Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O Estado e a Revolução - Vladimir Ilitch Lénine, Notas de estudo de Teoria Geral do Estado

O Estado e a Revolução - Vladimir Ilitch Lénine

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 31/08/2009

felipe-thomazi-12
felipe-thomazi-12 🇧🇷

1 documento

1 / 68

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe O Estado e a Revolução - Vladimir Ilitch Lénine e outras Notas de estudo em PDF para Teoria Geral do Estado, somente na Docsity! O Estado e a Revolução A doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução1 Vladimir Ilitch Lénine 1917 Escrito em Agosto-Setembro de 1917; O posfácio à 1ª Edição em 30 Novembro de 1917 O §3 do capítulo II, antes de 17 Dezembro de 1918 Publicado em brochura em 1918 em Petrogrado na editora Jizn i Znánie Presente tradução na versão das Obras Escolhidas de V.I.Lénine Edição em Português da Editorial Avante, 1977, t2, pp 219-305 Traduzido das O. Completas de V.I.Lénine 5ª Ed. russo t.33 pp 1-120 1 O Livro “O Estado e a Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução” foi escrito por Lénine na clandestinidade em Agosto-Setembro de 1917, quando se ocultava das perseguições do Governo Provisório burguês. Lénine, nos últimos anos de emigração, estudou com especial atenção o problema do carácter do poder de Estado proletário. No segundo semestre de 1916 expressou a ideia de que era necessário refutar as deturpações da doutrina de Marx sobre o Estado contidas nas obras de K. Kaustski e de outros oportunistas da social-democracia internacional. «Agora – escreveu Lénine a A. G. Chliápnikov – coloca-se na ordem do dia não só prosseguir a linha referendada por nós (contra o tsarismo, etc.) nas nossas resoluções e no folheto ... mas também depurá-las dos absurdos e confusões da negação da democracia (incluindo o desarmamento, a negação da autodeterminação, a negação “em geral”, errada teoricamente, da defesa da pátria, as vacilações quanto ao papel e ao significado do Estado geral, etc.)». No segundo semestre de 1916 N. I. Bukhárine defendeu numa série de artigos opiniões antimarxistas e semi- anarquistas acerca do Estado e da ditadura do proletariado. No artigo “A Internacional da Juventude”, publicado em Dezembro de 1916, Lénine criticou duramente a posição de Bukhárine e prometeu escrever um artigo pormenorizado sobre a atitude do marxismo em relação ao Estado. Numa carta datada de 4 (17) de Fevereiro de 1917, Lénine informou Alexandra Kollontai de que estava a finalizar a reparação das notas referentes a esse problema. As notas estavam reunidas num caderno a que deu o título “O Marxismo acerca do Estado”. O caderno continha citações de obras de Marx e Engels, assim como extratos de livros e artigos de Kaustsky, Pannekoek e Bernstein, com observações críticas, conclusões e sintetizações de Lénine. Os materiais reunidos por Lénine serviram de base ao seu livro “O Estado e a Revolução”. O livro, segundo o plano original de Lénine, seria constituído por sete capítulos, mas o sétimo capítulo, intitulado “A Experiência das revoluções russas de 1905 a 1917” não chegou a ser escrito. Conservaram-se os planos pormenorizados deste capítulo e da “Conclusão”. O “Estado e a Revolução” foi publicado após a Revolução Socialista de Outubro, em 1918. Na segunda edição da obra, publicada em 1919, o autor incluiu no segundo capítulo o novo subcapítulo “Como Marx colocava a questão em 1852”. PREFÁCIO À PRIMEIRA EDIÇÃO A questão do Estado adquire actualmente uma importância particular tanto no aspecto teórico como no aspecto político prático. A guerra imperialista acelerou e acentuou extraordinariamente o processo de transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado. A monstruosa opressão das massas trabalhadoras pelo Estado, que se funde cada vez mais estreitamente com as uniões omnipotentes de capitalistas, torna-se cada vez mais monstruosa. Os países avançados transformam-se - falamos da sua «retaguarda» - em presídios militares para os operários. Os horrores e as calamidades inauditos da guerra que se prolonga tornam a situação das massas insuportável, aumentam a sua indignação. A revolução proletária internacional amadurece visivelmente. A questão da sua atitude em relação ao Estado adquire uma importância prática. Os elementos de oportunismo acumulados durante décadas de desenvolvimento relativamente pacífico criaram a corrente do social-chauvinismo dominante nos partidos socialistas oficiais de todo o mundo. Esta corrente (Plekhánov, Potressov, Brechkovskaia, Rubanovitch, depois, sob uma forma um pouco velada, os senhores Tseretéli, Tchernov e C.ª na Rússia; Scheidemann, Legien, David e outros na Alemanha; Renaudel, Guesde, Vandervelde na França e na Bélgica; Hyndman e os fabianos em Inglaterra, etc., etc.), socialismo em palavras, chauvinismo de facto, caracteriza-se por uma adaptação vil e lacaiesca dos «chefes do socialismo » aos interesses não só da «sua» burguesia nacional mas precisamente do «seu» Estado, porque a maioria das chamadas grandes potências exploram e escravizam há muito toda uma série de povos pequenos e fracos. E a guerra imperialista constitui exactamente uma guerra pela partilha e a redistribuição deste género de saque. A luta para libertar as massas trabalhadoras da influência da burguesia em geral, e da burguesia imperialista em particular, é impossível sem uma luta contra os preconceitos oportunistas em relação ao «Estado». Examinamos em primeiro lugar a doutrina de Marx e de Engels sobre o Estado, detendo-nos de modo particularmente pormenorizado nos aspectos desta doutrina que foram esquecidos ou submetidos a uma deturpação oportunista. Ocupar-nos-emos depois em especial do principal representante dessas deturpações, Karl Kautsky, o chefe mais conhecido da II Internacional (1889- 1914), que sofreu uma bancarrota tão lamentável durante a guerra actual. Por fim, extrairemos os principais ensinamentos da experiência das revoluções russas de 1905 e especialmente de 1917. Esta última, visivelmente, termina actualmente (princípios de Agosto de 1917) a primeira fase do seu desenvolvimento, mas toda esta revolução em geral só pode ser compreendida como um dos elos na cadeia das revoluções proletárias socialistas provocadas pela guerra imperialista. A questão da atitude da revolução socialista do proletariado em relação ao Estado adquire, deste modo, não apenas uma importância política prática mas também uma importância da maior actualidade como questão do esclarecimento das massas sobre aquilo que terão que fazer num future próximo para a sua libertação do jugo do capital. O Autor Agosto de 1917. PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO A presente edição, a segunda, publica-se quase sem alterações. Acrescentou-se apenas o parágrafo 3 ao capitulo II. O Autor Moscovo. 17 de Dezembro de 1918. 2. DESTACAMENTOS ESPECIAIS DE HOMENS ARMADOS, PRISÕES, ETC. «Face à velha organização gentílica3 (de tribos ou de clãs) - prossegue Engels -, o Estado caracteriza-se em primeiro lugar pela divisão dos cidadãos segundo a região.» Esta divisão parece-nos «natural», mas exigiu uma longa luta contra a velha organização por gens ou por tribos. «... A segunda característica é a instituição de um poder público, o qual já não coincide directamente com a população que a si própria se organiza como força armada. Este poder público especial é necessário porque desde a divisão em classes se tornou impossível uma organização armada espontânea da população... este poder público existe em cada Estado; não consiste meramente de homens armados, mas também de apêndices materiais, prisões e instituições de coacção de toda a ordem, das quais a sociedade gentílica (de clãs) nada conheceu...» Engels desenvolve a noção desta «força» que se chama Estado, força nascida da sociedade, mas que se coloca acima dela e cada vez mais se aliena dela. Em que consiste fundamentalmente esta força? Em destacamentos especiais de homens armados tendo à sua disposição prisões, etc. Temos o direito de falar de destacamentos especiais de homens armados porque o poder público próprio de qualquer Estado «não coincide directamente» com a população armada, com a sua «organização armada espontânea». Como todos os grandes pensadores revolucionários, Engels procura chamar a atenção dos operários conscientes precisamente para aquilo que o filistinismo dominante apresenta como o menos digno de atenção, o mais habitual, consagrado por preconceitos não só tenazes mas, pode dizer-se, petrificados. O exército permanente e a polícia são os principais instrumentos da força do poder de Estado, mas - como poderia ser de outra maneira? Do ponto de vista da imensa maioria dos europeus do final do século XIX, a quem Engels se dirigia e que não tinham vivido nem observado de perto uma única grande revolução, isto não podia ser de outra maneira. Para eles é completamente incompreensível o que é a « organização armada espontânea da população». À questão de por que surgiu a necessidade de destacamentos especiais de homens armados (polícia, exército permanente), colocados acima da sociedade, que se alienam da sociedade, os filisteus europeus ocidentais e russos inclinam-se a responder com um par de frases copiadas de Spencer ou Mikhailovski, com uma referência à complexidade crescente da vida social, à diferenciação das funções, etc. Tal referência parece «científica» e adormece admiravelmente o filisteu, obscurecendo o principal e fundamental: a divisão da sociedade em classes inconciliavelmente hostis. Sem esta divisão, a «organização armada espontânea da população» distinguir-se-ia pela sua complexidade, pelo nível elevado da sua técnica, etc., da organização primitiva de um bando de macacos armados de paus, ou da de homens primitivos ou da de homens associados na sociedade de clãs, mas tal organização seria possível. 3 Organização gentílica da sociedade: regime da comunidade primitiva ou primeira formação económica-social da história da humanidade. A colectividade gentílica era uma colectividade de consanguíneos, ligados por laços económicos e sociais. O regime gentílico atravessou dois períodos: o matriarcado e o patriarcado. Este último terminou com a transformação da sociedade primitiva numa sociedade dividida em classes e com o aparecimento do Estado. A propriedade social dos meios de produção e a distribuição igualitária dos produtos constituíam a base das relações de produção do regime primitivo e correspondiam, no fundamental, ao baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e ao carácter que assumiam naquela época. Ela é impossível porque a sociedade da civilização está dividida em classes hostis e, alem disso, inconciliavelmente hostis, cujo armamento «espontâneo» conduziria a uma luta armada entre elas. Forma-se o Estado; cria-se uma força especial, destacamentos especiais de homens armados, e cada revolução, ao destruir o aparelho de Estado, mostra-nos uma luta de classes descoberta, mostra-nos claramente como a classe dominante se esforça por reconstruir os destacamentos especiais de homens armados que a servem, como a classe oprimida se esforça por criar uma nova organização deste género, capaz de servir não os exploradores, mas os explorados. No raciocínio citado, Engels coloca em teoria exactamente a mesma questão que qualquer grande revolução coloca na prática, de modo patente e, além disso, à escala da acção de massas, isto é, a questão da inter-relação entre os destacamentos «especiais» de homens armados e a organização armada espontânea da população». Veremos como esta questão é concretamente ilustrada pela experiência das revoluções europeias e russas. Mas voltemos à exposição de Engels. Ele indica que, às vezes, em certas regiões da América do Norte, por exemplo, este poder público é fraco (trata-se de uma excepção muito rara na sociedade capitalista e daquelas partes da América do Norte no seu período pré-imperialista em que predominava o colono livre), mas que, falando em geral, se reforça: «... Ele (o poder público) reforça-se, porém, na medida em que se agudizam os antagonismos de classe no seio do Estado e em que os Estados com fronteiras comuns se tornam maiores e mais populosos - olhemos apenas a nossa Europa de hoje, na qual a luta de classes e a concorrência de conquistas fizeram subir o poder público a um plano em que ele ameaça devorar toda a sociedade e mesmo o Estado ...» Isto foi escrito não mais tarde do que o começo dos anos 90 do século passado. O último prefácio de Engels tem a data de 16 de Junho de 1891. Então a viragem para o imperialismo - tanto no sentido da dominação completa dos trusts, como no sentido da omnipotência dos maiores bancos, como no sentido de uma grandiosa política colonial, etc. - apenas começava ainda em França, e era ainda mais fraca na América do Norte e na Alemanha. Desde então, a «concorrência de conquistas» deu um gigantesco passo em frente, tanto mais que, no começo do segundo decénio do século XX, o globo terrestre estava definitivamente partilhado entre estes «conquistadores concorrentes», ou seja, as grandes potências saqueadoras. Os armamentos militares e navais cresceram incrivelmente desde então, e a guerra de rapina de 1914-1917 pela dominação sobre o mundo da Inglaterra ou da Alemanha, pela partilha do saque, levou o «devorar» de todas as forças da sociedade pelo poder de Estado rapace até à beira de uma catástrofe completa. Engels soube indicar já em 1891 a «concorrência de conquistas» como um dos principais traços distintivos da política externa das grandes potências, e os canalhas do social-chauvinismo, em 1914- 1917, quando precisamente esta concorrência, muitas vezes agravada, gerou a guerra imperialista, encobrem a salvaguarda dos interesses espoliadores da «sua» burguesia com frases sobre a «salvaguarda da pátria», sobre a «defesa da república e da revolução», etc.! 3. O ESTADO - INSTRUMENTO DE EXPLORAÇÃO DA CLASSE OPRIMIDA Para manter um poder público especial, colocado acima da sociedade, são necessários impostos e uma dívida pública. «... Na posse do poder público e do direito de recolher os impostos - escreve Engels -, os funcionários ficam, como órgãos da sociedade, acima da sociedade. O livre respeito voluntário que era devido aos órgãos da constituição gentílica não é bastante para eles, mesmo se o pudessem ter...» Criam-se leis especiais acerca da santidade e imunidade dos funcionários. «O polícia mais miserável ... tem mais “autoridade” do que todos os órgãos da sociedade gentílica juntos; mas o príncipe mais poderoso e o maior estadista ou general da civilização bem podem invejar o mais humilde dirigente gentílico pelo respeito não forçado e incontestado que lhe é devido». Coloca-se aqui a questão da situação privilegiada dos funcionários como órgãos do poder de Estado. Indica-se como fundamental: o que é que os coloca acima da sociedade? Veremos como esta questão teórica foi resolvida na prática pela Comuna de Paris em 1871, e esbatida de modo reaccionário por Kautsky em 1912. «...Como o Estado nasceu da necessidade de conter os antagonismos de classe, e como ele, porém, ao mesmo tempo, nasceu no meio do conflito destas classes, ele é, em regra, o Estado da classe mais poderosa, economicamente dominante, a qual por meio dele se torna também a classe politi- camente dominante e assim adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimi- da.» Não só os Estados antigo e feudal foram os órgãos da exploração dos escravos e dos servos mas também «o moderno Estado parlamentar é instrumento da exploração do trabalho assalariado pelo capital. No entanto, ocorrem excepcionalmente períodos em que as classes em luta se mantém uma à outra tão perto do equilíbrio que o poder de Estado, como mediador aparente, alcança mo- mentaneamente uma certa autonomia face a ambas ...» Assim a monarquia absoluta dos sec. XVII e XVIII, o bonapartismo do primeiro e do segundo impérios em França, Bismarck na Alemanha. Assim, acrescentaremos nós, o governo de Kérenski na Rússia republicana, depois de passar a perseguir o proletariado revolucionário num momento em que os Sovietes, devido à direcção dos democratas pequeno-burgueses, são já impotentes, e a burguesia não é ainda suficientemente forte para pura e simplesmente os dissolver. Na república democrática - prossegue Engels - «a riqueza exerce o seu poder indirectamente, mas com tanto mais segurança», a saber: em primeiro lugar, por meio da «corrupção directa dos funcionários» (América), em segundo lugar por meio da «aliança de governo e Bolsa» (França e América). Actualmente, o imperialismo e a dominação dos bancos «desenvolveram» até uma arte extraordinária ambos estes métodos de defender e pôr em prática a omnipotência da riqueza em quaisquer repúblicas democráticas. Se, por exemplo, logo nos primeiros meses da república democrática na Rússia, poder-se-ia dizer durante a lua-de-mel do casamento dos «socialistas» - dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques - com a burguesia no governo de coligação, o Sr. Paltchinski sabotou todas as medidas para domar os capitalistas e o seu banditismo, a sua pilhagem do tesouro por meio dos fornecimentos de guerra, se depois de ter saído do ministério o Sr. Paltchinski (substituído, naturalmente, por um outro Paltchinski, absolutamente igual) foi «premiado» pelos capitalistas com um lugarzinho com um vencimento de 120 000 rublos por ano, então o que é isto? corrupção directa ou indirecta? uma aliança do governo com os consórcios capitalistas, ou «apenas» relações amistosas? Que papel desempenham os Tchernov e os Tseretéli, os Avxentiev e os Skobelev? - São aliados «directos» dos milionários dilapidadores dos dinheiros públicos, ou apenas indirectos? Primeiro. Logo ao princípio deste raciocínio, Engels diz que o proletariado, ao tomar o poder de Estado, «com isto suprime o Estado como Estado». «Não é costume» pensar no que isto significa. Habitualmente, isto ou é ignorado completamente ou considerado qualquer coisa como uma «fraqueza hegeliana» de Engels. Na realidade, essas palavras exprimem resumidamente a experiência de uma das maiores revoluções proletárias, a experiência da Comuna de Paris de 1871, de que falaremos mais pormenorizadamente no lugar próprio. De facto, Engels fala aqui de «supressão» do Estado da burguesia pela revolução proletária, ao passo que as palavras sobre a «extinção» se referem aos resíduos do Estado proletário, depois da revolução socialista. O Estado burguês, segundo Engels, não «se extingue» mas «é suprimido» pelo proletariado na revolução. O que se extingue depois desta revolução é o Estado proletário, ou um semi-Estado. Segundo. O Estado é uma «força especial para a repressão». Esta definição admirável e extremamente profunda de Engels é dada por ele aqui com a mais completa clareza. E daí resulta que a «força especial para a repressão» do proletariado pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma «força especial para a repressão» da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a «supressão do Estado como Estado». É nisso que consiste o «acto» da tomada de posse dos meios de produção em nome da sociedade. É evidente por si mesmo que uma tal substituição de uma «força especial» (burguesa) por outra «força especial» (proletária) não pode de maneira nenhuma ter lugar sob a forma de «extinção». Terceiro. Ao falar de «extinção» e, ainda com mais relevo e colorido, de «adormecimento», Engels refere-se de forma absolutamente clara e determinada à época depois «da tomada de posse dos meios de produção pelo Estado em nome de toda a sociedade», isto é, depois da revolução socialista. Todos sabemos que, nesse momento, a forma política do «Estado» é a democracia mais completa. Mas não vem à ideia de nenhum dos oportunistas que deturpam sem vergonha o marxismo que se trata aqui, consequentemente, em Engels, de «adormecimento» e de «extinção» da democracia. Isto parece muito estranho à primeira vista. Mas isto só é «ininteligível» para quem não tenha reflectido no facto de que a democracia é também um Estado e que, consequentemente, a democracia também desaparece quando desaparece o Estado. Só a revolução pode «suprimir» o Estado burguês. O Estado em geral, isto é, a democracia mais completa, apenas pode «extinguir- se». Quarto. Ao formular a sua famosa tese: «O Estado extingue-se», Engels explica logo, de forma concreta, que esta tese é dirigida tanto contra os oportunistas como contra os anarquistas. Além disso, em Engels está colocada em primeiro lugar a conclusão da tese sobre a «extinção do Estado», que é dirigida contra os oportunistas. Pode-se apostar que, em 10 000 pessoas que leram ou ouviram qualquer coisa da «extinção» do Estado, 9990 não sabem ou não se lembram em absoluto que Engels não dirigia unicamente contra os anarquistas as suas conclusões. E, das restantes dez pessoas, nove não sabem com certeza o que é o «Estado livre do povo» e porque é que no ataque a esta palavra de ordem está contido o ataque aos oportunistas. Assim se escreve a história! Assim se realiza a adaptação imperceptível da grande doutrina revolucionária ao filistinismo dominante. A conclusão contra os anarquistas foi mil vezes repetida, banalizada, metida na cabeça da maneira mais simplista, adquiriu a solidez de um preconceito. E a conclusão contra os oportunistas foi obscurecida e «esquecida»! O «Estado livre do povo» era uma reivindicação programática e uma palavra de ordem corrente dos sociais-democratas alemães dos anos 70. Nenhum conteúdo político, excepto uma descrição pequeno-burguesa e enfática do conceito de democracia, existe nesta palavra de ordem. Na medida em que nela se fazia legalmente alusão à república democrática, Engels estava pronto a «justificar» «temporariamente» esta palavra de ordem de um ponto de vista de agitação. Mas era uma palavra de ordem oportunista, porque exprimia não apenas o embelezamento da democracia burguesa mas também a incompreensão da crítica socialista de todo o Estado em geral. Somos pela república democrática como melhor forma de Estado para o proletariado sob o capitalismo, mas não temos o direito de esquecer que a escravatura assalariada é o destino do povo mesmo na república burguesa mais democrática. Mais ainda. Qualquer Estado é uma «força especial para a repressão» da classe oprimida. Por isso, qualquer Estado não é livre nem do povo. Isto foi explicado muitas vezes por Marx e Engels aos seus camaradas de partido nos anos 70.5 Quinto. Naquela mesma obra de Engels, da qual todos recordam o raciocínio acerca da extinção do Estado, existe um raciocínio sobre a importância da revolução violenta. A apreciação histórica do seu papel transforma-se em Engels num verdadeiro panegírico da revolução violenta. Disto «ninguém se lembra», não é costume, nos partidos socialistas contemporâneos, falar, nem sequer pensar, na importância desta ideia, estas ideias não desempenham nenhum papel na propaganda e agitação quotidianas entre as massas. E, entretanto, estão indissoluvelmente ligadas à « extinção» do Estado, num todo harmonioso. Eis o raciocínio de Engels: «Que a violência, porém, ainda desempenha outro papel na história» (alem do de ser agente do mal), «um papel revolucionário, que ela, nas palavras de Marx, é a parteira de toda a velha sociedade que anda grávida com uma nova6, que ela é o instrumento com o qual o movimento social se realiza e quebra formas políticas petrificadas, mortas - sobre isto não há uma palavra do Senhor Dühring. Só com suspiros e gemidos admite a possibilidade de talvez vir a ser necessária a violência para o derrubamento da economia de exploração - infelizmente!, pois todo o uso de violência desmoraliza o que a usa. E isto em face do elevado ascenso moral e espiritual que era a consequência de toda a revolução triunfante! E isto na Alemanha, onde um choque violento, a que o povo pode vir a ser obrigado, teria pelo menos a vantagem de exterminar o servilismo que penetrou na consciência nacional a partir da humilhação da Guerra dos Trinta Anos7. E este modo de pensar de pregador, débil, sem seiva nem vigor, reivindica impôr-se ao partido mais revolucionário que a história conhece?» (p.193 da 3ª ed. alemã, fim do cap.4, parte II). Como se pode unir numa mesma doutrina este panegírico da revolução violenta, insistentemente apresentado por Engels aos sociais-democratas alemães de 1878 a 1894, isto é, até à sua própria morte, e a teoria da «extinção» do Estado? Habitualmente une-se um e outra com a ajuda do eclectismo, tomando arbitrariamente (ou para agradar aos detentores do poder), sem princípios ou de modo sofístico, ora um ora outro argumento, e em 99 casos em 100, se não mais, avança-se para primeiro plano precisamente a «extinção». A dialéctica é substituída pelo eclectismo: este é o fenómeno mais habitual, mais difundido na literatura social-democrata oficial dos nossos dias em relação ao marxismo. Tal substituição, naturalmente, não é uma novidade: observou-se mesmo na história da filosofia grega clássica. Na adaptação do marxismo ao oportunismo, a adaptação da dialéctica ao eclectismo é a que engana as massas com maior facilidade, dá uma satisfação aparente, tem pretensamente em conta todos os 5 Lénine refere-se às obras de Karl Marx “Crítica do Programa de Gotha” (capítulo IV) e de F. Engels “Anti- Dühring”, e também à carta de F. Engels a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 19, 20, 34) 6 Ver Karl Marx, O Capital, t. I 7 Guerra dos Trinta Anos (1618-1648): guerra em que participou toda a Europa e foi consequência de uma agudização das contradições entre diversos grupos de Estados europeus e que tomou a forma de luta entre protestantes e católicos. Inicialmente a guerra caracterizou-se pela resistência contra as forças reaccionárias da Europa feudal e absolutista, mas mais tarde, especialmente a partir de 1635, traduziu-se numa série de invasões do território da Alemanha por Estados estrangeiros rivais. A guerra terminou em 1648 com a conclusão do Tratado de Vestefália, que confirmou o fraccionamento político da Alemanha. aspectos do processo, todas as tendências do desenvolvimento, todas as influências contraditórias, etc., mas, na realidade, não dá nenhuma concepção integral e revolucionária do processo do desenvolvimento social. Já dissemos acima, e mostraremos mais pormenorizadamente adiante na nossa exposição, que a doutrina de Marx e de Engels sobre a inevitabilidade da revolução violenta diz respeito ao Estado burguês. Ele não pode ser substituído pelo Estado proletário (pela ditadura do proletariado) pela via da «extinção», mas, regra geral, apenas pela revolução violenta. O panegírico que lhe consagra Engels, e que está plenamente de acordo com repetidas declarações de Marx - (recordemos o fim da Miséria da Filosofia e do Manifesto Comunista com a declaração orgulhosa e aberta da inevitabilidade da revolução violenta; recordemos a crítica do programa de Gotha8 de 1875, quase trinta anos depois, em que Marx flagela implacavelmente o oportunismo deste programa) - este panegírico não é de modo nenhum uma «paixão», não é de modo nenhum uma declamação nem uma tirada polémica. A necessidade de educar sistematicamente as massas nesta e precisamente nesta concepção da revolução violenta está na base de toda a doutrina de Marx e de Engels. A traição à sua doutrina pelas correntes social-chauvinista e kautskiana hoje dominantes exprime-se com especial relevo no esquecimento tanto por uns como por outros desta propaganda, desta agitação. A substituição do Estado burguês pelo proletário é impossível sem revolução violenta. A supressão do Estado proletário, isto é, a supressão de todo o Estado, é impossível a não ser pela via da «extinção». Marx e Engels realizaram um desenvolvimento pormenorizado e concreto destas concepções, estudando cada situação revolucionária particular, analisando as lições da experiência de cada revolução particular. Passemos, pois, a esta parte da sua doutrina, sem dúvida a mais importante. 8 Programa de Gotha: programa do Partido Socialista Operário da Alemanha, aprovado em 1875 no Congresso realizado na cidade de Gotha que unificou os dois partidos socialistas alemães até então existentes na Alemanha: os eisenachianos (dirigidos por A. Bebel e por W. Liebknecht e influenciado ideologicamente por Marx e Engels) e os lassalianos. O Programa enfermava de ecletismo e era oportunista, já que os eisenachianos fizeram concessões aos lassalianos nas questões mais importantes e aceitaram as formulações destes. K. Marx, na sua obra “Crítica ao Programa de Gotha”, e F. Engels, na sua carta a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875, submeteram o projecto do Programa de Gotha a uma crítica demolidora, considerando-o um considerável retrocesso em comparação com o programa eisenachiano de 1869. O proletariado necessita do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores como para dirigir a imensa massa da população, o campesinato, a pequena burguesia, os semi-proletários, na obra da organização da economia socialista. Educando o partido operário, o marxismo educa a vanguarda do proletariado, capaz de tomar o poder e de conduzir todo o povo ao socialismo, de dirigir e de organizar uma nova ordem, de ser o educador, o dirigente e o chefe de todos os trabalhadores e explorados na obra da organização da sua vida social, sem a burguesia e contra a burguesia. Pelo contrário, o oportunismo hoje dominante educa no partido operário representantes dos trabalhadores mais bem pagos, que se desligam da massa, que se «arranjam» bastante bem sob o capitalismo, que vendem por um prato de lentilhas o seu direito de primogenitura, isto é, renunciam ao papel de chefe revolucionários do povo contra a burguesia. «O Estado, isto é, o proletariado organizado como classe dominante» - esta teoria de Marx está indissoluvelmente ligada a toda a sua doutrina sobre o papel revolucionário do proletariado na história. O remate deste papel é a ditadura proletária, o domínio político do proletariado. Mas se o proletariado precisa do Estado como organização especial da violência contra a burguesia, então daqui impõe-se por si uma conclusão: será concebível a criação de tal organização sem suprimir previamente, sem destruir a máquina do Estado que a burguesia criou para si própria? É a esta conclusão que conduz directamente o Manifesto Comunista e é desta conclusão que Marx fala quando faz o balanço da experiência da revolução de 1848-1851. 2. O BALANÇO DA REVOLUÇÃO Quanto à questão do Estado, que é a que nos interessa, Marx faz o balanço da revolução de 1848- 1851 no seguinte raciocínio da obra “O 18 de Brumário de Louis Bonaparte”: «... Mas a revolução é profunda. Ela ainda vai na viagem pelo purgatório. Ela faz o que tem a fazer com método. Até 2 de Dezembro de 1851» (dia da realização do golpe de Estado de Louis Bonaparte) «tinha realizado metade da sua preparação, e agora realiza a outra metade. Ela começou por aperfeiçoar o poder parlamentar para o poder derrubar. Agora, que o conseguiu, aperfeiçoa o poder executivo, redu-lo à sua expressão mais pura, isola-o, contrapõe-no a si como único objecto de censura, para concentrar contra ele todas as suas forças de destruição» (sublinhado nosso). «E quando tiver completado esta segunda metade do seu trabalho preparatório, a Europa saltará do seu lugar e gritará com júbilo: Bem revolvido, velha toupeira! «Este poder executivo com a sua imensa organização burocrática e militar, com a sua máquina de Estado de múltiplos degraus e artificial, uma hoste de funcionários de meio milhão ao lado de um exército de outro meio milhão, este terrível corpo de parasitas que, como uma retina, envolve o corpo da sociedade francesa e lhe obstrui todos os poros, nasceu no tempo da monarquia absoluta, no declínio do sistema feudal que ele ajudou a acelerar.» A primeira revolução francesa desenvolveu a centralização, «... mas ao mesmo tempo o volume, os atributos e os serventuários do poder do governo. Napoleão completou esta máquina do Estado». A monarquia legítima e a monarquia de Julho «nada lhe acrescentaram a não ser uma maior divisão do trabalho ... «... A república parlamentar viu-se finalmente obrigada, na sua luta contra a revolução, a reforçar os meios e a centralização do poder do governo com medidas repressivas. Todas as revoluções aperfeiçoaram esta máquina em vez de a quebrarem» (sublinhado nosso). «Os partidos que alternaram na luta pelo domínio viam na posse deste imenso edifício do Estado o despojo principal do vencedor» (O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, pp. 98-99, 4ª ed., Hamburg, 1907)12. 12 K. Marx, “O Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte” (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. (, S. 196- 197). Mais adiante Lénine cita o prefácio de Engels à 4ª Edição desta obra (Ibidem, Bd. 21, S. 248-249). Neste notável raciocínio, o marxismo dá um imenso passo em frente em comparação com o Manifesto Comunista. Aí a questão do Estado é ainda posta de uma maneira extremamente abstracta, nas noções e nos termos mais gerais. Aqui a questão é posta de maneira concreta e a conclusão é extraordinariamente precisa, definida, praticamente tangível: todas as revoluções anteriores aperfeiçoaram a máquina do Estado, mas é preciso demoli-la, quebrá-la. Esta conclusão é o principal, o fundamental na doutrina do marxismo sobre o Estado. E precisamente esta coisa fundamental não só foi completamente esquecida pelos partidos sociais- democratas oficiais dominantes mas francamente deturpada (como veremos mais adiante) pelo teórico mais destacado da II Internacional, K. Kautsky. No Manifesto Comunista faz-se o balanço geral da história, que obriga a ver no Estado o órgão de dominação de classe e conduz à conclusão necessária de que o proletariado não pode derrubar a burguesia sem ter conquistado primeiro o poder político, sem ter alcançado a dominação política, sem ter transformado o Estado em «proletariado organizado como classe dominante», e que este Estado proletário começará a extinguir-se logo após a sua vitória, porque numa sociedade sem contradições de classe o Estado é desnecessário e impossível. Aqui não se coloca a questão de como deve ser, do ponto de vista do desenvolvimento histórico, esta substituição do Estado burguês pelo proletário. Marx coloca e resolve precisamente esta questão em 1852. Fiel à sua filosofia do materialismo dialéctico, Marx toma como base a experiência histórica dos grandes anos da revolução - 1848- 1851. Também aqui a doutrina de Marx, como sempre, é um balanço da experiência iluminado por uma profunda visão filosófica do mundo e um rico conhecimento da história. A questão do Estado é posta de maneira concreta: como surgiu historicamente o Estado burguês, a máquina de Estado necessária à dominação da burguesia? quais as suas transformações, qual a sua evolução no decurso das revoluções burguesas e face às acções autónomas das classes oprimidas? quais as tarefas do proletariado em relação a esta máquina de Estado? O poder de Estado centralizado, próprio da sociedade burguesa, surgiu na época da queda do absolutismo. As duas instituições mais características desta máquina de Estado são: o funcionalismo e o exército permanente. Nas obras de Marx e Engels fala-se repetidas vezes de como mil laços ligam estas instituições precisamente à burguesia. A experiência de cada operário ilustra esta ligação com uma evidência e um relevo extraordinário. A classe operária aprende a conhecer esta ligação na sua própria pele - eis porque capta tão facilmente e assimila tão solidamente a ciência da inevitabilidade desta ligação, ciência que os democratas pequeno-burgueses ou negam por ignorância e por leviandade, ou ainda mais levianamente reconhecem «em geral», esquecendo-se de tirar as conclusões práticas correspondentes. O funcionalismo e o exército permanente são um «parasita» no corpo da sociedade burguesa, parasita gerado pelas contradições internas que dilaceram esta sociedade, mas precisamente um parasita que «obstrui» os poros vitais. O oportunismo kautskiano hoje dominante na social- democracia oficial considera que esta concepção do Estado como um organismo parasitário é um atributo particular e exclusivo do anarquismo. Evidentemente, esta deturpação do marxismo é extraordinariamente vantajosa para os filisteus que conduziram o socialismo à vergonha inaudita de justificar e embelezar a guerra imperialista por meio da aplicação a ela da noção de «defesa da pátria», mas tudo isto é uma deturpação incontestável. O desenvolvimento, o aperfeiçoamento, a consolidação deste aparelho burocrático e militar prosseguem através de todas as revoluções burguesas que a Europa viu muitas vezes desde o tempo da queda do feudalismo. Em particular, precisamente a pequena burguesia é atraída para o lado da grande e é submetida a ela, em grau significativo, por meio deste aparelho, que dá às camadas superiores do campesinato, dos pequenos artesãos, dos comerciantes, etc., lugarzinhos relativamente cómodos, tranquilos e honrosos, que colocam os seus possuidores acima do povo. Vede o que se passou na Rússia durante o meio ano que se seguiu a 27 de Fevereiro de 1917: os lugares de funcionários, que antes eram dados de preferência aos cem-negros, tornaram-se objecto de caça dos democratas-constitucionalistas, dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. No fundo, não se pensava em quaisquer reformas sérias, procurando-se adiá-las «até à Assembleia Constituinte» - e adiar a Assembleia Constituinte pouco a pouco até ao fim da guerra! Mas para a partilha da presa, para a ocupação dos lugarzinhos de ministros, de vice-ministros, de governadores- gerais, etc., etc., não perderam tempo nem esperaram por qualquer Assembleia Constituinte! O jogo das combinações em relação à composição do governo era apenas, no fundo, a expressão desta distribuição e redistribuição da «presa» que se fazia tanto em cima como em baixo, em todo o país, em todas as administrações centrais e locais. O resultado, o resultado objectivo do meio ano de 27 de Fevereiro a 27 de Agosto de 1917 é incontestável: as reformas são adiadas, realizou-se a distribuição dos lugarzinhos burocráticos, e os «erros» da distribuição foram corrigidos com algumas redistribuições. Mas, quanto mais se procede às «redistribuições» do aparelho burocrático entre os diversos partidos burgueses e pequeno-burgueses (entre os democratas-constitucionalistas, os socialistas- revolucionários e os mencheviques, para tomar o exemplo russo), tanto mais claro se torna para as classes oprimidas, com o proletariado à cabeça, a sua hostilidade irredutível em relação a toda a sociedade burguesa. Daí a necessidade para todos os partidos burgueses, mesmo para os mais democráticos e «revolucionário-democráticos» entre eles, de reforçar a repressão contra o proletariado revolucionário, de consolidar o aparelho de repressão, isto é, a própria máquina de Estado. Tal curso dos acontecimentos obriga a revolução a «concentrar todas as suas forças de destruição» contra o poder de Estado, obriga a colocar a tarefa não de melhorar a máquina de Estado mas de destruí-la, de suprimi-la. Não foram raciocínios lógicos, mas sim o desenvolvimento real dos acontecimentos, a experiência viva dos anos 1848-1851, que levaram a colocar assim a tarefa. Até que ponto Marx se atém estritamente à base factual da experiência histórica, vê-se pelo facto de que em 1852 não pôe ainda concretamente a questão de saber pelo quê substituir esta máquina de Estado que deve ser suprimida. A experiência não tinha ainda dado, então, materiais para tal questão, colocada pela história na ordem do dia mais tarde, em 1871. Em 1852 apenas se podia constatar, com a precisão da observação própria da história natural, que a revolução proletária se aproximou da tarefa de «concentrar todas as suas forças de destruição» contra o poder de Estado, da tarefa de «quebrar» a máquina de Estado. Aqui pode surgir a questão de se é justo generalizar a experiência, as observações e as conclusões de Marx, transplanta-las para limites mais amplos do que a história de França durante três anos, 1848-1851? Para analisar esta questão, lembraremos em primeiro lugar uma observação de Engels, e passaremos depois aos factos. «A França - escrevia Engels no prefácio à 3ª edição do 18 de Brumário - a França é o país em que as lutas históricas de classes foram sempre levadas, mais do que em qualquer outra parte, até à decisão final, o país em que, portanto, também as formas políticas em mudança, no seio das quais aquelas se movem e nas quais os seus resultados se resumem, estão marcadas com contornos mais precisos. Centro do feudalismo na Idade Média, país modelo da monarquia una de estados desde a Renascença, a França desmantelou o feudalismo na grande Revolução e fundou o domínio puro da burguesia com uma classicidade como em nenhum outro país europeu. E também a luta do proletariado em ascensão contra a burguesia dominante surge aqui numa forma aguda que é desconhecida em qualquer outra parte» (p. 4 na ed. de 1907). CAPÍTULO III O ESTADO E A REVOLUÇÃO. A EXPERIÊNCIA DA COMUNA DE PARIS DE 1871. A ANÁLISE DE MARX 1. EM QUE CONSISTE O HEROÍSMO DA TENTATIVA DOS COMMUNARDS15: É sabido que, alguns meses antes da Comuna, no Outono de 1870, Marx preveniu os operários parisienses, provando que a tentativa para derrubar o governo seria uma asneira inspirada pelo desespero16. Mas quando, em Março de 1871, se impôs aos operários a batalha decisiva, e eles a aceitaram, quando a insurreição se tornou um facto, Marx, apesar dos maus presságios, saudou com o maior entusiasmo a revolução proletária. Marx não se obstinou na condenação pedante de um movimento «extemporâneo», como o tristemente célebre renegado russo do marxismo Plekhánov, que em Novembro de 1905 escreveu encorajando a luta dos operários e dos camponeses, mas que, após Dezembro de 1905, gritava à maneira dos liberais: «não se devia ter pegado em armas.» Marx, porém, não apenas se entusiasmou com o heroísmo dos communards, «que assaltavam o céu», segundo a sua expressão17. No movimento revolucionário das massas, se bem que ele não tivesse atingido o seu fim, via uma experiência histórica com uma importância imensa, um certo passo em frente da revolução proletária mundial, um passo prático mais importante do que centenas de programas e de raciocínios. Analisar esta experiência, tirar dela lições de táctica, rever na base dela a sua teoria - eis como Marx colocou a sua tarefa. A única «correcção» que Marx julgou necessário fazer no Manifesto Comunista foi feita por ele na base da experiência revolucionária dos communards parisienses. O último prefácio à nova edição alemã do Manifesto Comunista, assinado por ambos os seus autores, é datado de 24 de Junho de 1872. Neste prefácio os autores, Karl Marx e Friedrich Engels, dizem que o programa do Manifesto Comunista «está hoje, num passo ou noutro, obsoleto». «... A Comuna, nomeadamente - prosseguem-, forneceu a prova de que “a classe operária não pode limitar-se a tomar conta da máquina de Estado que encontra montada e a pô-la em funcionamento para atingir os seus objectivos próprios”...» As palavras desta citação postas duas vezes entre aspas foram tiradas pelos autores da obra de Marx “A Guerra Civil em França”. Assim, Marx e Engels consideravam que uma das lições principais e fundamentais da Comuna de Paris tinha uma importância tão gigantesca que a introduziram como uma correcção essencial ao Manifesto Comunista. É extraordinariamente característico que precisamente esta correcção essencial tenha sido deturpada pelos oportunistas, e nove décimos, se não noventa e nove centésimos, dos leitores do Manifesto Comunista ignoram certamente o seu sentido. Adiante falaremos pormenorizadamente desta deturpação, num capítulo especialmente consagrado às deturpações. Por agora bastará assinalar que 15 Participantes na Comuna de Paris de 1871 (N. Ed.) 16 Lénine refere-se ao Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a guerra franco-prussiana. A todos os membros da Associação Internacional dos Trabalhadores na Europa e nos Estados Unidos, escrito por Marx de 6 a 9 de Setembro de 1870, em Londres. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 17, S.271). 17 Ver a carta de K. Marx a L. Kulgemann de 12 de Abril de 1871. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke. Bd. 33, S. 205). a «compreensão» corrente, vulgar, da famosa máxima de Marx citada por nós consiste em que Marx teria sublinhado aqui a ideia de um desenvolvimento lento, em oposição à conquista do poder, e outras coisas semelhantes. Na realidade, é exactamente o contrário. A ideia de Marx consiste em que a classe operária deve quebrar, demolir a «máquina de Estado que encontra montada» e não limitar-se simplesmente à sua conquista. Em 12 de Abril de 1871, isto é, exactamente durante a Comuna, Marx escreveu a Kugelmann: «Se fores ver o último capítulo do meu 18 de Brumário verificarás que declaro que a próxima tentativa da revolução francesa será não já, como até aqui, passar a maquinaria burocrática e militar de umas mãos para outras mas destruí-la» (sublinhado de Marx; no original está zerbrechen}, «e esta é a condição prévia de qualquer verdadeira revolução popular no continente. Esta é também a tentativa dos nossos heróicos camaradas de partido parisienses» (p. 709, Neue Zeit, XX, 1, 1901-1 902). (As cartas de Marx a Kugelmann foram publicadas em russo não menos do que em duas edições, uma das quais sob a minha redacção e com um prefácio meu.) Nestas palavras: «destruir a maquinaria de Estado burocrática e militar», encerra-se, numa expressão curta, a principal lição do marxismo sobre a questão das tarefas do proletariado relativamente ao Estado na revolução. E precisamente esta lição não só foi absolutamente esquecida mas ainda francamente deturpada pela «interpretação» dominante, kautskiana do marxismo! Quanto à referência de Marx ao 18 de Brumário, citámos atrás na íntegra a passagem correspondente. É interessante assinalar especialmente dois lugares no citado raciocínio de Marx. Em primeiro lugar, limita a sua conclusão ao continente. Isto era compreensível em 1871, quando a Inglaterra era ainda um modelo de país puramente capitalista mas sem casta militar e, em grau significativo, sem burocracia. Por isso Marx excluía a Inglaterra, onde a revolução e até a revolução popular parecia, e era então possível, sem a condição prévia da destruição da «máquina de Estado que encontra montada». Agora, em 1917, na época da primeira grande guerra imperialista, esta limitação de Marx já não é válida. Tanto a Inglaterra como a América, os maiores e os legítimos representantes em todo o mundo da «liberdade» anglo-saxónica no sentido da ausência de casta militar e de burocratismo, escorregaram completamente para o pântano lamacento e sangrento, comum a toda a Europa, das instituições burocrático-militares, que tudo subjugam, que tudo esmagam. Agora, tanto em Inglaterra como na América, «a condição prévia de qualquer verdadeira revolução popular» é a demolição, a destruição da «máquina de Estado que encontra montada» (preparada aí, de 1914 a 1917, até à perfeição «europeia», comum ao imperialismo). Em segundo lugar, merece uma especial atenção a observação extraordinariamente profunda de Marx de que a destruição da máquina burocrática e militar de Estado é «a condição prévia de qualquer verdadeira revolução popular». Esta noção de revolução «popular» parece estranha na boca de Marx, e os plekhanovistas russos e os mencheviques, esses discípulos de Struve que desejam passar por marxistas, poderiam talvez declarar um «lapso» tal expressão em Marx. Eles reduziram o marxismo a uma deturpação tão miseravelmente liberal que, excepto a antítese: revolução burguesa e revolução proletária, nada existe para eles, e mesmo esta antítese é compreendida por eles de uma maneira extremamente morta. Se tomarmos como exemplo as revoluções do século XX, teremos naturalmente que reconhecer que as revoluções portuguesa e turca são burguesas. Mas nem uma nem outra é «popular», pois a massa do povo, a sua imensa maioria, não intervém de uma forma visível, activa, autónoma, com as suas reivindicações económicas e políticas próprias, nem numa nem noutra destas revoluções. Pelo contrário, a revolução burguesa russa de 1905-1907, embora nela não tenha havido êxitos tão «brilhantes» como por vezes aconteceu nas revoluções portuguesa e turca, foi, indubitavelmente, uma revolução «verdadeiramente popular», porque a massa do povo, a sua maioria, as «camadas inferiores» mais profundas da sociedade, esmagadas pelo jugo e pela exploração, levantaram-se autonomamente, e deixaram em todo o curso da revolução a marca das suas reivindicações, das suas tentativas para construir à sua maneira uma sociedade nova no lugar da antiga, em destruição. Na Europa de 1871, o proletariado não constituía a maioria do povo em nenhum país do continente. A revolução «popular» que arrasta verdadeiramente a maioria para o movimento só podia ser popular englobando tanto o proletariado como o campesinato. Ambas as classes constituíam então o «povo». Ambas as classes estão unidas porque a «máquina de Estado burocrática e militar» as oprime, as esmaga, as explora. Quebrar esta máquina, demoli-la - tal é verdadeiramente o interesse do «povo», da sua maioria, dos operários e da maioria dos camponeses, tal é a "condição prévia» da livre aliança dos camponeses pobres e dos proletários, e sem tal aliança a democracia é instável e a transformação socialista é impossível. Era para esta aliança que, como é sabido, a Comuna de Paris abria caminho, não atingindo os fins devido a uma série de razões de carácter interno e externo. Consequentemente, ao falar de uma «verdadeira revolução popular», Marx, sem esquecer de modo nenhum as particularidades da pequena burguesia (delas falou muito e frequentemente), tinha em conta, com o maior rigor, a efectiva correlação das classes na maioria dos Estados continentais da Europa em 1871. E, por outro lado, ele constatava que «quebrar» a máquina de Estado é exigido pelos interesses tanto dos operários como dos camponeses, os une e coloca perante eles a tarefa comum da eliminação do «parasita» e a sua substituição por algo de novo. Pelo quê precisamente? 2. PELO QUE SUBSTITUIR A MÁQUINA DE ESTADO QUEBRADA? A esta pergunta Marx dava em 1847, no Manifesto Comunista, uma resposta ainda completamente abstracta, ou melhor, uma resposta que indicava as tarefas mas não os meios para as resolver. Substitui-la pela «organização do proletariado como classe dominante», pela «luta pela democracia» - tal era a resposta do Manifesto Comunista. Sem cair em utopias, Marx esperava da experiência do movimento de massas a resposta à questão de quais as formas concretas que tomaria esta organização do proletariado como classe dominante, de que maneira precisa esta organização se conciliaria com a mais completa e a mais consequente «luta pela democracia». Do campesinato, assim como de outras camadas da pequena burguesia, apenas uma insignificante minoria «sobe», «se torna alguém» no sentido burguês, isto é, se converte ou em pessoas abastadas, em burgueses, ou em funcionários privilegiados e com uma posição garantida. A imensa maioria do campesinato, em qualquer país capitalista em que exista campesinato (e estes países capitalistas são a maioria), é oprimida pelo governo e aspira a derrubá-lo, aspira a um governo «barato». Só o proletariado pode realizar isto, e, ao realizá-lo, dá ao mesmo tempo um passo para a reorganização socialista do Estado. 3. A SUPRESSÃO DO PARLAMENTARISMO «A Comuna - escrevia Marx - devia ser não um corpo parlamentar mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo ... ... Em vez de decidir, de três em três anos ou de seis em seis, que membro da classe dominante havia de representar e reprimir o povo no parlamento, o sufrágio universal devia servir ao povo constituído em Comunas como o voto individual serve a todos os outros patrões para escolherem operários, capatazes e contabilistas no seu negócio.» Esta notável crítica do parlamentarismo, feita em 1871, também pertence agora, gracas a dominação do social-chauvinismo e do oportunismo, ao número das «palavras esquecidas» do marxismo. Os ministros e os parlamentares de profissão, os traidores do proletariado e os socialistas «interesseiros» dos nossos dias deixaram inteiramente aos anarquistas a crítica do parlamentarismo e, nesta base espantosamente razoável, declararam «anarquista» toda a crítica ao parlamentarismo!! Não é de admirar que o proletariado dos países parlamentares «avançados», sentindo repugnância ao ver «socialistas» tais como os Scheidemann, David, Legien, Sembat, Renaudel, Henderson, Vandervelde, Stauning, Branting, Bissolati e Cª, tenha cada vez mais concedido as suas simpatias ao anarco-sindicalismo, embora este seja irmão gémeo do oportunismo. Mas, para Marx, a dialéctica revolucionária nunca foi esta frase oca na moda, esta roca de criança que dela fizeram Plekhánov, Kautsky e outros. Marx soube romper impiedosamente com o anarquismo devido à sua incapacidade para utilizar mesmo a «pocilga» do parlamentarismo burguês, sobretudo quando manifestamente não há uma situação revolucionária; mas soube também, ao mesmo tempo, fazer uma crítica verdadeiramente proletária e revolucionária do parlamentarismo. Decidir uma vez em cada certo número de anos que membro da classe dominante reprimirá, esmagará o povo no parlamento, eis onde está a verdadeira essência do parlamentarismo burguês, não só nas monarquias constitucionais parlamentares mas também nas repúblicas mais democráticas. Mas, se se põe a questão do Estado, se se considera o parlamentarismo como uma das instituições do Estado, do ponto de vista das tarefas do proletariado neste domínio, qual é pois o meio de sair do parlamentarismo? como se pode passar sem ele? Somos forçados a dizer uma e outra vez: as lições de Marx, baseadas no estudo da Comuna, estão tão esquecidas que, para o «social-democrata» contemporâneo (lede: o traidor contemporâneo do socialismo), é simplesmente incompreensível outra crítica do parlamentarismo que não seja a crítica anarquista ou reaccionária. O meio para sair do parlamentarismo, naturalmente, não consiste na supressão das instituições representativas e da elegibilidade, mas na transformação das instituições representativas de lugares de charlatanice em instituições «de trabalho». « A Comuna devia ser não um corpo parlamentar mas um corpo de trabalho, executivo e legislativo ao mesmo tempo.» Uma instituição «não parlamentar mas de trabalho», isto atinge directamente os parlamentares contemporâneos e os «cãezinhos de colo» parlamentares da social-democracia! Olhai para qualquer país parlamentar, da América à Suíça, da França à Inglaterra, à Noruega, etc.: o verdadeiro trabalho «de Estado» faz-se nos bastidores, é executado pelos departamentos, pelas chancelarias, pelos estados-maiores. Nos parlamentos apenas se palra, com a finalidade especial de enganar a «gente simples». Isto é tão verdade que, mesmo na república russa, república democrático-burguesa, todos estes vícios do parlamentarismo se manifestaram imediatamente, mesmo antes de ter tido tempo para constituir um verdadeiro parlamento. Heróis do filistinismo apodrecido como os Skobelev e os Tseretéli, os Tchernov e os Avxentiev conseguiram apodrecer mesmo os Sovietes segundo o modelo do mais ignóbil parlamentarismo burguês, convertendo-os em ocos lugares de charlatanice. Nos Sovietes, os senhores ministros «socialistas» enganam os mujiques crédulos com fraseologia e resoluções. No governo decorre uma dança permanente, por um lado, para fazer sentar à vez à volta do «tacho», dos lugarzinhos lucrativos e honrosos, o maior número possível de socialistas- revolucionários e de mencheviques, por outro lado, para «distrair a atenção» do povo. E nas chancelarias, nos estados-maiores, «faz-se» o trabalho «de Estado»! O Delo Naroda, órgão do partido dirigente dos «socialistas-revolucionários», confessava recentemente num editorial, com a incomparável franqueza das pessoas da «boa sociedade», onde «todos» exercem a prostituição política, que mesmo nos ministérios pertencentes aos «socialistas» (desculpai a expressão), que mesmo neles todo o aparelho burocrático permanece no fundo o antigo, funciona à antiga e sabota com completa «liberdade» as iniciativas revolucionárias! Mas, mesmo que não existisse esta confissão, será que a história real da participação dos socialistas-revo- lucionários e dos mencheviques no governo não o demonstra? O que é aqui característico é apenas que, encontrando-se no ministério juntamente com os democratas-constitucionalistas, os senhores Tchernov, Russanov, Zenzinov e outros redactores do Delo Naroda percam tanto a vergonha que não se coíbam de contar em público como uma ninharia, sem corar, que «entre eles», nos minis- térios, tudo continua à antiga!! Frase democrática revolucionária para enganar o tonto da aldeia e a morosidade burocrática para «agradar» aos capitalistas: eis a essência da «honesta» coligação. A Comuna substitui o parlamentarismo venal e apodrecido da sociedade burguesa por instituições onde a liberdade de opinião e de discussão não degenera em engano, porque os próprios parlamentares têm de trabalhar, executar eles próprios as suas leis, comprovar eles próprios o que se consegue na vida, responder eles próprios directamente perante os seus eleitores. As instituições representativas permanecem, mas o parlamentarismo como sistema especial, como divisão do trabalho legislativo e executivo, como situação privilegiada para os deputados, não existe aqui. Não podemos conceber uma democracia, mesmo uma democracia proletária, sem instituições representativas, mas podemos e devemos concebê-la sem parlamentarismo, se a crítica da sociedade burguesa não é para nós uma palavra oca, se a aspiração a derrubar a dominação da burguesia é a nossa aspiração séria e sincera e não uma frase «eleitoral» destinada a captar os votos dos operários, como para os mencheviques e os socialistas-revolucionários, como para os Scheidemann e os Legien, os Sembat e os Vandervelde. É extremamente instrutivo que, ao falar das funções daquele funcionalismo de que tanto a Comuna como a democracia proletária precisam, Marx tome para comparação os empregados de «todos os outros patrões», isto é, uma empresa capitalista vulgar com « operários, capatazes e contabilistas». Em Marx não existe um grão de utopismo, no sentido de ter inventado, imaginado, uma sociedade «nova». Não, ele estuda, como um processo de história natural, o nascimento da nova sociedade a partir da velha, as formas de passagem da segunda para a primeira. Toma a experiência real do movimento proletário de massas e esforça-se por tirar dela lições práticas. «Aprende» com a Comuna, como todos os grandes pensadores revolucionários não recearam aprender com a experiência dos grandes movimentos da classe oprimida, nunca se referindo a eles com «sermões» pedantes (à semelhança do «não se devia ter pegado em armas» de Plekhánov, ou o «uma classe deve auto-refrear-se» de Tseretéli). Não se trata de suprimir de uma só vez, em todo o lado, até ao fim, o funcionalismo. Isso é uma utopia. Mas quebrar de uma só vez a velha máquina burocrática e começar imediatamente a construir uma nova, que permita gradualmente acabar com todo o funcionalismo, isto não é utopia, isto é a experiência da Comuna, isto é a tarefa imediata, directa, do proletariado revolucionário. O capitalismo simplifica as funções da administração «estatal», permite pôr de parte a «hierarquização» e reduzir tudo a uma organização de proletários (como classe dominante) que contrata, em nome de toda a sociedade, «operários, capatazes e contabilistas». Não somos utopistas. Não «sonhamos» com dispensar imediatamente toda a administração, toda a subordinação; estes sonhos anarquistas, baseados na incompreensão das tarefas da ditadura do proletariado, são fundamentalmente estranhos ao marxismo e só servem na realidade para protelar a revolução socialista até ao momento em que os homens sejam diferentes. Não, nós queremos a revolução socialista com homens como os de agora, que não poderão passar sem subordinação, sem controlo, sem «capatazes e contabilistas». Mas é ao proletariado, vanguarda armada de todos os explorados e trabalhadores, que é preciso subordinar-se. Podemos e devemos, desde já, de hoje para amanhã, começar a substituir a «hierarquização» específica dos funcionários do Estado pelas simples funções dos «capatazes e contabilistas», funções que, já hoje, estão completamente ao alcance do nível de desenvolvimento dos citadinos em geral e que podem ser perfeitamente executadas mediante o «salário operário». Organizaremos a grande produção partindo do que já foi criado pelo capitalismo, nós próprios, os operários, apoiando-nos na nossa experiência operária, criando uma disciplina rigorosíssima, de ferro, apoiada pelo poder de Estado dos operários armados, reduziremos os funcionários públicos ao papel de simples executantes das nossas directivas, de «capatazes e contabilistas» (naturalmente com técnicos de todos os géneros e níveis) responsáveis, amovíveis e modestamente pagos - eis a nossa tarefa proletária, eis por onde podemos e devemos começar na realização da revolução proletária. Tal começo, na base da grande produção, conduz por si mesmo à «extinção» gradual de todo o funcionalismo, ao estabelecimento gradual de uma ordem - ordem sem aspas, ordem sem semelhança nenhuma com a escravatura assalariada - uma ordem em que as funções de fiscalização e de contabilidade, cada vez mais simplificadas, serão desempenhadas por todos, por turnos, tornar- se-ão depois um hábito e finalmente tornar-se-ão caducas como funções especiais de uma categoria especial de indivíduos. Um espirituoso social-democrata alemão dos anos 70 do século passado chamou aos correios um modelo de empresa socialista. Isto é muito justo. Os correios são agora uma empresa organizada segundo o tipo do monopólio capitalista de Estado. O imperialismo transforma progressivamente todos os trusts em organizações de tipo semelhante. Acima dos «simples» trabalhadores, que estão sobrecarregados de trabalho e que passam fome, encontra-se aqui exactamente a mesma burocracia burguesa. Mas o mecanismo de gestão social aqui já está pronto. Derrubar os capitalistas, quebrar a resistência destes exploradores com a mão de ferro dos operários armados e demolir a máquina burocrática do Estado contemporâneo - e temos diante de nós um mecanismo de elevado equipamento técnico, liberto do «parasita» e que os próprios operários unidos podem perfeitamente pôr a funcionar contratando técnicos, capatazes, contabilistas, pagando o trabalho de todos eles, assim como o de todos os funcionários do «Estado» em geral, com um salário de operário. Tal é a tarefa concreta, prática, imediatamente realizável em relação a todos os trusts, e que liberta os trabalhadores da exploração, tendo em conta a experiência já começada na prática (especialmente no domínio da construção do Estado) pela Comuna. 5. A SUPRESSÃO DO ESTADO PARASITA Já citámos as correspondentes palavras de Marx e devemos completá-las. «... O destino habitual de novas criações históricas - escrevia Marx - é serem confundidas com contrapartidas de formas mais antigas e mesmo já caducas da vida social, às quais em certa medida se assemelham. Assim, esta nova Comuna, a qual quebra (bricht) o Estado moderno, tem sido vista como uma revivescência das comunas medievais ..., uma liga de pequenos Estados como Montesquieu e os girondinos19 a sonharam ..., como uma forma exagerada da velha luta contra a super-centralização ... ... A Constituição comunal teria, pelo contrário, devolvido ao corpo social todas as forças até aqui devoradas pelo “Estado” excrescência parasitária, o qual se alimenta da sociedade e tolhe o livre movimento desta. Só por esta acção ela teria posto em movimento o renascimento da França... ... Na realidade, porém, a Constituição Comunal teria colocado os produtores rurais sob a direcção espiritual das capitais distritais, e ter-lhes-ia assegurado nestas, nos operários urbanos, os defensores naturais dos seus interesses. A simples existência da Comuna implicava, como é evidente, o autogoverno local, mas agora já não como um contrapeso contra o poder estatal já tornado supérfluo.» «Supressão do poder de Estado», que era uma «excrescência parasitária», a sua «amputação», a sua «destruição», «o poder de Estado já tornado supérfluo» - eis em que termos Marx falava do Estado, avaliando e analisando a experiência da Comuna. Tudo isto foi escrito há um pouco menos de meio século, e agora é preciso realizar verdadeiras escavações para levar ao conhecimento das amplas massas um marxismo não deturpado. As conclusões tiradas da observação da última grande revolução que Marx viveu foram esquecidas exactamente quando chegava a época das seguintes grandes revoluções do proletariado. «... A multiplicidade das interpretações a que a Comuna foi submetida e a multiplicidade dos interesses que nela se viram expressos provam que ela era uma forma política integralmente capaz de expansão, ao passo que todas as formas de governo anteriores tinham sido essencialmente repressivas. O seu verdadeiro segredo era este: ela era essencialmente um governo da classe operária, o resultado da luta da classe que produz contra a que apropria, a forma política, finalmente descoberta, na qual se podia realizar a libertação económica do trabalho ... Sem esta última condição a Constituição Comunal era uma impossibilidade e um engano ...» Os utopistas dedicaram-se a «descobrir» as formas políticas sob as quais devia ter lugar a reorganização socialista da sociedade. Os anarquistas esquivavam-se completamente à questão das formas políticas. Os oportunistas da social-democracia actual aceitaram as formas políticas burguesas do Estado democrático parlamentar como um limite intransponível e quebraram a cabeça a prosternar-se diante deste «modelo», classificando de anarquismo qualquer aspiração de demolir estas formas. Marx deduziu de toda a história do socialismo e da luta política que o Estado deverá desaparecer e que a forma transitória do seu desaparecimento (passagem do Estado para o não-Estado) será «o proletariado organizado como classe dominante». Mas Marx não se propunha descobrir as formas políticas deste futuro. Limitou-se a uma observação precisa da história francesa, à sua análise e à conclusão a que o conduziu o ano de 1851: as coisas aproximam-se da destruição da máquina de Estado burguesa. 19 Girondinos: grupo político da burguesia durante a revolução burguesa francesa de fins do século XVIII. Os girondinos representavam o interesses da burguesia moderada, vacilavam entre a revolução e a contra-revolução, seguiam a política de compromissos com a monarquia. E quando o movimento revolucionário de massas do proletariado eclodiu, Marx, apesar do fracasso deste movimento, apesar da sua curta duração e da sua fraqueza evidente, entregou-se ao estudo das formas que ele tinha descoberto. A Comuna é a forma, «finalmente descoberta» pela revolução proletária, na qual se pode realizar a libertação económica do trabalho. A Comuna é a primeira tentativa da revolução proletária para quebrar a máquina de Estado burguesa e a forma política «finalmente descoberta» pela qual se pode e se deve substituir o que foi quebrado. Veremos mais adiante na nossa exposição que as revoluções russas de 1905 e de 1917, noutra situação, noutras condições, continuam a obra da Comuna e confirmam a genial análise histórica de Marx. CAPÍTULO IV CONTINUAÇÃO. EXPLICAÇÕES COMPLEMENTARES DE ENGELS Marx disse o fundamental sobre a questão da importância da experiência da Comuna. Engels voltou muitas vezes a este mesmo tema, explicando a análise e as conclusões de Marx e esclarecendo por vezes outros aspectos da questão com tal força e relevo que é necessário determo-nos especialmente nestas explicações. 1. O «PROBLEMA DA HABITAÇÃO» «Na sua obra sobre o problema da habitação (1872), Engels tem já em conta a experiência da Comuna, detendo-se várias vezes nas tarefas da revolução em relação ao Estado. É interessante que, acerca deste tema concreto, se verificam claramente, por um lado, traços de coincidência do Estado proletário com o Estado actual - traços que dão uma base para falar em ambos os casos de Estado -, e, por outro lado, traços de distinção, ou a passagem para a supressão do Estado. «Ora como se há-de resolver a questão da habitação? Na sociedade dos nossos dias precisamente como todas as outras questões sociais são resolvidas: por meio do gradual equilíbrio económico de procura e oferta, uma solução que gera sempre de novo a própria questão, e portanto não é solução. Como uma revolução social resolveria esta questão, isso não depende só das circunstâncias em que se realizasse, mas relaciona-se também com questões muito mais amplas, entre as quais é uma das mais essenciais a superação da oposição cidade-campo. Como não temos de criar sistemas utópicos para a instituição da sociedade futura, seria mais do que ocioso entrar aqui no assunto. Mas uma coisa é certa, já hoje existem nas grandes cidades habitações suficientes para, com um aproveitamento racional das mesmas, se remediar de imediato todas as “carências de habitação” reais. Isto só pode acontecer, naturalmente, por meio da expropriação dos proprietários actuais, ou seja, por meio do alojamento nas suas casas de operários sem habitação, ou de operários até aqui excessivamente apinhados nas suas habitações, e logo que o proletariado tenha conquistado o poder político uma tal medida imposta pelo bem público será tão facilmente executável como o são outras expropriações e ocupações de habitações pelo Estado actual» (p. 22 da ed. alemã de 1887)20. 20 F. Engels, O Problema da Habitação. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 18, S. 226-227). Não se encara aqui uma mudança de forma do poder de Estado, mas toma-se apenas o conteúdo da sua actividade. O Estado actual ordena também expropriações e ocupações de habitações. O Estado proletário, do ponto de vista formal, também «ordenará» a ocupação de habitações e a expropriação de casas. Mas é evidente que o antigo aparelho executivo, o funcionalismo ligado à burguesia, seria simplesmente inapto para realizar na prática as disposições do Estado proletário. «... De resto, há que constatar que a “efectiva conquista da posse” de todos os instrumentos de trabalho, a tomada de posse de toda a indústria por parte do povo trabalhador, é precisamente o contrário do ”resgate” proudhonista21. Nesta última, o operário individual torna-se proprietário da habitação, da quinta, do instrumento de trabalho; na primeira, é o “povo trabalhador” que fica proprietário colectivo das casas, fábricas e instrumentos de trabalho, e o seu usufruto é cedido, pelo menos durante um período de transição, e dificilmente sem indemnização dos custos, a indivíduos ou sociedades. Precisamente como a abolição da propriedade fundiária não é a abolição da renda, mas a sua transferência, se bem que com modificações, para a sociedade. A efectiva tomada de posse de todos os instrumentos de trabalho pelo povo trabalhador não exclui, portanto, de modo algum, a conservação da relação de arrendamento» (p. 68). Examinaremos no capítulo seguinte a questão abordada neste raciocínio, a saber: a das bases económicas da extinção do Estado. Engels exprime-se com extremo cuidado dizendo que «dificilmente» o Estado proletário distribuirá habitações sem pagamento, «pelo menos durante um período de transição». O aluguer das habitações, propriedade de todo o povo, a diferentes famílias em troca de uma renda, pressupõe também a cobrança dessa renda e um certo controlo e estabelecimento de certas normas de repartição das habitações. Tudo isto exige uma certa forma de Estado, mas não requer de modo nenhum um aparelho militar e burocrático especial, com funcionários beneficiando de uma situação especialmente privilegiada. E a passagem para um estado de coisas em que poderão ser distribuídas habitações gratuitamente está ligada à «extinção» total do Estado. Falando da passagem dos blanquistas, depois da Comuna e sob a influência da sua experiência, para a posição de princípio do marxismo, Engels de passagem formula esta posição da seguinte maneira: «... Necessidade de acção política do proletariado e da sua ditadura como transição para a abolição das classes e, com elas, do Estado ...» (p. 55). Certos amadores da crítica literal ou os burgueses «eliminadores do marxismo» verão talvez uma contradição entre este reconhecimento da «abolição do Estado » e a negação desta fórmula como anarquista na passagem atrás citada do Anti-Dühring. Não seria de estranhar se os oportunistas classificassem também Engels entre os «anarquistas»: agora está cada vez mais divulgada entre os sociais-chauvinistas a acusação de anarquismo aos internacionalistas. Que com a abolição das classes terá lugar também a abolição do Estado, o marxismo sempre o ensinou. A passagem de todos conhecida do Anti-Dühring acerca da «extinção do Estado» acusa os anarquistas não simplesmente de serem pela abolição do Estado, mas de pregarem a possibilidade de abolir o Estado «de hoje para amanhã». 21 Proudhonismo: corrente anticientífica do socialismo pequeno-burguês. Recebeu a sua denominação do seu ideólogo, o anarquista francês Proudhon. Este, criticando de um ponto de vista pequeno-burguês a grande propriedade capitalista, sonhava com a perpetuação da pequena propriedade privada e propunha a organização de um Banco “do Povo” e um Banco “de Troca”, com a ajuda dos quais os operários poderiam adquirir meios de produção, transformar-se em artesãos e assegurar a venda “justa” dos seus produtos. Proudhon não compreendia o papel histórico do proletariado e negava a luta de classes, a revolução proletária e a ditadura do proletariado; como anarquista, negava também a necessidade do Estado. Marx e Engels lutaram intransigentemente contra as tentativas dos proudhonistas de impor as suas ideias à I Internacional. A crítica habitual do anarquismo reduziu-se nos sociais-democratas actuais à mais pura vulgaridade filistina: «nós reconhecemos o Estado, e os anarquistas não!». Compreende-se que uma tal vulgaridade não pode deixar de repugnar aos operários minimamente pensantes e revolucionários. Engels diz outra coisa: sublinha que todos os socialistas reconhecem o desaparecimento do Estado como uma consequência da revolução socialista. Põe em seguida a questão concreta da revolução, precisamente a questão a que os sociais-democratas habitualmente se esquivam por oportunismo, deixando-a, por assim dizer, aos anarquistas para «estudo» exclusivo. E, ao pôr esta questão, Engels agarra o touro pelos cornos: não deveria a Comuna ter-se servido mais do poder revolucionário do Estado, isto é, do proletariado armado, organizado como classe dominante? A social-democracia oficial dominante eludia geralmente a questão das tarefas concretas do proletariado na revolução, quer com uma simples troca de filisteu quer, no melhor dos casos, com este sofisma evasivo: «mais tarde veremos.» E os anarquistas tinham o direito de dizer contra tal social-democracia que ela faltava à sua tarefa da educação revolucionária dos operários. Engels aproveita a experiência da última revolução proletária precisamente para estudar, da maneira mais concreta, o quê e como o proletariado deve fazer tanto em relação aos bancos como em relação ao Estado. 3. CARTA A BEBEL Um dos raciocínios mais notáveis, se não o mais notável, nas obras de Marx e Engels sobre a questão do Estado é a seguinte passagem na carta de Engels a Bebel de 18-28 de Marco de 1875. Esta carta, notemo-lo entre parêntesis, foi impressa, tanto quanto sabemos, pela primeira vez por Bebel no tomo segundo das suas memórias (Da Minha Vida), publicado em 1911, isto é, passados trinta e seis anos depois da sua redacção e do seu envio. Engels escrevia o seguinte a Bebel, criticando o mesmo projecto de programa de Gotha que também Marx criticava na célebre carta a Bracke, e falando especialmente da questão do Estado: «... O Estado popular livre está transformado no Estado livre. Do ponto de vista gramatical, um Estado livre é aquele em que o Estado é livre face aos seus cidadãos, ou seja, um Estado com um governo despótico. Deveria abandonar-se todo este palavreado acerca do Estado, especialmente depois da Comuna, a qual já não era um Estado no sentido próprio. O “Estado popular” tem-nos sido atirado a cara pelos anarquistas vezes sem conta, embora já o escrito de Marx contra Proudhon23 e depois o Manifesto Comunista digam expressamente que com a introdução da ordem social socialista o Estado por si mesmo se dissolve (sich auflost) e desaparece. Ora, como o Estado é, de facto, apenas uma instituição transitória, da qual a gente se serve na luta, na revolução, para reprimir pela força os adversários, é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda usa o Estado, usa-o não no interesse da liberdade mas da repressão dos seus adversários, e logo que se pode falar de liberdade o Estado deixa de existir como tal. Nós proporíamos, por isso, a substituição em todos os passos de Estado por “comunidade” (Gemeinwesen), uma boa e velha palavra alemã que pode representar muito bem a “Comuna” francesa» (pp. 321-322 do original alemão)24. É preciso ter em vista que esta carta se refere ao programa do partido que Marx criticava numa carta datada de apenas algumas semanas depois desta carta (a carta de Marx é de 5 de Maio de 1875), e que Engels vivia então em Londres juntamente com Marx. Por isso, ao dizer «nós» na última frase, é sem duvida nenhuma em seu próprio nome e no de Marx que Engels propõe ao chefe do partido operário alemão a exclusão do programa da palavra «Estado» e a sua substituição pela palavra «comunidade». 23 Trata-se da Obra de K. Marx, A Miséria da Filosofia. 24 Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 19, S. 6-7) Como lançariam gritos sobre o «anarquismo» os chefes do «marxismo» de hoje, falsificado segundo a conveniência dos oportunistas, se lhes fosse proposta tal emenda do programa! Que gritem. A burguesia louvá-los-á por isso. Mas nós faremos a nossa obra. Ao rever o programa do nosso partido, deveremos absolutamente ter em conta o conselho de Engels e de Marx, para estarmos mais perto da verdade, para restabelecermos o marxismo depurando-o das deturpações, para melhor orientar a luta da classe operária pela sua emancipação. Entre os bolcheviques é certo que não há adversários do conselho de Engels e de Marx. A dificuldade estará, talvez, apenas no termo. Em alemão existem duas palavras «comunidade», das quais Engels escolheu aquela que designa não uma comunidade separada, mas um conjunto delas, um sistema de comunidades. Tal palavra não existe em russo, e será preciso talvez escolher a palavra francesa «commune», se bem que isto apresente também os seus inconvenientes. «A Comuna já não era um Estado no sentido próprio» - eis a afirmação mais importante de Engels do ponto de vista teórico. Depois do exposto atrás esta afirmação é perfeitamente compreensível. A Comuna deixava de ser um Estado na medida em que lhe cabia reprimir não a maioria da população mas a minoria (os exploradores); tinha quebrado a máquina de Estado burguesa; em vez de uma força especial para a repressão, entrou em cena a própria população. Tudo isso é um afastamento do Estado no sentido próprio. E se a Comuna se tivesse consolidado, «extinguir-se- iam» nela por si próprios os vestígios do Estado, não teria tido necessidade de «abolir» as suas instituições: elas teriam deixado de funcionar à medida que não tivessem mais nada que fazer. «Os anarquistas atiram-nos à cara o “Estado popular”»; ao dizer isto, Engels tem em vista em primeiro lugar Bakúnine e os seus ataques contra os sociais-democratas alemães. Engels reconhece que estes ataques são justos na medida em que o «Estado popular» é tanto um absurdo e tanto um afastamento do socialismo como o «Estado popular livre». Engels esforça-se por corrigir a luta dos sociais-democratas alemães contra os anarquistas, por fazer desta luta uma luta justa nos seus princípios, por a depurar dos preconceitos oportunistas acerca do «Estado». A carta de Engels, infelizmente!, esteve metida numa gaveta durante trinta e seis anos. Veremos mais adiante que, mesmo depois da publicação desta carta, Kautsky repete obstinadamente, em essência, os mesmos erros contra os quais Engels prevenira. Bebel respondeu a Engels pela carta de 21 de Setembro de 1875, na qual escrevia, entre outras coisas, que «concordava completamente» com o seu juízo sobre o projecto de programa e que censurava Liebknecht pela sua transigência (p. 334 da ed. alemã das memórias de Bebel, t. II). Mas se tomarmos a brochura de Bebel “Os Nossos Fins”, encontraremos nela raciocínios absolutamente falsos acerca do Estado: . «O Estado deve, portanto, ser transformado, de um Estado assente no domínio de classe, num Estado popular» (ed. alemã de Unsere Ziele, 1886, p. 14). Eis o que está impresso na 9ª (nona!) edição da brochura de Bebel! Não é de admirar que uma repetição tão obstinada dos raciocínios oportunistas sobre o Estado tenha impregnado a social- democracia alemã, especialmente quando as explicações revolucionárias de Engels estavam metidas numa gaveta e que todas as circunstâncias da vida «desabituaram» da revolução para muito tempo. 4. A CRÍTICA DO PROJECTO DE PROGRAMA DE ERFURT A crítica do projecto de programa de Erfurt enviada por Engels a Kautsky em 29 de Junho de 1891 e publicada apenas dez anos mais tarde na Neue Zeit não pode ser ignorada ao analisar a doutrina do marxismo sobre o Estado, porque é principalmente consagrada precisamente à crítica das concepções oportunistas da social-democracia nas questões da organização do Estado. Notemos de passagem que, acerca das questões económicas, Engels fornece igualmente uma indicação das mais preciosas, que mostra quão atenta e reflectidamente seguiu as transformações do capitalismo moderno, e como soube prever, numa certa medida, as tarefas da nossa época, a imperialista. Eis essa indicação: a propósito das palavras «ausência de planificação» (Planlosigkeit) empregues no projecto de programa para caracterizar o capitalismo, Engels escreve: «... Quando passamos das sociedades por acções para os trusts, os quais dominam e monopolizam ramos inteiros da indústria, nesta transição não acaba apenas a produção privada, mas também a ausência de planificação» (Neue Zeit, ano 20, t. 1, 1901-1902, p. 8)25. Temos aqui o que há de mais fundamental na apreciação teórica do capitalismo moderno, isto é, do imperialismo, a saber, que o capitalismo se transforma em capitalismo monopolista. Isto deve ser sublinhado, porque o erro mais difundido e a afirmação reformista burguesa de que o capitalismo monopolista ou monopolista de Estado já não é capitalismo, já pode ser chamado «socialismo de Estado», e assim por diante. Naturalmente, os trusts nunca fizeram, não fazem ainda nem podem fazer uma planificação completa. Mas visto que são eles que fazem a planificação, visto que são os magnates do capital que calculam antecipadamente o volume da produção à escala nacional ou mesmo internacional, visto que são eles que a regulam de uma maneira planificada, nós permanecemos, apesar de tudo, no capitalismo, embora numa sua nova fase, mas indubitavelmente no capitalismo. A «proximidade» de tal capitalismo do socialismo deve ser, para os verdadeiros representantes do proletariado, um argumento a favor da proximidade, da facilidade, da exequibilidade, da urgência da revolução socialista, e de modo nenhum um argumento para se referir de modo tolerante à negação desta revolução e ao embelezamento do capitalismo, ao que se dedicam todos os reformistas. Mas voltemos à questão do Estado. Engels dá aqui três tipos de indicações especialmente preciosas: em primeiro lugar, sobre a questão da república; em segundo lugar, sobre a ligação da questão nacional com a organização do Estado; em terceiro lugar, sobre a auto-administração local. No que diz respeito à república, Engels fez disto o centro de gravidade da sua crítica do projecto de programa de Erfurt. E se nos lembrarmos da importância que adquiriu o programa de Erfurt em toda a social-democracia internacional e de como se tornou um modelo para toda a II Internacional, poder-se-á dizer sem exagero que Engels critica aqui o oportunismo de toda a II Internacional. «As reivindicações políticas do projecto - escreve Engels - têm um grande erro. Aquilo que realmente deveria ser dito não está lá» (sublinhado de Engels). E mais adiante explica que a Constituição alemã é propriamente uma cópia da extremamente reaccionária Constituição de 1850, que o Reichstag é apenas, segundo a expressão de Wilhelm Liebknecht, a «folha de parreira do absolutismo», que, na base de uma Constituição que legaliza os pequenos Estados e a união dos pequenos Estados alemães, querer realizar a «transformação de todos os instrumentos de trabalho em propriedade comum» é «um absurdo evidente». 25 F. Engels, “Para a Crítica do Projecto do Programa Social-Democrata de 1891. (In Karl Marx ( Friederich Engels, Werke, Bd. 22, S. 232). Mais adiante Lénine cita novamente esta obra (Ibidem, S. 233-237). Mesmo em Inglaterra, onde tanto as condições geográficas, como a comunidade da língua, como uma história multissecular pareceriam «ter liquidado» a questão nacional nas diversas pequenas divisões da Inglaterra, mesmo aqui Engels tem em conta o facto evidente de que a questão nacional ainda não foi superada, e por isso reconhece a república federativa como um «progresso». Compreende-se que aqui não há nem sombra de renúncia a crítica dos defeitos da república federativa nem a propaganda e luta mais decididas a favor da república unitária democrática e centralizada. Mas Engels não concebe de modo nenhum o centralismo democrático no sentido burocrático em que usam este conceito os ideólogos burgueses e pequeno-burgueses e, entre estes últimos, os anarquistas. O centralismo, para Engels, não exclui de forma alguma a ampla auto-administração local que, defendendo as «comunas» e as regiões voluntariamente a unidade do Estado, elimina absolutamente todo o burocratismo e todo o «comando» vindo de cima. «... República unitária portanto - escreve Engels, desenvolvendo as concepções programáticas do marxismo sobre o Estado -, mas não no sentido da república francesa dos nossos dias, que não é mais do que o império sem imperador fundado em 1798. De 1792 a 1798 todos os departamentos, todas as comunidades (Gemeinde) francesas possuíam uma completa auto-administração segundo o modelo americano, e nós também temos de tê-la. Como instituir a auto-administração e não cair na burocracia, eis o que nos mostraram a América e a primeira república francesa, e ainda hoje nos mostram a Austrália, o Canadá e as outras colónias inglesas. E uma tal auto-administração provincial e comunal é muito mais livre do que, por exemplo, o federalismo suiço em que o cantão é, de facto, muito independente face à União» (isto é, face ao Estado federativo no conjunto), «mas também face ao distrito (Bezirk) e à comunidade local. Os governos cantonais nomeiam governadores de distrito (Bezirksstatthalter) e prefeitos, os quais são completamente desconhecidos nos países de língua inglesa e que nós, com a maior cortesia, queremos igualmente ver dispensados no futuro, tal como os corregedores e os altos conselheiros administrativos prussianos» (comissários, chefes da polícia municipal, governadores e, em geral, funcionários nomeados de cima). De acordo com isto Engels propõe que se formule o ponto do programa sobre a auto- administração do modo seguinte: «Completa auto-administração na província» (gubérnia ou região), «distritos e comunidades locais por meio de funcionários eleitos por sufrágio universal. Abolição de todas as autoridades locais e provinciais nomeadas pelo Estado». No Pravda (n.° 68, de 28 de Maio de 1917) fechado pelo governo de Kérenski e de outros ministros «socialistas», já tive ocasião de assinalar como, neste ponto - evidentemente longe de ser o único -, os nossos representantes pseudo-socialistas de uma pseudo-democracia pseudo-revolucionária se afastaram escandalosamente do democratismo27. Compreende-se que homens que se ligaram por uma «coligação» com a burguesia imperialista tenham permanecido surdos a estas indicações. É extremamente importante notar que Engels, com factos na mão, refuta, com base num exemplo muito preciso, o preconceito extraordinariamente divulgado - sobretudo entre a democracia pequeno-burguesa - segundo o qual uma república federativa significa necessariamente mais liberdade do que uma república centralista. Isto é falso. Os factos citados por Engels, relativos à república francesa centralista de 1792-1798 e à república federalista suíça, refutam-no. A república centralista verdadeiramente democrática dava mais liberdade que a república federalista, ou, por outras palavras: a maior liberdade local, regional e outra conhecida na história foi dada pela república centralista e não pela federativa. A este facto, como em geral a toda a questão da república federativa e centralista e da auto- administração local, foi e é dada insuficiente atenção na nossa propaganda e agitação partidárias. 27 Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª Edição em russo, t. 32, pp. 218-221 (N. Ed.) 5. O PREFÁCIO DE 1891 À “GUERRA CIVIL” DE MARX No prefácio à terceira edição de A Guerra Civil em França - este prefácio é datado de 18 de Março de 1891 e impresso pela primeira vez na revista Neue Zeit - Engels, a par de interessantes observações que faz de passagem sobre questões ligadas à atitude em relação ao Estado, faz um resumo de um relevo notável dos ensinamentos da Comuna28. Este resumo, enriquecido com toda a experiência do período de vinte anos que separava o autor da Comuna, e especialmente dirigido contra a «fé supersticiosa no Estado», tão difundida na Alemanha, pode ser chamado com justiça a última palavra do marxismo sobre a questão que estamos a examinar. Em França, observa Engels, os operários ficaram armados depois de cada revolução; «por isso, para os burgueses que se encontravam ao leme do Estado, o primeiro imperativo era desarmar os operários. Daí uma nova luta depois de cada revolução conquistada pelos operários, luta essa que termina com a derrota dos operários ...» O balanço da experiência das revoluções burguesas é tão curto como expressivo. O fundo da questão - entre outras coisas também quanto à questão do Estado (a classe oprimida possui armas?) - é captado aqui de forma notável. É precisamente este fundo que evitam, a maior parte das vezes, tanto os professores influenciados pela ideologia burguesa como os democratas pequeno- burgueses. Na revolução russa de 1917, coube ao «menchevique», «também marxista», Tsereteli a honra (honra à Cavaignac) de trair este segredo das revoluções burguesas. No seu discurso «histórico» de 11 de Junho, Tseretéli deixou escapar a decisão da burguesia de desarmar os operários de Petrogrado, apresentando naturalmente esta decisão como sua e, em geral, como uma necessidade «de Estado»29! O discurso histórico de Tseretéli de 11 de Junho será, naturalmente, para qualquer historiador da revolução de 1917 uma das ilustrações mais concretas da maneira como o bloco dos socialistas- revolucionários e dos mencheviques, dirigido pelo senhor Tseretéli, passou para o lado da burguesia contra o proletariado revolucionário. Outra observação de passagem de Engels, também ligada à questão do Estado, diz respeito à religião. É sabido que a social-democracia alemã, à medida que apodrecia tornando-se cada vez mais oportunista, deslizava cada vez mais frequentemente para uma interpretação errônea e filistina da célebre fórmula: «declarar a religião um assunto privado». Ou seja: esta fórmula era interpretada como se, também para o partido do proletariado revolucionário, a questão da religião fosse um assunto privado!! Foi contra esta traição completa ao programa revolucionário do proletariado que se insurgiu Engels, que, em 1891, observava apenas germes muito fracos de oportunismo no seu partido e que se exprimia por isso com o maior cuidado: 28 Ver F. Engels, Introdução à obra de K. Marx “A Guerra Civil em França”. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 17, S. 613-615). Mais adiante Lénine citará novamente esta obra. 29 Trata-se do discuso de Tseretéli, ministro menchevique do Governo Provisório, na reunião conjunta de 11 (24) de Junho de 1917 do Praesidium do I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, do Comité Executivo do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, do Comité Executivo do Soviete dos Deputados Camponeses e dos bureaux de todas as fracções do Congresso, durante a discussão da questão da manifestação pacífica dos operários e soldados de Petrogrado marcada pelos bolcheviques para o dia 10 (23) de Junho. A intervenção de Tseretéli foi contra-revolucionária e caluniosa. Acusando os bolcheviques de conspirarem contra o governo e de serem cúmplices da contra-revolução, ameaçou tomar medidas decididas para desarmar os operários que estavam do lado dos bolcheviques. «Tal como quase só operários ou reconhecidos representantes dos operários tinham assento na Comuna, assim também as suas decisões tinham um carácter decididamente proletário. Ou decretaram reformas que a burguesia republicana apenas omitira por cobardia, mas que constituíam uma base necessária para a livre acção da classe operária, tal como a concretização do princípio de que a religião, face ao Estado, é um assunto meramente privado; ou ela promulgou decisões directamente no interesse da classe operária e que, em parte, atingiram profundamente a velha ordem social...» Engels sublinhou intencionalmente as palavras «face ao Estado», vibrando um golpe directo no oportunismo alemão, que declarava a religião assunto privado face ao partido e rebaixava deste modo o partido do proletariado revolucionário ao nível do mais vulgar filistinismo «livre- pensador», pronto a admitir uma situação de arreligiosidade, mas que abdica da tarefa da luta de partido contra o ópio religioso que embrutece o povo. O historiador futuro da social-democracia alemã, ao estudar as raízes da sua vergonhosa bancarrota em 1914, encontrará não pouco material interessante sobre esta questão, começando com as declarações evasivas nos artigos do chefe ideológico do partido, Kautsky, que abrem de par em par a porta ao oportunismo, e acabando na atitude do partido relativamente ao «Los-von-Kirche- Bewegung» (movimento para a separação da Igreja), em 191330. Mas voltemos a como Engels, vinte anos após a Comuna, fazia o balanço das suas lições para o proletariado em luta. Eis quais as lições que Engels colocava em primeiro plano: «... Precisamente o poder repressivo do governo até aí centralizado, do exército, da polícia política, da burocracia, que Napoleão criara em 1798 e que desde então todos os novos governos tinham aceitado como instrumento bem-vindo e utilizado contra os seus adversários, precisamente este poder devia cair por toda a parte como em Paris já caíra. A Comuna teve de reconhecer logo de princípio que a classe operária, uma vez chegada ao domínio, não podia continuar a governar com a velha máquina do Estado; que esta classe operária, para não perder de novo o seu próprio domínio apenas recém-conquistado, tinha, por um lado, de eliminar toda a velha máquina repressiva até aí utilizada contra ela própria, mas, por outro lado, de se assegurar contra os seus próprios deputados e funcionários, declarando-os, a todos sem excepção, destituíveis a cada momento...» Engels sublinha uma e outra vez que, não só na monarquia mas também na república democrática, o Estado continua a ser Estado, isto é, conserva o seu traço distintivo fundamental: transformar os funcionários públicos, «servidores da sociedade», seus órgãos, em senhores dela. 30 O Los-von Kirche-Bewegung (movimento para a separação da Igreja) adquiriu um carácter de massas na Alemanha nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Em Janeiro de 1914, foi publicado na Revista Die Neue Zeit o artigo do revisionista Paul Göre intitulado “Kirchenaustrittsbewegung und Sozialdemokratie” (“O Movimento para Sair da Igreja e a Social-Democracia”), que deu início à discussão do problema da atitude do Partido Social-Democrata da Alemanha em relação a esse movimento. Os destacados dirigentes da social-democracia alemã que participaram nessa discussão não combateram Göre, o qual afirmava que o partido devia manter a neutralidade em relação ao movimento pela separação da Igreja e proibir que os militantes do partido fizessem propaganda anti-religiosa e contra a Igreja em nome do Partido. «... Para Marx e para mim - prossegue Engels - era, por isso, absolutamente impossível escolher, para designar o nosso ponto de vista especial, uma expressão tão elástica. Hoje as coisas mudaram, e assim a palavra» («social-democrata») «pode passar (mag passieren] ainda que continue a ser inadequada (unpassend, imprópria) para um partido cujo programa económico não é meramente socialista em geral, mas directamente comunista, e cujo objectivo político final é a superação de todo o Estado, portanto também da democracia. Os nomes de partidos políticos reais» (sublinhado de Engels) «porém, nunca estão completamente certos; o partido desenvolve-se, o nome permanece »34. O dialéctico Engels, no ocaso dos seus dias, permanece fiel à dialéctica. Marx e eu, diz, tínhamos um belo nome para o partido, cientificamente preciso, mas não existia um verdadeiro partido proletário, isto é, de massas. Agora (fim do século XIX), existe um verdadeiro partido, mas a sua denominação é cientificamente inexacta. Não interessa, «passa», desde que o partido se desenvolva, desde que a imprecisão científica da sua denominação não lhe seja escondida e não o impeça de se desenvolver na direcção justa! Talvez um espirituoso qualquer se pusesse a consolar-nos também a nós, bolcheviques, à maneira de Engels: temos um verdadeiro partido, ele desenvolve-se admiravelmente; «passa» também uma palavra tão absurda e feia como «bolchevique», que não exprime absolutamente nada, senão a circunstância puramente casual de que no Congresso de Bruxelas-Londres de 1903 tivemos a maioria35... Talvez agora, quando as perseguições de Julho-Agosto contra o nosso partido pelos republicanos e a democracia pequeno-burguesa «revolucionária» tornaram a palavra «bolchevique» tão honrosa entre todo o povo, quando elas marcaram além disso um histórico e imenso passo em frente dado pelo nosso partido no seu desenvolvimento real, talvez eu próprio hesitasse na minha proposta de Abril de mudar a denominação do nosso partido36. Talvez propusesse aos meus camaradas um «compromisso»: chamarmo-nos partido comunista, mas conservar entre parêntesis a palavra bolchevique ... Mas a questão da denominação do partido é incomparavelmente menos importante do que a questão da atitude do proletariado revolucionário em relação ao Estado. Nos raciocínios habituais sobre o Estado comete-se constantemente o erro contra o qual Engels adverte aqui e que assinalámos de passagem na exposição anterior. A saber: esquece-se constantemente que a supressão do Estado é também a supressão da democracia, que a extinção do Estado é a extinção da democracia. À primeira vista tal afirmação parece extremamente estranha e incompreensível; talvez mesmo surja em alguns o receio de que nós esperemos o advento de uma organização social em que não se observe o princípio da subordinação da minoria à maioria, pois não será a democracia precisamente o reconhecimento de tal princípio? Não. A democracia não é idêntica à subordinação da minoria à maioria. A democracia é um Estado que reconhece a subordinação da minoria à maioria, isto é, uma organização para exercer a violência sistemática de uma classe sobre outra, de uma parte da população sobre outra. 34 F. Engels, Prefácio à brochura “Internationales aus dem 'Volkstadt'” (1871-1875). (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 22, S. 416-418) 35 Lénine refere-se ao II Congresso do POSDR, que se realizou de 17 (30) de Julho a 10 (23) de Agosto de 1903, inicialmente em Bruxelas e depois em Londres. Na eleição dos organismos centrais do Partido os sociais-democratas revolucionários, dirigidos por Lénine, obtiveram a maioria (bolchinstvó em russo), enquanto os oportunistas ficaram em minoria (menchinstvó); daí as designações “bolcheviques” (maioritários) e “mencheviques” (minoritários). 36 Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª Edição em russo, t.31, pp. 100-111 (N. Ed.) Propomo-nos como objectivo final a supressão do Estado, isto é, de toda a violência organizada e sistemática, de toda a violência sobre os homens em geral. Não esperamos o advento de uma ordem social em que o princípio da subordinação da minoria à maioria não seja observado. Mas, aspirando ao socialismo, estamos convencidos de que ele se transformará em comunismo e, em ligação com isto, desaparecerá toda a necessidade da violência sobre os homens em geral, da subordinação de um homem a outro, de uma parte da população a outra parte dela, porque os homens se habituarão a observar as condições elementares da convivência social sem violência e sem subordinação. E para sublinhar este elemento de hábito que Engels fala da nova geração «formada em novas condições sociais livres que será capaz de se desfazer de toda a tralha do Estado » - de qualquer Estado, incluindo o Estado democrático republicano. Para esclarecer isto é necessário analisar a questão das bases económicas da extinção do Estado. CAPÍTULO V AS BASES ECONÓMICAS DA EXTINÇÃO DO ESTADO A explicação mais pormenorizada desta questão é dada por Marx na sua Crítica do Programa de Gotha (carta a Bracke, de 5 de Maio de 1875, impressa apenas em 1891 na Neue Zeit, IX, 1, e publicada em russo numa edição separada). A parte polémica desta obra notável, que consiste numa crítica ao lassallianismo, deixou na sombra, por assim dizer, a sua parte afirmativa, a saber: a análise da ligação entre o desenvolvimento do comunismo e a extinção do Estado. 1. A COLOCAÇÃO DA QUESTÃO POR MARX Numa comparação superficial da carta de Marx a Bracke, de 5 de Maio de 1875, com a carta de Engels a Bebel, de 28 de Março de 1875, atrás examinada, pode parecer que Marx é muito mais «estatista» do que Engels, e que a diferença entre as concepções de ambos os escritores acerca do Estado é muito considerável. Engels propõe a Bebel que abandone todo o palavreado acerca do Estado, que bana completamente do programa a palavra Estado, substituindo-a pela palavra «comunidade»; Engels declara mesmo que a Comuna já não era um Estado no sentido próprio. Entretanto Marx fala mesmo do «Estado futuro da sociedade comunista», isto é, parece reconhecer a necessidade do Estado mesmo no comunismo. Mas esta maneira de ver seria radicalmente errada. Um exame mais de perto mostra que as concepções de Marx e de Engels sobre o Estado e a sua extinção coincidem inteiramente e que a expressão citada de Marx se refere precisamente a este Estado em extinção. É claro que nem se pode falar de determinar o momento desta «extinção» futura, tanto mais que ela representará em si notoriamente um processo prolongado. A diferença aparente entre Marx e Engels explica-se pela diferença dos temas que abordaram e dos objectivos que perseguiam. Engels colocava-se o objectivo de mostrar a Bebel de forma evidente, incisiva, em grandes traços, todo o absurdo dos preconceitos correntes (e partilhados em grande medida por Lassalle) acerca do Estado. Marx apenas de passagem toca esta questão, interessando-se por outro tema: o desenvolvimento da sociedade comunista. Toda a teoria de Marx é uma ampliação da teoria do desenvolvimento - na sua forma mais consequente, mais completa, mais reflectida e mais rica de conteúdo - ao capitalismo contemporâneo. É natural que a Marx se colocasse a questão da aplicação desta teoria tanto a bancarrota próxima do capitalismo como ao desenvolvimento futuro do comunismo futuro. Na base de que dados se pode, pois, colocar a questão do desenvolvimento futuro do comunismo futuro? Na base de que ele provém do capitalismo, se desenvolve historicamente do capitalismo, é o resultado da acção de uma força social que é gerada pelo capitalismo. Não se encontra em Marx nem sombra de tentativa de inventar Utopias, de fazer conjecturas ocas acerca do que não se pode saber. Marx coloca a questão do comunismo como um naturalista colocaria, digamos, a questão do desenvolvimento de uma nova variedade biológica, uma vez que se sabe que ela surgiu desta e desta maneira e se modifica em tal e tal direcção determinada. Em primeiro lugar, Marx afasta a confusão trazida pelo programa de Gotha na questão da correlação entre o Estado e a sociedade. «... A “sociedade actual” - escreve ele - é a sociedade capitalista que existe em todos os países civilizados, mais ou menos livre de apêndices medievais, mais ou menos modificada pelo desenvolvimento histórico particular de cada país, mais ou menos desenvolvida. Pelo contrário, o “Estado actual” varia com a fronteira do país. No império prussiano-alemão é diferente do que existe na Suíça, diferente na Inglaterra do que existe nos Estados Unidos. “O Estado actual” é, portanto, uma ficção. Contudo, os diferentes Estados dos diferentes países civilizados têm todos em comum, apesar das suas variegadas diferenças de forma, o facto de se erguerem sobre o chão da moderna sociedade burguesa, só que o desenvolvimento capitalista pode ser numa delas maior ou menor. Eles têm, por isso, também certos caracteres essenciais em comum. Neste sentido pode-se falar da “natureza do Estado actual” em oposição ao futuro em que a sua raiz de hoje, a sociedade burguesa, terá morrido. Pergunta-se, então: que transformação sofrerá a natureza do Estado numa sociedade comunista? Por outras palavras, que funções sociais restarão nela que sejam análogas às funções actuais do Estado? A esta pergunta só se pode responder cientificamente, e não é pela múltipla combinação da palavra povo com a palavra Estado que avançamos um palmo no problema ...»37 Depois de ter ridicularizado desta maneira todo o palavreado acerca do «Estado popular », Marx coloca a questão e como que adverte que, para uma resposta científica a ela, só se pode operar com dados científicos solidamente estabelecidos. A primeira coisa estabelecida com plena precisão por toda a teoria do desenvolvimento, por toda a ciência em geral - e que esqueceram os utopistas, que esquecem os oportunistas de hoje que temem a revolução socialista - e a circunstância de que historicamente tem de haver, indubitavelmente, um estadio particular ou uma etapa particular de transição do capitalismo para o comunismo. 37 Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 19, S.28). Mais adiante cita igualmente esta obra de Marx. A expressão «o Estado extingue-se» foi muito bem escolhida porque mostra tanto o carácter gradual do processo como a sua espontaneidade. Apenas o hábito pode exercer e indubitavelmente exerce tal efeito, porque observamos milhões de vezes à nossa volta a facilidade com que os homens se habituam a observar as regras de convivência que lhes são necessárias se não existe exploração, se não existe nada que suscite a indignação, que provoque o protesto e a revolta, que crie a necessidade da repressão. Assim, pois, na sociedade capitalista temos uma democracia truncada, miserável, falsa, uma democracia apenas para os ricos, para a minoria. A ditadura do proletariado, período de transição para o comunismo, estabelecerá pela primeira vez uma democracia para o povo, para a maioria, paralelamente à necessária repressão da minoria, dos exploradores. Só o comunismo está em condições de dar uma democracia verdadeiramente plena, e quanto mais plena for mais depressa se tornara supérflua, se extinguirá por si própria. Por outras palavras: temos no capitalismo o Estado no sentido próprio da palavra, uma máquina especial para a repressão de uma classe por outra, e, além disso, da maioria pela minoria. Compreende-se que, para o êxito de uma coisa como a repressão sistemática da maioria dos explorados pela minoria dos exploradores, é necessária uma crueldade, uma ferocidade extremas da repressão, são necessários mares de sangue através dos quais a humanidade segue o seu caminho nas condições da escravatura, da servidão, do salariato. Em seguida, na transição do capitalismo para o comunismo, a repressão é ainda necessária, mas é já repressão da minoria dos exploradores pela maioria dos explorados. O aparelho especial, a máquina especial para a repressão, o «Estado», é ainda necessário, mas é já um Estado de transição, já não é um Estado no sentido próprio, porque a repressão da minoria dos exploradores pela maioria dos escravos assalariados de ontem é algo relativamente tão fácil, simples e natural que custará muito menos sangue do que a repressão das insurreições de escravos, de servos, de operários assalariados, que custará muito menos à humanidade. E é compatível com a extensão da democracia a uma maioria tão esmagadora da população que a necessidade de uma máquina especial para a repressão começa a desaparecer. Os exploradores, como é natural, não estão em condições de reprimir o povo sem uma máquina muito complicada para a execução desta tarefa, mas o povo pode reprimir os exploradores mesmo com uma «máquina» muito simples, quase sem «máquina», sem aparelho especial, pela simples organização das massas armadas (como os Sovietes de deputados operários e soldados - digamos, adiantando-nos). Finalmente, só o comunismo torna o Estado completamente desnecessário, pois não há ninguém para reprimir, «ninguém» no sentido de uma classe, no sentido de uma luta sistemática contra uma parte determinada da população. Não somos utopistas e não negamos de maneira nenhuma a possibilidade e a inevitabilidade dos excessos de determinadas pessoas, e igualmente a necessidade de reprimir tais excessos. Mas, em primeiro lugar, para isto não é necessária uma maquina especial, um aparelho especial de repressão, isto fá-lo-á o próprio povo armado com a mesma simplicidade e facilidade com que qualquer multidão de homens civilizados, mesmo na sociedade actual, separa pessoas envolvidas numa briga ou não permite violência contra uma mulher. E, em segundo lugar, sabemos que a causa social fundamental dos excessos, que consistem na violação das regras da convivência, é a exploração das massas, a sua necessidade e miséria. Com a eliminação desta causa principal, os excessos começarão inevitavelmente a «extinguir-se». Não sabemos com que rapidez e gradação, mas sabemos que se extinguirão. Com a sua extinção, extinguir-se-á também o Estado. Sem cair na utopia, Marx determinou mais em pormenor o que se pode determinar agora em relação a este futuro, a saber: a diferença entre a fase (grau, etapa) inferior e superior da sociedade comunista. 3. A PRIMEIRA FASE DA SOCIEDADE COMUNISTA Na Crítica do Programa de Gotha, Marx refuta pormenorizadamente a ideia lassalliana de que no socialismo o operário receberá o «produto não reduzido» ou o «produto integral do trabalho». Marx mostra que de todo o trabalho social de toda a sociedade é preciso descontar um fundo de reserva, um fundo para ampliar a produção, para a amortização das máquinas «usadas», etc., e, para além dos artigos de consumo, um fundo para as despesas de administração, para as escolas, hospitais, asilos para velhos, etc. Em vez da frase nebulosa, obscura e geral de Lassalle («ao operário o produto integral do trabalho»), Marx faz um cálculo sensato de como a sociedade socialista será obrigada a administrar a economia. Marx aborda a análise concreta das condições de vida numa sociedade em que não existirá capitalismo, e diz: «Aquilo de que aqui estamos a tratar» (no exame do programa do partido operário) «é uma sociedade comunista não como ela se desenvolveu na sua própria base, mas, inversamente, como ela sai precisamente da sociedade capitalista, e portanto traz ainda agarrados, em todos os aspectos - económicos, morais, espirituais -, os sinais da velha sociedade de cujo seio provém.» É a esta sociedade comunista que acaba de sair das entranhas do capitalismo, que traz em todos os aspectos os sinais da velha sociedade, que Marx chama a «primeira» fase ou fase inferior da sociedade comunista. Os meios de produção deixaram já de ser propriedade privada dos indivíduos. Os meios de produção pertencem a toda a sociedade. Cada membro da sociedade, realizando uma certa parte do trabalho socialmente necessário, recebe da sociedade um certificado comprovando a quantidade de trabalho que forneceu. Com esse certificado, recebe nos armazéns públicos de artigos de consumo uma quantidade correspondente de produtos. Descontada a quantidade de trabalho que vai para o fundo social, cada operário, por conseguinte, recebe da sociedade tanto quanto lhe deu. Reina aparentemente a «igualdade». Mas quando Lassalle diz, tendo em vista tal ordem social (que se chama habitualmente socialismo e a que Marx dá o nome de primeira fase do comunismo), que isto é uma «repartição justa», que isto é o «direito igual de cada um ao produto igual do trabalho», então Lassalle erra, e Marx explica o seu erro. O «direito igual» - diz Marx - temo-lo aqui, com efeito, mas é ainda o «direito burguês», que, como todo o direito, pressupõe a desigualdade. Todo o direito é a aplicação de uma medida idêntica a pessoas diferentes, que, de facto, não são idênticas, não são iguais umas às outras; e por isso o «direito igual» é uma violação da igualdade e uma injustiça. Na realidade, cada um recebe, tendo fornecido uma parte do trabalho social igual à dos outros, uma parte igual do produto social (com os descontos indicados). Mas, entretanto, os indivíduos não são iguais: um é mais forte, outro é mais fraco; um é casado, outro não, um tem mais filhos, outro menos, etc. «... Com a mesma realização de trabalho - conclui Marx -, e por isso com a mesma quota-parte do fundo social de consumo, um recebe portanto, de facto, mais do que o outro, um é mais rico do que o outro, etc. Para evitar todos estes males, o direito teria de ser, em vez de igual, desigual...» A justiça e a igualdade, consequentemente, não podem ainda ser dadas pela primeira fase do comunismo: subsistirão diferenças de riqueza, e diferenças injustas, mas a exploração do homem pelo homem será impossível, porque ninguém poderá apoderar-se como propriedade privada dos meios de produção, fábricas, máquinas, terra, etc. Refutando a frase obscura e pequeno-burguesa de Lassalle acerca da «igualdade» e da «justiça» em geral, Marx mostra o curso do desenvolvimento da sociedade comunista, que é obrigada a começar por suprimir apenas essa «injustiça» que é a apropriação dos meios de produção pelos indivíduos, e que não está em condições de suprimir imediatamente também a outra injustiça, que consiste na distribuição dos artigos de consumo «segundo o trabalho» (e não segundo as necessidades). Os economistas vulgares, incluindo os professores burgueses, incluindo o «nosso» Tugan, censuram constantemente os socialistas por esquecerem a desigualdade dos homens e por «sonharem» com a supressão desta desigualdade. Esta censura, como vemos, prova simplesmente a ignorância extrema dos senhores ideólogos burgueses. Marx não apenas tem em conta do modo mais preciso a inevitável desigualdade dos homens como tem também em conta que a simples passagem dos meios de produção à propriedade comum de toda a sociedade (o «socialismo» na utilização habitual da palavra) não elimina os males da distribuição e da desigualdade do «direito burguês», que continua a dominar, porquanto os produtos são repartidos «segundo o trabalho». «... Mas estes males - prossegue Marx - são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista tal como esta saiu, depois de longas dores de parto, precisamente da sociedade capitalista. O direito nunca pode ser superior à construção económica e ao desenvolvimento cultural por ela condicionado da sociedade ...» Desta forma, na primeira fase da sociedade comunista (a que habitualmente se chama socialismo), o «direito burguês» é abolido não completamente mas apenas em parte, apenas na medida da revolução económica já alcançada, isto é, apenas em relação aos meios de produção. O «direito burguês» reconhece a sua propriedade privada por indivíduos. O socialismo faz deles propriedade comum. É nesta medida - e só nesta medida - que o «direito burguês» caduca. Subsiste no entanto na sua outra parte, subsiste na qualidade de regulador (definidor) da distribuição dos produtos e da distribuição do trabalho entre os membros da sociedade. «Quem não trabalha não deve comer» - este princípio socialista já está realizado; «para igual quantidade de trabalho, igual quantidade de produtos» - também este outro princípio socialista já está realizado. Todavia, isto ainda não é o comunismo e isto ainda não elimina o «direito burguês» que, a homens desiguais e por uma quantidade desigual (desigual de facto) de trabalho, dá uma quantidade igual de produtos. Isto é um «mal», diz Marx, mas ele é inevitável na primeira fase do comunismo, pois não se pode pensar, sem cair no utopismo, que, tendo derrubado o capitalismo, os homens aprendem imediatamente a trabalhar para a sociedade sem quaisquer normas de direito; e, além do mais, a abolição do capitalismo não dá imediatamente as premissas económicas para uma tal mudança. Mas não existem outras normas além das do «direito burguês». E nesta medida subsiste ainda a necessidade de um Estado que, protegendo a propriedade comum dos meios de produção, proteja a igualdade do trabalho e a igualdade de repartição do produto. O Estado extingue-se na medida em que já não há capitalistas, já não há classes e por isso não se pode reprimir nenhuma classe. Mas a diferença científica entre socialismo e comunismo é clara. Aquilo a que se chama habitualmente socialismo, chamou Marx a «primeira» fase ou fase inferior da sociedade comunista. Na medida em que os meios de produção se tornam propriedade comum, a palavra «comunismo» pode aplicar-se também aqui, se não se esquecer que isto não é o comunismo completo. A grande importância das explicações de Marx consiste em que aplica consequentemente, também aqui, a dialéctica materialista, a doutrina do desenvolvimento, considerando o comunismo como qualquer coisa que se desenvolve do capitalismo. Em vez de definições «inventadas», escolasticamente imaginadas e de estéreis discussões sobre palavras (o que é o socialismo, o que é o comunismo), Marx analisa o que se poderia chamar os graus da maturidade económica do comunismo. Na sua primeira fase, no seu primeiro grau, o comunismo não pode ainda, no plano económico, estar completamente maduro, completamente liberto das tradições ou dos vestígios do capitalismo. Daí um fenómeno tão interessante como a conservação do «horizonte estreito do direito burguês » - no comunismo na sua primeira fase. O direito burguês em relação à distribuição dos produtos de consumo pressupõe, como é natural, também inevitavelmente um Estado burguês, pois o direito nada é sem um aparelho capaz de obrigar à observação das normas do direito. Daí decorre que no comunismo subsiste durante um certo tempo não só o direito burguês mas também o Estado burguês - sem burguesia! Isto pode parecer um paradoxo ou simplesmente um jogo dialéctico do espírito, do que frequentemente culpam o marxismo as pessoas que não fizeram o menor esforço para estudar o seu conteúdo extraordinariamente profundo. Na realidade, a vida mostra-nos a cada passo vestígios do velho no novo, tanto na natureza como na sociedade. E Marx não enfiou arbitrariamente um pedacinho do direito «burguês» no comunismo, antes tomou aquilo que, económica e politicamente, é inevitável numa sociedade saída das entranhas do capitalismo. A democracia tem uma importância enorme na luta da classe operária contra os capitalistas pela sua libertação. Mas a democracia não é de modo nenhum um limite intransponível, mas apenas uma das etapas no caminho do feudalismo para o capitalismo e do capitalismo para o comunismo. Democracia significa igualdade. Compreende-se a grande importância que tem a luta do proletariado pela igualdade e a palavra de ordem de igualdade se a compreendermos correctamente no sentido da supressão das classes. Mas democracia significa apenas igualdade formal. E imediatamente depois da realização da igualdade de todos os membros da sociedade em relação à propriedade dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho, a igualdade do salário, levantar- se-á inevitavelmente perante a humanidade a questão de avançar da igualdade formal para igualdade de facto, isto é, para a realização da regra: «de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.» Por que etapas, através de que medidas práticas a humanidade chegará a este fim supremo, não sabemos nem podemos saber. Mas o que importa é compreender como é imensamente falsa a concepção burguesa habitual segundo a qual o socialismo é qualquer coisa morta, cristalizada, dada de uma vez para sempre, quando na realidade apenas com o socialismo começa um movimento de avanço rápido, verdadeiro, efectivamente de massas, com a participação da maioria e depois de toda a população, em todos os domínios da vida social e individual. A democracia é uma forma de Estado, uma das suas variedades. E, consequentemente, ela representa em si, como qualquer Estado, a aplicação organizada, sistemática, da violência sobre as pessoas. Isto por um lado. Mas, por outro lado, significa o reconhecimento formal da igualdade entre os cidadãos, do direito igual para todos de determinar a organização do Estado e de o dirigir. E isto, por seu turno, liga-se ao facto de que num certo grau de desenvolvimento da democracia, ela, em primeiro lugar, une a classe revolucionária que está contra o capitalismo, o proletariado, e permite-lhe quebrar, demolir completamente, fazer desaparecer da face da terra a máquina de Estado burguesa, mesmo que republicana-burguesa, o exército permanente, a polícia, o funcionalismo, e substituí-los por uma máquina de Estado mais democrática, mas ainda uma máquina de Estado, sob a forma das massas operárias armadas que passam à participação de todo o povo na milícia. Aqui «a quantidade transforma-se em qualidade»: este grau do democratismo está ligado à saída do quadro da sociedade burguesa, ao começo da sua reorganização socialista. Se todos participam realmente na administração do Estado, então o capitalismo já não poderá manter-se. E o desenvolvimento do capitalismo cria, por sua vez, as premissas para que «todos» possam realmente participar na administração do Estado. Entre estas premissas conta-se a alfabetização geral já realizada por uma série dos países capitalistas mais avançados, em seguida o «educar e disciplinar» milhões de operários pelo grande, complexo e socializado aparelho dos correios, dos caminhos-de-ferro, das grandes fábricas, do grande comércio, dos bancos, etc., etc. Com tais premissas económicas é perfeitamente possível, depois de derrubados os capitalistas e os funcionários, passar imediatamente à sua substituição de um dia para o outro - em matéria de controlo da produção e da distribuição, em matéria de registo do trabalho e dos produtos - pelos operários armados, por todo o povo armado. (Não se deve confundir a questão do controlo e do registo com a questão do pessoal com formação científica, dos engenheiros, dos agrónomos, etc.: estes senhores trabalham hoje subordinando-se aos capitalistas e trabalharão ainda melhor amanhã subordinando-se aos operários armados.) Registo e controlo - eis o principal, o que é necessário para a organização, para o funcionamento regular da primeira fase da sociedade comunista. Aqui todos os cidadãos se transformam em empregados assalariados do Estado constituído pelos operários armados. Todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um único «consórcio» estatal, nacional. Tudo está em que trabalhem por igual, observando exactamente a medida do trabalho, e recebam por igual. O registo disto, o controlo disto foram simplificados em extremo pelo capitalismo, até operações extraordinariamente simples de vigilância acessíveis a qualquer pessoa alfabetizada, até ao conhecimento das quatro operações da aritmética e à entrega dos recibos correspondentes40. Quando a maioria do povo começar a realizar autonomamente e por toda a parte tal registo, tal controlo dos capitalistas (transformados agora em empregados) e dos senhores intelectuaizinhos que conservem os hábitos capitalistas, então esse controlo será verdadeiramente universal, geral, de todo o povo, então ninguém se poderá esquivar a ele, «não haverá para onde fugir». Toda a sociedade será um único escritório e uma única fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de salário. 40 Nota do Autor: Quando um Estado se reduz na parte principal das suas funções a este registo e controlo por parte dos próprios operários, então deixa de ser um “Estado político”, então “as funções públicas transformam-se de políticas em funções simplesmente administrativas”. (Ver atrás, cap. IV, ponto 2, sobre polémica de Engels com os anarquistas.) Mas esta disciplina «fabril» que o proletariado, depois de ter vencido os capitalistas e derrubado os exploradores, tornará extensiva a toda a sociedade, não é de forma alguma nem o nosso ideal nem o nosso objectivo final, mas apenas um degrau necessário para limpar radicalmente a sociedade da baixeza e das ignomínias da exploração capitalista e para continuar o movimento para a frente. A partir do momento em que todos os membros da sociedade, ou pelo menos a sua imensa maioria, tenham aprendido a administrar eles próprios o Estado, tenham tomado eles próprios as coisas nas suas mãos, tenham «organizado» o controlo sobre a insignificante minoria dos capitalistas, sobre os senhoritos que desejam conservar os hábitos capitalistas, sobre os operários profundamente corrompidos pelo capitalismo - a partir desse momento começa a desaparecer a necessidade de toda a administração em geral. Quanto mais completa for a democracia mais próximo está o momento em que se tornará desnecessária. Quanto mais democrático for o «Estado» constituído pelos operários armados, e que «já não é um Estado no sentido próprio da palavra», mais depressa começará a extinguir-se todo o Estado. Pois quando todos tiverem aprendido a administrar e administrarem de facto autonomamente a produção social, realizarem autonomamente o registo e o controlo sobre os parasitas, os fidalgotes, os vigaristas e os outros «depositários das tradições do capitalismo» - então esquivar-se a este registo e controlo de todo o povo tornar-se-á inevitavelmente tão incrivelmente difícil e de uma raridade tão excepcional, acarretará provavelmente um castigo tão rápido e sério (pois os operários armados são pessoas práticas e não intelectuaizinhos sentimentais, e dificilmente permitirão que brinquem com eles), que a necessidade de observar as regras simples, fundamentais, de toda a convivência humana se tornará muito depressa um hábito. E então abrir-se-á de par em par a porta para passar da primeira fase da sociedade comunista para a sua fase superior e, ao mesmo tempo, para a extinção completa do Estado. CAPÍTULO VI A VULGARIZAÇÃO DO MARXISMO PELOS OPORTUNISTAS A questão da atitude do Estado para com a revolução social e da revolução social para com o Estado ocupou muito pouco os teóricos e os publicistas mais destacados da II Internacional (1889-1914), como também a questão da revolução em geral. Mas o mais característico no processo de crescimento gradual do oportunismo, que conduziu a bancarrota da II Internacional em 1914, e que, mesmo quando abordaram de perto esta questão, esforçaram-se por eludi-la ou não a notaram. De uma maneira geral, pode-se dizer que do esquivar-se à questão da atitude da revolução proletária para com o Estado, esquivar-se vantajoso para o oportunismo e que o alimentava, resultou a deturpação do marxismo e a sua completa vulgarização. A fim de caracterizar, mesmo brevemente, este lamentável processo, tomemos os teóricos mais destacados do marxismo, Plekhánov e Kautsky. 1. A POLÉMICA DE PLEKHÁNOV COM OS ANARQUISTAS Plekhánov consagrou à questão da atitude do anarquismo para com o socialismo uma brochura especial: Anarquismo e Socialismo, que foi publicada em alemão em 1894. Plekhánov arranjou maneira de tratar este tema eludindo completamente o que é mais actual, mais candente e politicamente mais essencial na luta contra o anarquismo, a saber: a atitude da revolução para com o Estado e a questão do Estado em geral! Na sua brochura destacam-se duas partes: uma histórico-literária, com material valioso acerca da história das ideias de Stirner, de Proudhon, etc. Daí resulta que a .própria distinção essencial entre o marxismo e o oportunismo sobre a questão das tarefas da revolução proletária é escamoteada por Kautsky! «A decisão sobre o problema da ditadura proletária - escrevia Kautsky «contra» Bernstein - podemos deixá-la muito tranquilamente ao futuro» (p. 172 da edição alemã). Isto não é uma polémica contra Bernstein, mas, no fundo, uma concessão a ele, uma entrega de posições ao oportunismo, pois, de momento, os oportunistas não precisam de nada mais do que «deixar muito tranquilamente ao futuro» todas as questões fundamentais das tarefas da revolução proletária. De 1852 a 1891, no decurso de quarenta anos, Marx e Engels ensinaram ao proletariado que devia quebrar a máquina de Estado. Mas Kautsky, em 1899, perante a traição total ao marxismo pelos oportunistas neste ponto, substitui a questão de se é necessário quebrar esta máquina pela questão das formas concretas de a quebrar, refugia-se à sombra da «incontestável» (e estéril) verdade filistina de que não podemos conhecer antecipadamente as formas concretas!! Entre Marx e Kautsky há um abismo na sua atitude para com a tarefa do partido proletário de preparar a classe operária para a revolução. Tomemos a obra seguinte, mais madura, de Kautsky, consagrada também em medida significativa à refutação dos erros do oportunismo. É a sua brochura sobre A Revolução Social. O autor tomou aqui como seu tema especial a questão da «revolução proletária» e do «regime proletário». O autor deu muitas coisas extremamente valiosas mas eludiu exactamente a questão do Estado. Na brochura fala-se constantemente da conquista do poder de Estado, e só, isto é, é escolhida uma formulação tal que faz uma concessão aos oportunistas, na medida em que admite a conquista do poder sem a destruição da máquina de Estado. Kautsky ressuscita em 1902 exactamente aquilo que, em 1872, Marx declarava «obsoleto» no programa do Manifesto Comunista. Na brochura dedica-se um parágrafo especial às «Formas e armas da revolução social». Aqui fala-se tanto da greve política de massas, como da guerra civil, como desses «instrumentos de força do grande Estado moderno, como a burocracia e o exército», mas sobre o que a Comuna já ensinou aos operários nem uma palavra. Evidentemente, não era por acaso que Engels advertia, especialmente os socialistas alemães, contra a «veneração supersticiosa» do Estado. Kautsky expõe a coisa assim: o proletariado vitorioso «realizará o programa democrático» e expõe os seus parágrafos. Quanto ao que 1871 deu de novo sobre a questão da substituição da democracia burguesa pela democracia proletária, nem uma palavra. Kautsky escapa-se com estas banalidades de aparência «sólida»: «E, contudo, é evidente que, nas circunstâncias actuais, não chegamos ao domínio. A própria revolução pressupõe lutas longas e profundas, as quais já transformarão a nossa actual estrutura política e social.» É indubitável que isto é «evidente», como a verdade de que os cavalos comem aveia e que o Volga corre para o mar Cáspio. Só é de lamentar que por meio de uma frase sonora e oca sobre as lutas «longas e profundas» se eluda a questão vital para o proletariado revolucionário de em quê precisamente se exprime a «profundidade» da sua revolução em relação ao Estado, em relação à democracia, diferentemente das revoluções anteriores não proletárias. Eludindo esta questão, Kautsky faz de facto uma concessão ao oportunismo acerca deste ponto fundamental, declarando-lhe uma guerra terrível em palavras, sublinhando a importância da «ideia de revolução» (valerá muito esta «ideia» se se teme propagandear entre os operários as lições concretas da revolução?), ou dizendo: «o idealismo revolucionário antes de mais nada», ou declarando que hoje os operários ingleses são «pouco mais do que pequeno-burgueses». «As formas mais diversas de empresas - escreve Kautsky -, burocráticas (??), sindicais, cooperativas, individuais ... podem existir lado a lado numa sociedade socialista ... Há, por exemplo, empresas que não podem passar sem uma organização burocrática (??), como os caminhos-de-ferro. Nelas a organização democrática pode assumir uma forma tal que os operários elejam delegados que constituirão uma espécie de parlamento, o qual estabelecerá as regras do trabalho e fiscalizará a administração do aparelho burocrático. Outras empresas podem ser entregues à administração dos sindicatos, e outras ainda podem ser exploradas por meio de cooperativas» (pp. 148 e 115 da tradução russa, edição de Genebra de 1903). Este raciocínio é errado, representando um passo atrás em relação aquilo que Marx e Engels esclareceram nos anos 70 baseando-se nas lições da Comuna. Do ponto de vista da necessidade de uma organização pretensamente «burocrática», os caminhos- de-ferro não se distinguem absolutamente em nada de todas as empresas em geral da grande indústria mecanizada, de qualquer fábrica, de um grande armazém, de uma grande empresa agrícola capitalista. Em todas estas empresas a técnica prescreve incondicionalmente uma disciplina rigorosíssima, a maior precisão na observância da parte de trabalho indicada a cada um, sob perigo de paralisação de toda a empresa ou de deterioração do mecanismo, de deterioração do produto. Em todas estas empresas, naturalmente, os operários «elegerão delegados que constituirão uma especie de parlamento». Mas tudo está em que esta «espécie de parlamento» não será um parlamento no sentido das instituições parlamentares burguesas. Tudo está em que esta «espécie de parlamento» não se limitará a «estabelecer as regras do trabalho e a fiscalizar a administração do aparelho burocrático», como imagina Kautsky, cujo pensamento não sai dos limites do parlamentarismo burguês. Naturalmente, na sociedade socialista uma « espécie de parlamento» de deputados operários «estabelecerá as regras do trabalho e fiscalizará a administração» do «aparelho», mas este aparelho não será «burocrático». Os operários, tendo conquistado o poder político, quebrarão o velho aparelho burocrático, demoli-lo-ão até aos fundamentos, não deixarão dele pedra sobre pedra, substitui-lo-ão por um novo consistindo nesses mesmos operários e empregados, contra cuja transformação em burocratas serão tomadas imediatamente as medidas minuciosamente estudadas por Marx e Engels: 1) não apenas elegibilidade mas também amovibilidade em qualquer momento; 2) um salário não superior ao salário operário; 3) passagem imediata para a realização por todos das funções de controlo e de fiscalização, de modo a que todos se tornem durante algum tempo «burocratas» e que, por isso, ninguém se possa tornar «burocrata». Kautsky não reflectiu absolutamente nada nas palavras de Marx: «A Comuna era não um corpo parlamentar, mas um corpo de trabalho, que simultaneamente adopta as leis e as aplica.» Kautsky não compreendeu absolutamente nada da diferença entre o parlamentarismo burguês, que une a democracia (não para o povo) ao burocratismo (contra o povo), e o democratismo proletário, que tomará imediatamente medidas para cortar o burocratismo pela raiz e que estará em condições de levar estas medidas até ao fim, até à supressão completa do burocratismo, até à introdução completa da democracia para o povo. Kautsky revelou aqui a mesma «veneração supersticiosa» em relação ao Estado, a mesma «fé supersticiosa» no burocratismo. Passemos à última e melhor obra de Kautsky contra os oportunistas, a sua brochura O Caminho para o Poder (parece que não foi editada em russo, porque apareceu no auge da reacção no nosso país, em 1909). Esta brochura é um grande passo em frente na medida em que nela se fala não do programa revolucionário em geral, como na brochura de 1899 contra Bernstein, nem das tarefas da revolução social independentemente da época do seu começo, como na brochura A Revolução Social de 1902, mas das condições concretas que nos obrigam a reconhecer que a «era das revoluções» começa. O autor indica explicitamente o agravamento das contradições de classe em geral e o imperialismo, o qual desempenha a este respeito um papel especialmente importante. Depois do «período revolucionário de 1789 a 1871» na Europa ocidental, começa em 1905 um período análogo no Leste. A guerra mundial aproxima-se com uma rapidez ameaçadora. «O proletariado não pode já falar de uma revolução prematura.» «Entramos no período revolucionário.» «A era revolucionária começa.» Estas declarações são absolutamente claras. Esta brochura de Kautsky deve servir de medida de comparação entre o que a social-democracia germânica prometia ser antes da guerra imperialista e quão baixo ela caiu (incluindo o próprio Kautsky) ao rebentar a guerra. «A situação actual - escrevia Kautsky na brochura analisada - comporta o perigo de facilmente nos poderem tomar (isto é, à social-democracia germânica) por mais moderados do que de facto somos.» Verificou-se que de facto o partido social-democrata germânico era incomparavelmente mais moderado e oportunista do que parecia! Tanto mais característico é que a par de uma tal precisão das declarações de Kautsky acerca da era já iniciada das revoluções, ele, numa brochura consagrada, segundo as suas próprias palavras, à análise da questão precisamente da «revolução política», mais uma vez eludiu completamente a questão do Estado. Da soma destas fugas à questão, destes silêncios e evasivas resultou inevitavelmente essa passagem completa para o oportunismo, de que vamos falar a seguir. A social-democracia germânica, na pessoa de Kautsky, parecia declarar: mantenho-me nas minhas concepcões revolucionárias (1899). Reconheço em particular a inevitabilidade da revolução social do proletariado (1902). Reconheço que começa uma nova era de revoluções (1909). Mas, apesar de tudo isto, recuo em relação aquilo que Marx disse já em 1852, logo que se coloca a questão das tarefas da revolução proletária em relação ao Estado (1912). Foi precisamente assim que a questão foi posta de frente na polémica de Kautsky com Pannekoek. 3. A POLÉMICA DE KAUTSKY COM PANNEKOEK Pannekoek interveio contra Kautsky como um dos representantes da corrente «radical de esquerda» que contava nas suas fileiras Rosa Luxemburg, Karl Rádek e outros, e que, defendendo a táctica revolucionária, se unia na convicção de que Kautsky passava para uma posição de «centro», que vacilava sem princípios entre o marxismo e o oportunismo. A justeza desta concepção foi plenamente demonstrada pela guerra, quando a corrente do «centro» (erradamente chamada marxista) ou «kautskianismo» se revelou em toda a sua repugnante mediocridade. A sua pergunta relativa aos funcionários mostra com toda a evidência que não compreendeu as lições da Comuna e a doutrina de Marx.«No partido e no sindicato não podemos passar sem funcionários...» Não passamos sem os funcionários sob o capitalismo, sob a dominação da burguesia. O proleta- riado é oprimido, as massas trabalhadoras são escravizadas pelo capitalismo. Sob o capitalismo o democratismo é limitado, comprimido, truncado, mutilado por todo o ambiente de escravatura assalariada, de necessidade e miséria das massas. Por isso, e só por isso, nas nossas organizações políticas e sindicais os funcionários se corrompem (ou tem tendência para ser corrompidos, falando mais precisamente) pelo ambiente do capitalismo e mostram uma tendência para se transformar em burocratas, isto é, em pessoas privilegiadas, desligadas das massas, colocadas acima das massas. Nisto reside a essência do burocratismo, e, enquanto os capitalistas não forem expropriados, enquanto a burguesia não for derrubada, até esse momento é inevitável uma certa «burocratização» mesmo dos funcionários proletários. Em Kautsky as coisas aparecem assim: uma vez que subsistirão funcionários públicos eleitos, isto significa que subsistirão também funcionários no socialismo, subsistirá a burocracia! É isso precisamente que é falso. Precisamente com o exemplo da Comuna, Marx mostrou que no socialismo os que ocupam funções públicas deixam de ser «burocratas», de ser «funcionários », deixam de o ser à medida que, alem da elegibilidade, se introduz também a amovibilidade em qualquer momento, e também a redução dos vencimentos ao nível operário médio, e também a substituição das instituições parlamentares por instituições «de trabalho, isto é, que adoptam as leis e as levam à prática». No fundo, toda a argumentação de Kautsky contra Pannekoek, especialmente o argumento notável de Kautsky de que tanto nas organizações sindicais como nas do partido não se pode passar sem funcionários, mostra que Kautsky repete os velhos «argumentos» de Bernstein contra o marxismo em geral. No seu livro de renegado As Premissas do Socialismo, Bernstein combate as ideias de democracia «primitiva», aquilo que chama o «democratismo doutrinário» - mandatos imperativos, funcionários não remunerados, representação central impotente, etc. Para demonstrar a inconsistência deste democratismo «primitivo», Bernstein invoca a experiência das trade-unions inglesas na interpretação dos esposos Webb. Em setenta anos do seu desenvolvimento, diz, as trade- unions, que se teriam pretensamente desenvolvido «em plena liberdade» (p. 137 da edição alemã), convenceram-se precisamente da inutilidade do democratismo primitivo e substituíram-no pelo habitual: o parlamentarismo combinado com o burocratismo. De facto, as trade-unions desenvolveram-se não «em plena liberdade» mas em plena escravatura capitalista, na qual, certamente, «não se passa» sem uma série de concessões ao mal reinante, a violência, a mentira, a exclusão dos pobres dos assuntos da administração «superior». No socialismo, muito da democracia «primitiva» reviverá necessariamente, pois, pela primeira vez na história das sociedades civilizadas, a massa da população se elevará até à participação autónoma não só nas votações e eleições mas também na administração quotidiana. No socialismo todos administrarão por turno e se habituarão depressa a que ninguém administre. Com a sua genial inteligência crítico-analítica, Marx viu nas medidas práticas da Comuna aquela viragem que os oportunistas temem e não querem reconhecer por cobardia, porque não querem romper definitivamente com a burguesia, e que os anarquistas não querem ver quer por pressa quer por incompreensão das transformações sociais de massas em geral. «Não se deve sequer pensar em destruir a velha máquina de Estado, pois como passar sem ministérios e sem funcionários?» - raciocina o oportunista impregnado até à medula de filistinismo e que, no fundo, não só não acredita na revolução, na actividade criadora da revolução, como tem um medo mortal dela (como têm medo dela os nossos mencheviques e os nossos socialistas-revolucionários). «Deve-se pensar apenas na destruição da velha máquina de Estado, é inútil aprofundar as lições concretas das revoluções proletárias anteriores, e analisar pelo quê e como substituir o que é destruído» - raciocina o anarquista (o melhor dos anarquistas, naturalmente, e não aquele que, atrás dos Srs. Kropotkine e C.ª, se arrasta atrás da burguesia); e daqui decorre no anarquista uma táctica de desespero, e não um trabalho revolucionário com objectivos concretos, implacável e audacioso e que tem em conta ao mesmo tempo as condições práticas do movimento de massas. Marx ensina-nos a evitar ambos os erros, ensina-nos uma audácia sem limites na destruição de toda a velha máquina de Estado, e ao mesmo tempo ensina a colocar a questão de uma forma concreta: a Comuna pôde, em algumas semanas, começar a construir uma máquina de Estado nova, proletária, desta e daquela maneira, tomando as medidas indicadas para assegurar o maior democratismo e extirpar o burocratismo. Aprendamos pois com os communards a audácia revolucionária, vejamos nas suas medidas práticas um esboço das medidas praticamente urgentes e imediatamente possíveis, e então, seguindo este caminho, chegaremos à completa destruição do burocratismo. A possibilidade desta destruição é assegurada pelo facto de que o socialismo reduzirá o dia de trabalho, elevará as massas a uma vida nova, colocará a maioria da população em condições que permitam a todos sem excepção desempenhar as «funções públicas», e isto conduzirá à extinção completa de todo o Estado em geral. «A sua tarefa» (da greve de massas) - prossegue Kautsky - «não pode ser a de destruir o poder de Estado, mas tão-só a de forçar um governo à transigência numa questão determinada ou de substituir um governo hostil ao proletariado por um que vá ao seu encontro (entgegen-kommende) ... Mas nunca, de modo nenhum, poderá isto» (ou seja, a vitória do proletariado sobre o governo hostil) «conduzir a uma destruição de poder de Estado, mas sempre apenas a uma modificação (Verschiebung) das relações de força no seio do poder de Estado ... E o objectivo da nossa luta política continua, assim, a ser o que foi até aqui: conquistar o poder de Estado obtendo a maioria no parlamento e elevar o parlamento a senhor do governo» (pp. 726, 727, 732). Isto é já o oportunismo mais puro e mais vulgar, a renúncia de facto à revolução, embora reconhecendo-a em palavras. O pensamento de Kautsky não vai além de um «governo que vá ao encontro do proletariado», é um passo atrás na direcção do filistinismo em comparação com 1847, quando o Manifesto Comunista proclamava a «organização do proletariado como classe dominante». Kautsky terá de realizar a «unidade» preferida por ele com os Scheidemann, os Plekhánov, os Vandervelde, todos de acordo em lutar por um governo «que vá ao encontro do proletariado». Mas nós romperemos com estes traidores ao socialismo e lutaremos pela destruição de toda a velha máquina de Estado, para que o próprio proletariado armado seja o governo. Isto são «duas coisas muito diferentes». Kautsky terá de ficar na agradável companhia dos Legien e dos David, dos Plekhánov, dos Potréssov, dos Tseretéli e dos Tchernov, que estão completamente de acordo em lutar por uma «modificação da relação de forças no seio do poder de Estado», pela «obtenção da maioria no parlamento e o poder absoluto do parlamento sobre o governo», objectivo nobilíssimo, em que tudo é aceitável para os oportunistas, tudo permanece no quadro da república parlamentar burguesa. Mas nós romperemos com os oportunistas; e todo o proletariado consciente estará connosco na luta não por uma «modificação da relação de forças» mas pelo derrubamento da burguesia, pela destruição do parlamentarismo burguês, por uma república democrática do tipo da Comuna ou uma república dos Sovietes de deputados operários e soldados, pela ditadura revolucionária do proletariado. *** Mais à direita do que Kautsky no socialismo internacional estão correntes como os Cadernos Mensais Socialistas45 na Alemanha (Legien, David, Kolb e muitos outros, incluindo os escandinavos Stauning e Branting), os jauressistas46 e Vandervelde na França e na Bélgica, Turati, Treves e outros representantes da ala direita do partido italiano, os fabianos e os «independentes» (o partido trabalhista independente, que na realidade esteve sempre na dependência dos liberais) em Inglaterra, e outros que tais. Todos estes senhores, que desempenham um papel enorme, muitas vezes preponderante, no trabalho parlamentar e na publicística do partido, negam abertamente a ditadura do proletariado e praticam um oportunismo descarado. Para estes senhores, a «ditadura» do proletariado «contradiz» a democracia!! No fundo nada de sério os diferencia dos democratas pequeno-burgueses. Tomando em consideração esta circunstância temos o direito de concluir que a II Internacional, na esmagadora maioria dos seus representantes oficiais, caiu completamente no oportunismo. A experiência da Comuna foi não só esquecida mas deturpada. Não só não se incutiu nas massas operárias que se aproxima o momento em que deverão agir e quebrar a velha máquina de Estado substituindo-a por uma nova e transformando deste modo a sua dominação política na base da reorganização socialista da sociedade, como se incutiu nas massas o contrário, e a «conquista do poder» foi apresentada de tal maneira que ficaram abertas mil brechas ao oportunismo. A deturpação e o silenciamento da questão da atitude da revolução proletária em relação ao Estado não podiam deixar de desempenhar um papel enorme quando os Estados, com um aparelho militar reforçado em consequência da competição imperialista, se converteram em monstros guerreiros que exterminam milhões de homens para resolver o litígio de quem, a Inglaterra ou a Alemanha, um ou outro capital financeiro, dominará o mundo47. . . 45 Cadernos Mensais Socialistas (Sozialistisches Monatshefte): revista, órgão principal dos oportunistas alemães e um dos órgãos do revisionismo internacional; publicou-se em Berlim de 1897 a 1933. Durante a Primeira Guerra Mundial adoptou uma posição social-chauvinista. 46 Jauressistas: partidários do socialista francês Jean Jaurés, que defendiam uma revisão das teses fundamentais do marxismo e pregavam a colaboração de classes do proletariado com a burguesia. Em 1902 os jauressistas fundaram o Partido Socialista Francês, que seguiu uma política reformista. Em 1905 este partido uniu-se com o Partido Socialista de França dirigido por Jules Guesdes , criando-se assim um só partido – o Partido Socialista Francês. Durante a Primeira Guerra Mundial, os jauressistas, que contavam com a maioria na direcção do Partido Socialista Francês, tomaram uma posição social-chauvinista e defenderam abertamente a guerra imperialista. 47 No Manuscrito segue-se: Capítulo VII – A Experiência das Revoluções Russas de 1905 e 1917. O tema indicado no título deste capítulo é tao imensamente grande que sobre ele se pode e se deve escrever tomos. Na presente brochura, temos de nos limitar, naturalmente, às lições mais importantes da experiência que dizem respeito directamente às tarefas do proletariado na revolução em relação ao poder de Estado.» (Interrompe-se aqui o manuscrito. - N. Ed.)
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved