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Guias e Dicas
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Luxo e Vaidade, de Joaquim Manual de Macedo, Manuais, Projetos, Pesquisas de Literatura

Comédia original em cinco atos.

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 20/07/2010

allan-oliveira-12
allan-oliveira-12 🇧🇷

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Baixe Luxo e Vaidade, de Joaquim Manual de Macedo e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Literatura, somente na Docsity! Luxo e Vaidade, de Joaquim Manuel de Macedo Fonte: MACEDO, Joaquim Manuel de. Luxo e vaidade. Rio de Janeiro : Funarte, 1979 p. 27-95 (Clássicos do Teatro Brasileiro). Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br> A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: Claudia de Moura Leite Ribeiro - São Paulo/SP Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para <bibvirt@futuro.usp.br>. Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para <bibvirt@futuro.usp.br> e saiba como isso é possível. LUXO E VAIDADE Joaquim Manuel de Macedo Comédia Original em Cinco Atos Representada pela primeira vez, a 23 de Setembro de 1860, no Teatro Ginásio, pela Companhia Dramática Nacional. Personagens: Maurício – empregado público. Anastácio – fazendeiro. Felisberto – marceneiro. Henrique – pintor. Reinaldo – coronel. O Comendador Pereira Frederico Petit – criado francês. Primeiro Máscara. Segundo Máscara. Hortênsia – mulher de Maurício. Leonina – filha de Hortênsia. Fabiana Filipa – filha de Fabiana. Lúcia – Filha de Reinaldo. Fanny – inglesa; mestra de Leonina. Máscaras de ambos os sexos. A ação é passada na cidade do Rio de Janeiro. Época: a atualidade. ATO PRIMEIRO Sala, ornada com esmero e luxo; portas, ao fundo e aos lados, dando comunicação para o exterior e para o interior da casa. CENA I Fanny, que entra pelo lado direito; Petit, que ao mesmo tempo aparece à porta do fundo. Petit (Suspirando) – Miss Fanny! Fanny (Estremecendo) – Ah!…monsieur Petit! Ficar muite sustade...este non se use n’Ingliterre. Petit – Oh! non tem que assusta; eu venha aproveitar momento deliciose de conversa sozinha com miss Fanny em uma tête-à-tête impreciável. Fanny – Mim ficar muite envorganhade com este conversacion. Petit – Oh! miss Fanny, non tem vergonha!vergonha non presta por nada: gente que tem vergonha, non sabe arranja sua vida. (Olhando para dentro) Onde está as senhoras? Fanny – Poder estar segura: madame fique sentada de fronte de toucador, e pinta suas cabelinhas brancas; e mademoiselle estar no janela de sala grande olhando repagão barbude do sobrado de esquina. Petit – E senhor Maurício estar em sue gabinete lendo contas de despesa e roendo as unhas: então nosso tête-à tête se prolongue dues hores; porque madame tem muito que pinta, mademoiselle muito que olhe, e senhor Maurício muito que róe. Fanny – Oh! mas este non se use n’Ingliterre; done deste case ganhe cinco e gaste cincoenta; este família ser gente de imposture: contracta mim para ensina inglês mademoiselle, e non paga minhas ordenados cinco meses! Mim há de faz queixa a ministro inglês. Petit – Esta gente non ande direita. Senhor Maurício tem bola virada, e madame non tem bola para virar; non pode gastar e faz ostentação, e tem em casa professora de inglês para mademoiselle, e criado francês para servir na sala; mas também quatro meses que eu non recebe meus salários, e se miss Fanny non mora nesta casa, eu bota logo pés na rua. Fanny – De mèsme sorte mim non poder ficar separade de monsieur Petit. Petit – Oh! este confissão me torne verdadeiramente um grande Petit! Miss Fanny, vamos deixar esta casa, vem dar coroa de felicidade ao meu amor. Fanny – Oh! Este non se use n’Ingliterre; mim non poder dar corôa de felicidade, sem ver padre católica bota mão de Petit em cima de mão de Fanny. Petit – Eu non ponha dúvida em fazer aliança anglo-francesa com miss Fanny...é maior ventura que suspira! Fanny – Então, mim dar corôa de felicidade: confessa que estar muito desejose... Petit (De joelhos e beijando-lhe as mãos) – Miss Fanny! Oh! quel bonheur! que a requesta é um pintor e filho de um marceneiro”; - a terrível notícia acendeu os brios da fidalga, e o namorado plebeu foi condenado ao desprezo. Diga, menina, não é verdade? Leonina – Não o nego; mas porventura deveria eu continuar a aviltar-me?... Anastácio – Oh! não, não, de modo nenhum; há porém no fim dessa história, uma tristíssima e fatal realidade! Leonina – E qual é? Já agora dê o seu recado até o fim. Anastácio – É que o miserável pintor, filho do miserabilíssimo mestre marceneiro, é...é...tenho vergonha de acabar a frase. Leonina – Nada de reticências; eu quero que diga tudo. Anastácio – Pois então lá vai, minha fidalga: é que o miserável pintor, filho do miserabilíssimo mestre marceneiro, é...tenha paciência, é, sem mais nem menos, primo-irmão de Vossa Excelência. Leonina – Oh! eu não posso suportar essa ironia insultuosa! (Chamando) Meu pai!...meu pai!... minha mãe!... Anastácio – Manchei-lhe o sangue azul com as tintas do meu pintor!... E como ficou irritada!... Menina, façamos as pazes! (Procurando-a) Venha um abraço em sinal de reconciliação!... Leonina (Fugindo) – Meu pai!...minha mãe!... Anastácio (Seguindo-a) – Há de dar-me um abraço, quer queira, quer não. Leonina (Fugindo) – Meu pai! Acuda-me!... Anastácio (Seguindo-a) – Pois agora há de ser um abraço e um beijo... CENA IV Anastácio, Leonina, Maurício e Hortênsia. Maurício – Leonina... (Vendo Anastácio) Oh!...mano Anastácio!...(Abraça-o) Hortênsia – Meu mano! (Abraça-o por sua vez) Anastácio – Sim! Ele mesmo!...depois de dezoito anos de ausência!...ele mesmo! Maurício – Que prazer! Que felicidade!... Leonina – Pois é meu tio?...é o meu padrinho?... Hortênsia – Sim, minha filha, é o teu padrinho. Anastácio (Chorando) – Conheceram-me logo...amam-me ainda...não se esqueceram do velho rabugento...mas...parece-me que estou chorando...isto é uma vergonha na minha idade... Maurício, mano, outro abraço para esconder estas duas goteiras de casa velha!...(Abraçam-se) Leonina – E eu então, meu padrinho?... Anastácio – Ah! Já, minha cabecinha de vento?...não te disse que havias de dar-me um abraço e um beijo? (Abraça-a e beija-a na fronte) Pois toma dois e três de cada espécie, e estes podes receber e pagar com juros sem dar satisfação à língua do mundo. Maurício – Quando chegaste, Anastácio? Anastácio – Agora mesmo; apeei-me à porta de tua casa. Hortênsia – Mas por que gritavas com tanto desespero, Leonina? Leonina – Ora...eu não conhecia meu padrinho, vendo-o correr atrás de mim para me abraçar...(Sentam-se) Anastácio – Não foi isso, mentirosa! Deves dizer sempre toda a verdade a teus pais: mana, fui eu que, conforme o meu costume, ralhei como um frade velho. Leonina, tenho mais vinte anos do que teu pai, e portanto acho-me com direito de avô. Meus pais desejaram que eu fosse padre, e deram-me uma educação severa e estudos variados e sérios; circunstâncias que agora não vêm ao caso, afastaram-me das ordens sacras; fiquei, porém, com as menores, e , sem ser padre gosto de pregar os meus sermões; dispõe-te pois a aturar-me, que tens muito que ouvir e eu muito que ralhar. Leonina (À parte) – Pior está essa! Mas o meu recurso é simples: para um velho que ralha, uma moça que ri. Maurício – Sim, ralhe muito com ela e para isso não nos deixe mais nunca. Anastácio – Mais nunca?...Havia de ser bonito! E quem me tomaria conta das fazendas em Minas?...cheguei há pouco e sinto que já estou pelos cabelos: a vida da cidade é só para gente vadia. Hortênsia – Um homem solteiro, quando chega à sua idade e é bastante rico, tem o direito de descansar e gozar. Anastácio – Não; o homem ocioso é sempre um peso para a sociedade. O trabalho é uma lei de Deus que se deve cumprir até a morte; sou rico, nunca porém serei vadio, nem perdulário.(Olhando). Mas pelo que vejo, tu andas pelas grimpas, Maurício? Aposto que tens os teus vinte contos de renda anual?.. não...ah! já sei, tens tirado a sorte grande cinco ou seis vezes. Leonina – Qual! todos os bilhetes, que papai compra, saem brancos. Anastácio – Então, acumulas alguns sete empregos para receber os vencimentos de todos eles, sem cumprir as obrigações de nenhum: acertei! A nação é quem paga o pato, e, coitadinha! Não se queixa, porque já está acostumada. A quanto chegam os teus ordenados? Maurício – Tenho só um, Anastácio, e esse e mais achegos dão-me por ano cerca de cinco contos de réis. Anastácio – Ao menos esta casa é propriedade tua... Maurício – Infelizmente não; e as casas estão por um preço fabuloso: pago de aluguel por esta dois contos de réis. Anastácio – E com os três contos que restam dos cinco que ganhas, e vestes com o luxo que vejo a tua família, pagas criados franceses que olham com desprezo para quem traz botas à mineira, e tens salas como esta, mármores, ricas mobílias, e esta grandeza toda?...Maurício!... Hortênsia – Que quer dizer, meu mano? Anastácio – Eu não quero dizer nada: o adágio antigo é que diz uma coisa muito feia, porém muito verdadeira. Leonina – Ora, pois meu padrinho há pouco ralhava comigo, e agora já está ralhando com meu pai. (Levanta- se e senta ao pé do padrinho). Anastácio – E que tem você que ver com isto?...destas despesas loucas e superiores aos recursos de quem as faz, transpira uma prova de demência ou de imoralidade. Quem despende mais do que ganha, ou cai na miséria ou no crime...quem...tá...tá...tá...que tenho eu de meter-me com a vida alheia?...Maurício, como está Felisberto?... Maurício (Confuso) – Felisberto... Hortênsia (Confusa) – Felisberto... Anastácio – Sim...Felisberto, vocês hesitam? Acaso terá morrido? Leonina – Minha mãe, quem é esse Felisberto?... Anastácio – Quem é esse?... é teu tio, o irmão de teu pai, o cunhado de tua mãe, é meu irmão; um homem honrado e laborioso, e um mestre marceneiro da primeira ordem. Leonina – Marceneiro!...pois isto é verdade, minha mãe? (Vai sentar-se ao fundo muito triste). Hortênsia (À parte) – Antes nunca tivesse voltado à corte este velho doido. Maurício (Levanta-se) – Meu mano...a alta sociedade que freqüentamos...as nobres relações que temos...certo pundonor...os prejuízos talvez....Têm feito com que...a pesar nosso... Anastácio – Tu gaguejas?...estás engasgado com alguma indignidade? Maurício – Não...nós estimamos sempre muito a Felisberto; mas um simples marceneiro...podia ser encontrado aqui por fidalgos, titulares, grandes personagens enfim, que nos honram com a sua amizade; e por isso...e por um vexame muito natural... Anastácio – Fechaste a porta a nosso irmão?...Que miséria!...como deve estar corrompida esta sociedade em que há quem se lembre de quebrar os sagrados laços do sangue e de voltar o rosto a um irmão, só porque ele é um simples artífice! Que sociedade é esta tão estúpida, que não sabe repelir de seu seio esses Cains da vaidade, como Deus repeliu o Caim da inveja!...(A Maurício e batendo com o pé no chão) Caim!...Caim!... Maurício – Anastácio!... Anastácio – Fidalgo improvisado! O teu castigo é a voz da verdade que soa em tua consciência; e onde quer que vás, onde quer que estejas, eu, eu, que não renego nem o meu passado, nem os meus parentes; eu, enquanto vivo for, bradarei aos teus ouvidos: lembra-te, meu fidalgo, que nosso pai foi um nobre ferreiro, que durante sessenta anos se chamuscou na forja e bateu na bigorna! Teve por título de nobreza a sua imaculada probidade, e por glória o seu trabalho e a educação da virtude que soube dar a seus filhos; foi deveras um nobre ferreiro, e é pena somente que deixasse um filho doido! Maurício – Oh! é muito! Hortênsia – Meu mano, as coisas aqui na corte não se passam como lá na roça; aqui há certas prevenções...certas considerações... Anastácio – Engana-se, minha senhora: lá na roça, como aqui na corte, os tolos de ambos os sexos abundam do mesmo modo. Hortênsia – Senhor...é quase um insulto! Hortênsia – Como passou de ontem, Dona Fabiana? Fabiana – Sofri um pouco dos nervos: mas nem por isso quis faltar à minha palavra. Maurício – É uma fineza de mais que temos de agradecer a Vossa Excelência, mas...creio que sobem às escadas. Frederico – Quem será?...(A Leonina) – Vossa Excelência não adivinha pelas pisadas? Leonina – Nem sempre: Dona Fabiana, Dona Filipa, e Vossa Senhoria já aqui se acham. Frederico – Hei de fazer certa experiência, vindo aqui uma noite sozinho. Leonina – Dar-nos-á ainda assim muito prazer; mas olhe que se expõe a ser confundido. Frederico (À parte) – Foi epigrama; reconheço-o pela segunda edição. CENA VIII Os precedentes, Reinaldo e Lúcia, cumprimentos, etc. Leonina e Hortênsia – Oh! Dona Lúcia! Senhor Coronel! Maurício – Como vamos, meu caro senhor coronel?...não há que perguntar, sempre remoçando... Reinaldo (Olhando para Leonina) – Passei o resto da noite cheio de saudades e um dia inteiro anelante de esperanças... Leonina (Á parte) – Aquilo é comigo. (A Reinaldo). Não precisa dizer mais: o teatro italiano faz-lhe saudades no fim das óperas, e acende-lhe esperanças com os cartazes. Vossa Excelência, creio eu, traz sempre um cartaz no coração! Reinaldo – Minha senhora, dou-lhe minha palavra de honra que não sei o que se cantou ontem no teatro italiano. Lúcia – Dona Leonina, meu paizinho levou hoje o dia inteiro a falar no seu fichu à Marie-Antoinette. Reinaldo – E o seu balão, Excelentíssima! O seu balão é capaz de levar a gente às nuvens! Leonina (A Filipa) – Você já viu homem mais tolo?... Filipa (A Leonina) – Homem não, porém mulher, já vi. Leonina (A Filipa) – Quem é? Filipa (A Leonina) – A filha, que tem tanto de feia como de desfrutável. ( A Lúcia) Dona Lúcia, você é adorável! Lúcia – Por que diz isso?... Frederico – Perdão; mas é a nós os homens que pertence dizer esse porquê, visto que somos nós os que o sentimos melhor e mais profundamente. Reinaldo (Que conversava com Maurício) – É possível!...o meu amigo Anastácio? O bom velho que me dava confeitos, quando eu era cadete? Hortênsia – É verdade, depois de dezoito anos de ausência, chegou-nos hoje de Minas o padrinho de Leonina, o meu cunhado Anastácio. (Cumprimentos). Reinaldo – Ditoso padrinho de tão formosa afilhada! O meu velho amigo!...Minha senhora, amanhã virei pedir-lhe de jantar ...quero jantar com o meu amigo Anastácio. Hortênsia – Mas Vossa Excelência esquece que o comendador Pereira convidou-nos para passar o dia de amanhã no Jardim Botânico; convenha pois em que todos, que nos achamos presentes, jantemos juntos depois de amanhã para fazer uma saúde ao meu excelente cunhado. Pereira (Dentro) – Com a devida vênia!... Maurício (Indo recebê-lo) – Oh! senhor comendador! CENA IX Os precedentes e o Comendador Pereira. Hortênsia – Senhor comendador, Vossa Excelência gosta demasiadamente de se fazer desejar! Pereira – Não é isso, minha senhora, não é isso; é que eu venho desesperado...furioso... Maurício – Então que há? Pereira – Um atentado que revolta as leis da natureza! (Levantam-se todos). Reinaldo – Diga depressa, senhor comendador: Vossa Excelência está expondo as senhoras aos ataques nervosos. Pereira – O mundo está perdido!... Lúcia – É algum novo cometa, senhor comendador? Frederico – Qual, minha senhora, os cometas abundam tanto, que já não assustam a pessoa alguma. Pereira – É coisa muito pior do que dez cometas juntos: é o esquecimento dos deveres mais sagrados, e da honra das famílias. Hortênsia – Isso então é muito sério; diga o que foi... Pereira – Mais um passo dado para o descrédito da aristocracia... Reinaldo - Quem vem lá?...Passe de largo! Pereira – Lembram-se de Dona Inocência, a filha de um barão, e descendente de uma nobre casa de Portugal?... Fabiana – Sim...sim...a baronesinha, como todos a chamam... Pereira – Sangue puro de fidalga! Sangue puro como o de um cavalo árabe!... Filipa (A Leonina) – A comparação parece de boleeiro. Pereira – Pois bem...saibam todos: casou-se hoje. Reinaldo (À parte) – Ai! Tenho uma namorada de menos. Vozes – Casou-se?...mas com quem?... Pereira – Com um negociante de retalhos!!! Hortênsia – De retalhos?!...coitadinha! Fabiana – Passou de filha de barão a noiva de retalhos! pobrezinha!... Reinaldo – Mas o pai...matou-se...não é assim? Pereira – Vergonha das vergonhas! Abraçou o genro. Reinaldo – É o progresso!...são as luzes do século!... Hortênsia (Com fogo) – Não pode haver nobreza, onde os nobres se aviltam misturando-se com a canalha!... Pereira – É inaudito! Maurício – Paciência; mas esqueçamos aqueles que se esquecem de si mesmos. Pereira – Nós, porém, lembremo-nos sempre do que somos!... Hortênsia – Sim! Nós seremos sempre dignos do nome que temos, do sangue que gira em nossas veias, e da nobreza de nossas famílias. CENA X Os precedentes, Anastácio, Felisberto, Henrique, e a seu tempo, Fanny e logo Petit. Anastácio – Maurício! Mana Hortênsia! (Voltam-se todos). Aqui vos trago comigo o nosso irmão, o mestre marceneiro Felisberto, e o nosso sobrinho Henrique, pintor. (Surpresa geral). Hortênsia (Desmaiando) – Ah!... Leonina (Correndo a Hortênsia) – Minha mãe! Maurício – Hortênsia!...desmaiada! meu Deus! Um médico! Petit, um médico!...(Movimento geral: Felisberto e Henrique ao fundo: no meio da confusão Anastácio tira do bolso uma carta, desdobra-a e prepara uma torcida de papel). Fanny – Um médica! Monsieur Petit, um médica! Oh! este non se úse n’Ingliterre! Petit – Le docteur! Le docteur! (Vai-se correndo). Maurício – Hortênsia! Leonina – Minha mãe!... que a leve á desonra; mas leonina, moça e bela, aí está, e Dona Fabiana, envenenando a vida inteira de Leonina, de um só golpe fará a tua desgraça e a da sua antiga rival. Maurício! Abre os olhos! Por aquela rua foi um algoz arrastando consigo a sua vítima. Maurício – Faz-me tremer, Anastácio! Anastácio – E, supondo extinto o ódio de Dona Fabiana, não bastam os seus princípios demasiadamente livres e sua reputação dilacerada pelo público, para que o dever te mande afastar Leonina de sua companhia? Um pai que expõe sua filha às conseqüências das relações perigosas, não é um pai, é um louco, para não ser um monstro. Oh! quando uma pobre moça, uma filha pervertida pela más companhias se deixa corromper, e se avilta, o mundo antes de castigá-la com o seu desprezo, devia primeiro cuspir na face do pai desnaturado que a levou pelo caminho do vício. Era isto, que eu precisava dizer-te: agora podes ir fazer os teus cumprimentos a Dona Fabiana. Maurício – Dezoito anos de ausência da corte puderam tornar-te hoje, e apesar da tua instrução, como um estrangeiro no meio dela; desconheces os costumes e os usos da alta sociedade, e confundes a civilização com a licença. Anastácio – No Rio de Janeiro, como em todas as capitais do mundo, a alta sociedade conta duas classes de freqüentadores que a deslustram: uma, é dos imorais e libertinos, que dela devia ser expelidos como indignos; a outra, é a dos elegantes caricatos, ridículos macaqueadores dos grandes; pobres tolos que são castigados em sua própria vaidade: a gente que te cerca, meu irmão, pertence a essas duas classes, e tu fazes parte da última. Maurício – Anastácio, é demais! Anastácio – Qual demais! Eu tenho ainda que dizer-te um milhão de verdades amargas... Maurício – Pois eu não as ouvirei, agora ao menos; e fica certo de que nem sempre são os mais avisados aqueles que presumem ter mais juízo que os outros. (Vai-se) Anastácio – Vai, abre porém os olhos, Maurício! (Seguindo-o) Porque por aquela rua foi um algoz arrastando a sua vítima! CENA III Anastácio, e logo Henrique. Anastácio – Eis aí um homem que tem uma cabeça de ferro; mas tão oca como um cabaço sem miolo! Henrique – Meu tio, o que vossa mercê praticou hoje comigo chama-se uma traição: foi provocar-me a um passeio no Jardim Botânico, sabendo que vinham aqui passar o dia pessoas que me olham com o mais insultuoso desprezo, e obriga-me, para não encontrá-las, a correr a medo para as alamedas mais solitárias e afastadas, como se eu fora um miserável criminoso. Anastácio – E vossa mercê, chegou há quatro meses da Europa com fumaças de artista de gênio; foi ao baile, apaixonou-se por sua prima que o não conhecia, e que voltou-lhes as costas, mal soube que o seu namorado era um pintor; então, lembrou-se vossa mercê do seu tio da roça; correu a Minas, confessou-me o seu amor, pôs-me ao fato da vida que levam seus tios da cidade, e arrancou-me da fazenda, sob o pretexto de que só eu podia salvá-los. Henrique – E ainda bem que veio... Anastácio – Ainda mal, porque estou desconfiando que cheguei tarde. Maurício disparou em tal carreira pela aristocracia adentro que é bem de crer que não pare senão à porta do palácio da Praia Vermelha. No entanto, eis-me arvorado em médico de loucos, e o senhor, que me impôs este mister, vem agora dizer-me que lhe estou armando traições!...Começo a acreditar que tenho na minha família mais doidos do que pensava... Henrique – E considera-me talvez no número desses... Anastácio – A falar a verdade, ainda não te suponho doido; mas, orgulhoso, olha que és muito, Henrique. Henrique – É a vossa mercê que devo este meu orgulho: desde os primeiros anos senti arder em minh’alma o amor da arte; e foi meu tio que com a sua riqueza facilitou-me os meios para ir estudar na Europa. Ali, no foco da civilização, e no meio dos grandes mestres, a cada passo que avançava na conquista dos segredos da arte, reconhecia que me ia enobrecendo por ela; e quando depois de doze anos de um estudo incessante, ao apresentar um quadro que me fora inspirado pelas saudades da pátria, meu mestre correu a abraçar-me, chorando, e pintores célebres que têm um nome no mundo, me aplaudiram e me chamaram irmão, tive consciência de que valia alguma coisa; amei a minha palheta como um rei a sua coroa, e apreciei devidamente o meu nome de artista para não curvar a cabeça diante de papelões dourados. Eis aí o meu orgulho: é vossa mercê que o devo. Anastácio – Segue-se daí que te mandei estudar para te fazer pintor, e que tu não me borraste a pintura; sê portanto orgulhoso com esses que em sua soberba desprezam o artista que vale mil vezes mais do que eles; quando porém se tratar de tua prima, perdoa-lhe as fraquezas, e humaniza-te com ela, mesmo porque a rapariga é bela como as virgens do teu Perugino. Henrique – Quer então, meu tio, que eu me sujeite aos desdéns e aos insultos de parentes que se envergonham de mim?...Deseja, por exemplo, que Leonina suponha que eu vim hoje aqui de propósito para admirá-la...para beijar os vestígios de suas pisadas...para...Oh! não, meu tio. Anastácio – Amas ou não amas tua prima?...Sim, ou não?... Henrique – Ameia-a. Anastácio – Falo-te no presente, e respondes-me no pretérito?...Tu não sabes gramática. Henrique – Como quer que lhe responda?... Anastácio – Sim, ou não?...amas, ou não amas?... Henrique – Não devia amá-la. Anastácio – Pior: tu não nasceste para pintor; nasceste para advogado e havias de ser grande na chicana. Henrique – Não devia amá-la porque o seu coração é uma urna impura que guarda os restos de cem amores fingidos; não devia amá-la porque a sua vaidade amesquinha e desbota os seus encantos; não devia amá-la porque... Anastácio – Mas, a pesar teu, morres de amores pela rapariga!... Henrique – Ao menos saberei fugir dela. Anastácio – Sim?...pois olha para aquela rua; de quem será aquele balão pavoroso, que não sei como entrou pelo portão do Jardim?... Henrique – Oh!...é ela...eu fujo...adeus, meu tio... Anastácio – Foge, corre depressa; mas eu no teu lugar deixava-me ficar, ocultando-me atrás destes bambus. Henrique – Tem razão: vê-la-ei sem ser visto; mas não me atraiçoe.(Oculta-se) Anastácio – Que ele não fugia, sabia eu muito bem! Os namorados parecem-se todos uns com os outros, com a mão direita com a mão esquerda. CENA IV Anastácio, Leonina e Henrique, que se conserva oculto. Leonina – Então, meu padrinho, sempre se resolveu a vir jantar conosco!... Anastácio – Não, senhora; não sou mulher nem político para andar mudando de opinião da noite para o dia. Leonina – Entretanto, nós o viemos encontrar aqui. Anastácio - É verdade, mas preferi à companhia dos seus fidalgos a de uma pessoa a quem tributo verdadeira estima. Leonina – Sim, creio mesmo que me pareceu ter visto dois vultos, quando agora vinha chegando. Anastácio – E encontrou só um, porque espantou o outro com a sua presença. Leonina – Palavra de moça, que é a primeira vez em minha vida que assim espanto um homem! Quem é esse senhor espantadiço!... Anastácio – É seu primo-irmão. (Silêncio). Sabe quem é seu primo-irmão?... Leonina – Demais o sei e todos o sabem; ontem à noite vossa mercê descarregou um golpe terrível na minha vaidade; e embora aqueles, que nos cercavam, nos dissessem depois que raras são as famílias que não tem de envergonhar-se de algum parente menos digno, não pude mais esquecer que um irmão de meu pai é mestre marceneiro, e meu primo-irmão um pintor! Anastácio – E perdeu por isso uma noite de sono...coitadinha! Leonina – Perdi, sim, meu padrinho, porque a lição que vossa mercê nos deu, e depois a longa conversação que comigo teve, me convenceram de que uma fraqueza de meus pais me fez representar até hoje na sociedade um papel ridículo; porque eu ostentei um orgulho que não me assentava; pois agora eu vejo bem que não sou fidalga. Anastácio – Ah! O juízo vai entrando nessa cabecinha de vento?...Mas por que andas hoje tão melancólica?...pensas que perdeste muito com a baixa da fidalguia?... Leonina – Oh! meu tio, vossa mercê nunca leu no coração de uma moça. Escute: eu sei que muitas vezes o pergaminho de um nobre não pode disfarçar a torpeza de suas ações; sei que outras tantas, o cofre de um milionário é um abismo cheio de lágrimas derramadas por infelizes, mas a mulher deixa-se sempre deslumbra por esse ouropel das grandezas e ambiciona o cofre de ouro; porque, com o prestígio da nobreza suplantará as outras mulheres, e com a riqueza terá brilhantes, sedas, palácios, ostentação e luxo!...oh! nós outras somos as escravas da vaidade, e como todas eu desejava ser bem rica e bem nobre, para humilhar as minas rivais! Anastácio – Muito bem, Leonina, essa confissão franca e sincera te absolve; ao menos não és hipócrita; continua, que estás falando perfeitamente. Leonina – Quem mais posso dizer-lhe?...esses sonhos ambiciosos acabaram para mim, e de ora avante cumpre que eu abaixe a cabeça diante das outras senhoras, porque nas sociedades que freqüento, a menos nobre sou de certo eu. Fabiana – Mas, Dona Leonina tem bastante juízo para não cair em tal; fale-lhe em casamento e verá; eu sou muito amiga de Dona Hortênsia e sei em que princípios educou a filha; Dona Leonina é um anjo de virtudes, e o seu único defeito, que proveio da educação que recebeu, é ainda uma garantia para o amor de Vossa Excelência. Pereira – E qual é esse defeito?... Fabiana – Preferir a tudo a riqueza; se Vossa Excelência fosse pobre, apesar de todo o seu merecimento, duvido que conseguisse ser amado; rico porém como é, pode contar com o amor de Dona Leonina. Pereira – Sim...até certo ponto ela tem razão; porque enfim, o dinheiro é uma grande coisa; mas...por outro lado...isso não me parece muito lisonjeiro... Fabiana – Pelo contrário...Olhe, quero contar-lhe em segredo: Dona Leonina amava não sei por que ao coronel Reinaldo; o galanteio entre ambos tinha ido além de certos limites; desde porém que Vossa Excelência se apresentou como pretendente, o coronel, embora tenha ainda licença para amar, perdeu já a esperança do casamento. Pereira – Era de prever: desde que se mostrava um homem rico, um comendador, talvez em vésperas de ser barão...mas, pelo que vejo, conta-se comigo... Fabiana – Se se conta! Dona Leonina não cabe em si de contente: e os pais então! Esses estão entusiasmados: excelente família! É o céu que lhe depara este casamento. Senhor comendador, Vossa Excelência está destinado a ser o salvador desta honrada gente, porque o senhor Maurício, segundo dizem, deve tanto...tanto...que terá de sofrer alguma horrível desgraça, se lhe não valer um genro dedicado e generoso. Pereira – Mas eu penso que um genro não tem obrigação de pagar as dívidas do sogro... Fabiana – E que há de fazer Vossa Excelência, quando sua esposa, banhada em pranto, lhe pedir que salve a se pai?...que diferença farão em sua fortuna, quarenta ou cinqüenta contos de menos?...Deixemos porém isso, arrependo-me até de ter falado em tal; o que lhe importa saber é que Dona Leonina o ama apaixonadamente. Pereira – Vossa Excelência o assegura com toda a certeza? Fabiana – Pois se eu já lhe disse que a garantia do seu amor está na sua riqueza, e nas conveniências da família! Dona Leonina é uma menina virtuosa, mas bastante interesseira; deseja ser muito rica para gastar, brilhar, e ter sempre a seus pés um a roda de adoradores. É o que eu chamo ter juízo, sinto bem que minha filha não seja assim! Filipa é uma doidinha que se deixa levar somente pelo merecimento pessoal. Eu sei que ela ama um homem muito rico, mas a pobre tola abafa a sua paixão com receio de que a suponham ambiciosa. Pereira – Sim...até certo ponto Vossa Excelência tem razão; porque o dinheiro é uma grande coisa; mas também sua filha parece ter bom coração. Fabiana – Qual! Juízo o de Dona Leonina, que até se entusiasma ouvindo falar em dinheiros, mas...que impertinência! Estou roubando momentos preciosos que pertencem à sua amada; vá, senhor comendador...vá ter com Dona Leonina. Pereira – A companhia de Vossa Excelência nunca pode ser impertinente. Fabiana – Basta de sacrifícios...(Empurrando-o docemente) Vá...ande... Pereira – Irei...irei...obedecer também é servir. (Vai-se) Fabiana – A paixão cega este homem; mas ainda assim se ele tivesse o que no mundo se chama honra e dignidade, por certo que teria sentido os efeitos do veneno que lhe lancei no coração. CENA VI Fabiana, Frederico e Filipa. Frederico – Acabamos de encontrar Dona Leonina com o original do tio de Minas. Fabiana – Não fale assim de seu tio, senhor Frederico! Filipa – Como minha mãe conta com o jogo! Fabiana – É porque se trata de uma partida segura. Filipa – E se aparecer alguém que baralhe as cartas?... Fabiana – Ninguém pode baralhá-las. Maurício está a ponto de ficar de todo perdido. Sei que em breves dias os seus numerosos credores aparecerão decididos a fulminá-lo. Filipa – Por que então não esperamos pelo resultado desse golpe? Fabiana – Porque era possível que o irmão se lembrasse de pagar-lhe as dívidas. Frederico – Como Vossa Excelência calcula e planeja bem!... Fabiana – É um cálculo que dura há vinte e cinco anos! É uma dívida que tenho de remir e de pagar com usura; não me peça explicações que não as darei; aborreço Maurício e sua mulher e vingo-me em sua filha: se lhe vai aproveitar o meu ódio, tanto melhor. Frederico – Mas o comendador Pereira... Fabiana – Ontem em casa de Maurício, e aqui mesmo ainda há pouco, disse-lhe tudo quanto convinha dizer- lhe: mas o comendador é um estúpido e não me compreendeu; ou está pronto a sacrificar até mesmo alguns contos de réis por amor de Leonina. Embora! O nosso plano é infalível! Aproveitando a confusão do baile de máscaras, na chácara de Maurício, às duas horas depois da meia-noite levarei Dona Leonina para o caramanchão que fica junto da rua; o senhor aparecerá então; dou-lhe minha palavra de honra que a vítima do rapto não poderá soltar um grito, e a carruagem que deve estar perto o levará com ela para onde lhe parecer. Filipa – E depois, minha mãe? Fabiana – Até aí a desonra, e logo depois em seguida virá a miséria. É a vingança; é a parte que me toca. Depois um casamento inevitável dará ao senhor Frederico direitos à herança do tio e padrinho da noiva; e tu, Filipa, com uma rival de menos, contarás uma probabilidade de mais para conquistar o comendador. Frederico – Tudo bem calculado, quem ganha mais no negócio, sou eu; uma bela moça...uma grande herança em perspectiva...(A Fabiana) Minha senhora, Vossa Excelência é um anjo! Fabiana – Anjo ou demônio, pouco importa, contanto que eu consiga o meu fim. Dê-me o seu braço senhor Frederico; tu, Filipa, insinua-te no espírito do comendador, e trata de fazer acreditar que o coronel Reinaldo ama com ardor a Dona Leonina: precisamos de um homem, sobre quem recaiam as primeiras suspeitas imediatamente depois do desaparecimento de Leonina. Até logo. (Vão-se) CENA VII Filipa e logo Henrique, que tem estado oculto. Filipa – Pois as cartas deste jogo serão por mim baralhadas. Ver Leonina mulher de Frederico que é moço, elegante e belo!... oh! não, não! Muitas e até eu ainda mesmo casada com o comendador lhe invejaríamos a sorte: esse casamento o salvá-la-ia da desonra; perca-se, portanto, ou pelo menos veja manchada a sua reputação, e fique solteira. Um rapto que se malogra no momento de executar-se, é de sobra para desacreditar a mulher que se encontra nos braços do raptor...Sim...é isso que deve acontecer; e para que aconteça só me falta um homem...um homem dedicado que eu hei de achar...um homem...que a minha boa fortuna há de mostrar-me... Henrique – Ei-lo aqui, senhora! Filipa – Oh!...o senhor Henrique! Henrique – Não percamos tempo nem palavras. Ouvi tudo...eu estava ali...ouvi tudo. Estou no domínio do segredo de sua mãe e do seu; poderia destruir os seus projetos; quero porém ser cúmplice neles: sabe que tenho sido profundamente ofendido e que devo estar sequioso de vingança. Eu sou o homem de que precisa. Aceita-me?... Filipa – Farei chegar às suas mãos um convite para o baile de máscaras do senhor Maurício. O senhor procederá de modo que não comprometa minha mãe, e ao arrancar leonina dos braços do seu raptor, provocará com seus gritos o concurso de testemunhas. Henrique – Fá-lo-ei melhor do que calcula, minha senhora! Filipa – A vingança aproximou-nos: unir-nos-á a cumplicidade. Adeus, senhor, até a noite do baile!... Henrique – Até a noite do baile!... Filipa (Indo-se) - Oh!...agora estou segura. (Vai-se) Henrique – Baralhaste demais as cartas do vosso jogo, minha senhora! A partida não será vossa, e menos de vossa mãe: a partida será minha! (Vai-se) CENA VIII O Comendador Pereira. Pereira – O senhor Maurício anda mal de fortuna; isso é tão positivo que ainda há quatro dias descontei com dez por cento esta letra de três contos réis, assinada por ele; não é boa firma, não; mas tem uma filha que vale cem contos com os olhos fechados. Nada tenho com as dívidas do pai; o que eu quero é a filha, e há de ser minha. Segundo ouvi há pouco, ela vem esperar aqui Dona Hortênsia, e eu não hei de perder este ensejo. Vou oferecer-lhe a decantada rosa (Tira-a do seio); mas há de ser uma fineza toda especial. Dona Fabiana assegura que a menina é muito interesseira; pois então, apresentar-lhe-ei a rosa em um cartuchinho feito com a letra de três contos de réis.(Prepara o cartucho). Aposto que o cartucho produzirá mais efeito do que a rosa? Dona Leonina não terá de envergonhar-se, porque o presente será recebido em particular, e, além disso, não posso admitir que o dinheiro envergonhe a pessoa alguma. Ei-la aí. CENA IX O Comendador Pereira e Leonina. Anastácio – Juntinhos a conversar! Os meus dois fidalgos estão de certo desenrolando a sua genealogia: quero apreciá-los de parte. (Vê o livro e abre-o) Oh! o livro de receita e de despesa! Isto é uma obra rara e proibida na casa do desmazelo e da dissipação. (Examina). Hortênsia – Tratemos da nossa festa: convêm que seja de estrondo, e que se fale durante um mês inteiro do baile de máscaras dado em honra dos anos de Leonina. Maurício – E se esse casamento não se concluir, onde iremos parar, Hortênsia?... Anastácio (Batendo com o livro sobre a mesa) – Miserável!... Hortênsia (Voltando-se) – Meu mano!... Maurício (Correndo para o livro) – Oh! leu...sabe tudo!...(Pena no livro). Anastácio (À parte) – Desgraçado!...desgraçado!...(Outro tom e à parte) Mas antes assim, meu Deus; eu temia que ele fosse já um infame, e apenas tem sido um louco; antes assim! Hortênsia – Que tem, meu mano?... Maurício – Anastácio, eu compreendo o teu desespero; foi este livro... Anastácio – E que tenho eu com esse livro?...pela encadernação parece-me obra moderna, e eu só acredito nos autores do século passado. Maurício (Á parte) – Não leu, ainda bem! (Vai guardar o livro num gabinete e volta logo). Anastácio (À parte) – Coisa singular!...quer me parecer que este meu irmão ainda tem vergonha! Hortênsia – Mas por que motivo entrou tão irritado?... Anastácio – Porque...porque...ah! querem saber por quê?...pois eu lhe conto. Fui visitar uma família de minha íntima amizade, e a quem como a vocês, não via há dezoito anos, e quando esperava encontrar a prosperidade, encontrei somente a desgraça e a miséria. Hortênsia – Infelizes!... Anastácio – Infelizes, não; infeliz é o lavrador que trabalha meses inteiros e vê num dia o vento impetuoso ou a enchente assoladora destruir-lhe as plantações; infeliz é o negociante a quem a tempestade roubou a riqueza, fazendo soçobrar seus navios; infeliz é o proprietário a quem o incêndio devorou as casas e a fortuna; mas o perdulário, e o dissipador, vítimas somente do luxo e da vaidade, não têm direito à compaixão dos homens; são entes imorais, que pervertem a sociedade com o seu mau exemplo, e que merecem o castigo da desgraça. Maurício – Anastácio...levas a austeridade até o excesso... Anastácio – Não, eu sou apenas justo: escutem; o meu antigo amigo era empregado público, tal e qual como és, Maurício; casara-se com uma senhora que tendo todas as virtudes, tinha também e, infelizmente, o defeito da vaidade e do amor da ostentação...nesse ponto não sei se ele se parece contigo; mas como a ti, Maurício, também sua esposa lhe trouxera em dote uma fortuna modesta; o homem da mediocridade, impelido por sua mulher e por seu próprio gosto, esqueceu a sua esfera, quis ombrear com os grandes, fruir os prazeres, e ostentar o tratamento dos milionários, e nem os cuidados do futuro de uma filha que o céu concedera a esse casal desvairado, puderam arredá-lo do caminho da perdição. Os anos foram correndo nas asas das festas...a fortuna própria foi dissipada...vieram depois as dívidas, e finalmente chegou o dia da ruína e do opróbrio. Que dizem vocês a isto?... Hortênsia – É um quadro muito comum hoje em dia. Anastácio – Quando eu ainda há pouco chegava à casa dessa triste família, os credores saíam dela levando os trastes penhorados. Vi soldados à porta, entrei; corri aos meus velhos amigos, oh que destino o seu! O marido ia ser levado para a prisão como estelionatário; a mulher para o hospital, porque havia endoidecido; e a filha...a filha tinha diante de si o desamparo, e perto do desamparo a desonra e a prostituição!... Maurício – Meu Deus! Anastácio – Oh castigo do céu! Castigo de Deus!...eram meus amigos; mas foi muito bem merecido!... Hortênsia – Meu mano , eu o estou desconhecendo! Anastácio – A razão fala pela minha boca: um empregado público que não é rico, que ganha pouco, e vive no seio da opulência e do fausto, ou rouba ao Estado ou aos particulares; porque ou é malversador, ou contrai dívidas que sabe que não poderá pagar. É verdade ou não, Maurício?... Maurício – É verdade! Anastácio – A mulher casada que impele seu marido a fazer despesas loucas e superiores aos seus recursos; que para trajar brilhantes vestidos e adornar-se com jóias custosas, o expõe ao opróbrio, ao infortúnio, à infâmia, não ama a seu marido, desconhece os seus deveres de esposa, não é somente louca, é ainda altamente criminosa. É verdade ou não, senhora?... Hortênsia – É verdade. Anastácio - E se esse homem e essa mulher têm uma filha, e dão-lhe a educação perniciosa do luxo e da vaidade; se lhes matam a inocência e a abandonam a mil perigos, atirando-a imprudentemente nas garras de sociedades sem escolha; se esse homem e essa mulher ajudam por tal modo a corromper o anjo que o céu lhes concedera; esse homem é um pai desnaturado, essa mulher é mãe depravadora. Pai e mãe, que me ouvis, não é verdade?... Maurício – Oh!... Hortênsia – Meu mano!... Anastácio – E os resultados desses erros, que são verdadeiros crimes, ei-los aí no quadro que apresentou a mísera família. Chega um dia em que os credores e a justiça entram na casa da dissipação; os credores apoderam-se dos restos de uma fortuna esbanjada; a justiça arrasta para uma cadeia o homem que perpetrara um delito infamante; a mulher vendo-se sem pão, sem riqueza, sem fasto, cai fulminada pelo raio da vaidade e enlouquece; e a filha, a única vítima inocente, acha-se no mundo só, em abandono, ardendo em desejo de brilhar como dantes, invejando as jóias, os vestidos, e esplendor das outras mulheres, e aí vem um pérfido sedutor, que lhe oferece bailes, teatros, sedas e carruagens, e em troco lhe pede a honra!...oh!...a filha do luxo e da vaidade acaba por abrir os braços! A serpente da libertinagem morde-lhe o seio...o anjo da pureza a desampara, e a desgraçada escreve o seu nome na lista das mulheres perdidas. Pai, que me escutas comovido; mãe, que me olhas espantada, respondei: quem precipitou essa infeliz na vergonha da corrupção?...Dizei!... Hortênsia – Ah!!! senhor... Maurício – Meu irmão...basta!... Anastácio – Não, ouvi-me até o fim; ninguém deplora essa família; ninguém dela tem piedade. O Estado diz ao empregado público: “Empregado malversador! Mereceste a punição do teu crime” Os credores bradam-lhe ressentidos: “Miserável, tu nos arrancaste o nosso dinheiro!”. A pátria volta-se contra a mulher e clama: “Insensata! Em tua filha tu me roubaste uma mãe de família!”. E a sociedade repele a moça infamada, a essa triste filha, a quem não ensinaram a trabalhar, e que preferiu a desonra com o fausto, à honestidade com o trabalho: e a bela corrompida envelhece; seus encantos murcharam depressa nas orgias da devassidão, e um dia, anos depois, o pai sai da prisão, a mãe sai do hospital, e encontram na rua uma mendiga esfarrapada, com o letreiro da prostituição escrito na face, e que lhes estende a mão, pedindo esmola...oh! não volteis o rosto, pai e mãe dissipadores! Pai e mãe escravos do luxo e da vaidade! Socorrei a mendiga! Socorrei-a, porque é vossa filha!... Maurício – Basta!...basta!... Hortênsia – É horrível!... Anastácio (Outro tom) – E que têm vocês com isto?...estarão porventura no mesmo caso?... Hortênsia – Oh!!! não...não...mas temos uma filha, e o quadro foi medonho. Anastácio – Pois corrijam-se dos seus erros, se ainda é tempo. Maurício, a ostentação e o luxo com que tua família se apresenta, desabonam o teu crédito; toda essa gente que freqüenta hoje a tua casa; todos esses figurões que te festejam, hão de desaparecer e abandonar-te na hora da adversidade. Mana Hortênsia, é simples o segredo da felicidade: quando por acaso nos sentirmos entristecer por não poder gozar os prazeres que gozam os que são mais ricos do que nós, basta que olhando para baixo, contemplemos aqueles que ainda podem menos do que nós. Maurício – Tem razão...nós nos corrigiremos... Hortênsia – O mano deu-nos uma lição proveitosa; falou-nos com o coração e há de ver o seu triunfo. Anastácio – Ainda bem; e principiem a ter juízo desde hoje... Maurício – Sim...nada mais de ridículas pretensões... Hortênsia – Nada mais de falsas amizades; nada mais de vaidades... CENA III Maurício, Hortênsia, Anastácio e Petit. Petit – Excelentíssimas baron e baronesa do Rio Mirim! Hortênsia – A baronesa!...ah! eu vou imediatamente... (Vai-se) Anastácio – Maldita baronesa! Oh! mana...ouça primeiro... Maurício – O senhor barão! Depressa a receber Sua Excelência. (Vai-se) CENA IV Anastácio e Petit, ao fundo. Anastácio – Maurício! Qual! Deixaram-me por amor dos barões Mirins! Perdi a minha retórica, e está decidido que meu irmão precisa receber uma lição amarga e rude. Desgraçados! Debatendo-se já no fundo do reputação de Leonina intacta, e o seu nome saindo de todos os lábios que o pronunciaram, suave como uma harmonia de Haydn, puro e celeste como a oração de um anjo. Anastácio – Excelente; mas havemos de levar ao fim a obra modificando um pouco as tuas idéias poéticas. Já fui delegado de polícia em Minas, e quando me denunciavam que s e pretendia cometer algum roubo, a minha regra era apanhar os ladrões com a mão na ratoeira. Henrique – Mas se um descuido qualquer... Anastácio – Já cumpriste o teu dever; o cumprimento do meu começa agora. Hás de dar-me amanhã algumas lições de baile mascarado. Uma dificuldade única me embaraça...Com hei de eu tolerar a presença desses tratantes, que vêm hoje aqui jantar?...Já, porém, que é preciso fingir, já que no meio desta gente sem fé, os próprios homens honestos devem às vezes trazer uma boa máscara no rosto, verão para quanto presta este velho roceiro! CENA VI Anastácio, Henrique e Leonina. Leonina – Meu padrinho...meu padrinho...(Vendo Henrique) Ah!... Anastácio – Assustou-se?...pois o rapaz não é feio. Henrique – Minha senhora... Leonina – Perdão, eu pensava que meu padrinho estava só. Anastácio – Mas achaste-me bem acompanhado, o que é ainda melhor. Que é isto?...parece que choraste, Leonina?... Leonina – Não...não chorei... Henrique – Eu me retiro... (Anastácio o suspende, segurando-lhe na mão). Anastácio – Vieste para confiar-me um segredo, podes falar; em vez de um, tens a teu lado dois amigos. Leonina – Meu padrinho... Henrique – Eu a deixo em liberdade, minha senhora; sei bem que não tenho direito algum à sua confiança...(Indo-se). Anastácio – Tu o deixas ir, Leonina?... Leonina – Senhor...meu primo, fique. Anastácio (À parte) – Com tenho domesticado este bichinho!...(A Leonina) Fala... Leonina – Ah! Meu padrinho...tenta-se contra a minha felicidade, contra o futuro da minha vida... Anastácio – Como?... Leonina – Querem casar-me com um homem grosseiro e mau, cuja única recomendação é a riqueza... Henrique (À parte) – Meu Deus! Anastácio – O comendador Pereira... Leonina – Ele mesmo! Anastácio – Que dizes tu a isto, Henrique?... Henrique – Meu tio! Leonina – Meu padrinho! Anastácio – Creio que ninguém se lembrará de casar-te contra a tua vontade, e menos de te impor à força um marido... Leonina – Oh! mas meu pai pede, minha mãe chora, e um pai que pede, obriga: uma mãe que chora, impõe!... Anastácio – E além disso trata-se de um fidalgo da gema; e um fidalgo, ainda que seja estúpido, grosseiro, e ainda mesmo tratante, é sempre um fidalgo, minha afilhada! Henrique – Senhor...meu tio...atenda que ela chora!... Leonina – Veja, meu primo, ele zomba de mim, quando as lágrimas correm de meus olhos! Anastácio – Tens razão! Fui mau: oh! mas nunca hei de consentir que te façam desgraçada! Leonina, enxuga esse pranto...não quero que chores! Os teus olhos não devem chorar; olha-me, olha-me bem? Sabes?...o teu rosto tem um encanto indizível para mim. Tu tens o rosto de minha mãe, Leonina! Velho, ainda me lembro daquele anjo de amor e de virtudes...oh!...e lembra-me também meu pai, que morrendo nos meus braços, me recomendou Maurício, meu irmão mais moço, e me pediu que por minha vez fosse para ele um pai!...(Comovido) Oh! bom e honrado homem, que hoje gozas a bem-aventurança do céu! Oh meu pai!... eu cumprirei à risca a tua última e santa vontade! Leonina é a filha de teu filho!...é o retrato de minha mãe...não há de ser, não quero que seja desgraçada!...(Com ternura) Leonina! És também minha filha!...e para fazer-te feliz, eu tenho um tesouro de amor neste seio, que se abre para receber-te...vem! Leonina! Minha afilhada! Minha filha!... (Aperta Leonina nos braços). Leonina – Oh!...meu padrinho!... Henrique – Que coração o deste homem, meu Deus! Anastácio (Soluçando) – Eis aí! Creio que estou chorando!... mas como é doce o abraçar-te, Leonina! Não achas que deve ser muito agradável Henrique?...e querem fazer-te desgraçada, bela menina?...pela alma de meu pai, juro que não! Leonina – Ouço vozes...(Observa) Ah! Meu padrinho, contenha-se; aí vêm todos os nossos amigos para o jantar. Henrique – E vão encontrar-me aqui...é um verdadeiro vexame para mim! Anastácio – Entra para o meu quarto e espera. (Leva até a porta do quarto a Henrique que entra) Ora vejam com quem queriam casar minha afilhada!...(Observando). CENA VII Anastácio, Leonina, Maurício, Hortênsia, Fabiana, Filipa, Frederico, Pereira, Reinaldo e Lúcia. Vozes – Senhor Anastácio!...(Cumprimentam-no) Anastácio – Minhas senhoras...meus senhores... (À parte) Devo estar com uma cara de enforcado: a presença desta gente irrita-me. Hortênsia – Meu mano, os nossos amigos vêm dar-nos o prazer de jantar conosco para obsequiá-lo... Fabiana – A nossa maior ambição é a conquista da sua amizade. Anastácio – A minha amizade, Excelentíssima...(À parte) Eu não ofereço a minha amizade a esta fúria, nem que me serrem! Filipa – A sua amizade é um tesouro que todos desejamos possuir. Frederico – E eu muito particularmente. Anastácio – Por quem são...os senhores confundem-me...(À parte) Está visto...eu não posso fingir... Reinaldo – Eu cá sou amigo velho. (Dá a mão a Anastácio, que deixa apertar a sua friamente). Pereira – E eu desejo merecer um título igual. (Á parte) Este homem não tem espírito. Anastácio (À parte) – Reconheço-me incapaz de dizer duas palavras; mas enfim, é indispensável rebentar com alguma coisa. (A todos) Eu...eu sou um agreste roceiro que não presta para nada...(À parte). Até aqui vou bem. (A todos) Porém...ainda assim...protesto e juro a Vossas Excelências e Senhorias... (A Leonina) É assim que se diz, Leonina?...(A todos) Sim...que fui, sou, e serei sempre um bom amigo, bem entendido, de quem merecer a minha amizade. Frederico – E nós faremos tudo por tornar-nos dignos dela. Maurício – Desde muito que o são: eu respondo pelo reconhecimento de Anastácio. Anastácio – Menos essa! Ninguém responde por mim...quero dizer...que...meu irmão fala muito bem a linguagem cá da cidade, e eu...roceiro, velho e rude...tenho um modo de falar que não agrada a todos...mas tal como sou, aprecio devidamente...(Á parte) Eles hão de pensar que eu sou um estúpido...pois que pensem! (A todos) E os senhores podem ficar certos de que...eu já os conheço tanto...que declaro...sim declaro...(À parte) Ora viva! Eu vou declarar o diabo! (A todos) Declaro... CENA VIII Os precedentes, e Petit, da porta do fundo. Petit – Madame est servie. (Vai-se) Anastácio (Indo a Petit) – Abençoado sejas tu, Petit de uma figa. Hortênsia – Vamos jantar; senhor coronel, o seu braço. (Toma-lhe o braço) Leonina, pede o braço ao senhor comendador... Anastácio – Não é possível; Leonina já está engajada comigo. (A Leonina) É engajada que se diz, não é, Leonina?... ele recair as primeiras suspeitas do atentado, enquanto o senhor Frederico se põe a salvo. (A Frederico) E a carruagem?... Frederico – Já está no lugar determinado. Fabiana – O cocheiro?... Frederico – Respondo por ele. Fabiana – Tudo corre à medida dos nossos desejos: até o velho roceiro teimou em não ficar para o baile. Frederico – Coitado! Apenas acabou de jantar, deitou a correr para a cidade antes que aparecesse algum máscara: é um montanhês lá de Minas, que ainda tem medo de máscaras! Filipa – Foi uma pena que não ficasse, tomá-lo-ia à minha conta a noite toda. Fabiana – E eu digo que foi muito melhor que se tivesse ido embora. Senhor Frederico, que horas são?... CENA III Fabiana, Filipa, Frederico e Anastácio, vestido de dominó preto: os três põem as máscaras. Anastácio – É meia-noite. Filipa – Que voz! Pareceu-me ouvir o sino grande de S. Francisco de Paula dando horas. Frederico – Belo máscara, quem és tu?... Fabiana – Qual belo! Quem és tu, feio máscara! Anastácio – Todos podem dizer o que foram; poucos o que são; nenhum o que há de vir a ser. O que fui, não vos importa; o que eu sou agora, acabastes de testemunhar; sou o cronômetro vivo que vos anuncia a hora que desejais saber; o que hei de ser ainda hoje...vê-lo-eis. Frederico – Bravo! É um dominó que toca o sublime. Fabiana – Mas estás me fazendo raiva; porque sou obrigada a reconhecer que és o primeiro máscara do baile. Anastácio – Não te desconsoles; tu és a primeira máscara do mundo. Fabiana – Senhor!... Frederico (Dando um passo) – Dominó, confundes o espírito com o insulto!... Anastácio – Às vezes, quando a verdade pode ser um insulto... Fabiana (A Frederico) – Voltemos à sala...este homem assusta-me... Filipa (Tomando o braço de Frederico) – Venha, senhor Frederico, venha... Frederico (Voltando a cabeça para trás) – Encontrar-nos-emos de novo, não?...(Vão-se) Anastácio (Seguindo-o) – Malgrado vosso, palavra de honra que sim!... CENA IV Maurício e Hortênsia. (A música toca uma valsa brilhante; movimento de máscaras. Anastácio, que tem ido até a escadaria, pára, vendo Maurício e Hortênsia; volta, observa-os um momento à distância e retira- se para um dos lados até encobrir-se). Hortênsia – Maurício...meu amigo... Maurício – Deixa-me fugir dessa multidão que me exaspera; eu tenho a morte no coração, Hortênsia. Hortênsia – Silêncio...cuidado...(Olhando) Talvez nos escutem, Maurício. Maurício (Olhando) – Não...estamos sós...livres de todos...menos da desgraça; sabes que recebi hoje uma carta em que o meu principal credor me previne de que amanhã ao meio-dia em ponto se apresentará apara receber quinze contos de réis ou para entregar-me à justiça, como um vil estelionatário?...pois bem: ainda há pouco no meio da confusão e do tumulto, uma voz soou a meus ouvidos, e disse-me: “Amanhã ao meio-dia, Maurício!...” Hortênsia – E essa voz... Maurício – Não sei de quem foi: olhei e vi-me rodeado de máscaras: ouvi zombarias e gargalhadas: zombariam de mim?...Rir-se-iam de mim, Hortênsia?..oh, isto é horrível!...Estas músicas soam a meus ouvidos como um canto infernal; este ruído me ensurdece...eu enlouqueço!...Hortênsia!...Hortênsia!...dize-me uma palavra de esperança...uma palavra que me faça esquecer essa ameaça sinistra: Amanhã ao meio-dia, Maurício!...” Hortênsia – A nossa situação tornou-se realmente grave: Leonina tem desde ontem tratado com azedume e até com desprezo ao comendador... Maurício – Meu Deus! E que recurso então nos resta?... Hortênsia – Lancei mão do último. Acabo de expor à nossa filha as circunstâncias desesperadas em que nos achamos; apelei para a sua generosidade, e conto vencer a sua repugnância: pediu-me dez minutos para refletir, e eu corro, porque é tempo de receber a sua resposta a fim de comunicá-la já ao comendador. Maurício – O sacrifício da vida inteira e da felicidade de Leonina?...oh!...o luxo! A vaidade! Eis aí as suas conseqüências!... Hortênsia – Nossa filha há de ser feliz, eu te afianço... Maurício – Não pareces mãe, Hortênsia!... Hortênsia – Maurício, é a primeira vez que me maltratas. Maurício – Oh! perdoa-me! Eu não sei o que digo...minha cabeça desgoverna...salva-me, Hortênsia... Hortênsia – Sossega e confia em mim; mas onde encontrarei agora Leonina?... CENA V Maurício, Hortênsia e Anastácio, sempre de dominó. Anastácio – Meditando e a chorar junto à última janela da galeria. (Vai-se) Maurício – Esta voz!...quem é este máscara?... Hortênsia – Sabê-lo-emos depois; agora cumpre salvar-nos. (Vai-se) CENA VI Maurício, só – Continua a música alegre. A música soa festiva e alegre! As luzes brilham! Admira-se em toda parte o luxo, a riqueza, o fausto e a magnificência do baile...tudo isto partiu de mim, e eu sou mais pobre do que o último mendigo!...hoje a festa...e amanhã ao meio-dia a miséria e o opróbrio!...oh! e medroso do infortúnio que eu preparei por minhas mãos; aterrado pela idéia do mais justo castigo; eu, no meio das músicas estridentes, do ruído da alegria, do movimento jubiloso de todos, eu, pai desnaturado e mau, consinto que vão arrojar minha filha no abismo que cavei debaixo de meus pés!...minha filha!...Leonina!...misericórdia, meu Deus! Sou vil, sou infame, reneguei, desprezei meus parentes...reneguei a honra e a virtude, e ainda vou renegar minha filha!...sinto as ânsias do seu coração, vejo as lágrimas dos seus olhos, e ainda assim com as minhas mãos arrasto-a para o altar do sacrifício...oh! não!...não! este crime, esta abominação, este sacrilégio não há de realizar...não quero...não! não! (Partindo). CENA VII Maurício, que logo se retira, e Anastácio. Anastácio – É tarde: Leonina deixou-se vencer por sua mãe. Maurício – Não! Não...não é tarde nunca para correr um pai e salvar sua filha!...(Vai-se). Anastácio – Vai, desgraçado, vai: a obra é tua, não tens portanto que maldizê-la: vai! Enxuga e esconde as tuas lágrimas, esmaga o teu coração e ri, e ri mil vezes aos olhos dessa sociedade mentirosa, em que quase todos são vítimas, e quase todos querem parecer triunfadores!...Oh! que sociedade! Ali dentro daquelas salas há homens que soltam gargalhadas e que têm no seio o fogo do inferno; há mulheres que se festejam e desejariam poder dilacerar-se; há moças que se estão beijando e que têm vontade de morder-se; ali dentro a inveja derrama veneno, a traição forja ciladas, a calúnia despedaça reputações, a corrupção se propaga, a hipocrisia triunfa, e melhor, e mais sublime que tudo isso, a miséria contradança e o calotismo dança a polca! Oh que mundo do diabo! (Sente passos) Quem vem lá?...é ela. (Vai-se) CENA VIII Leonina (Só) Está lavrada a minha sentença...meu Deus! Não há mais riso para meus lábios, nem felicidade para o meu coração. Máscara! Máscara! Não me deixes mais: agora tu és o meu único recurso. A desgraça feriu meus pais, um crime vergonhoso está a ponto de desonrá-los...oh!...não há que hesitar..é preciso que eu me Hortênsia – Escolhi os nossos mais diletos amigos, para que fossem eles os primeiros a quem eu tivesse o prazer de participar que o senhor comendador Pereira fez-nos a honra de pedir Leonina em casamento, e que esta correspondeu como devia a tão notável distinção, aceitando ufanosa a felicidade que o céu lhe destinou. Vozes – Parabéns! Parabéns! Pereira – Falta-me só receber a confirmação da minha dita da própria boca da formosa noiva... Maurício – Um momento...devo dizer ainda uma palavra a Leonina; perdão...é o último conselho de um pai. (Leva Leonina para um lado; Hortênsia toma o outro lado da filha, ficando um pouco para trás). Minha filha, eu corri há pouco para impedir uma promessa fatal, e cheguei tarde; agora, porém, o momento é supremo; o teu sacrifício não impediria o meu infortúnio... Hortênsia (À Leonina) – O comendador jurou-me que salvaria teu pai, Leonina! Maurício (À Leonina) – No meio das maiores desgraças, a tua felicidade seria para mim a única e a mais doce consolação... Hortênsia (À Leonina) – E amanhã a vergonha e a desonra... Maurício (À Leonina) – Consentir neste sacrifício fora um verdadeiro crime; minha filha...não ousas falar...falo eu... Hortênsia (Suspendendo Maurício) – E o estelionato, Maurício!...Salva teu pai, Leonina! Leonina (À parte) – Oh!oh!...é muito! Eu não posso mais; meu Deus! Eu cumprirei o meu dever. (A Pereira) Senhor...comendador...serei...sua...ah! (Desmaia). Maurício – Minha filha! Hortênsia – Leonina...Ela torna a si...foi a emoção...o excesso de prazer... Reinaldo (À parte) – Aquela conversa e este desmaio não podem ser de bom agouro para o noivo. Pereira – Minha senhora, eu vou dever-lhe a felicidade da minha vida... Leonina – Senhor... Maurício (À parte) – Sou eu que sacrifico a pobre vítima! Fabiana – Poupemos o pudor da noiva; é uma impiedade martirizá-la assim. (A Frederico) Vai tudo às mil maravilhas para nós. Frederico (À Fabiana) – Só um estúpido como o comendador deixaria de compreender o que se está passando. Filipa – Não esqueçamos o baile: senhor comendador, Dona Leonina ainda não é sua; pertence-nos durante esta noite; voltemos ao baile; eu estou louca por encontrar de novo o dominó preto; já viram o famoso dominó preto?... Pereira – Dizem-me que tem intrigado a todos; mas eu ainda não o vi, nem ouvi. Lúcia – Nem eu, e ardo em desejos... CENA XII Os precedentes e Anastácio. Anastácio – Pois ei-lo aqui, senhores! Vozes – Oh! ainda bem! Ainda bem!... Frederico – Todos estamos sem máscara; tira também a tua. Anastácio – Ainda me assiste o direito de conservá-la no rosto. Hortênsia – Sem dúvida,e pelo menos até a hora da ceia. Frederico – Desse modo é fácil exercer uma certa superioridade; porque conheces a nós todos, e ninguém ainda pôde descobrir quem sejas. Anastácio – Tanto melhor para mim; mas quem vos disse que vos achais sem máscaras?...engano, senhores, todos estais mascarados!... Reinaldo – Excelente! Excelente! Pereira – Pois tira-nos as máscaras, dominó pretensioso. Anastácio – Vós o quereis?... Vozes – Sim! Sim!... Filipa – É um máscara singular! Quando todos falam em falsete, ele conversa em baixo profundo! Anastácio – Então aí vai: Maurício, a placidez do teu rosto é uma máscara; tu tens na alma o desespero. Também não te devias chamar Maurício, porque o nome que te cabe é a – Fraqueza. Maurício – Oh!... Vozes – Impagável! Impagável! Anastácio – Hortênsia, a felicidade que ostentas é a tua máscara; porque o medo te oprime, e o remorso te despedaça o coração. Também não te devias chamar Hortênsia, o nome que te assenta, é a – Vaidade! Maurício – Senhor!... Anastácio – Leonina, és a única que não trazes máscara; porque o teu pranto e a tua aflição estão a todos dizendo que és uma vítima. Pereira – Que pretendes significar com isso, senhor dominó?... Anastácio – Comendador Pereira, a tua nobreza é uma máscara; porque tens tu mesmo consciência da tua nulidade. Também não te devias chamar Pereira, o nome que mereces é a – Fatuidade. Pereira – É...é uma insolência!... Frederico – Qual! É sublime! Anastácio – Coronel Reinaldo... Reinaldo – Dispenso...dispenso, absolutamente; eu e minha filha queremos guardar o incógnito...Anda, Lúcia...este dominó traz o diabo no corpo. (Vai-se com Lúcia). Filipa – Pois eu não o dispenso. Anastácio – Pobre moça! Também a tua leviandade é uma máscara; porque sofres tormentos incessantes; não te devias chamar Filipa, o nome que te compete; é a –Inveja. Fabiana – É demais!... Anastácio – Frederico, esse alegre estouvamento que ostentas é uma máscara; porque a tua alma está enregelada pelo egoísmo, e o teu coração ressecado pela prática dos vícios. Não te devias chamar Frederico, o nome que te assenta é a – Libertinagem! Frederico – Ah! Ah! Ah ! é incomparável, palavra de honra!... Anastácio – E o teu agrado, a tua afabilidade, a tua lhaneza são uma tríplice máscara, Fabiana! Porque no teu espírito refervem negras idéias; não devias chamar Fabiana; o nome, que te define, é a - Traição! Fabiana – Miserável! Pereira – E deixaremos assim impunes tantos insultos... Maurício (Avançando um passo) – Protegido pela máscara e pelo indulto da hospitalidade, acabasse de injuriar a todos nós; perdeste portanto os teus direitos, e me impuseste o dever de arrancar-te essa máscara, e de mostrar o teu rosto aos olhos...(Quer arrancar-lhe a máscara e Anastácio suspende-lhe o braço). Anastácio (A Maurício) – Amanhã, ao meio-dia, Maurício!... Maurício – Oh!...(Deixa cair o braço) Hortênsia – Este homem é um atrevido, e como tal deve ser expulso da nossa casa...(Anastácio leva Maurício para um lado). Anastácio (A Maurício ) – Nós vamos entrar de novo na sala do baile, e tua mulher aceitará sem dúvida o meu braço... Maurício (Aterrado) – Senhores...é um amigo...zombou de todos nós...mas não houve ofensa...é um amigo...tornemos ao baile... Fabiana – Como?...depois dos insultos que nos dirigiu... Maurício – É um amigo...já disse...respondo por ele...e a prova é, que Hortênsia vai tomar-lhe o braço... Hortênsia – Eu?...nunca!... Maurício (À Hortênsia tremendo) – Toma-lhe o braço, Hortênsia!... Hortênsia (Tomando o braço de Anastácio) – Meu Deus!... (Vão-se retirando). Frederico (Dando o braço a Fabiana) – Hora e meia!... Fabiana – Vamos. (Vão-se) Anastácio – Ainda não. Fabiana – Oh!... Frederico (Descansando Leonina no banco e avançando com um punhal) – Sempre ele! Miserável, morre!...(Ferindo) Henrique (Suspendendo o golpe) – Assassino! Somos dois!...(Subjuga Frederico) Anastácio (Arrancando a máscara de Fabiana) – Ei-la, a traição!...(O mesmo a Frederico) Ei-lo, a libertinagem!... Infames, fugi!...(Vão-se Fabiana e Frederico. Anastácio e Henrique correm a Leonina) Oh!...este sono é sinistro... Henrique – Leonina!...meu Deus!...permiti que nós a salvemos. FIM DO QUARTO ATO ATO V Sala em casa de Maurício; ainda riqueza e luxo; agora porém sinais de alguma desordem; sobre uma mesa vê-se uma pêndula de primoroso gosto. CENA I Hortênsia, e logo depois Maurício. Hortênsia – Só! Abandonada! Debatendo-me se esperança nas garras da miséria e da vergonha! Oh! é horrível! E minha filha...a minha Leonina...meu Deus! Se ao menos me restasse minha filha!...(Silêncio) Todos os meus cálculos destruídos como nuvens desfeitas pelo vento! Misericórdia, meu Deus!...(Vendo entrar Maurício) E Leonina?...e nossa filha?... Maurício – Perdi os meus passos, e as minhas lágrimas; ninguém sabe de Leonina. Hortênsia – O nome do infame raptor ao menos... Maurício – Hortênsia, não houve rapto, houve fuga. Qual é a mulher que se deixa roubar sem que solte um grito ou brade por socorro?...Não houve rapto; Leonina fugiu-nos e fez bem; queríamos sacrificá-la e ela salvou-se; fez bem. Hortênsia – Mas desonrou-se...e desonrou-nos... Maurício – Desonrados estamos nós desde o dia em que sem medir os nossos recursos nos atiramos no golfão do luxo e da vaidade, e nos carregamos de dívidas, que não podíamos remir. Hortênsia! Olha aquela pêndula, ela marca onze horas; ao meio-dia, em ponto, virão pedir-me o pagamento de uma dívida sagrada, e os meus credores terão o direito de chamar-me ladrão; porque eu vendi escravos que tinha hipotecado,e me utilizei do seu dinheiro, enganando-os com essa fraude vergonhosa. Hortênsia – Oh, Maurício! E não temos esperança, não temos recurso algum?...as minhas jóias?... Maurício – As tuas jóias! Eis aí o seu produto; importaram em mais de doze contos de réis, e deram-me por elas menos de cinco!Aqui estão; uma gota d’água no oceano! Hortênsia – Se te dessem algum tempo de espera, Maurício... Maurício – E com que fim o pediria eu?...daqui a um ano estarei em melhores circunstâncias do que hoje?... Não, Hortênsia, basta de enganar; em minha própria consciência fui até agora apenas um louco, e de agora em diante seria um velhaco. Hortênsia – E te u irmão tão rico! Por que não te abres com o mano Anastácio?...no fundo do coração ele é bom. Maurício – Meu irmão não pode ignorar em que situação nos achamos, e se quisesse socorrer-nos, não precisava que eu lho pedisse. Hortênsia – Falaste a algum dos nossos amigos?... Maurício – Os nossos amigos! A minha desgraça já é conhecida: bati em dez portas e achei-as todas fechadas, ou glacial frieza naqueles que ainda me quiseram receber. Entendi que não me devia expor a outras desilusões. Hortênsia – Oh! o mano Anastácio tinha razão. CENA II Maurício, Hortênsia e Petit. Petit – Senhor barão do rio Mirim não recebe ninguém hoje. Hortênsia – Também ele!... Petit – Senhor conselheire vai sair fora de cidade quinze dias, madame não faz nem recebe visitas. Maurício – Como os outros! Hortênsia – Abandonada de todos... Petit – Oh! non, tem muito gente na escade. Hortênsia (Com viveza) – Quem são?... Petit – Mais de vinte caixeiros que traz contas, e faz bulha de mil diables, dizendo que quer dinheiro por força. Maurício – Irei falar-lhes imediatamente. Petit – E da minha parte, eu também faz cumprimento a monsieur e a madame, e pede três meses de salário que não recebeu, e agora mesmo vai embora. Hortênsia – Tal e qual como Fanny ainda há pouco!...até eles nos abandonam!... Maurício (Tira a carteira e dá dinheiro) – Toma; vai-te: pelo menos não se dirá que caloteamos até os nossos criados. Petit – Eu faz cumprimento e deseja muitas felicidades... Maurício – Deixa-nos (Vai-se Petit). Estás vendo a triste posição a que temos descido?... Hortênsia – E Leonina?...e Leonina?... Maurício – Quase que estimo que ela não tenha sido testemunha de tão vergonhosas cenas. Hortênsia – Até o mano Anastácio nos desampara!... Maurício – Paciência. Espera-me, Hortênsia; vou falar aos caixeiros e aos cobradores que me enchem a escada: vou corar diante deles, e entregar-lhes todo o dinheiro, que me renderam as tuas jóias. (Vai-se). CENA III Hortênsia e logo Anastácio. Hortênsia – Oh! meu Deus, quem dissera que eu me veria em tão lamentável situação?! Anastácio – Eu lho predisse, minha cunhada. Hortênsia – Meu mano! Meu mano!... Anastácio – Onde está a multidão de amigos que dia e noite enchia as salas desta casa?...de que lhe serviram esses bailes, esses banquetes, essa vida de ostentação, com que enganava o mundo?... que é feito do seu orgulho de nobreza?...oh! as músicas dos saraus e o ruído das festas trocaram-se pela gritaria que levantam ali na escada os caixeiros insolentes; e aos aplausos dos parasitas sucederam as maldições dos credores enganados. Hortênsia – Meu mano, não redobre os nossos sofrimentos; as desgraça que caiu sobre nós é horrível! Anastácio – Essa desgraça é justo castigo da Providência. Consulte a sua consciência, que é a voz de Deus que lhe fala n’alma, e reconhecerá que ela lhe está dizendo: “Mulher, tu és um exemplo doloroso que deve ensinar às esposas e às mães a seguir o caminho da virtude. Mulher, tu foste a causa do infortúnio de teu marido, porque o arrojaste no abismo da dissipação; tu empurraste tua filha para a sua perda, porque lhe deste uma educação perniciosa e fatal. Mulher, tu foste má esposa; mulher, tu foste mãe desamorosa; tu foste parenta ruim: recebe portanto o merecido castigo. O teu vício foi o luxo; fica pois miserável: a tua paixão foi a vaidade; fidalga improvisada! Fica abaixo da plebe!... Hortênsia – Oh! piedade! Compaixão!... Anastácio – Olhe que não sou eu quem lho digo; é a sua consciência que, sem dúvida, lho está dizendo. Hortênsia – Tem razão, pragueje contra mim; mas nem por isso desconheça que a nossa infelicidade é cruel e atroz. Anastácio – Pelo contrário, eu a considero muito proveitosa, e útil. Hortênsia – O senhor zomba dos seus parentes no infortúnio: é um homem sem generosidade, um homem mau! Anastácio – Acima dos meus parentes está a nação que pode colher benéficos resultados da lição que oferece a sua desgraça. A sociedade acha-se corrompida pelo luxo e pela vaidade, e um quadro vivo das conseqüências desastrosas dessas duas paixões talvez lhe seja de prudente aviso. Em Maurício verá o homem CENA VIII Anastácio, ao fundo. O comendador Pereira. Pereira – Chego deitando a alma pela boca...não importa; bato,ninguém aparece; grito, ninguém me responde: eis o que importa muito. Então certos são touros! É uma indignidade e uma infâmia! O homem está perdido, deve os cabelos da cabeça, não tem onde caia morto, e os meus três contos de réis foram devorados! Deixaram-me sem mulher e sem dinheiro! Ainda se eu me casasse com a moça, sofreria com paciência o prejuízo; mas enquanto o pai rebentava financeiramente, a filha batia as asas amorosas, e ambos me pregavam dois calotes desastrados; nada, ao menos quero os meus três contos de réis...isto é uma patifaria, este homem é um... Anastácio – Acabe! Pereira – É um...sim...um...um infeliz! Anastácio – E o senhor que é? Pereira – Eu?...eu...sou um comendador... Anastácio – Não! É somente um miserável! Pereira – Senhor Anastácio...Anastácio...Anastácio não sei de quê... Anastácio – Aquele que durante anos foi recebido no seio de uma família honesta, e por ela tratado como um amigo; que jantou cem vezes à sua mesa, que foi objeto de atenções e cuidados penhoradores; que gozou de sua confiança inteira; que mereceu, enfim, ser considerado digno de receber em casamento uma jovem cheia de encantos e virtudes, o anjo querido de seus pais,e que no momento em que essa família cai em desgraça, vem insulta-la, lançar-lhe em rosto a sua miséria, pelo receio vil e mesquinho de perder três contos de réis, é...oh! não é um malvado, não; não é um tigre; é menos do que isso, é um homem vil e abjeto!...é um réptil asqueroso, em que nem mesmo se pisa sem repugnância: não tem coração, não tem alma, não tem... não tem ao menos dignidade fingida para revoltar-se, quando ouve as injúrias que lhe estou atirando ao rosto! Pereira – Tudo isso é bom de se dizer; mas três contos de réis é dinheiro! E se ao menos... Anastácio – A sua letra! Pereira – Ei-la aqui; mas que pretende fazer?... Anastácio (Tira a carteira e dá dinheiro) – Rasgue-a! que não toque nas minhas mãos um papel que passou pelas suas. (Pereira rasga a letra). Dou-lhe minha palavra de honra, que a sua alma vale este trapo que piso com os meus pés! Pereira – Sim...porém a emoção...a fadiga...o calor...com licença, um copo d’água...(Bebe) Ah! Sinto-me um pouco melhor. CENA IX Anastácio, Pereira, Maurício e Hortênsia. Hortênsia – Meu mano, Maurício imitou-me; rezou também. Maurício – Senhor Comendador... Pereira – Meu caro amigo...minha senhora... Hortênsia – Ainda bem, senhor comendador, que Vossa Excelência não pertence ao número daqueles que esquecem os amigos na adversidade. Pereira – Oh! essa é boa! Isso não está no meu caráter. Anastácio – Mas sempre é bom que saibam o motivo que trouxe aqui o senhor comendador. Pereira – Não é preciso. (A Anastácio) Por quem é...poupe-me... Anastácio – Senhor comendador, o baile de máscaras foi ontem. Pereira – Sinto-me de novo incomodado...que tonteiras diabólicas...mais um copo de água...(deita água no copo). Maurício – Não beba! Não beba!... Pereira – Então por quê?... Maurício – Essa água... Pereira – Acabe...esta água...que tem esta água? Maurício – Oh! eu tive a idéia infernal de suicidar-me! Hortênsia – Maurício! Maurício – Essa água está envenenada!... Pereira (Deixando cair o copo) – Misericórdia! Eu já bebi! Hortênsia – Senhor comendador... Pereira – Minha senhora, seu marido suicidou-me! Maurício – Isto é horrível! Pereira – Horribilíssimo! Já sinto dores pela barriga...Oh! um médico! Chamem um médico! Eu quero um contra-veneno. Diga-me depressa: qual foi a substância assassina? Maurício – Arsênico... Pereira – Arsênico! Estou morto: pois se eu já estou reconhecendo todos os sintomas do arsênico! Um médico! E ninguém me acode! Vou eu mesmo...um médico! Um médico! (Vai-se) CENA X Anastácio, Maurício e Hortênsia. Maurício – Que fatalidade! Anastácio – Não se assustem, a água que ele bebeu é inocente; eu destruí os preparativos para o último ato de loucura de meu irmão. Maurício – Ainda bem! Anastácio – E não te envergonhas, Maurício, do atentado que ias cometer contra Deus e a sociedade? Nem te lembrou a esposa? Hortênsia – Ingrato! Anastácio – Nem a filha... Maurício – Minha pobre Leonina! Se eu a tivesse junto de mim resistiria com mais coragem ao golpe tremendo da fortuna. Anastácio – E nada sabes ainda a respeito de Leonina? Maurício – Ignoro o principal. Sei que essa indigna Dona Fabiana e Frederico, seu infame cúmplice, estavam a ponto de realizar um plano de antemão forjado, raptando minha filha, quando apareceram dois máscaras que arrancaram a vítima de suas garras; mas depois eles por sua vez me roubaram Leonina. Eis tudo quanto pude descobrir; e além disto, nada...nada mais! Anastácio – Maurício, tu desprezaste pelos falsos os teus verdadeiros amigos, e eles se vingaram de ti, salvando tua filha. Hortênsia – Onde está minha filha? Maurício – Anastácio! Minha filha...onde está minha filha... Anastácio – Junto de sua tia...da mulher de Felisberto... Maurício – Ah! Que felicidade tão grande! E quem a salvou?... Anastácio – Olha!... CENA XI Os precedentes, Leonina e Henrique. Leonina (Correndo a abraçá-los) – Meu pai!...mãe!... Hortênsia – Minha filha! Maurício – Leonina!... Anastácio (À parte) – Pior está essa...penso que já vou ficando com os olhos molhados...pois se eu sou um chorão!... Maurício – E o teu salvador...onde está ele?... (Vendo-o) Henrique! Hortênsia – Meu sobrinho...nos meus braços. (Abraça-o) Anastácio – Sem a menos dúvida, a desgraça dá juízo aos parvos...
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