ainda no “ruído surdo dos engenhos de arroz”. Se fosse possível inventariar Cachoeira do Sul, a lista seria grande: Bar América, Café Frísia, a bonbonnière na esquina da Sete de Setembro com a General Portinho, a Casa das Sombrinhas, Casa Alaggio, Casa Augusto Wilhelm, União dos Moços Católicos, Salão Maidana, Tipographia d’O Commercio, os plátanos do bairro Rio Branco, os pardais que infestavam as ruas próximas ao Engenho Roesch, os paralelepípedos das ruas tradicionais, a ponte do Fandango, o barro que sustentava as olarias, o sino maior da igreja de Santo Antônio, os cavalos no bairro Amorim, os freqüentadores habituais do Bar Petersen, a Casa Matte, as paineiras da rua Major Ouriques.30 Para Hasse, muitos cachoeirenses sentiam saudades da antiga “Princesa do Jacuí”, que deixara de ter circulando o jornal O Commercio ou o trem na zona central da cidade. Muitos haviam se mudado para outras paragens, como ele mesmo havia feito.31 O retorno à terra natal propiciava ver a própria fisionomia, “no rosto dos parentes, nos olhos dos amigos e também nas envelhecidas casas, árvores, placas e letreiros que ocupam a invernada mais distante de nossa memória”. Curtir a cidade não estando nela era a forma de levá-la dentro de si.32 Escreveu em 1985: Sempre que fico um longo período sem rever a minha cidade, passo a ter a sensação de ter virado outra pessoa. É como se eu fosse apenas uma lembrança de mim mesmo, uma sombra, o negativo de uma fotografia cuja cópia em positivo se perdeu. É isso, voltar a Cachoeira é remexer nas gavetas em busca de fotografias. Há gente que não precisa disso. Eu, de vez em quando, preciso ciscar no passado para me ver melhor no presente. Até dói um pouco, mas é saudável. É como livrar-se de uma doença. A gente se sente mais forte. Mais vivo. Menos transitório.33 A memória da cidade seria, para ele, o maior patrimônio da comunidade, a primeira coisa a se defender, pois “nela repousa sua alma, sua identidade, seu charme”. Por isso Cachoeira do Sul deveria assumir seu passado e orientar seu destino, ou então “voltar a fazer parte de Rio Pardo”.34 Na coluna de artigos, foram publicados escritos de vários leitores em tom nostálgico. Salita Abreu lembrou das bonecas de trapo confeccionadas por “velhinhas da Cachoeira antiga”, que moravam na Sete de Setembro “com entrada por um corredor estreito e comprido”, e faziam a alegria das meninas da época que as compravam por 200$000 e 500$000 réis, “conforme a roupagem”.35 Carlos Dini, escreveu suas reminiscências sobre as transformações na “Princesa do Jacuí”. O primitivo e demorado transporte em balsas no Passo da Seringa contrapunha-se a ponte do Fandango e o progresso do asfalto. Em nome do canal navegável acabou- se com os banhos de praia na “bela ilha encascalhada”. A mudança da estação ferroviária desafogou o tráfego da Júlio de Castilhos mas também levou para longe a chegada dos trens Maria-Fumaça e os flertes que rendiam futuros romances. O tradicional Mercado Público cedeu lugar à fonte das águas dançantes. O surto de novas construções fez desaparecer prédios de firmas tradicionais, como o Hotel do Comércio, Alaggio S.A., Hotel América, Foto Breitman. A televisão acabou com o cinema e, conseqüentemente, com o tradicional footing nas noites de fim-de- semana.36 Carlos Bacchin lembrou dos “grenais” que ocorriam no início dos anos 60, quando o Bar América lotava de torcedores; das missas de domingo pela manhã na igreja Santo Antônio, quando todos rezavam acompanhando a prece do Padre Pessi e depois iam passear na praça José Bonifácio (“As moças comentavam, ansiosas, as últimas novidades: tinham chegado na 30 JP, 30/11/1982 Geraldo Hasse. A alma da cidade, p.2 e 7/6/1983 Geraldo Hasse. Inventário de Cachoeira, p.2 31 JP, 17/1/1984 Geraldo Hasse. E a princesa do Jacuí!, p.2 32 JP, 24/7/1984 Geraldo Hasse. O último dos moicanos, p.2 33 JP, 6/6/1985 Geraldo Hasse. Álbum de fotografias, p.2 34 JP, 20/6/1985 Geraldo Hasse. Memória curta de Cachoeira (I), p.2 e 25/6/1985 Geraldo Hasse. Memória curta de Cachoeira (II), p.2 35 JP, 13/1/1980 A boneca de Azul. Salita Abreu, p.3 36 JP, 20/3/1980 Reminiscências transformações na princesa do Jacuí... Carlos Dini, p.4 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido28 29 cidade os rapazes do CPOR e outros oficias do Exército. Ótima oportunidade para um bom casamento”); as sessões no cinema Coliseu quase sempre lotadas; os bailes regados a cuba-livre e som da orquestra Cassino de Sevilha; o “Expressinho” ligando Cachoeira do Sul a Porto Alegre; a estrada sem asfalto que fazia o ônibus balançar “mais do que sota-capataz dançando um vaneirão, em dia de fandango no Bonifácio Gomes”.37 Affonso Kury lembrou que recostava-se nas pilastras do Chateau d’Eau, esperando horas a fio os ônibus a gasogênio. “Nada mudou. Essas estátuas de mulheres gregas, semi-despidas, a despejar no lago bicas e jarras d’água, me despertaram, na adolescência, pensamentos eróticos”.38 Paulo Gouveia recordou da “velha cancha do Amorim” transformada em hipódromo, que entrou em decadência e que pretendia-se reativar, “fazendo-o voltar à sua prometida e privilegiada situação”.39 Dalila Fonseca escreveu sobre a praça Honorato. Lembrou com saudades de sua infância, quando ainda menina, debruçava-se sobre o muro da estação ferroviária para ver e ouvir a chegada da Maria-fumaça.40 Jorge Franco escreveu sobre o futuro do passado de Cachoeira do Sul, cidade “bonita, misteriosa e paradoxal”, onde as ruas tinham “seu ar de mistério” e onde enorme massa de pessoas desejavam transformar a realidade, mas o negativismo quase sempre estava “sentado num dos bancos da praça a dizer que aqui nada dá certo”.41 Entre 1993-94, Augusto César Mandagaran de Lima refletiu sobre a Cachoeira que conhecera na infância, com o Mercado Público, a Fonte das Águas Dançantes, as casas comerciais que se abriam para a calçada através de portas altas e estreitas e que tinham um cheiro característico de mercado como cereais, salames, azeitonas, bacalhau, misturados ao odor de peixe fresco e verduras, e os passeios de domingo, de fatiota de linho branco, gravata de nó duplo e pose para as gurias que passeavam após a missa das 10 h. Sugeriu modificações na cidade, como chafarizes a funcionar permanentemente na praça – “Tudo poderia ser uma homenagem para o nosso passado, a nossa arquitetura perdida e trocada pela atual amorfa e despersonalizada” – ou isenção de impostos sobre imóveis considerados de valor histórico.42 Comparou a sugestão de cobrir os seios das ninfas do Chateau d’Eau, dada por alguns tempos depois da inauguração, com a destruição ou modificação das fachadas históricas. Ambas foram feitas em nome do progresso.43 Numa crônica, lamentou o desaparecimento dos “valentes caudilhos”, “corajosos que transformaram pequenas forjarias nas potentes indústrias do nosso orgulho”. O espírito empreendedor que havia feito a Cachoeira de sua infância perdera-se.44 E noutra oportunidade, relatou a conversa tida numa festa à beira da piscina, onde a nostalgia prendeu a atenção de todos, pois as lembranças eram de uma Cachoeira “próspera, invejada pela vizinhança”. Foi falado no Clube Comercial, cujo teto ameaçava ruir pela quantidade de cupins. O assunto voltou-se para os bailes de sábado, quando as expectativas dos rapazes que se lançavam na sociedade local era a dos grandes feitos, embora pontilhados dos embaraços naturais que premiam os iniciantes. Ficavam parados à porta do Salão, junto ao degrau da pista. Agrupados, tímidos, com olhares disfarçados para as ocupantes das mesas. Aguardavam um sinal incentivador ou um rasgo de coragem para atravessar a pista e tirar para dançar aquela da escolha ou predileção. Não era nada fácil um imposição pessoal aos 15 ou 16 anos, quando metidos em “fatiotas” e em ajustados colarinhos para gravatas de “nó duplo” deviam mostrar intimidade com a audácia, a galanteria e mesmo com alguns passos de danças. As mãos eram o primeiro embaraço. Ora estavam nos bolsos, ora gesticulando em apoio a teses intermináveis, ignoradas por todos. Alguns, com estudada afetação brincavam com o isqueiro da moda, enquanto o cigarro queimando na boca lançava fumaça sobre o rosto, em poses “bogartianas” e disfarçadamente procuravam sua Lauren Bacall. A maioria buscava o óbvio: as mais lindas, nem tão tímidas e de olhos profundos, ternos e sonhadores. Esta era a busca de toda uma noite. Após o Augusto Choaire e a Helaine Meneghello abrirem o baile, estavam todos convidados a desempenhar o papel para o qual haviam sido convocados. A “Cassino Sevilha”, os vestidos, os “ateliers de costuras”, os alfaiates, os barbeiros e os salões de beleza, haviam sido o alvo das atenções de toda a semana. Faltava só o desempenho na iniciante arte da dança e da conquista, conjugadas a uma boa conversa sobre amenidades ou mesmo aquele prelibado romance. 37 JP, 3/9/1981 Panorama. Carlos Bacchin, p.4 38 JP, 29/8/1982 Segundo Caderno. Relembranças. Affonso Kury, p.1 39 JP, 5/9/1982 Terceiro Caderno. A velha cancha do Amorim. Paulo Gouveia, p.3 40 JP, 10/10/1982 Segundo Caderno. Minha cidade. Dalila Fonseca, p.7 41 JP, 27/6/1985 Panorama. Futuro do Passado. Jorge Franco, p.3 42 JP, 23/10/1993 Pequena crônica da cidade. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2 43 JP, 30/10/1993 Nossas ninfas. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2 44 JP, 20/11/1993 Pequena Crônica da cidade. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido30 31 Hoje isso não aconteceria, a juventude é mais rápida. Tudo que adquiriu em celeridade perdeu em ternura. Dançava-se boleros, tangos, rumbas, sambas e mesmo valsas. Mas isso não bastava. A procura era pela princesa mais bela e dos mais belos olhos. Eram todos príncipes, pois estavam num dos melhores clubes que aquela juventude já havia pisado. À porta ficavam, até o acaso, a decisão ou o descuido maldoso projetar para a pista. Não tendo como disfarçar, tomavam a direção do alvo. Tudo então podia acontecer. A aproximação a pretendida ignorava, mantendo conversa interminável com a companheira do lado. Havia ainda o olhar inquisitivo da mãe que sonhara com um Grão Duque D’Áustria para a sua Sissi e não aquele assustado projeto de cavalheiro. O olhar do pai, então. Este sonhara com um Rockefeller neto ou sobrinho e não aquele estudante sem qualquer profissão. Ainda se estivesse fazendo concurso para o Banco do Brasil! Mas ali estando, coisas desagradáveis podiam acontecer. A frente era cortada pelo zeloso e tardio namorado, quando ela, todo sorriso, se erguia e deslizava enlaçada por outro. Ou então a vitória da rapidez pertencia a um aspirante, em seu impecável uniforme, o que fazia luzir os olhos dos guardiões e o cenho dos papais descontraiam como por encanto. Como elas adoravam fardas! Aliás, comentava-se à época, que tenentes, em Cachoeira, não eram transferidos solteiros. Eram a alegria das mamães e o alívio dos papais. Havia, no entanto, os momentos em que tudo dava certo. Ela era linda, sabia eliminar os silêncios constrangedores com a pergunta salvadora: - Que faculdade pretendes cursar? Medicina? Direito? Engenharia? - Não, pretendo Arquitetura. Tudo estava salvo. O assunto inevitável era a beleza do Clube, recém inaugurado, com suas salas de recepção, de jogos, sua biblioteca e claro, o salão de bailes, com seus caríssimos ornamentos, sancas e luzes indiretas. Rebuscado, mas ainda assim impressionante. O Clube foi construído pela iniciativa de homens dedicados, com largueza de espírito, que acreditavam em suas causas e principalmente nessa terra. Devoção, honestidade e muito trabalho, estes os adjetivos para seus construtores. Éramos todos aprendizes de uma cidadania consciente e responsável. Encontrávamos ali naquelas paredes, naqueles tetos, os exemplos que expressavam a convicção e os anseios de muitos cachoeirenses ilustres. Não precisávamos estudar longe para aprendermos de que argila eram feitos os homens de verdade. Tínhamos em nossa cidade módulos bastante expressivos. Mais do que isso, só era necessário um olhar profundo, terno, meigo, de um roçar de rosto ao som de “Tender is the Night”, de uma mão que se demorasse mais quando a música terminasse, um prelúdio de promessas que encheriam a noite e atravessariam dias, semanas talvez. A noite se tornava gloriosa, quando já na madrugada do domingo o restaurante era o indicativo. A dois, entre lógicas “cubas-libres”, “filés com fritas” eram ordenados, para a reposição do desgaste de tantos embates. Na saída, já à porta do grande hall, aguardando o carro, ela se volta e com a estudada casualidade, que só a certeza permite, pergunta: - Que filme passa no Coliseu? – “Ladrão de Casaca”, dizem que é muito bom! A afirmação é sem muita convicção, mas guarda a chama tímida da esperança. - O lugar ao meu lado vai estar vago. Não te atrases para a primeira sessão! O sorriso, menos tímido, é o assentimento. O clarão do amanhecer anunciava o fim da noite, mas aqueles olhos, mais profundos agora, anunciavam o início de muitas outras belas noites, nesse nosso Comercial, ou naquele Coliseu de tantas promessas. Mas isso é assunto para outra conversa.45 Outra leitora, Elizabeth Feijó Marcuschi, poucos anos depois, em 1997, lamentou algumas contradições vividas pela cidade: o aspecto de abandono da Escola João Neves, outrora sinônimo de ensino público de qualidade; o fechamento do cinema Coliseu, do qual só restava a fachada; o número de lojas de R$ 1,99.46 Na década de 90, as crônicas rememorando Cachoeira do Sul com nostalgia aumentaram de freqüência, principalmente entre articulistas que habitualmente publicavam seus escritos, como o engenheiro Chulipa Möller, o empresário Paulo Sanmartin, os escritores Célia Maria Maciel e Liberato Vieira da Cunha e a professora Vera Beatriz Machado de Freitas, esses dois últimos ligados à família proprietária do jornal, além do mais nostálgico de todos, o médico com pretensões intelectual, Carlos Eduardo Florence, coincidentemente um dos colunistas mais lidos do jornal. 45 JP, 15/1/1994 Opinião. Pequena crônica da cidade. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2 46 JP, 28/2/1997 Artigo. Que encantos tem Cachoeira? Elizabeth Feijó Marcuschi, p.2 Figuras 10, 11, 12 e 13 Formadores de opinião habituais nas décadas de 80 e 90: Célia Maria Maciel, Liberato Vieira da Cunha, Chulipa Möller e Carlos Eduardo Florence. Fonte: Jornal do Povo Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido32 33 Mostra de como esse espírito nostálgico pairava no imaginário cotidiano dos anos 90, eventualmente alguns cronistas habituais, como Eliseu Torres, Ronaldo Tonet, Telmo Padilha, Luiz Antônio Caminha e Silvestre Silva Santos, apontavam aspectos sobre o passado cachoeirense. Em 1993, os dois primeiros articulistas criticaram esse retorno insistente ao passado. Eliseu Torres escreveu sobre a necessidade de novos diagnósticos das causas que estariam emperrando o progresso de Cachoeira, detendo-a num “insuportável marasmo”. Ao invés dos tradicionalmente enunciados ausência de liderança forte, de união ou de diversificação na produção, propôs a suspensão da visão curta, estreita, insuficiente e mesquinha de somente procurar a “grandeza perdida”, algo que estreitava os horizontes locais. Segundo ele, os cachoeirenses temiam tudo o que era novo, sofriam com o rompimento da mesmice, detestavam quando algo se movia, porque tudo isso obrigava a levantar o olhar para o alto, para o futuro incerto e não para o passado de glórias.65 Ronaldo Tonet comparou os fuscas que o então presidente da República, Itamar Franco, insistia em incentivar a produção, com o apoio cachoeirense às promoções que resgatavam o passado perdido, sempre apagando as más lembranças. Sua intenção era criticar a federalização do ensino superior, com a incorporação da FUNVALE pela UFSM, pois apoiava a vinda da ULBRA.66 Luiz Antônio Caminha comparou esse sentimento que se havia enraizado na mentalidade local e seria a razão explícita do “fracasso de Cachoeira como comunidade”, como o daqueles que comiam galinha e arrotavam peru ou, ainda mais grave, sequer comiam galinha. Para ele, a cidade transpirava arrogância indevida e rançosa, “provavelmente herança gasta de um passado de fausto que um dia viveu” e a mais “concreta e fatal prova da decadência em que mergulhou há muito tempo”.67 Na opinião de Telmo Padilha, a decadência local era fruto da conivência, do apadrinhamento e do “acompadramento” típicos de comunidades menores, onde os “caciques” ou “lideranças” locais monopolizavam ditatorialmente as decisões mais importantes, para conseguir “bons acordos” e “trocas de favores”, sufocando aqueles que desejariam o novo. O atraso era fruto desses oportunistas, “geradores” e “mantenedores” da incompetência.68 Citou o exemplo da falta de projetos em infra-estrutura, únicos capazes de alavancar o futuro e “deixar para trás o passado de derrotas e crises”.69 Silvestre Silva Santos chegou a profetizar a Cachoeira do futuro, quando inexistiriam os pessimistas, porque tudo estaria ao alcance das vontades das pessoas.70 Dentre os cronistas, o que melhor representa a atitude nostálgica é o médico Carlos Eduardo Florence, com textos que remetem sistematicamente ao passado perdido cachoeirense. Em certo período durante 1993-94, publicou crônicas com títulos sugestivos, inspirados no livro Cidades invisíveis de Ítalo Calvino: A cidade e as calçadas, A cidade e as árvores, A cidade e a memória, A cidade e a depressão, A cidade e as migrações.71 Analisando algumas de suas publicações, nota-se explicitamente a clara divisão entre passado valorizado e presente/futuro depreciado, principalmente no que se refere aos aspectos urbanos. Como ele mesmo escreveu, Cachoeira haveria de ser a “fênix ressurgindo das cinzas”.72 Coincidência ou não, o tempo passado que ele prestigia é o das grandes transformações urbanas desencadeadas no fim dos anos 20, quando a parte central da cidade recebeu melhorias para servir de palco à elite. Compara as feições urbanas daquele período com as dos anos 80-90, que julga de aspecto lúgubre e decadente. Quando sugere modificações, pretende que se assemelhem às do passado. Numa de suas crônicas, chegou a evocar a volta do intendente João Neves da Fontoura para que a cidade passasse por novas e profundas transformações.73 Num típico olhar de quem esquece as mazelas do passado e remete-se somente aquilo que causa simpatia, Florence limita-se a retratar a 65 JP, 6/2/1993 Eliseu Torres. Calçadão, p.2 66 JP, 20/10/1993 Ronaldo Tonet Fuscas, p.2 67 JP, 12/4/1999 Luiz Antônio Caminha. Cachoeira do Sul tem coisas incompreensíveis, p.2 68 JP, 3/2/1996 Opinião. Conivência e decadência. Telmo Padilha, p.2 69 JP, 28/5/1997 Fórum JP. Telmo Padilha. Me engana que eu gosto!, p.2 70 JP, 10/6/1995 Segundo Caderno. Crônicas. Loucuras Futuras. Silvestre Silva Santos, p.4 71 CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. Ver JP, 27/11/1993 Carlos Eduardo Florence. A cidade e as calçadas, p.2, 8/1/1994 Carlos Eduardo Florence. Opinião. A cidade e as árvores, p.2, 19/3/ 1994, Carlos Eduardo Florence. A cidade e a memória, p.2, 30/4/1994 Carlos Eduardo Florence. A cidade e a depressão, p.2 e 2/7/1994 Carlos Eduardo Florence. A cidade e as migrações, p.2 72 JP, 23/9/1999 Carlos Eduardo Florence. Dias melhores virão, p.2 73 JP, 8/1/1994 Carlos Eduardo Florence. Opinião. A cidade e as árvores, p.2 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido38 39 Cachoeira de outrora com pinceladas homogeneizadas, revelando somente parte da realidade passada e encobrindo a segregação espacial da época. Em 98, afirmou textualmente que a memória era seletiva, “recorda-se do agradável e do tempo que ainda tínhamos esperanças na cidade”.74 As ruas centrais dos anos 20-40, por exemplo, obedeciam traçado geométrico civilizado; as calçadas do centro eram normatizadas, com piso quadriculado em preto e branco, sinônimo de que a cidade “evoluía”.75 A administração pública mandava varrer essas ruas todas as manhãs e as pessoas varriam suas próprias calçadas.76 No coração da cidade, a praça José Bonifácio ostentava pérgula, alamedas e recantos floridos, dando à cidade ares modernos.77 No quesito sonoridade, a cidade da sua infância podia ser lembrada pelo apito dos engenhos ao meio-dia, “acalmando” a cidade; do badalar dos sinos das igrejas, que podia ser “choroso” ou “festivo”, mas sempre chamava para a “atemporalidade da vida”; dos tiros de canhões do quartel, avisando sobre os “limites do pensamento”; do trotar das ferraduras dos cavalos que puxavam as carroças dos padeiros cedo da madrugada; do vento “Minuano” assobiando pelas ruas; do trem que separava a cidade, “espantava os espíritos”, levava e trazia pessoas e ligava Cachoeira com o mundo; da “encrenca” nas tardes de sábado; dos “boleros” antes das sessões cinematográficas.78 Para Florence, a Cachoeira de “outros tempos” era importante no cenário estadual. O porto era viável, chegando a ter mais de 30 barcos transportando produtos, e escritores renomados visitavam a cidade, como Érico Veríssimo.79 A fisionomia da Cachoeira do passado, valorizada pelo médico-cronista, em muito se diferenciaria dos aspectos do presente, para ele depreciativos. Dos trilhos ferroviários, por exemplo, formou-se corredor ocupado ilegalmente, como “prova de improbidade e descaso com o bem público”.80 A Igreja Matriz que “centralizava a vida de Cachoeira”, como “réquiem” da “individualidade” de cada fiel, foi reformada e fez “Cachoeira perder sua identidade”.81 O aumento populacional provocou o crescimento desordenado, fazendo das novas ruas verdadeiro “labirinto de incongruências”.82 Caminhar pela zona central transmudou-se em “aventura surrealista”, com buracos, lajotas soltas, paralelepípedos e terra empilhados, lixo acumulado, troncos de árvores cortadas, camelôs, cachorros, papéis no chão, tapumes trancando a passagem, “pivetes” e “ladrões”, cadeiras nas calçadas, etc. Segundo Florence, este caos urbano transformou Cachoeira num “lugar sofrível para viver”.83 Nas ocasiões em que utiliza seus escritos para valorizar a cidade, Florence refere-se a coisas herdadas do tempo em que a cidade provocava orgulho em seus moradores. Resgata a arborização efetuada nos anos 20, “verde” e “sombra” que seriam o “aspecto mais civilizado e de bem-estar” do município: ipês, ciprestes, palmeiras, tipuanas, jacarandás, seringueiras, plátanos, “árvores para qualquer tempo, qualquer afeto, qualquer escolha”.84 Para ele, nada seria mais civilizado do que essa flora diversificada.85 Também o Chateau d’Eau – o “mais importante ícone” da cidade – deveria ser constantemente cuidado, com iluminação e ajardinamento especiais, uma vez que atraía as pessoas quando ligavam- se suas luzes e sua fonte, produzindo “magia” e “emoções”. Mantê-lo ligado seria a coisa mais sensata em “qualquer lugar civilizado do mundo”.86 Outro aspecto de que a comunidade poderia se orgulhar era da cultura, não a popular e multifacetada, decorrente do aumento populacional de subalternos, mas da erudita, fortaleza inexpugnável da tradicional elite cachoeirense. Foi o incentivo desse tipo de manifestação que rendeu- lhe o apelido de “Dr. Cultura” nos meios elitistas. Em 1997, elogiou a inauguração da Casa de Cultura, instalada na antiga residência de Balthazar de Bem, em frente à praça José Bonifácio. Evocou suas reminiscências de infância, quando era fascinado pelas fotografias, 74 JP, 17/9/1998 Carlos Eduardo Florence. Os sons da cidade, p.2 75 JP, 23/3/2000 Carlos Eduardo Florence. Asfalto na paisagem, p.2 e 27/11/1993 Carlos Eduardo Florence. A cidade e as calçadas, p.2 76 JP, 8/2/2001 Carlos Eduardo Florence. Paisagem urbana, p.2 77 JP, 24/4/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. A praça da cidade, p.2 78 JP, 17/9/1998 Carlos Eduardo Florence. Os sons da cidade, p.2 79 JP, 25/3/1999 Carlos Eduardo Florence. Outros tempos, outras pessoas, p.2 e 13/7/ 2000 Carlos Eduardo Florence. O dia em que Érico Veríssimo visitou Cachoeira, p.2 80 JP, 8/4/1999 Carlos Eduardo Florence. O caminho dos trens, p.2 81 JP, 30/7/1998 Carlos Eduardo Florence. A igreja que eu perdi, p.2 82 JP, 23/3/2000 Carlos Eduardo Florence. Asfalto na paisagem, p.2 83 JP, 27/11/1993 Carlos Eduardo Florence. A cidade e as calçadas, p.2, 25/1/2001 Carlos Eduardo Florence. Manual para procurar responsabilidade, p.2 e 8/2/2001 Carlos Eduardo Florence. Paisagem urbana, p.2 84 JP, 8/1/1994 Opinião. Carlos Eduardo Florence. A cidade e as árvores, p.2 85 JP, 24/4/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. A praça da cidade, p.2 86 JP, 29/5/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. O Chateau d’Eau, p.2 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido40 41 prédios, ruas, eventos e pessoas da cidade, para enaltecer o local onde seria guardada a história da comunidade, não de toda, mas de parte dela.87 No ano seguinte, incentivou o Clube de Cinema, iniciativa de pequeno grupo que se propunha manter em funcionamento o Cine Astral, grupo que o cronista chamou de “sonhadores” e “lutadores”, de pessoas que acreditavam na existência de tempo para “transbordar cultura e emoção”, que ofereciam “dotes culturais e democráticos para a maioria da população”.88 Na área das letras, Florence teceu comentários favoráveis a Liberato Vieira da Cunha, no lançamento do livro Um visto para o interior – Viagens a Cachoeira e outros mundos, porque o escritor havia colocado a cidade no mapa cultural e literário brasileiro. Chamou a publicação de “manual de sobrevivência”, capaz de recuperar a identidade cachoeirense, de conscientizar a auto-estima local.89 Ao Jornal do Povo denominou “espelho de Cachoeira, às vezes claro, às vezes embaçado, mas totalmente reflexivo da nossa vida e da nossa cultura”. No entender do cronista, a história da cidade se fundia com a do jornal, unindo gerações, “memória e futuro”.90 Paradoxalmente, em várias ocasiões o cronista tece severas críticas à cidade, posta de maneira generalizada, quando ele mesmo deprecia as coisas presentes ao prestigiar o passado mitificado. Afirma que os cachoeirenses (e aqui inclui todos, sem distinção) não valorizam o que é seu. Segundo ele, a “autofagia social” – que tenta destruir tudo aquilo que faz sucesso, que adora e cultua os fracassados – se tornou implícita na cidade, vista no “pessimismo crônico” e na “falta de criatividade”. Assim, Cachoeira seria duas em uma só: a “auto-destrutiva” e aquela que “tenta fazer o seu caminho”.91 Esta atitude depreciativa seria a própria imagem da cidade que “vive, fala e respira depressão”, “pessimismo doentio”, “mecanismo de auto-destruição patológico” que estaria desintegrando e desanimando toda população.92 Num mesmo sentido contraditório, Carlos Eduardo Florence critica a mania de grandeza dos cachoeirenses, mas fomenta a volta do passado glorioso. Escreveu sobre o “bonde errado” que a cidade teria pego, continuando sua “longa jornada em busca da insensatez”. 93 Cachoeira seria a cidade dos “êxodos” e das “migrações”, situação que teria criado dois tipos de cidadãos: os que saíram em busca de oportunidades e os que resistiram. Existem cidades cuja finalidade se esgota no fato de que ali se vive sem nenhuma forma de identidade cultural que as defina e existem outras que transcendem o modo de vida para uma marca, um orgulho, uma raiz. Isto é cachoeira. Não apenas se nasce aqui. Crias um arquétipo que te marcarás por toda vida. Sempre serás o cachoeirense que se civilizou antes das outras cidades, que sentas na praça, caminhas pela Moron e pela Sete e tem fascinação pelo Chateau d’Eau, nem que seja como moldura para fotografias de filhos, de netos, guardadas no afeto e na mente. Agora todos estes ritos de ir embora, viver em outros lugares e continuar se sentindo e sonhando com as nossas estrelas desenvolveram uma nova forma de cidade. A descentralizada. Nestas margens do Jacuí temos o centro político cultural, o resto: habitacional, comercial, industrial, universitária, de serviços espalhamos por este Brasil afora. E hoje podemos dizer que Porto Alegre é a maior cidade cachoeirense do RS. Não nos esgotamos num mapa urbano com limites definidos. E talvez por sermos planície e pampa os horizontes são infinitos e as estradas também e daí fica tão fácil sair e procurar outros trabalhos e outros sonhos. Os que saíram de vez em quando voltam, fazem planos para o retorno definitivo e caminham pelas nossas ruas em busca de si mesmos. Os que resistiram carregam e mantêm o espírito da cidade e a sua preservação. E lançam um ultimato com prazos definidos. Ou retornam todos e começamos de novo ou então embrulharemos o Chateau d’Eau, as palmeiras, a Matriz, a Prefeitura e acabaremos de vez com inspirações, energias, plenitudes e forças interiores. E daí prá frente fica só a saudade.94 A nostalgia dos anos 80-90 não é algo inédito. Compartilha algumas nuances com sentimento parecido dos anos 30-40. Já naquela época, as práticas cotidianas da elite cachoeirense foram impregnadas de uma mentalidade cujo resultado foi um conservadorismo que a imprensa local potencializou intensamente. Tal atitude não era privilégio da elite cachoeirense nem dos jornais locais. Os ideais do romantismo – que procurava suporte nas coisas da natureza – mantinham relação ambígua com o conservadorismo, na medida em que ambos redundavam na mitificação e no reencantamento do mundo moderno, impregnado pelo87 JP, 17/4/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. A cidade e a Casa de Cultura, p.2 88 JP, 19/3/1998 Carlos Eduardo Florence. O Titanic e o Astral, p.2 89 JP, 28/9/1996 Carlos Eduardo Florence. A cidade e o escritor, p.2 90 JP, 10/7/1997 Carlos Eduardo Florence. Jornal do Povo, p.2 91 JP, 16/7/1998 Carlos Eduardo Florence. Antropofagia cachoeirense, p.2 92 JP, 30/4/1994 Opinião. Carlos Eduardo Florence. A cidade e a depressão, p.2 93 JP, 27/5/1999 Carlos Eduardo Florence. O bonde errado, p.2 94 JP, 2/7/1994 Opinião. A cidade e as migrações. Carlos Eduardo Florence, p.2 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido42 43 e progredia sob “influxos de um labor inteligente e constante”. Como “pedaço mágico de terra”, tinha “fertilidade”, “beleza” e “opulência”, permitindo aos “heróis que a povoam” os “grandes empreendimentos”.107 Para outro leitor, a cidade precisava submeter-se “pacientemente” aos “sacrifícios impostos pelo progresso”.108 O tenente-coronel Francisco Pessoa Cavalcanti registrou suas impressões positivas, destacando os “vales alcantilados e fertilíssimos”, o rio Jacuí e o saneamento urbano, exemplos que mostravam, segundo ele, o progresso e a florescência da cidade.109 Para J.D.L., Cachoeira havia sido gerada no advento do modernismo, não precisaria destruir nada, somente edificar.110 Bidico Turco chegou a escrever uma oração para abençoar os avanços materiais do município: Benditas sejas tu, pelas tuas casas, quietas que sorriem num riso claro de bondade; pelas tuas igrejas erguidas que vivem num namoro eterno com o azulamento imaculado do firmamento. Benditas sejas tu, pelas tuas avenidas amplas e ensombradas; pelas tuas fábricas potentes que vomitam anelões azulados de fumaça denunciando o progresso dos teus filhos. Benditas sejas tu, pelas tuas calçadas mudas e pensativas; pelas tuas árvores verdes e bonitas que lembram as copas fartas aonde repousavam da jornada os patriarcas bíblicos. Benditas sejas tu, Cachoeira progressista, pela glória de seres mãe de Virgílio de Abreu, a personificação esplêndida da cultura e da inteligência. Cachoeira, eu me orgulho de ser teu filho, porque a tua história é nimbada por uma auréola luminosa de paz, de ordem e de labor. Recebe, pois, cá de meu carinho e do amor a reverência profunda da minha saudação.111 Em 1945, Wilson B. da Silva imprimiu na crônica Para ti, Cachoeira do Sul lirismo verdadeiramente apaixonado pela cidade. A pequena Cachoeira de outrora havia se transformado. A “aurora do progresso” dissipara as “trevas do esquecimento” em que se encontrava. No lugar das “velhas casas” foram construídos edifícios; indústrias e engenhos floresceram; estradas foram alongadas; surgiram colégios, igrejas, quadras de esporte, linhas aéreas e demais melhoramentos. Conquistas devidas aos “filhos entusiastas”, que “tudo fizeram”, com sacrifícios e trabalho extasiado. Para ele, isso não bastava: “Precisas ir mais para frente, em busca de novos progressos”.112 No mesmo ano, Fúlvio da Silveira Bastos escreveu de forma semelhante. Sob o título Curvo-me, reverente..., destacou os jardins, as praças, a mocidade exuberante, os salões sociais, o colorindo das ruas nos fins de tarde, o intenso movimento no bairro comercial, as fornalhas escaldante nas fábricas e a pujança dos arrozais que desencadeavam vertiginosa onda de progresso e vida.113 Paradoxalmente, conservadorismo e exaltação do progresso apresentavam-se como faces da mesma moeda. Ambos traziam consigo em comum a idéia de troca. Por um lado, se ela fora justa, não ocorreria progresso, dada a permanência no mesmo patamar. Por outro, a necessidade em manter a relação de troca desigual para conservar o status quo dos estabelecidos. Na dinâmica capitalista, estas questões foram colocadas de forma extraordinária. Na apropriação de poucos em detrimento de muitos, residia este princípio, que longe de ser estático, tornou-se extremamente dinâmico. Por esta razão, o conservadorismo e o progresso da época resultaram em tipos semelhantes de dominação social por parte da elite. A partir do exposto, depreende-se que a nostalgia potencializada pela imprensa cachoeirense, a partir da década de 80, tenha relação direta com as condições sócio-econômicas da cidade. O crescimento em menor medida de Cachoeira, quando comparado a outras cidades, fez com que se perdessem valores considerados fundamentais para a elite local. Contudo, acredito que o ímpeto nostálgico é fruto da perda do espaço público por parte da elite, principalmente a zona central, onde materializaram-se muitos dos ideais urbanos elitistas nos anos 20, época em que os subalternos mantinham-se nos limites espaciais/simbólicos que lhes eram impostos. Conforme o historiador Jacques Le Goff, o futuro aparece, nesta perspectiva, de duas formas: o fim talvez definitivo ou inserido num ciclo cuja morte é seguida de renascimento, visões históricas que se traduzem sob forma de periodização e provocam querelas, em especial a dos “antigos” versus a dos “modernos”.114 Desta maneira, quem fomenta o olhar nostálgico, acaba criticando o período em que vive, em nome de valores do passado, e critica o progresso, realçando suas marcas mais derradeiras. Mesmo o desejo de 107 JP, 5/8/1937 Cachoeira, seu progresso e o patriotismo de sua gente. Cely Adel Guarani de Bem, p.1 108 JP, 12/12/1937 A anunciadora “Voz de Cachoeira”, p.6 109 JP, 8/5/1938 Cachoeira impressões. Tent. Cel. Francisco Pessoa Cavalcanti, p.1 110 JP, 12/5/1940 Cachoeira! J.D.L., p.3 111 JP, 20/2/1938 Vida Social. Oração à Cachoeira. Bidico Turco, p.2 112 JP, 4/2/1945 Para ti, Cachoeira do Sul. Wilson B. da Silva, p.3 113 JP, 20/11/1945 Curvo-me, reverente... Fúlvio da Silveira Bastos, p.2 114 LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1990, p.422 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido48 49 progredir reveste-se da condição de resgatar a pujança que se tinha anteriormente. A resposta da elite cachoeirense caminha no sentido de acentuar o apelo mitificado ao passado, visto freqüentemente nas publicações das crônicas, reportagens e editoriais evocando memórias, os tempos áureos ou o passado glorioso, como foi mostrado anteriormente. Frente a essa situação dos anos 80-90, a resposta da elite cachoeirense foi justamente apegar-se aos feitos passados, como se eles pudessem trazer de volta aquela época, considerada progressista, mesmo que num sentido muito mais de competição com relação a outras cidades do que comparando as épocas passadas. Por isto na Cachoeira do Sul dos dias de hoje é muito presente essa questão da nostalgia, esse apego às glórias de outrora. É nesse sentido que a elite parece acomodar-se, “deitar em berço esplêndido”. Cabe ressaltar que a nostalgia presente no discurso da imprensa é posta de forma generalizada, como se fosse algo de toda comunidade. Embora não discuta aqui a trajetória das pessoas que migraram do campo para a cidade, é natural pensar que elas vieram em busca de melhores condições, pensar quanto a cidade atraía, legítimo canto de sereia que prometia uma vida melhor estruturada, maiores oportunidades de crescimento e ganhos. Mesmo que tais promessas não foram cumpridas, o fluxo migratório campo-cidade não se inverteu, tampouco as pessoas deixaram de fugir do campo. Mas, através da imprensa cachoeirense, não é possível saber o que pensavam esses migrantes, pela simples ausência da fala dos subalternos nos jornais. Estudos apontam a existência de certa nostalgia no campesinato brasileiro, representação idealizada tendo o passado como “estável” frente às incertezas do futuro.115 A diferença reside na busca daquilo que se “perdeu”: para os subalternos, a estabilidade; para a elite cachoeirense; o domínio simbólico do espaço urbano homogeneizado. Mostra dessa diferença é o fato do jornal ser o porta-voz da chamada crise, mas levar a crer que não passa por privações econômicas dela decorrentes. Remete para fatos aos quais parece estar imune. O artigo O nosso jornal,116 assinado pelo diretor do Jornal do Povo, Eládio Vieira da Cunha, exemplifica essa questão, ao mostrar o jornal numa imagem progressista, diferente da imagem negativa e retrógrada de Cachoeira, comumente evocada nas edições do jornal, tanto nas reportagens quanto nos artigos opinativos. Ele usa abundantemente superlativos – instrumento de amplificação das idéias, defensor dos interesses, vigoroso incentivador de iniciativas, estimulador da cidadania, promotor de desenvolvimento, sétimo maior diário do interior do Estado em número de exemplares e qualidade gráfica e editorial – para marcar as diferenças entre o jornal e a cidade. Em resumo, o JP seria vencedor numa cidade perdedora. Se para o jornal a decadência da região passaria ao largo, a mesma lógica pode ser aplicada aos demais membros da elite local. Desta forma, o mote da nostalgia elitista não reside na perda da liderança econômica do município, mas no fato do espaço público ter sido invadido pelos outsiders. É partindo dessa idéia de nostalgia e idealização do passado pela elite cachoeirense e tomando em conta, entre outros, o episódio descrito logo no início, que penso a cidade de Cachoeira do Sul para este trabalho. De que cidade falam as elites do final do século XX quando se voltam para o passado através das páginas do jornal? O que as reportagens, editoriais e cronistas habituais rememoram? O que caracteriza esta cidade (re)lembrada para despertar tal sentimento de forma generalizada entre a elite cachoeirense? O que se fazia na época e se deixou de fazer posteriormente a ponto de despertar tanta saudade? Considero que essa reconstituição não parte exclusivamente das próprias memórias de quem as escreveu, visto que muitos necessariamente não viveram naquele período, mas estão baseadas em lembranças de quem conta a história local. Essa nostalgia, portanto, não parece ser de toda comunidade cachoeirense, mas de uma elite, leitora e dirigente do jornal, que sonha com seu paraíso perdido e faz de suas memórias as memórias de todos os cachoeirenses. Para responder essas questões, nesta tese – Muito além da praça José Bonifácio: as elites e os “outsiders” em Cachoeira do Sul pela voz do Jornal do Povo, 1930-1945 – procuro ver a dinâmica da vida da elite cachoeirense, considerando as transformações da diferenciação social praticada por esse grupo, através de suas práticas cotidianas, no período histórico entre as décadas 30 e 40, buscando compreender como o espaço urbano central da sede do município constituiu-se em campo de 115 GARCIA, Afrânio. A sociologia rural no Brasil: entre escravos do passado e parceiros do futuro. In: Sociologias. Porto Alegre: PPG Sociologia/UFRGS, n.10, 2003 p.154- 189 [disponível em http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517- 45222003000200006&lng=pt&nrm=iso – acessado em 20/12/2006] 116 JP, 28/6/1997 Artigo. Eládio Vieira da Cunha. O nosso jornal, p.2 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido50 51 enfrentamento das forças locais, no momento em que abrigou ou excluiu determinados tipos de habitantes. Procuro ver também qual a influência dos fluxos migratórios locais na organização/desorganização desse espaço e de que maneira as práticas urbanas do dia-a-dia da elite cachoeirense foram se reafirmando/modificando em contato com esses “novos bárbaros” ou outsiders. Muito além da praça José Bonifácio porque esse logradouro pode ser considerado, para a época, epicentro onde impunham-se as barreiras sociais entre a elite moradora do centro e os outsiders que literalmente invadiram o espaço urbano, gerando conflitos como o episódio narrado logo no início desta introdução. A partir da praça, ampliavam-se tais práticas discriminatórias. E para narrar o momento, o Jornal do Povo, veículo porta-voz dos ideais elitistas, reafirmando continuamente, através do texto impresso, aquilo que a parcela da população mais abastada desejava estabelecer como verdadeiro e correto, portanto, como o que deveria ser seguido por todos. A praça José Bonifácio aparece como símbolo de lugar da elite no período estudado, mas as práticas excludentes impregnavam muitas das relações além dos limites espaciais do logradouro central, perpetuando-se em praticamente toda área urbana, quiçá na suburbana, com intensidades semelhantes. Por esta razão, a análise estende-se para a zona central, saneada no fim dos anos 20, e, em raros momentos, avança até os arredores da cidade, os subúrbios onde vivia a população subalterna. De certa maneira, tento mostrar o enfrentamento simbólico entre a elite cachoeirense e os subalternos que passaram a ocupar o espaço urbano central nas décadas subseqüentes a 1929-30. Como esse novo quadro sócio-econômico-espacial modificou a paisagem urbana, advindo daí novas relações, urbanidade afetada pelo modo de agir diário. Essas modificações no cotidiano da urbe acentuaram-se nas décadas seguintes. Nos anos 80- 90, a transição parece ter-se completado. Os tempos áureos do arroz irrigado e dos investimentos recebidos pelas colônias circunvizinhas, época em que poucos privilegiados viviam na zona urbana central, deram lugar ao perfil econômico baseado na agricultura monocultora, somado a diminuta capacidade de gerar emprego e renda para a massa populacional que passou a habitar a zona urbana, características das cidades localizadas fora dos eixos metropolitanos que acabaram por distanciar-se do empuxo econômico decorrentes das grandes aglomerações informacionais, sociais, culturais, políticas, econômicas, etc., no fim do século XX. Desta forma, o que ocorreu em Cachoeira do Sul é algo muito parecido ao de outras cidades que mantiveram esse perfil. Como não lembrar de cidades outrora pujantes, como Pelotas e Rio Grande, só para ficar em dois exemplos gaúchos? E o sonho daqueles que migraram para outras regiões, deixando para trás a falta de perspectiva que essas cidades ofereciam? Saudades da terra? Vontade de retorno algum dia? Retorno na velhice? No período que circunscrevi, as mudanças político-econômicas brasileiras resultaram na transformação paulatina do perfil populacional do município. Até os anos 30, a população cachoeirense era predominantemente rural. Em 1920, por exemplo, o município tinha 53 mil habitantes para uma população urbana estimada em pouco mais de 10 mil, algo em torno de 18%. Nos anos 40, a população urbana da sede tinha simplesmente dobrado de tamanho, passando para 20 mil habitantes, o que representava 24% do total de 83 mil, mesmo que na zona rural ainda vivessem 63 mil pessoas (76%). Todavia, o intenso processo migratório campo-cidade, visto neste interstício, desencadearia os primeiros impactos no seio das relações sociais e no cotidiano da cidade, alternando principalmente a convivência diária entre a elite e os outsiders, abalos que se tornariam muito mais profundos, fulminantes e avassaladores nas décadas seguintes. Mostra disso é o aumento populacional verificado nos anos do pós-guerra. Se até 1950, a população da sede cachoeirense manteve-se próxima dos 25%, 24 mil habitantes para os mais de 95 mil em todo município, no início dos anos 60 a população urbana saltou para 40 mil, 47% dos 84,5 mil habitantes. As décadas seguintes veriam o agravamento do inchaço populacional, com a elevação para 60 mil (64%) habitantes na zona urbana, de um total de 93,3 mil, em 1980, e 70 mil na zona urbana (78%) de um total de 90 mil habitantes, em 1990.117 117 A diminuição de habitantes totais, em 1959, deveu-se a emancipação do distrito de Agudo, de origem alemã. Nos anos 70-90, além das emancipações, muitos cachoeirenses migraram para outras regiões. A mudança do perfil demográfico cachoeirense acompanhou o do Rio Grande do Sul. Em 1950, a porcentagem da população urbana do Estado era de 34,14%; em 1960, 44,89%; em 1970, 53,33%; em 1980, 67,53%; em 1991, 76,56%; em 2000, 81,65%. Fonte: CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, Cachoeira de Sul: Município de Cachoeira, 1922. Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Anuário estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, 1946. Anuário estatístico do Brasil 1950. Rio de Janeiro: IBGE, v. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido52 53 díspares, fazendo com que, de certa maneira, a elite passasse a repugnar a convivência com os não-civilizados, revigorando a incapacidade de lidar com o diferente e o estranho. Estudar a simultaneidade das práticas cotidianas e do urbano no intervalo proposto é partir duma perspectiva polifônica, onde a comunicação urbana é vista como conjunto heterogêneo de significados e significantes, que cruzam-se entre si, relacionam-se, sobrepõem-se, isolando-se e contrastando-se ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Compreender a cidade e as relações nela existentes significa colher esses fragmentos, lançando pontes entre eles, caminho possível para encontrar sua pluralidade de significados.120 Seguindo esta lógica, estruturei o trabalho em sete capítulos e respectivos sub-capítulos, além dessa introdução e das considerações finais. Os dois primeiros capítulos são reflexões teóricas sobre o tema e históricas sobre Cachoeira do Sul e sobre a imprensa, a principal das fontes que utilizei ao longo deste trabalho. No terceiro capítulo, procurei analisar a imbricada teia de inter-relações entre os aspectos econômicos, urbanos e migratórios locais. Procurei ver a predominância de alguns aspectos econômicos sobre os fluxos migratórios e como essa corrente campo- cidade, intra-regional ou mesmo inter-estadual, influenciaram na construção, reforma, organização e desorganização do espaço urbano cachoeirense, especificamente sua zona central. À luz dessas constatações, nos capítulos quatro a sete, procurei ler as práticas cotidianas da elite cachoeirense no período em questão, em especial as rupturas delas decorrentes e que foram significativas para o dia-a-dia dos estabelecidos, em confronto com os outsiders. Estruturas cotidianas que revelam-se no fazer diário, no transitar em público, no passear nas ruas e praças, nas relações de civilidade e convivência, no regramento social, no trato de questões como vida e morte, nos lazeres, divertimentos e distrações, nos esportes ou deleites dos cafés e confeitarias, nos cinemas e teatros, nos clubes e bailes, no carnaval, e no trato com os “indesejáveis”, “subalternos” “incivilizados” e “desordeiros”: mendigos, vagabundos, prostitutas, jogadores, beberrões, menores delinqüentes, presidiários, mendigos, todos aqueles que a elite tratava como resíduo social, espécie de subproduto da invasão da subalternidade vista no período. No conjunto da análise, utilizei como fontes de pesquisa alguns documentos históricos referentes ao município, como livros de Aurélio Porto, Ângela Schuh e Ione Sanmartin Carlos,121 Tupinambá Pinto de Azevedo, Liberato Vieira da Cunha, Geraldo Mário Rohde e João Carlos Mor;122 de edições reunindo dados locais, como o Grande Álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, organizado por Benjamin Camozato, o Álbum do Sindicato Arrozeiro, o Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, na gestão de Cyro da Cunha Carlos, as duas edições de Cachoeira Histórica e Informativa, de Vitorino Portela e Manoel de Carvalho Portela, Aspectos Gerais de Cachoeira, de Fortunato Pimentel,123 o Álbum Comemorativo a passagem do primeiro centenário de Cachoeira do Sul, o Guia Geral do Município de Cachoeira do Sul, de José Pacheco de Abreu, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, do IBGE,124 o Centenário de Cachoeira do Sul e parte da coleção da revista Aquarela, relatos pitorescos, alegres e otimistas do passado cachoeirense, publicados por Humberto Attilio Guidugli;125 outros livros como a Fundação 120 Sobre a perspectiva polifônica, ver CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. Ensaios sobre a Antropologia da comunicação urbana. Tradução Cecília Prada. São Paulo: Studio Nobel, 1993 121 PORTO, Aurélio. Cachoeira. Resumo Histórico. In: CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, op.cit, 1922; ___. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS: Martins Livreiros, 1996 [edição original de 1934]; SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991 122 AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. Cachoeira do Sul, comarca: 150 anos de história. Cachoeira do Sul: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul, 1985; CUNHA, Liberato Vieira da. Um visto para o interior. Viagens a Cachoeira e meus outros mundos. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996, ROHDE, Geraldo Mário. Cachoeira do Sul: uma perspectiva ambiental. Canoas: ULBRA, 1998 e MÓR, João Carlos Alves. A minha Cachoeira. Porto Alegre: Martins Livreiros, 2001 123 CAMOZATO, Benjamin. Grande Álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil. op.cit., 1922; Álbum do Sindicato Arrozeiro, 1935, Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939, apresentado pelo Snr. Cyro da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de prefeito, Porto Alegre: Livraria do Globo, 1940; PORTELA, Vitorino. PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. Cachoeira: Tipografia Portela, 1ª ed, 1940, 2a ed., 1943, e PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. Porto Alegre: Tipografia Gundlach, 1941 124 Álbum Comemorativo a passagem do primeiro centenário de Cachoeira do Sul, Cachoeira do Sul: Município de Cachoeira do Sul, 1959; ABREU, José Pacheco de. Guia Geral do Município de Cachoeira do Sul. Cachoeira do Sul: Município de Cachoeira do Sul, 1963; FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, vol. XXXIII, 1959 125 Humberto Attilio Guidugli (pseudônimo Eliseu) publicou O Centenário de Cachoeira Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido58 59 do Município de Cachoeira do Sul: documentos históricos, os 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, o Cachoeira em Jornal e o Levantamento histórico da industrialização de Cachoeira do Sul,126 ambos organizados pelo Museu Municipal de Cachoeira do Sul, além de documentos avulsos organizados e cedidos pelo Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul,127 incluindo algumas leis municipais. O maior peso da minha pesquisa foi na imprensa local, principalmente no Jornal do Povo, que circula na região de Cachoeira do Sul ininterruptamente desde 29 de junho de 1929. Selecionei 782 fragmentos de notícias, entre reportagens, crônicas, apedidos, etc., no período de 1929 até 1948, para tentar enxergar como o jornal constrói uma imagem de cidade e daqueles que nela habitam ou estão ligados de alguma maneira, mesmo que essa imagem refira-se à parte que lê o jornal e, por conseguinte, forma alguma opinião acerca do narrado, mas que, de alguma forma, por força do poder simbólico que carrega, muitas vezes impregna a visão de toda comunidade, ou mesmo passa a valer como se fosse de todos; mas também, numa retroação, como a comunidade alimenta os acontecimentos narrados no jornal.128 Entendo que tal documento, como fonte historiográfica, permite radiografar as práticas cotidianas, principalmente as rupturas ou mudanças nos padrões de comportamento da elite da época. Com a missão diária de forçar a atenção do leitor, “em mergulhar seu enfado na torrente ininterrupta de acontecimentos confusos que faz a atualidade”, o jornal acaba simplificando e desfigurando a realidade ao mediá-la.129 Uma leitura atenta dessa fonte, contrapondo-a às outras fontes históricas, permite revelar o processo de doutrinação simbólica que se constrói através de pressupostos impostos como óbvios e inevitáveis, não de forma arbitrária mas tornados reconhecidos de forma natural.130 Como documento que enxerga e descreve a micro-história131 espacial e temporal, o jornal abre possibilidades de revelar em determinados momentos, nos fatos aparentemente irrelevantes, os confrontos de idéias e a própria relação de força existente no entrecruzamento do mundo social. Embora minha finalidade não fosse fazer uma análise comparativa dos discursos produzidos pela imprensa local, trabalhei também com alguns dados organizados e disponibilizados pelo Arquivo Municipal do jornal local O Commercio (1900-1966). Outro material levantado foi parte do acervo iconográfico do Museu Histórico Municipal e do Arquivo Histórico Municipal, constituído de fotos, mapas, planos urbanos e outras representações gráficas do município. Tais imagens do passado “evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade presente”.132 do Sul em 1959. A revista Aquarela circulou entre o final dos anos 50 até início dos anos 70, um pouco depois do falecimento de Humberto, em 23/2/1971. Parte da coleção da revista encontra-se no Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul. 126 Fundação do Município de Cachoeira do Sul: documentos históricos. Cachoeira do Sul: Museu Municipal de Cachoeira do Sul, 1987, 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, Cachoeira do Sul: Gráfica Jacuí, 1996, Cachoeira em jornal – catálogo, 1982 e Levantamento histórico da industrialização de Cachoeira do Sul, Cachoeira do Sul: Museu Municipal e Arquivo Histórico de Cachoeira do Sul, 1983 127 Por exemplo: exposição do Arquivo Histórico Municipal HCB, 100 anos de história; Código de Posturas Municipais, 1853; Livro de Atas do Grande Conselho do HCB, 1936-1968; Livro de Atas de Sessões da Câmara Municipal (1830-1864), entre outros. 128 O banco de dados completo, com todos fragmentos de notícias do Jornal do Povo, entre 1929 e 2001, utilizados neste trabalho, pode ser acessado através do código 1.10, SELBACH, Jeferson F. Jornal do Povo, Cachoeira do Sul/RS, 1929-2001 (Banco de dados). Cachoeira do Sul: Universidade Luterana do Brasil, 2004. In: Consórcio de Informações Sociais, 2007. disponível em http://www.cis.org.br 129 RIOUX, Jean-Pierre. Entre história e jornalismo. In: CHAUVEAU, Agnes. TETÁRT, Philippe. Questões para a história do presente. Tradução Ika Cohen. Bauru/SP: EDUSC, 1999, p.120-122. 130 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. 2a ed. São Paulo: Edusp, 1998; BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz. 5a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 131 Ver, sobre a micro-história: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). A revolução francesa da historiografia. Tradução Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997 132 BOURDIEU, Pierre apud LE GOFF, Jacques. História e memória. op.cit., 1990, p.466. Mapas e planos urbanos foram cedidos pelo Arquivo Histórico. As fotografias foram cedidas tanto pelo Arquivo quanto pelo Museu. Sobre o uso de imagens na história, ver ainda BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. Imagem e história: as fotografias escolares no estudo da escola primária curitibana (1903-1971). In: Edição eletrônica do XXII Simpósio Nacional de História, João Pessoa/PB: UFPB, 2003, e FLORES, Élio Chaves. Representações cômicas da República no contexto do Getulismo. In: Revista Brasileira de História. v.21 n.40 São Paulo, 2001 [disponível em http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882001 000100007&lng=es&nrm=iso&tlng =pt – acessado em 27/3/2005] Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Prólogo: nostalgia do tempo perdido60 61 Além desses documentos históricos, utilizei como fonte de pesquisa dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação de Economia e Estatística (FEE/RS), principalmente os referentes aos deslocamentos populacionais e à economia da região de Cachoeira do Sul. Acima de tudo, parti da concepção de que nenhuma comunidade é uma ilha, sendo necessário fazer emergir algumas de suas conexões, que situações particulares podem mostrar a maneira como os indivíduos produzem seu meio social, entendendo que os sistemas de relações que organizam o mundo social são tão reais quantos os dados materiais. Estudando o caso de Cachoeira do Sul, é possível depreender um pouco desses efeitos que se mostram semelhantes no interior de sociedades bastante afastadas no tempo e no espaço. Assim, Cachoeira do Sul é o recorte espaço-temporal do estudo, mas é, ao mesmo tempo, espaço que retrata, que exemplifica a situação por que passaram muitas outras cidades congêneres, no Rio Grande do Sul, no Brasil e até em outras partes do mundo. Toda pesquisa é sempre uma construção coletiva daqueles que colaboraram direta ou indiretamente. Para a consubstanciação deste trabalho foi necessário o auxílio de várias pessoas e entidades: a começar pelo meu irmão Carlos Henrique, a quem devo a indicação para trabalhar na ULBRA e o abrigo em Cachoeira do Sul nos primeiros dois anos, junto com sua família, Eliane, Carol e Filipe; a ULBRA que financiou o início desta pesquisa, cedendo a Andressa Bordignon, monitora deveras importante, além das outras que trabalharam comigo de forma voluntária: Carina, Chana, Isabel, Liziane, Renata, Talita; não posso esquecer o Paulo Ricardo, companheiro de pesquisa, nem as moças que fizeram parte do Arquivo Histórico Municipal até meados de 2005, Eliane, Gorete, Lucinha, Loveli, em especial, a entusiasta pela história cachoeirense Ione Sanmartim Carlos, por tirar muito das minhas dúvidas, e as do Museu Histórico Municipal, Mirian e Márcia; a orientação primorosa da Eloísa Capovilla; as conversas com a Rosemary Brum, minha eterna debatedora e co-orientadora, que me animou quando tudo parecia perdido; meus familiares, minha mãe Penalva, meus irmãos Veverton e Graziela, sogros Renualdo e Naura; e minha esposa Paula, que apesar da jovialidade, conseguiu entender as privações materiais e espirituais necessárias para concretizar este trabalho. A você, meu eterno amor... Parte I textos e contextos Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach62 Nessa lógica, denomino elite os que moravam neste espaço central, os que, guardadas as devidas proporções, tiveram acesso ao que havia de moderno em sua época, como vestuário, automóvel, trem, rádio, jornais, telégrafo, telefone, luz elétrica, cinema, teatro, etc.4 Essa elite cachoeirense assemelha-se aqueles que Norbert Elias chamou de “estabelecidos”, habitantes duma pequena cidade inglesa que cultuavam carisma grupal distintivo, cerrando fileiras e estigmatizando os que não pertenciam ao grupo, os que viviam do “lado de fora”, chamados de outsiders, pessoas que consideravam de menor valor devido a falta de virtudes humanas superiores. Neste contexto, procurou ver os estigmas que os habitantes tradicionais lançavam sobre os forasteiros, como se constituía a sociodinâmica dessa estigmatização. Ele estudou as múltiplas tensões existentes entre os dois grupos, a natureza de sua interdependência, através de fatos cotidianos, como a sociabilidade que excluía os estrangeiros que não partilhavam dos valores e do modo de vida vigentes, mantidos distantes e afastados dos locais de decisões comunitárias, como clubes, igrejas ou mesmo praças. Essa auto-imagem que o grupo estabelecido fazia de si tornava-se seu diferencial nas relações de poder, precondição para que ocorresse a estigmatização social. A arma para manter a superioridade social era impetrar aos outros a condição ou rótulo de “valor humano inferior”.5 Tento mostrar como esse estigma, visto por Elias, assemelha-se ao da elite em relação aos “novos bárbaros”, na Cachoeira dos anos 30-45. Algo muito próximo à imagem do caboclo indolente e atrasado representado na literatura da época por Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato, que expressou muitas das questões centrais presentes no pensamento social brasileiro na década de 1930 em diante.6 Nesse sentido, é semelhante a diferenciação produzida pela elite cachoeirense em relação aos migrantes oriundos das zonas de colonização ou de outras áreas agrícolas, na medida em que produz uma auto-imagem do moderno em oposição ao atrasado. Importa ressaltar que nem todos que habitavam a zona central de Cachoeira tinham condições sócio-econômicas-culturais privilegiadas, assim como nem todos que moravam em outras zonas urbanas ou rurais eram subalternos. Fugindo do estigma que tal generalização desencadeia, procurei ver as nuances que têm como palco a zona que delimitei. Por essa causa, a análise debruçou-se, em determinadas ocasiões, para espaços periféricos na razão em que serviam para contrapor algumas das questões aqui discutidas. Além do mais, não reduzo a idéia de elite como classe homogênea, que tem consciência absoluta de grupo e atua mobilizada em determinado sentido. Embora agregue indivíduos em posições semelhantes e que tenham provavelmente atitudes e interesses semelhantes, tal relativismo anularia suas diferenças sociais.7 4 TRUSZ, Alice Dubina. O papel da publicidade na informação e assimilação cotidianas da modernidade na Porto Alegre dos anos 1920. In: Revista História Hoje, revista eletrônica de História, v.1, n.3, ANPHU, março, 2004 [disponível em www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol1n3 – acessado em 10/3/2006], analisando o papel da publicidade comercial na informação e estimulação cotidiana do processo de modernização da sociedade porto-alegrense na década de 1920, mostra como a cidade foi objeto de marcantes transformações de caráter urbanístico e, simultaneamente, operou-se a diversificação da produção industrial, com o lançamento de novos produtos no mercado, principalmente aqueles produzidos a partir da adaptação para uso doméstico de novas fontes energéticas, como a eletricidade. Os anúncios analisados divulgaram e promoveram comercialmente tais produtos, apresentados como índices de civilidade. 5 ELIAS, Norbert. SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. op.cit., 2000, p.19 6 Ver LIMA, Nísia Trindade. Jeca Tatu e a Representação do Caipira Brasileiro. In: Anais eletrônicos do XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, 27 a 31 de outubro de 1997. [disponível em http://www.anpuh. uepg.br/anpuh/complemento.htm - acessado em 15/10/2005] e RODEGHERO, Carla Simone. Campo x cidade: o discurso católico frente à modernização da agricultura no Rio Grande do Sul, In: Anos 90. Revista do PPG em História. Porto Alegre/RS: UFRGS, n.7, julho de 1997, p.148-170, que analisa os posicionamentos sobre campo e cidade, na década de 50, tendo como foco principal a realização das Semanas Ruralistas pela Igreja Católica, no RS, que, segundo ela, tinham como pressuposto a idéia de que a mudança tecnológica garantiria a permanência das populações no campo, preservando aí o espaço de influência da igreja. Sua análise revela o cruzamento dos discursos que constroem a relação campo- cidade. 7 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, p.136. Tais processos de diferenciação ocorrem de forma semelhante em todo Brasil. Ver, por exemplo, RENK, Arlene. Etnicidade e itinerários de grupos étnicos no Sul do Brasil, que trabalha a questão da etnicidade e da identidade étnica, no Oeste Catarinense, a partir de dados levantados em diferentes momentos entre os anos de 1988 e 1997, junto a grupos de raízes camponesas. Ela discute o campesinato, sob o prisma da diferenciação étnica, tomando como ponto de partida o processo de colonização no oeste catarinense. Este significou diferentes itinerários: aos brasileiros representou a expropriação das terras, dos recursos materiais e foi o momento da construção de sua identidade étnica; aos colonos de origem a aquisição das terras em Santa Catarina era uma estratégia de reprodução social camponesa; e VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Territorialidade e Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões68 69 Procuro entender esse espaço social conforme Pierre Bourdieu, como algo multidimensional construído na base de princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que atuam no universo social e que conferem, ao detentor destas diferenciações, força ou poder neste universo. Desta forma, os sujeitos são definidos pelas suas “posições relativas” neste espaço. Segundo Bourdieu, “cada um deles está acatonado numa posição ou numa classe precisa de posições vizinhas”. E na medida em que estas propriedades são atuantes, o espaço pode ser descrito como um “campo de forças”, “conjunto de relações de força objetivas impostas a todos os que entram nesse campo e irredutíveis às intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os agentes”, enfim, “espaço de relações”, tão real quanto o material, relações essas regidas por determinado habitus, definido como conhecimento adquirido, haver ou capital que indica a disposição incorporada, quase postural, funcionamento sistemático do corpo socializado, atitude perante os demais.8 Parto do princípio de que o arranjo físico do espaço urbano influencia determinadas práticas cotidianas, mas que há dinamicidade nesta relação que desencadeia mudanças no fazer cotidiano e, por conseqüência, na desorganização/reorganização do espaço. Considero, assim, espaço como instância da sociedade, portanto de essência social, conforme definiu Milton Santos. Como instância econômica-cultural-ideológica, o espaço contém e é contido por várias instâncias. Não é formado tão somente por coisas palpáveis, naturais ou construídas, mas engloba a sociedade que atua neste espaço. Por um lado, a paisagem; por outro, o que dá vida a ela. A dinamicidade das mudanças reside nesta imbricação entre as instâncias, na medida em que as mudanças do fazer cotidiano implicam em sua permanente alteração.9 Paulo César da Costa Gomes entende que determinada ordem espacial pode influenciar sobremodo as práticas, fazendo com que elas dependam, num dado momento, da distribuição espacial. Assim, o espaço urbano é, ao mesmo tempo, o terreno onde as práticas cotidianas se exercem, a condição necessária para que elas existam e o quadro que as delimita e lhes dá sentido. Numa ordem em que as formas espaciais explicam parte das maneiras de ser de determinado grupo social e que estas maneiras de ser, inversamente, afetam a composição do espaço.10 Princípio semelhante é explorado por Lucrécia D’Aléssio Ferrara, para quem a imagem urbana, visual e polissensorial, é representação construída cotidianamente, a partir de informações inferidas da vivência de variáveis contextuais consideradas como elementos de informação urbana. “Estas variáveis contextuais urbanas são fontes de informação – explica ela – e moldam comportamentos, ações, valores, usos, hábitos, crenças e expectativas, ou seja, são fatores de uma percepção urbana que se sabe situada, localizada, sem querer insinuar, com isto, qualquer perspectiva determinista ou positivista no processo de percepção ambiental urbana”.11 Como recorte temporal delimitei o período entre as décadas de 30 e 40. Nos anos que antecedem este período, a zona urbana analisada recebeu enormes melhorias na sua infra-estrutura, melhoramentos materiais que não cessaram no período analisado nem posteriormente. Portanto, os espaços urbanos construídos nos anos anteriores ao analisado permitiram o reforço de determinadas práticas cotidianas elitistas, por conseqüência, excludentes, como passear na praça bem vestido ou mesmo freqüentar confeitarias. Todavia, em fins dos anos 20, o crescimento demográfico urbano fora do comum desencadeou mudanças significativas. O número de habitantes residentes na sede passou de 10 mil em 1920 para 20 mil cidadania em tempos globais: imigrantes em São Paulo, que busca caracterizar a presença estrangeira e a configuração de territórios dos grupos mais expressivos, contribuindo para a compreensão da dinâmica urbana em seus componentes socioculturais. Ela pretendeu entender a questão da alteridade na metrópole, a partir das dimensões reais e da compreensão da vivência na cidade, com suas oposições, conflitos e formas de sociabilidade. Ambos textos disponibilizados nos Anais eletrônico do XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, out/1997 [disponível em http:// www. anpuh.uepg.br/anpuh/complemento.htm – acessado em 15/10/2005] 8 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, em especial o capítulo III, A gênese dos conceitos de habitus e de campo, p.61-62 e VI, Espaço social e gênese das classes, p. 134-136 9 SANTOS, Milton. Espaço e Método. 3a ed. São Paulo: Nobel, 1992, p.1-2 e 46 10 GOMES, Paulo César da Costa. A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. op.cit., ___. Geografia fin de siècle, o discurso sobre a ordem espacial do mundo e o fim das ilusões. In: CASTRO, GOMES e CORREA (org.) Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.13-42, e ___. O espaço da modernidade. In: Terra Livre 5. O espaço em questão. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros; Marco Zero, 1988, p.47-67 11 FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção ambiental. op.cit., 1993, p.71-104 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões70 71 em 1940, 24 mil em 1950 e 40 mil em 1960. Desta forma, tais práticas cotidianas sofreram interferências externas que as mudaram profundamente, obrigando-as a adaptarem-se ou assumirem novas roupagens. Interessei-me por este contexto de mudanças das práticas cotidianas porque foi desencadeado a partir da chegada desses migrantes pobres que trouxeram consigo novas relações de articulação interurbanas, de natureza completamente diversa das até então conhecidas e cujo ápice encontra-se no período em questão. Nos anos que se seguiram ao pós-guerra, espécie de esfarelamento das práticas cotidianas elitistas no espaço urbano redundou em verdadeiro encastelamento da elite em espaços privados. Com novos atores se apropriando da cena cachoeirense, transubstanciou-se não só o espaço público como as próprias práticas cotidianas. O âmago destas transformações podem ser vistas justamente no intervalo selecionado. Daí a razão da interrupção da análise em meados da década de 40. Ao aprofundar a análise nas práticas cotidianas da elite cachoeirense, num dado momento histórico (1930/45) e numa delimitação espacial (zona urbana central cachoeirense), não é possível imaginar que tais práticas sejam disciplinadas a ponto de permitir generalização. Assim como o uso que os consumidores subalternos fazem dos espaços produzidos pela elite não é dado de forma passiva ou dócil, há a antidisciplina, para usar a expressão de Certeau, no modo de proceder no seio da própria elite. As maneiras de fazer determinadas práticas cotidianas assumem, nesta lógica, duplo sentido. Por um lado, são regidos por estruturas disciplinadoras, como queria Michel Foucault,12 que fazem com que os indivíduos, em ambientes sociais próximos, se auto-disciplinem através de determinados dispositivos e procedimentos, “instrumentalidades menores” que são capazes de transformar a multiplicidade humana em sociedade “disciplinar”, através da organização dos “detalhes”. Por outro lado, alguns destes procedimentos escapam à disciplina sem serem excluídos do campo onde se exercem, levando a concluir que as práticas cotidianas sugeridas por Certeau são vívidas e inquietantes.13 Certeau distingue as maneiras de fazer as práticas cotidianas, andar, falar, comer ou vestir. “Esses estilos de ação – escreve ele – intervêm num campo que os regula num primeiro nível, mas introduzem aí uma maneira de tirar partido dele, que obedece a outras regras e constitui como que um segundo nível imbricado no primeiro”.14 Dito de outra forma, as práticas cotidianas operam em dupla direção: a das regulações ou da auto- disciplina de Foucault e a das distorções ou indisciplina que provocam as rupturas. Mesmo constatando que muitos espaços participam da geração de micro- poderes onde a ordem disciplinar cotidiana tem lugar, que determinadas formas espaciais ou arquitetônicas servem de mecanismos de disciplinarização do fazer cotidiano elitista, há maior complexidade por trás do caráter meramente produtivista dos espaços, surgidos nos “contra- poderes” que resistem à disciplina. Desta forma, torna-se impossível apreender a complexidade do processo de territorialização de determinado grupo social sem conhecer estas múltiplas interações que fazem do espaço algo não unidimensional, mas um labirinto com complexas redes de ações recíprocas que permitem a apropriação sucessiva de significações diversas, típico da dinâmica multiespectral da modernidade. Ininterrupta migração e rearranjo de valores, formas, funções e significados, celebrados cotidianamente através da permanente organização, desorganização e reorganização do espaço urbano.15 Delimitar espacial e temporalmente tal análise é partir da concepção de que nenhuma comunidade é uma ilha, sendo necessário fazer emergir suas conexões. É partir do entendimento que, conforme Roger Chartier, situações particulares, em dado espaço e tempo histórico, são capazes de revelar as maneiras como os indivíduos produzem e reproduzem seu meio social, “por meio de suas alianças e seus confrontos, através das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem”.16 É, também, pensar nos “fenômenos reticulares” apontados por Norbert Elias, no 12 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994, trabalha com a idéia de Michel Foucault de estruturas auto-disciplinadoras, mas não se limita a ela. Sugere como contra-ponto, as rupturas cotidianas. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987 13 Fora do poder panóptico, sobrevivem movimentos contraditórios que compensam-se e combinam-se. Assim, nas práticas urbanas cotidianas, os indivíduos se auto- disciplinam ao mesmo tempo que agem de forma incoerente, fora do padrão normalizado. Desviar-se das regras é promover rupturas que possibilitam modificar os padrões de comportamento. 14 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994, p.92 15 Ver GOMES, Paulo César da Costa. O espaço da modernidade. op.cit., 1988, p.47-67 16 CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC, vol. 7, n. 13, 1994, p.101-102 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões72 73 implica numa constatação de que “as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros”. Para Chartier, na recepção da leitura, o texto lido ganha sentido com o leitor: muda com ele, ordena-se conforme seu código de percepção.28 Já a autoridade da escrita repousa sobre certa adesão, conforme escreveu Michel de Certeau, “acordo espiritual” que confere legitimidade ao exercício do poder. O uso autorizado da palavra reside assim na legitimidade daquele que a pronuncia, neste caso o jornal. Usar o jornal como documento histórico é partir do princípio que ele permite revelar a posição do grupo editor, que pode ser ou não pertencente a elite, no momento que assume-se como seu porta-voz.29 Por esta razão Certeau afirma: “ler é peregrinar por um sistema imposto”.30 O que não pode é pretender impor-se o discurso daqueles que escrevem e lêem como história de toda sociedade. Apesar deste cuidado para fugir da generalização, não é possível negar que quando o discurso elitista é veinculado pelo jornal, atinge os outsiders ou subalternos em maior ou menor grau. Pierre Bourdieu denomina esta relação produtor-receptor como processo de doutrinação simbólica, trabalho de “gota-a-gota simbólico”, pois leva tempo para tornar-se evidente e aceitável. As armas são o léxico comum, os eufemismos e os pressupostos impostos como óbvios e inevitáveis. Ele entende ser necessário analisar a produção e circulação desse discurso, descrevendo de modo preciso seus procedimentos a partir do qual dada visão de mundo é produzida, difundida e inculcada.31 Neste sentido é que existem relações que servem como instrumento de dominação, pois são poderes de construção da realidade que tendem a estabelecer certa ordem em seu conhecimento. A cultura dominante, segundo Bourdieu, contribui para a integração da classe dominante, para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, desmobilizando as classe dominadas, e para a legitimação da ordem estabelecida pelas distinções hierárquicas.32 Neste caso, o uso do jornal como veículo de dominação da linguagem, pensamento e ação ocorre na medida em que a opinião impressa em suas páginas, embora não seja consenso, legitima- se não por ser a única linguagem mas por ser aquela que chega quase com exclusividade aos leitores e pode, consequentemente, generalizar- se para toda comunidade, mesmo a não-leitora. É o sentido que Bourdieu dá para a competência dominante que opera como capital lingüístico capaz de assegurar “lucro de distinção”, desde que sejam continuamente preenchidas as condições necessárias para impor essa competência como a única legítima. Assim, ao se buscar a linguagem como fonte, deve-se tomar como objeto de estudo “a relação capaz de unir sistemas estruturados de diferenças lingüísticas sociologicamente pertinentes e sistemas igualmente estruturados de diferenças sociais”. Em outras palavras, procurar ver o que se fala e como se fala, em diferentes contextos sociais. Na perspectiva da imprensa, a aceitabilidade social do que se publica toma o caminho da resposta ou do silêncio do leitor.33 Por esta razão, a leitura do jornal como fonte permite privilegiar aspectos ou esquemas existentes abaixo da transparência dos fenômenos.34 Nessa complexa teia de transmissão de “verdades”, o jornal, como veículo produtor e reprodutor da cultura dominante, ensina como pensar, falar e agir em sociedade. Edgar Morin entende que a cultura de massa – na qual o jornal se inclui – orienta, desenvolve e domestica certas virtudes humanas, enquanto inibe e proíbe outras.35 28 CHARTIER, Roger. Práticas Culturais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.17 29 CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Tradução Enid Abreu Dobránszky. Campinas/ SP: Papirus, 1995, Ver prefácio de Luce Giard, p.7, 38, 126-127 e 157 30 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994, p.264 31 BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.42-44 32 Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, p.9-15 e ___. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. op.cit., 1998, especialmente a Introdução de Sérgio Miceli, p.11, e Parte I, p.23-24 33 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. op.cit., 1998, p.37-38 e 41-44 34 BOURDIEU, Pierre. CHAMBOREDON, Jean-Claude. PASSERON, Jean-Claude. A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas. Tradução de Guilherme Teixeira. 2a ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1999 35 MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Volume 1: neurose. Tradução Maura Ribeiro Sardinha. 8a ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1990, p.13-21 e MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Volume 2: necrose. Tradução Agenor Soares Santos. 2a ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões78 79 Portanto, ler o jornal de ontem com olhos de hoje é fazer a releitura do passado escrito pela casta local sobre ela mesma, sobre seus próprios sonhos e desejos coletivos, materializados ou não, anseios estes que, não raro, tornam-se comuns aos demais integrantes da comunidade. É preciso desencantar esta ordem e realizar a contraleitura, quebrar em pedaços o caleidoscópio que reflete de forma distorcida a imagem de “ordem” da elite.36 O Jornal do Povo de Cachoeira do Sul é exemplo do que falo. 1.3. Jornal do Povo, para a elite Peter Burke diz que vivemos numa sociedade do conhecimento, sob a égide da economia da informação, mas que a confiabilidade das comunicações tornadas públicas é questionada. Para ele, as notícias já eram vistas como mercadorias desde o século XVII.37 O jornalismo ocidental, como atualmente é reconhecido pela sociedade, tem sua gênese no mundo moderno europeu, especificamente na fase mercantilista do capitalismo. Jürgen Habermas situa o aparecimento da imprensa no século XVII, a partir da ampliação das correspondências privadas trocadas entre comerciantes, sistematizadas e divulgadas através de jornais manuscritos produzidos por escritórios locais que possibilitavam este intercâmbio de informação. Foram tais escritórios ou agências noticiosas que providenciaram maior tiragem de exemplares e que ampliaram a divulgação das informações, a contra-gosto dos próprios comerciantes. Habermas explica que os jornais, chamados de “jornais políticos” por noticiarem assuntos públicos de interesse dos comerciantes – tais como guerras, atos parlamentares, colheitas, impostos e comércio internacional – não existiam para os comerciantes, mas, ao contrário, os comerciantes é que existiam para os jornais. Os próprios comerciantes eram conhecidos como “guardiões das novidades” devido à dependência que tinham do noticiário público para seu intercâmbio privado de informações. “A troca de informações – escreve ele – desenvolve-se não só em relação às necessidades do intercâmbio de mercadorias: as próprias notícias se tornam mercadorias”.38 Nos séculos seguintes, a incipiente imprensa européia tornou-se sistematicamente útil aos governos, fazendo com que muitos jornais informativos noticiassem boletins oficiais. A par destas modificações, passou a ser interesse do público-leitor assuntos que davam o caráter da novidade ao jornal: vida social da corte, festas, solenidades, nomeações, ou cataclismos, ocorrências policiais, além de picuinhas e mexericos urbanos. Segundo Walter Benjamin, a introdução da informação curta e brusca, concorrendo diretamente com o relato comedido das notícias oficiais e dos editoriais políticos, proporcionavam ao jornal o aspecto do sempre-novo mas sempre-igual. Na paginação, inteligentemente variada, residia parte de seu encanto. Desta maneira, as fontes precisavam ser constantemente renovadas, caracterizando os jornais com “peculiar elegância barata”.39 No Brasil, o desenvolvimento econômico agrário permitiu a elite buscar certo “verniz civilizador”, através do refinamento de hábitos, usos e costumes importados da Europa. Eram corriqueiras as viagens ou mesmo o envio dos filhos para estudar no continente europeu, contribuindo para o aprimoramento do “arcabouço cultural” nas principais cidades brasileiras. Além do mais, quando Dom João VI chegou em terras brasileiras, revogou a proibição das atividades editoriais, criando a Imprensa Régia e mandando publicar a Gazeta do Rio de Janeiro, em 1808. Com a independência, em 1822, surgiram publicações ladeadas por forças políticas que empregaram a imprensa na formação de opinião. Por esta razão muitos políticos ligaram suas carreiras às atividades jornalísticas. Francisco Rüdiger situa o nascimento da imprensa gaúcha no contexto político que desembocaria na Revolução Farroupilha. O primeiro folhetim publicado na capital Porto Alegre em 1827, O Diário de Porto Alegre, foi uma tentativa do Imperador para conter o avanço das idéias de contestação da oligarquia pastoril sul-riograndense. Como resposta, surgiram muitos periódicos oposicionistas, verdadeiros pasquins, com textos de “linguagem extremamente virulenta, não poupando idéias, nem pessoas”.40 36 PESAVENTO, Sandra Jatahy. O desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o imaginário social. In: Revista Cultura Vozes, n.5, volume 89, set-out, 1995, p.37 37 BURKE, Peter. Uma história do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.152 38 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p.35 39 BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. A boêmia. In: ___. Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, op.cit., 1989, p.24 40 RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1993, p.11-30. Sobre a Gazeta do Rio de Janeiro. Ver ainda Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões80 81 No terceiro quartel do século XIX, após a Revolução Farroupilha, as facções políticas gaúchas assumiram progressivamente a responsabilidade nas redações, tornando os jornais legítimos porta-vozes dos partidos. Exemplos como A Reforma (1869), O Conservador (1879), Diário de Pelotas (1867), O Diário do Rio Grande (1848), O Echo do Sul (1856) e o ícone da imprensa republicana, A Federação (1884), dirigido por Júlio de Castilhos, líder do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). A mola propulsora para o desenvolvimento da imprensa foi justamente a “complexificação social”, dada através da educação pública desencadeada pelos castilhistas. Os textos jornalísticos da imprensa assumiram forte cunho doutrinário, com matérias opinativas sobre questões públicas, comentários ideológicos e polêmicas com adversários. O número de leitores, limitado pela baixa escolaridade e poder aquisitivo, faziam dos jornais veículos de “formação doutrinária da opinião pública”. As publicações acabavam dependendo de número mínimo de assinantes para manterem-se em circulação. Sua viabilidade era problema político, não financeiro. As tipografias, empresas que editavam os jornais, concorriam pelos favores oficiais. O Estado exercia o controle através de auxílios e subsídios.41 O golpe de Estado, desencadeado por Getúlio Vargas em 1930, modificou a estrutura de sustentação dos jornais brasileiros. A abolição dos partidos políticos obrigou-os à adaptação. Ou adotavam a linha “noticiosa” ou a postura “oficialista”. Por esta razão, passaram a ser freqüentes declarações de imparcialidade, seguidos do engajamento político, com textos baseados em comentários opinativos. Tais manifestações de neutralidade visavam demonstrar a subtração das conveniências partidárias em prol dos interesses gerais da sociedade.42 O aparecimento de jornais em Cachoeira do Sul nasceu no contexto da amálgama entre imprensa e política-partidária. Dos extintos que circularam na cidade: Independente (1864), Cachoeirense (1879), O Pharol (1883), Clarim (1886), A Idéia (1889), Liberdade (1890), XV de Novembro (1890), O Federalista (1891), O Governo (1898), O Commercio (1900), Rio Grande (1904), OKU (1905), O Cachoeirense (1915), Avenida (1914) A Palavra (1915), O Parlamentarista (1916), Cachoeira Jornal (1928), A notícia (1928), entre outros. FACHADA, Tereza Maria Rolo. A Gazeta do Rio de Janeiro: subsídios para a historia da cidade (1880-1821). Dissertação de Mestrado [orientadora Célia Freire D’Aquino Fonseca], Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG/História, 1989 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html? idtese=19891031001017023P8 – acessado em 25/3/2005], onde analisa como o primeiro jornal publicado no Brasil auxiliou na construção da imagem da capital federal. 41 ALVES, Francisco das Neves. O discurso político-partidário sul-rio-grandense sob o prisma da imprensa rio-grandina (1868-1895). Rio Grande/RS: Editora da FURG, 2002, p.126; PESAVENTO, Sandra Jatahy. O cotidiano da República. Elite e povo na virada do século. 3a ed. Porto Alegre/RS: Editora da Universidade/UFRGS, 1995; ISAIA, Artur Cesar. A imprensa liberal riograndense e o regime eleitoral do império. 1878-1889. Dissertação de Mestrado [orientador Earle Diniz Moreira], Porto Alegre/RS: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PPG/História, 1988 [disponível em http:/ /servicos.capes. gov.br/capesdw/resumo. html?idtese=1988542005019005P6 – acessado em 25/3/2005]; JARDIM, Jorge Luiz Pastoriza. Comunicação e militância a imprensa operaria no RS 1892-1923. Dissertação de Mestrado [orientador Sérgio Capareli], Porto Alegre/RS: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PPG/História, 1990 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo. html?idtese=19901420050 19005P6 – acessado em 25/3/2005] 42 RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. op.cit., 1993, p.11-51. Ver ainda: LOPES, Cleide. A Revolução de 30 e a imprensa paulista. Dissertação de Mestrado [orientadora Estefania Knotz C. Fraga], São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PPG/História, 1984 [disponível em http://servicos. capes.gov.br/cape sdw/resumo.html?idtese=19881330050 10010P8 acessado em 25/3/2005] Figuras 19, 20, 21 e 22 Frontispícios dos jornais A Idéia, O Commercio, Oku e Avenida, alguns dos que circularam em Cachoeira do Sul. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões82 83 todos os artigos opinativos fossem assinados e possibilitou a prisão dos diretores. O artigo 1.222 prescreveu a censura prévia e facultou às autoridades a proibição da circulação dos jornais que fizessem críticas ao regime. Maria Helena Capelato, analisando jornais alinhados ao getulismo, aponta o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) como peça fundamental para controle e repressão dos atos e idéias, com amplos poderes sobre os meios de comunicação e organização da propaganda oficial. Segundo ela, Vargas “lançou mão de todos os recursos das novas técnicas de persuasão que estavam sendo usadas em diversos países, especialmente na Alemanha de Goebbels”. Criado em 1934, o departamento respondia diretamente ao Ministério da Justiça, colocando assim os meios de comunicação de massa diretamente ligados ao Poder Executivo, modelo inspirado no Ministério de Propaganda da Alemanha nazista. Entretanto, diferente do modelo alemão onde o rádio foi prioritário, os esforços para calar vozes dissonantes no Brasil de Vargas foram realizados de forma semelhante à Itália fascista de Mussolini, através da imprensa periódica.49 Mesmo no contexto da “política do silêncio” do Estado Novo, as declarações parciais do Jornal do Povo estavam longe de ser impositivas. Tratava-se de apoio explícito ao regime que sutilmente simpatizava com o fascismo europeu. O próprio jornal elogiara o caráter fascista ainda no início dos anos 30. No artigo Legionários da revolução, os redatores valorizam o governo de Mussolini, afirmando que ele teria remodelado “gloriosamente” a Itália, levando a crer tratar-se de atuação esplêndida, deslumbrante ou mesmo magnífica. Além do mais, o apoio do JP ao governo revolucionário de Vargas era posto de forma generalizada, como se os ideais de 30 fossem compartilhados por toda população: Cachoeira, que foi a primeira a pular na estrada, abrindo caminho a arremetida fulminante contra o principal baluarte da devastação da República, sente-se no dever imprescindível de enfileirar-se entre as forças que montam guarda vigilante à consecução dos objetivos finais da jornada de 3 de outubro. É preciso portanto confessar, desde já, que Cachoeira é partidária ardorosa da constituição eficiente dessa milícia cívica.50 Assim, se o DIP projetava as estratégias de Getúlio Vargas e legitimava o Estado Novo via meios de comunicação, esses ideais getulistas apareciam em Cachoeira pela voz do Jornal do Povo, que os apresentava como algo que estava no sangue da maioria dos cachoeirenses. Esse tipo de linguagem adotada prestavam-se à eliminação das posições contrárias porque justamente apresentavam-se como a fala do todo, não admitindo contestações. Aquilo que Andréa Petry, analisando o papel desempenhado pelo Correio do Povo durante o Estado Novo, chamou de “efeito ideológico de uma unidade no discurso”.51 No JP, estes preceitos seriam mantidos décadas a fio, mesmo findo o primeiro período varguista em 45, embora com outras conotações. A contribuição política do jornal para o governo Vargas era de não direcionar ataques a partidos específicos, a essa ou aquela facção. Sob argumento de que visavam auxiliar na consolidação do prestígio do regime, sustentavam em Cachoeira a estratégia política de Vargas de aglutinar posições ambíguas para manter o poder. Para os editores do JP, a estabilidade não dependia propriamente da vitória deste ou daquele candidato, mas da maneira com que se conduzissem as forças democráticas.52 Em outras palavras, a construção do discurso único corroborando com o regime autoritário instalado em 1937. Por conta desse apoio explícito a Vargas, foi concedido ao JP o registro no DIP em 1941.53 Em termos de linguagem jornalística, foi marcante o abandono gradual do estilo liberal, caracterizado pela retórica pomposa, característica que perdurou no JP pelo menos até o falecimento do major Virgílio Carvalho de Abreu, em maio de 1937, visto sua ligação com o PRL local. Semelhante a imprensa européia fascista, o jornal aos poucos passou a adotar a escrita precisa, séria, direta e energética. 49 CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. Campinas/SP: Papirus, 1998, p.69-75. Segundo ela, o DIP tinha como função elucidar a opinião pública sobre as diretrizes doutrinárias do regime e estava estruturado da seguinte forma: Divisão de Divulgação, Divisão de Radiodifusão, Divisão de Cinema e Teatro, Divisão de Turismo, Divisão de Imprensa e Serviços Auxiliares. Tal organização funcional revelava um alto grau de centralização. Além disso, os cargos de confiança eram atribuídos diretamente por Getúlio Vargas. 50 JP, 5/3/1931 Legionários da revolução, p.1 51 PETRY, Andréa Helena. O papel desempenhado pelo Correio do Povo durante o Estado Novo In: DREHER, Martin; RAMBO, Arthur; TRAMONTINI, Marcos Justos (org.). Imigração & imprensa. Porto Alegre: EST, São Leopoldo: Instituto Histórico de São Leopoldo, 2004, p.427 52 JP, 30/6/1937 Mais um passo, p.1 53 JP, 9/2/1941 Noticiário. Concedido registro no D.I.P ao “Jornal do Povo”, p.3 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões88 89 Em outubro de 1944, o jornal foi adquirido por Manoel de Carvalho Portella e Liberato Salzano Vieira da Cunha, jovens intelectuais ligados ao catolicismo cooptados pelo regime varguista. Segundo Boris Fausto, os dirigentes do Estado Novo procuraram desde cedo atrair setores letrados a seu serviço. Como a Igreja Católica foi uma das bases de sustentação do governo, era natural o apoio ao regime por parte de jovens como Liberato Viera da Cunha, católico fervoroso, membro da União dos Moços Católicos de Cachoeira do Sul, fundador e presidente do Centros de Ação Católica, que fez carreira política no Partido Social Democrático (PSD).54 Embora se afirmasse que o JP não era um jornal religioso, sua orientação era verdadeiramente católica, imprimindo no feitio do jornal sua idéia e atitude firme em defesa dos princípios católicos e dos costumes cristãos. Freqüentemente, os editoriais evocavam a proteção divina: “O Jornal do Povo, considerado a importância da missão do jornalismo, ao iniciar mais um ano de trabalho, quer reafirmar à família cachoeirense que vai continuar informando, informando tudo e informando só a verdade, com a ajuda de Deus e a Virgem Medianeira”.55 O anúncio publicado no JP do porto-alegrense Jornal do Dia, que teve como redator-chefe, por determinado período, o próprio Liberato Vieira da Cunha, afirmava textualmente que ajudar um jornal católico significava defender a moralidade dos indivíduos e das famílias. Resgatando as palavras de Pio XII, a imprensa podia trazer paz ou guerra: “Sempre tem conseqüências o que diz o papel impresso. Pela imprensa se pode profetizar o futuro de um povo ou de uma civilização”. Por isso não podia faltar nos lares católicos um jornal católico: “Leia, assine e propague o Jornal do Dia”, dizia o anúncio.56 Como fundador e presidente do Centro de Ação Católica e como membro do PSD, ligado à Liga Eleitoral Católica, Liberato Vieira da Cunha trabalhava para que os postulados católicos fossem incorporados tanto nas leis estaduais quanto na própria comunidade cachoeirense.57 A mudança administrativa em 1944 não modificou o sentido político- partidário do jornal; ao contrário, solidificou. Como escreveu a leitora Carina Pessoa: “Nada sofreu o jornal com a mudança de redatores e proprietários. Continuou a sua rota, traçada pelos fundadores, de bem servir ao público cachoeirense, defendendo os interesses municipais, a boa orientação política e administrativa e política geral, dentro dos princípios de lealdade, justiça e tolerância”.58 Os novos editores seriam “dignos continuadores de Virgílio de Abreu”.59 Liberato Vieira da Cunha freqüentemente redigia artigos ardorosos pró-Vargas, preocupando-se em ressaltar a personalidade do presidente: E quando fizermos, em Cachoeira do Sul, um comício festejando a anistia ou festejando alguma vitória democrática, não cometamos a injustiça que muitos patrícios nossos estão cometendo: a de levarem, como líderes democráticos, as fotografias de Roosevelt e Stalin, deixando no olvido [esquecido] a de Getúlio Vargas.60 Mesmo com o armistício em 45 e a deposição de Vargas, Liberato Vieira da Cunha foi fiel, passando a defender o sucessor Eurico Gaspar Dutra, a quem chamou de “figura ímpar” que teria “larga folha de serviços prestados ao país”, alguém que teria a capacidade de ampliar e completar a “política de alta visão do grande Getúlio Vargas”, fazendo com que o Brasil consolidasse seu “prestígio entre as grandes potências do mundo”.61 Todos esses superlativos usados nos escritos denotam a vontade do diretor do JP em valorizar não a gestão, mas a figura do presidente, indício do paternalismo que caracterizou o período em questão. 54 FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.186-208. Liberato Salzano Viera da Cunha (20/12/1920-7/4/1957) nasceu em Cachoeira do Sul, filho de Antônio Peixoto Vieira da Cunha e Angelina Salzano Vieira da Cunha. Casou com Jenny Conceição Figueiredo Vieira da Cunha. Era advogado e professor. Prefeito de Cachoeira (1947-1950), deputado estadual (1950-1954) e Secretário de Educação e Cultura do Estado do Rio Grande do Sul (1955-1957). Diretor do Jornal do Povo (1944-1957) e redator-chefe do Jornal do Dia (católico). SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.62-64 55 JP, 2/7/1950 Editorial. Mais um aniversário, p.2 56 JP, 17/1/1954 Anúncio, p.1 57 JP, 30/6/1946 “Jornal do Povo”. Carina Pessoa, p.17 e 10/1/1947 Política local, p.1 58 JP, 30/6/1946 “Jornal do Povo”. Carina Pessoa, p.17 59 JP, 30/6/1948 Uma visão retrospectiva. Carina Pessoa, p.10 60 JP, 19/4/1945 Getúlio Vargas. Liberato S.V. da Cunha, p.2 61 JP, 22/4/1945 Incoerência. Liberato S.V. da Cunha, p.2 e 4/10/1945 Partido Social Democrático: força política em marcha para a vitória. Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2. Sobre a imprensa no período, ver, por exemplo: DUARTE, Celina Rabelo. Imprensa e redemocratização no Brasil: um estudo de duas conjunturas, 1945 e 1974- 1978. Dissertação de Mestrado [orientadora Maria Teresa S. R. de Souza] São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PPG/Ciências Sociais, 1987 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=1987123300501000P0 - acessado em 25/3/2005] Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões90 91 O uso político do jornal mostrava-se na forma como narrava acontecimentos político-partidários. A instalação do diretório do PSD, ao qual Liberato Vieira da Cunha pertencia, foi descrito em efusivas loas. A solenidade teria sido “magnífica”, revestida de “grande brilhantismo”, decorrido sob “intensa vibração cívica”. O número de pessoas demonstrariam que o partido contaria com “a maioria do eleitorado cachoeirense”.62 O sentido populista que caracterizou o governo federal neste período influenciou sobremaneira o Jornal do Povo. O editorial de 1º de julho de 1945 explicita essa conotação popular ao afirmar que viver o jornal era viver “para o povo, sofrer com o povo, desejar com o povo”; como o próprio nome dizia, o JP deveria ser “intérprete exato das aspirações e do pensamento da população”, num jornalismo que batalhava pela “verdade”, lutava pela “justiça”, defendia os “oprimidos”, engrandecendo o Brasil; que o jornal lutava pelos “superiores e impessoais interesses da coletividade cachoeirense”. O dever de informar tinha de ser feito com “isenção e coragem, divulgando todas as notícias de interesse geral”.63 A necessidade de afirmar e reafirmar sistematicamente essas questões escondia, em seu âmago, a verdadeira ideologia dos seus editores. Aos adversários políticos, o jornal reservava grandes espaços em suas páginas para denegri-los. Exemplo disso foram os escritos do católico Liberato Vieira da Cunha na tentativa de contribuir para soterrar a ameaça comunista. As páginas do JP foram inundadas com textos repudiando a propaganda pública de idéias que chamou de “russificadoras”. O comício público pró-constituinte, organizado na praça José Bonifácio por seguidores do comunista Luiz Carlos Prestes, foi dissolvido, naquilo que Liberato Vieira da Cunha intitulou “vibrante manifestação de brasilidade”, discurso que denotava a idéia de que a luta de Prestes era por tornar o Brasil apêndice dos comunistas russos. Na ocasião, populares contrários invadiram o local, pondo termo à reunião. Depois dirigiram-se ao largo da Igreja Matriz, onde Liberato Vieira da Cunha, após fazer oração em público, pronunciou “eloqüente discurso profligando a ação dos emissários de Moscou, que pretendiam implantar no Brasil o credo desagregador da Rússia Soviética”. O modo que o jornal descreve o momento revela a tendência política adotada. A reportagem ressalta que, após as manifestações, os populares visitaram a redação para darem “vivas ao jornal e aos seus diretores que energicamente vem combatendo aqueles que querem fazer da nossa terra um paraíso de adeptos do credo moscovita”. Para Liberato Vieira da Cunha, foi uma formidável manifestação de repúdio ao comunismo e aos que chamou de “lacaios de Stalin”, “exploradores do povo”. Para ele, foi acontecimento de “puro cristianismo, brasilidade e democracia”, que servia de exemplo ao Rio Grande do Sul, ao Brasil e à Rússia. A edição do JP contando os pormenores da manifestação comunista teria tido tamanha procura que ocasionara filas na redação.64 A visita do próprio Prestes a Cachoeira, em outubro de 1945, foi descrita como acontecimento memorável, célebre, notável, digno de permanecer na memória coletiva da cidade, não por seu enredo espetacular, mas pelo modo como foi dissolvido. Ao discursar da sacada do Partido Comunista (PC) local, teria sido “estrepitosamente acuado” por vaias e gritos de “Abaixo Prestes”, “Morra o Comunismo”, “Viva o Brasil”. Um momento, para o jornal, “de rara emoção que o repórter teve a felicidade de viver”. O título da matéria revela o embate ideológico presente no discurso do jornal: “Luiz Carlos Prestes e seus sequazes fugiram de Cachoeira do Sul como verdadeiros gangsteres, dando tiros para trás”.65 No ano seguinte, o outro editor, Manoel de Carvalho Portella, escreveu ser preferível entregar os elementos “sangue-sugas” – assim se estaria fazendo justiça – do que defenestrá-los publicamente através do jornal, com palavras de “mata, esfola, dependura, fuzila”.66 62 JP, 26/6/1945 Magníficas as solenidades da instalação do PSD, p.1, 63 JP, 1/7/1945 Jornal do Povo, p.1 e 29/6/1952 23º aniversário do Jornal do Povo, p.1 64 JP, 1/9/1945 Decisivo repúdio ao comunismo, p.1, 21/9/1945 Lição impressionante. Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2, 23/9/1945 Edição extraordinária do “Jornal do Povo”, p.1, 4/10/1945 Partido Social Democrático: força política em marcha para a vitória. Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2. Ver AZEVEDO, Luiz Vitor Tavares de. Carlos Lacerda e o discurso de oposição na tribuna da imprensa (1953-1955). Dissertação de Mestrado [orientador Francisco Falcon], Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, PPG/História, 1988 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/ capesdw/resumo.html?idtese= 1988331003010005P6 - acessado em 25/3/2005] 65 JP, 7/10/1945 Luiz Carlos Prestes e seus sequazes fugiram de Cachoeira do Sul como verdadeiros gangsteres, dando tiros para trás, p.1 66 JP, 5/8/1946 Um por dia. Manoel de Carvalho Portella, p.2. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões92 93 moradora do centro urbano. Nos próximos capítulos, pretendo mostrar como essa luta pôde ser vista nos mais diferentes aspectos: instalação dos telefones automáticos, necessidade de maior força motriz, melhoria da infra-estrutura rodoviária, ferroviária e fluvial, como a plena navegação do rio Jacuí e o porto para escoar a produção dos rizicultores, exigência da intervenção estatal para financiamento da produção de arroz, promoção da Festa do Arroz, cujos festejos tiveram caráter eminentemente elitista, como o concurso da escolha da rainha. Em críticas como a falta de espaço na zona central que, devido ao crescimento populacional, resultou na expansão dos subúrbios, exigindo terraplanagem e encascalhamento das ruas, construção de pontilhões para o acesso e infra-estrutura como água, esgoto e luz elétrica. Algo que, na visão do JP, tornaria “muito feio” o município, além de acarretar aumento de impostos. Por isso comumente denunciar a higiene das vilas, assunto tratado como caso de polícia por conta da desordens e conflitos, exigir a remoção de animais que estivessem sendo criados para consumo nos domicílios, imputar aos moradores dos subúrbios a responsabilidade na utilização de terrenos baldios e sangas para depósito de lixo, mesmo que inexistisse a coleta nos subúrbios. Mesmo quando defendia melhorias para os pobres, o jornal o fazia com um fundo elitista. Exemplo foi o aspecto da saúde curativa, com a construção do novo hospital. Essa interposição aparecia fortemente nas questões urbanas, manutenção do espaço citadino frente ao êxodo dos subalternos, algo que desencadeou reclames sobre os aspectos fisionômicos, como praças e construções, a beleza arquitetônica da zona central. O JP defendeu ardorosamente, nesses quinze anos analisados, a manutenção de serviços como varrição das ruas, iluminação pública e ordenação do espaço. Fez distinção social através da religião, tratando de forma diferente outras congregações, preocupou-se com a estética das duas praças centrais, com as regras de convívio e etiqueta, exigindo elegância dos freqüentadores, valorizou as recepções oferecidas em ambientes privados, o empolamento aristocrático dos eventos sociais, deu sobrevida e perpetuou a diferenciação social através dos relacionamentos afetivos, condenou as desonradas ao fazer campanha em nome da moralidade da sociedade cachoeirense para combater a prática do aborto, exigiu reverência aos mortos, mesmo noticiando os falecimentos de formas distintas, incentivou o banho ao ar livre e os esportes praticados em público, como tênis, vôlei, basquete, o jóquei e a patinação, o lazer em público nos cafés e confeitarias, nos cinemas, teatros e recitais, nos clubes e sociedades, distinguiu claramente os bailes e carnavais, criticou o entretenimento dos subalternos, como os circos e parques de diversões, culpou os outsiders pela desordem e turbulência, imputou aos moradores suburbanos pechas de toda ordem. Antes de empreender essa análise, porém, procuro entender os avanços e recuos na ocupação e demarcação do território gaúcho. Campo onde multiplicaram-se rebanhos bovinos em tal abundância que serviu de alavanca no processo de ocupação luso-brasileira da futura Província Cisplatina e da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em especial de São João da Cachoeira. Ocupação essa feita através da distribuição de grandes áreas cedidas aos que defendiam a faixa litorânea ou mesmo de pequenos lotes a famílias açorianas para alimentar as tropas. Contexto onde forjou-se o desenvolvimento do charque, produto que colocaria em lados opostos estancieiros e charqueadores, e desencadearia o confronto farroupilha. Ocupação também feita por imigrantes alemães e italianos, que exploraram gêneros alimentícios destinados ao mercado interno, algo que desencadeou profundas mudanças no desenvolvimento econômico do sul do país, em especial para Cachoeira, com a introdução da cultura rizícola, que serviu de base para a emergência da ordem urbano- industrial no município, concentrado na sede, através de investimentos privados e públicos. O marco das transformações urbanas seria alcançado em fins dos anos 20, numa verdadeira revolução que fez da zona central palco do confronto simbólico entre a elite, que buscava diferenciação social através do refinamento dos hábitos praticados no dia-a-dia, e os subalternos, que passaram a ocupar o espaço de forma fremente nos anos 30 em diante. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach Reflexões e inflexões98 99 2. O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado 2.1. Das disputas fronteiriças à formação da vila A ocupação do Rio Grande do Sul – em especial o centro do Estado onde se localiza Cachoeira do Sul – é fruto do desenrolar histórico iniciado a partir do desejo de conquistar um quinhão das riquezas geradas pelas minas andinas de Potosí, através do Rio da Prata, no início da presença espanhola e portuguesa no sul das Américas, no século XVI e seguintes. Os avanços e recuos na ocupação e demarcação territorial fizeram da região austral verdadeira zona de litígio. O caráter fronteiriço que a caracterizaria, de certa forma aberto e extremamente volátil e flexível, resultaria num campo de enfrentamento de forças. Daí as inúmeras batalhas, vorazes pelejas, atrozes combates e sanguinolentas lutas que tiveram como palco as terras ao sul da Serra Geral, o que levou Aurélio Porto a afirmar que Cachoeira nasceu da caserna, sentido adequado ao enfatizar as disputas fronteiriças, mas errôneo ao dar a entender que tratava-se de “terra de ninguém” antes da conquista portuguesa.1 1 Afonso Aurélio Porto nasceu em Cachoeira do Sul, em 25/01/1879. Era funcionário público e escrevia romances, poemas, peças teatrais, ensaios e estudos sobre a história gaúcha e cachoeirense (por ex.: Município de Cachoeira – Histórico, 1910; Cachoeira, o território, 1926; O trabalho alemão no Rio Grande do Sul, 1934; O colono alemão: notas sobre a imprensa no Rio Grande do Sul, 1934; Primitivos habitantes do Rio Grande do Sul, 1936; Antecedentes históricos do Rio Grande do Sul, 1937; História das missões orientais do Uruguai, 1943). Foi redator do jornal O Rio Grande, órgão do Partido Republicano, diretor do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e membro fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, entre outras funções. Por esta aproximação com a política, recebeu o título de Coronel. Faleceu no Rio de Janeiro, em 11/09/1945. Fabrício Prado ressalta a característica de fronteira múltipla do território meridional, ao mesmo tempo limite e ponto de contato, interação e trocas recíprocas entre luso-brasileiros, castelhanos, índios e jesuítas, onde autoridades, homens de negócio e contrabandistas confundiam-se nos papéis sociais.2 A ocupação do território austral foi feita através da distribuição de sesmarias. O conseqüente desenvolvimento de praças de negócio interessava sobremaneira aos negociantes do Rio de Janeiro, que viam a região como possibilidade de abertura de novas oportunidades de lucro.3 Com a assinatura do Tratado de Madrid (1750), acordando que Sacramento pertenceria doravante à Espanha e os territórios ocupados pelas missões jesuíticas, até então sob domínio espanhol, passariam à Portugal, Gomes Freire de Andrade foi destacado, em 1752, para pôr marcos que estabelecessem os limites do domínio português, mas foi barrado em Santa Tecla (Bagé/RS). Por esta razão, recuou até as margens do rio Pardo, construindo o forte Jesus Maria José, que entraria para a história oficial como domínio mais ocidental da Coroa Portuguesa na época. A fortificação serviu para derrotar índios missioneiros revoltos, que negavam-se a entregar as terras ocupadas nas missões jesuíticas, período que ficou conhecido como Guerra Guaranítica (1754-1756). Nesta ocasião, foram distribuídas sesmarias aos oficiais nas imediações da bacia do Jacuí. Em 1759, guarda avançada do forte, composta por 110 soldados, foi destacada para o Passo do Fandango (Cachoeira), estabelecendo depósito de armas e munições.4 Duas décadas depois, em 1778, o capitão de infantaria do regimento de Estremos, Domingos Alves Branco Muniz Barreto, passou pela região e ressaltou a quantidade de gados, bestas e cavalos da povoação de São João da Cachoeira. Nas campinas da região, o gado era tanto que não podia-se ferrar nem saber quem era o dono.5 Foi neste contexto que o povoado subiria na hierarquia administrativa. A gênese e a evolução usual das cidades luso-brasileiras neste período seguiam determinada graduação urbana: de povoado ascendiam à freguesia e posteriormente alcançavam status municipal de Vila.6 Dez anos antes, em 1769, o governador e comandante militar, José Marcelino de Figueiredo, mandara aldear índios aculturados que haviam sido instalados nas proximidades do Botucaraí ao final da Guerra Guaranítica, nas proximidades do Passo do Fandango, onde ergueram pequena capela no local chamado Aldeia, sob a invocação de São Nicolau. Em 10 de julho de 1779, o povoado de São João da Cachoeira foi elevado à categoria de freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira, e o orago da capela foi mudado para Nossa Senhora da Conceição.7 Neste período, foi realizada a Relação de moradores que tem campos e animais nesse Continente, a pedido do Vice-rei do Brasil. Helen Osório, analisando os dados dessa fonte, mostra o perfil da freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira em 1784. Dos 239 registros encontrados, 60 (25,10%) eram da região cachoeirense. Destes, 52 (86,7%) eram considerados somente criadores, proprietários de terras que exclusivamente criavam animais, sem conjugar pecuária e agricultura, 2 PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: a situação na fronteira platina no século XVIII. In: Revista Horizontes Antropológicos. v.9 n.19 Porto Alegre, julho, 2003 [disponível em http://www.scielo.br/scielo .php?script=sci_arttext&pid=S0104- 71832003000100004&lng=pt&nrm=isso&tlng=pt#volta9 – acessado em 20/4/2006] 3 OSÓRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um grupo mercantil da América Portuguesa. In: Revista Brasileira de História. v.20 n.39 São Paulo, 2000 [http://www.scielo.br/scielo.php?script =sci_arttext&pid=S0102-1882000000100005&lng=pt&nrm=iso.htm& tlng=pt – acessado em 19/4/2006] 4 JACQUES, João Cesimbra. Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul (1883), Porto Alegre: Erus, s/d, p.40-41, PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.5-16; SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.19-20; PORTO, Aurélio. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. op.cit., 1996, p.9 e MÜLLER, Alba Letícia et al. Aspectos da constituição sócio-cultural do Rio Grande do Sul – Brasil [disponível em http:// grupomontivideo. Edu.uy/mesa4/Muller%20et% 20al.pdf – acessado em 30/3/2006] 5 BARRETO, Domingos Alves Branco Muniz. Observações relativas à agricultura, comércio e navegação do continente do Rio Grande de São Pedro no Brasil - 1778. In: SANTOS, Corcino M. O Rio Grande do Sul no século XVIII. São Paulo: Nacional; Brasília/DF: UNB, 1984, p.181-182 6 MARX, Murillo. Cidade no Brasil, Terra de quem?, São Paulo: Nobel/ EdUsp, 1991, p.141 7 AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. Cachoeira do Sul, comarca: 150 anos de História. op.cit., 1985, p.9. A campanha para a construção da nova igreja seria lançada somente em 1792, pelo padre Matheus da Silveira e Souza. A pedra fundamental do novo templo foi lançada em 6 de outubro de 1793. A construção levou mais duas décadas para ser terminada e ficou a cargo das irmandades de Nossa Senhora da Conceição, a Padroeira, e do Santíssimo Sacramento, em estilo colonial, com duas aprumadas torres, espaçosos consistórios e sacristias, ampla capela-mór e altar de estilo renascentista. Desde essa época, os mortos eram enterrados ao redor da igreja e mesmo dentro do templo, de acordo com suas posses. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado102 103 comunidade era uma necessidade devido aos contágios, principalmente de cólera e tifo, nos idos do século XIX. Na época, oficiou-se a Irmandade do Sacramento Nossa Senhora Rosário e Almas, para murar o cemitério existente na Praça da Aldeia. Da escolha à construção do novo cemitério da Irmandade do Rosário, levou-se alguns anos (1856-1863). Por esta razão, os sepultamentos no local perduraram por mais duas décadas.21 As chamadas “posturas municipais” também marcaram a organização da vida urbana cachoeirense – tamanho dos lotes, alinhamento das construções, traçado e abertura das vias públicas, regras de edificações, normas de higiene, comportamento dos indivíduos e ordem pública. Nesta época, a Assembléia Provincial da Vila de São João da Cachoeira regulava o desenrolar da vida urbana local. As leis especificavam limites urbanos, licença para edificações, largura e nivelamento das ruas, altura do pé- direito das construções, calçamento dos passeios, acúmulo de materiais nas ruas, concessão e alinhamento dos terrenos, planta da cidade e registro dos lotes, denominação das ruas, locais para construção de edifícios públicos e praças. 22 Nesta estruturação urbana, entre 1828-35, foram construídos o prédio da Câmara, Júri e Cadeia23 e o Teatro com salão e camarotes para 500 pessoas. O prédio do teatro era refinado, com pinturas no teto e cenário requintado. A obra, iniciativa de Joaquim Corrêa de Oliveira e Jozé Joaquim da Graça, contou com apoio pecuniário dos moradores mais abastados.24 Pelas imagens depreende-se a pujança dos dois prédios. O teatro tinha fachada ornamentada, inclusive com estátua na parte frontal. O prédio da Câmara, Júri e Cadeia era mais simples, mas nem por isso deixava de se destacar no cenário. 21 Fonte: IM/EH/AS/RL, 001, 2r.; CM/OF/H, 002, 141r.; CM/OF/A, 002, 143r.; CM/OF/A, 002, 168r e v.; CM/OF, A, 002, 169v.; CM/S/RPL, 002, 11v e 15v. 30/1/1832; CM/S/ SE/RE, 002, 73v 12/8/1852; CM/S/SE/RE, 002 107 v e 108r, 13/8/1853; CM/S/RPL, 002, 21r 22/8/1853; CM/OF/TA, 002, 96r e v. 97r.; CM/S/SE/RE, 002 180v, 19/6/ 1856; CM/OF/TA, 002, 121v, 122r e v.; CM/S/SE/RE, 002, 201v , 11/6/1857; CM/S/ SE, RE, 002 279 r e v., 17/01/1863. Em 17/1/1863, já se observava ser de grande conveniência a mudança do cemitério para local mais distante e elevado para evitar o desenvolvimento de certas enfermidades nos habitantes. Fonte: CM/S/SE-RE, 002, 279 r e v. , 17/01/1863. 22 SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.138-142 23 Prédio da Câmara, Júri e Cadeia. Fonte: IM/EA/AS/RL, 001, 2r., 1831. Cadeia. Sessão extraordinária de 20 de maio de 1831. CM/OF/A, 002, 144r., 20/5/1831. Sessão do dia 7 de outubro de 1831. CM/OF/A, 002, 160v, 07/10/1831. Sessão do dia 12 de outubro de 1831. CM/OF/A, 002, 163 r., 12/10/1831. Sessão Extraordinária de 5 de junho de 1832. CM/OF/A, 002, 195 r. Cadeia. Manoel Antonio Galvão. Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 14/5/1833. Câmara e Cadeia. Edital. Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 1834. Cadeia. José Mariani. Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 15/01/1834. Cadeia. Edital. Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 14/5/1835. 24 GUIDUGLIO, Humberto Atílio. Teatro. Revista Aquarela, 1957 Figura 25 – Prédios do teatro e da Câmara, Júri e Cadeia, construídos entre 1831-33. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Apesar da expectativa da inauguração, a primeira sessão teatral foi malograda, pois um dos atores adoeceu gravemente e somente foi encenada um entremez, pequena cena jocosa em ato único. Na sessão seguinte, foi representada a tragédia romana Virgínia, seguido de A Filha teimosa com os livros. A narrativa documental da época descreve o aristocrático ambiente: os camarotes ornados só de senhoras, ornadas de grande riqueza, a platéia ocupada pelas autoridades e pelo povo nobre, subiu o pano, deixando ver uma Sala Imperial entapetada, no fundo da qual estava o retrato de Sua Majestade Imperial, debaixo do Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado108 109 precioso Dossel, e sobre um iluminado e rico trono, fazendo a guarda do retrato, os tenentes José Gomes Porto, e Tristão da Cunha e Souza: a um lado estava o alferes Antonio Xavier da Silva com o estandarte rico da Câmara abatido, e os flancos da sala eram ornados pelos atores; apenas se viu esta cena, eis que da platéia o Juiz de paz João Nunes da Silva, rompeu os Vivas à sua Majestade A Imperatriz, à constituição, à Assembléia, aos Brasileiros. Logo depois os atores, acompanhados da orquestra entoaram um hino dedicado ao consórcio da nossa Majestade Imperial, findo o qual um dos atores recitou um elogio assaz elegante à Vossa majestade Imperial, à sua Majestade, a Imperatriz, e à sua digna prole; e depois uma atriz recitou ao mesmo assunto um canto e terminou com os vivas.25 Em 1834, Arsène Isabele enxergou crescimento urbano em Cachoeira. Chamou de “linda cidadezinha, recentemente construída, situada sobre uma colina, à margem esquerda do Jacuí”. As casas eram brancas por fora, feitas de tijolos e pedras “grés quartzoso argentífero, de grandes grãos, contendo fragmentos volumosos de argila bolar avermelhada”. A cobertura era de telhas vermelhas.26 A prosperidade urbana cachoeirense, assim como nas demais comunidades sul-brasileiras, foi interrompida durante a década do conflito Farroupilha, que colocou estancieiros e charqueadores em lados opostos. Por um lado, criadores de gado das estâncias dispostas na região fronteiriça tinham fortes ligações com os castelhanos, levando e trazendo suas manadas conforme oscilava o preço nos mercados da carne salgada. Os estancieiros queixavam-se dos pesados impostos cobrados e pretendiam acabar ou reduzir a taxação de gado na fronteira com o mundo platino, estabelecendo livre circulação do rebanho que possuíam em ambos os lados. Por outro lado, produtores do charque, localizados na área lacustre da Província sul-rio-grandense, em cidades como Pelotas e Rio Grande, alimentavam a população pobre e os escravos do Centro-Sul brasileiro, tendo, por esta razão, grandes interesses com a capital imperial, Rio de Janeiro. A livre circulação dos rebanhos nas fronteiras não interessava aos charqueadores, pois diminuía seu poder de ditar preços e condições. Além disso, para ambos os lados, a política do governo federal de cobrir despesas das províncias deficitárias com fundos das superavitárias, como a sul-riograndense, desagradava tanto estancieiros quanto charqueadores. Neste contexto, os estancieiros, no comando de milícias armadas particulares, deflagraram o conflito que duraria de 1835 a 1845.27 A região de Cachoeira foi palco importante do conflito farrapo, dado sua localização intermediária entre a planície pampeira, onde se localizavam as estâncias e a criação do gado, a oeste, e a zona lacustre, onde eram feitas as charqueadas, a leste. Com ocupação territorial feita eminentemente através de grandes áreas destinadas a pecuária, a região naturalmente tendeu para o apoio aos estancieiros rebelados. Três dias após eclodir o conflito na capital Porto Alegre, em 20 de setembro de 1835, a Guarda Nacional aquartelada em Cachoeira rumou para Rio Pardo, a fim de auxiliar forças revolucionárias contra legalistas que negavam-se a reconhecer o novo governo republicano farrapo. Ao retornarem, foram recebidos festivamente, incluindo a celebração do Te Deum na Igreja Matriz. Entretanto, Cachoeira foi assolada por incursões armadas nos anos seguintes, ora por forças legalistas, ora por revolucionários, alternando-se entre governos leais ao Imperador (1836-37, 1840-45) e sob regime republicano farroupilha (1835, 1838-39).28 O fim do conflito possibilitou a viagem do Imperador Dom Pedro II ao sul. Em 1846, ele passou por Cachoeira. Dois anos após sua visita, foi dado início à construção da ponte de pedra no Passo Real do rio Botucaraí, a primeira da província de São Pedro do Rio Grande do Sul construída neste estilo, atestando o grau de desenvolvimento da economia local. Na época, era o único acesso entre a fronteira oeste-sudoeste da Província e a região de Porto Alegre, melhorando o trânsito por Cachoeira, de tropas militares, tropeiros e comerciantes. A obra fora cogitada desde 1832, mas ficou somente no projeto por causa do conflito farrapo. O engenheiro responsável pela elaboração da planta foi João Martinho Buff. O custo da 25 Fonte: CM/OF/A, 002, 75v 76 r., 1830 26 ISABELLE, Arsène. Viagens ao Rio Grande do Sul (1833-1834). Porto Alegre: Museu Julio de Castilhos, 1946, p.44-45 27 Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. A revolução farroupilha. São Paulo: Brasiliense, 1985 [coleção Tudo é História] e FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. op.cit., 2002, p.92-94 28 Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.26-27, PORTELA, Vitorino. PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1940, p.18-21 e Álbum Comemorativo a passagem do primeiro centenário de Cachoeira do Sul. op.cit., 1959. Ver também Atas de Sessões da Câmara da Vila Nova de São João da Cachoeira. Sessão extraordinária de 24 de setembro de 1835. Fonte: CM/OF/A, 003, 149v. Sessão extraordinária de 30 de setembro de 1835. CM/OF/A, 003, 150r. Sessão Extraordinária de 1º de outubro de 1835. CM/OF/A, 003, 150v. Sessão Extraordinária de 3 de outubro de 1835. CM/OF/A, 003, 150v. Sessão de 19 de outubro de 1835. CM/OF/A, 003, 157r Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado110 111 obra atingiu 46:800$000 réis e foi construída pelo empreiteiro Manoel Fialho de Vargas Filho. Já em 1849, a Câmara registrava denúncia de abusos na cobrança da taxa de passagem (pedágio).29 da Aldeia e rua dos Cachorros) e do Vigário (rua Santa Helena, rua 1o de Março, rua Liberato Salzano Vieira da Cunha). No sentido sudoeste- nordeste eram doze travessas paralelas: São João (rua Félix da Cunha), Corpo da Guarda (rua São José, atual Conde de Porto Alegre), do Amorim (rua Ferminiano, rua Gabriel Leon), Matriz (rua Mons. Armando Teixeira), Tapera (rua Gal. Câmara), dos Soeiros (rua Catalan, rua Gal. Osório), dos Pecados (rua Carombé, rua Ramiro Barcelos), da Lagoa (rua Inhanduy, rua Gal. Portinho), do Ourives (rua Andrade Neves), do Ilha (rua Cantagalo, rua 24 de Maio, rua Sílvio Scopel), Lava-pés (rua 7 de Abril, rua Milan Krás) e do Matadouro (rua Major Ouriques). Pelo levantamento da época, existiam em torno de 500 prédios construídos em aproximadamente 42 quadras.30 29 Ver SCHUH, Ângela. RITZEL, Mirian. Princesa do Jacuí. Cachoeira do Sul: Museu Municipal, s/d, e Livro de Atas das Sessões da Câmara Municipal e JP, 25/12/1983 Figuras 26 e 27 Ponte de pedra, construída em 1848. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Apesar do conflito farrapo ter atingindo as rendas do município, fazendo decrescer a arrecadação do erário, a sede municipal começou a receber melhorias na segunda metade do século XIX. Em 1850, o mesmo engenheiro da ponte de pedra, João Martinho Buff, elaborou o mapa da zona urbana central. No sentido sudeste-noroeste, eram três ruas principais: Ladeira, Igreja e Passo do Jacuí (ambas atual rua Moron), do Loreto (rua 7 de Setembro, antes rua Direita) e dos Paulistas (rua 15 de Novembro); e duas ruas secundárias: Santo Antônio (rua Saldanha Marinho, outrora rua 30 Fonte: Mapa de 1850 [original] e GUIDUGLI, Humberto Attilio, Acontecimentos em Cachoeira do Sul, Revista Aquarela, 1957 Figura 28 – Planta da cidade da Cachoeira, em 1850, do engenheiro João Martinho Buff. Na parte esquerda superior, a leste, em destaque o Pelourinho, atual praça José Bonifácio. Na parte direita inferior, a oeste, o paço municipal e o rio Jacuí. Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado112 113 Instaladas nas picadas e linhas, esses estabelecimentos compravam toda a produção e a trocavam por produtos manufaturados, como tecidos, louças, ferragens, sal, chapéus, e outros, para serem revendidos aos colonos. Os “bodegueiros” regulavam o transporte, determinavam o preço de compra e venda, adiantavam produtos manufaturados aos colonos para posterior ressarcimento com produtos agrícolas. Aos poucos, os próprios colonos passaram a instalar vendas nas cidades, muitas vezes em sociedade com outros comerciantes, eliminando assim os intermediários, razão pela qual as principais firmas comerciais em Cachoeira do Sul, já no início do século XX, tinham sobrenome de origem alemã e italiana.45 A importância da região colonial para o comércio de gêneros alimentícios pode ser medido pela construção do ramal ferroviário, ligando o rio Taquari ao rio Pardo e ao município de Cachoeira, em 1883, e Santa Maria, em 1885. Nesta época, outras ferrovias foram construídas, ligando a capital a Rio Grande, Bagé, Uruguaiana e Itaqui.46 Em termos econômicos, o arroz despontaria como base de sustentação do crescimento da região somente com a introdução das primeiras lavouras irrigadas por gravidade, em fins do século XIX e, principalmente no início do XX, com a utilização de irrigação mecanizada. O aumento da produtividade, e conseqüentemente dos lucros, fez com que muitos estancieiros luso-brasileiros diminuíssem seu preconceito com a lavoura rizícola. Segundo Orlando Valverde, exploraram através de parcerias, arrendamentos aos agricultores das colônias de imigração circunvizinhas, que tinham seu sustento na pequena propriedade, ou ainda através de colonos que aceitavam o trabalho temporário assalariado nas incipientes lavouras de arroz.47 As primeiras experiências com arroz irrigado por gravidade datam de 1892, quando Gaspar Barreto plantou pequena área na região cachoeirense, auxiliado por Lotário de Vasconcelos, que fazia os serviços de irrigação. Em 1894, Marcelino Gonçalves da Fonseca represou água do arroio Capanezinho, local onde plantava cerca de dez quadras de arroz. Em 1899, foi a vez de João Jorge Krieger plantar na margem direita do arroio. Em 1887, João Frederico Pohlman instalou o primeiro engenho na sede do município, à rua Sete de Setembro. Tratava-se de uma “engenhoca, uma máquina a vapor para descascar arroz por meio de monjolos”. No ano seguinte, Guilherme Franke instalou um engenho hidráulico na rua Ramiro Barcelos. Mais tarde, Eurípides Mostardeiro, Isidoro Neves da Fontoura, Frederico Dexheimer e a firma porto-alegrense João Aydos & Cia ltda., instalaram o Engenho Central no Passo da Praia, fim da atual rua Moron.48 A técnica de irrigar lavouras de arroz não foi privilégio de Cachoeira do Sul. Em Taquara e Pelotas, vários agricultores plantaram o arroz irrigado nos anos 1903-05. Estas regiões dispunham de infra-estrutura propícia ao progresso do cultivo do arroz, como as várzeas nas bacias fluviais do Sinos e do Guaíba, que possibilitaram a irrigação, eliminando a ação negativa do clima e garantindo rentabilidade e maiores lucros.49 Todavia, o maior incremento ocorreu por conta da irrigação mecanizada por meio de locomóveis, motores a vapor montados sobre rodas, e bombas centrífugas. Os pioneiros da tecnologia de irrigação mecanizada em Cachoeira do Sul foram Jorge Frank e João Jorge Krieger, da firma Frank, Krieger & Cia. Eles utilizaram a técnica pela primeira vez em 1906, plantando nas terras de Fidélis Prates e colhendo 10 mil sacos de arroz, cerca de 500 toneladas.50 Assim, numa região cuja economia baseava-se na agricultura, o arroz seria o grande produto cachoeirense. Diferente de outras commodities tradicionais, a orizicultura irrigada foi a primeira a surgir em bases capitalistas, usando maior mão-de-obra assalariada, arrendamento de terras, tecnologia e, principalmente, produzindo para o mercado ao invés de limitar-se a exportar o excedente.51 45 WERLANG, William. História da Colônia Santo Ângelo. op.cit., 1995 46 LOVE, Joseph. O Rio Grande do Sul como fator de instabilidade na República Velha. In: FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III. O Brasil Republicano. 4o vol. Economia e Cultura (1930-1964). São Paulo: Difel, 1984, p.102 47 VALVERDE, Orlando. Estudos de geografia agrária brasileira. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985, p.210 48 Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941 49 BALDUÍNO RAMBO, S. J. A imigração alemã. op.cit., 1956, p.99 50 Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.27-28 e Levantamento Histórico da industrialização de Cachoeira do Sul. op.cit., 1983 51 MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS: Banrisul/Gazeta Mercantil RGS, 1998, p.57-62 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado118 119 As imagens registradas por Achylles Figueiredo, em meados dos anos 20, revelam essa diferença da produção rizícola, principalmente no quesito tecnologia. Destacam-se o uso de trilhadeiras, locomóvel, secadores de arroz e o uso da calha de água: O desenvolvimento e a própria modernização da lavoura rizícola somente foi possível graças a forte influência da política protecionista do Governo Federal, elevando substancialmente as tarifas sobre o arroz importado na virada do século XIX e primeiras décadas do século XX. O produto fazia parte dos hábitos alimentares brasileiros e seu consumo fora intensificado pelo processo de urbanização incipiente. Buscava-se a auto- suficiência alimentar do arroz devido ao peso que ele passava a representar na balança comercial de pagamentos. Argemiro Brum enumerou fatores de desenvolvimento da cultura do arroz, entre os quais destacou a alta rentabilidade dada pelo mercado consumidor urbano ascendente e protegido pelas barreiras alfandegárias, a existência de capital e trabalho e as condições naturais favoráveis.52 Além desses elementos, a região cachoeirense contava com transporte ferroviário desde 1883, o que possibilitava escoar parte da produção quando a via fluvial não permitia.53 Neste contexto, o município de Cachoeira pôde despontar como um dos principais a investir na cultura rizícola. Alguns fatores sustentaram a expansão da lavoura orizícola em grande escala: consumo intensificado pelo processo de urbanização em curso no país inteiro; forte política protecionista do Governo Federal; existência de capital disponível entre comerciantes e profissionais liberais, principalmente os provenientes das áreas coloniais; mão-de-obra colonial através de trabalho temporário assalariado; condições geográficas favoráveis; ineditismo em plantar arroz irrigado, de 1892 em diante; e introdução do levante mecânico, por meio de locomóveis, em 1906. Pouco mais de dez anos depois das primeiras experiências com irrigação através de locomóveis, o número de lavouras de arroz com levante mecânico aumentou sobremaneira, ultrapassando mais de uma centena. Em 1908, eram onze. Em 1911, o Esboço de Geographia Agrícola e Industrial do Município de Cachoeira enumerou 67 lavouras de arroz irrigado.54 Em 1916, já eram 129. Em 1920, o arroz constituía a principal 52 BRUM, Argemiro Jacob. Modernização da agricultura (trigo e soja). Petrópolis/RJ: Vozes, 1988, p.64-65 53 Em 7/3/1883 começou a funcionar a linha de trem Porto Alegre-Uruguaiana, passando por Cachoeira. Fonte: GUIDUGLI, Humberto Attilio. Revista Aquarela, abril de 1957. 54 Esboço de Geographia Agrícola e Industrial do Município de Cachoeira, Organizado pela Seção de Estatística, 1911. No Anexo III, relação das lavouras de arroz irrigado em 1911 Figuras 29, 30, 31 e 32 Trilhadeira acionada pelo motor Lanz, trilhando arroz na lavoura Santa Maria, de Neves & Cia. Locomóvel na colheita do arroz na lavoura de Jorge Franke, 1916. Secadores de arroz. Calha de água em lavoura de arroz. Acervo Achylles Figueiredo, anos 20-30. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado120 121 cultura do município, representando metade do valor da produção geral de todos os cereais. As variedades que predominavam nas plantações eram Carolina, Agulha e Japonês (introduzida em 1918).55 O gráfico a seguir mostra a evolução da produção de arroz cachoeirense com irrigação mecanizada, desde sua introdução em 1906 até 1940, em mil toneladas: Zilbermann, com tinturaria, construção de edifícios e fábrica de móveis; Natan Breitmann e Ida Breitmann, no Stúdio Aurora; Jorge Kutz, com tinturaria, livraria, agência de loteria estadual e lancheria; Samuel Behar, na loja Primavera; David e Hertes Sklar, na fábrica de móveis A Novidade; Clara Weisfeldt, a primeira médica na cidade; Isaac Saffer, com fabricação de móveis; David Jalfino, com comércio de tecidos; Maurício Krimberg, com comércio de gêneros diversos; além de outros sobrenomes como Maltz, Faermann e Axelrud.56 Dessa forma, num processo semelhante ao que ocorria na capital do Estado, o dinamismo da acumulação de capital que serviu de base para a emergência da ordem urbano-industrial em Cachoeira do Sul proveio de setores coloniais e não do complexo da pecuária tradicional.57 O acúmulo da riqueza na região cachoeirense se daria por conta muito mais dos alemães e italianos e demais migrantes do que propriamente pelos estancieiros de origem luso-brasileira. A força da economia teria por base a cadeia produção-comercialização-industrialização dos gêneros alimentícios das pequenas e médias propriedades familiares: criação de aves, porcos e gado confinado; plantio de vários produtos; casas comerciais de propriedade dos colonos e seus descendentes; pequenas indústrias artesanais. Os luso-brasileiros aceitavam a presença dos imigrantes provenientes da zona colonial na medida em que esses proporcionavam lucros, não só através da arrecadação de impostos mas também pelas sociedades agrícolas contratadas, comerciais ou mesmo industriais. O pioneirismo da Charqueada do Paredão em Cachoeira é prova disso. Fundada em 1878 por Jorge Claussen, ocupava-se na elaboração de carnes, preparação de línguas em conserva, charque, extrato de carne e graxa refinada. No primeiro ano abateu 9.860 rezes; dez anos depois abateu perto de 50 mil.58 Outro pioneiro da industrialização local foi Johanes 55 Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.27-28 Gráfico 1 - Produção de arroz em Cachoeira do Sul - 1906-1940. Fonte PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. Porto Alegre: Tipografia Gundlach, 1941, p.18- 39 Concomitantemente, o aumento da área plantada passou a exigir, nas décadas seguintes, a expansão da rede de transporte rodoviário e a construção de barragens para facilitar a ligação fluvial com o porto de Rio Grande, caminho que permitiria escoar a produção cachoeirense para outros mercados consumidores. A liderança agrícola fez com que o município se outorgasse, posteriormente, o título de Capital Nacional do Arroz. Neste fértil período, o território cachoeirense dividia-se em oito distritos, além da sede: primeiro, Ferreira, São Lourenço e Três Vendas; segundo, Cordilheira, Irapuá, Piquiri, Capané e Irapuazinho; terceiro, Barro Vermelho, Sanga Funda, Santa Bárbara, Durasnal e Palmas; quarto, Restinga Seca, Estação Jacuí e Pertile; quinto, Dona Francisca, Faxinal do Soturno e São João do Polêsine; sexto, Agudo; sétimo, Cerro Branco e Rincão dos Cabrais; oitavo, Paraíso, Cortado e Rincão da Porta. Além dos alemães e italianos, árabes e judeus instalaram-se na sede do município no início do século XX, principalmente no ramo comercial e industrial: Bruno Jalfin, como engenheiro da Prefeitura Municipal; Boris 56 Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal. Ver também http://www.cachoeira dosul.rs.gov.br/perfil/index.asp, acessado em 20/10/2005 57 PESAVENTO, Sandra. Um novo olhar sobre a cidade: a nova história cultural e as representações do urbano. In: MAUCH, Cláudia [et al.]. Porto Alegre na virada do século 19: cultura e sociedade. Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo: Ed. da Universidade, UFRGS, Ed. Ulbra, Ed. Unisinos, 1994, p.137 58 Dados extraídos de PORTO, Aurélio. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. op.cit., 1996, p.218 e Levantamento Histórico da industrialização de Cachoeira do Sul. op.cit., 1983 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado122 123 O Grande Álbum de Cachoeira, editado em 1922 por Benjamin Camozato, reflete este desenvolvimento. Ele reuniu fotos que procuravam representar a pujança cachoeirense. A cidade tinha importantes casas comerciais, como no ramo de tecidos e fazendas, entre elas a Casa Fialho, A Avenida, Casa da Bandeira Branca e Casa Ideal. A elite ascendente mandava confeccionar as roupas em atelier de moda, como o de Helena B. Lauer, o primeiro a se instalar na cidade, em 1904, na rua Sete de Setembro. Os chapéus eram comprados da Alfaiataria e Chapelaria Santos ou de Álvaro da Cunha. A Casa J. Bidone & Cia ltda. vendia arreios e calçados e a Casa Viúva José Müller & Cia ltda. tinha ferragens. No ramo de livraria, papelaria, miudezas e utensílios domésticos, tinha a Casa Krahe, e a Casa Augusto Wilhelm, além da Typografia O Commercio, que publicava o jornal semanal de mesmo nome. No ramo industrial, destacavam-se os engenhos de arroz, como o Engenho Brasil de Reinaldo Roesch, com produção diária de 800 sacos das marcas Micado e Oriente, o Engenho Central de Ernesto Pertilli & Filho, com capacidade de dois mil sacos diários, o Engenho Cachoeirense de Felippe Roberto Matte, o de Antônio Cauduro & Cia ltda. e o de E. Stracke & Cia ltda, além da Mernak & Cia. ltda., que fabricava bombas centrífugas e locomóveis a vapor para uso na irrigação das lavouras de arroz, da Fábrica de Máquinas e Fundição de Ferro e Metais de Germano Treptow, e a Trilhadeiras Tigre de Ângelo Bozzetto em Faxinal do Soturno, então 6o distrito de Cachoeira. Em outras áreas da indústria alimentícia se destacavam a torrefação de café de Manoel Fialho de Vargas, os moinhos de trigo Vidal, as padarias e fábricas de massas alimentícias de Nicolau Salzano, de João Dreyer (Nova), Ritter & Cia. ltda. e de Mário Nostrani (Padaria do Comércio); a Fábrica de Caramelos, de Paulo Breuer e Guilherme Spohr; a Alimentos Fabini, que enlatava a polpa muscular bovina junto com glúten; as cervejarias e fábricas de gasosa e soda, como a Moderna de Pedro Port & Cia., a Leonel Friederich & Cia ltda., a Homrich de Rudolpho Homrich (fundada em 1883, fabricante das marcas Crystal, Preta e Dragão); a Fábrica de Licores de Júlio Vahle. Nas demais áreas industriais destacavam-se as fábricas de sabão de Arthur Goltz e a de Willy Tesch & Cia., A Industrial Madeireira Wilhem S.A. de Emílio Wilhem, a oficina de carpintaria e marcenaria de Alberto Gappmayer, a fábrica de móveis de Ernesto Hipp & Cia ltda., a Serraria Gauss de Louis Gauss, a Fábrica de móveis-estofados Suzete de Fogliatto Irmão & Cia. ltda., a Fábrica de Beldosas-Mosaico de Fernando Rodrigues, as olarias de Antônio Ferreira Neves, de João Augusto Christoff, e de Chrétien Hoogenstraaten & Cia ltda (Primor), a Fábrica de Louças de Barro de José Herbstrith & Cia. ltda.; os curtumes Scheidt & Beskow, Fontanari Irmãos & Cia., a Fábrica de sacos de aniagem e algodão de Campos, Nunes & Cia., entre outras. couros); Figueiredo & Neves (gasolina, querosene, peças para automóveis, fazendas, miudezas, secos e molhados); João Minssen (seguros contra fogo). Fonte: CAMOZATO, Benjamin. Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil. op.cit., 1922. Dados complementares foram retirados do Levantamento histórico da industrialização de Cachoeira do Sul, op.cit., 1983 Figuras 38 e 39 Interior da fundição Mernak & Cia. ltda. e depósito do Engenho Brasil, em 1922. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul e CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, Cachoeira de Sul: Município de Cachoeira, 1922 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado128 129 Foi neste contexto que Cachoeira prosperou economicamente, devido em grande parte ao sistema agropecuário colonial, gerador da expansão do setor exportador gaúcho. A incipiente industrialização do Rio Grande do Sul se consolidaria pela disponibilidade de matérias-primas, como a banha, farinha de trigo, mandioca, vinho e o próprio arroz, oriundos da região colonial. Soma-se o capital acumulado nas atividades comerciais das principais praças e o estímulo dado pelo governo republicano em todo país, desvalorizando a moeda, facilitando o crédito e protegendo as tarifas alfandegárias, o que resultaria no surgimento deste grande número de estabelecimentos industriais.65 Essa intensa atividade econômica alterou profundamente o perfil da elite cachoeirense. Aos de origem luso da pecuária tradicional praticada nas grandes estâncias somaram-se os imigrantes da agropecuária colonial e da manufatura; ambos grupos heterogêneos com atividades nas casas comerciais. Embora oriundos de contextos diferentes, teriam em comum o fato de se diferenciar dos demais habitantes não só pelas riquezas adquiridas no período, mas por hábitos e costumes próprios, algo que os caracterizaria como grupo distinto, construindo peculiar personalidade e identidade. Ambos passariam a comungar práticas sociais distintivas semelhantes, fortalecendo-se como grupo. Se não compartilhavam afazeres diários comuns, tinham no fazer cotidiano seu fator de identificação. Algo de interesse comum a esta elite heterogênea foi a modificação do espaço urbano, principalmente para os que enriqueceram devido ao comércio e a indústria, pois era na cidade que desenvolviam-se tais atividades econômicas, portanto era natural que desejassem melhorar o ambiente em que atuavam. O enriquecimento da elite foi o fator direto que permitiu a construção da infra-estrutura urbana, visto nos equipamentos como água, luz e calçamento e na estética das construções, materializado nos prédios comerciais e residências. 2.4. Metamorfose do espaço habitável O desenvolvimento agrícola desencadeado pelos imigrantes (1857 e 1875) e a própria elevação da Vila Nova de São João da Cachoeira à categoria de cidade, em 1859, acarretaram significativas melhorias no último quartel do século XIX, intensificando-se as obras de infra-estrutura urbanas, direcionadas prioritariamente para a sede do município cachoeirense. Até a proclamação da República, em 1889, tais melhorias não tinham fundo eminentemente estético, no sentido de provocar significativas rupturas no modo de ver e construir o espaço urbano. Em 1858, houve a preocupação de denominar oficialmente as ruas. Aos poucos, foi preciso organizar o espaço urbano, de forma condizente com o desenvolvimento do município. O código de posturas de 1862, aprovado pela Lei Provincial n.539, de 30 de abril de 1863, ordenava o arruamento, o passeio e a construção de prédios, com altura mínima de pé direito, simetria nas portas e janelas, além da exigência de cumeeiras e soleiras.66 Em 1875, a torre da igreja ganhou relógio, adquirido por subscrição iniciada por Polycarpo Pereira da Silva. Um ano antes, fora instalado meridiano na praça em frente.67 Na praça do pelourinho, foi dado início à construção do prédio para abrigar o Mercado Público, a partir de 1881. O contrato especificava os materiais que deveriam ser utilizados, como tijolo comuns de superior qualidade, “bem queimados e com o comprimento de trinta centímetros”, paredes rebocadas “com argamassa de um volume de cal para dois de areia e caiadas com três mãos de cal”, escoamento das águas feito por meio de 65 Ver ARAÚJO, Nilton Clóvis Machado de. Origens e evolução espacial da indústria de alimentos do Rio Grande do Sul. [disponível em http://www.fee.tche.br/sitefee/ download/eeg/1/mesa_10_araujo.pdf – acessado em 16/1/2006] e PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: Agropecuária colonial e industrialização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983 66 Procedimentos organizado as construções urbanas e regulando os comportamentos de ordem pública foram elaborados pela Câmara nos anos 1830, 1832, 1853, 1862 e 1895. Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.138-142. GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959, enumera algumas ruas que mudaram de denominação: a Saldanha Marinho era conhecida por rua da Aldeia e dos Cachorros; a Sete de Setembro era rua Direita e do Loreto; a Moron, era rua da Igreja; a Quinze de Novembro era rua dos Paulistas; a 1o de Março era rua do Vigário; a General Câmara era rua da Tapera; a Conde de Porto Alegre era rua Corpo da Guarda. 67 Sessão extraordinária, 18/12/1851. Fonte: CM/OF/A, 005 4r. Nivelamento da Praça: Ata da sessão ordinária da Câmara Municipal, 2/3/1852. CM/OF/A, 005, 7v. Meridiano, 22/10/1874. IM/EA/AS/RL, 001, 8r. Relógio na igreja, 10/9/1875. IM/EA/SA/RL, 001, 8r. Feiras livres na praça, Registro de Posturas da Câmara Municipal, 22/8/1853. CM/ S/SE/RPL/002. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado130 131 calhas, bandeiras de grade de ferro próprias para envidraçar, portas de louro, etc. A obra seria paga pela Câmara Municipal em três prestações: 9:500$000 réis quinze dias após a assinatura do contrato, 7:000$000 réis, após cinco meses, se verificado que a obra estivesse “aproximadamente em metade de sua construção, isto é, coberta com telhado”, 6:100$000 réis, ao final dos dez meses, depois de entregue e aceita a obra.68 Em 1887, solucionou-se definitivamente o problema dos sepultamentos, com a construção do cemitério no Alto dos Loretos, zona alta da cidade, administrado pela municipalidade. Em 1890, a comissão administrativa dos negócios do município solicitou o emprego de presos da cadeia para remoção da ossada humana descoberta devido ao nivelamento da praça da igreja.69 Em 1892, foi promulgada a primeira Lei Orgânica do Município, quando as atribuições de organização urbana passaram para a Intendência Municipal. Em 1895, as posturas determinavam, entre outras coisas, novos limites urbanos, licença prévia e planta para construir ou reformar, largura mínima de 15 metros e traçado retilíneo para novas ruas, obrigação de muros para residências localizadas nas principais vias, exigência do calçamento com mínimo de 1,8 metro de largura com sarjetas empedradas, etc.70 A nova situação política brasileira a partir de 1889, com a proclamação da República, deu novo sentido ao urbano, procurando prover as cidades dos ares modernos, inspirada na Europa, em especial, Paris. As rendas oriundas do setor produtivo, com grande ênfase para o colonial, incluiu os descendentes de alemães, italianos, árabes e judeus entre a elite local. O chamado aburguesamento da cidade de Cachoeira seria promovido neste contexto, influenciado pela belle époque européia, tendência seguida pelas principais capitais estaduais brasileiras, como Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, além da então capital federal, Rio de Janeiro.71 68 Contrato da Construção de um mercado na praça José Bonifácio, 5/12/1881. Fonte: CM/OF/TA, 007, p. 20r. Figuras 40 e 41 – Dois momentos do Mercado Público construído na praça do pelourinho em 1881. Fonte: CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, Cachoeira de Sul: Município de Cachoeira, 1922, e Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul 69 Em 16/3/1887, foi definitivamente resolvida a mudança do cemitério para o Alto dos Loretos. Fonte: IM/EA/AS/RL-001-10r. Ver ainda SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.89-95 70 SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.138-142 71 Entendo aburguesar como dar modos, hábitos ou aspecto elitistas, tanto aos espaços urbanos como às práticas cotidianas. Sobre transformações urbanas no Brasil ver, por exemplo, MAUCH, Cláudia [et al.]. Porto Alegre na virada do século 19: cultura e sociedade. Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo: Ed. Da Universidade, UFRGS, Ed. Ulbra, Ed. Unisinos, 1994, SÁ, Cristina [et al.], Olhar urbano, olhar humano. São Paulo: IBRASA, 1991, FERNANDES, Ana. GOMES, Marco Aurélio A. de Figueiras (org.). Seminário de História Urbana. Salvador/BA: UFBA/Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, ANPUR, 1992 e SOLLER, Maria Angélica. MATOS, Maria Izilda (orgs.). A cidade em debate. São Paulo: Olho d’Água, 2004 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado132 133 Na mesma época, foi construído o Largo do Colombo, contíguo à estação ferroviária.79 O instantâneo registra espetacular imagem do local. O calçamento da rua, o alinhamento do meio-fio, os postes de iluminação e as mudas de árvores plantadas nas calçadas, conjunto que materializa o desejo de Cachoeira ter um espaço, ainda que circunscrito, modernizado. Muitas das residências foram construídas em estilo germânico. Podiam ser vistos torres com acentuada inclinação das águas do telhado (Zeltdach), sofisticados adornos metálicos de arremate (Membron), consoles inspirados na sustentação de balcões ou beirados alsacianos (Kopfbänder), reboco externo lembrando enxaimel, decoração nos postigos inspirada na caixilharia bávara, sótão habitável com janelas ou lucarnas no frontão, corte no vértice conforme telhado Krüppelwalmdach, avarandados, arremates de falsas tesouras aparentes, ornamentos metálicos lembrando suportes de cabos telefônicos e elétricos em edificações européias, entre outros. 81 O prédio do Colégio Barão do Rio Branco, construído na rua Venâncio Aires (atual Presidente Vargas), era exemplar, assim como a Igreja Evangélica de Confissão Luterana, inaugurada em abril de 1934. Erguida em estilo gótico na esquina da Venâncio Aires com a Deoclécio Pereira (atual Isidoro Neves), tinha arcobotantes (escoras), janelas ogivais com trabalho de vidro e forro com inspiração gótica flamejante e torre e torreão.82 A sede da Schützen-Verein Eintrach, fundada pelos teuto- brasileiros em 1896, foi transferida para o bairro em 1914.83 Duas fotografias dos anos 20 mostram o calçamento das ruas do bairro e algumas casas ali construídas. Interessante é que as ruas foram projetadas com largura maior que as do centro, o que permitiu calçadas também mais largas. Além disso, os lotes maiores possibilitaram o recuo das construções, tanto na parte frontal quanto nos lados, diferentes das 79 O Ato n.125, de 7/4/1912, nomeou a praça fronteira à estação férrea. Isidoro Neves da Fontoura. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 002, 59r e 60r. 80 O bairro Rio Branco foi criado pelo Ato n. 125, de 7 de abril de 1912, na gestão de Isidoro Neves da Fontoura. Foi constituído pelo desdobramento da cidade no sentido Figura 44 – Largo do Colombo, contíguo à estação ferroviária, anos 10-12. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Neste período, a municipalidade desapropriou grande área na parte nordeste da cidade, próximos da estação férrea, loteando e vendendo os terrenos à elite, principalmente de origem teuta. A proprietária, herdeira do General Gomes Portinho, morava na capital e nunca aproveitara o lote. Chegou a mover ação judicial contra a prefeitura, alegando que sofrera lesão enorme, mas acabou perdendo. A denominação de bairro Rio Branco foi dada pelo próprio coronel Isidoro Neves da Fontoura.80 norte, compreendido entre as ruas 7 de Abril (atual Milan Krás) e 7 de Setembro, linha da Estrada de Ferro e demais terrenos pertencentes aos herdeiros do General Portinho. O Cel. Isidoro Neves da Fontoura denominou as ruas de: Marechal Floriano, continuação da rua Moron, a partir da rua 7 de abril; Comendador Fontoura, continuação da rua 15 de Novembro; Ernesto Alves, rua paralela a Venancio Ayres, a partir da rua 7 de Setembro; Marechal Deodoro, a rua paralela a Ernesto Alvese; e Cristovão Colombo, a praça defronte à Estação Férrea Cachoeira. Ver também FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1o volume. Borges de Medeiros e seu tempo, op.cit., 1958, p.164-168 81 Informações do Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul. Exposição Residências alemãs em Cachoeira do Sul. 82 JP, 26/4/1931 Comunidade Evangélica de Cachoeira, p.2 e GUIDUGLI, Humberto Attilio, Fundação da Igreja Evangélica, Revista Aquarela, 1957 83 Jornal O Commercio, 17/4/1912, p.2 In: SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.136 e 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado138 139 portas-janela habituais do centro, cuja fachadas eram limítrofes às ruas. O bairro Fialho (Santo Antônio), predominantemente de descendentes italianos, teve ocupação semelhante. As peculiaridades em termos de arquitetura e disposição das residências nos lotes caracterizariam os moradores do centro antigo e os dos novos bairros adjacentes. Nas administrações posteriores, muita das intervenções restringiram-se à antiga praça do Pelourinho, rebatizada de praça José Bonifácio meio século antes: construção e remodelação do galpão para abrigar o cinema, pela empresa Figueiró; construção de chalés para abrigar os bares de Luiz Leão, Manoel da Costa Junior, Joaquim Rosa e de Henrique Fey, este último destinado “unicamente às retretas em domingos e dias feriados e que doravante poderá ser utilizado para restaurante e vendas de bebidas”. O contratante deveria envidraçar e embelezar o pavilhão da música, na parte baixa, reconstruir e pintar a parte superior destinada à música, reconstruir e conservar os canteiros do jardim, o caramanchão e o terraço. Em contrapartida, teria direito a utilizar a parte alta para serviços de restaurante, “quando a mesma não tiver de ser ocupada pela banda de música que der retretas em dias determinados”. A partir de 1917, foram concessionários: Carlos Klüsener, Alberto Trommer e Willy Trommer.84 84 Ato nº 34, de 12/6/1913. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 002, 68 v. Ato nº 135, de 15/8/1912. IM/GI/DA/ADLR, 002, 61v. Contrato que fazem a Intendência Municipal de Cachoeira representada pelo Dr. Balthazar P. de Bem e o sr. Manoel da Costa Junior, como abaixo se declara, 4/8/1914. IM/GI/AB/C, 003, 1v. Contrato que fazem a intendência Municipal de Cachoeira representada pelo Dr. Balthazar de Bem e o sr. Manoel da Costa Junior, como abaixo se declara, 11/8/1914. IM/GI/AB/C, 003, 2r. Contrato que fazem a Intendência de Cachoeira representada pelo Dr. Balthazar P. de Bem e o sr. Francisco Figuras 45 e 46 No bairro Rio Branco, calçamento das ruas com paralelepípedo e residências, já nos anos 20. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Figura 47 - Praça José Bonifácio, no início do século XX, antes das modificações. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado140 141 Figuras 48, 49 e 50 Praça José Bonifácio, no início do século XX, antes das modificações, Bar Cachoeirense e Chalé Ponto Chic ambos construídos na praça José Bonifácio. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Neste período, assumiram o município: Alfredo Xavier da Cunha (09/ 1912), Horácio Gonçalves Borges (10/1912), Balthazar Patrício de Bem (1912-1916) e Francisco Fontoura Nogueira da Gama (1916-1920).85 O Mercado Público localizado na praça foi reformado na administração de Annibal Lopes Loureiro (1920-1924), pelo arquiteto porto-alegrense José Mariné. Os termos do contrato, assinado em 1921, dispunham que deveria ser feita a caiação do prédio, pintado com cor de cimento as fachadas internas e externa, portas e portões, colocado vidros e bancas, além de construídos sanitários, bebedouro para animais, “dotado de uma coluna com uma torneira de mola e uma caneca de ferro presa com corrente”, e fonte pública no centro do Mercado, “provida de duas torneiras de mola, com base para colocação de baldes, uma caneca de ferro com corrente, sifão para escoamento da água ligado ao poço”, sendo o escoamento ligado na sarjeta da via pública. 86 As reformas atingiram também a praça em frente a igreja católica. Os muros que cercavam a praça foram demolidos sob argumento de que eram desnecessários porque vacas e cavalos não mais vagavam pelas ruas da cidade. Parte do material foi aproveitada para murar o reservatório de água da hidráulica municipal, construído nos anos 20 nas imediações do Hospital de Caridade. As modificações foram consideradas de sensível melhoramento do aspecto, por permitir que “os transeuntes, vejam, mesmo de longe, as frentes das casas construídas nas diversas ruas da de Almeida, como abaixo se declara, 12/8/1914. IM/GI/AB/C, 003, 2 v. Contrato de Arrendamento que faz a Intendência Municipal como cidadão Henrique Fey, do Pavilhão cito à Praça José Bonifácio, 20/12/1915, IM/GI/AB/C, 003, 12 v. Termo de transferência de contrato feito por Henrique Fey a favor de Carlos Klüsener. 23/3/1917. IM/GI/AB/ C, 003 p. 24v e 25r. Termo de transferência de contrato feito por Carlos Klüsener a favor de Alberto Trommer, 4/1/1918. IM/GI/AB/C, 003 37 V. Termo de Transferência de Contrato que, perante a Intendência Municipal, faz Alberto Trommer a favor de Willy Trommer como abaixo se declara, 13/9/1920. IM/GI/AB/C, 003, p.62r. Contrato que faz o sr. Joaquim Rosa com a Intendência Municipal, como abaixo declara, 22/12/ 1919. IM/GI/AB/C, 003 54r - 85 SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.22-23 e 43 86 Contrato que fazem a Intendência Municipal de Cachoeira e o Sr. Jose Mariné para a execução de diversos melhoramentos no Mercado Público, 28/7/1921. Fonte: IM/GI/ AB/C, 003, p.73v. Termo de transferência de contrato feito por Joaquim Rosa a favor da firma Kern Homrich, como abaixo se declara, 12/1/1922. IM/GI/AB/C, 003, p.77 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado142 143 As obras da segunda hidráulica foram iniciadas em 20 de setembro de 1923, por Francisco Fontoura Nogueira da Gama, prolongando-se durante aproximadamente 18 meses.99 Pelo contrato, o vencedor da licitação receberia 11,5% sobre o custo do material e da mão de obra, para administrar a obra.100 O engenheiro carioca Saturnino de Britto projetou o sistema para captar a água no rio Jacuí, próximo à cachoeira do Fandango, levar até o tratamento e a filtragem, onde tornava-se potável, sendo então direcionada para o Chateau d’Eau, construído em 1924-25, no centro da praça fronteira à igreja. O reservatório recebeu a denominação francesa por conta da influência européia vigente na época. O projeto arquitetônico foi assinado pelo engenheiro Walter Jobim, que cercou a escultura central com estátuas de ninfas, divindades do mar, segurando cântaros que jorravam água. No topo do monumento, colocou a escultura pagã de Netuno, semi-deus dos mares, de frente para a igreja. As esculturas foram esculpidas na oficina de J. Vicente Friedrichs, em Porto Alegre, sob a direção do professor Giuseppe Gaudenzi. “A finalidade do Chateau d’Eau era de levar a água, por gravidade, ao reservatório R2 e regular ao mesmo tempo a pressão da água nas zonas mais elevadas”. Ao redor do monumento, foram plantadas palmeiras imperiais.101 Paralelamente, foram construídos 18,5 quilômetros de rede de esgotos nas ruas principais, especificamente na área edificada do centro da cidade. O sistema utilizado foi de separar rede pluvial e tratamento de efluentes, que recolhia os dejetos e enviava-os a tanques de decantação, separando-os em parte seca (lama sólida) e parte líquida, desembocando no arroio Amorin e dali para o rio Jacuí, abaixo e longe do ponto de captação da hidráulica.102 99 O capitão Francisco Fontoura Nogueira da Gama foi intendente entre 1916 e 1920, vice-intendente de Annibal Loureiro entre 1920-1924 e novamente intendente entre 1924 e 1925. 100 Fonte: Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros pelo Engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto de 1923, relativo aos trabalhos da Secretaria, no ano de 1922, IM/S/SE/Re, 025, p. XVII e XVIII. 101 SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.116. Ver ainda: Decreto nº 98, de 27/9/1920, IM/GI/DA/ADLR, 007, 76v e 77r., Relatório apresentado a A. A. Borges de Medeiros pelo engenheiro Ildefonso Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em 15 de agosto de 1923, referente aos trabalhos da secretaria no ano de 1922. IM/S/SE/Re, 025, p.15-16 102 Relatório apresentado a A. A. Borges de Medeiros, por Sérgio Ulrich de Oliveira, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926, referente aos Serviços de Saneamento do estado executados durante o ano de 1925 e 1926, até maio. IM/S/SE/Re., 025, p.56 a 63; Protocolo de Correspondência, 1924, 8v e 19r. (janeiro a dez); IM/GI/AB/Re, 005 p.15, 1925. JP, 15/12/1959, Inauguração da fonte luminosa, p.1 e 27/12/1959, Fonte luminosa, p.1 Figuras 53 e 54 Início das obras de instalação da rede de esgoto, vendo-se o intendente, capitão Francisco Fontoura Nogueira da Gama, de sobretudo, com uma picareta na mão, fevereiro de 1924, e Chateau d’Eau. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado148 149 Com o andamento das obras, foi aprovado o Regulamento Sanitário, através do decreto municipal n.179, de 1o de julho de 1924, obrigando as ligações domiciliares com a rede. Embora mais de 500 prédios tivessem sido ligados à rede, dois terços dos domicílios continuava a utilizar os serviços da carroça dos cubos, que recolhia os dejetos em recipientes e depositava-os no prédio do Asseio Público, localizado na rua Conde de Porto Alegre esquina Esperanto, distante aproximadamente 1 quilômetro da zona urbanizada. A remoção de “matérias excrementícias através de cubos removíveis” datam de 1909, na gestão de Isidoro Neves da Fontoura. Sua implementação impôs, como medida profilática, o fechamento das latrinas com fossas fixas. O recolhimento dos dejetos através do sistema de cubas, utilizado em residências ainda não ligadas à rede de esgoto, durou até meados dos anos 40.103 O marco maior das transformações urbanas seria alcançado na gestão do vice-intendente João Neves da Fontoura (1925-1928).104 Com projeto de Acylino Carvalho, sub-diretor de Obras Públicas do Estado, 42 quadras da zona central, entre a praça da igreja e a estação ferroviária do Largo do Colombo, receberiam melhorias, como passeios, meio-fios, paralelepípedos nas ruas e até relógio público, montado em colunas de degraus em mármore cor-de-rosa, na confluência das ruas do Loreto (Sete de Setembro) e 24 de Maio (Silvio Scopel).105 A condução de João Neves da Fontoura ao cargo de intendente deu-se em circunstâncias excepcionais. Em 1924, o comando da municipalidade estava a cargo de Francisco Fontoura Nogueira e Balthazar Patrício de Bem,106 companheiros seus de partido. Com a revolução, o vice-intendente acompanhou o corpo expedicionário que pôs-se em movimento em 9 de novembro, contra o 2o Batalhão de Engenharia de Cachoeira, liderado pelo capitão Joaquim do Nascimento Távora, na localidade de Barro Vermelho, vindo a falecer no dia seguinte, aos 47 anos de idade. João Neves da Fontoura homenageou o companheiro de partido falecido, dando seu nome à praça em frente da igreja matriz.107 Em janeiro de 1925, o intendente Francisco Nogueira da Gama afastou- se por problemas cardíacos. O Conselho Municipal reuniu-se para 103 SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.95-98 e 116-117 104 João Neves da Fontoura descende de João Carneiro da Fontoura, vindo de Portugal em 1737, indo morar em Rio Grande. Seu avô era João Fontoura (bisneto de João Carneiro) um coronel do Exército e proprietário da Fazenda das Palmas, distante 10 milhas (66 quilômetros) da sede do município de Cachoeira, hoje área pertencente a São Sepé. Sua avó descendia de mineiros (Figueiredo Neves). Era filho do coronel Isidoro Neves da Fontoura e Adalgisa Godoy da Fontoura. Nasceu no município em 16/ 11/1887. Estudou na escola Cândida Fortes, no Ginásio Cachoeirense e, posteriormente, no Colégio dos Jesuítas (ginásio de N. S. da Conceição), em São Leopoldo. Bacharelou- se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Porto Alegre, foi Promotor Público na capital gaúcha durante um ano; prefeito de Cachoeira, de 1925 a 1928; deputado estadual, de 1921 a 1928, e vice-presidente do Estado do Rio Grande do Sul, eleito em 1927. Deputado federal pelo mesmo Estado, de 1928 a 1930 e de 1935 a 1937. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi nomeado embaixador do Brasil em Lisboa, cargo que exerceu desde 1943, tendo resignado a 30 de outubro de 1945. Ministro de Estado das Relações Exteriores, no ano de 1946, chefiou a Delegação do Brasil à Conferência de Paz, em Paris. Em 1948, foi o chefe da Delegação do Brasil à IX Conferência Internacional Americana, reunida em Bogotá. Pela segunda vez João Neves da Fontoura foi nomeado Ministro das Relações Exteriores, empossando-se no cargo em 31 de janeiro de 1951 e exercendo a pasta até 19 de julho de 1953. Faleceu no Rio de Janeiro, em 31 de março de 1963. Fonte: SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.54 e 59-62 e http://www.biblio.com.br/ Templates/ biografias/joaonevesda fontoura.htm – acessado em 2/12/2005. 105 Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p. 97-98, 116-117 e 146-149 106 Balthazar Patrício de Bem foi sucessivamente vice-intendente, intendente e diretor de Higiene Municipal, deputado da Assembléia Legislativa e diretor-médico do HCB, além de colaborador dos jornais O Commercio, de Cachoeira do Sul, e A Federação, de Porto Alegre. Sua morte é narrada com ares de heroísmo. Segundo dados oficiais, na revolução de 1924, teria organizado um corpo expedicionário que entrou em combate na localidade de Barro Vermelho. Faleceu no dia 10 de novembro, aos 47 anos de idade, em conseqüência de ferimento, quando à frente da força militar, pretendia impedir o alastramento da sublevação do 3º Batalhão de Engenharia, aquartelado em Cachoeira, que havia se revoltado, ameaçando, assim a causa da legalidade. Cf. ata transcrita por Ione Sanmartin Carlos, no Cartório de Registro Civil, “às doze horas, em caminho do Passo São Lourenço, faleceu o Balthazar Patrício de Bem com 47 anos de idade, médico, casado com Dona Marina Mattos de Bem. Causa da morte foi por hemorragia por ferida de arma de fogo penetrante na cavidade peritoneal”. Existem divergências na versão do assassinato de Balthazar de Bem, principalmente no que se refere a sua heroicidade de ter tomado frente na força militar em combate no Bairro Vermelho. A versão não-oficial é de que ele teria ido à zona de conflito por sua atividade médica e morrido por motivos banais. Como habitualmente vestia terno branco, postou-se de pé para olhar o campo inimigo, quando foi alvejado por um tiro efetuado por franco-atirador, sem estar em nenhum combate direto. 107 A praça passou a atual denominação com o decreto n.196, de 16/3/1925. Fonte: IM/ GI/DA/ADLR, 009, 147V Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado150 151 conceder-lhe licença e dar posse no cargo de vice a João Neves da Fontoura. Três meses depois, o intendente teve melhora súbita e retornou ao posto, ali ficando por mais três meses. Em agosto, piorou e, desta vez, o vice ficou definitivamente no mandato até fins de 1928.108 Quando João Neves da Fontoura assumiu, as obras de água e esgoto em andamento estavam sendo executadas pela empresa administrada por Antônio Soares. O engenheiro responsável era Paulo Felizardo. A deficiência dos empréstimos fizeram com que João Neves da Fontoura recorresse ao governador Borges de Medeiros, que contraiu empréstimo de cerca de US$ 10 milhões, distribuído a vários municípios, cabendo a Cachoeira US$ 970 mil. Ele escreveu em suas memórias: “Principalmente a ele é que tem de atribuir-se a transformação não só na fisionomia de Cachoeira, a qual, de burgo triste e desconfortável, se converteu numa das melhores cidades do Rio Grande”. Por essa razão, denominou a praça do reservatório de água (R2) de Borges de Medeiros, inaugurando-a em janeiro de 1927. No tocante ao asseio público, João Neves colocaria carros motorizados para recolher lixo, instituiria a cobrança de taxas para custeio das despesas e exigiria que cada prédio tivesses seu vasilhame próprio. Em relação ao abastecimento e saneamento, inauguraria a segunda hidráulica levando água para a zona alta da cidade e concluiria a rede principal para tratamento dos efluentes de esgoto sanitário, abrangendo a maior parte da área edificada da zona central, com aproximadamente 535 prédios.109 Nas fotografias da inauguração é possível perceber como muitas das obras eram marcadas pela estética, além da função estrutural. No reservatório R2, ao invés de simples caixa de concreto para servir de recipiente da água, os engenheiros projetaram área de lazer na parte superior, com balaústre de madeira, escadaria e parapeito feito de colunas, além dos bancos e canteiros por toda área. O próprio ato inaugural rendia cerimônias que valorizavam os administradores públicos perante a população. Figuras 55 e 56 – Inauguração do reservatório R2, em janeiro de 1927, e praça Borges de Medeiros (ou praça da caixa d’água) em 1928. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul 108 FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1o volume. Borges de Medeiros e seu tempo, op.cit., 1958, p.250-251/323-339. Na intendência, João Neves da Fontoura abandonou a advocacia. Como apoiou a revolta paulista, em 1932, foi exilado por dois anos. 109 Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p. 97-98, 116-117 e 146-149 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado152 153 Figura 61 - Calçada da praça José Bonifácio, 1927. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Para uma cidade que queria apresentar-se como moderna aos olhos externos, tornava-se imprescindível o calçamento. Além de melhorar a estética, aproximando sua feição urbana das capitais européias, a intervenção nas ruas de Cachoeira, na segunda metade da década de 20, teve como fator de impulso o crescimento do trânsito de veículos automotores, que atingiam velocidades maiores do que as carroças e, conseqüentemente, levantavam mais poeira.117 O primeiro automóvel a circular pelas ruas de Cachoeira data de 1907, de propriedade do rizicultor Eurípedes Mostardeiro. O Daymler, com dois cilindros e 15 cavalos de potência, foi adquirido usado em Buenos Aires e chegou ao município por via fluvial. Sua chegada causou frisson. Com rodas altas e imbricado jogo de alavancas, saiu funcionando do porto no passo da praia, atraindo atenção no trajeto, dada a fumaceira que levantava do escapamento. O segundo automóvel a rodar em Cachoeira foi da marca Umber, de propriedade do mecânico Albino Pohlmann, que utilizou o veículo como táxi no ano de 1912.118 A existência de carro de praça em Cachoeira do Sul já nesta época, fez com que a distinção social atingisse o modo de se transportar, pois não eram todos que podiam pagar pelo valor cobrado. Além do mais, circulava desde 1909 a linha de bonde, de Guilherme Döring, entre o porto (zona sul), a estação férrea (noroeste do centro) e a parte alta da cidade.119 Em 1919, Rodrigo Martinez colocou em circulação os auto-bondes que faziam praticamente o mesmo trajeto. O preço da passagem era de 0$200 réis, valor correspondente a um exemplar avulso de jornal. As viagens eram feitas a cada meia hora, desde manhã cedo até a hora em que terminavam os espetáculos do cinema. O jornal O Commercio escreveu que tratava-se de importante melhoramento, que resultaria em considerável economia para a população, “que até aqui era obrigado a fazer a pé, quando não se utilizam os carros e automóveis, veículos estes que, pode-se dizer, somente são permitidos aos ricos, tal o seu preço”. Na primeira viagem do auto-bonde, constatou-se que o veículo só poderia transportar cerca de 18 a 20 passageiros, por seu motor não ter força suficiente.120 Esporadicamente, outros empreendedores passaram a oferecer transporte nos anos 20. Roldão Barcelos da Costa tinha um ônibus com bancos transversais e laterais abertas e fazia o itinerário Praça da Matriz-Alto dos Loretos. Ele também transportava pessoas para o interior do município. Em depoimento oral, sua filha afirmou que “o negócio não dava lucro porque como todo mundo se conhecia em Cachoeira e eram amigos, não pagavam passagem”.121 Em 1925, João Noronha de Bem 117 Ainda nos anos 30, os residentes em ruas não calçadas, como na Júlio de Castilhos e travessas e no bairro Rio Branco, reclamavam da poeira, solicitando sua irrigação. Ver JP 19/2/1931 Noticiário. O pó das ruas, p.2 118 GUIDUGLI, Humberto Attilio, O 1o e o 2o automóveis que circularam nesta cidade, Revista Aquarela, 1957 119 Ato nº 83, de 12/10/1909, IM/GI/ DA/ADLR, 002, 53v. O Conselho Municipal, em 17/ 10/1909, através da Lei nº 22, dispensou a empresa de todos impostos pelo prazo de cinco anos. Lei nº 22, de 17/10/1909. IM/CM/ AL/L, 002, p.87 v. Ato nº 85, de 20/11/ 1909. IM/GI/DA/ ADLR, 002, 54r 120 Jornal O Commercio, 8/10/1919, p.2, 22/10/1919, p.3 e 29/10/1919, p.1. A Lei nº 95 e o Ato nº 490, ambos de 12/12/1919, isentaram de pagamento de impostos os auto-bondes. Fonte: IM/CM/AL/L, 007 e IM/GI/DA/ADLR, 007, 30 r. 121 Depoimento oral fornecido à assessora técnica do Arquivo Histórico do Município de Cachoeira do Sul, Ione Sanmartin Carlos, no dia 1º de agosto de 200l, às 18h. Nome: Maria Costa Correa. Nascimento: 1913 [filha]. Nome: Gilda da Cunha Costa. Nascimento: 1917 [sobrinha] Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado158 159 disponibilizou dois auto-bondes, “um com os bancos comodamente acolchoados”, que conduziam passageiros entre os extremos norte e sul de Cachoeira, entre os cemitérios Municipal e o da Irmandade, ao preço de 1$600 réis a viagem de ida e volta. O jornal noticiou que o “empreendimento tem sido muito bem acolhido pelo nosso público, tendo os bondes boa freqüência de passageiros, notadamente aos domingos e à noite”.122 modernos, de segurança e perfeição que melhor correspondam ao interesse público, instalados no sub-solo dos logradouros públicos, sem prejuízo do trânsito de pedestres e do tráfego de veículos”.125 Pelo decreto n.256, de 16 de fevereiro de 1927, as bombas de gasolina só poderiam ser instaladas com distância mínima de “três quadras edificadas, contadas em linha reta, para cada rua”.126 A primeira bomba de gasolina foi inaugurada defronte à Bromberg & Cia, na rua Saldanha Marinho, vendendo a marca Atlantic, em 21 de março de 1927. No dia seguinte, foi inaugurada outra bomba, mas defronte à Igreja Matriz, na praça Balthazar de Bem.127 Um mês depois, foi inaugurada o terceiro ponto de venda de gasolina, a primeira da bandeira Standard Oil Co. of Brazil, na rua Júlio de Castilhos esquina Juvêncio Soares, tendo como agente João Minssen.128 122 Jornal O Commercio, 2/12/1925 e 7/12/1927, p.4 123 JP, 31/3/1949 O Transcurso do 25º aniversário de fundação da “Agência Ford” desta cidade, p.1 124 Jornal O Commercio, 2/6/1920 Bombas de gasolina, p.3 125 Decreto n. 223, de 25 de janeiro de 1926, art.1o, Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, Actos e Resoluções do Intendente, p.99, 100, 101,102 e 103. Ver também decreto n º 250, de 18 de janeiro de 1927, publicado no Jornal O Commercio, em 19/1/1927, p.2. 126 Artigo 1o do Decreto nº 256, de 16 de fevereiro de 1927. Fonte: IM/G/DA/ADLR - 010 - 195 r. 127 Jornal O Commercio, 23/3/1927 Bomba de gasolina, p.4 128 Jornal O Commercio, 13/4/1927, Bomba de gasolina p.1 Figuras 62 – Ônibus com bancos transversais e laterais. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Em 31 de março de 1924, foi inaugurada a Agência Ford, sendo concessionário Prudêncio Schirmer.123 Com isso aumentou consideravelmente o número de automóveis em circulação nas ruas cachoeirenses, exigindo toda infra-estrutura de abastecimento de gasolina, até então vendida em galão nas casas comerciais, como a de Guilherme Preussler, na rua David Barcellos.124 Em 1926, o intendente João Neves da Fontoura instituiu a obrigatoriedade de instalar-se o “sistema de fornecimento de gasolina a varejo por meio de aparelhos Figuras 63 – Inauguração de bomba de gasolina. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado160 161 O ato de inauguração, realizado às 16 h 30 min do dia 9 de abril de 1927, foi registrado na fotografia dado seu caráter festivo, com assistência de muitos motoristas, representantes da imprensa local, comerciantes e industriais. Foi oferecido na ocasião abundante chope aos presentes. Em julho, o mesmo agente instalou uma segunda bomba da marca, na rua Sete de Setembro.129 Outra visibilidade dada pelo intendente João Neves da Fontoura foi no re-ajardinamento das praças centrais. Na praça José Bonifácio, as paineiras foram substituídas por novas mudas, sob o argumento que “mais enchiam as ruas de folhas caídas do que de sombras”. O novo Horto Municipal passou a fornecer mudas de flores e de árvores das mais variadas espécies. A responsabilidade estava por conta do engenheiro-agrônomo Guilherme Gaudenzi, cedido pelo município de Porto Alegre.130 Em 1926, a Intendência abriu concorrência para construção e exploração do teatro- cinema, prédio que duraria poucos anos no local,131 e para colocação de piso mosaico tipo trottoir, na cor cimento, com desenhos semelhantes aos usados em Porto Alegre, nos passeios.132 No mesmo ano, houve remodelação em seus jardins, foi construído o ringue de patinação, “de forma circular, com piso de cimento e circundado por um parapeito de cimento armado, com várias entradas para a pista” e bancos de cimento com assento de madeira, foi aberta a concorrência para a construção de um bar, demolido o chalé Ponto Chic de Luiz Leão, instalado uma bomba de gasolina por João Minssen, derrubadas as “velhas” paineiras, construídas “elegantes balaustradas” e canteiros, plantadas roseiras trepadeiras, instalados postes de ferro fundido e iluminação elétrica, tudo isso para dar “ao conjunto geral da praça um cunho característico de modernismo”.133 Em 1928, foi construída a “elegante” pérgula, passeio feito com duas séries de colunas paralelas para suportar as tumbergias e roseiras-trepadeiras. Também o bebedouro de animais foi transferido para a praça São João, no bairro Fialho.134 A remodelação da praça José Bonifácio foi fartamente fotografada. Nas imagens a seguir aparecem a testada sudoeste, com a derrubada das paineiras no canteiro central, construção de balaustradas e canteiros e instalação de postes de ferro fundido e bancos de concreto com assento de madeira e da pérgula, construída no lado noroeste. 129 Acto nº 1194, de 22 de julho de 1927. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, p.212 130 FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1o volume. Borges de Medeiros e seu tempo, op.cit., 1958, p.245 131 Acto nº 1.105, 21/9/1926. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, p.167 132 Contrato que faz a Intendência Municipal de Cachoeira com o sr. Guilherme Paulo S. Felizardo, para o fornecimento de mosaicos destinados ao calçamento de passeios da Praça José Bonifácio, 17/6/1926. Fonte: IM/GI/AB/C, 004, p.24 v. Jornal O Commercio, 26/1/1927, Passeio da Praça José Bonifácio, p.2. Jornal O Commercio, 23/2/1927 Praça José Bonifácio, p.1. 133 Intendência Municipal. Edital de concorrência para a construção e exploração de um bar na praça José Bonifácio, 18/4/1927. Jornal O Commercio, 20/4/1927, p.4 e 27/ 04/1927, p.4. Jornal O Commercio, 4/5/1927 Ao redor da Praça José Bonifácio, p.4. Acto nº 1.194, de 22/7/1927. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, p.212. Jornal O Commercio, 31/8/1927 Edital Intendência Municipal. Concorrência Pública, p.2, 26/10/1927 Ponto Chic, p.4, 9/11/1927 Praça José Bonifácio, p.1, 9/11/1927 Iluminação Pública, p.3 e 30/11/1927 Praça José Bonifácio, p.1. Ver ainda JP, 29/11/1983 Museu faz mostra sobre história do José Bonifácio, p.1 134 Jornal O Commercio, 7/11/1928 Jardins e praças Públicas, p.2 Figura 64 - Remodelação da praça José Bonifácio, em 1928. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado162 163 137 GUIDUGLI, Humberto Attilio. Verso e reverso da vida, Revista Aquarela, novembro de 1957, n.2 138 GUIDUGLI, Humberto Attilio. Cenas da vida da antiga Cachoeira, Revista Aquarela, dezembro de 1963. n.14 139 GUIDUGLI, Humberto Attilio. Moça beijada. Revista Aquarela, dezembro de 1963, n.14, e O destino é quem decide. Revista Aquarela, abril de 1964, n.16 Nesse contexto de diferenciação social, era comum as moças da elite selecionarem futuros pretendentes a partir do status social, não permitindo aproximação ou contato dos que não possuíssem posição elevada. Exemplo disso foi o caso publicado na Revista Aquarela, reportando-se a época. Na ocasião, um visitante chamou a atenção do belo sexo, por intermédio do qual ia infiltrando-se nos ambientes elitizados. Sempre com o nome em foco, aparecia principalmente na praça José Bonifácio, onde, “metido em seus trajes bem talhados, encantava o mundo feminino”. Decorreram semanas até descobrir-se tratar de embusteiro, quando passou a ser ignorado pelas mesmas donzelas que tanto encantou.137 Muitas moças da elite namoravam visando unicamente desbancar a rival, demonstrando que por detrás do véu aristocrata, fervilhavam os ânimos mais apaixonados.138 Os rapazes não deixavam por menos. Aos sábados de madrugada, grupos percorriam as casas das pretendentes para fazer serenatas. Por várias vezes, os pais delas terminavam a homenagem despejando “água que não se bebe” sobre os cantadores. Numa ocasião, atrevido rapaz segurou à força senhorita da alta elite que fazia seu footing na praça José Bonifácio, beijando-a prolongadamente. O ato causou indignação e tumulto entre os freqüentadores. Em outra, senhor de idade avançada, porém riquíssimo, namorava linda moça de 19 anos, sem aprovação da família que chegou a trancá-la em casa, num quarto escuro. A comunidade protestou e levou o caso ao conhecimento das autoridades. Manifestações pró e contra foram feitas. Mais tarde ambos se casaram. A solenidade foi realizada debaixo de extraordinária aclamação, tendo sido despejado nas pessoas presentes “grande vidro do mais fino extrato de Paris”.139 Se algumas diferenças sociais podiam causar alvoroço ou constrangimento, era na delicada questão da divisão racial que mostrava-se a verdadeira fronteira da lógica civilizacional. Como bem atestam os episódios do Tira o chapéu ocorrido na praça José Bonifácio – onde os ânimos se conturbaram porque mulheres negras e pobres, vestindo fino chapéu, avançaram no espaço da elite branca – ou num outro que envolveu cançonetista negro que veio fazer espetáculo na cidade e, após a apresentação, procurou o melhor hotel de Cachoeira, sendo negado-lhe hospedagem dada sua etnia.140 Nos eventos sociais promovidos em espaços restritos, exigia-se comportamento adequado. Nos bailes, reuniam-se elementos da fina sociedade. As matronas, em seus lugares estratégicos, dirigiam as moças com o olhar, ora carrancudo ora suave, corrigindo eventuais falhas, repreendendo modos, enquanto a orquestra recebia ordens para repetir a mesma música a fim das danças tornarem ao seu verdadeiro andamento.141 Nos salões dos quartéis do Exército, antes da Revolução de 30, promoviam-se festas e horas de arte, comparecendo famílias da sociedade, cavalheiros, artistas amadores e musicistas.142 Mas foi na formação de associações que mais refletiram-se tentativas sistemáticas de construção de identidades próprias de cada grupo social, mesmo considerando-os pertencentes à elite cachoeirense. No espaço de trinta anos, vários clubes foram fundados em Cachoeira: Sociedade Atiradores Concórdia (fundado como Schützen-Verein Eintrach, em 1896); Societá Italiana Principe Umberto (1913), Tiro de Guerra n.254 (1916), Sociedade União Cachoeirense (1920), Clube Comercial (1924) e Sociedade Israelita Cachoeirense (1926).143 As agremiações cachoeirenses que podiam ser consideradas eminentemente aristocráticas eram, primeiramente, o Clube Comercial e, residualmente, a Sociedade Atiradores Concórdia. Aceitava-se os teuto- brasileiros nessa categoria muito mais por sua importância econômica 140 GUIDUGLI, Humberto Attilio. Negou hospedagem. Revista Aquarela, outubro de 1957 141 GUIDUGLI, Humberto Attilio. O Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959 142 GUIDUGLI, Humberto Attilio. Belos tempos, Revista Aquarela, dezembro de 1968. n.27 143 Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal. Ver também http:// www.cachoeiradosul.rs.gov.br/ perfil/index.asp, acessado em 20/10/2005, Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul. 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996. A Schützen-Verein Eintrach, mudou de nome durante a I Guerra Mundial, para Sociedade Atiradores Concórdia. Em 1939, suprimiu Atiradores, ficando Sociedade Concórdia. Na Segunda Guerra Mundial, em 1943, para Sociedade Rio Branco. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado168 169 em Cachoeira. O processo de admissão ao quadro de sócios do Concórdia dificultava o ingresso de todos aqueles que não tivessem descendência germânica. A solicitação dava-se através de pedido escrito à Diretoria, que colocava o nome em exposição pública durante quatro semanas. Para o candidato ser aceito, tinha de obter a maioria dos votos dos demais, através de escrutínio secreto.144 No Clube Comercial, a casta tinha razão de ser por agregar membros do alto comércio ou indústria locais, de origem luso ou não. A sociedade italiana aparecia em segundo plano devido a menor presença dos ítalo-brasileiros na cidade. Da mesma forma, o Grêmio Náutico Tamandaré (1936) agregou praticantes do remo que já tinham ligações com outros clubes. Somente após a Segunda Guerra Mundial, quando os remadores incorporaram o patrimônio dos italianos, é que o Náutico passou a promover eventos sociais de maior destaque, sendo alçado à nata da sociedade cachoeirense.145 Na busca pela diferenciação, os esportes assumiram papel preponderante, na medida em que possibilitaram materializar a racionalidade do corpo saudável, tão em voga no período.146 Entre a elite cachoeirense, o tênis teve grande preferência pois, além do aspecto físico, permitia a “convivência em ambiente de elevada expressão social”.147 Antes da construção da primeira quadra da Sociedade Atiradores Concórdia em 1920, as partidas eram jogadas na cancha particular de Emílio Barz, localizada na esquina das ruas Saldanha Marinho e Milan Krás (centro), ou numa cancha improvisada nas imediações da rua Júlio de Castilhos, esquina com Juvêncio Soares (entre o centro e a zona alta da cidade). Em 1922, adeptos fundaram o Tênis Clube Cachoeira, posteriormente transformado em departamento da Sociedade Atiradores Concórdia. No ano seguinte, surgiu uma segunda agremiação, o Rio Branco Tênis Clube, fundado por torcedores do Cachoeira Futebol Clube. A procura pelo esporte trouxe a necessidade de construção de novas quadras. Em fins dos anos 20, foi construída a quadra de tênis na parte dos fundos da praça Borges de Medeiros.148 Em menor grau, o ciclismo contou com adeptos desde fins do século XIX, chegando a ser fundado um clube em 1896. Entre os aficionados, constavam nomes das famílias Batista, Fetter, Guardiola, Guidugli, Homrich, Lang, Leusin, Lübke, Muller, Pohlman, Riccardi, Sabseverino, Schaurich, Treptov, Wolff, Xavier e Zimmer.149 No mundo ocidental, o ciclismo virou atração quando os fabricantes conseguiram alçá-lo à condição de símbolo máximos da liberdade individual, dado sua grande mobilidade, algo equivalente a voar e capaz de livrar o indivíduo da preguiça e depressão.150 A primeira prova ciclística foi realizada somente em 1934, na Volta da Charqueada.151 Junto com o ciclismo, a corrida atlética conquistou muitos adeptos. O Clube Ginástico organizou o Campeonato do Passo em 1903, que consistia em percorrer a pé, em grupos de quatro integrantes, os dezesseis quilômetros da Volta da Charqueada. Participaram da corrida Arnoldo Neujahr, Emílio Matte, Francisco Schroeder, Osvaldo Rother, Henrique Lauer, Otávio Simões, Ricardo Voigt Filho e Adolfo Schumacher.152 Entre os alemães da Sociedade Atiradores Concórdia, o tiro e a ginástica foram as principais das modalidades esportivas. O tiro ao alvo foi a razão da denominação inicial: Schützen-Verein Eintracht. Na Primeira Guerra Mundial, o Tiro de Guerra se apropriou das estandes de tiro e confiscou as armas dos alemães. Com o término do conflito bélico, o esporte não conseguiu reviver seus adeptos. A organização da Sociedade de Ginástica, o Turnverein, é posterior, data de 1908. As modalidades praticadas eram 144 Ver 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996, p.52 145 Ver Jornal O Commercio, 9/7/1913 Festa Inaugural Italiana Príncipe Umberto. Diversas Notas, p.1, SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartin. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p. 155-173 e 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996. No Anexo V, a relação nominal dos fundadores e presidentes do Clube Comercial, e dos fundadores, das madrinhas no batismo dos barcos e tripulação do Grêmio Náutico Tamandaré 146 SILVA, Ana Márcia. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa sociedade racional. In: Cadernos CEDES v.19 n.48 Campinas, agosto. 1999 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-326219990001 00002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 20/3/2006] 147 PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1943, p.326 148 Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896- 1996, op.cit., 1996, p.95-97 149 Segundo GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959 150 JESUS, Gilmar Mascarenhas de. Construindo a cidade moderna: a introdução dos esportes na vida urbana do Rio de Janeiro, 1998 [disponível em http:// www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/257.pdf – acessado em 20/3/2006] 151 JP, 28/1/1934 Vida desportiva. Ciclismo, p.2 152 Segundo GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado170 171 exercícios de barra, paralelas, cavalos e argola, ginástica sueca, marchas e evoluções rítmicas, salto em altura e distância, arremesso de bola, disco e dardo, e corridas de 100 m e 400 m. Com a Segunda Guerra Mundial, a ginástica e o atletismo deixaram de lado seu caráter competitivo, sendo incorporados ao Atlético Rio Branco, que priorizava esportes coletivos em detrimento ao praticado individualmente, como o basquete e o vôlei. Além do tiro e da ginástica, destacava-se entre os de origem germânica o bolão, praticado inicialmente em canchas de terra batida, improvisadas ao lado de pequenas casas comerciais germânicas, servindo de atrativo para a freguesia.153 A prática do esporte estendeu-se em pouco tempo aos subalternos. Aqueles que não faziam parte da alta sociedade cachoeirense, acabaram por aderir ao futebol, que rapidamente rompeu círculos aristocráticos para ganhar as ruas e tornar-se entretenimento popular de largo alcance. Segundo Gilmar Mascarenhas de Jesus, a prática futebolísitca introduziu- se na vida urbana brasileira justamente no momento em que se vivia a conjuntura de acirramento das tensões raciais, ainda mais no Rio Grande do Sul, onde o afluxo de imigrantes europeus foi particularmente maciço, fazendo com que a situação do negro ganhasse contornos dramáticos, terreno fértil para a ideologia anti-negro.154 O futebol foi trazido para Cachoeira pelos ingleses que assumiram o estabelecimento industrial Charqueada do Paredão, em fins do século XIX. Nas décadas de 10-20, surgiram os primeiros clubes, Cachoeira Futebol Clube e Sport Clube Cachoeirense (transformado em Guarany Futebol Clube). Os jogos ocorriam em campos fora da zona urbana central: bairro Fialho (Santo Antônio), Coxilha do Fogo (Soares), Vila Tibiriçá (zona do meretrício), Vila Militar, Castagnino, Chácara dos Portinho, Mauá, Tabajara, Alto dos Loretos ou mesmo entre o centro e a zona alta, na rua Júlio de Castilhos. A exceção era o campo próximo dos engenhos de arroz, mesmo assim, fora da visão da elite.155 Na busca pelo corpo saudável, ganhou força o hábito de banhar-se publicamente, nada novo nem local. Na Europa, a partir da metade do século XVIII, o banho de mar e nas estâncias termais viraram moda entre a elite ao mudar radicalmente sua concepção, de ameaçador para algo terapêutico, capaz de curar as moléstias, sendo prescritos por médicos e higienistas. A nova ordem era fortificar e repor a energia que a vida urbana exauria.156 Pela grande distância do litoral, a elite cachoeirense adotou a moda dos banhos terapêuticos no próprio rio. Desde o século XIX, famílias usavam o rio para recreação. Muitas chegavam a passar a temporada acampadas, principalmente próximo da cachoeira. Além das ninfas que se banhavam quase diariamente, idosos com reumatismo procuravam as águas do Jacuí. Suas margens eram consideradas local pitoresco e aprazível, com árvores copadas fornecendo sombra perfeita para os piqueniques. Organizavam- se bailes ao som de violas, violões, acordeonas e instrumentos de sopro regidos pelos musicistas locais. Os pescadores forneciam piavas e dourados para os veranistas intercalarem com os churrascos. Os adultos aproveitavam a queda da água sentados em pedras retilíneas, enquanto as crianças brincavam nas piscinas naturais, sob olhares maternos. Os olhos masculinos ficavam atentos nas mulheres que se banhavam vestidas de longos camisões. Nos anos 1910-20, o veraneio nas margens do rio diminuiu, dando lugar à temporada de praia. Uma das causas teria sido porque uma jovem da alta sociedade acidentou-se na cascata em 1912, escorregando nas pedras e sendo levada pelas corredeiras.157 Todavia, a razão mais concreta foi a construção de vários trechos ferroviários em todo Estado, em fins do século XIX e início do XX, melhorando consideravelmente o acesso ao litoral, permitindo que parte da elite se deslocasse para as praias. Da estação de Cachoeira era possível ir de trem até Santo Amaro (atual Amarópolis), seguir de vapor até Porto Alegre e de lá rumar para o litoral norte, principalmente para praias como Cidreira e Tramandaí. Outra possibilidade era seguir para Cacequi e de lá embarcar para Bagé, Rio 153 Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896- 1996, op.cit., 1996, p.39-47 e 79-80 154 JESUS, Gilmar Mascarenhas de. O futebol da canela preta: o negro e a modernidade em Porto Alegre. In: Revista Anos 90, Porto Alegre/RS: UFRGS/PPG História, n.11, julho, 1999 [p.144-160] 155 JP, 22/12/2005, Entrevista com Sérgio Engel. Futebol dos anos dourados na zona norte [disponível em http://www.jornaldopovo.com.br/default.php?arquivo=_ materia.php&intIdEdicao=898&intIdConteudo=5792 4 – acessado em 22/3/2006] 156 CORBIN, Alain. O território do vazio: A praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p.81 157 JP, 24/1/1935 Praia de Banhos. Seutonio, p.1 e 27/1/1935 Praia de banho. Seutonio II, p.1 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado172 173 A característica de distinção social, predominante entre as elites de Cachoeira, começaram a sofrer profundas modificações nos anos que se seguiram a 1930, devido ao considerável aumento do fluxo de migrantes que, pouco-a-pouco, deixariam de respeitar os limites simbólicos impostos na ocupação do espaço central, gerando protestos por parte da elite e modificações em suas práticas cotidianas. Para compreensão desse processo, analiso no próximo capítulo os aspectos econômicos e urbanos de Cachoeira, sem perder de vista sua inserção no contexto externo. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach178 3. A economia e a chegada dos novos bárbaros 3.1. Abundância e crise Porque as pessoas migram? O ditado em latim Ubi bene ibi patria (Onde estás bem, aí está tua pátria) resume a questão do deslocamento populacional de forma contundente. Herbert Klein estabelece como impulso inicial da imigração a constatação da impossibilidade de sobrevivência nos meios tradicionais nas comunidades de origem. Para ele, a condição econômica constitui fator de expulsão mais importante, sendo essencial entender as mudanças responsáveis pelo agravamento da situação crítica que afeta a capacidade potencial que os dispostos a migrar têm de enfrentar. Nos grandes deslocamentos populacionais ocidentais nos séculos XVIII, XIX e XX importaria, predominantemente, o acesso à terra e ao alimento, a variação da produtividade e o desequilíbrio populacional, crescimento do número de membros da família não acompanhada pari passu pela produtividade da terra.1 A evolução populacional européia, conforme Neide Patarra, deu-se em três etapas distintas. A primeira, com alto crescimento potencial, na fase pré-industrial, onde as taxas de natalidade e de mortalidade permanecem altas. A segunda, com crescimento transitório, acompanhando o processo de industrialização de meados do século XVIII, onde a taxa de mortalidade teve declínio sem contrapartida inicial da diminuição da natalidade. A mortalidade decresceu lenta e 1 KLEIN, Herbert S. Migração internacional na história das Américas. In: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América. 2a ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 13-31 progressivamente, provocada por melhorias médico-sanitárias, como vacinação, saneamento e alimentação. Em contrapartida, a natalidade, que até então assegurava pequeno crescimento populacional, manteve- se alta, gerando desequilíbrio populacional e colocando em marcha grande número de pessoas, principalmente para as Américas, que atraíam o excedente populacional europeu dada as oportunidades aventadas em termos de abertura de fronteiras e ocupação territorial para a própria manutenção das colônias. Nesta fase, que se prolongou até meados do século XX, deram-se os ajustes específicos ao modo de vida urbano- industrial. Na terceira etapa, houve declínio incipiente, quando a taxa de natalidade caiu a ponto de tornar-se menor que a de mortalidade, ocasionando declínio da população e, posteriormente, seu envelhecimento.2 O contexto populacional da América Latina concentrou sobremaneira as etapas da chamada transição demográfica vista na Europa. Thomas Merrick ressalta para o fato que a região passou de 110 milhões para 450 milhões de habitantes em pouco mais de um século, crescimento ocorrido prioritariamente nas zonas urbanas.3 Até o primeiro quartel do século XX, a expansão econômica produzida pelas exportações estimulou o crescimento de cidades portuárias ou administrativas, mas a maior parte da população latino-americana ainda encontrava-se no campo. A economia de exportação gerou prosperidade, mas somente para a elite que promoveu melhorias urbanas a fim de sobreviver às doenças. A América Latina continuou sendo predominantemente rural até fins dos anos 20, com somente 17% da população residindo em cidades com mais de 20 mil habitantes.4 A partir da década de 30, o mundo ocidental começou a sofrer profundas modificações que resultaram na Segunda Guerra Mundial, conflito bélico que marcaria os rumos da civilização humana. A América Latina sentiu os reflexos dessas mudanças através das modificações estruturais políticas, populacionais, econômicas e urbanas. No Brasil, o autoritarismo dos coronéis se transmudaria em populismo, a economia de exportação primária e importação de bens manufaturados da Primeira República sofreria significativas mudanças com a incorporação paulatina de novas tecnologias, obrigando verdadeiras multidões a deixarem o campo rumo às cidades, provocando intensa desorganização no modo de viver de todos. No qüinqüênio 1930-35, a população brasileira foi estimada em 40 milhões. No Rio Grande do Sul eram 2,1 milhões, 180 mil somente na capital Porto Alegre. O município de Cachoeira do Sul contava com aproximadamente 84 mil habitantes, 20 mil na zona urbana e vilas e 64 mil na zona rural (76,2%), proporção próxima à gaúcha e à brasileira. O perfil rural mostrava-se pelos 94% de municípios brasileiros com menos de 75 mil habitantes.5 Desta maneira, a reorganização mundial das forças sócio-político- econômicas, a incipiente mecanização do campo, o aceno de melhores condições de vida na cidade e a expectativa de emprego proporcionada pela industrialização nos decênios seguintes, puseram em marcha milhões de pessoas, resultando na necessidade de ampliação das fronteiras agrícolas para áreas pouco povoadas ou na migração para centros urbanos maiores, fazendo com que a população das cidades aumentasse exponencialmente, gerando necessidades de melhorias nos serviços urbanos e, conseqüentemente, transformando as relações sociais. Nas décadas que se seguiram a 1930, o perfil demográfico se transformaria gradativamente, com a prevalência do urbano sobre o rural. De quarta parte de moradores urbanos passou à metade nos anos 50-60, tendência 2 PATARRA, Neide. Dinâmica populacional e urbanização no Brasil: o período pós-30. In: FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. op.cit., 1984, p.249-268. Entende-se transição demográfica como as transformações populacionais que operam ao mesmo tempo que as transformações globais (econômicas, sociais, políticas, culturais) e que conduzem uma sociedade a outro modo de vida. 3 MERRICK, Thomas W. La poblácion de América Latina, 1930-1990. In: BETHELL, Leslie (ed). História de América Latina. Economia y sociedad desde 1930. Barcelona: Grijalbo Mondadori, 1993, p.165-215 4 BETHELL, Leslie (ed). História de América Latina. Economia y sociedad desde 1930. op.cit., 1993, p.165 5 Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Anuário estatístico do Brasil 1947. Rio de Janeiro: IBGE, v. 8, 1948. Anuário estatístico do Brasil 1937. Rio de Janeiro: IBGE,v. 3, 1937. Anuário estatístico do Brasil 1938. Rio de Janeiro: IBGE, v. 4, 1939. Anuário estatístico do Brasil 1939/1940. Rio de Janeiro: IBGE, v. 5, 1941. Anuário estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, 1946. Anuário estatístico do Brasil 1946. Rio de Janeiro: IBGE, v. 7, 1947. Anuário estatístico do Brasil 1946. Rio de Janeiro: IBGE, v. 7, 1947 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach A economia e a chegada dos novos bárbaros180 181 agravada nas décadas seguintes.6 O processo de urbanização decorrente dessas mudanças econômicas-demográficas mundiais marcaram a sociedade brasileira, por conseqüência a gaúcha e a cachoeirense. O carro-chefe que marca a mudança populacional brasileira, de predominantemente rural para predominantemente urbana, foi o processo de industrialização iniciado em fins do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, mas consolidado no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). Num primeiro momento, a industrialização deu-se como forma de substituir as importações, a partir da formação e ampliação do mercado interno. Esta etapa estendeu-se até meados dos anos 50, quando a industrialização passou a fase da internacionalização do mercado e aprofundamento do caráter monopólico da economia.7 No período em questão, estabeleceram-se as condições necessárias para a adoção do modelo econômico de desenvolvimento capitalista com forte participação estatal. Tanto no cenário nacional quanto no internacional, o Estado passou a definir diretrizes de investimento, financiar o desenvolvimento de áreas de interesse público e mesmo assumir total responsabilidade em alguns setores estratégicos, originando os monopólios estatais. Subsidiada politicamente pelo golpe militar de 30, a industrialização brasileira cresceu em ritmo acelerado, atraindo cada vez mais migrantes para as cidades, dando origem ao nascimento de grupos sociais antagônicos: a burguesia ou elite industrial e o proletariado urbanos, além dos intermediários ligados às atividades periféricas da economia agrícola exportadora, como comércio, transporte e bancos.8 A industrialização do Rio Grande do Sul ocorreu de forma peculiar, voltada essencialmente aos mercados locais, atendendo consumidores através de diversificada produção. De certa forma, o dinamismo das exportações agrícolas do Estado – também diversificada devido ao fornecimento de gêneros alimentícios e matérias-primas provenientes das zonas de colonização, exportadas para o centro do país – ditavam o volume industrial produzido para o mercado regional. No cerne da industrialização gaúcha estavam as manufaturas artesanais, de caráter doméstico ou mesmo comercial. Foram essas manufaturas, de origem colonial em sua maioria, que transformaram-se em pequenos e médios estabelecimentos febris. Da mesma forma, o mercado de trabalho no Estado proveio essencialmente da expansão demográfica da zona colonial, em atividades manufatureiras operadas por pequenos proprietários, familiares e eventuais empregados. Todavia, ao lado desses empreendimentos menores, crescia a quantidade de estabelecimentos ocupando maior número de operários assalariados, com processos de trabalho definidos pela ampla utilização da maquinaria.9 Cachoeira do Sul foi beneficiada pelo contexto econômico dos anos 30- 45, tendo crescimento industrial elevado, impulsionada que fora por abastecer o mercado interno, em grande parte regional. O parque industrial do município, no segunda metade dos anos 30, já contava com substantivo número de fábricas, principalmente na produção de gêneros alimentícios. Em 1937, dados oficiais apontam 160 fábricas ou oficinas com capital de 3.200:000$000 réis e produção no valor de 9.200:000$000 réis, empregando 500 operários e consumindo 446 HP de força motriz. Em 1938, o número de fábricas aumentou para 238, empregando 942 operários, utilizando força motriz de 1,3 mil HP e produzindo 29.000:000$000 réis. A tabela a seguir mostra os principais produtos fabricados no município e os respectivos produtores, em 1937: 6 Fonte: CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, op.cit., 1922. Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Anuário estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, 1946. Anuário estatístico do Brasil 1950. Rio de Janeiro: IBGE, v. 11, 1951. Anuário estatístico do Brasil 1961. Rio de Janeiro: IBGE, v. 22, 1961. 7 Esta divisão é dada por LOPES, Juarez Rubens B. Redistribuição regional-urbana da população brasileira. In: Estudos CEBRAP 20, s/d. apud PATARRA, Neide. Dinâmica populacional e urbanização no Brasil: o período pós-30. In: FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. op.cit., 1984, p.254-255 8 Ver BENETTI, Viviana. A corrente desenvolvimentista e o projeto político no Rio Grande do Sul: 1950/1962. Dissertação de Mestrado [orientador Marcos Justo Tramontini], São Leopoldo/RS: UNISINOS/PPG-História, 2002 [disponível em http://www1.capes. gov.br/teses/pt/2002_mest_unisinos_viviana_benetti.PDF – acessado em 14/1/2006] 9 Ver HERRLEIN Jr., Ronaldo. Desenvolvimento industrial e mercado de trabalho no Rio Grande do Sul: 1920-1950. In: Revista de Sociologia e Política. n.14 Curitiba jun. 2000 [disponível em www.scielo.br/scielo.php?s cript=sci_arttext&pid=S0104- 44782000000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 16/1/2006], PESAVENTO, Sandra Jatahy. RS: a economia & o poder nos anos 30. op.cit., 1983 e PESAVENTO, Sandra Jatahy. História da indústria sul-rio-grandense. Guaíba/RS: Riocell, 1985 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach A economia e a chegada dos novos bárbaros182 183 Os profissionais liberais instalados no município igualmente atestava seu desenvolvimento: dezessete médicos, com especialidades diversas, como cirurgias, parteiros, doenças de crianças, de olhos, ouvidos, nariz, garganta, de pele, tuberculose, moléstia de senhoras; treze dentistas, entre cirurgiões e práticos licenciados, com especialidades em pontes, dentaduras, extração de nervos e dentes com anestesia; quatro parteiras; quatro engenheiros e construtores; doze advogados em causas criminais, civis, comerciais.12 A pujança da economia local mostrava-se nas seis agências de bancos, todas localizadas na zona baixa: Banco do Brasil, Banco Nacional do Comércio, Banco do Rio Grande do Sul, Banco da Província do Rio Grande do Sul, Banco Agrícola Mercantil e Banco Pfaifer. As fotografias a seguir mostram a fachada dos edifício do Banco Pelotense, posteriormente sede do Banco do Rio Grande do Sul, e do Banco Agrícola Mercantil, ambos erguidos em esquinas do final da rua Sete de Setembro, próximo da Estação Ferroviária, no Largo do Colombo. Figura 80 – Edifício do Banco Pelotense, posteriormente sede do Banco do Rio Grande do Sul. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul A crescente industrialização e a relativa pujança econômica, vistas a partir de 30, aumentaram a necessidade de prover o município com infra- estrutura compatível, como rodovias, telefonia e energização elétrica. No caso da força motriz gaúcha, a situação de abastecimento foi precária até o Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, concebido pelo governo estadual de forma pioneira em 1945. Até então, a geração de energia no Estado se dava prioritariamente pela queima do carvão (85%) e hidráulica (15%), num verdadeiro “mosaico de usinas” devido as mais de 130 empresas que operavam (12,88% do total no Brasil) no início dos anos 30.13 Gunter Axt, num estudo sobre a formação da empresa pública no setor elétrico gaúcho, ressalta para o fato de que até a implantação do Estado Novo, em 1937, a política do governo estadual para com o setor elétrico foi ambígua, uma vez que sustentava discurso intervencionista e sensível 12 PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1940, p.152 e 266-274. Nos Anexos VI, a relação nominal de profissionais liberais cachoeirenses em 1940. 13 MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. op.cit., p.119-121 Figura 79 – Edifício do Banco Agrícola Mercantil. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach A economia e a chegada dos novos bárbaros188 189 à utilização dos potenciais hídricos, ao mesmo tempo que não apoiava os municípios, maiores operadores públicos na época, não tinha nenhum tipo de plano de investimentos no setor e chegava a obstruir, mediante a negação de incentivos, projetos para construção de centrais hidrelétricas pela iniciativa privada nacional.14 Em Cachoeira, foi construída às margens do rio, no final dos anos 30, a Usina Nova na Chácara Carvalho. Devido ao racionamento imposto pela escassez de óleo diesel durante a guerra, ela utilizava motor a gás e lenha como combustível.15 Na telefonia, a precariedade foi semelhante. O sistema não mudou praticamente nada desde os primeiros telefones instalados na primeira década do século. Em 1938, o Jornal do Povo anunciava a assinatura de contrato entre a concessionária e a municipalidade para instalação de serviço telefônico automático. Mesmo com a pretensão, as críticas foram ferrenhas, chegando a afirmar-se que a utilização de telefone em Cachoeira era só em casos extremos: “Só se lança mão dele quando não há, mesmo, outro jeito. Está se tornando parecido com aquelas bombas de incêndio colocadas nos grandes prédios e de que só se lança mão em caso de fogo”.16 Apesar disso, acreditava-se que, em 1940, a Companhia Telefônica Riograndense em muito contribuía para o “crescente desenvolvimento do progresso do município”. Neste ano, a cidade possuía 340 telefones instalados, entre sede e distritos. A linha ligando Cachoeira a Restinga Seca era de cobre tipo standard; entre Cachoeira e Caçapava e São Sepé as linhas eram ligadas em circuito duplo.17 As maiores preocupações não estavam na necessidade de maior força motriz ou na precariedade dos serviços telefônicos, mas na melhoria das precárias redes de tráfego rodoviário, ferroviário e fluvial. Em termos de rodovias, a quase totalidade das estradas em solo cachoeirense eram de terra. A construção e conservação de estradas ligando a sede aos distritos do interior ou a municípios circunvizinhos, incluindo aí pontilhões, bueiros e muros de arrimo, foram preocupação presente em várias administrações. Freqüentemente, o Jornal do Povo publicava a coluna Noticias do interior do município, trazendo principalmente o estado das estradas, que tornavam-se intransitáveis após o período de chuvas. O transporte de passageiros e cargas pelo interior era verdadeira “aventura”.18 As obras de conservação limitavam-se aos meses mais quentes e secos. O item “Estradas, pontes e pontilhões” ocupa boa parte do Relatório da Intendência de 1930. O consenso da edilidade era de que melhorias nas estradas, ligando a sede aos distritos, trariam aumento da riqueza municipal, visto que seria possível escoar a produção da zona de colonização alemã e italiana. Para tanto, foi adquirida a máquina niveladora Adams-Caterpillar. Somado aos serviços de mão-de-obra, a intendência gastou um total de 28:727$152 réis, sendo 6.616$750 réis com a conservação das estradas, 4.457$500 réis com despesas alfandegárias da máquina niveladora, 3.169$902 réis com materiais e 14:483$000 réis com seis meses de conservação da estrada Cachoeira- Jacuí, visto que no segundo semestre a conservação desta estrada passou para responsabilidade do governo estadual. Desta forma, o gasto total, entre mão-de-obra e outras despesas, foi de 131:027$152 réis. No ano de 1929, para o 4o, 5o, 6o, 7o e 8o distritos, foram contratados 3.410 funcionários, por seis dias semanais, com gastos salariais na ordem de 102:300$000 réis, conforme tabela a seguir:19 14 AXT, Gunter. A formação da empresa pública no setor elétrico gaúcho. In: Revista Anos 90. Revista do PPG em História. Porto Alegre/RS: UFRGS, n.4, dezembro de 1995, p.77-86 15 JP, 25/12/1932 Noticiário. Pagamento efetuado pela Prefeitura, p.3. Ver ainda CORRÊA, Maria Letícia. O setor de energia elétrica e a constituição do Estado no Brasil: o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (1939-1954). Tese de Doutorado [orientadora Sônia Regina de Mendonça], Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, PPG-História, 2003 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw /resumo.html?idtese=200334631003010005P6 – acessado em 25/3/2005]. Neste trabalho a autora analisou as diferentes alternativas para a promoção do desenvolvimento do setor de energia elétrica, face à etapa da industrialização brasileira daquele momento, como parte de uma discussão mais ampla acerca dos rumos e da consolidação do capitalismo no Brasil. 16 JP, 8/9/1938 Noticiário. Telefones automáticos para a nossa cidade, p.3 e 12/3/1939 A companhia telefônica em Cachoeira do Sul, p.4 17 PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1940, p.126 18 JP, 30/6/1929 Noticias do interior do município. As estradas do inverno, p.6 e 15/12/ 1932 Noticiário. A Ponte sobre o arroio Nicolau, p.5 19 Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa, em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. Cachoeira: Officinas graphicas d’O Commercio, 1930, p.27-38 Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach A economia e a chegada dos novos bárbaros190 191 Tabela 2 – Gastos com melhorias nas estradas do interior, em 1929. Fonte: Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa, em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.27-38 Os trabalhos eram organizados por capatazes e fiscalizados pelos sub- intendentes de cada distrito, além do engenheiro da seção de obras. A mão-de-obra utilizada na conservação das estradas das chamadas zonas agrícolas era composta, em sua maioria, pelos próprios moradores das localidades. A fórmula utilizada permitia que o contribuinte optasse em pagar o valor estabelecido ou trabalhasse no serviço durante seis dias. O preço cobrado inicialmente pela municipalidade era de 30$000 réis por propriedade, independente do seu tamanho. Isso gerava distorção de pagamento entre grandes e pequenas propriedades. Em 1929, a intendência tentou modificar esse desequilíbrio. Nas zonas coloniais, aumentou o valor para 42$000 réis e limitou o pagamento em trabalho para quatro dias. A diferença, 14$000 réis, deveria ser paga em dinheiro, para cobrir gastos nas estradas principais, nas pontes, bueiros e pontilhões. Para os chamados distritos pastoris, a contribuição aumentou para 100$000 réis para estâncias com mais de duas quadras de sesmarias.20 Pelo cálculo, um estancieiro que possuísse 50 quadras pagava 100$000, enquanto 25 contribuintes que possuíssem até duas quadras de sesmarias cada um, pagariam um total de 250$000. A alteração gerou poucas modificações em termos de arrecadação, visto que as propriedades nesses distritos tinham poucas sub-divisões, redundando em prejuízos para a municipalidade que se via obrigada a gastar mais com o melhoramento das estradas onde predominavam as grandes propriedades, diferente das propriedades coloniais, onde o predomínio era de pequenas propriedades que, conseqüentemente, arrecadavam mais contribuições. Conforme o demonstrativo da receita, foram arrecadados 122:772$000 réis na rubrica “conservação de estradas”, um prejuízo de 8:255$152 réis no ano de 1929. Nos seis meses seguintes, de 1o de janeiro a 30 de agosto de 1930, a receita aumentou para 145:023$000 réis e as despesas para 165:943$867 réis, gerando prejuízo de 20:920$867 réis. A maior parte dos pontilhões, pequenas pontes com vãos menores a uma dezena de metros, era construído em madeira de lei com parte em alvenaria, normalmente a sustentação. O custo desse tipo de obra era relativamente baixo, quando comparado a pontes maiores que exigiam melhores estruturas. Para exemplificar, a reconstrução de sete pontilhões na estrada de Restinga a Dona Francisca (4o distrito) consumiu 5:093$800 réis, ou 727$685 réis para cada uma delas; um pontilhão de quatro metros, na localidade de Várzea do Meio (2o distrito), custou 1:500$000 réis, semelhante a de outro pontilhão construído na estrada do Vale Vêneto, sobre o Arroio Só (5o distrito). Já as pontes maiores custavam bem mais. A ponte metálica construída em Faxinal do Soturno (5o distrito) consumiu 553:087$102 réis; a reconstrução da ponte do Piquiri (2o distrito), 18:800$000 réis. Em vista dos valores elevados para construção de pontes, muitos passos eram transpostos por barcas rebocadas por lanchas a vapor, gasolina ou ainda por meio de cabos de aço, denominados “vai-vem”. Os serviços eram arrendados a terceiros. Os passos de maior movimento de Cachoeira eram o do Porto da cidade, Seringa e São Lourenço, todos no rio Jacuí. Conforme explicações do relatório, os passos sem obrigação de pagamento se davam por conta do pouco movimento. A tabela seguir enumera os passos existentes, os respectivos arrendatários e o valor do arrendamento anual: 20 Sesmaria é, originariamente, o lote de terra inculto ou abandonado, que os reis de Portugal cediam a sesmeiros que se dispusessem a cultivá-lo. No Brasil, essa antiga medida agrária é ainda hoje usada no Rio Grande do Sul, para áreas de campo de criação. Uma légua de sesmaria de campo tem 3.000 braças, ou 6.600 metros. Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach A economia e a chegada dos novos bárbaros192 193
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