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Aristóteles - A Política, Notas de estudo de Cultura

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Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 23/08/2008

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Baixe Aristóteles - A Política e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! A Política Aristóteles Prefácio Só penetramos bem as obras próximas de nós mesmos ou de nosso tempo, pelo menos por algum aspecto. Igualmente, só se amam os escritos cujo autor nos atrai por seu caráter e por seu exemplo. Ora, Aristóteles, com a extrema dignidade de vida, a nobreza de pensamento, o gosto por um justo equilíbrio, é para nós, por toda a sua personalidade, um reconforto. Com efeito, foi possível classificá-lo não apenas entre os "grandes espíritos", mas também entre os "grandes corações". Na coleção de biografias - quase de hagiografias -que levava este título, M. D. Roland-Gosselin chega a esta conclusão um tanto inesperada: "Decididamente, não édemais dizer que Aristóteles foi um excelente marido, um pai afetuoso e devotado, um bom homem." Ela ilumina com uma luz bastante simpática a fisionomia do Estagirita, cuja vida, na medida em que a conhecemos exatamente, revela poucos acontecimentos e, afora a educação de Alexandre, é carente dos grandes cargos que não raro acompanham os grandes livros consagrados ao Estado e a seu governo. Aristóteles não é nada mais do que um "intelectual", no melhor sentido da palavra, um "letrado" que às vezes age não sem prudência, mas nunca sem coragem ou sem retidão. Romperá com seu real discípulo depois do assassínio de Calístenes; para retirá-la do cativeiro, desposará Pítia, sobrinha e filha adotiva de seu amigo crucificado, Hérmias de Atárnea; com palavras tocantes, cercará de zelos póstumos sua segunda esposa, Hérpilis, "que lhe foi muito devotada". Assim, por si mesmo, o homem deu testemunho do alto ideal de que está impregnada toda a sua obra. Colocou-se naquela disposição de espírito que Paul Bureau diz ser a condição primeira de todo estudo sociológico, exigindo daqueles que se entregaram a ele o acordo da seriedade de suas vidas com a gravidade de suas pesquisas. Estas qualidades morais, no entanto, não teriam por si sós feito do autor da Política senão um estimável pedagogo e não o gênio excepcional que "entreviu de relance os problemas fundamentais da sociologia jurídica: a microssociologia do direito, a sociologia jurídica diferencial e a sociologia jurídica genética"; que, mais diretamente, fundou o direito constitucional com seus diferentes ramos, histórico, nacional, geral e comparativo; que criou a ciência política no sentido de que, estabelecendo a dinâmica e medindo o rendimento das instituições, ela ultrapasse o direito. Um duplo concurso de circunstâncias era necessário para o surgimento e o florescimento dessa prodigiosa personalidade e para, dentro do "milagre grego", realizar o milagre aristotélico. Em primeiro lugar, era preciso que Aristóteles fosse, senão médico - ele sempre se proibiu de ser um profissional -, pelo menos biólogo, para que, dado desde a infância às ciências da natureza, tivesse adquirido o método original com o qual criaria as ciências do homem em sociedade. Como Wilhelm Oncken faz lembrar, Aristóteles era filho de um Asclepíada chamado Nicômaco, que vivia na corte de Macedônia como amigo e médico pessoal do rei Amimas II. Nicômaco era considerado um dos homens mais doutos e mais cultos de sua profissão. Segundo Dió- Laércio, teria escrito seis volumes de medicina e um de física, isto é, provavelmente, de ciências naturais, no sentido amplo da palavra. Tal ascendência foi de decisiva importância para Aristóteles, pois a ciência médica na época se transmitia de pai para filho, numa iniciação confidencial que começava na mais tenra infância. Assim, sua instrução já se mostrava acabada quando Nicômaco o deixou órfão, entre dezesseis e dezessete anos. Já estava de posse de suas concepções mestras quando veio a Atenas para seguir os ensinamentos do divino Platão. Estava pronto para revolucionar o pensamento de seu tempo e para prefigurar a atitude científica de que se orgulha a sociologia contemporânea. Ele levava à pesquisa esta abnegação que é própria do verdadeiro cientista que não chega à conclusão senão através de um longo exame analítico, esta paciência que escapa às tentações dos resumos brilhantes e das conclusões a priori. O Estagirita sempre prevenirá seus discípulos contra a facilidade e a presunção e, se algumas vezes lhe acontecer, na aplicação de suas próprias regras, de também pecar, sempre saberá voltar aos princípios essenciais do ensino paterno. A pergunta do aluno Alexandre, que o interrogará sobre os seus mestres, responderá altivamente que "as próprias coisas o instruíram e não lhe ensinaram a mentir". Mas uma segunda disposição da sorte deveria vir reforçar em Aristóteles as virtudes do observador e a imparcialidade do cientista. Quando o autor da Política começou seus estudos em Atenas, enfrentou a atmosfera pesada criada pela perdida guerra do Peloponeso, deixando nos espíritos cultivados uma dolorosa farpa. A última concepção do Estado, ideal e serena, é a de Hipódamo de Mileto. Platão era uma criança quando a tempestade passou sobre a Hélade, e a instabilidade de uma luta de partidários, durante cerca de trinta anos, lhe inculcou uma concepção romântica do Estado que rejeita o presente, idealiza o passado de maneira nostálgica e aumenta indevidamente as virtudes da Lacedemónia, a rival vitoriosa. Pelo contrário, Aristóteles sente-se imediatamente um ateniense. Está convencido da missão ecumênica daquela Cidade, à qual pertence em parte por seu nascimento, mas sobretudo pela educação e pelo afeto. No entanto, não compartilha em seu coração a dor patriótica e o orgulho ferido de seus contemporâneos para com Filipe e Alexandre. Esforça-se por escrutar o futuro e nele descobre as tribos gregas divididas reunindo-se sob o forte cajado dos macedônios. Na evolução dos povos, queria ver superpor-se aos três estados que descreveu - a família, a aldeia, a Cidade - o da federação dos Estados. Diferentemente de Demóstenes, mais velho três anos do que ele, e que morreu no mesmo ano, ele se sente incapaz de se ligar ao passado e de lutar desesperadamente por ele. Além disso, Aristóteles, como mais uma vez explica muito bem Wilhelm Oncken, não pode ser um escritor "engajado". Atenas era sua pátria por eleição e predileção, mas não sua pátria carnal, e sua escolha, que tudo deve ao espírito, surpreende de início quando imaginamos a gravidade da situação e a asperidade da luta que na época dividia os patriotas democratas e os macedônios encontra seu termo 0 ciclo dos conhecimentos e culmina a enciclopédia cons- truída pela Escola do Liceu, suma de todo o saber antigo. Biografia Aristóteles nasceu no ano de 385 a.C. em Estagiros, cidadezinha da Trácia fundada por colonos gregos no lugar onde hoje se situa Stavro, na costa setentrional do mar Egeu. Era ainda muito jovem quando morreu seu pai, Nicômaco, médico bastante famoso, neto de Esculápio. Um amigo da família, Próxeno, que morava em Estagiros, se encarregou de sua educação. Aos dezessete anos, foi para Atenas prosseguir seus estudos. Em 367, quando Platão retorna da Sicília e retoma seu magistério na Academia, Aristóteles aparece como um de seus alunos mais assíduos e se distingue por seu ardor e pela excepcional inteligência. Depois de alguns anos de estudo, rompe subitamente com Platão, mas sem cessar de testemunhar-lhe respeito e continuando a conservar do mestre uma grata lembrança. Permanece, no entanto, em Atenas até 347; presume-se que teria fundado uma escola retórica que lhe valeu grande reputação. De 347 a 342, Aristóteles deixa Atenas. Torna-se como que um embaixador oficioso junto a Filipe, que acaba de subir ao trono da Macedônia e é quase seu amigo.Mais tarde o encontramos junto com outros alunos de Platão, como Xenócrates, na Eólida, junto a Hérmias, tirano de Atárnea, que seguiu seus cursos em Atenas e está contente por tê-lo junto a si. Permanece na corte do tira- no até a morte de Hérmias, que será estrangulado pelos persas. Hérmias deixa uma filha e uma sobrinha. Aristóteles casa-se com a sobrinha. Não se sentindo em segurança em Atárnea, parte para Mitilene, onde permanece até 342. Vai então à Macedônia, onde o chamava Filipe para lhe confiar a educação de seu filho Alexandre, de treze anos. O filósofo esforça-se por desenvolver nele as qualidades de moderação e de razão que lhe parecem essenciais para a conduta de um soberano. Alexandre sente por seu mestre um grande apego, que conservará até quando suceder a seu pai. Todavia, Alexandre parte em conquista da Ásia em 335, e Aristóteles considera que seu papel terminou. Deixa Alexandre e retorna a Atenas. O ensino de Platão na Academia tem seqüência com Xenócrates. Aristóteles, então, abre uma escola perto do templo de Apolo Lício, donde o nome de escola do Liceu que lhe foi dado. Aristóteles expõe suas idéias enquanto passeia com seus discípulos, e é por isso que são chamados peripatéticos, do grego nFpínaTov, que significa " lugar de passeio". O ensino de Aristóteles compreende duas séries de aulas: de manhã, trata das questões puramente teóricas, no ensino exotérico reservado aos iniciados. À tarde, Aristóteles se dirige a um público mais amplo: as questões tratadas são mais acessíveis. A retórica ocupa um lugar importante; é o ensino exotérico. Durante doze anos, Biografia. prossegue suas aulas, não sem publicar numerosas obras que abordam todos os domínios do saber humano. Com a morte de Alexandre, em 323, os partidários da Macedônia vêem-se ameaçados de morte e de perda dos bens pelo partido nacional ateniense, dirigido por Demóstenes. Aristóteles, pró-macedônio, é acusado. Sem aguardar o julgamento que deve condená-lo, deixa Atenas e vai para Cálcis, na ilha de Eubéia. Morre ali um ano depois, em 322, aos 63 anos. Deixa dois filhos, uma menina, Pítia, com o nome de sua mulher, e um menino, Nicômaco, com o nome de seu pai. Diógenes Laércio conta que Aristóteles era um pouco gago, muito magro de pernas, tinha olhos pequenos e gostava de belas roupas. As gravuras mais antigas representam-no com uma longa barba ondulada, um nariz muito arqueado e um bigode pendente. Da Origem do Estado O Estado e seu Governo Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que é a principal e contém em si todas as outras se propõe àmaior vantagem possível. Chamamo-la Estado ou sociedade política. Enganam-se os que imaginam que o poder de um rei ou de um magistrado de República só se diferencie do de um pai de família e de um senhor pelo número maior de súditos e que não há nenhuma diferença específica entre seus poderes. Segundo eles, se tem poucos súditos éum senhor; se tem alguns a mais é um pai de família; se tiver ainda mais é um rei ou um magistrado de República. Como se não houvesse diferença entre uma grande família e um pequeno Estado, nem entre um rei e um magistrado de República. A distinção seria que um rei governa sozinho perpetuamente, enquanto um magistrado de República comanda e obedece alternadamente, em virtude da Constituição. Tudo isso, porém, é errado, como veremos ao examinar esta matéria segundo o método que usamos em nossas outras obras'. Como não podemos conhecer melhor as coisas compostas do que decompondo-as e analisando-as até seus mais simples elementos, comecemos por detalhar assim o Estado e por examinar a diferença das partes, e procuremos saber se há uma ordem conveniente para tratar de cada uma delas. A Formação da Cidade Nesta como em qualquer outra matéria, uma excelente atitude consiste em remontar à origem. É preciso, inicialmente, reunir as pessoas que não podem passar umas sem as outras, coma o macho e a fêmea para a geração. Esta maneira de se perpetuar não é arbitrária e não pode, na espécie humana assim como entre os animais e as plantas, efetuar-se senão naturalmente. É para a mútua conservação que a natureza deu a um o comando e impôs a submissão ao outro. Pertence também ao desígnio da natureza que comande quem pode, por sua inteligência, tudo prover e, pelo contrário, que obedeça quem não possa contribuir para a prosperidade comum a não ser pelo trabalho de seu corpo. Esta partilha é salutar para o senhor e para o escravo. A condição da mulher difere da do escravo. A natureza, com efeito, não age com parcimônia, como os artesãos de Delfos que forjam suas facas para vários fins; ela destina cada coisa a um uso especial; cada instrumento Introdução. que só tem o seu uso é o melhor para ela. Somente entre os bárbaros a mulher e o escravo estão no mesmo nível. Assim, esses povos não têm o atributo que importa naturalmente a superioridade e sua sociedade só é composta de escravos dos dois sexos. Foi isso que fez com que o poeta acreditasse que os gregos tinham, de direito, poder sobre os bárbaros, como se, na natureza, bárbaros e escravos se confundissem. A principal sociedade natural, que é a família, formou-se, portanto, da dupla reunião do homem e da mulher, do senhor e do escravo. O poeta Hesíodo tinha razão ao dizer que era preciso antes de tudo A casa, e depois a mulher e o boi lavrador, já que o boi desempenha o papel do escravo entre os pobres. Assim, a família é a sociedade cotidiana formada pela natureza e composta de pessoas que comem, como diz Carondas, o mesmo pão e se esquentam, como diz Epimênides de Creta, com o mesmo fogo. A sociedade que em seguida se formou de várias casas chama-se aldeia e se assemelha perfeitamente à primeira sociedade natural, com a diferença de não ser de todos os momentos, nem de uma freqüentação tão contínua. Ela contém as crianças e as criancinhas, todas alimentadas com o mesmo leite. De qualquer modo, trata-se de uma colônia tirada da primeira pela natureza. Assim, as Cidades inicialmente foram, como ainda hoje o são algumas nações, submetidas ao governo real, formadas que eram de reuniões de pessoas que já viviam sob um monarca. Com efeito, toda família, sendo governada pelo mais velho como que por um rei, continuava a viver sob a mesma autoridade, por causa da consangüinidade. Este é o pensamento de Homero, quando diz: Cada um, senhor absoluto de seus filhos e de suas mulheres, Distribui leis a todos... Isso ocorria porque nos primeiros tempos as famílias viviam dispersas. É ainda por esta razão que todos os homens que antigamente viveram e ainda vivem sob reis dizem que os deuses vivem da mesma maneira, atribuindo-lhes o governo das sociedades humanas, já que os imaginam sob a forma do homem. O Homem, "Animal Cívico" A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias constitui a Cidade, que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo organizada não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o bem-estar. Esta sociedade, portanto, também está nos desígnios da natureza, como todas as outras que são seus elementos. Ora, a natureza de cada coisa é precisamente seu fim2. Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer espécie que ele seja - homem, cavalo, família -, dizemos que ele está na natureza. Além disso, a coisa que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e se aproxima mais do objetivo pro- posto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si mesma é uma meta a que tende toda a produção da natureza e é também o mais perfeito estado. É, portanto, evidente que toda Cidade está na natureza e que o homem é naturalmente feito para a sociedade política. Aquele que, por sua natureza e não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria seria um indivíduo detestável, muito acima ou muito abaixo do homem, segundo Homero: Um ser sem lar, sem família e sem leis. Mas faz a natureza ou não de um homem um escravo? É justa e útil a escravidão ou é contra a natureza? Éisto que devemos examinar agora. O fato e a experiência, tanto quanto a razão, nos conduzirão aqui ao conhecimento do direito. Não é apenas necessário, mas também vantajoso que haja mando por um lado e obediência por outro; e todos os seres, desde o primeiro instante do nascimento, são, por assim dizer, marcados pela natureza, uns para comandar, outros para obedecer. Entre eles, há várias espécies de superiores ou de súditos, e o mando é tanto mais nobre quanto mais elevado é o próprio súdito. Assim, mais vale comandar homens do que animais. O que se executa mediante melhores agentes é sempre mais bem executado, partindo então a execução do mesmo princípio que o comando; ao passo que, quando aquele que manda e aquele que obedece são de espécies diferentes, cada um sacrifica algo de seu. Em tudo o que é composto de várias partes, quer contínuas, quer disjuntas, mas tendentes a um fim comum, sempre notamos uma parte eminente à qual as outras estão subordinadas, e isso não apenas nas coisas animadas, mas também nas que não o são, tais como os objetos suscetíveis de harmonia. Mas, aqui, me afastarei por certo de meu objetivo. O animal compõe-se primeiro de uma alma, depois de um corpo: a primeira, por sua natureza, comanda e o segundo obedece. Digo "por sua natureza", pois é preciso considerar o mais perfeito como tendo emanado dela, e não o que é degradado e sujeito à corrupção. O homem, segundo a natureza, é aquele que é bem constituído de alma e de corpo. Se nas coisas viciosas e depravadas o corpo não raro parece comandar a alma, é certamente por erro e contra a natureza. É preciso, portanto, como dissemos, considerar nos seres animados a autoridade do senhor e a do magistrado: a primeira é a da alma sobre o corpo; a segunda exerce sobre as paixões humanas o poder da razão. É claro que o comando, nestas duas espécies, é conforme à natureza, assim como ao interesse de todas as partes, e a igualdade ou a alternância seriam muito nocivas a ambas. O mesmo ocorre com o homem relativamente aos outros animais, tanto os que se domesticam quanto os que permanecem selvagens, a pior das duas espécies. Para eles é preferível obedecer ao homem; seu governo é-lhes salutar. A natureza ainda subordinou um dos dois animais ao outro. Em todas as espécies, o macho é evidentemente superior à fêmea: a espécie humana não é exceção. Assim, em toda parte onde se observa a mesma distância que há entre a alma e o corpo, entre o homem e o animal, existem as mesmas relações; isto é, todos os que não têm nada melhor para nos oferecer do que o uso de seus corpos e de seus membros são condenados pela natureza à escravidão. Para eles, é melhor servirem do que serem entregues a si mesmos. Numa palavra, é naturalmente escravo aquele que tem tão pouca alma e poucos meios que resolve depender de outrem. Tais são os que só têm instinto, vale dizer, que percebem muito bem a razão nos outros, mas que não fazem por si mesmos uso dela. Toda a diferença entre eles e os animais é que estes não participam de modo algum da razão, nem mesmo têm o sentimento dela e só obedecem a suas sensações. Ademais, o uso dos escravos e dos animais é mais ou menos o mesmo e tiram-se deles os mesmos serviços para as necessidades da vida. A natureza, por assim dizer, imprimiu a liberdade e a servidão até nos hábitos corporais. Vemos corpos robustos talhados especialmente para carregar fardos e outros usos igualmente necessários; outros, pelo contrário, mais disciplinados, mas também mais esguios e incapazes de tais trabalhos, são bons apenas para a vida política, isto é, para os exercícios da paz e da guerra. Ocorre muitas vezes, porém, o contrário: brutos têm a forma exterior da liberdade e outros, sem aparentar, só têm a alma de livre. Limitando-nos aos aspectos materiais, como no caso das estátuas dos deuses, não hesitamos em acreditar que os indivíduos inferiores devem ser submissos. Se isto éverdade quando se trata do corpo, por mais forte razão devemos dizê-lo da alma; mas a beleza de um não é tão fácil de discernir quanto a da outra. Não pretendemos agora estabelecer nada além de que, pelas leis da natureza, há homens feitos para a liberdade e outros para a servidão, os quais, tanto por justiça quanto por interesse, convém que sirvam. No entanto, é fácil ver que a opinião contrária não seria inteiramente desprovida de razão. A Servidão Convencional Além da servidão natural, existe aquela que chamamos servidão estabelecida pela lei; esta lei é uma espécie de convenção geral, segundo a qual a presa tomada na guerra pertence ao vencedor. Será justo? Sobre isso, os jurisconsultos não chegam a um acordo, nem tampouco, aliás, sobre a justiça de muitas outras decisões tomadas nas Assembléias populares, contra as quais eles reclamam. Consideram cruel que um homem que sofreu violência se torne escravo do que o violentou e só tem sobre ele a vantagem da força. Este, pelo menos, é um ponto muito controverso para eles e, se têm muitos contraditores, têm também muitos partidários, mesmo entre os filósofos. A razão de duvidar e de contestar é que a coragem, num grau eminente, sempre permanece vencedora; que a vitória de ordinário supõe em si uma superioridade qualquer; enfim, que a própria força é uma espécie de mérito. A dúvida só permanece, portanto, quanto ao direito: uns não podem separar o direito da benevolência, outros afirmam que é da própria essência do direito que o mais valente comande. Destas duas opiniões, a segunda não é nem sólida nem tampouco persuasiva. A superioridade de coragem não é uma razão para sujeitar os outros. Os que consideram a lei como justa (e o é, com efeito, quando não ordena nada de ilícito) não rejeitam absolutamente a servidão estabelecida pelas leis da guerra, mas tampouco a admitem inteiramente, pois a própria guerra pode ser injusta em seu princípio; ora, jamais um homem de bom senso tratará como escravo um homem que não mereceu a escravidão; caso contrário, dizem eles, se bastasse pegar as pessoas e vendê-las, veríamos na escravidão personagens do mais alto nível, elas e seus filhos que caíssem em poder do vencedor. Pretendem, portanto, que se considerem estes homens simplesmente como estrangeiros, mas não como escravos, o que, pela intenção, se reduz ao que dissemos, que só são escravos os que foram destinados à servidão pela natureza. É preciso convir, com efeito, que certas pessoas são escravas em toda parte e outras, nenhures. O mesmo ocorre com a nobreza. Consideram a dos povos cultivados como pura e existente em toda a parte; a dos povos bárbaros, como local e boa somente para eles. Distinguem o homem livre do escravo, a nobreza do vulgo pelas vantagens e vícios de nascimento. Como diz a Helena de Teodecto: Escrava, eu? Que homem tão audacioso Poderia chamar assim uma filha dos deuses. Os que partilham desta opinião não diferenciam o escravo do homem livre, o nobre do plebeu, senão pela distância entre o vício e a virtude; e, como o homem vem do homem e o animal do animal, acham que o bom só pode vir do bom. Pode ser esta a intenção da natureza. Mas, longe de ser sempre bem- sucedida, muitíssimas vezes ela sofre desvios. Embora a distinção entre o homem livre e o escravo por natureza tenha seus partidários e seus adversários, pelo menos não resta nenhuma dúvida de que se encontram em todos os lugares combinações de pessoas nas quais a uma cabe servir e à outra comandar, assumindo o papel para o qual a natureza as predestinou. O comando de uma pode ser justo e útil, e a liberdade da outra, injusta e funesta para ambas. O que convém ao todo convém também à parte; o que convém à alma convém igualmente ao corpo. Ora, o escravo faz, por assim dizer, parte de seu senhor: embo- ra separado na existência, é como um membro anexado a seu corpo. Ambos têm o mesmo interesse e nada impede que estejam ligados pelo sentimento da amizade, quando foi a conveniência natural que os reuniu. As coisas são diferentes quando eles só estão reunidos pelo rigor da lei ou pela violência dos homens. Diferenças entre o "Despotismo" e o Poder Político Vemos, assim, claramente que o poder "despótico" e o governo político são, apesar da opinião de alguns, coisas muito diferentes. Um só existe para os escravos; o outro existe para as pessoas que a natureza honrou com a liberdade. O governo doméstico é uma espécie de monarquia: toda casa se governa por uma só pessoa; o governo civil, pelo contrário, pertence a todos os que são livres e iguais. Não é, aliás, uma ciência adquirida que faz de um homem senhor de um outro. Esta qualidade pode existir sem isso; como a liberdade e a servidão, ela tem um caráter que lhe é natural. Sem dúvida, existe um talento para comandar e para servir. Por exemplo, em Siracusa, uma espécie de preceptor abriu uma escola de escravidão e exigia dinheiro para preparar as crianças para este esta- do, com todos os pormenores de suas funções. Pode haver um ensino completo dessa espécie de profissão, assim como existem preceitos para a cozinha e outros gêneros de serviço, ou mais estimados, ou mais necessários, pois também o serviço tem os seus graus. "Há serviçais e serviçais" - diz o provérbio -, "e há senhores e senhores." Quanto à ciência do senhor, como não é nem na aquisição, nem na posse, usos, dos quais nenhum repugna a sua natureza; porém, um é próprio e conforme a sua destinação, outro desviado para algum outro fim. Por exemplo, o uso próprio de um sapato é calçar; podemos também vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra coisa, isto sem que ele mude de natureza; mas este não é o seu uso próprio, já que ele não foi inventado para o comércio. O mesmo acontece com as outras coisas que possuímos. A natureza não as fez para serem trocadas, mas, tendo os homens uns mais, outros menos do que precisam, foram levadas por este acaso à troca. Tampouco foi a natureza que produziu o comércio que consiste em comprar para revender mais caro. A troca era um expediente necessário para proporcionar a cada um a satisfação de suas necessidades. Ela não era necessária na sociedade primitiva das famílias, onde tudo era comum. Tornou-se necessária apenas nas grandes sociedades e após a separação das propriedades. É até mesmo corrente ainda hoje entre vários povos bárbaros. Quando uma tribo tem de sobra o que falta a outra, elas permutam o que têm de supérfluo através de trocas recíprocas; vinho por trigo ou outras coisas que lhes podem ser de uso, e nada mais. Trata-se de um gênero de comércio que não está nem fora das intenções da natureza, nem tampouco é uma das maneiras naturais de aumentar seus pertences, mas sim um modo engenhoso de satisfazer as respectivas necessidades. Foi esse comércio que, dirigido pela razão, fez com que se imaginasse o expediente da moeda. Não era cômodo transportar para longe as mercadorias ou outras produções para trazer outras, sem estar certo de encontrar aquilo que se procurava, nem que aquilo que se levava conviria. Podia acontecer que não se precisasse do supérfluo dos outros, ou que não precisassem do vosso. Estabeleceu-se, portanto, dar e receber reciprocamente em troca algo que, além de seu valor intrínseco, apresentasse a comodidade de ser mais manejável e de transporte mais fácil, como o metal, tanto o ferro quanto a prata ou qualquer outro, que primeiramente se determinou pelo volume ou pelo peso e a seguir se marcou com um sinal distintivo de seu valor, a fim de não se precisar medi-lo ou pesá-lo a toda hora. Tendo a moeda sido inventada, portanto, para as necessidades de comércio, originou-se dela uma nova maneira de comerciar e adquirir. A princípio, era bastante simples; depois, com o tempo, passou a ser mais refinada, quando se soube de onde e de que maneira se podia tirar dela o maior lucro possível. É este lucro pecuniário que ela postula; ela só se ocupa em procurar de onde vem mais dinheiro: é a mãe das grandes fortunas. De fato, comumente se faz consistir a riqueza na grande quantidade de dinheiro. No entanto, o dinheiro é somente uma ficção e todo seu valor é o que a lei lhe dá. Mudando a opinião dos que fazem uso dele, não terá mais nenhuma utilidade e não proporcionará mais a menor das coisas necessárias à vida. Mesmo se se tiver uma enorme quantidade de dinheiro, não se encontrarão, por meio dele, os mais indispensáveis alimentos. Ora, é absurdo chamar "riquezas" um metal cuja abundância não impede de se morrer de fome; prova disso é o Midas da fábula, a quem o céu, para puni-lo de sua insaciável avareza, concedera o dom de transformar em ouro tudo o que tocasse. As pessoas sensatas, portanto, colocam em outra parte as riquezas e preferem (e nisto estão certas) outro gênero de aquisição. As verdadeiras riquezas são as da natureza; apenas elas são objeto da ciência econômica. A outra maneira de enriquecer pertence ao comércio, profissão voltada inteiramente para o dinheiro, que sonha com ele, que não tem outro elemento nem outro fim, que não tem limite onde possa deter-se a cupidez. Em geral, todas as artes querem indefinidamente seu fim. A medicina, por exemplo, que tem por objeto a saúde, abarca todos os casos que levam ao seu restabelecimento, que são inúmeros. Mas cada um dos meios de cada arte tem seus limites e está consumado quando chega ao seu fim, isto é, ao último termo que deve alcançar. O fim a que se propõe o comércio não tem limite determinado. Ele compreende todos os bens que se podem adquirir; mas é menos a sua aquisição do que seu uso 0 objeto da ciência econômica; esta, portanto, está necessa- riamente restrita a uma quantidade determinada. Não ignoramos que neste ponto a teoria é desmentida pela prática. Todos, e principalmente os comerciantes, amam o dinheiro, não julgam ter o suficiente e sempre acumulam. De um ao outro, é apenas um passo. O dinheiro serve-lhes para dois usos análogos e alternativos: um, para comprar as coisas e revendê-las mais caro; outro, para emprestar e retirar, após o prazo estabelecido, seu capital com juros. Estes dois ramos do seu tráfico não diferem, como se vê, senão porque um interpõe as coisas para aumentar o dinheiro, enquanto o outro o faz servir imediatamente ao seu próprio aumento. Alguns acham que as duas operações convêm ao governo doméstico e que é preciso não somente conservar o que se tem, mas também multiplicar o dinheiro ao infinito. O princípio desta disposição de espírito é que eles só pensam em viver e não em bem viver', paixão que não tem limites e não refreia de modo algum a escolha dos meios. Aqueles mesmos que desejam bem viver não deixam de procurar também os prazeres da vida animal e, como isso depende das faculdades pecuniárias, põem todo seu zelo em obtê-los. Este é o princípio de uma outra espécie de tráfico cujos recursos só foram imaginados para o luxo. Aqueles que considerações particulares impedem de correr atrás da fortuna através do comércio tentam consegui-la por outros meios, às vezes até pelo mais monstruoso abuso de suas qualidades superiores e de suas faculdades. A coragem, por exemplo, não foi dada ao homem pela natureza para acumular bens, mas para proporcionar tranqüilidade. Não é esse tampouco o objeto da profissão militar, nem o da medicina, tendo uma por objeto vencer, e outra curar. Converteram-nas, porém, em meios de obter riqueza: elas se tornam o único fim da maioria das pessoas que entram nessas carreiras e subordinam tudo à meta que se propuseram. Vemos quais são os meios artificiais e não necessários de adquirir bens, e as causas que determinam que se recorra a eles; vemos também quais são os meios naturais e necessários que têm por objeto garantir a subsistência e que pertencem ao governo doméstico, gênero de aquisição que tem limites e é muito diferente daquele que não os tem. Apreciação dos Dois Modos de Aquisição A questão pela qual começamos era saber se o governo, quer doméstico, quer político, compreende a tarefa de adquirir ou se ele não pressupõe já feitas as aqui- sições. Pois, assim como a política não faz os homens, mas os recebe da natureza e se serve deles, assim também é preciso antes, para que a economia possa administrá-los, que a natureza forneça nosso sustento, ou do seio da terra, ou do mar, ou de qualquer outra maneira. Um fabricante de tecidos não faz a lã, mas serve-se dela; julga se ela é boa ou má e própria ou não aos seus fins. Caso contrário, poderíamos perguntar por que a preocupação com a fortuna faria, mais do que a medicina, parte do governo doméstico. Se, com efeito, é preciso que a família tenha alimentos e outras coisas necessárias à vida, é preciso também que ela goze de saúde, mas se convém, sob alguns aspectos, que o chefe da família ou do Estado mantenha sob seus cuidados a saúde de seus protegidos, sob outros aspectos isto cabe mais ao médico do que a ele; igualmente, para o abastecimento e a abundância, este cuidado pode também caber a seus ministros. O governo, como já dissemos, pressupõe a existência de todas essas coisas: cabe à natureza fornecer o alimento aos seres que gera e, de ordinário, o pai o dá aos filhos. Nada de mais natural do que o cuidado em colher frutos ou nutrir o gado para o uso. Assim, das duas maneiras de adquirir e de se enriquecer, uma pela economia e pelos trabalhos rústicos, outra pelo comércio, a primeira é indispensável e merece elogios; a segunda, em contrapartida, merece algumas censuras: nada recebe da natureza, mas tudo da convenção. O que há de mais odioso, sobretudo, do que o tráfico de dinheiro, que consiste em dar para ter mais e com isso desvia a moeda de sua destinação primitiva? Ela foi inventada para facilitar as trocas; a usura, pelo contrário, faz com que o dinheiro sirva para aumentar-se a si mesmo; assim, em grego, lhe demos o nome de tokos, que significa progenitura, porque as coisas geradas se parecem com as que as geraram. Ora, neste caso, é a moeda que torna a trazer moeda, gênero de ganho totalmente contrário à natureza. Algumas Maneiras Práticas de Adquirir O que dissemos basta para a teoria. Agora é preciso dar à prática alguns desenvolvimentos, pois, se a discussão da teoria tem sua liberdade, a prática também tem sua necessidade. A atenção deve concentrar-se principalmente no conhecimento das coisas antes que elas próprias sejam adquiridas: saber quais são as melhores, onde se encontram, e qual é a maneira mais vantajosa de obtê-las; por exemplo, quais são os melhores cavalos, os melhores bois, os melhores carneiros ou outros animais, em que regiões eles se dão bem (pois nem todas as regiões são igualmente próprias para criá-los), e como podemos tê-los. O mesmo ocorre para a agricultura: é preciso conhecer os diversos tipos de terrenos virgens ou plantados; igualmente, ainda, para as abelhas, os animais aquáticos e as aves de galinheiro: devemos saber que proveito podemos tirar deles. que então o mando cabe a um e a obediência a outro? A diferença entre os dois não é do mais para o menos, mas sim específica e produz efeitos essencialmente diversos. Não menos estranho seria exigir virtudes de um lado e não de outro. Se quem comanda não é nem justo, nem moderado, como é possível que comande bem? Se aquele que obedece carece dessas virtudes, qual não será a obediência de um corrompido e de um mau? É preciso, pois, que ambos tenham virtudes, mas que suas virtudes tenham caracteres diferentes, da mesma variedade que se observa nos seres nascidos para obedecer. Isto se vê imediatamente nas faculdades da alma. Dentre estas, uma há que por sua natureza comanda - éaquela que participa da razão - e outras que obedecem: são as que não participam dela. Cada uma tem um tipo de virtude que lhe é próprio. O mesmo ocorre com os seres distintos. Assim como neles se encontram diversas espécies de superioridade e de subordinações determinadas pela natureza, há também várias formas de comando. A maneira de comandar não é a mesma do homem livre ao seu escravo, do marido à mulher, do homem adulto a seu filho. Todos têm uma alma dotada das mesmas faculdades, mas de modo diferente: o escravo não deve de modo algum deliberar; a mulher tem direito a isso, mas pouco, e a criança, menos ainda. Seguem suas virtudes morais a mesma gradação: todos devem possuí-Ias, mas somente tanto quanto convém a seu estado. Quem comanda deve possuí-Ias todas no mais alto grau. Sua função é como a do arquiteto, isto é, a da própria razão; as dos outros se regulam pela conveniência. Todos têm, portanto, virtudes morais, mas a temperança, a força, a justiça não devem ser, como pensava Sócrates, as mesmas num homem e numa mulher. A força de um homem consiste em se impor; a de uma mulher, em vencer a dificuldade de obedecer. O mesmo ocorre com as demais virtudes. Quanto mais refletirmos, mais nos convenceremos disto. É ilusório contentar- se com generalidades sobre esta matéria e dizer vagamente que a virtude consiste nos bons hábitos da alma, ou então no bem agir ou outras fórmulas do gênero. Mais vale, como Górgias, estabelecer a lista das virtudes do que se deter em semelhantes definições e imitar, no mais, a precisão do poeta que disse que um modesto silêncio é a honra da mulher ao passo que não fica bem no homem. Sendo a criança imperfeita e não podendo ainda encontrar em si mesma a regra de suas ações, sua virtude éser dócil e submissa ao homem maduro que cuida de seu acompanhamento. O mesmo acontece com o escravo relativamente a seu senhor: é em bem fazer o seu serviço que consiste a sua virtude; virtude bem pequena que se reduz a não faltar aos seus deveres nem por má conduta, nem por covardia. Se o que acabamos de dizer é verdade, os artesãos a que muitas vezes ocorre trocar o trabalho pela farra devem precisar de virtude. Mas ela será de uma espécie muito diferente, pois o escravo vive conosco. O artesão, pelo contrário, está separado, e sua virtude não nos importa senão quando está a nosso serviço. A este respeito, um profissional está numa espécie de servidão limita-da; mas a natureza que faz os escravos não faz os sapateiros, nem os outros artesãos. Quando os empregamos, não é a vontade de quem os ensinou a trabalhar, mas a do senhor que encomenda a obra que eles devem seguir. Ademais, seria erro proibir, mesmo aos escravos, todo raciocínio e fazer deles, como alguns fazem, simples máquinas de obedecer; é preciso mostrar- lhes seu dever com indulgência ainda maior do que para com as crianças. Quanto ao homem e à mulher, ao pai e aos filhos, quais são as virtudes próprias a cada um deles? Qual deve ser a maneira de viverem juntos? O que devem buscar ou evitar? Como devem praticar tal coisa e abster-se de outra? É o que é indispensável examinar quando tratamos da política. Todos eles fazem parte da família, e a família faz parte do Estado. Ora, o mérito da parte deve referir-se ao mérito do todo. A educação das mulheres e das crianças deve ser da alçada do Estado, já que importa à felicidade do Estado que as mulheres e as crianças sejam virtuosas. Isto é mesmo do maior interesse, já que as mulheres constituem a metade das pessoas livres, e as crianças serão os que participarão do governo dos negócios públicos. Do Cidadão Para bem conhecer a Constituição dos Estados e suas espécies, é preciso em primeiro lugar saber o que é um Estado, pois nem sempre se está de acordo se se deve imputar fatos ao Estado ou aos que o governam, quer como chefes únicos, quer num grupo menos numeroso do que o resto da Cidade. Ora, o Estado é o su- jeito constante da política e do governo; a constituição política não é senão a ordem dos habitantes que o compõem. Como qualquer totalidade, o Estado consiste numa multidão de partes: é a universalidade dos cidadãos. Comecemos, pois, por examinar o que devemos entender por cidadão e quem podemos qualificar assim, pois se trata de uma denominação equívoca e nem todos são unânimes sobre a sua aplicação. Alguém que é cidadão numa democracia não o é numa oligarquia. O Critério da Cidadania Falemos aqui apenas dos cidadãos de nascimento, e não dos naturalizados. Não é a residência que constitui o cidadão: os estrangeiros e os escravos não são "cidadãos", mas sim "habitantes". Tampouco é a simples qualidade de julgável ou o direito de citar em justiça. Para isso, basta estar em relações de negócios e ter ao mesmo tempo alguma coisa a resolver. Mesmo assim, há muitos lugares em que os estrangeiros não são admitidos nas audiências dos tribunais senão quando apresentam uma caução. Não participam, então, a não ser de um modo imperfeito, dos direitos da Cidade. É mais ou menos o mesmo que acontece com as crianças que ainda não têm idade para serem inscritas na função cívica e com os velhos que, pela idade, estão isentos de qualquer serviço. Não podemos dizer simplesmente que eles são cidadãos; não são senão supranumerários; uns são cidadãos em esperança por causa de sua imperfeição, outros são cidadãos rejeitados por causa de sua de- crepitude. Terão o nome que se quiser: o nome não importa desde que sejamos compreendidos. Procuramos aqui o cidadão puro, sem restrições nem modificações. Com mais forte razão, devemos deliberadamente riscar desta lista os infames e os banidos. Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto nas Assembléias e de participação no exercício do poder público em sua pátria. Há dois tipos de poderes: uns são temporários, só são atribuídos por certo tempo e não se podem obter duas vezes em seguida; os outros não têm tempo fixo, como o de julgar nos tribunais ou de votar nas assembléias. Objetar-se-á, talvez, que estes últimos não são verdadeiros poderes e não participam de modo algum do governo. Mas seria ridículo contestar esta denominação de quem se pronuncia sobre os interesses maiores do Estado. Aliás, pouco importa, essa é apenas uma questão de palavras. Não possuímos, com efeito, um termo comum sob o qual possamos colocar a função de juiz e a de membro da Assembléia. Será, se se quiser, um poder sem nome. Ora, chamamos "cidadão" quem quer que seja admitido nessa participação e é por ela, principalmente, que o distinguimos de qualquer outro habitante. Convém ainda notar que nas coisas cujo sujeito pertence a espécies diferentes, sem outra relação entre si, senão que uma é a primeira, a outra a segunda e assim por diante, não há absolutamente nada ou muito pouco em comum. É o que se observa nas formas de governo: são de diferentes espécies, umas primitivas, outras posteriores. Entre estas últimas devem ser contadas as corrompidas e degeneradas, que vêm necessariamente depois das que permaneceram sãs e intactas. (Explicaremos mais adiante em que consiste a degenerescência9.) Portanto, o cidadão não pode ser o mesmo em todas as formas de governo. É sobretudo na democracia que é preciso procurar aquele de que falamos; não que ele não possa ser encontrado também nos outros Estados, mas neles não se acha necessariamente. Em alguns deles, o povo não énada. Não há Assembléia geral, pelo menos ordinária, mas simples convocações extraordinárias. Tudo se decide pelos diversos magistrados, segundo suas atribuições. Na cerimônia, por exemplo, os éforos tratam dos contratos; os senadores, dos homicídios; as outras magistraturas, das outras matérias. Acontece o mesmo em Cartago, onde alguns magistrados decidem sobre tudo. A definição do cidadão, portanto, é suscetível de maior ou menor extensão, conforme o gênero do governo. Há alguns em que o número e o poder dos juízes e dos membros da Assembléia não é ilimitado, mas restrito pela constituição. O direito de julgar e deliberar cabe a todos ou apenas a alguns, e isso sobre todas as matérias, ou somente sobre algumas. Por aí se pode ver a quem convém o nome de cidadão em cada lugar. É cidadão aquele que, no país em que reside, é admitido na jurisdição e na deliberação. É a universalidade deste tipo de gente, com riqueza suficiente para viver de modo independente, que constitui a Cidade ou o Estado. Comumente, o costume é dar o nome de cidadão apenas àquele que nasceu de pais cidadãos. De nada serviria que o pai o fosse, se a mãe não for. Em alguns lugares, vai-se ainda mais longe, até dois avôs ou a um grau maior. Surge, então, a dificuldade de saber como serão eles mesmos cidadãos, este terceiro e este quarto avô. Górgias de Leonte dizia, não se sabe se a sério ou por brincadeira, todos, dado que todos têm por objetivo a segurança da navegação, à qual aspiram e concorrem, cada um à sua maneira. De igual modo, embora as funções dos cidadãos sejam dessemelhantes, todos trabalham para a conservação de sua comunidade, ou seja, para a salvação do Estado. Por conseguinte, é a este interese comum que deve relacionar-se a virtude do cidadão. Portanto, se há várias espécies de governo, é impossível que as virtudes cívicas e o civismo perfeito sejam os mesmos em toda parte, ou que eles se confundam com a virtude absoluta, pela qual distinguimos as pessoas nobres. É evidente que se pode ser bom cidadão sem possuir virtudes tão eminentes. Porém, para melhor discutir esta questão, convém situarmo-nos no melhor governo possível. Veremos, por um lado, que é impossível que o Estado seja composto inteiramente de homens perfeitos, e, por outro, que é preciso que cada um execute o melhor possível suas funções. Uma vez que parece impossível que todos os cidadãos se assemelhem, não pode o mesmo gênero de virtude fazer o bom cidadão e o homem de bem. Mas todos devem ser bons cidadãos. É daí que provém a bondade intrínseca do Estado, sem que seja necessário que haja entre todos igualdade de mérito. O mérito de um homem de bem e o de um bom cidadão são, portanto, coisas distintas. O Estado, aliás, é um composto de partes dessemelhantes, aproximadamente como o animal se compõe da alma e do corpo; a alma, de razão e de paixões; a família, do homem e da mulher; a casa, do senhor e do escravo. Abrangendo o Estado todas estas partes e muitas outras de espécie diferente, não pode haver, portanto, o mesmo gênero de virtudes para uns e para outros. Assim, num grupo de dançarinos, é preciso mais talento para o papel de corifeu do que para o de corista. A desigualdade de mérito é, pois, evidente. Mas não há nenhum lugar em que a virtude do bom cidadão seja a mesma que a do homem de bem? Quando falamos de um bom comandante, entendemos por isso um homem de juízo e de honra; exigimos sobretudo a prudência naquele que governa. Alguns exigem ainda outras qualidades no governante máximo. Vemo-lo pela educação dos filhos de reis, que são criados no adestramento de cavalos e na disciplina militar: Que não me ostentem todos esses ta lentos vulgares, Que mostrem ao Estado as virtudes necessárias, o que supõe um treinamento particular para as pessoas desse nível. Se entre os altos funcionários o mesmo mérito faz o homem de bem e o bom cidadão; se, ademais, a qualidade de súdito não exclui a de cidadão, a virtude cívica não será, porém, a mesma coisa que o que chamamos pura e simplesmente de mérito. Haverá sinonímia apenas em alguns cidadãos, vale dizer, nos que estão no go- verno do Estado. Em qualquer outra classe, as qualidades serão distintas. Talvez tenha sido isso que fez Jasão dizer: Só conheço uma arte e só sei reinar. No entanto, é bom saber igualmente mandar e obedecer, e um cidadão experimentado é aquele que é capaz de ambos os papéis. Suponhamos um homem de bem que só saiba comandar e um cidadão que saiba um e outro: eles não terão o mesmo valor; já que, desses diferentes papéis, é preciso que o homem destinado ao comando aprenda um e seus súditos outro, o cidadão que participa de ambos deve aprendê-los de igual modo e conhecer os diversos tipos de comando. Pois há inicialmente o comando do senhor, que se exerce sobre o que chamamos de empregados necessários. Não é preciso que aquele que o exerce saiba fazer os trabalhos servis, basta que saiba utilizá-los; cabe a seus servidores saber a execução. Assim como há vários tipos de funções servis, há também vários tipos de escravos. Entre as pessoas que estão em servidão, é preciso contar os trabalhadores manuais que vivem, como indica seu nome, do trabalho de suas mãos e os artesãos que se ocupam dos ofícios sórdidos. Assim, em alguns lugares, antigamente, antes .que o povo chegasse à extrema licença, os cargos ou poderes públicos não eram conferidos a esse tipo de gente. Suas ocupações não convêm nem ao homem de bem, nem ao alto funcionário, nem ao bom cidadão, se não for para seu uso pessoal, caso em que ele é ao mesmo tempo senhor e servo. Mas há um outro tipo de comando que tem por súditos as pessoas livres e de mesma condição: é o que se chama o governo civil. Só se aprende começando por obedecer. Assim, pelo próprio serviço sob as ordens do hiparca, se aprende a comandar a cavalaria; servindo sob o general e os demais oficiais da infantaria, aprende-se a comandar os diversos graus militares. Existe até uma máxima quanto a isto, que diz que não é possível bem comandar se antes não se tiver obedecido. Ora, estes são dois gêneros diferentes de mérito, e é preciso que um bom cidadão adquira ambos, saiba obedecer e esteja em condições de comandar. Ambos também convêm ao homem de bem, embora de modo diferente, pois a temperança e a justiça diferem até entre pessoas livres, das quais uma é superior e a outra inferior, por exemplo, entre homem e mulher. A coragem de um homem se aproximaria da pusilanimidade se fosse apenas igual à de uma mulher, e a mulher passaria por atrevida se não fosse mais reservada do que um homem em suas palavras. A administração doméstica, em ambos os casos, também deve apresentar alguma diferença, sendo um encarregado de comprar, outro de economizar e de conservar. O mérito especial do que comanda é a prudência. As outras virtudes lhe são comuns com os que obedecem. Estes não precisam de prudência, mas sim de confiança e de docilidade; são como os instrumentos ou então como o fabricante de alaúdes, e o homem que comanda é como o executante que os toca. Sabemos, agora, se as qualidades do homem de bem e do bom cidadão são ou não as mesmas, como elas se assemelham e em que diferem. Da Finalidade do Estado O homem é, por sua natureza, como dissemos desde o começo ao falarmos do governo doméstico e do dos escravos, um animal feito para a sociedade civil. Assim, mesmo que não tivéssemos necessidade uns dos outros, não deixaríamos de desejar viver juntos. Na verdade, o interesse comum também nos une, pois cada um aí encontra meios de viver melhor. Eis, portanto, o nosso fim principal, comum a todos e a cada um em particular. Reunimo-nos, mesmo que seja só para pôr a vida em segurança. A própria vida é uma espécie de dever para aqueles a quem a natureza a deu e, quando não é excessivamente cumulada de misérias, é um motivo suficiente para permanecer em sociedade. Ela conserva ainda os en- cantos e a doçura neste estado de sofrimento, e quantos males não suportamos para prolongá-la! Mas não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos que se fez o Estado'°, sem o quê, a sociedade compreenderia os escravos e até mesmo os outros animais. Ora, não é assim. Esses seres não participam de forma alguma da felicidade pública, nem vivem conforme suas próprias vontades. Os homens tampouco se reuniram para formar uma sociedade militar e se precaver contra as agressões, nem para estabelecer contratos e fazer trocas de coisas ou outros serviços. Caso contrário, os tirrenianos e os cartagineses e todos os outros povos que comerciam uns com os outros seriam membros de uma mesma Cidade. Eles possuem tratados redigidos por escrito, com base nos quais importam e exportam suas mercadorias, garantem-nas uns aos outros, prometendo defendê-las a mão armada. Mas não têm, quanto a esses objetos, nenhum magistrado que lhes seja comum. Cada um desses povos tem os seus em seu próprio território. Eles não se preocupam com o que os outros são, nem com o que fazem, se são injustos ou corrompidos como particulares, só fazendo questão da garantia que ambos os povos se deram mutuamente de não se lesarem. Aqueles, pelo contrário, que se propõem dar aos Estados uma boa constituição prestam atenção principalmente nas virtudes e nos vícios que interessam à sociedade civil, e não há nenhuma dúvida de que a verdadeira Cidade (a que não o é somente de nome) deve estimar acima de tudo a virtude. Sem isso, não será mais do que uma liga ou associação de armas, diferindo das outras ligas apenas pelo lugar, isto é, pela circunstância indiferente da proximidade ou do afastamento respectivo dos membros. Sua lei não é senão uma simples convençâo de garantia, capaz, diz o sofista Licefron, de mantê-los no dever recíproco, mas incapaz de torná-los bons e honestos cidadãos. Para tornar isto mais claro, suponhamos que aproximamos os lugares e que as cidades de Megara e Corinto se toquem; esta proximidade não fará com que os dois Estados se confundam, mesmo que se acertassem casamentos entre uma e outra cidade, apesar de este ser um dos laços mais íntimos para a comunicação mútua. Suponhamos, até, alguns homens: um carpinteiro, outro lavrador, outro sapateiro, um quarto de alguma outra profissão. Suponhamos, se se quiser, dez mil deles, residindo separadamente, mas não a uma distância tão grande que não se possam comunicar. Eles fizeram um pacto de não-agressão no que toca a seus comércios e até prometeram tomar armas para sua mútua defesa, mas não têm outra comunicação a não ser o comércio e seus tratados. Mais uma vez, esta não será uma sociedade civil. Por quê, então? Nesta hipótese, não se dirá que estejam afastados demais para se comunicarem. Aproximando-se assim, a casa de cada um deles assumiria o papel de ci-dade e eles se prestariam, graças à sua confederação, ajuda contra as agressões injustas. No entanto, se não tives- sem nessa aproximação uma comunicação mais importante do que a que têm quando separados, esta ainda não seria exatamente uma Cidade ou uma sociedade civil. A Cidade, portanto, não é precisamente uma comunidade de lugar, nem foi instituída simplesmente para se defender contra as injustiças de outrem ou para estabelecer comércio. Tudo isso deve existir antes da formação pensam que comandar seus semelhantes, se praticado com despotismo, é uma grande injustiça, mas que, se se comanda politicamente, não é uma injustiça, mas somente um obstáculo à própria tranqüilidade. Alguns, pelo contrário, julgam que a vida ativa e consagrada aos negócios públicos é a única digna do homem e que jamais se acharão na vida privada tantas ocasiões de exercer cada virtude quanto no trato dos negócios públicos e no governo do Estado. Outros chegam a sustentar que o despotismo e o império da força são, para um povo, a única maneira de ser feliz. Vemos, com efeito, que em alguns Estados o governo e as leis tendem à preocupação única de dominar os vizinhos. Por mais que consideremos todas as constituições espalhadas por diversas regiões, se suas leis, em sua maioria bastante confusas, têm um fim particular, este fim sempre é dominar. Na Lacedemônia e em Creta, a quase totalidade de sua disciplina e de suas numerosas regras é dirigida para a guerra. Em todas as nações que têm o poder de crescer, entre os citas, entre os persas, entre os trácios, entre os celtas, não há nenhuma profissão mais estimada do que a das armas. Em alguns lugares, existem leis para estimular a coragem guerreira. Em Cartago, as pessoas são decoradas com tantos anéis quantas foram as campanhas que fizeram. Na Macedônia, uma lei pretendia que aqueles que não houvessem matado nenhum inimigo tivessem que andar de cabresto. Entre os citas, aquele que estivesse nesse caso sofria a afronta de não beber à roda, na taça das refeições solenes. A Ibéria, nação belicosa, levanta ao redor das tumbas tantos obeliscos quantos inimigos o defunto matou. Em outras partes, encontramos instituições semelhantes, ordenadas pelas leis ou estabelecidas pelo costume. Contudo, se quisermos prestar atenção a isto, parecerá muito absurdo que a política ensine a dominar seus vizinhos, com ou sem a força. Com efeito, como erigirem máxima de Estado ou em lei o que não é nem mesmo lícito? Ora, é lícito comandar sem nenhum direito e ainda mais contra todo direito. Uma vitória injusta não pode ser um motivo justo. Este absurdo não se observa em nenhuma outra ciência. Não é ofício nem do médico, nem do piloto persuadir ou fazer violência, um a seus doentes, o outro a seus marinheiros. Mas muitos parecem considerar a dominação como 0 objeto da política, e aquilo que não cremos nem justo nem útil para nós não temos vergonha de tentar contra os outros. Eles não querem justiça no governo a não ser para eles próprios, mas, se se trata de comandar os outros, ela é a coisa com que menos se preocupam; absurdo revoltante, a menos que a natureza não tenha destinado uns a dominar e não tenha recusado a outros esta aptidão. Se ela estabeleceu esta distinção, pelo menos não se deve tentar dominar a todos, mas apenas aos que só servem para serem submetidos. É assim que não se vai à caça para pegar os homens e comê-los ou matá-los, mas apenas para pegar os animais selvagens que são comestíveis. Não existe Estado feliz por si mesmo senão o que se constitui sobre as bases da honestidade. É possível encontrar algum cuja posição não permita nem guerrear, nem pensar em vencer. Sua felicidade não deixará de estar garantida, desde que ele use de civilidade e de leis virtuosas. Portanto, se devemos considerar honestos os exercícios militares, não é enquanto fim último, mas como estabelecidos para um fim melhor. Um legislador sábio só deve considerar, no Estado, no gênero humano ou nas sociedades particulares de que é composto, a sua aptidão à vida feliz e o gênero de felicidade de que são capazes. Isto não significa que deva haver a mesma constituição e as mesmas leis em toda parte. Se houver povos vizinhos, é prudente cuidar da maneira de se comportar para com eles, dos exercícios militares que esta circunstância exige e dos serviços que podemos prestar-lhes. É o que examinaremos logo mais, ao tratar do fim a que deve tender uma boa constituição. A Vida Ativa, Fonte das Duas Felicidades Não tratamos aqui senão dos que concordam com o princípio de que devemos preferir a vida virtuosa a qualquer outra, mas que não estão de acordo sobre sua aplicação. Uns não dão nenhuma importância aos cargos políticos e consideram a vida de um homem livre muito superior à que se leva na confusão do governo; outros preferem a vida política, não acreditando que seja possível não fazer nada, nem portanto ser feliz quando não se faz nada, nem que se possa conceber a felicidade na inação. Uns e outros têm razão até certo ponto e se enganam sobre o resto. Os primeiros têm razão ao dizer que mais vale viver livre do que mandar. Não há nada de magnífico em se servir de um escravo, enquanto escravo, nem em ditar a lei a pessoas que são forçadas a obedecer. Mas não se deve acreditar que todo mando seja dominação. O domínio exercido sobre homens livres difere tanto do exercido sobre escravos quanto o homem nascido para a liberdade difere do homem naturalmente escravo, cuja definição demos no começo deste livro. Além disso, não é exato elevar a inação acima da vida ativa, já que a felicidade consiste em ação, e as ações dos homens justos e moderados têm sempre fins honestos. Não devemos concluir daí, como fazem os segundos, que nada disso ocorre quando se tem nas mão o poder, o meio mais seguro de executar projetos honestos; que, assim, aquele que pode mandar não deve deixar o mando com um outro, mas antes deve torná-lo dele, mesmo que seja o pai aos seus filhos, os filhos ao seu pai, os amigos a seus amigos, sem se preocupar com todas estas considerações; que devemos desejar exclusivamente o que há de melhor, e não há nada comparável à felicidade que nos proporcionam, mesmo contra nossa vontade. Isso poderia ser verdade, se as empresas e atos de autoridade que nos chocam pudessem proporcionar-nos efetivamente o que para nós é mais desejável. Ora, isso éimpossível, e esses pretensos governos iludem-se a si mes- mos. Para que seus procedimentos fossem toleráveis, seria preciso pelo menos que eles tivessem sobre nós o mesmo poder que tem o marido sobre a mulher, o pai sobre os filhos, o senhor sobre os escravos. Sem isso, qualquer que seja o sucesso ulterior, não podem justificar a injúria que nos fizeram antecipadamente ao violar nossa liberdade. Entre semelhantes, a honestidade e a justiça consistem em que cada um tenha a sua vez. Apenas isto conserva a igualdade. A desigualdade entre iguais e as distinções entre semelhantes são contra a natureza e, por conseguinte, contra a honestidade. Se, porém, se encontrasse alguém que ultrapassasse todos os outros em mérito e em poder e tivesse provado seu valor com grandes façanhas, seria belo ceder a ele e justo obedecer-lhe. Mas não basta ter mérito, é preciso ter bastante energia e atividade para estar certo do êxito. Isto posto, sendo, aliás, indubitável que a felicidade consiste na ação, a melhor vida, tanto para o Estado inteiro como para cada um em particular, é, sem dúvida, a vida ativa. Ademais, não devemos, como alguns imaginam, restringir a vida ativa apenas às ações que terminam fora, nem aos projetos que nascem da ocasião. Ela abarca também as meditações que tratam dessas ações e desses projetos e que, além do contentamento que por si mesmos proporcionam, ainda tornam a execução mais perfeita. Jamais somos tão senhores da ação exterior do que quando ela foi precedida de exame e de reflexão; é assim que, em arquitetura, o mérito das obras procede da profunda meditação sobre as plantas. Os Estados mais isolados não podem permanecer na ociosidade mesmo que queiram, a não ser por frações de tempo e por intervalos. Se não têm comunicação com o exterior, há ao menos comunicação necessária de uma parte a outra. O mesmo ocorre com as cidades e com os indivíduos entre si. Nem mesmo o próprio Deus e o mundo inteiro seriam felizes se, além de seus atos internos, eles não se manifestassem exteriormente pelos seus benefícios. É, portanto, claro que a fonte da felicidade é a mesma para os Estados e para os particulares. Da Eugenia e da Educação Como é a própria virtude que, em nosso sistema, faz o bom cidadão, o bom magistrado e o homem de bem, e como é preciso começar obedecendo antes de comandar, o legislador deve cuidar principalmente de formar pessoas honestas, procurar saber por quais exercícios tornará honestos os cidadãos e sobretudo conhecer bem qual é o ponto capital da vida feliz. Há na alma duas partes distintas, das quais uma, por si mesma, possui a razão, e outra não participa dela, mas pode obedecer-lhe. Pertencem a estas duas partes as virtudes que caracterizam o homem de bem. Conforme esta distinção, é fácil decidir em qual das duas reside o fim a que todo homem se deve propor. O menos bom está sempre subordinado ao melhor por sua destinação. Observa-se isto tanto nas obras de arte quanto nas da natureza. Ora, a parte que goza da razão é sem dúvida a melhor. Segundo nosso sistema, esta parte se subdivide em duas outras: a parte ativa e a parte contemplativa. Ora, os atos devem corresponder a suas faculdades e seguir a mesma divisão. Aqueles que provêm da parte mais excelente são, por conseguinte, preferíveis, quer os comparemos em bloco, quer o confronto se faça de um por um. Toda a vida se divide entre o trabalho e o repouso, a guerra e a paz, e todas as nossas ações se dividem em ações necessárias, ações úteis ou ações honestas. Devemos estabelecer entre elas a mesma ordem que entre as partes de nossa alma e seus atos, subordinar a guerra à paz, o trabalho ao repouso e o necessário ou útil ao honesto. Um legislador deve levar tudo isso em consideração ao escrever suas leis; respeitar a distinção das partes da alma e de seus atos; ter apaixonados, ou provindos da sensibilidade, outros intelectuais. E, assim como o corpo é gerado antes da alma, a parte carente de razão o é, igualmente, antes da razoável. Isto se observa pelos rasgos de cólera, pelos desejos e pelas vontades mostradas pelas crianças tão logo nascem. Mas o raciocínio e a inteligência só lhes vêm naturalmente com a idade. Convém, portanto, dar as primeiras atenções ao corpo, as segundas aos instintos da alma, recorrendo-se, todavia, ao intelecto ao tratar dos apetites e à alma, ao tratar do corpo. A Regulamentação dos Casamentos e dos Nascimentos Devendo o legislador cuidar antes de tudo da boa conformação do corpo dos súditos que deverá criar, cabelhe começar por bem regular os casamentos, determinando a idade e a compleição dos que julgar admissíveis na sociedade conjugal. Para estabelecer boas leis sobre esta associação, é preciso em primeiro lugar atentar para a idade e para as qualidades pessoais dos noivos, para que eles se convenham em maturidade e em força; se, por exemplo, sendo o homem capaz de gerar, a mulher não é estéril, ou se, pelo contrário, podendo esta conceber, não é o homem que é impotente. Esta má combinação só é boa para criar discórdia e para contrariar. Da mesma forma, deve preocupar-se com a sucessão das crianças; que não haja entre elas e os pais uma distância de idade grande demais, pois neste caso os filhos não podem mostrar seu reconhecimento aos pais na velhice, nem os pais podem ajudar seus filhos tanto quanto preciso. As idades tampouco devem ser muito próximas. Esta proximidade acarreta dois grandes inconvenientes: primeiro, menos respeito dos filhos pelo pai e pela mãe, que consideram como colegas; segundo, grandes altercações sobre a administração doméstica. Mas retornemos ao ponto de onde partimos, isto é, à boa conformação dos corpos que vão nascer, proposta pelo legislador. Esta e outras vantagens podem ser obtidas através de um mesmo meio. O final da procriação ocorre, para os homens, aos setenta anos; para as mulheres, aos cinqüenta. Sua união deve começar na mesma proporção. A dos adolescentes não vale nada para a progenitura. Em todas as espécies animais, os frutos prematuros de sujeitos jovens demais, sobretudo se se tratar da fêmea, são imperfeitos, fracos e de pequena estatura. O mesmo ocorre com a espécie hu- mana. Observa-se, com efeito, esta imperfeição em todos os lugares em que as pessoas se casam jovens demais. Só nascem abortos. O parto das moças jovens é, aliás, penoso demais e elas morrem em maior número. É assim que muitos interpretam a censura do Oráculo aos Trezenianos, de colherem seus frutos antes da maturidade, isto é, de casar muito jovens suas moças. Também cabe, para preservar o sexo dos perigos da incontinência, esperar para casá-las um certo tempo após a puberdade. Aquelas que conhecem cedo demais o uso das familiaridades conjugais são de ordinário mais lascivas. Por outro lado, nada retarda ou detém mais depressa o crescimento dos moços jovens do que se entregar cedo demais ao relacionamento com as mulheres, sem esperar que a natureza tenha neles elaborado completamente o licor prolífico. Há para o crescimento uma época precisa, além da qual não se cresce mais. A verdadeira idade para casar as moças é aos dezoito anos e para os homens aos trinta e sete, aproximadamente. Com isso a conjunção dos corpos se fará em pleno vigor, e a geração, depois, terminará num tempo conveniente tanto para um como para outro. Da mesma forma, a sucessão dos filhos a seus pais estará melhor colocada, se nascerem convenientemente no intervalo entre a força da idade e o declínio, que começa por volta dos setenta anos. Quanto à estação do ano própria à geração, o inverno é a que mais convém, como hoje se observa quase em toda parte. Também será bom consultar sobre esta matéria os preceitos dos físicos e dos médicos. Os médicos ensinam quais estações e os físicos que ventos são favoráveis ao ato sexual; por exemplo, eles preferem o vento do norte ao do sul. Ademais, cabe à Pedonômica prescrever que compleições mais convêm à geração. Basta, aqui, dizer uma palavra. Diremos somente que a compleição atlética não éútil nem à saúde, nem à geração, nem aos empregos civis; o mesmo ocorre com os corpos fracos, acostumados ao regime médico. É preciso um bom meio, uma compleição, por exemplo, não habituada aos trabalhos violentos demais, nem de uma mesma espécie, tais como os exercícios dos campeões, mas sim variados como as ocupações dos homens livres. Isto vale para os dois sexos. Convém, também, durante a gravidez, fazer as mulheres ficarem atentas à sua conservação, tirá-las da ociosidade, prescrever-lhes um regime alimentar substancial, dar-lhes exercícios fazendo com que visitem todos os dias os templos dos deuses honrados para a geração. Se o corpo precisa de movimento, o espírito necessita de repouso e de tranqüilidade. No ventre da mãe os filhos recebem, como os frutos da terra, a impressão do bem e do mal. Sobre o destino das crianças recém-nascidas, deve haver uma lei que decida os que serão expostos e os que serão criados. Não seja permitido criar nenhuma que nasça mutilada, isto é, sem algum de seus membros; determine-se, pelo menos, para evitar a sobrecarga do número excessivo, se não for permitido pelas leis do país abandoná-los, até que número de filhos se pode ter e se faça abortarem as mães antes que seu fruto tenha sentimento e vida, pois é nisto que se distingue a supressão perdoável da que é atroz. Já que determinamos para o homem e para a mulher a época inicial do casamento, digamos também quanto tempo eles podem consagrar à geração e quando convém encerrá-la. De fato, os filhos das pessoas de idade são, assim como os dos jovens demais, imperfeitos de corpo e de entendimento; os filhos dos muito velhos mostram-se absolutamente frágeis e débeis. Neste ponto, devem-se seguir as épocas da natureza e preferir aquela em que o espírito e a inteligência adquiriram seu pleno vigor, o que, segundo certos poetas que dividem a idade em semanas ou septenários, acontece de ordinário por volta dos cinqüenta anos. Uma vez que se tenha passado em quatro ou cinco anos esta idade, deve-se renunciar à propagação da espécie e até ao comércio com as mulheres, seja por motivo de saúde ou algo semelhante. Quanto às relações após o casamento com outra mulher ou outro homem que não aquela ou aquele a que se está unido, isto deve ser considerado como uma diversão absolutamente desonesta. Se ainda se estiver em idade de ter filhos, o adultério deve ser marcado de infâmia e punido segundo a enormidade do crime. A Educação da Infância Uma vez nascidas as crianças, são muito importantes para sua formação os alimentos de que vão nutrir-se. Se consultarmos o exemplo dos outros animais e das nações que se preocupam em formar o temperamento através dos exercícios de guerra, notaremos que o leite em abundância é o alimento mais conveniente ao corpo. Em contrapartida, o vinho não é bom para aquela idade; assim, deve-se descartar seu uso. Todos os movimentos possíveis são úteis para os bebês. Mas para prevenir as distorções dos membros enquanto eles ainda são delicados, algumas nações fazem uso de instrumentos artificiais que mantêm reto o corpo. Desde os primeiros momentos do nascimento, é bom acostumar as crianças ao frio; isto faz um bem infinito à saúde e dispõe às funçôes militares.Por isso, a maior parte das nações bárbaras observa ou o costume de mergulhálas ao sair do ventre da mãe no rio ou em água fresca, ou o de vesti-las ligeiramente, como fazem os celtas. Qualquer que seja a prática em que se queira acostumá-las, épreciso começar desde a mais tenra infância, contanto que se vá aos poucos. O calor inato coloca-as naturalmente em condições de suportar o frio. É a estes pequenos cuidados que se limita a educação da primeira idade. Na idade seguinte, até os cinco anos, não é conveniente dar nada para as crianças aprenderem, nem submetê-las a qualquer trabalho. Isto poderia impedir seu crescimento. Basta mantê-las em movimento para preservar seus corpos da preguiça e do peso. Este movimento deve consistir apenas nas funções da vida e nas brincadeiras, tomando cuidado somente para que elas não sejam nem desonestas nem penosas, nem destituídas demais de ação. Quanto às conversas e às fábulas que podem convir a esta idade, elas caberão aos Paedonomos ou serão destinadas ao ensino das crianças. Todos estes primeiros esboços devem preparar para os futuros exercícios e a maior arte das brincadeiras devem ser apenas ensaios do que será preciso fazer quando chegar a hora. Em certos lugares, comete-se o erro de proibir à criança o choro e os movimentos expansivos. Todos estes atos servem para seu desenvolvimento e fazem parte, por assim dizer, dos exercícios corporais. O ato de reter a respiração dá força aos que trabalham. Isto também ocorre no próprio esforço das crianças para gritar. Em compensação, uma coisa a que os Paedonomos ou professores devem prestar muita atenção na orientação das crianças que lhes são confiadas é impedir muita conversa e familiaridade, sobretudo com os escravos. A educação doméstica durará até os sete anos. Ela afastará dos ouvidos e dos olhos das crianças tudo o que fere o pudor. O legislador deve até mesmo banir do Estado todas as conversas indecentes, assim como toda impropriedade do gênero, pois da licença verbal à das ações não há muita distância e se passa facilmente de uma a outra. É preciso tomar um cuidado especial para que as crianças não digam nem ouçam nada de parecido. Todo aquele que for surpreendido dizendo ou fazendo um ato proibido deve, se for de condição livre, o jogo não foi imaginado senão para isto. O trabalho é acompanhado de fadiga e de esforços. É preciso entremeá-lo convenientemente de recreações, como um remédio. O descanso éao mesmo tempo um movimento da alma e um repouso, pelo prazer de que se acompanha. A cessação do trabalho é ela própria um prazer e faz parte da felicidade da vida, felicidade esta que não se pode apreciar em meio às ocupações e que só é bem sentida nos momentos de lazer. Não nos entregamos ao trabalho senão com vistas a algum fim. A felicidade é um destes fins. E esta felicidade não somente não contém nenhum desgosto como também se apresenta ao espírito de todos acompanhada de prazer. Todavia, este prazer não é o mesmo para todos; cada um o ajusta à sua maneira de ser e a seus hábitos. O homem de bem o coloca nas coisas honestas. Deve-se aprender, portanto, mesmo que seja para si mesmo, a passar honesta e agradavelmente os momentos de lazer que se tiver na vida e também saber ocupar-se para utilidade dos outros. É por isso que nossos pais fizeram com que a música entrasse na educação. Não que ela seja necessária: ela não o é. Não que ela tenha tanta importância quanto a escrita, que serve para o comércio, para a administração doméstica, para as ciências e para a maioria das funções civis, ou quanto a pintura, que nos permite julgar melhor a obra dos artistas, ou quanto a ginástica, que ajuda a saúde e o desenvolvimento das forças; a música não faz nada disso. Mas ela serve pelo menos para passar agradavelmente o lazer. É por isso que ela foi posta na moda. Ela pareceu a seus inventores a diversão mais conveniente às pessoas livres. Por isso Homero, após ter descrito uma refeição suculenta e nomeado vários dos que concorriam para a alegria da festa, acrescenta: Convidemos para o banquete um cantor barmonioso. Em outro trecho, Ulisses não encontra espetáculo mais encantador do que ver todo o mundo alegre, nem tempero mais delicioso para os convivas do que ouvir a casa cheia de cantos de alegria. É, portanto, evidente que a música é uma excelente parte da educação e deve ser ensinada às crianças, senão como necessária ou útil para ganhar a vida, pelo menos como liberal e honesta. É a música a única no gênero dos talentos agradáveis e, se houver várias outras espécies, quais são elas? Éo que diremos mais adiante". Baste-nos agora ter apoiado a autoridade dos antigos no plano da educação a que nos propomos, especialmente quanto à música. Deve-se também fazer com que as crianças aprendam algum talento útil, tal como a arte de ler e escrever, não apenas pelo proveito que se pode tirar disso, mas também como um meio de chegar às outras ciências. O mesmo ocorre com a pintura: devemos ensiná-la a elas, quer para evitar os erros em seus trabalhos deste gênero, quer para que não sejam enganadas na compra e venda das obras dos outros, quer enfim para formar o gosto pela teoria das formas do belo físico. Procurar em toda parte apenas o lucro é uma maneira de pensar que de modo algum convém às pessoas livres e bem-nascidas. Já que se deve, portanto, começar por imprimir hábitos nas crianças antes de instruí-Ias pelo raciocínio e moldar seu exterior antes de trabalhar seu intelecto, concluímos com a ginástica e a pedotríbica: uma fortifica o temperamento, a outra dá graça às ações. Os Limites da Ginastica Hoje, os Estados que parecem preocupar-se mais com a educação dos jovens procuram proporcionar-lhes o regime dos atletas, o que deforma a pessoa e a impede de crescer, ou, como os lacedemônios, não cometem este erro, mas brutalizam-nos pelo excesso de fadiga, como se esse fosse um meio de proporcionar coragem. Já dissemos várias vezes que não se deve limitar a educação nem a um gênero de virtude, nem sobretudo ao que acabamos de mencionar. E, caso a limitássemos, não é certo que seríamos bem-sucedidos. Com efeito, não observamos nem nos outros animais nem entre os povos que a bravura seja o quinhão dos mais ferozes. Pelo contrário, ela se encontra mais, como no caso dos leões, ao lado da calma e da mansidão. Existem povos que não evitam os massacres e são ávidos de carne humana, mas que, quando atacados, são tudo, menos valentes; por exemplo, os aqueus e os heniocos do Ponto Euxino, e outras nações mais distantes que pertencem às terras da mesma região, sendo que as outras preferem a profissão de ladrões. Não vemos hoje os próprios lacedemônios, que se sobressaíram a todos enquanto foram o único povo que se exercitava, se tornarem inferiores aos outros nos mesmos exercícios e combates? Se tiveram a supremacia, não foi porque exercitaram sua juventude, mas porque se defrontaram com povos que não exercitavam as suas. Portanto, não é a ferocidade, mas sim a honestidade que deve ter a primazia na educação da juventude. Não será nem o lobo, nem algum outro animal feroz que vai expor-se ao perigo pela glória; isto só se vê num homem educado para a virtude. Aqueles que expõem em demasia os jovens aos exercícios do ginásio e os deixam sem instrução sobre as coisas mais necessárias, fazem deles, na verdade, apenas reles guarda-costas, que servem no máximo para uma das funções da vida civil, uma função, porém, que, se consultarmos a razão, é a menor de todas. Não é por suas proezas antigas, mas sim pelas do presente que devem ser julga- dos. Na época, eles não tinham adversários neste ponto da disciplina, mas hoje, sim. Que sejã preciso algo de ginástica, e como, estamos de acordo. Mas até a puberdade só se praticarão exercícios leves, sem sujeitar os corpos aos excessos de alimentação, nem aos trabalhos violentos, por temor de que isso impeça o crescimento. A prova do efeito funesto deste regime forçado é que entre os que venceram nos jogos olímpicos em sua juventude dificilmente se encontrarão dois ou três que também venceram numa idade mais avançada. Por que isto? Porque a violência dos exercícios a que se tinham submetido desde a infância esgotara sua força e seu vigor. Depois da puberdade, quando tiverem passado três anos ocupados com outros estudos, convirá então ocupar a idade seguinte com os trabalhos e o regime prescritos pela lei do ginásio. Com efeito, não se deve atormentar ao mesmo tempo o espírito e o corpo. Desses exercícios, um impede o outro; o do corpo é nocivo ao espírito, e o do espírito ao corpo. Das Dimensões e da Localização da Cidade Do mesmo modo que os outros trabalhadores, por exemplo o tecelão, ou o construtor de navios, devem ter à mão a matéria que convém à sua obra, e a obra é tanto mais bela quanto mais bem preparada for a matéria, também é preciso que um fundador de Estado e um legislador tenham já pronta e convenientemente elaborada a matéria que lhes é própria. Seu primeiro elemento consiste no número e na qualidade dos habitantes. Quantos deles é preciso e de que espécie? O segundo consiste na grandeza e na fertilidade da região". Grandeza Desejável do Estado Muitos consideram que a felicidade de um Estado ou de uma cidade depende de sua grandeza, mas ignoram o que se deve chamar de grande ou de pequeno. Julgam pela população. Segundo eles, trata-se de um grande Estado ou de uma grande cidade quando nela se encontra uma grande multidão de habitantes. Todavia, é bem menos a sua abundância do que as suas funções e seus talentos que se devem considerar, pois cada Estado tem sua obra especial; assim, deve-se considerar o maior aquele que pode melhor realizá-la. Hipócrates, quanto à estatura, foi talvez menor do que outro homem, mas também um maior médicó. Portanto, se quisermos estimar a grandeza de um Estado ou de uma cidade pelo número de seus habitantes, pelo menos não devemos contar qualquer pessoa entre eles. Necessariamente se encontram nas cidades muitos escravos, domiciliados e estrangeiros. Não são cidadãos. Chamamos com este nome apenas aqueles que compõem realmente o Estado como partes integrantes. É o número extraordinário de cidadãos que constitui uma grande cidade, um grande Estado. Não pensaremos em chamar de "grande" a Cidade de onde vêm muitos operários e poucos guerreiros. "Grande" e "povoado" são duas coisas distintas. É difícil - a experiência prova até que é quase impossível - que um Estado ou mesmo uma cidade muito povoada seja bem governada. Dentre aquelas que consideramos bem policiadas, não vemos nenhuma cuja população seja excessiva. Neste ponto, a razão se junta à experiência. A lei éuma certa ordem e a boa civilidade, para os cidadãos, não é senão a excelência da ordem estabelecida entre eles. Ora, o número muito excessivo não é suscetível de ordem. Só o poder divino pode introduzi-Ia ali, como fez no Universo. Mas não é nem na extensão nem no número que se observa a beleza. Por conseguinte, é necessariamente muito bela uma cidade onde se encontre a justa medida de grandeza. Esta proporção é determinada como em qualquer outro gênero, por exemplo, num gênero de animais,de plantas, de instrumentos. Grande demais ou pequeno demais, cada um deles não tem mais a mesma eficiência, perde até sua natureza e se torna inútil. Um navio que só tivesse um palmo ou que medisse dois estádios de comprimento deixaria de ser um navio, pois sua pequenez ou sua excessiva grandeza o tornaria igualmente impróprio para a navegação`. O mesmo ocorre com uma cidade ou um Estado. Sua propriedade essencial é a suficiência de seus meios. Se uma cidade tiver poucos habitantes, pecará por penúria; se os tiver em excesso, poderá subsistir como nação, se contar com as coisas necessárias, mas Em seguida, é preciso que o local seja próprio para os exercícios e para as reuniões civis, tenha saídas fáceis para os cidadãos e acesso difícil para os inimigos e seja ainda mais difícil de sitiar. As fortalezas não convêm de igual maneira a todo Estado: são as oligarquias e as monarquias que têm cidades altas e cidadelas. As democracias amam os terrenos nivelados. Nem uns nem outros agradam às aristocracias; elas preferem certo número de posições naturalmente fortes. Em terceiro lugar, no que se refere às casas particulares, elas serão bem mais agradáveis e mais cômodas se seu espaço for bem distribuído, com uma estrutura à maneira moderna, ao gosto de Hipódamos'8. Não é que, quanto à segurança em caso de guerra, elas antigamente não fossem melhor concebidas. A entrada era difícil para os estrangeiros, e a pilhagem para os inimigos. Seria bom misturar as duas práticas e, quando se constrói, imitar os vinhadeiros, na disposição de suas cepas. Não se alinharão todas as ruas de um extremo ao outro, mas apenas certas partes, tanto quanto o permitir a segurança e o exigir a decoração. Enfim, a respeito das muralhas, dizer que elas não são necessárias, nas cidades que se vangloriam de valor e de virtude, é pensar um pouco demais à maneira antiga. A experiência refutou, sob nossos olhos, essa fanfarronada, nas próprias cidades que se jactavam. Embora não seja muito honroso opor muros de defesa a guerreiros da mesma têmpera que não têm uma grande vantagem numérica, é possível que os sitiantes consigam um tal acréscimo de forças que todo valor humano, mas com poucas pessoas, não possa resistir-lhes. Portanto, se não se quer morrer, nem se expor ao ultraje, deve-se considerar como uma das medidas mais autorizadas pelas leis da guerra manter suas muralhas no melhor estado de fortificação, príncípalmente hoje, quando se imaginaram tantos instrumentos e máquinas engenhosas para atacar fortificações. Não querer cercar as cidades com muros é como abrir o país às incursões dos inimigos e retirar os obstáculos de sua frente, ou como se recusar a fechar com muros as casas par- ticulares, de medo que os que nelas habitam se tornem medrosos. Deve-se refletir também que os que têm muros ao redor de suas cidades podem agir como se não os tivessem, opção que falta aos que não possuem essa proteção. A Disposição Interior De resto, não basta cercar uma cidade de muralhas, é preciso fazer com que elas sirvam ao mesmo tempo para ornamento da cidade e para as necessidades da guerra, tanto contra os antigos estratagemas como contra as invenções modernas. Pois, assim como os assaltantes buscam todos os meios para vencer, assim também é preciso fazer uso dos que foram descobertos e inventar outros para se defender. Raramente se tenta atacar os que estão bem preparados para resistir. Os muros serão divididos em corpos de guarda e bastiões, situados em distâncias e lugares cômodos. Tal distribuição dará ensejo a que ali se instalem salas de refeições públicas, já que, para estas, é preciso que a multidão dos cidadãos seja dividida em companhias. Os templos dos deuses e suas salas de aparato, onde se realizam os banquetes dos magistrados, devem situar-se em lugar conveniente, nas mesmas fortificações. As mesas serão colocadas onde se quiser, contanto que não seja nos santuários ou em lugares reservados pela lei, como o local do tesouro e dos oráculos. A melhor posição para este tipo de edifício seria uma eminência elevada o bastante para ser a sede da virtude e bastante fortificada para defender as áreas circunvizinhas. Convém que abaixo dessa fortaleza haja, como na Tessália, uma praça livre para os passeios, onde não haja nenhum comércio e onde não sejam admitidos nem lavradores, nem artesãos, nem outras pessoas semelhantes, se não forem chamadas pelos magistrados. Este lugar seria ainda mais agradável se tivesse um local para exercícios destinado à diversão dos anciãos, em que a decência distribuiria os lugares de acordo com a idade; os magistrados presidiriam ali os exercícios dos jovens e os velhos se sentariam junto aos magistrados. Sua presença se imporia e manteria os atores e os espectadores dentro dos limites do respeito e da modéstia. O mercado deve ficar separado desta praça, num local cômodo e apropriado para que a ele se conduzam todas as mercadorias que vierem de todos os lugares, por terra e por água. Sendo a parte eminente do Estado partilhada por sacerdotes e magistrados, o refeitório dos sacerdotes deve ficar perto dos templos. Mas a sala destinada à refeição dos magistrados subalternos e outros oficiais menos importantes, tanto da recepção dos contratos ou sentenças quanto dos adiamentos ou outro desses ministérios, ou então do controle dos mercados e da cidade, ficará nas proxi- midades de uma encruzilhada e no lugar mais movimentado, como o mercado onde se vendem os artigos de primeira necessidade. Pois, ao passo que a outra praça de que falamos acima é vazia e livre, esta, pelo contrário, fica no centro das transações. A mesma ordem será observada no campo. Haverá pequenos fortes destinados ao mesmo tempo a proteger a região e a abrigar tanto os oficiais chamados florestais quanto os chamados agrônomos. Deve também haver tem- plos nas aldeias, consagrados uns aos deuses, outros aos heróis. Mas por que determo-nos neste ponto mais tempo? Estes projetos pertencem ao domínio dos desejos; sua execução é um favor que só podemos esperar da sorte. Das Funções e das Classes Sociais As diferentes partes que compõem os seres não pertencem todas de tal forma à sua essência que seja preciso a sua reunião absoluta para constituir um corpo organizado. Esta lei geral aplica-se à Cidade. Embora úteis a sua organização, nem todas as partes que a compõem são elementos constituintes do corpo político. Em geral, nem todas as partes de um todo qualquer pertencem à es- sência do gênero. Com efeito, é evidente que existem elementos da Cidade que são necessariamente comuns, como os alimentos, o solo e outras coisas de primeira necessidade. Todos devem ter acesso a elas em todos os sistemas de igualdade ou de desigualdade. Quando, porém, duas coisas não têm outra relação senão a simples destinação de uma a outra, quando não têm nada em comum e uma se limita a fazer e a outra a receber, não se pode dizer que elas pertençam ao mesmo todo. Assim, o instrumento e o trabalhador não fazem parte da obra, nem o arquiteto da casa, que não tem nada em comum com ele e é apenas o fim proposto à sua arte. Pela mesma razão, embora o Estado precise de imóveis, estes imóveis não fazem parte do Estado. O mesmo ocorre com os seres animados que fazem parte da riqueza e do património de cada um. Os Elementos Necessários à Existência da Cidade O Estado ou Cidade é uma sociedade de pessoas semelhantes com vistas a levar juntas a melhor vida possível. Sendo, portanto, a felicidade o maior bem e consistindo no exercício e no uso perfeito da virtude, e sendo possível que alguns participem muito dela e outros pouco ou absolutamente nada, esta diversidade teve necessariamente que produzir várias espécies de Estados e de governos, segundo o gênero de vida e os meios que cada povo emprega para alcançar o bem-estar. Vejamos, pois, quais são as coisas que a sociedade política não pode dispensar. Aqueles que chamamos de seus membros devem necessariamente ocupar-se delas. Para isso, basta contar suas funções. A enumeração colocará diante de nossos olhos o que buscamos. A Cidade precisa: 1°- de víveres; 2°- de artes e ofícios, pois a vida necessita de muitos instrumentos; 3°- de armas, quer para manter a autoridade no interior e submeter os rebeldes, quer para repelir os assaltos injustos do exterior; 4°- de numerário para o comércio dos cidadãos entre si e para os negócios da guerra; 5°- de ministros - e é por aí que devíamos ter começado - para o culto divino, ministério que se chama sacerdócio; 6°- enfim, o que é de uma necessidade ainda mais indispensável, de conselhos e de tribunais que conheçam toda espécie de interesses e de direitos de cidadão para cidadão. Estas são, aproximadamente, as funções e os funcionários de que todo Estado precisa. Pois, mais uma vez, um Estado ou sociedade política não é uma massa qualquer, mas uma multidão que tem tudo de que precisa para subsistir por si mesma, suficiência que não existe se faltar uma destas coisas. Portanto, já que são estas as funções e profissões que constituem o Estado, deve haver necessariamente em todo Estado muitos lavradores que lhe forneçam víveres, artesãos, militares, pessoas ricas, sacerdotes e gente que faça a inspeção das coisas necessárias e úteis. A Especialização das Funções Uma vez determinadas estas funções, precisamos ver se todas indiferentemente devem ser comuns a todas as pessoas (pois poderia acontecer que todos fossem ao mesmo tempo lavradores, artesãos, membros da Assembléia e juízes) ou se, pelo contrário, convém que cada um se especialize, ou ainda se gratuitamente; caso contrário, não será fácil para aqueles que só têm o estrito necessário fornecer a sua parte e ainda arcar com o sustento de sua família. .Outro tipo de despesa comum a todo o Estado é a do culto. É, portanto, necessário dividir a terra, primeiramente, em duas partes, deixando uma em comum e consignando a outra aos particulares; depois, se subdividirá cada fração em duas outras; das duas que restam para a nação, uma será destinada às despesas do culto, a outra às refeições públicas; quanto aos dois lotes de proprie- dades privadas, um será nas fronteiras, outro perto da cidade, a fim de que cada qual tenha sua subsistência garantida nos dois lugares. Por esse meio, sendo todos tratados igualmente, não haverá injustiça e, se ocorrer uma guerra com os vizinhos, eles se entenderão melhor entre si. Agindo de outra maneira, uns se incomodariam pouco com a inimizade dos vizinhos, enquanto outros a temeriam muito, mais do que convém. Assim, em certos países, existe uma lei que proíbe admitir cidadãos limítrofes dos países inimigos nas deliberações sobre a guerra a ser feita daqueles lados, por não serem capazes, em razão de seus interesses particulares, de bem discutir o assunto. Quanto aos cultivadores, se for possível escolher, devem ser todos escravos, mas nem de uma mesma nação ou de mesma tribo, nem audaciosos demais. Eles serão mais úteis nos trabalhos do campo e menos inquietantes para o Estado. Na falta de escravos, tomar-se-ão trabalhadores do país vizinho, de mesmo caráter que os acima. Os dos proprietários particulares lhes pertencerão e cultivarão suas terras, os da nação serão escravos públicos e explorarão a gleba comum. Já indicamos como se deve usar dos escravos e por que é melhor dar-lhes a todos, como recompensa, a perspectiva da liberdade. Das Diversas Formas de Governo A Constituição integral diz: 1° de quem e de que espécie de pessoas um Estado deve ser composto; 2° como deve ser cente. Este segundo ponto de vista leva-nos naturalmente ao exame destas questões: há apenas uma forma de governo ou várias? Se houver várias, quantas e quais são? Quais são as diferenças entre elas? Começaremos pelas formas justas. Elas nos permitirão imediatamente conhecer os excessos que as tornam injustas. Os Critérios Distintivos: Número e Justiça O governo é o exercício do poder supremo do Estado. Este poder só poderia estar ou nas mãos de um só, ou da minoria, ou da maioria das pessoas. Quando o monarca, a minoria ou a maioria não buscam, uns ou outros, senão a felicidade geral, o governo é necessariamente justo. Mas, se ele visa ao interesse particular do príncipe ou dos outros chefes, há um desvio. O interesse deve ser comum a todos ou, se não o for, não são mais cidadãos. Chamamos monarquia o Estado em que o governo que visa a este interesse comum pertence a um só; anistocracia, aquele em que ele é confiado a mais de um, denominação tomada ou do fato de que as poucas pessoas a que o governo é confiado são escolhidas entre as mais honestas, ou de que elas só têm em vista o maior bem do Estado e de seus membros; república, aquele em que a multidão governa para a utilidade pública; este nome também é comum a todos os Estados. Todos estes termos são bem escolhidos. Poucos homens excelem em mérito. Contudo, é possível que haja um ou alguns, em pequeno número, mas é difícil que se encontrem muitos homens eminentes em todos os gêneros, sobretudo na espécie de valor que a profissão militar exige. Ele só pode ser adquirido nas nações guerreiras. Assim, a parte principal de tal Estado consiste em homens de guerra e seus primeiros cidadãos são os que portam armas. Estas três formas podem degenerar: a monarquia em tirania; a aristocracia em oligarquia; a república em democracia. A tirania não é, de fato, senão a monarquia voltada para a utilidade do monarca; a oligarquia, para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres. Nenhuma das três se ocupa do interesse público. Podemos dizer ainda, de um modo um pouco diferente, que a tirania é o governo despótico exercido por um homem sobre o Estado, que a oligarquia representa o governo dos ricos e a democracia o dos pobres ou das pessoas pouco favorecidas. Discussão dos Critérios Vale a pena determo-nos em cada uma destas formas para esclarecer as dúvidas que suscitam. Quando não nos limitamos à prática de uma arte, mas nos elevamos ao conhecimento de seus princípios não devemos omitir nada, nem nada tratar ligeiramente. É preciso, sobre cada ponto, achar a verdade em sua maior evidência. Eis de início uma primeira crítica das definições que acabamos de dar: significando a democracia propriamente o poder da multidão e a oligarquia o da minoria, nossa definição não se revela ria falsa se houvesse mais ricos do que pobres e fosse a maioria de ricos que governasse ou, ao contrário, sendo eles superiores em número, fossem governados por um número menor de pobres? Su- ponhamos ainda o menor número para os ricos e a multidão para os pobres; se não houver outras espécies de Estado a não ser as seis que enumeramos, a que classe pertencerão as últimas que acabamos de imaginar: àquela em que domina a multidão dos ricos ou àquela em que se sobressai uma minoria de pobres? Deveríamos inventar nomes para elas? Não é preciso. A minoria e a maioria devem ser encaradas apenas como acidentes, um da oligarquia, outro da democracia, sendo comum em todos os lugares que haja poucos ricos e muitos pobres. A esquisitice destes casos particulares não deve, portanto, impedir que a oligarquia se distinga pela riqueza e a democracia pela pobreza. Assim, quer formem a minoria ou a maioria, se são os ricos que comandam, será sempre a oli- garquia; se são os pobres, a democracia. Mais uma vez, é um acaso muito raro que haja poucos pobres e muitos ricos. Mas todos podem ser livres. Ora, a administração da coisa pública é disputada pela liberdade e pela opulência. A causa de tantas espécies de governo é a quantidade das diversas partes de cada Estado. Pode-se ver que eles são compostos de famílias; que nesta multidão uns são ricos, outros pobres e outros estão numa situação média; que entre os pobres e os ricos uns se dedicam à profissão das armas, outros permanecem civis; que entre aqueles que formam o que chamamos de povo uns são lavrado- res, outros mercadores, outros ainda artesãos e trabalhadores manuais; que entre os próprios nobres também há diferença pela riqueza e extensão do patrimônio, que permite a alguns deles, entre outras coisas, criar cavalos, o que não é fácil para os de fortuna medíocre. A oligarquia, por exemplo, estabeleceu-se desde os tempos mais remotos em todos os lugares que tinham na cavalaria a sua principal força, como os eretrianos, os de Cálcides, os magnésios do Meandro e vários outros povos asiáticos. Montava-se a cavalo para combater os inimigos dos arredores. Além das diferenças de riqueza, há também as que são criadas pelo nascimento, pelo mérito ou por qualquer outra prerrogativa. Dissemos no capítulo precedente quantas classes necessárias há em todo Estado. Em alguns Estados, todas são admitidas ou admissíveis no governo; em outros, só algumas são aceitas. Donde se segue que há várias espécies de Estados, tão diferentes entre si quanto o são suas partes integrantes. Com efeito, sua Constituição não é senão a ordem dos poderes ou magistraturas que nelas se distribuem a todos, ou então segundo a espécie e igualdade comum admitida quer entre os pobres, quer entre os ricos, quer entre ambos. Portanto, deve haver tantas formas de governo quantas ordens estabelecidas segundo estas superioridades, em qualquer gênero que for e segundo estas diferenças entre as partes integrantes. A Monarquia Eis o lugar natural para tratar da monarquia, que colocamos entre os grandes governos. Devemos dizer, inicialmente, se só há uma espécie de monarquia ou se há várias. Que haja muitas e nem todas se pareçam é algo muito fácil de observar. No Estado da Lacedemônia, por exemplo, há uma monarquia das mais legítimas, mas o poder do rei não éabsoluto, a não ser quando o monarca estiver fora de seus Estados e em situação de guerra, pois então ele tem a autoridade suprema sobre seu exército. Além disso, ele tem no interior a superintendência do culto e das coisas sagradas. Esta espécie de monarquia não é, pois, senão um generalato perpétuo, com plenos poderes, sem porém ter o direito de vida e de morte, a não ser em certo domínio ou, nas expedições militares, quando se está combatendo, como era costume antigamente. É o que se chama lei do golpe de mão. Homero refere-se a ela. Segundo ele, Agamêmnon, na Assembléia do povo, tolerava as palavras menos respeitosas. Fora dali, de armas na mão, tinha o poder de morte sobre os soldados delinqüentes. Assim, Homero o faz dizer: Aquele que eu vir perto dos barcos sombrios Furtar-se como covarde dos perigos e dos trabalhos De minha justa cólera nada poderá salvá-lo, Sua vida estará em minhas mãos: ele esperará em vão Escapar aos abutres com fome de carne, os cães dispersarão seus restos mutilados. O comando militar inamovível é, portanto, um primeiro tipo de monarquia, sendo umas hereditárias e outras eletivas. Encontramos exemplos de outra espécie de monarquia junto a alguns oligarquias maior número destes cidadãos do que outras, é impossível que um Estado governado por tais pessoas não tenha boas leis; da mesma forma, não podemos chamar de aristocracia o Estado governado por más leis: seria uma ponerocracia. Mas, para que um Estado seja bem organizado politicamente, não basta que tenha boas leis, se não cuidar da sua execução. A submissão às leis existentes é a primeira parte de uma boa ordem; a segunda é o valor intrínseco das leis a que se está submetido. Com efeito, pode-se obedecer a más leis, o que acontece de duas maneiras: ou porque as circunstâncias não permitem melhores, ou porque elas são simplesmente boas em si, sem convir às circunstâncias. A aristocracia consiste principalmente em atribuir os cargos mais altos segundo o mérito. A virtude é seu primeiro objeto; a riqueza, o da oligarquia; a liberdade, o da democracia. Estes três governos têm por máxima comum decidir pela maioria das opiniões. Em todos os três, o que é decidido pela maioria dos que têm estatuto de cidadãos e, nesta qualidade, participam do governo adquire força de lei. É principalmente isto que caracteriza o verdadeiro Estado. Só os Estados mistos consideram ao mesmo tempo os ricos e os pobres, a opulência e a liberdade, pois os ricos quase em toda parte desempenham o papel de aristocratas. Como há três razões para pretender a igualdade no governo, a saber, a liberdade, a opulência e a virtude (pois a nobreza, tida como a quarta, é apenas uma conseqüência da virtude unida à antiguidade da riqueza), a combinação de duas dessas razões, isto é, dos pobres com os ricos, deve sem problemas chamar-se República; a combinação das três, aristocracia, nome que - pondo de lado a verdadeira e pura aristocracia de que falamos mais acima é que é a primeira de todas - lhes convém bem mais do que qualquer outro, apesar da mistura das formas. o que dissemos leva-nos naturalmente a saber como a República se forma da democracia e da oligarquia, e como ela deve ser constituída. Ao mesmo tempo, logo veremos como é preciso definir a democracia e a oligarquia, e como se distinguem. Feita esta distinção, basta fazer com que se liguem, isto é, tomar alguma parte das duas e reuni-Ias; teremos então a República que procuramos. Há três maneiras de fazer este amálgama ou combinação: A primeira é reunir a legislação das duas sobre alguma matéria, por exemplo, sobre a ordem judiciária. Na oligarquia, a lei não concede aos pobres nenhum salário para administrar a justiça e estabelece penas contra os ricos, caso se recusem a fazer parte de uma assembléia; na democracia, a lei dá um salário aos pobres mas não aplica nenhuma pena aos ricos. A mistura conveniente ao Estado, que ocupa o meio entre estes governos e é composta pelos dois, é conceder o salário aos pobres e aplicar a multa aos ricos. Uma segunda maneira é ficar no meio do que ordenam os dois regimes. Entre admitir nas Assembléias gerais os que não têm nenhuma renda ou muito pouca e só aceitar os que têm muita, a média é receber os de rendimentos modestos. Um terceiro modo é acolher do governo oligárquico e do democrático o que cada um tem de bom. É democrático, por exemplo, escolher os magistrados por sorteio; oligárquico, elegê-los; democrático, não considerar a renda; oligárquico, tê-la em consideração. Portanto, convirá à aristocracia e à República tomar emprestado das duas, isto é, da oligarquia, as eleições, e da democracia, a elegibilidade sem consideração pela renda. Estas são as maneiras de mesclar. Mas a perfeição do amálgama é não mais se poder dar o nome de oligarquia e de democracia ao governo misto que dela resulta. A dificuldade de qualificação torna-se índice de excelência. Tomar os dois extremos é também propriedade do justo meio. É o que se observa no Estado da Lacedemônia. Muitos, com efeito, o colocam na classe das democracias, porque ele tem muitas instituições dessa natureza. Na educação das crianças, a comida é a mesma para os filhos dos ricos e para os dos pobres, a mesma instrução, a mesma severidade no trato; na idade seguinte, o mesmo gênero de vida quando se tornam homens. O rico não tem ali nenhum sinal exterior que o distinga do pobre; ambos comem da mesma carne nas refeições públicas, vestemse com os mesmos tecidos, que o pobre, qualquer que seja ele, pode com facilidade obter. Além disso, das duas maiores magistraturas, o povo designa uma e participa da outra; elege os senadores e administra a eforia. Outros, porém, consideram oligárquico este mesmo governo, porque tem muitas coisas em comum com a oligarquia; principalmente, que todos os seus magistrados são eleitos e nenhum é escolhido por sorteio, poucos têm o poder de condenar à morte ou ao banimento, etc. Num Estado bem equilibrado, é preciso que os dois elementos sejam observados e nenhum dos dois se sobressaia demais; que ele tenha, além disso, meios para se conservar a si mesmo, sem precisar de auxílios de fora, de maneira que ele deva sua salvação não à benevolência dos vizinhos, o que pode acontecer com os Estados depravados, mas ao contentamento de todos os seus membros, dos quais não há nenhum que deseje outro governo. A Tirania Resta-nos estudar o que chamam oligarquia, democracia e tirania. Em toda a extensão da corrupção, é fácil ver qual é a pior e qual vem a seguir. Quanto mais a monarquia se aproxima idealmente do governo celeste, mais sua alteração é detestável. A monarquia não passa de um vão nome, se não se distingue pela grande excelência de quem reina. O vicio mais diametralmente contrário à sua instituição é a tirania. Portanto, é também o pior dos governos. Trataremos dela, não porque mereça longos discursos, mas para não omiti-Ia, tendo-a anunciado na indicação do número dos governos". Ao tratar da monarquia propriamente dita, distinguimos no mesmo passo duas espécies de tiranias bastante análogas entre si e com relação à monarquia, bastante sujeitas à passagem de uma à outra, sendo ambas legítimas. Certos povos bárbaros elegem reis aos quais concedem um poder absoluto. Entre os antigos gregos, havia igualmente monarcas que eram chamados de Aisymnetas, um pouco semelhantes a estes reis. O que distingue estes Estados é que eles eram ao mesmo tempo legítimos - por ter sido a monarquia concedida voluntariamente - e tirânicos - porque o poder se exercia despoticamente e conforme o arbítrio dos príncipes. A terceira espécie de tirania, aquela que mantém propriamente o nome, em oposição à monarquia, e que mais o merece, é a do homem sem qualquer responsabilidade ou censura que comanda em seu próprio interesse, e não no de seus súditos, outros seus semelhantes, não raro melhores do que ele; domínio que, por isso mesmo, é, no que tange a eles, involuntário, pois homens livres não podem suportar de boa vontade tal aviltamento. A Oligarquia A oligarquia ocupa o segundo lugar entre os governos depravados`. É bastante distinta da aristocracia. A primeira forma de oligarquia é aquela em que as magistraturas são dadas às grandes riquezas. Excluem-se os pobres, embora sejam maioria, mas quem quer que tenha alcançado o grau de riqueza prescrito é apto para os cargos. Tal índice mantém-se até nos limites da mais simples mediocridade. Isto basta para ser admitido nos cargos. Como os participantes são a maioria, é necessariamente a lei e não o capricho que domina. Eles são tanto menos tentados a aspirar à monarquia quanto suas faculdades são mais modestas e, não possuindo nem ri- queza suficiente para viverem desocupados, nem tampouco que seja preciso alimentá-los à custa do público, eles preferem à sua própria dominação a da lei. A segunda espécie é aquela em que os proprietários são minoria, mas mais ricos do que os da precedente. Sendo mais poderosos, querem também ter mais autoridade. Para isso, escolhem como colegas gente de seu tipo. Os postos são concedidos aos mais ricos e nomeiam a si próprios em caso de vacância. Se a escolha se fizesse entre todos, seria aristocrática; o que a torna oligárquica é que ela se faz numa classe determinada. Todavia, não sendo poderosos o suficiente para governar sem leis, transformam em leis a preferência que se arrogam. Se seu número diminuir e sua riqueza tiver novos aumentos, forma-se um terceiro grau de oligarquia, no qual, aproveitando a ascendência que adquiriram por seus postos, fazem com que se ordene por uma nova lei que seus filhos serão seus sucessores. A quarta é aquela em que ocorrem as mesmas coisas, mas dominam os magistrados e não a lei. Tendo aumentado ainda mais sua riqueza e seu crédito, a potência dos oligarcas aproxima-se da monarquia. Este vício ésemelhante tanto à tirania que se introduz nas monarquias quanto à última espécie de democracia, de que falaremos. Chama-se dinastia ou, mais exatamente, politirania esta espécie de oligarquia'. A Democracia Não se deve, como costumavam fazer certas pessoas, definir simplesmente a democracia como o governo em que a maioria domina. Nas próprias oligarquias e em qualquer outra parte, é sempre a maioria que se sobressai. Nem tampouco a oligarquia é o regime da minoria.Seja um povo composto de mil e trezentas pessoas ao todo; dentre estas mil e trezentas pessoas, suponhamos mil ricas que excluem do governo os trezentos pobres, embora livres e semelhantes a elas a qualquer outro respeito; ninguém dirá que isso é uma democracia. Da mesma forma, se os pobres, embora em menor número, forem mais poderosos do que os ricos, ninguém chamará a isso de oligarquia. Nenhuma outra Cidade tampouco o eles têm de que viver, mas por outro não têm condições de permanecer sem fazer nada; de modo que, uma vez feita a Constituição, só se reúnem para negócios urgentes e indispensáveis. O acesso é aberto a todos, assim que adquiram a renda prescrita pelas leis. Se alguém fosse excluído, seria a oligarquia; de resto, se não se tem nenhuma renda, é quase impossível ter o lazer suficiente para se ocupar da coisa pública. Esta admissibilidade de todos os proprietários é a primeira espécie de democracia. A segunda espécie reconhece-se pelo direito de voto nas eleições que se realizam na Assembléia; todos são admitidos, se seu nascimento for digno, mas somente são elegíveis os que têm meios de viver sem trabalhar. As leis são respeitadas nesta democracia porque os cargos só proporcionam honra, e não lucro. A terceira espécie é a que admite no governo todos os que são livres, mas, não oferecendo nenhum atrativo à cupidez, não sofre a concorrência perigosa de um número excessivo de pretendentes, de modo que a lei énecessariamente respeitada. A quarta é aquela que se introduziu em último lugar nas Cidades que se tornaram maiores e mais opulentas do que eram nos primeiros tempos. Ela exibe a igualdade absoluta, isto é, a lei coloca os pobres no mesmo nível que os ricos e pretende que uns não tenham mais direito ao governo do que os outros, mas que a condição destes e daqueles seja semelhante. Pois se a alma da democracia consiste, como pensam alguns, na liberdade, sendo todos iguais a este respeito, devem ter a mesma parte nos bens civis e principalmente nos grandes cargos; e, como o povo é superior em número e o que agrada àpluralidade é lei, tal Estado deve necessariamente ser popular. Mas, se todos são indistintamente admitidos no governo, é a massa que se sobressai e, sendo os pobres assalariados, podem deixar o trabalho e permanecer ociosos, não os retendo em casa a preocupação com seus próprios negócios. É, pelo contrário, um obstáculo para os ricos que não assistem às Assembléias nem se preocupam com o papel de juiz. Resulta daí que o Estado cai no domínio da multidão indigente e se vê subtraído ao império das leis. Os demagogos calcam-nas com os pés e fazem predominar os decretos. Tal gentalha é desconhecida nas democracias que a lei governa. Os melhores cidadãos têm ali o primeiro lugar. Mas onde as leis não têm força pululam os demagogos. O povo torna-se tirano. Trata-se de um ser composto de várias cabeças; elas dominam não cada uma separadamente, mas todas juntas. Não se sabe se é desta multidão ou do governo alternado e singular de vários de que fala Homero quando diz que "não é bom ter vários senhores". De qualquer modo, o povo, tendo sacudido o jugo da lei, quer governar só e se torna déspota. Seu governo não difere em nada da tirania. Os bajuladores são honrados, os homens de bem sujeitados. O mesmo arbítrio reina nos decretos do povo e nas ordens dos tiranos. Trata-se dos mesmos costumes. O que fazem os bajuladores de corte junto a estes, fazem os demagogos junto ao povo. Gozam do mesmo crédito. Sugerem-lhe o desprezo pelas leis, reduzem tudo à sua vontade, só respeitam os seus decretos, e depois de têlo tornado senhor de tudo, tendo suas opiniões e suas vontades entre as mãos, tornam-se seus senhores, por sua vez, pelo hábito que se contraiu de obedecer-lhes. Não se limitam aos assuntos gerais, atacam os magistrados em pessoa, atribuem ao povo o direito de julgá-los e, como este se presta de bom grado a sua instigação, terminam por dissolver tudo e tudo subverter. Não é sem razão que se censura tal governo e, de preferência, o chamam democracia ao invés de República; pois onde as leis não têm força não pode haver República, já que este regime não é senão uma maneira de ser do Estado em que as leis regulam todas as coisas em geral e os magistrados decidem sobre os casos particulares. Se, no entanto, pretendermos que a democracia seja uma das formas de governo, então não se deverá nem mesmo dar este nome a esse caos em que tudo é governado pelos decretos do dia, não sendo então nem uni- versal nem perpétua nenhuma medida. Dos Três Poderes Existentes em Todo Governo Em todo governo, existem três poderes essenciais, cada um dos quais o legislador prudente deve acomodar da maneira mais conveniente. Quando estas três partes estão bem acomodadas, necessariamente o governo vai bem, e é das diferenças entre estas partes que provêm as suas. O primeiro destes três poderes é o que delibera sobre os negócios do Estado. O segundo compreende todas as magistraturas ou poderes constituídos, isto é, aqueles de que o Estado precisa para agir, suas atribuições e a maneira de satisfazê-las. O terceiro abrange os cargos de jurisdição. O Poder Deliberativo Cabe à Assembléia decidir sobre a paz e a guerra, contrair alianças ou rompê- las, fazer as leis e suprimi-Ias, decretar a pena de morte, de banimento e de confisco,assim como prestar contas aos magistrados. Estas deliberações são necessariamente da alçada de todos os cidadãos, ou então são todas confiadas a alguns funcionários, quer a um só, quer a vários, quer ainda umas a alguns, ou algumas a todos, ou algumas a alguns. Quando todos são admitidos na deliberação sobre qualquer matéria, há democracia; o povo ostenta a igualdade em tudo. Mas todos podem participar das deliberações de várias maneiras. A primeira, quando, ao invés de virem todos juntos, comparecem por seção e sucessivamente, como no sistema de Teleclas de Mileto. Além disso, quem delibera éa Assembléia dos magistrados, mas todos chegam por seu turno a magistraturas, venham da tribo que vierem e tenham a condição que tiverem, sem excetuar os últimos, até que todos as tenham ocupado. A Assembléia geral do povo só ocorre quando da feitura das leis, para retocar a Constituição ou para ouvir as proclamações dos magistrados. A segunda maneira consiste em deliberar todos em conjunto e em Assembléia geral, mas só reunir esta para as escolhas ou eleições de magistrados, para a legislação, para a paz ou para a guerra, para a auditoria das contas ou para a censura dos contadores. Tudo o mais permanece em poder e sob a decisão, cada um segundo a sua competência, dos magistrados escolhidos dentre o povo, ou por meio de sorteio ou por eleição. A terceira maneira é que a Assembléia geral dos cidadãos só aconteça para a nomeação e para a censura dos magistrados, para a guerra e para as alianças, sendo o resto administrado pelos magistrados eletivos e nomeados pelo povo, como todos cujo cargo exige saber. A quarta é reunirem-se todos para deliberação, sem que os magistrados possam decidir coisa alguma, mas apenas opinar em primeiro lugar, maneira usual na última espécie de democracia, que corresponde, como dissemos, à oligarquia despótica e à monarquia tirânica. Todas estas maneiras de deliberar são democráticas. Em contrapartida, há oligarquia quando a deliberação sobre qualquer matéria cabe a alguns. Nesta forma, encontram-se também várias diferenças. A oligarquia revela-se republicana devido à sua moderação e ao respeito que se tem pela simples abastança, se o poder couber às riquezas médias, se os seus membros forem eleitos, se, por causa desta mediocridade, contarem maior número, se não empreenderem nada contrário à lei, mas, ao invés disso, se conformarem plenamente a ela, se qualquer um que tiver o patrimônio requerido puder chegar ao governo. A oligarquia acentua-se se nem todos forem admitidos na deliberação, mas apenas alguns deputados eleitos que, de resto, se conformam à lei, como na espécie anterior. Há, enfim, pura oligarquia se o Senado ou alguma outra Assembléia elege seus membros, se o filho sucede ao pai e se esta associação é senhora das leis. Pelo contrário, quando os poderes estão divididos, quando, por exemplo, a deliberação sobre a paz e a guerra e a censura dos magistrados são reservadas a todos, e o resto é entregue aos magistrados, quer tirados por sorteio quer eleitos, há ou aristocracia ou República. A aristocracia mistura-se à República se certas matérias são atribuídas a magistrados eleitos e outras a magistrados escolhidos por sorteio, quer simplesmente e de uma vez, quer após eleição e entre vários eleitos, ou ainda quando forem escolhidos por aquele dos dois modos que tiver sido preferido de comum acordo. Assim, a Assembléia é diferente conforme a natureza dos Estados, e cada Estado é governado de uma ou de outra das maneiras determinadas a seguir. No que se chama democracia, principalmente na de hoje, em que o povo é senhor de tudo, até das leis, seria bom, para se conseguirem boas deliberações, que as Assembléias fossem ordenadas e regulamentadas como os tribunais das oligarquias, ou ainda melhor, se possível. Ali são aplicadas penas aos que são nomeados para a judicatura, a fim de obrigá-los a julgar, ao passo que na democracia é proposto um salário aos pobres. Ora, delibera-se melhor quando todos deliberam em comum, o povo com os nobres e os nobres com a multidão. Também seria bom que os membros da Assembléia fossem escolhidos de igual forma, ou por eleição ou por sorteio, nas diversas classes do Estado. E, se as pessoas do povo são maioria em relação às pessoas versadas na ciência do governo, é bom ou não dar salário a todos, mas apenas à porção correspondente aos nobres, ou então excluir, mediante sorteio, a parte restante. Nas oligarquias, convém tomar de preferência alguns membros dentre a multidão ou criar, como em algumas Repúblicas, magistrados chamados relatores, se de um meio de fazer com que ele seja universalmente odiado. Em vários lugares, a profissão de carcereiro é separada da de executor, como em Atenas, no tribunal dos Onze. Esta separação é uma atenuação não menos necessária do que a precedente. Tais ofícios têm a desvantagem de serem evitados pelas pessoas de bem tanto quanto possível, e não é seguro confiá-los a malandros. Estes precisam muito mais ser eles próprios vigiados do que vigiarem os outros. Portanto, estas funções não devem pertencer a um cargo fixo, nem estar sempre nas mesmas mãos, mas sim ser realizadas ora por um, ora por outro, principalmente nos lugares em que a guarda da cidade éconfiada a companhias de jovens. Depois destes ofícios de maior urgência, vêm outros não menos necessários, mas de uma ordem mais elevada e de um maior valor representativo, pois exigem mais experiência e necessitam de maior confiança. São os comandos de praça e dos outros oficiais militares. Eles são necessários tanto em tempo de paz como em tempo de guerra, para a guarda dos portos e das fortificações, assim como para vigiar e manterem ordem os cidadãos, aqui em maior, ali em menor número, de acordo com a importância dos lugares. Nos pequenos, basta para todos um comandanteem-chefe. Chamam-se estes chefes Estrategos ou Polemarcas, a cavalaria, a infantaria ligeira, os arqueiros, a marinha têm cada qual seus oficiais particulares chamados Navarcas (almirantes), Hiparcas (generais de cavalaria), Taxiarcas(coronéis), e seus oficiais subalternos, Trierarcas, Locagos, Filarcas e outros subordinados, todos ocupados única e exclusivamente com os trabalhos de guerra. Embora nem todas as funções de que acabamos de falar participem do manejo do dinheiro público, mas como algumas estão amplamente envolvidas nisso, é preciso que haja acima delas um outro magistrado que, sem que ele mesmo administre coisa alguma, faça com que os outros prestem contas de sua administração e a corrijam. Uns o chamam auditor; outros, inspetor de contas; ou- tros, grande procurador. Além disso, uma magistratura suprema de que dependam todas as outras é, enfim, necessária. Ela tem ao mesmo tempo o direito ordinário de impor os impostos e de inspecionar a sua percepção. Em toda parte onde o povo é senhor, ela preside às Assembléias (pois é preciso que aqueles que as convocam tenham nelas a principal autoridade). Em alguns lugares, ela é chamada a Probulia, ou Consulta, porque prepara as deliberações. Nas democracias, em que a massa decide soberanamente, dão-lhe o nome de senado. Após estas diversas espécies de magistraturas políticas, vem um outro tipo de ministério público, relativo ao culto divino, que abrange, depois do sacerdócio, a intendência das coisas sagradas, o trabalho de conservar os templos e os edifícios subsistentes e de reformar os que estão em ruínas; numa palavra, tudo o que diz respeito àreligião. Algumas vezes todas estas funções são reunidas, como nas pequenas Cidades; em outros lugares, elas são separadas do sacerdócio, como a dos sacrificadores, dos guardiães e dos tesoureiros. Outro ofício semelhante é o de superintendente dos sacrifícios públicos, cuja lei não confiou aos sacerdotes, mas sim às comunidades de lar. Aqueles que presidem são chamados ora arcontes, ora reis, ora prítanes. Recapitulando toda esta exposição, constataremos que todos os ofícios ou ministérios necessários têm por objeto quer as honras devidas ao Ser supremo, quer o serviço militar, quer a administração das finanças, vale dizer, a receita ou a despesa das rendas públicas, quer o abastecimento dos mercados ou a polícia das cidades, dos portos e dos campos, além da administração da justiça, o tabelionato dos contratos, a execução das sentenças, a guarda das prisões, a auditoria e o exame das contas, a reforma dos abusos e das prevaricações, enfim, as deliberações sobre os negócios de Estado. Os povos que gozam de maior lazer e de uma paz profunda, ou que estão em condições de sentir o secreto encanto do bem-estar e de obtê-lo para si mesmos, têm ofícios próprios, como a Nomofilacia ou guarda das leis, a inspeção do comportamento das mulheres, a disciplina das crianças, o reitorado dos ginásios, a intendência dos exercícios ginásticos, das festas de Baco e outros espetáculos do mesmo gênero. Destes ofícios, alguns - como a disciplina das mulheres e das crianças - não convêm à democracia, cujo povo quase só é composto de pobres que, não tendo condições de se fazer servir por outros, são forçados a empregar suas mulheres - e suas crianças como domésticos. Como a seguir há três magistraturas mais eminentes do que todas as outras - a conservação das leis, a consulta e o senado -, a primeira é própria à aristocracia, a segunda à oligarquia e a terceira à democracia. Nas grandes cidades que, pelo grande número de cidadãos, podem prover um em cada função, não se deve conferir mais do que um cargo a cada um: isto propicia progresso a um maior número. Também é preciso que não se possa retornar ao cargo, em alguns casos, senão após longos intervalos, e, em outros, ocupá-lo apenas uma vez na vida. O trabalho é mais bem feito quando só nos ocupamos com um negócio do que quando somos obrigados a nos dividir em muitos. Nas cidades pequenas, a falta de gente força a que se confiram vários ofícios à mesma pessoa. Não se encontram pessoas nem para todas as funções, nem para a sucessão de cada uma delas. Às vezes, porém, elas precisam das mesmas magistraturas e da mesma constituição que as grandes, com a única diferença de que umas são com freqüência forçadas a voltar sempre às mesmas pessoas, e as outras só são obrigadas a isto após longos intervalos. Nada impede, portanto, que se acumulem vários cargos sobre uma mesma pessoa, contanto que suas funções não sejam incompativeis. É assim que se suspendem em um mesmo lustre várias velas. Se conseguimos explicar bem quantas magistraturas são necessárias para toda Cidade e quantas, sem serem necessárias, são úteis, compreende-se com maior facilidade quais são as que podem combinar-se e convém reunir na mesma pessoa. É bom não ignorar tampouco quais são os ofícios cujas atribuições, segundo o lugar, deveriam ser aumentadas, e que objetos se devem pôr à disposição de uma única e mesma autoridade. Por exemplo, a vigilância da honestidade pública deve pertencer ao Agoranomo, ou chefe de polícia, unicamente nos mercados e praças públicas, cabendo a outros funcionários em outros lugares, ou deve ser exercida em todo lugar pelo mesmo? Será a coisa ou a pessoa que deve servir de regra para a distinção? Será a honestidade pública confiada a um inspetor no que diz respeito às mulheres e a um outro no que se refere às crianças? Também se deve saber se a diversidade das formas de governo acarreta também alguma diferença entre as magistraturas; se suas atribuições são as mesmas na democracia, na oligarquia, na aristocracia e na monarquia, sem maior diferença do que a aptidão das pessoas que não serão iguais nem semelhantes em toda parte, mas diferentes em cada governo. Por exemplo, na aristocracia, serão escolhidos entre as pessoas instruídas; na oligarquia, entre os ricos; na democracia, entre os homens livres. Enfim, há de se perguntar se há diferenças intrínsecas entre estas magistraturas; se há lugares em que elas convêm, outros em que se precise de diferentes, ou se elas não apresentam outro contraste senão ser, conforme as dimensões dos Estados, grandes em uns e pequenas em outros. Algumas são manifestamente particulares a certos Estados, como a de relator das leis ou pré-consultor, função que não é de modo algum democrática, embora a deliberação o seja. É bom, no entanto, que haja pessoas que examinem os problemas antes do povo, para que ele não perca em discussões o tempo de seu trabalho.Mas se forem poucos, como devem ser, será uma função oligárquica. Nos Estados onde há consulta e senado, os consultores ficam acima dos senadores. Estes pertencem a uma instituição democrática; aqueles, oligárquica. A autoridade do senado perde-se nas democracias, onde o povo reunido decide sobre todos os casos. É o que acontece de ordinário quando os que compõem a Assembléia gozam de certa abastança, ou lhes concedem um salário para assistir a ela. Pois quem tem lazer se reúne com prazer e participa de tudo. É própria da aristocracia a inspeção das mulheres e das crianças. Tal função não é nem democrática, nem oligárquica. Como, com efeito, impedir as mulheres dos pobres de saírem ou censurar as mulheres dos oligarcas, acostumadas a viver no luxo? Mas isto é o suficiente sobre este ponto. Voltemos àescolha dos magistrados. Ela apresenta três pontos a examinar, cuja combinação fornecerá todas as modalidades que procuramos: - a quem cabe nomear os magistrados? - de onde devem ser tirados? - como proceder? Cada um destes três pontos admite três soluções diferentes: - nomeação por todos os cidadãos ou apenas alguns dentre eles; - elegebilidade de todos ou apenas dos de uma classe determinada, quer pela renda, quer pelo nascimento, quer pelo mérito, quer por alguma outra razão. Assim, houve em Megaraalguns exilados que retornaram e subjugaram o povo pelo êxito de suas armas; -designação por eleição ou por sorteio. Estas diversidades podem combinar-se duas a duas, de modo que tais magistrados sejam eleitos por tais cidadãos e os outros por todos; uns escolhidos dentre eles, outros tirados de tal classe; uns escolhidos por sorteio, outros por eleição. Cada uma destas diferenças compreende ela própria quatro modos, pois ou todos escolherão entre todos por eleição, ou todos entre todos pela sorte, e entre todos juntos, ou entre todos divididos por seções, como tribos, comunidades ou cúrias, até que se tenha atingido a totalidade dos cidadãos; ou ainda entre todos, mas parte pela primeira maneira, parte pela segunda. Os povos que habitam as regiões frias, principalmente da Europa, são pessoas corajosas, mas de pouca inteligência e poucos talentos. Vivem melhor em liberdade, pouco civilizados, de resto, e incapazes de governar seus vizinhos. Os asiáticos são mais inteligentes e mais próprios para as artes, mas nem um pouco corajosos, e por isso mesmo são sujeitados por quase todos e estão sempre sob o domínio de algum senhor. Situados entre as duas regiões, os gregos também participam de ambas. Em sua maioria, têm espírito e coragem; conseqüentemente, conservam sua liberdade, e são muito civilizados. Poderiam mandar no mundo inteiro se formassem um só povo e tivessem um só governo. No entanto, eles têm entre si as mesmas diferenças acima mencionadas, não tendo alguns senão uma das duas qualidades e possuindo os outros a ambas numa justa proporção. É da inteligência e da coragem que depende a aptidão para a vida civil; certamente, elas são necessárias para a instituição de um legislador que queira estabelecer o reinado da virtude. Traçando o caráter dos guardas cívicos de sua República, alguns pretendem que eles sejam mansos para com as pessoas conhecidas e rudes para com os desconhecidos. O coração é, de fato, a faculdade da alma de que procede a benevolência e pela qual nós amamos; quando, porém, ele se crê desprezado, irrita-se mais contra as pessoas que são conhecidas e com as quais convive do que contra os desconhecidos. Dirigindo-se aos seus, o poeta Arquíloco invectiva contra seus amigos, de que tinha motivos para se queixar: ó meu coração, não é um amigo que te ultraja? Em todos os homens, procedem do coração o mando e a liberdade. É imperioso e indomável. Assim, não éverdade que se deva ser rude para com os desconhecidos; não se deve sê-lo para com ninguém, e as pessoas de coração não o são por sua natureza, a menos que sejam ultrajadas. Por isso, elas sentem mais os citados arroubos contra seus desconhecidos, quando deles recebem algu- ma ofensa. Há uma boa razão para isto: não apenas se vêem frustradas pelo bem que esperavam deles, mas também pelos danos. Aí têm origem os provérbios: Um ódio fraternal é o mais implacãvel. Quem amava em excesso pode odiar desmedidamente. Eis, aproximadamente, quanto à formação de um Estado, as condições requeridas em sua matéria, isto é, quanto às pessoas, o número e o caráter; quanto ao lugar, a grandeza e a qualidade. Dizemos aproximadamente, pois não se deve buscar nas coisas sensíveis a mesma precisão das coisas que estão no âmbito da inteligência. A Melhoria do Regime Estabelecido O legislador e o bom político não devem ignorar nem o governo que seja o melhor em si, nem o que as circunstâncias permitem ou exigem, nem, finalmente, qual é o mérito daquele que é submetido ao seu exame. Quando lhes propõem examinar uma Constituição já redigida, é preciso que considerem como ela pode existir, desde a origem, e como, depois de seu estabelecimento, ela poderá conservar-se por longo tempo, se, por exemplo, é verdade que o Estado a que a destinam não é dos mais bem constituídos, se carece do necessário, se não sabe tirar proveito de suas vantagens, ou se tem ou- tros defeitos. É preciso, sobretudo, que conheçam a melhor forma de governo que possa convir a todo Estado, o que escreveu a maioria dos autores, o que disseram de bom, e os erros de alguma importância em que caíram. Pois não é suficiente conhecer a melhor forma, é preciso ver, em cada caso particular, qual é aquela que é possível estabelecer, qual é a mais fácil e a mais comum nos Estados existentes. Vemos hoje que alguns procuram unicamente a forma mais perfeita, sem se preocuparem com os grandes custos de que ela precisará; outros preferem ela a uma mais comum, subvertem todas as que existem e louvam acima de tudo a da Lacedemônia ou outra qualquer. Parece-nos que se deveriam introduzir Constituições novas apenas na medida em que os povos, após um exame ponderado de seus meios e de sua situação, puderem e quiserem recebê-las de comum acordo. Corrigir a que existe não é menos incômodo do que instituir outras, assim como é tão difícil perder quanto contrair hábitos. Um homem de Estado deve, sem dúvida, além do que já dissemos, saber remediar os vícios do governo. Ora, como pode conseguir isto se ignorar quantas espécies de governo existem? Nossos atuais políticos, por exemplo, só conhecem uma espécie de democracia e de oligarquia; trata-se, como vimos, de um erro, pois existem várias. Portanto, não se devem ignorar suas diferenças, seu número, nem de quantas maneiras elas se combinam; além disso, deve-se saber quais são as boas leis e quais convêm a cada forma de governo. Com efeito, as leis devem ajustar-se à Constituição, e não a Constituição às leis. A Constituição é a ordem ou distribuição dos poderes que existem num Estado, isto é, a maneira como eles são divididos, a sede da soberania e o fim a que se propõe a sociedade civil. As leis não são a mesma coisa que os artigos fundamentais da Constituição; elas servem apenas de regra para os magistrados no exercício do governo, e também para conter os refratários. Donde se segue que as mesmas leis não podem convir a todas as oligarquias, nem a todas as democracias. Portanto, se esses governos são de várias espécies, é essencial conhecer suas diferenças, para com elas combinar a legislação. Dificuldades de Atribuição da Soberania A principal dificuldade consiste em saber a quem deve caber o exercício da soberania. À massa, aos ricos, aos homens de bem, ao homem mais eminente quanto ao mérito, ou será preferível um monarca absoluto? Tudo isso apresenta graves inconvenientes. Se, por serem superiores em número, aprouver aos pobres dividir os bens dos ricos, não será isso uma injustiça? E, se for preciso considerar justo todo decreto que emanar de tal soberano, o que se qualificará de extrema iniqüidade? Da mesma forma, se, na totalidade dos habitantes, a maioria decide usurpar os pertences da parte menos numerosa, isto não equivale a desagregar a sociedade? Ora, sendo a justiça o principal bem do Estado, não é possível que ela o dissolva. Ela não tolera tal roubo. Não é possível que decretos tão injustos tenham valor de lei. O mesmo pode ser dito das ações de um tirano. Sendo superior pela força, ele constrange os seus súditos, assim como a multidão aos ricos. Será justo que algumas pessoas dominem em pequeno número, por serem mais ricas? E, se roubarem ao povo os seus pertences, não será a mesma injustiça? Se se perdoar a um, por que não perdoar ao outro? Tudo isso é igualmente abusivo. Mas apenas os nobres devem governar e possuir toda a autoridade? Se for assim, todos os outros cidadãos permanecerão sem participar dos cargos públicos, pois chamam-se cargos públicos as magistraturas e, uma vez que as mesmas pessoas governam constantemente, todo o resto será eliminado. Será preferível que só haja um governante e que seja o mais virtuoso? Isto é ainda mais oligárquico e proporciona um número ainda maior de excluídos. Dir-se-á, talvez, que cabe à lei dominar e que não se pode agir de pior maneira do que substituindo-a pela vontade de um homem, sujeito como os demais a suas paixões. Mas, se a própria lei for ditada pelo espírito de oligarquia ou de democracia, de que nos servirá para elucidar a questão proposta? Haverá sempre os mesmos inconvenientes. Crítica das Monarquias Das três irrepreensíveis formas de governo, a melhor é necessariamente a que é administrada pelos melhores funcionários. Tais são aqueles que, à sua frente, têm um homem entre todos, ou toda uma raça, ou certo número de pessoas eminentes quanto à virtude, estes capazes de comandar, aqueles dispostos à obediência, para levar conjuntamente a vida mais desejável. Sabe-se que, na aristocracia, as virtudes do homem de bem são as mesmas do bom cidadão. É evidente que os mesmos meios melhoram os particulares e os Estados, que há uma enorme afinidade entre a monarquia e a aristocracia, que elas têm quase a mesma disciplina e os mesmos costumes e seus chefes não precisam de educação diferente da que forma o homem virtuoso". A monarquia é, na nossa opinião, um dos melhores regimes. Contudo, é preciso examinar se é preferível, para um país e para um povo que queiram ser bem governados, ter ou não um rei, se não há um sistema mais interessante ou se a monarquia, sendo boa para uns, não seria má para os outros. Vimos" que praticamente só se devem considerar duas espécies de monarquia: aquela em que um só comanda como senhor de tudo, onde o regime é uma administração por assim dizer familiar de um povo ou de um Estado, ou a que vigora na Lacedemónia. Assim, o exame do valor da monarquia se reduz a estes dois pontos: um, se é bom que um só homem seja senhor de todos; outro, se éou não vantajoso para um Estado ter um general perpétuo escolhido ou na mesma raça, ou alternadamente em várias. Esta segunda questão, relativa ao comando militar, pertence mais à legislação do que à Constituição de um Estado, pois esta dignidade pode existir em todas as formas de governo. Deixemo-la de lado, portanto, e, detendo-nos na monarquia propriamente dita, que é uma das três formas legítimas, percorramos as dificuldades que se podem encontrar nela. homens do que pela lei. Portanto, é preciso que ele preencha seu silêncio, ou então a totalidade do povo. Entre nós, é o povo que toma conhecimento dos negócios, até mesmo os dos particulares, delibera sobre eles e os julga. Um homem, qualquer que seja ele, comparado à multidão, deve provavelmente valer menos. Ora, o Estado é formado pela multidão. Suas Assembléias se parecem com aqueles banquetes a que vários trazem suas contribuições, e sempre superam qualquer mesa particular. Da mesma forma, em muitas coisas, a multidão julga melhor do que um particular, qualquer que seja ele. Além disso, ela é menos fácil de se corromper, sendo semelhante à água, que quanto mais é abundante menos está sujeita à corrupção. Quando um juiz se deixa levar pela cólera ou por qualquer outra paixão, sua sentença recebe necessariamente a marca disto. Numa multidão, é difícil que todos os espíritos sejam coléricos ou suspeitos de erro. Suponhamos, pois, um povo composto de pessoas livres, que respeitam a lei e a seguem em todos os casos, salvo os que escapam à sua previdência (ou, se este povo não é fácil de encontrar, suponhamos pelo menos vários homens de bem e bons cidadãos), não serão eles mais difíceis de se corromper do que um só, sendo todos pessoas de bem e tendo a vantagem do número? Pois deve-se supor a seu lado uma maioria certa. Se argumentarem que um só não é sedicioso, mas vários podem sê-lo, responderei que as pessoas de bem também são uma só pela unidade de espírito. Portanto, quer se junte ao poder de comandar o de executar, quer eles sejam separados, a aristocracia, que é o governo de várias pessoas de bem, é preferível, para todo Estado, àmonarquia, que é o governo de um só. Todo o problema está em encontrá-las. Razão Histórica de Ser da Monarquia Se antigamente se deixaram governar por reis, é, sem dúvida, porque raramente se encontravam ao mesmo tempo várias pessoas eminentes quanto ao mérito, sobretudo nas pequenas Cidades, como eram as dos velhos tempos. Elegiam-se, aliás, como reis, homens assinalados por sua generosidade, marca que cabe a pessoas de escol. Mas, quando os homens de mérito começaram a se múltiplicar, não se quis mais aquele governo; procurou-se algo mais conveniente ao interesse comum e se formou uma República. Quando, em seguida, as Repúblicas se corromperam pela cobiça dos funcionários que se locupletavam às custas do Estado, formaram-se, ao que tudo indica, oligarquias em que as riquezas tiveram a primazia. Da oligarquia, os grandes passaram ao despotismo, e depois o despotismo deu lugar à democracia. Sua cupidez, excitada pelos lucros ilícitos, reduzindo aos poucos o número de colegas para ganhar mais, insuflou o povo contra eles e determinou-o a apossar-se da autoridade. Éa única forma que prevaleceu desde que as cidades cresceram, e talvez tenha sido difícil substituí-Ia por outra. Se supusermos, porém, que em geral a monarquia convém mais aos grandes Estados, que partido tomar com relação aos filhos dos reis? Deve ser hereditário o cetro? Ficaremos expostos a cair nas mãos de maus sucessores, como aconteceu algumas vezes. Dir-se-á que o pai terá o poder de não lhe passar a coroa. Mas não devemos esperar por isto: esta renúncia está muito acima da virtude que a natureza humana comporta. A segunda questão relativa ao poder executivo consiste em saber de que força um rei deve dispor para submeter os rebeldes, e como deve fazer uso dela na execução do mando; pois por mais constitucional que o suponhamos, não fazendo nada movido por sua própria vontade nem contra as disposições da lei, mesmo assim precisará de algum poder para manter as leis. Não é difícil determinar a força que lhe é necessária. Ele deve ter uma força tal que seja mais poderoso do que cada um em particular e do que a reunião de vários, mas mais fraco do que a nação inteira. Esta é a medida observada pelos antigos na vigilância que exerciam sobre os que chamavam de tiranos ou Aisymnetas; alguém aconselhou aos siracusanos que regulassem da mesma forma a importância da guarda que lhes pedia Dionísio. Conveniência da Monarquia para Certos Povos Eis aproximadamente o que se alega contra a monarquia. Mas isto pode ser verdade para alguns povos e não para outros. Alguns existem que são naturalmente dispostos ao governo despótico, outros ao republicano. Cada um destes governos tem sua justiça e sua conveniência. Apenas a monarquia absoluta e as Repúblicas imoderadas não são naturais; são, antes, contra a natureza. Conforme o que foi dito, é claro que não é nem justo nem útil que entre iguais e semelhantes um só seja senhor de todos os outros, tanto se ainda não tiverem lei e ele tomar o lugar dela, quanto se tiverem, sim, uma lei. Tampouco é justo ou útil que um homem de bem domine pessoas de bem, ou que um ser sem virtude domine os de seu gênero, mesmo que tenha sobre eles alguma espécie de mérito. Há apenas uma exceção, sobre a qual já dissemos alguma coisa. Ela procede da distinção dos gêneros de súditos próprios para viver sob um rei, sob a aristocracia ou em República: - o povo próprio para viver sob o governo monárquico é aquele que está acostumado de nascença ao jugo de uma família reconhecidamente excelente na arte de governar; - o povo próprio para a aristocracia é aquele que tolera naturalmente e sem dificuldade o governo de pessoas livres que têm num grau superior as virtudes próprias ao mando; - a nação destinada à República é aquela cujos homens são naturalmente belicosos, igualmente próprios para mandar e obedecer, em conformidade com uma Constituição que distribui os poderes aos ricos segundo seus méritos. Assim, quando toda uma raça ou um indivíduo entre outros se sobressai pelo mérito, a ponto de nenhum outro poder ser-lhe comparado, então não há dúvida de que esta raça e este homem devem ser preferidos e que se deva fazer deles reis absolutos e dar o cetro a um só. Édireito dos povos, quando formam um Estado, optar entre a aristocracia, a oligarquia ou a democracia e entregar o poder a quem lhes parecer bastar ou exceler, embora nem todos meçam com a mesma régua a suficiência ou a excelência. Estes princípios de direito não são apenas os nossos, mas também os que todos os autores de Constituições seguiram. Seria infame mandar matar, banir ou afastar pelo ostracismo tais personagens, ou mesmo submetê-los à alternância do mando e da obediência. Embora não sela natural que a parte esteja acima do todo, há exceção no caso daquele que possui tão eminentes títulos. Disso resulta, pois, que, sozinho, ele governe todos, para sempre, como senhor absoluto da administração. Mas já falei bastante da monarquia; examinamos suficientemente se ela convém às Cidades, a quais delas e como". Crítica das Repúblicas Parece-nos haver duas categorias notáveis de Repúblicas, pois assim como distinguimos os ventos entre setentrionais e meridionais, dos quais os outros são apenas desvios ou variedades, tais como o zéfiro, que relacionamos com o vento do norte, e o euro, com o vento do sul, assim também se dividem as Repúblicas em duas classes: a oligarquia, sob a qual se coloca a aristocracia, como sendo apenas um tipo de oligarquia, e a democracia, cujo nome permanece ligado à outra espécie de República. Assim, também, como a harmonia é dividida por alguns em dois modos, o dórico e o frígio, aos quais relacionam todos os demais e dão nome a todas as suas composições musicais, de ordinário se formam, a exemplo desses dois modos, todas as Repúblicas. Mas é melhor só admitir como bem constituídas uma ou no máximo duas espécies. As outras são como que desvios ou da boa harmonia, ou do bom governo: as oligarquias por terem muita intensidade e muito despotismo, e as democracias por serem muito relaxadas e próximas da dissolução". Se ambas têm certa espécie de justiça, só a possuem até certo ponto, e não alcançam a justiça nem exata, nem perfeita. A Igualdade e Seus Limites O bem é o fim de toda ciência ou arte; o maior bem é o fim da política, que supera todos os outros. O bem político é a justiça, da qual é inseparável o interesse co- mum, e muitos concordam em considerar a justiça, como dissemos em nossa Ética, como uma espécie de igualdade. Se há, dizem os filósofos, algo de justo entre os homens é a igualdade de tratamento entre pessoas iguais. Ora, em que consistem a igualdade e a desigualdade? É o que devemos saber. A questão não é nem alheia à política, nem destituída de dificuldade. A igualdade parece ser a base do direito, e o é efetivamente, mas unicamente para os iguais e não para todos. A desigualdade também o é, mas apenas para os desiguais. Ora uns e outros põem de lado esta restrição e se iludem, já que é sobre eles próprios que sentenciam; pois de maneira bastante ordinária os homens são maus juízes a seu próprio respeito. A igualdade da qual resulta a justiça ocorre, como igualmente o demonstra a nossa Ética, nas pessoas e nas coisas. Concorda-se facilmente sobre a igualdade das coisas. Sobre a das pessoas erguemse protestos, porque mais uma vez os homens se tornam cegos sobre si mesmos e tendo, de uma e de outra parte, razão até certo ponto, querem dar a seu direito uma extensão ilimitada. livres e os nobres, por serem mais próximos e mais afeiçoados ao Estado do que os de condição abjeta. Por toda a terra, honram-se os nobres de sua região. Além disto, é moralmente certo que os fidalgos só geram fidalgos, e a nobreza é uma virtude inerente ao sangue. Sustentamos igualmente que o mérito tem justos privilégios. A probidade, principalmente, é uma virtude social que traz consigo todas as outras. Por outro lado, a maioria deve sobrepujar a minoria. Se as compararmos, a maioria como um todo será mais poderosa, mais rica e melhor. Suponhamo-los, pois, todos no mesmo Estado: por um lado, tudo o que houver de homens eminentes, de pessoas ricas e de nobres; por outro lado, o excedente dos indivíduos que formam a massa ou o simples povo. Sabe-se a quem deve caber o governo? A solução deste problema depende do gênero de Constituição que se prefira. Todos os Estados diferem entre si pela maneira com que os poderes são distribuídos, sendo um dominado pelos ricos, outro pelos homens de mérito eminente e um terceiro por diversas pessoas. E cada um resolverá indu- bitavelmente o problema de acordo com seus princípios. Suponhamos, no entanto, um concurso simultâneo de todas estas espécies de gente: como deveremos determinar sua posição na sociedade? Se as pessoas de mérito formarem a minoria, que regra se deverá usar na divisão? Será preciso examinar se seu pequeno grupo basta para o governo ou se é grande o bastante para satisfazer a formação de um Estado inteiro? A concorrência destas diversas pretensões é bastante delicada: O direito baseado nas riquezas ou na nobreza é mais do que duvidoso. Se forem razões justas para pleitear a autoridade, será preciso dizer que o mais rico de todos deve levar a melhor contra todos os homens livres que, como ele, aspiram ao governo. A aristocracia apresenta os mesmos inconvenientes. Se houver alguém que ultrapasse os outros em mérito, segue-se que o governo só pertence a ele. O mesmo ocorre com a multidão ou simples povo. Se for preciso, por ser mais poderosa do que um punhado de particulares, que ela faça a lei, seguir-se-á que se um só homem ou um grupo menos numeroso do que a multidão chegarem a se tornar mais poderosos, terão mais direitos do que ela ao governo. Em tudo isso, não há nenhuma causa justa para dar a alguns o direito de mandar e para impor a outros a obrigação de obedecer. O povo retorquirá àqueles que querem, sob pretexto de superioridade quanto ao mérito ou à opulência, pôr- se à frente do Estado que a multidão, como é bem possível, reúne em seu seio, senão cada um em particular, pelo menos todos juntos, mais mérito e maior riqueza. A mesma resposta servirá antecipadamente para uma outra questão. Pergunta-se se nesse caso o legislador que sinceramente desejar fazer a melhor Constituição possível deve preferir visar ao interesse das pessoas de bem ou ao do povo. Deve-se respeitar a eqüidade. Ora, a eqüidade manda que se prefira o interesse do Estado inteiro, isto é, o interesse comum de todos os cidadãos. De resto, embora, em geral, o cidadão seja aquele que participe da alternância entre governar e ser governado, ele é diferente em cada forma de governo. Na melhor delas, é cidadão aquele que pode governar e que quer ser governado durante toda a sua vida em conformidade com a virtude. Se houvesse um ou mais personagens em número reduzido demais para formar o Estado sozinhos, mas de um mérito maior do que qualquer outro, tão grande que nem todos os outros juntos pudessem ser comparados, pela virtude ou pelo talento de governar, a ele, se for um só, a eles, se forem muitos, seria preciso, por serem superiores a todos os outros membros do Estado, tirá-los da condição de simples cidadãos. Estando tão abaixo, os outros estariam mal situados para quererem participar de igual forma que eles na distribuição dos cargos públicos. Tal personagem seria como um deus entre os homens. Ora, só cabe fazer leis entre iguais por nascimento e por talento. Não pode haver tais leis para ele. Ele seria para si mesmo a sua própria lei. Quem quer que tentasse prescrever-lhe leis cairia no ridículo e poderiam responderlhe como, na fábula de Antístenes, responderam os leões às lebres que, durante uma Assembléia geral e por proposta de seus oradores, haviam decretado que daí em diante todos os animais seriam iguais. A Exceção do Gênio Os Estados democráticos ostentam acima de tudo a igualdade. Foi este zelo que fez com que imaginassem o ostracismo. Nenhuma ascendência é tolerada, nem por riqueza, nem por credibilidade, nem por poder, e desde que um homem alcance tal preponderância é banido por um tempo determinado pela lei. A mitologia ensina-nos que foi este o motivo pelo qual os argonautas devolveram Hércules à terra e o abandonaram. Não queria remar com os outros no Argos, acreditando-se muito acima dos marinheiros. Talvez não haja tanto mal, como pretendem os inimigos da monarquia absoluta, no conselho de Periandro a Trasíbulo, que lhe enviara um embaixador para consultá-lo. Nada respondeu ao enviado, mas tendo observado num campo algumas espigas maiores do que as outras, abateu-as para igualar todos os talos. Com isso, Trasibulo, sem que o enviado lhe contasse nada além do fato cujo motivo ele próprio ignorava, compreendeu que deveria desfazer-se de todos os personagens preeminentes. Este recurso não apenas é útil e familiar aos tiranos, como também é comum nas oligarquias e nas democracias. O ostracismo tem por objeto apenas deter e afastar os que se distinguem demais. Os soberanos agem da mesma forma para com Estados ou nações inteiras. Foi assim que agiram os atenienses para com os de Samos, de Quios e de Lesbos. Tão logo puderam, os rebaixaram, contra a fé dos tratados. Da mesma forma, o rei da Pérsia humilhou e saqueou os medos, os babilônios e outros insolentes que não se cuidaram durante a prosperidade. É um problema saber se os Estados mais bem constituídos podem permitir-se os mesmos remédios, pois nos governos viciosos, em que os potentados só pensam em sua própria utilidade, este é um recurso comum. Ele é também praticado nos que visam ao interesse público, que nisso imitam as outras artes ou ciências. Por mais notável que seja um pé, por sua beleza, um pintor jamais o porá em seu quadro se estiver fora de proporção com os outros membros, nem o construtor de navios porá em seus estaleiros uma popa ou outra parte grande demais, nem o corifeu reunirá a seu elenco um ator grande demais ou marcante demais pela beleza de seu canto. Neste ponto, os monarcas podem agir como os outros governos, se disso depender a segurança do Estado e a tranqüilidade de seus súditos. Quando surgem partidos ou indivíduos poderosos demais, o ostracismo não é inteiramente destituído de razões políticas. Sem dúvida, seria melhor que, desde a primeira instituição, o legislador constituísse seu Estado de maneira que jamais precisasse usar de tal remédio. Porém, se a ocasião se apresentar, deve usar melhor o remédio do que o fazem alguns Estados que se preocupam muito pouco com o bem público e só empregam o ostracismo para excitar rebeliões. Que se trate de um remédio justo e útil aos Estados corrompidos não há dúvida, mas certamente não é justo em todos os casos. A dificuldade seria maior num Estado bem constituído. Não se trata da superioridade em qualquer outro gênero, como em riquezas, em poder, em crédito. Suponhamos, porém, que um homem revele um mérito eminente demais. Que fazer em tal caso? Não se dirá, por certo, que seja preciso bani-lo ou submetê-lo ao poder de alguém. Seria mais ou menos como se alguns aventureiros, dividindo a autoridade suprema para exercê-la em rodízio, quisessem mandar em Zeus. Só resta tomar um partido: que todos, como parece ditar a natureza, obedeçam sem reservas a tal homens e que ele reine perpetuamente no Estado. Os Direitos do Número Quanto a saber se não é preferível que o governo e a autoridade permaneçam com o povo a pertencerem às pessoas de bem quando estas são minoria, trata-se de uma dúvida que parece resolvida de antemão pela afirmativa que tem alguma aparência de verdade. Com efeito, pode acontecer que estando reunida a maioria (da qual cada particular, isoladamente, pouco se preocupa com a virtude) ela valha mais coletivamente do que os poucos outros; assim como o jantar, como já se disse, aonde todos levam sua contribuição pode ser melhor do que aquele cujas despesas são pagas por um só. No povo, cada um tem sua parte de prudência e de virtude, e quando estão reunidos o conjunto é mais ou menos como um homem que tivesse vários pés, várias mãos e um número maior de sentidos. A mesma estimativa deve ser feita sobre sua inteligência e seus hábitos morais. Assim, vemos que o público julga melhor do que ninguém sobre música ou poesia. Uns criticam um trecho, os demais um outro, e todos captam o forte e o fraco do conjunto da obra. As pessoas de bem diferem do vulgo quando as comparamos uma a uma, assim como uma pessoa bonita difere de uma feia, mas uma pintura é superior à realidade (refiro-me a estes quadros onde se reuniram num único sujeito os traços de beleza dispersos entre vários objetos reais), mesmo se as partes destes corpos - o olho de um, e tal outro membro de outro -,quando comparadas separadamente com a obra de arte, a ultrapassem. Mas esta superioridade da maioria sobre algumas pessoas de bem será certa em todos os povos e em toda maioria? Não ousaríamos garanti-lo. Ela parece até mesmo impossível em alguns lugares. Caso contrário, seria preciso conceder a mesma prioridade aos rebanhos de animais, pois alguns povos pouco diferem e os governados. Cabe ao legislador decidir como ela será e como repartirá os poderes. Já dissemos que a natureza manifestou sua opção pela diferença de idades que dá à espécie humana: de um lado, os jovens; de outro, os velhos. Cabe aos primeiros obedecer e aos segundos mandar. Ninguém se zanga ou se sente desonrado por ceder aos mais velhos, na esperança de alcançar as mesmas honras quando tiver a idade conveniente. Pode-se, portanto, dizer que os mesmos mandam e obedecem, mas são, porém, diferentes; assim, a disciplina deve ser em parte a mesma e em parte diferente. Pois, de acordo com o provérbio, para bem comandar é preciso ter antes obedecido. O comando, como expusemos nos livros anteriores, relaciona-se ou com o interesse do comandante, ou com o do comandado; um é despótico, outro é liberal. Há coisas ordenadas que diferem menos pela execução do que pelo princípio que determina que sejam executadas. Por isso, várias funções que à primeira vista pareceriam servis podem ser executadas honestamente por homens livres. A honestidade e a torpeza residem menos na natureza do ato do que no motivo que faz agir. Esta igualdade na alternância do mando e da obediência é o primeiro atributo da liberdade que os democratas colocam como fundamento e como fim da democracia. Sua segunda característica é a faculdade de viver como se quer. Este direito também emana da liberdade, e é até mesmo aí que reside toda a sua energia, pois só se é escravo porque não se pode viver conforme se deseja. Donde resulta que um homem não deve se submeter a ninguém, ou que isto só deve acontecer se houver desforra, conseqüência necessária da liberdade distribuída a todos em igual medida. Supostos estes princípios, eis as máximas democráticas que deles decorrem: 1° que todos têm direito de escolher dentre todos os seus magistrados; 2°- que todos têm poder sobre cada um, e cada qual deve alternadamente governar os outros; 3°- que os magistrados devem ser sorteados, ou todos sem exceção, ou pelo menos aqueles cujo cargo não requer nem luzes, nem experiência; 4°- que não se deve ter a este respeito nenhuma consideração para com a fortuna, ou então a menor das quais deve bastar; 5°- que a mesma magistratura não deve ser conferida mais de uma vez à mesma pessoa, ou pelo menos que isto aconteça raramente e para pouquíssimos cargos, a não ser os militares; 6°- que todos os cargos devem ser de curta duração, ou pelo menos aqueles onde esta breve duração for conveniente; 7°- que todos devem passar pela judicatura, de qualquer classe que sejam, e ter poder para julgar sobre todos os casos em qualquer matéria, mesmo as causas da mais alta importância para o Estado, tais como as contas e a censura dos magistrados, a reforma do governo, assim como as convenções particulares; 8°- que a Assembléia geral é senhora de tudo, e os magistrados de nada; ou que pelo menos a Assembléia seja a única a decidir sobre os grandes interesses e não caibam aos magistrados senão os negócios de pouca importância; 9° que os membros do senado não sejam indistintamente assalariados. Os salários arruínam o poder da magistratura; o povo, ávido de salários, atrai tudo para si, como dissemos anteriormente; 10°- que, no entanto, um direito de presença seja concedido, se as faculdades do povo assim o permitirem, aos que assistirem à Assembléia do senado, e que sejam pagos os tribunais e os magistrados, ou pelo menos os membros principais, tais como os que são obrigados a receber todos os que se apresentarem; 11°- que, caracterizando-se a oligarquia pela nobreza, pela riqueza e pelo saber de seus membros, a democracia lhe é totalmente oposta, distinguindo-se pelo baixo nascimento, pela pobreza e pela vulgaridade das profissões; 12°- que não se deve tolerar nenhuma magistratura perpétua. Portanto, se sobrar alguma magistratura do antigo regime, suas atribuições serão reduzidas e, de eletiva, passará a depender de sorteio.Eis o espírito de todas as democracias. O princípio sobre o qual elas unanimemente se baseiam é o direito que retiram da igualdade numérica. Quanto mais longe se levar essa igualdade, mais a democracia será pronunciada. Pobres e ricos colocados em pé de igualdade, outorga do poder a todos, para que um após outro o exerçam, sem exclusões nem disparidade: assim são entendidas a igualdade e a liberdade. Apreciação dos Diversos Tipos de Democracia Dos quatro tipos de democracia acima explicados, a melhor é a que pusemos em primeiro lugar em nossa enumeração. É também a mais antiga de todas; tem a mesma posição que seu povo entre os outros povos. Sem contestação, o melhor povo é o que se ocupa de agricultura. Existe, pois, disposição natural para a democracia em todos os lugares em que o povo tira sua subsistência da agricultura ou da criação de gado. Exatamente por terem poucas riquezas, estas pessoas são muito laboriosas e não realizam com freqüência Assembléias nacionais. Não tendo numerosos domésticos, fazem elas próprias seu trabalho e não desejam o que pertence a outrem. Consideram mais agradável trabalhar do que permanecer sentadas, de braços cruzados, a deliberar sobre o governo ou gerir magistraturas, a menos que haja muito que ganhar neste trabalho, pois a maioria prefere o lucro à honra. A prova de sua despreocupação quando não se desperta sua cupidez é que suportaram muito bem seus antigos déspotas e ainda hoje se acostumam com a oligarquia quando os deixam trabalhar e não tiram seus pertences. Então, eles logo alcançam a riqueza, ou pelo menos a abastança. Se tiverem além disso alguma ambição, ela é mais do que satisfeita pelo direito de voto que lhes dão nas eleições e na auditoria das contas. E mesmo que nem todos tivessem direito de assistir a elas, mas apenas o de ser voz deliberativa nas Assembléias primárias. Com efeito, é preciso considerar isto como uma das formas do governo democrático. Era esta que havia em Mantinéia. Portanto, importa ao primeiro tipo de democracia (e este sempre foi um de seus costumes) reservar à universalidade dos cidadãos as eleições e a censura dos magistrados, assim como a justiça. Não se confiam os mais altos cargos senão aos mais ricos, os segundos aos que o são á bastante, ou então não se confia nenhum cargo através desse tipo de consideração, mas apenas aos que se mostram .capazes. Um Estado só pode ser bem governado quando o é desta maneira, pois os cargos sempre serão preenchidos pelas pessoas mais honestas, de acordo com o povo, que não inveja aqueles que estima. Esta Constituição deixará contentes os homens de bem e os nobres. Por um lado, terão a vantagem de não serem governados por pessoas baixas; por outro lado, quando chegar a sua vez, tomarão mais cuidado para governar eqüitativamente, pois terão contas a prestar e outras pessoas que os julgarão, pois é bom depender de alguém e não ter toda a liberdade para fazer o que se quer. Esta liberdade indefinida é uma má garantia contra o fundo de maldade que todo homem traz consigo ao nascer. Resulta necessariamente desta precaução a maior vantagem para todo Estado, que é ser governado por pessoas de bem que a responsabilidade torna por assim dizer impecáveis, e isto sem ameaçar a superioridade do povo. É evidente que a melhor de todas as democracias é a que é assim constituída. Por quê? Porque nela o povo tem sua importância. Querem consolidar e propagar este regime agrícola? Dentre as excelentes leis que existiam antigamente entre vários povos, observamos sobretudo as que não permitiam a ninguém possuir terras ou acima de certa quantidade, ou a uma distância grande demais da cidade onde se mora. Em vários Estados era proibido alienar a herança paterna. Uma lei de Oxilus, cujo efeito é aproximadamente o mesmo, proibia que se hipotecasse parte dela aos credores. Podemos retificá-la por um texto dos afitianos que vem bem a propósito. Esse povo, embora numeroso, possuía um território bastante pequeno; todos eram lavradores, mas nos registros do censo não constava a totalidade de suas propriedades. Dividiam- nas em certo número de partes disponíveis, para que os pobres pudessem adquiri-Ias em quantidade suficiente para ultrapassar até mesmo os ricos. Depois dos agricultores, o melhor povo é o que leva a vida pastoril e explora o gado. Tem muitas afinidades com o primeiro. Ambos, habituados ao trabalho corporal, são excelentes para as expedições militares e resistem perfeitamente aos incômodos do bivaque. Quase todos os outros povos que compõem o restante das democracias estão muito abaixo destes dois. Nada de mais vil, nem de mais alheio a todo tipo de virtude do que esta multidão de operários, de mercenários e de gente sem profissão. Esta espécie de indivíduos corre sem parar pela cidade e pelas praças públicas e só fica contente nas Assembléias. Os lavradores, pelo contrário, dispersos pelo campo, não se reúnem tão facilmente e não precisam de tais conciliábulos. Em todos os lugares onde a localização é tal que há grandes distâncias da cidade até as aldeias e lugarejos, é bem mais fácil estabelecer uma boa democracia e um bom governo. A multidão é obrigada a se dispersar como que em colônias, de modo que a turba da cidade, embora acostumada à praça pública, vendo-se sem apoio e até mesmo sem o concurso dos homens do campo, não pode reunir-se em Assembléia. Vemos como deve ser constituída a primeira e a melhor democracia, e também como podem sê-lo as outras. Basta que nos afastemos gradualmente da primeira e adicionemos aos poucos a populaça, à medida que a democracia for piorando. Como a última espécie recebe toda espécie de gente, ela não pode nem convir a todos os países, nem subsistir por muito tempo, a menos que esteja submetida a A melhor Constituição e o melhor regime para a maioria dos Estados, assim como para a maior parte dos particulares, não se medem nem por virtudes acima do alcance do vulgo, nem pelo saber que se adquire apenas com talentos naturais e com o auxílio da fortuna, nem por uma forma de governo qualquer, mas sim por um gênero de vida que todos possam alcançar e pelo governo que o maior número de Estados esteja disposto a receber. Os que se chamam aristocráticos estabeleceram-se em muitos países por imitação de governos estrangeiros, e se aproximam tanto da República propriamente dita que de agora em diante falaremos destas duas formas como sendo uma sói. A decisão sobre todas as questões acerca desta matéria depende dos mesmos princípios. O que dissemos de melhor em nossa Ética" é que a vida feliz consiste no livre exercício da virtude, e a virtude na mediania; seguese necessariamente daí que a melhor vida deve ser a vida média, encerrada nos limites de uma abastança que todos possam conseguir. O que dizemos da virtude e do vício do Estado devemos dizer do governo, que é a vida do Estado inteiro. Importância e excelência da classe média Em todos os lugares, encontram-se três tipos de homens: alguns muito ricos, outros muito pobres, e outros ainda que ocupam uma situação média entre esses dois extremos. É uma verdade reconhecida que a mediania é boa em tudo. A abastança de riquezas é, portanto, a melhor de todas as situações; é ela que se presta melhor aos conselhos da razão: nada lhes obedece mais dificilmente do que a beleza extrema, a força incomparável, a alta nobreza, a excessiva riqueza e seus contrários, a extrema pobreza, a extrema fraqueza e a grande infâmia. Desses extremos, alguns conduzem à insolência e à pior improbidade, outros à patifaria e à baixeza. Ora, essas são as duas fontes dos insultos e dos males que nos fazem. Pessoas desse tipo são, aliás, pouco interessadas em empregos e cargos públicos, quer no serviço, quer no conselho, e, por conseguinte, são inúteis à pátria. Os da primeira classe, favorecidos demais pela natureza ou pela fortuna, poderosos, ricos e rodeados de amigos ou de protegidos, não querem nem sabem obedecer. Desde a infância, são tomados por essa arrogância doméstica e a tal ponto corrompidos pelo luxo que desdenham na escola até mesmo escutar o professor. Os da outra classe, abatidos pela miséria e pelas preocupações, curvam-se diante dos outros de modo que esses últimos, incapazes de comandar, só sabem obedecer servilmente. Os primeiros, pelo contrário, não obedecem a nenhuma ordem, mas mandam despoticamente. Conseqüentemente, o Estado compõe-se apenas de servos e de déspotas, e de forma alguma de pessoas livres. Aqueles são ciumentos, estes desprezadores, vícios contrários à amizade e portanto ao regime político que tem sua origem na benevolência. Assim suspeitosos de inimizade, mal aceitam caminhar juntos. Ora, a sociedade deseja sobretudo membros iguais e semelhantes, o que só se pode encontrar na mediania; ela não poderia ser melhor governada do que por pessoas semelhantes aos que lhe deram origem. São estes os cidadãos que com mais segurança se mantêm; não desejam o que é dos outros, como os pobres, nem estimulam a inveja de ninguém, paixão comum dos pobres contra os ricos, e, não correndo risco de emboscadas, nem estando eles mesmos à espreita, vivem sem perigo. Por isso Focilides dizia que uma modesta abastança era o objeto de seus desejos, só pedindo ao céu ser ele próprio medíocre em sua pátria. Nenhuma sociedade civil é melhor do que a que se compõe de tais pessoas, nem mais própria para ser bem governada do que quando, superior em número e em poder ao restante dos cidadãos, o ultrapassa em dois terços ou pelo menos em um terço. A acessão deste terço faz com que a balança penda para o seu lado e previna os excessos do partido contrário. É, portanto, uma grande felicidade para o Estado que nele se encontrem apenas fortunas medíocres e suficientes. Em toda parte onde uns têm demais e outros nada, segue-se necessariamente que haja ou democracia exacerbada, ou violenta oligarquia, ou então tirania, pelo excesso de uma ou de outra. Pois a tirania surge de igual modo da insolente e desenfreada democracia e da oligarquia, desastre que, como explicaremos ao tratar das revoluções, acontece muito menos entre tais pessoas de nível médio. A mediania é, pois, o melhor estado; é o único que não sofre sedições. Com efeito, não acontecem nem agitações, nem divisão onde muitos se encontram de posse de uma riqueza mé- dia. Assim, as grandes cidades são menos sediciosas porque nelas se encontram mais pessoas abastadas. As cidades pequenas, pelo contrário, dividem-se facilmente em dois partidos, sem que ninguém permaneça neutro, sendo quase todos ou pobres ou ricos. Pela mesma razão, há mais segurança nas democracias do que nas oligarquias, e elas duram mais tempo, porque os medíocres são mais numerosos e participam mais dos cargos públicos do que num Estado oligárquico. Quando os pobres não têm este contrapeso, e começam a prevalecer pelo número, tudo vai mal e a democracia não tarda a cair no aniquilamento. Um poderoso argumento a favor da mediocridade éque os melhores legisladores foram cidadãos de média fortuna. Sólon declara-se tal em suas poesias, Licurgo tornou-se tal quando parou de reinar e Carondas também o era, como quase todos os outros. Pode-se compreender, depois disto, por que a maioria dos Estados são ou democráticos ou oligárquicos. Éporque neles se encontra um pouco de simples abastança e, estando os ricos e os pobres além e aquém da linha da mediania, atraem para si o governo, e se segue daí a democracia ou a oligarquia. De resto, quando ocorrem revoltas e combates entre os pobres e os ricos, os que saem vencedores não toleram mais comunicação nem igualdade com os vencidos no governo, mas reservam para si, como prêmio da vitória, o privilégio de governar. Se o vencedor for o povo, ele estabelece uma democracia; se forem os ricos, faz- se uma oligarquia, como aconteceu com todos os que conquistaram a soberania na Grécia, ajustando ambos a forma de governo a seu proveito particular, sem de maneira nenhuma consultarem o interesse do Estado. É por isso que jamais ou raramente aconteceu, e entre muito poucos povos, que se tenha optado por uma República média. Entre os príncipes não há um só exemplo desta moderação, em toda a antiguidade; em todas as outras partes, virou costume recusar a igualdade e procurar dominar quando se sai vencedor, ou ceder e obedecer quando se é vencido". Por tudo isso que acaba de ser dito, vemos qual seja o melhor dentre os Estados, e o que faz a sua excelência. Esta noção servirá aos outros, tanto no gênero democrático quanto no oligárquico, para mostrar-lhes sua situação e fazer com que se compreenda com facilidade qual é depois dele o primeiro, qual o segundo e assim por diante. Será necessariamente o melhor o que mais se aproximar dele, e o pior o que mais se afastar, a menos que haja circunstâncias particulares. De fato, é possível que se encontrem circunstâncias tais que o melhor não seja o mais útil nem o mais conveniente para certos povos. A conseqüência natural do que precede seria examinar que gênero e espécie convêm a cada povo. Examinemos, porém, inicialmente o que convém a todos em geral, pois é preciso que a parte de um Estado que deseje a sua conservação seja mais poderosa do que a que não a deseja. Em todo Estado há duas coisas a considerar: a qualidade e a quantidade das pessoas; a qualidade, isto é, a liberdade, a riqueza, o saber, a nobreza; a quantidade, isto é, a parte superior em número. É possível que das duas partes de que um Estado se compõe uma seja superior pela qualidade e a outra pela quantidade, que haja mais plebeus do que nobres, mais pobres do que ricos, ì; mas de maneira que não excedam em quantidade mais do que os que são inferiores pela qualidade. É sob estes dois aspectos que vamos compará-los. Quando a multidão dos pobres predomina nesta proporção, a democracia estabelece-se naturalmente. Ela é de espécie análoga à parte do povo que predomina, a saber, a primeira espécie, se for a massa dos lavradores, a última, se for a dos artesãos e dos trabalhadores manuais, e assim das outras que ocupam uma situação intermediária entre essas duas. Mas quando os ricos e os pobres predominam mais em qualidade do que são superados em quantidade, acontece a oligarquia, e, de igual forma, a espécie de oligarquia em relação com o número da sociedade oligárquica. Em todos os casos, quer se trate de fazer uma Constituição oligárquica, quer a pretendam democrática, o legislador deve prestar atenção às pessoas de condição média. Se seu número for superior aos dos dois extremos, ou ao de um deles, a Constituição será firme e estável. Não se deve temer que os ricos se entendam com os pobres contra os médios; uns jamais vão querer deixar-se dominar pelos outros; se procurassem outra Constituição, não encontrariam nunca uma mais adaptada ao interesse comum do que esta; nem os democratas se deixarão governar pelos oligarcas, nem estes pelos democratas, mesmo alternadamente, devido à desconfiança mútua. Em todos os lugares, é ao árbitro que as pessoas se dirigem; e o árbitro mais conveniente é aquele que, colocado entre dois, não pende mais para um lado do que para o outro; quanto mais o poder supremo for moderado por este intermediário, mais a Constituição será estável. É um erro, mesmo nas Constituições aristocráticas, dar, como fazem muitos, muito aos ricos e muito pouco ao povo; a longo prazo, de coisas que só têm aparência de bem resulta necessariamente um mal real: o Estado arruina-se mais pela cupidez dos ricos do que pela dos pobres. O Regime Moderado Também é política, enfim, a questão de saber se, continuando a ser as mesmas as pessoas, a Cidade pode mudar. A Cidade é um tipo de comunidade; é a universalidade dos cidadãos. Portanto, se a qualidade de cidadão variar conforme a forma de governo, não será mais o mesmo Estado quando o governo passar de uma forma a outra, assim como, permanecendo os mesmos atores, o coro não deixa de mudar quando passa do cômico ao trágico. O mesmo ocorre com todo outro composto ou agregado cuja forma varia. Permanecendo as mesmas vozes e os mesmos instrumentos, o canto não é mais o mesmo quando passa do modo dórico ao modo frígio. Isto posto, é a forma e não a matéria que decide se um Estado permanece o mesmo e se se deve, apesar da identi dade de habitantes, chamá-lo de outro nome ou conservar-lhe o nome, embora seus habitantes tenham mudado. Restaria ainda saber se a modificação de forma o dispensaria de manter seus compromissos. O Excesso de Desigualdade, Causa Principal das Subversões As transformações fazem-se do mais para o menos ou do menos para o mais, isto é, aumentando ou diminuindo a intensidade da oligarquia ou da democracia, ou ainda dos outros governos, de modo que o Estado se torne mais ou menos oligárquico, mais ou menos democrático e assim por diante. Modifica-se ainda certa parte do sistema político, quer inaugurando, quer suprimindo alguma ma- gistratura, como dizem que na Lacedemónia Lisandro tentou abolir a monarquia e Pausânias a eforia. Foi também assim que em Epidamno, em lugar dos Filarcas, se criou um Senado, e na democracia de Atenas se manteve, no tribunal dos Heliastas, o costume de preencher os cargos vacantes com pessoas que tivessem estado em outros cargos; o arcontado, que é a primeira dignidade neste Estado, é outro resíduo da antiga oligarquia. Em todos os lugares, é a desigualdade que ocasiona as sedições, quer porque não se respeite nenhuma proporção entre desiguais, quer porque se estabeleçam muitas diferenças entre iguais; pois a própria monarquia é uma desigualdade chocante quando se estabelece entre iguais e para sempre. Para aqueles que buscam a igualdade por toda parte, ela é uma fonte eterna de subversões. Há dois tipos de igualdade, uma em número, outra ; em mérito: em número, quando se encontra dos dois lados uma mesma multidão ou grandeza; em mérito, quando há proporção, quer aritmética, como entre três, dois e um, quer geométrica, como entre quatro, dois e um. Numa, existe a mesma diferença, noutra, a mesma proporção, pois dois é metade de quatro, assim como um é me- tade de dois. Concorda-se sobre a justiça simples ou igualdade numérica. Só há contestação, como já ficou dito, sobre a justiça proporcional, que se deve ao mérito. Uns, por serem iguais sob certos aspectos, imaginam ser inteiramente iguais; outros, por serem desiguais em algo, se consideram superiores em tudo e dignos de todas as preferências. Foi destas duas pretensões opostas que nasceram principalmente a democracia e a oligarquia. A nobreza e o mérito encontram-se em poucas pessoas; a maioria não as tem. Não se encontrarão em parte alguma cem homens nobres e cem pessoas de mérito, mas em toda parte os pobres pululam. É impolítico fundar meramente a Constituição de um Estado sobre uma ou outra igualdade. A experiência o prova; nenhum Estado organizado assim é duradouro. Éfatal que partindo de um erro capital e de um princípio vicioso se chegue a más conseqüências; portanto, só se deve empregar a igualdade aritmética em algumas partes, e nas demais servir-se da igualdade geométrica. No entanto, a democracia é mais segura e menos sujeita a sedições do que a oligarquia. Esta as vê nascerem dos dois lados, umas da parte dos governantes entre si, outras da parte do povo; a democracia só sofre sedições da parte das minorias oligárquicas, e não do próprio povo; e, para falar exatamente, neste caso não se trata nem mesmo de sedições. O governo republicano, tirado da classe média, aproxima-se mais da democracia do que da oligarquia. Assim, é o mais seguro e o mais estável de todos os governos. As Outras Causas Como nos propusemos examinar de onde nascem as sedições e as revoluções, devemos começar vendo quais são em geral seus princípios e causas. São três, cujas características inicialmente esboçaremos. Consideraremos um após outro a disposição dos espíritos à sedição, os motivos que os levam a ela e o começo das querelas e das perturbações civis. Em geral, a causa desta disposição à mudança é que uns, como já dissemos, enfatuados pela igualdade, se re voltam por se acreditarem menos bem tratados do que os outros, que consideram apenas seus iguais; estes, que= rendo conservar a desigualdade e sua preponderância, se chocam por, embora sendo superiores, não ter mais e,. talvez até menos do que o vulgo. Pode haver justiça em suas pretensões. Sempre o que os dispõe à sedição é o. esforço dos inferiores para serem iguais, e dos iguais para se tornarem superiores. O objeto de suas lutas é o lucro ou a honra e seus j contrários. Querendo evitar para si ou para seus amigos alguma afronta ou desgraça, insuflam revoltas e perturbações no Estado. As causas que assim geram esses movimentos e essas comoções são em número de sete e até mais, de ume outro ponto de vista. Duas são as que acabam de ser expostas, o lucro e a honra. Animam de diversas formas os cidadãos uns contra os outros, pois nem sempre eles os pretendem para si mesmos, como no caso precedente, mas às vezes lutam porque os vêem justa ou injustamente distribuídos a outrem. As outras causas são ora os ultrajes, o terror, o demasiado poder ou crédito, o desprezo, os crescimentos excessivos; ora os aborrecimentos, o esquecimento, o envilecimento e a diferença de tratamento que se sente. Dentre estas razões para a subversão, já se pressente que força têm o ultraje e a acumulação de lucros, e como eles agem. Quando são os altos funcionários que ofendem ou especulam, os cidadãos se revoltam tanto contra eles como contra o governo que autoriza essa licença. A avareza dos chefes manifesta-se ora pela pilhagem dos bens privados, ora pela do tesouro público. Sabemos também o quanto pode a ambição e como ela excita as revoltas. Os que não participam dos cargos públicos revoltam-se por vê-los todos serem concedidos a outros. Sua repartição só é justa quando se faz segundo o mérito; é injusta quando pessoas sem talento os conseguem, enquanto que os outros, apesar de sua virtude, são excluídos. A sedição também acontece por demasiada preeminência, quando um ou vários cidadãos se elevam a um grau de potência maior do que convém à dignidade e às forças do Estado, o que comumente degenera em monarquia ou coalizão tirânica, conhecida sob o nome de dinastia (ou politirania); por isso, é costume em alguns lugares, como em Argos e em Atenas, afastar a tempo esses personagens, tipo de banimento chamado ostracismo. Seria melhor, porém, como dissemos, prevenir, desde o princípio, a superioridade, do que remediá-la depois de tê-la experimentado. Outra causa de revolta é, entre os culpados, a consciência de um grande crime e o medo de ser punido por ele, ou, ainda, o perigo de que se está ameaçado e se quer prevenir. Foi assim que em Rodes os nobres conspiraram contra o povo para deter as perseguições judiciárias iniciadas contra eles. Também o desprezo conduz da desobediência às conspirações e à sedição. Nas oligarquias, quando os excluídos dos cargos são maioria e se sentem os mais fortes; nas democracias, quando os ricos desprezam os membros do governo que desempenham mal suas funções ou os negligenciam. Assim, em Tebas, a democracia mal governada foi inteiramente arruinada depois da batalha das Vinhas; em Megara, após duas perturbações e sua anarquia; em Siracusa, antes da tirania de Gelão; em Rodes, depois do motim dos nobres contra o povo e da insurreição contra Atenas. Os crescimentos desmedidos de uma classe relativamente às outras também são causas de revolução. Assim, os membros que compõem um corpo devem crescer pro-. porcionalmente, para que subsista a mesma comensura-' ção. O animal morreria se o pé, por exemplo, crescesse até quatro côvados, não tendo o resto do corpo mais do que dois palmos; poderia até degenerar em outra espécie, se crescesse de tamanho e sofresse alteração de figura além de sua proporção natural. Assim também o Estado, sendo de maneira semelhante composto de partes, altera-se e se enfraquece se algumas delas, como freqüentemente acontece, crescem insensivelmente em detrimento das outras, por exemplo, a massa dos pobres nas democracias e nas Repúblicas. O acaso às vezes traz estas mudanças. Em Tarento, i tendo sido a maior parte da nobreza, pouco depois da guerra dos persas, derrotada pelos Lapiges, passou- se da República para a democracia. Em Argos, depois do massacre feito pelo lacedemônio Cleômenes sobre seu exército perto do Hebdome (ou Teatro), os habitantes foram obrigados a admitir seus camponeses entre os cidadãos. Em Atenas, depois de ter perdido contra os espartanos a batalha terrestre, a nobreza que se recrutara para esta guerra diminuiu consideravelmente e foi forçada a ceder ao povo. As mesmas modificações ocorrem com as democracias, mas são mais raras. Por exemplo, quando a quantidade de pobres aumenta e vários deles se tornam ricos, ou então quando os bens dos ricos aumentam de valor, passa-se à oligarquia, e até à oligarquia concentrada que chamamos politirania. Às vezes, sem que haja sedição, o governo muda em razão de seu aviltamento, como em Heréia, onde começaram a se envergonhar das eleições e os magistrados foram depois sorteados, por causa da torpeza dos eleitos. O
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