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Guias e Dicas
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CAIO MARIO- Instituições de direito Civil vol III, Notas de estudo de Direito Civil

Dos contratos em geral. Formação, requisitos, espécies de contratos.

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Compartilhado em 14/02/2010

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Baixe CAIO MARIO- Instituições de direito Civil vol III e outras Notas de estudo em PDF para Direito Civil, somente na Docsity! CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA Professor Emérito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Minas Gerais INSTITUIÇÕES DE DIREITO CIVIL VOLUME III CONTRATOS DECLARAÇÃO UNILATERAL DE VONTADE RESPONSABILIDADE CIVIL 1ª Edição Eletrônica De acordo com o Código Civil de 2002 Revista e atualizada por Regis Fichtner Rio de Janeiro 2003 PREFÁCIO Às vésperas de completar 90 anos, tenho a alegria de entregar a uma equipe de destacados juristas os "manuscritos" que desenvolvi desde a versão original do Projeto do Código Civil de 1975, aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984 e pelo Senado Federal em 1998. A exemplo dos mais modernos compêndios de direito, com o apoio daqueles que escolhi pela competência e dedicação ao Direito Civil, sinto-me realizado ao ver prosseguir no tempo as minhas idéias, mantidas as diretrizes que impus às Instituições. Retomo, nesse momento, algumas reflexões, pretendendo que as mesmas sejam incorporadas à obra, como testemunho de uma concepção abrangente e consciente das mudanças irreversíveis: a História, também no campo do Direito, jamais se repete. Considerando que inexiste atividade que não seja "juridicamente qualificada", perpetua-se a palavra de DEL VECCHIO, grande jusfilósofo por mim tantas vezes invocado, ao assinalar que "todo Direito, é, em verdade, um complexo sistema de valores" e, mais especificamente, ao assegurar que o sistema jurídico vigente representa uma conciliação entre "os valores da ordem e os valores da liberdade".1 Em meus recentes estudos sobre "alguns aspectos da evolução do Direito Civil"2 alertei os estudiosos do perigo em se desprezar os motivos de ordem global que legitimam o direito positivo, e da importância de se ter atenção às "necessidades sociais" a que, já há muito, fez referência Jean DABIN.3 Eu fugiria da realidade social se permanecesse no plano puramente ideal dos conceitos abstratos, ou se abandonasse o solo concreto "do que é", e volteasse pelas áreas exclusivas do "dever ser". Labutando nesta área por mais de sessenta anos, lutando no dia-a-dia das competições e dos conflitos humanos, reafirmo minhas convicções no sentido de que o Direito deve ser encarado no concretismo instrumental que realiza, ou tenta realizar, o objetivo contido na expressão multimilenar de Ulpiano, isto é, como o veículo apto a permitir que se dê a cada um aquilo que lhe deve caber - suum cuique tribuere. E se é verdade que viceja na sociedade a tal ponto que ubi societas ibi ius, também é certo que não se pode abstraí-lo da sociedade onde floresce: ubi ius, ibi societas. Visualizando o Direito como norma de conduta, como regra de comportamento, e esquivando-me dos excessos do positivismo jurídico, sempre conclamei o estudioso a buscar conciliá-lo com as exigências da realidade, equilibrando-a Naquela mesma oportunidade, adverti no sentido de que a nova Constituição não tem o efeito de substituir, com um só gesto, toda a ordem jurídica existente. "O passado vive no presente e no futuro, seja no efeito das situações jurídicas já consolidadas, seja em razão de se elaborar preceituação nova que, pela sua natureza ou pela necessidade de complementação, reclama instrumentalização legislativa".12 Cabe, portanto, ao intérprete evidenciar a subordinação da norma de direito positivo a um conjunto de disposições com maior grau de generalização, isto é, a princípios e valores dos quais não pode ou não deve mais ser dissociada. Destaco, a este propósito, o trabalho de Maria Celina BODIN DE MORAES que assume uma concepção moderna do Direito Civil.13 Analisando a evolução do Direito Civil após a Carta Magna de 1988 a autora afirma: "Afastou-se do campo do Direito Civil a defesa da posição do indivíduo frente ao Estado, hoje matéria constitucional". Ao traçar o novo perfil do Direito Privado e a tendência voltada à "publicização" - a conviver, simultaneamente, com uma certa "privatização do Direito Público" - a ilustre civilista defende a superação da clássica dicotomia "Direito Público-Direito Privado" e conclama a que se construa uma "unidade hierarquicamente sistematizada do ordenamento jurídico". Esta unidade parte do pressuposto de que "os valores propugnados pela Constituição estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, resultando, em conseqüência, inaceitável a rígida contraposição".14 A autora ressalta a supremacia axiológica da Constituição "que passou a se constituir como centro de integração do sistema jurídico de direito privado",15 abrindo-se então o caminho para a formulação de um "Direito Civil Constitucional", hoje definitivamente reconhecido, na Doutrina e nos Tribunais. Reporto-me, especialmente, aos estudos de Pietro PERLINGIERI, ao afirmar que o Código Civil perdeu a centralidade de outrora e que "o papel unificador do sistema, tanto em seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional".16 Diante da primazia da Constituição Federal, os "direitos fundamentais" passaram a ser dotados da mesma força cogente nas relações públicas e nas relações privadas e não se confundem com outros direitos assegurados ou protegidos. Em minha obra sempre salientei o papel exercido pelos "princípios gerais de direito", a que se refere expressamente o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil como fonte subsidiária de direito. Embora de difícil utilização, os princípios impõem aos intérpretes o manuseio de instrumentos mais abstratos e complexos e requerem um trato com idéias de maior teor cultural do que os preceitos singelos de aplicação quotidiana.17 Devo reconhecer que, na atualidade, os princípios constitucionais se sobrepõem à posição anteriormente ocupada pelos princípios gerais de direito. Na Doutrina brasileira, cabe destacar, acerca dessa evolução, os estudos de Paulo BONAVIDES sobre os "princípios gerais de direito" e os "princípios constitucionais".18 Depois de longa análise doutrinária e evolutiva, o ilustre constitucionalista reafirma a normatividade dos princípios.19 Reporta-se a Vezio CRISAFULLI20 ao asseverar que "um princípio, seja ele expresso numa formulação legislativa ou, ao contrário, implícito ou latente num ordenamento, constitui norma, aplicável como regra de determinados comportamentos públicos ou privados". BONAVIDES identifica duas fases na constitucionalização dos princípios: a fase programática e a fase não programática, de concepção objetiva.21 "Nesta última, a normatividade constitucional dos princípios ocupa um espaço onde releva de imediato a sua dimensão objetiva e concretizadora, a positividade de sua aplicação direta e imediata." Conclui o conceituado autor que "desde a constitucionalização dos princípios, fundamento de toda a revolução ‘principial’, os princípios constitucionais outra coisa não representam senão os princípios gerais de direito, ao darem estes o passo decisivo de sua peregrinação normativa, que, inaugurada nos Códigos, acaba nas Constituições".22 No âmbito do debate que envolve a constitucionalização do Direito Civil, mencione-se ainda o § 1º do art. 5º do Texto Constitucional, que declara que as normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais têm aplicação imediata. Considero, no entanto, que não obstante preceito tão enfaticamente estabelecido, ainda assim, algumas daquelas normas exigem a elaboração de instrumentos adequados à sua fiel efetivação.23 Rememorando meus ensinamentos sobre "direito subjetivo" e a centralidade da "facultas agendi" ressalvadas, é claro, as tantas controvérsias e divergências que envolvem o tema, destaco na conceituação do instituto o poder de ação, posto à disposição de seu titular e que não dependerá do exercício por parte deste último. Por essa razão, o indivíduo capaz e conhecedor do seu direito poderá conservar-se inerte, sem realizar o poder da vontade e, ainda assim, ser portador de tal poder. Ainda a respeito do direito subjetivo, sempre ressaltei a presença do fator teleológico, ou seja, "o direito subjetivo como faculdade de querer, porém dirigida a determinado fim. O poder de ação abstrato é incompleto, desfigurado. Corporifica-se no instante em que o elemento volitivo encontra uma finalidade prática de atuação. Esta finalidade é o interesse de agir".24 Mais uma vez refiro-me aos estudos de Maria Celina BODIN DE MORAES, que, apoiando-se em Michele GIORGIANNI, esclarece: a força do direito subjetivo não é a do titular do direito e sim "a força do ordenamento jurídico que o sujeito pode usar em defesa de seus interesses", concluindo que "esta força existe somente quando o interesse é juridicamente reconhecido e protegido"(...) No âmbito dos direitos subjetivos, destaca-se o princípio constitucional da tutela da dignidade humana, como princípio ético-jurídico capaz de atribuir unidade valorativa e sistemática ao Direito Civil, ao contemplar espaços de liberdade no respeito à solidariedade social. É neste contexto que Maria Celina BODIN DE MORAES insere a tarefa do intérprete, chamado a proceder à ponderação, em cada caso, entre liberdade e solidariedade. Esta ponderação é essencial, já que, do contrário, os valores da liberdade e da solidariedade se excluiriam reciprocamente, "todavia, quando ponderados, seus conteúdos se tornam complementares: regulamenta-se a liberdade em prol da solidariedade social, isto é, da relação de cada um, com o interesse geral, o que, reduzindo a desigualdade, possibilita o livre desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da comunidade".25 Nessas minhas reflexões não poderia me omitir quanto às propostas de João de Matos ANTUNES VARELA, as quais ajudaram a consolidar minhas convicções, já amplamente conhecidas, no sentido da descodificação do Direito. Numa análise histórica, o insigne civilista português demonstra que o Código Civil se manteve na condição de "diploma básico de toda a ordem jurídica", atribuindo ao Direito Civil a definição dos direitos fundamentais do indivíduo. Desde os primórdios das codificações nunca se conseguiu, no entanto, estancar a atividade das assembléias legislativas no que concerne à "legislação especial", a qual se formava por preceitos que "constituíam meros corolários da disciplina básica dos atos jurídicos e procuravam, deliberadamente, respeitar os princípios fundamentais definidos no Código Civil". O mencionado autor apresenta efetivos indicadores para o movimento de descodificação: o Código Civil deixou de constituir-se o centro geométrico da ordem jurídica, já que tal papel foi transferido para a Constituição; o aumento em quantidade e qualidade da legislação especial; a nova legislação especial passou a caracterizar-se por uma significativa alteração no quadro dos seus destinatários: "As leis deixaram em grande parte de constituir verdadeiras normas gerais para constituírem ‘estatutos privilegiados’ de certas classes profissionais ou de determinados grupos políticos".26 Diante do Código Civil de 2002, espero que minha obra, já agora atualizada, possa prosseguir no tempo orientando os operadores do Direito, os juristas e os acadêmicos do novo milênio, cabendo-lhes, sob a perspectiva da globalização das instituições, o desafio de conciliar critérios de interpretação que resultem na prevalência do bom senso, da criatividade e, por vezes, de muita imaginação. Caio Mário da Silva Pereira INTRODUÇÃO Depois de formulada a noção de direito e deduzida a teoria geral das normas passamos a cogitar dos elementos fundamentais da relação jurídica - o sujeito, o objeto, as forças jurígenas. Desenvolvemos o conceito do negócio jurídico, nos seus vários aspectos. E encerramos o vol. I, destas Instituições, com o estudo da prescrição e da decadência. Formulamos, no vol. II, a dogmática da Obrigação, sua origem, sua classificação, suas modalidades, sua extinção. Tratamos de sua inexecução, absoluta e relativa. Encerramo-lo com a doutrina de sua mutação, no seu aspecto mais freqüente e tradicional da cessão dos créditos, como no menos corriqueiro e menos desenvolvido da assunção de débito. No presente volume, empreendemos o estudo das Fontes das Obrigações. Já dissemos (nº 130, vol. II) da infindável controvérsia que tem dividido os civilistas, desde os romanos. Gaius, no Comentário III, nº 88, das Institutiones, ensina que a obrigação ora nasce do contrato, ora do delito ("vel ex contractu nascitur vel ex delicto"). O mesmo Gaius, em outra passagem a que se reporta o Digesto, liv. XLIX, tít. VII, fr. 1, pr., é mais minucioso e mais extenso, admitindo outras causas menos precisas: "Obligationes aut ex contractu nascuntur, aut ex malefitio, aut proprio quodam iure ex variis causarum figuris." Embora a teoria consagrada nas Institutas de Justiniano, como nas gaianas, tenha sobrevivido na doutrinação moderna, os escritores de nosso tempo travam-se de razões para afirmar a pluralidade das fontes (contrato, quase- contrato, delito, quase-delito, vontade unilateral, enriquecimento indevido, e lei), ou para sustentar-lhes a unidade (lei). Dentro desta discussão sem fim, e deste debate sem quartel, não nos arreceamos de trazer a nossa palavra, com a fixação de conceitos esclarecedores: obrigações há, com mais precisão denominadas deveres fundadas exclusivamente na lei (ser eleitor, pagar tributos, alimentar os filhos), as quais se não configuram como obligationes em sentido técnico, e não são por isto mesmo objeto de nossas presentes cogitações. A obrigação propriamente dita gera-se de um paralelogramo de forças, cujos componentes são o fato humano e a lei. É certo que eles estão presentes na gênese de qualquer relação jurídica, porque é a vontade do Estado que amolda os comportamentos individuais, permitindo que o fato do homem dê origem a uma "prestação economicamente apreciável". Fato humano e lei acham-se, então, presentes em qualquer obligatio: nas de cunho convencional, como nas de atureza extracontratual. Mas não participam em dosagem idêntica. Ao revés, ora o ordenamento jurídico atua, deixando mais larga margem de participação à vontade humana, e desenha o zoneamento das obrigações nascidas do contrato ou da declaração unilateral de vontade; ora procede na criação de obrigações em cuja formação avulta a vontade da lei. Neste vol. III, deduziremos as Fontes de Obrigações, inaugurando-o com a teoria geral dos contratos, de onde passaremos às várias espécies destes. Examinaremos as figuras tradicionais, acrescentando-lhes as que ainda não encontraram guarida em nosso direito codificado (contrato preliminar, venda com reserva de domínio, contratos bancários, corretagem). No estudo da declaração unilateral, de vontade, dedicamos especial atenção aos títulos de crédito (nominativos, ao portador, à ordem). E concluiremos este tomo com as obrigações oriundas do fato humano não-volitivo, com fundamento na culpa, ou fazendo abstração desta (responsabilidade sem culpa). Mas não perderemos de vista que se tem cogitado presentemente, da reforma dos Códigos brasileiros. E, como nos coube a honra de elaborar um Anteprojeto de Código de Obrigações (Parte Geral e Contratos), aqui consignamos algo do que no projetamento pretendíamos introduzir. Neste vol. III, de que ora vem a público mais uma edição, não perdemos de vista o Projeto de Código de Obrigações, enviado ao Congresso Nacional em 1965 e lamentavelmente retirado em 1967. Na sua elaboração, que teve como ponto de partida o nosso Anteprojeto, apresentado ao Ministério da Justiça em 1962 (v. Projeto de Código de Obrigações, Exposição de Motivos, pág. VII, Edição Imprensa Nacional, Rio, 1965), como na sua revisão (pela comissão composta de Orosimbo Nonato, Presidente; Caio Mário da Silva Pereira, relator-geral, e membros Teófilo Azeredo Santos, Sylvio Marcondes, Orlando Gomes e Nehemias Gueiros) estavam presentes as mais modernas concepções, bem como as mais arrojadas soluções apontadas pela ciência civilista contemporânea. Acrescido de novos capítulos e parágrafos, aludimos às inovações sugeridas pelo Projeto, na convicção de que a reforma do Código Civil há de vir, com a atualização de nosso direito positivo, que se apresentará divorciado da evolução jurídica, superado pelas contribuições científicas, fragmentado por uma incontrolável legislação extravagante. Cumpre recolocar as soluções técnicas em termos exatos e em obediência ao espírito de sistema. Quantos tenham sensibilidade para a hora que vive este País e para os anseios de renovação que eclodem de todos os quadrantes, percebem que é azado o momento de se empreender a imprescindível "reformulação de nossa ordem jurídica", por nós preconizada no discurso pronunciado no Instituto dos Advogados Brasileiros em 1962, quando nos for outorgada Medalha Teixeira de Freitas e desde então objeto de vivas e intermináveis discussões (cf. nosso livro Reformulação da Ordem Jurídica e Outros Temas, Ed. Forense, 1980). Não se pode perder tal ensejo, sob pena de condenação irrecorrível, pronunciada pelas gerações futuras. Aqui deixamos, mais uma vez, o nosso apelo e a nossa profissão de fé. Alguém há de manter aceso o fogo sagrado das idéias reformistas. E se à geração dos juristas de hoje faltar a coragem necessária, os que vierem depois de nós, estudantes de agora, hão de receber esta bandeira e fazer dela um objetivo permanente. Rio de Janeiro, junho de 1980 Muitas modificações têm sido introduzidas na vida contratual brasileira, em torno das Fontes das Obrigações (Contratos, Declaração Unilateral de Vontade, Responsabilidade Civil). Eu mesmo tenho trazido a minha modesta colaboração, em trabalhos esparsos, conferências e estudos. Escrevi um livro versando a Responsabilidade Civil, acolhido generosamente pela comunidade jurídica. Ao dar a público esta nova edição, aproveitei o ensejo para incorporar-lhe novas achegas com referência à reforma constitucional, legislação especial sobre Contratos, Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Achei de bom alvitre e oportuno aditar-lhe um "Anexo" em que trato sinteticamente de novos tipos de contratos, compreendidos sinopticamente sob a epígrafe Nova Tipologia Contratual no Direito Civil Brasileiro, que para aqui transponho de publicações anteriores. Para maior facilidade de localização, e para que se não altere a numeração seqüencial dos volumes subseqüentes, distribuí a matéria nos números 283-A a 283-H. Rio de Janeiro, 1994 a estes desiderata. Ampliada assim a noção, abraça a palavra o casamento, embora seja necessário desde logo ressalvar que a aproximação não traduz identidade essencial, como veremos (nº 374, vol. V) no direito de família; abrange o contrato de direito público, que prolifera nas atividades da Administração Pública, onde há coincidência de alguns extremos e diversificação quanto a outros;2 e vai ainda abranger toda espécie de convenção, embora para alguns esta expressão melhor se aplique aos atos plurilaterais criadores, modificativos ou extintivos de obrigações preexistentes.3 Não será, no entanto, má linguagem nem mau direito referir-se alguém a contrato denominando-o convenção, ou vice-versa,4 sinonímia que o nosso legislador do Código de 2002 consagrou, ao aludir a "obrigações convencionais" no art. 221, compreendendo particularmente os contratos. Se uma visão atual já indica a variação do conceito, uma análise em pesquisa acusa enorme diferenciação. O Direito Romano estruturou o contrato, e todos os romanistas a ele se reportam sobre a base de um acordo de vontades a respeito de um mesmo ponto. O confronto com o direito moderno pode não acusar, ao primeiro súbito, maior disparidade. Uma aproximação mais chegada e uma perquirição mais aguda apontam, entretanto, sensível diferença, que vai articular-se na noção mesma do ato, naquele sistema jurídico. Ali, como nas sociedades antigas, a convenção por si só não tem o poder criador de obrigações.5 Entendia o romano não ser possível contrato sem a existência de elemento material, uma exteriorização de forma, fundamental na gênese da própria obligatio. Primitivamente, eram as categorias de contratos verbis, re ou litteris, conforme o elemento formal se ostentasse por palavras sacramentais, ou pela efetiva entrega do objeto, ou pela inscrição no codex. Somente mais tarde, com a atribuição de ação a quatro pactos de utilização freqüente (venda, locação, mandato e sociedade), surgiu a categoria dos contratos que se celebravam solo consensu, isto é, pelo acordo das vontades. Já ao seu tempo, Gaius podia noticiar: "Harum autem quattuor genera sunt: aut enim re contrahitur obligatio, aut verbis, aut litteris, aut consensu.6 Somente aqueles quatro contratos consensuais eram reconhecidos como tais. Nos demais, prevalecia sobre a vontade a materialidade de sua declaração, que haveria de obedecer rigidamente ao ritual consagrado: a inscrição material no livro do credor (contratos litteris), a traditio efetiva da coisa (contratos re), a troca de expressões estritamente obrigatórias (contratos verbis) de que a policitatio era o mais freqüente exemplo.7 Uma vez celebrado, com observância estrita ao ritual, o contrato gerava obrigações, vinculava as partes e provia o credor da actio, fator da mais lídima essencialidade, sem o qual não haveria direito, já que este era nada, se não fosse munido da faculdade de reclamação em juízo. Ao lado do contractum, estruturou o Direito Romano outra figura que foi o pactum. Este, porém, não permitia a rem persequendi in iudicio, não conferia às partes uma ação, mas gerava tão-somente exceptiones, e, portanto, não era dotado de força cogente: "Igitur nuda pactio obligationem non parit sed parit exceptionem."8 Contrato e pacto eram compreendidos na expressão genérica conventio.9 O que os distinguia era a denominação que individuava os contratos (comodato, mútuo, compra e venda), era a exteriorização material da forma (com exceção dos quatro consensuais: compra e venda, locação, mandato e sociedade), e era finalmente a sanção, a actio que os acompanhava; ao passo que os pacta não tinham nome especial, não revestiam forma predeterminada, e não permitiam à parte a invocação de uma ação. Todos, porém, genericamente batizados de conventiones, expressão que revive em Pothier, como gênero,10 do qual o contrato é uma espécie, como ainda no nosso Teixeira de Freitas (art. 1.830 da Consolidação). Estas distinções perderam a sua razão de ser no direito moderno, especialmente depois da obra de Savigny,11 que afasta a distinção entre pacto e contrato, aproximando-os em sinonímia que o direito moderno traz quase perfeita. E dizemo-la quase perfeita, porque a terminologia jurídica ainda se compraz em reservar a expressão pacto para a designação de alguns contratos acessórios (e. g.: pacto adjeto à nota promissória, pacto comissório na compra e venda, pacto nupcial). Não obstante tal especificidade, todos eles poderão, sem quebra da boa linguagem, denominar-se contratos, como ainda não ofenderia a boa técnica apelidar de pacto qualquer contrato típico. Toda convenção é modernamente dotada de força vinculante e mune o credor de ação para perseguir em juízo a prestação em espécie ou em equivalente.12 O que, mais do que a forma e a actio, constitui traço distintivo mais puro entre o contrato romano e o moderno é a relação jurídica criada. No Direito Romano, dado o caráter personalíssimo da obligatio, a ligação se estabelecia entre as pessoas dos contratantes, prendendo-os (nexum) e sujeitando os seus próprios corpos. Só muito mais tarde foi possível (v. nº 127, supra, vol. II) desbordar a execução que incidia sobre a pessoa do devedor para os seus bens (pecuniae creditae bona debitoris, non corpus obnoxium esse), porém, mesmo assim, ainda sobreviveu, no sistema, o sentido personalíssimo. 185. Função social do contrato. Princípio de sua obrigatoriedade. Princípio do consensualismo Não obstante o rigorismo formal, então vigente, inexistiam embaraços ou dificuldades à celebração de contratos em Roma. Aquela sociedade, adiantada e possuidora de um alto gabarito de civilização jurídica, vivia já no mundo do contrato. Vencera, mesmo antes do período clássico, a concepção da apropriação violenta de utilidades. Apurara-se. E por isto mesmo pudera constituir em sua pureza a estrutura de tão numerosos contratos, que ainda hoje a complexidade da vida econômica ocidental adota os seus arquétipos com poucas alterações. Com o passar do tempo, entretanto, e com o desenvolvimento das atividades sociais, a função do contrato ampliou-se. Generalizou-se. Qualquer indivíduo - sem distinção de classe, de padrão econômico, de grau de instrução - contrata. O mundo moderno é o mundo do contrato. E a vida moderna o é também, e em tão alta escala que, se se fizesse abstração por um momento do fenômeno contratual na civilização de nosso tempo, a conseqüência seria a estagnação da vida social. O homo economicus estancaria as suas atividades. É o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários. Mesmo nos regimes socialistas não foi possível abolir o contrato. Na URSS, onde se distinguiam os dois setores, público e privado, da economia, os contratos sobreviviam. Neste, a função social do contrato é aproximadamente igual à que o acompanha nos regimes capitalistas. No setor da economia pública, não obstante pertencerem ao Estado os órgãos de produção, adotava-se o contrato como fator psicológico e moral. Quando a mina de carvão contratava com a usina siderúrgica, e esta com a fábrica de vagões, todas sabiam que tinham de cumprir os itens impostos pela lei que aprovara o plano qüinqüenal. Mas assim mesmo contratavam, como que para se sentirem diretamente vinculadas, empenhando sua palavra no sentido da realização daqueles objetivos.13 Mas não é só este o aspecto a considerar. Paralelamente à função econômica, aponta-se no contrato uma outra civilizadora em si, e educativa. Aproxima ele os homens e abate as diferenças. Enquanto o indivíduo admitiu a possibilidade de obter o necessário pela violência, não pôde apurar o senso ético, que somente veio a ganhar maior amplitude quando o contrato convenceu das excelências de observar normas de comportamento na consecução do desejado. Dois indivíduos que contratam, mesmo que se não estimem, respeitam-se. E enquanto as cláusulas são guardadas, vivem em harmonia satisfatória, ainda que pessoalmente se não conheçam. Num outro sentido vinga a função social do contrato: na afirmação de maior individualidade humana.14 Aquele que contrata projeta na avença algo de sua personalidade. O contratante tem a consciência do seu direito e do direito como concepção abstrata. Por isso, realiza dentro das suas relações privadas um pouco da ordem jurídica total. Como fonte criadora de direitos, o contrato assemelha-se à lei, embora de âmbito mais restrito. Os que contratam assumem, por momento, toda a força jurígena social. Percebendo o poder obrigante do contrato, o contraente sente em si o impulso gerador da norma de comportamento social, e efetiva este impulso. O princípio da força obrigatória do contrato contém ínsita uma idéia que reflete o máximo de subjetivismo que a ordem legal oferece: a palavra individual, enunciada na conformidade da lei, encerra uma centelha de criação, tão forte e tão profunda, que não comporta retratação, e tão imperiosa que, depois de adquirir vida, nem o Estado mesmo, a não ser excepcionalmente, pode intervir, com o propósito de mudar o curso de seus efeitos. Esta idéia, de tão sedutora, foi levada ao extremo, quando Siegel, no fim do século XIX, sustentou que a vontade individual, independentemente do contrato, ou ao lado deste, constitui fonte de obrigações. A vontade livre liga-se a si mesma, e gera a obrigação sem a intervenção de uma outra vontade.18 Não é posto em dúvida o princípio da obrigatoriedade, de aceitação universal, muito embora se lhe ponham obstáculos, em nome da ordem pública (v. neste nº>], infra). Não chegam estes a infirmá-lo. Onde, porém, campeia discussão é na busca do fundamento da obrigatoriedade. Para a escola jusnaturalista, assenta no pacto social (Grotius, Puffendorf), com a hipótese, hoje desacreditada, de que teria havido, primitivamente, uma convenção tácita em virtude da qual os indivíduos teriam transigido com seus apetites egoístas, e determinado o respeito pelos compromissos livremente assumidos. A concepção utilitarista de Jeremy Bentham aponta-lhe como suporte a conveniência de cada um, que no respeito ao interesse alheio enxerga o resguardo dos seus próprios. Giorgi, assente nas teses de Vico, Fries, Belime, Tissot, aceita-lhe para supedâneo a decorrência da lei natural, que leva o homem a dizer a verdade, como uma imposição de suas tendências interiores. A Escola Positivista quase faz abstração do problema, sustentando simplesmente o princípio da obrigatoriedade no mandamento da lei, e dizendo que o contrato obriga porque assim a lei dispõe, o que não é explicar nem justificar, pois o de que se cogita é precisamente de retroceder ao porquê, no momento em que se afirma o princípio. Messineo, seguindo o ministério de Kant e Boistel, defende a obrigatoriedade como consectário da liberdade de contratar, armando esta equação: o contrato obriga porque as partes livremente o aceitam. Ruggiero e Maroi assentam a regra na unidade da vontade contratual. Parece-nos, ante tantas manifestações, e mais numerosas ainda seriam se mais longe levássemos a pesquisa, que o conceito da superlegalidade, imprimindo um mais puro conteúdo ético à norma jurídica, vai fundamentar a obrigatoriedade do contrato. Aquele mesmo conteúdo de moralidade que a anima, transposto para o campo específico do direito obrigacional, sustenta o princípio em virtude do qual o ordenamento positivo estatui que a avença estipulada regularmente tem força obrigatória para os que a celebram.19 Princípio consensualista - O Direito Romano considerava a necessidade de uma certa materialidade, sem a qual não concebia sua existência jurídica. Quatro, segundo Gaius, já invocado, eram as modalidades contratuais: re, litteris, verbis, consensu. Estes últimos, que somente tarde apareceram, limitavam-se a quatro tipos (venda, locação, mandato, sociedade). Como súmula da matéria, pode-se dizer que naquele direito imperava a regra geral, que consistia na adoção de rígido formalismo, só excepcionalmente desprezado naquelas avenças, cuja flexibilidade fora reclamada pelas imperiosas necessidades mercantis, que predominaram em uma sociedade marcadamente comerciante. A ação animava o direito. Os contratos concluídos formalmente eram dela dotados. E somente foi possível atribuir força obrigatória aos contratos consensuais no momento em que aos pactos que os precederam foi ligada a actio bonae fidei. Em razão das imposições mesmas do comércio, foi aquele sistema transigindo com suas anteriores exigências, e pouco a pouco alargando a atuação da idéia consensualista, seja quando o pretor concedia a actio in factum a certos pactos, seja quando se alargava a incidência da actio praescriptis verbis. Aquele rigor primitivo, que atravessou a república e penetrou o império, com o qual os jurisconsultos das épocas pré-clássicas trataram o contrato, amenizou-se, podendo-se quase admitir que no Baixo Império a proposição se invertera. O romano esteve no limiar da aceitação da regra consensualista, quase ao ponto de libertar-se do formalismo, quase em condições de declarar que o contrato se formava solo consensu. E é a este momento que se costuma ligar uma definição do contrato, próxima da idéia moderna: duorum pluriumve in idem placitum consensus. Com a invasão dos bárbaros, que trouxeram da Germânia a influência de seu direito, houve um retrocesso. Simbolistas, materializavam, à sua vez, o contrato em manifestações concretas externas, rejeitando a validade dos atos puramente abstratos. Durante a Idade Média, o direito do contrato sofreu longa e funda transformação. Partindo-se da necessidade de que fossem observadas as formalidades exigidas pelo Direito Romano, era corrente entre os escribas que reduziam a escrito as convenções, a pedido dos interessados, consignarem que todos os rituais haviam sido cumpridos, mesmo quando não o tivessem sido. E de tal forma generalizou-se a praxe, que se passou a entender que a menção do fato valia mais do que o próprio fato, isto é, passou a ter mais valor a declaração de que as formalidades haviam sido observadas do que a verificação de sua prática efetiva. Note-se que não houve a dispensa direta da sacramentalidade, porém a sua abolição indireta. Muito embora não hajam os jurisconsultos costumeiros assumido a proclamação da dispensa do formalismo, este evidentemente sofreu rude golpe desde que se espraiou a convicção de que a simples menção de sua observância tinha mais força do que o formalismo em si. Ao lado disto, a imiscuição das práticas religiosas introduziu o costume de fazer o juramento acompanhar as convenções, como técnica de atribuir-lhes força. Abalou-se, portanto, o prestígio dos rituais do Direito Romano, desde que se acreditou no poder de uma declaração de vontade, enunciada sob a invocação da divindade. Por seu turno, os canonistas, imbuídos do espiritualismo cristão interpretavam as normas de Direito Romano animados de uma inspiração mais elevada. No tocante ao contrato, raciocinaram que o seu descumprimento era uma quebra de compromisso, equivalente à mentira; e como esta constituía peccatum, faltar ao obrigado atraía as penas eternas. Não podia ser, para os jurisconsultos canonistas, predominante a sacramentalidade clássica, mas sobretudo prevalecia o valor da palavra, o próprio consentimento. Estas duas correntes de pensamento, que não marchavam paralelas, mas se entrecruzavam num só rumo, veio a dar na afirmação do princípio consensualista. Quando, pois, no limiar da Idade Moderna, um jurista costumeiro, como Loysel, dizia que "os bois se prendem pelos chifres e os homens pela palavra", fazia na verdade, e a um só tempo, uma constatação e uma profissão de fé: testemunhava em favor da força jurígena da palavra em si mesma, e deitava uma regra, segundo a qual os contratos formavam-se, em princípio, solo consensu. Foi assim que os jurisconsultos do tempo (Pierre de La Fontaine, Beaumanoir) equipararam as convenções simples (convenances) aos contratos de Direito Romano.20 Ao se constituir o direito contratual moderno, já não encontrou obstáculo o princípio do consensualismo. Os sistemas de direito positivo consignaram a preeminência da regra segundo a qual o contrato se forma pelo consenso das partes. Retomou uma velha parêmia, pacta sunt servanda, não apenas para dizer que os contratos devem ser cumpridos (princípio da força obrigatória), mas para generalizar que qualquer ajuste, como expressão do acordo de vontade das partes, tem igual força cogente. O princípio do consensualismo predominou em todo o século XIX e avançou pelo século XX. Segundo ele, o contrato nasce do consenso puro dos interessados, uma vez que é a vontade a entidade geradora. Somente por exceção conservou algumas hipótese de contratos reais e formais, para cuja celebração exigiu a traditio da coisa e a observância de formalidades. Mais modernamente, contudo, sentiu o direito a imperiosa necessidade de ordenar certas regras de segurança, no propósito de garantir as partes contratantes, contra as facilidades que a aplicação demasiado ampla do princípio de consensualismo vinha difundindo. E engendrou então certas exigências materiais, que podem ser subordinadas ao tema do formalismo, as quais abalam a generalização exagerada do consensualismo.21 Assim é que se exige a elaboração de instrumento escrito para a venda de automóveis; exige inscrição no registro imobiliário, para que as promessas de compra e venda sejam dotadas de execução específica com eficácia real (art. 1.417 do Código), e no seu art. 39, II e IX-A, ao dispor que o fornecedor de produtos e serviços não pode recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e em conformidade com os usos e costumes, e proibindo a recusa à venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais. B - Em segundo lugar, a liberdade de contratar implica a escolha da pessoa com quem fazê-lo, bem como do tipo de negócio a efetuar. Não é, também, absoluto o poder de ação individual, porque às vezes a pessoa do outro contratante não é suscetível de opção, como nos casos de serviços públicos concedidos sob regime de monopólio e nos contratos submetidos ao Código do Consumidor. As exceções, que não infirmam a regra, deixam incólume o princípio da livre escolha. C - Em terceiro lugar, a liberdade de contratar espelha o poder de fixar o conteúdo do contrato, redigidas as suas cláusulas ao sabor do livre jogo das conveniências dos contratantes. De regra, estes lhe imprimem a modalidade peculiar ao seu negócio, e atribuem ao contrato redação própria, estipulando condições, fixando obrigações, determinando prestações etc. Aqui, é necessário ressaltar que a lei, mediante a normação discriminativa dos contratos nominados ou típicos, já oferece aos interessados a estrutura legal daquela espécie contratual. Adotando-a, as partes perfilham, como de sua própria redação, os dispositivos legais existentes, o que levou alguns escritores a considerar mera aparência esta faculdade, pelo fato da submissão aos padrões oficiais da figura negocial escolhida.22 É exato que isto ocorre, como é exato ainda que em certas eventualidades o contrato se celebra pela simples adesão de uma parte ao paradigma já redigido, conforme expressamente admitido pelos arts. 423 e 424 do Código, concluindo-se a avença pela simples atitude do interessado, traduzida como forma tácita de manifestação volitiva. Trataremos do contrato de adesão, pela sua importância, no nº 197. O princípio da liberdade de contratar ostenta-se, não obstante, na faculdade de não adotar aquelas normas-padrão ou aquele modelo pré-moldado. O Código admite expressamente essa liberdade, ao estatuir no seu art. 425 que é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais nele fixadas. No Direito Romano os contratos eram conhecidos por um nome (ex., compra e venda, emptio-venditio; mútuo, mutuum; sociedade, societas). Somente os assim identificados eram dotados de ação (actio) que permitia perseguir seu objeto em juízo. Mais tarde outros negócios contratuais foram reconhecidos, donde a classificação que atravessou os séculos, distinguindo os contratos nominados dos contratos inominados. Modernamente, tendo em vista que todo contrato é dotado de força obrigatória, os escritores passaram a considerar que não é a denominação (nomen iuris) que tem relevância, porém a tipicidade. Substitui a antiga classificação por esta outra - contratos típicos e contratos atípicos. Chamam-se típicos aqueles contratos cujas regras disciplinares são expostas e desenvolvidas nos Códigos e nas leis. São atípicos aqueles que envolvem novas relações jurídicas não especificadas no corpo dos provimentos legislativos, porém nascem criados pela imaginação ou gerados pelas necessidades econômicas. Quando celebram contrato típico, as partes não necessitam de descer a todas as minúcias, considerando-se que adotaram os princípios que o Código ou a lei estabelece para a respectiva figura. Quando formam contrato atípico, têm que minudenciar todos os direitos e obrigações que o compõem. Na interpretação destes últimos, o juiz terá de invocar, em suprimento do contexto, os princípios legais relativos ao contrato típico mais próximo, além daqueles que dizem respeitos aos contratos em geral. Estas noções, pacíficas em doutrina, converteu-as o Código em preceituação legal. O dispositivo, posto que consignando verdade apodítica, desdobra-se em dois incisos. O primeiro, autorizando estipular contratos atípicos, é evidentemente ocioso, pois que, em todos os tempos, a velocidade da vida econômica e as necessidades sociais estimularam a criação de toda uma tipologia contratual que o legislador não pode prever, e que os Códigos absorveram após a prática corrente havê-la delineado. O segundo, na linha da elaboração doutrinária, determinando que aos novos contratos elaborados atipicamente, apliquem-se as normas deste Código. Podia ser mais preciso, acrescentando-lhes, além destas, as que constem de leis extravagantes, normalmente adequadas a cada contrato atípico. D - Finalmente, uma vez concluído o contrato, passa a constituir fonte formal de direito, autorizando qualquer das partes a mobilizar o aparelho coator do Estado para fazê-lo respeitar tal como está, e assegurar a sua execução segundo a vontade que presidiu a sua constituição. Em suas linhas gerais, eis o princípio da autonomia da vontade, que genericamente pode enunciar-se como a faculdade que têm as pessoas de concluir livremente os seus contratos. Este princípio não é absoluto, nem reflete a realidade social na sua plenitude. Por isso, dois aspectos de sua incidência devem ser encarados seriamente: um diz respeito às restrições trazidas pela sobrelevância da ordem pública, e outro vai dar no dirigismo contratual, que é a intervenção do Estado na economia do contrato. Vejamo-los, um a um. Todo contrato parte do pressuposto fático de uma declaração volitiva, emitida em conformidade com a lei, ou obediente aos seus ditames. O direito positivo prescreve umas tantas normas que integram a disciplina dos contratos e limitam a ação livre de cada um, sem o que a vida de todo o grupo estará perturbada. São os princípios que barram a liberdade de ação individual e constituem o conteúdo das leis proibitivas e imperativas (v. sobre estas o nº 19, supra, vol. I). A lei ordena ou proíbe dados comportamentos sem deixar aos particulares a liberdade de derrogá-los por pactos privados, ao contrário das leis supletivas, que são ditadas para suprir o pronunciamento dos interessados. Quando um contrato é ajustado, não é possível fugir da observância daquelas normas, sob pena de sofrer penalidades impostas inafastavelmente. Os contratantes sujeitam, pois, sua vontade ao ditado dos princípios da ordem pública e dos bons costumes. O que são normas de ordem pública e o que são bons costumes não há critério rígido para precisar. Ao revés, ocupam umas e outras zonas de delimitação flutuante, que os juristas a custo conseguem definir. Segundo doutrinas aceitas com visos de generalidade, condizem com a ordem pública as normas que instituem a organização da família (casamento, filiação adoção, alimentos); as que estabelecem a ordem de vocação hereditária e a sucessão testamentária; as que pautam a organização política e administrativa do Estado, bem como as bases mínimas da organização econômica; os preceitos fundamentais do Direito do Trabalho; enfim, as regras que o legislador erige em cânones basilares da estrutura social, política e econômica da Nação. Não admitindo derrogação, compõem leis que proíbem ou ordenam cerceando nos seus limites a liberdade de todos. Bons costumes são aqueles que se cultivam como condições de moralidade social, matéria sujeita a variações de época a época, de país a país, e até dentro de um mesmo país e mesma época. Atentam contra bonos mores aqueles atos que ofendem a opinião corrente no que se refere à moral sexual, ao respeito à pessoa humana, à liberdade de culto, à liberdade de contrair matrimônio.23 Dentro desses campos, cessa a liberdade de contratar. Cessa ou reduz-se. Se a ordem jurídica interdiz o procedimento contra certos princípios, que se vão articular na própria organização da sociedade ou na harmonia das condutas, a sua contravenção penetra as raias do ilícito, e o ato negocial resultante é ferido de ineficácia. O contrato, que reflete por um lado a autonomia da vontade, e por outro submete-se à ordem pública, há de ser conseguintemente a resultante deste paralelogramo de forças, em que atuam ambas estas freqüências. Como os conceitos de ordem pública e bons costumes variam, e os conteúdos das respectivas normas por via de conseqüência, certo será então enunciar que em todo tempo o contrato é momento de equilíbrio destas duas forças, reduzindo- se o campo da liberdade de contratar na medida em que o legislador entenda conveniente alargar a extensão das normas de ordem pública, e vice-versa. Nem há uniformidade de ação legislativa, a este respeito. Ao contrário, a oscilação nas várias quadras históricas é grande, ora recrudescendo sua Nesse campo intervencionista situa-se a teoria da imprevisão, que estudaremos no nº 216, infra, regulada no Código Civil nos arts. 478 a 480. Outro modelo semelhante de intervenção, com o propósito de defender a parte economicamente mais fraca na manutenção do princípio do equilíbrio econômico do contrato, se encontra regulado no art. 6º, V, do Código de Defesa e Proteção do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.1990). 187. Requisitos de validade dos contratos: subjetivos, objetivos e formais Como todo negócio jurídico, o contrato está sujeito a requisitos, cuja inobservância vai dar na sua ineficácia. Uns são gerais, a que se submetem todos os atos negociais. Outros são específicos, dizem respeito particularmente aos contratos. Não perderemos de vista os primeiros, cuja presença é permanente, mas não nos deteremos no seu estudo aprofundado, reportando- nos ao que desenvolvemos no nº 84, supra (vol. I). Vamos cogitar dos outros, peculiares ao direito do contrato. Neste estudo, distribuímo-los em três grupos: subjetivos, objetivos e formais, recordando ainda que em grande parte já os mencionamos e analisamos, ao tratarmos dos elementos da obrigação, no nº 128 (vol. II). No frontispício dos requisitos subjetivos está, evidentemente, a capacidade das partes. Os contratantes devem ser aptos a emitir validamente a sua vontade. Mas não se requer, tão-somente, aquela capacidade genérica, que sofre as restrições contidas nos arts. 3º e 4º do Código Civil. Exige-se, mais, que nenhuma das partes seja portadora de inaptidão específica para contratar. Com efeito, a lei estabelece, muitas vezes, restrições à faculdade de contratar, ou de celebrar um dado contrato. Uns o denominam de incapacidade contratual, outros o chamam impedimento, mas nós preferimos ficar com os que dizem restrições, a fim de que se não faça confusão com as incapacidades gerais ou com os impedimentos matrimoniais. Restringe-se a liberdade de contratar em termos gerais, ou em termos especiais, quando uma pessoa não pode celebrá-los de modo geral ou não pode concluir um em particular. Não se trata de incapacidade no sentido ordinário, pois que o contratante guarda o poder genérico para participar dos atos da vida civil. É mesmo restrição ou inaptidão confinada ao campo específico do poder de contratar.30 Nos seus efeitos, assemelham-se às incapacidades, e, como estas, geram a ineficácia do negócio,31 ora absoluta, como no caso do art. 497 do Código Civil, que proíbe a compra e venda entre tutor e tutelado, mandante e mandatário etc., ora relativa, como na hipótese do art. 496, que dispõe ser anulável o mesmo contrato entre ascendentes e descendentes sem que os demais e o cônjuge (salvo no caso de regime de separação obrigatória de bens) expressamente o consintam, limitado o direito de atacar o ato aos descendentes interessados e ao cônjuge Dizendo-o em linha de princípio, e atendendo a que o contrato nasce de acordo de vontades ou consentimento das partes, o requisito subjetivo pode ser enunciado como a aptidão para consentir. A expressão consentimento já traduz, em si, o acordo de vontades (cum + sentire). A linguagem comum, entretanto, emprega-a na acepção de manifestação de vontade, sendo correntia a referência ao consentimento de cada um dos contratantes. O consentimento, gerador do contrato, há de abranger seus três aspectos: A - Acordo sobre a existência e natureza do contrato; se um dos contratantes quer aceitar uma doação e o outro quer vender, contrato não há. B - Acordo sobre o objeto do contrato; se as partes divergem a seu respeito, não pode haver contrato válido, como já explicamos, ao tratarmos do erro obstativo, no nº 89, supra (vol. I). C - Acordo sobre as cláusulas que o compõem; se a divergência campeia em ponto substancial, não poderá ter eficácia o contrato.32 O consentimento, como pressuposto material do contrato, exige a emissão da vontade de duas ou mais pessoas. A de uma só é insuficiente. Contra esta regra costumam objetar com a autocontratação. Mas não há tal. A doutrina moderna admite majoritariamente o contrato consigo mesmo, decompondo as duas vontades que aparecem no ato,33 mas ressalva o seu caráter excepcional na ocorrência da representação quando o representado dá expressa anuência, com o esclarecimento de que nesta já está presente uma declaração de vontade. A autocontratação é hoje admitida no art. 117 do Código, que exige a expressa manifestação de vontade do representado (v. sobre este assunto o nº 107, supra, vol. I). A outra objeção levantada refere-se ao papel assinado em branco, e entregue à outra parte (blanc seing), que não vale como contrato, senão como prova de um contrato já anteriormente concluído,34 pois se fosse modalidade de contratar encontraria obstáculo no art. 122 do Código Civil, uma vez que sujeitaria o ato ao arbítrio exclusivo de uma das partes. Objetivamente considerados, os requisitos do contrato envolvem a possibilidade, liceidade, determinação e economicidade.35 Diz-se impossível o objeto quando é insuscetível de realização. Há duas espécies de impossibilidade: a material e a jurídica. Impossibilidade material é aquela que traduz a insuscetibilidade de consecução da prestação pretendida. Pode ser absoluta ou relativa. Impossibilidade absoluta é a que por ninguém poder ser vencida; relativa, quando o agente em determinado momento não consegue superar o obstáculo à sua realização, mas uma outra pessoa, ou a mesma, em momento diverso, teria meios de obtê-la. Somente a primeira tem como efeito a nulidade do contrato (Código Civil, art. 106), já que a impossibilidade relativa da prestação não chega a constituir óbice irremovível. Ao revés, situa-se na dependência de circunstâncias pessoais do devedor, e, conseguintemente, ao invés de liberá-lo, sujeita-o a perdas e danos. Equipara-se à impossibilidade relativa a absoluta que cessa antes do implemento da condição. Em sendo absoluta, exonera o devedor, invalidando o contrato, pois aquele que promete prestação insuscetível de realização é como se nada prometesse: ad impossibilia nemo tenetur. Mas é preciso frisar, como fizemos no nº 128, supra (vol. II): a impossibilidade que invalida o contrato é a concomitante à sua constituição, porque a superveniente o torna inexeqüível, com ou sem perdas e danos, conforme ocorra ou não a culpa do devedor (Código Civil, arts. 234, 238, 239 e 248). A impossibilidade parcial invalida inteiramente o contrato, quando do seu contexto ou das circunstâncias não se possa concluir que ele teria sido celebrado somente quanto à parte possível.36 Mas não se deve confundir impossibilidade do objeto com a falta de atualidade de sua existência. Pode haver coincidência. Mas não há relação de causalidade. É perfeitamente admissível que a contratação verse sobre coisa futura, erigindo- se o seu vir-a-ser em condição (emptio rei speratae), com o desfazimento do contrato em caso de frustração (v.g., art. 483 do Código); perfeitamente viável é a negociação com caráter aleatório (arts. 458 a 461 do Código), em que o objeto corre o risco de não vir a produzir-se, incidindo o contrato sobre a sua potencialidade (contrato aleatório, deduzido no nº 194, infra), o que desloca o objeto, da coisa para sua expectativa (emptio spei). É jurídica a impossibilidade quando, sendo a prestação suscetível de execução materialmente, esbarra em obstáculo levantado pela própria norma. O devedor pode prestar. Mas contra a execução do obrigado opõe-se proibição legal. O cumprimento da obrigação importará em afronta ao ordenamento jurídico. A impossibilidade, desta espécie, vai ter na iliceidade da prestação e gera a ineficácia do contrato, porque, se o direito positivo não admite aquele objeto, a sua aceitação pelas partes envolve contrariedade à normação, como se dá com a regra segundo a qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva (Código Civil, art. 426), ou quando duas pessoas ajustam um pagamento pelo assassínio de alguém. No direito alemão há uma referência expressa à impossibilidade, que indica, quando alguém se obriga a transferir a outrem seu patrimônio futuro, seja total, seja parcialmente, pela razão de que repugna ao direito que uma pessoa possa abdicar de sua capacidade de aquisição (Enneccerus, Kipp y Wolff). A iliceidade do objeto e sua impossibilidade jurídica ocorrem quando a prestação afronta a ordem pública ou ofende os bons costumes. Deve o objeto ser determinado, para que a obrigação do devedor tenha sobre que incidir. Mas não se requer a determinação concomitante ao ajuste. Basta que se obtenha por ocasião da sua execução. A determinação dá-se pelo gênero, pela espécie, pela quantidade, pelas características individuais da res debita. Quando não está o objeto desde logo determinado, é mister venha a sê-lo, quer por ato Está, portanto, formado o contrato desde que as partes façam coincidir as suas vontades em um mesmo ponto e para a obtenção de certos efeitos. Não nasce ele, entretanto, todo pronto, como Minerva armada da cabeça de Júpiter. É, ao revés, o resultado de uma série de momentos ou fases, que às vezes se interpenetram, mas que em detida análise perfeitamente se destacam: negociações preliminares, proposta, aceitação. As negociações preliminares (tractatus, trattative, pourparlers) são conversas prévias, sondagens, debates em que despontam os interesses de cada um, tendo em vista o contrato futuro. Mesmo quando surge um projeto ou minuta, ainda assim não há vinculação das pessoas. Não raro, nos negócios que envolvem interesses complexos, entabula uma pessoa conversações com diversas outras, e somente se encaminha a contratação com aquela que melhores condições oferece. Enquanto se mantiverem tais, as conversações preliminares não obrigam. Há uma distinção bastante precisa entre esta fase, que ainda não é contratual, e a seguinte, em que já existe algo preciso e obrigatório.40 Não obstante faltar-lhe obrigatoriedade, pode surgir responsabilidade civil para os que participam das negociações preliminares, não no campo da culpa contratual, porém da aquiliana (v. nº 114, supra, vol. I, e nº 175, vol. II), somente no caso de um deles induzir no outro a crença de que o contrato será celebrado, levando-o a despesas ou a não contratar com terceiro etc. e depois recuar, causando-lhe dano. O fundamento do dever de reparação é o ilícito genérico, definido no nº 113, supra (vol. I). As negociações preliminares, repitamo-lo, não geram por si mesmas e em si mesmas obrigações para qualquer dos participantes. Elas fazem surgir, no entanto, deveres jurídicos para os contraentes, decorrentes da incidência do princípio da boa-fé, sendo os principais os deveres de lealdade e correção, de informação, de proteção e cuidado e de sigilo. A violação desses deveres durante o transcurso das negociações é que gera a responsabilidade do contraente, tenha sido ou não celebrado o contrato. A responsabilidade pela ruptura das negociações, a mais polêmica, surge quando um dos contraentes viola o dever de lealdade e correção e, após incutir no outro a confiança de que o contrato será celebrado rompe injustificadamente as negociações, vindo a lhe causar danos. Esta responsabilidade tem caráter excepcional (Serpa Lopes Carrara), e não pode ser transposta para fora dos limites razoáveis de sua caracterização, sob pena de chegar-se ao absurdo jurídico de equiparar em força obrigatória o contrato e as negociações preliminares, e a admitir a existência de uma obrigação de celebrar o contrato em razão da existência pura e simples de negociações. O segundo momento da formação do contrato é a proposta. Esta já traz força vinculante (Código Civil, art. 427), não para as partes, uma vez que ainda neste momento não há um contrato, mas para aquele que a faz, denominado policitante. Embora não haja a lei minudenciando os requisitos da proposta, deve ela ser séria e precisa, uma vez que constitui o impulso inicial de uma fonte obrigacional; e deve conter as linhas estruturais do negócio em vista, para que o contrato possa considerar-se perfeito, da manifestação singela e até simbólica daquele a quem é dirigida (Carrara), denominado oblato. É uma declaração receptícia de vontade (v. nº 83, supra, vol. I), caráter que não perde se, ao invés de se dirigir a uma pessoa determinada, assumir o aspecto de oferta ao público, em que o oblato não é identificado. A proposta ao público, em princípio igual a quaisquer outras, delas distinguindo-se em que comumente comporta reservas (disponibilidade de estoque, ressalva quanto à escolha da outra parte etc.), bem como no tocante ao prazo moral da aceitação, em razão da indeterminação mesma do oblato.41 O Código Civil italiano perfilha boa doutrina, estatuindo (art. 1.336) que a oferta ao público vale como proposta obrigatória quando contenha todos os extremos essenciais do contrato; em caso contrário, traduz uma sugestão para que venham propostas (invitatio ad offerendum), caso em que o anunciante se coloca na expectativa de que lhe sejam dirigidas propostas.42 O Código Civil disciplinou em seu art. 429 a oferta ao público, dispondo que é obrigatória quando encerra os requisitos essenciais ao contrato, salvo se o contrário resultar das circunstâncias ou dos usos. O Código admite ainda a revogação da oferta ao público pela mesma via da sua divulgação, desde que o policitante tenha ressalvado na oferta a possibilidade de revogá-la. O Código do Consumidor (Lei nº 8.078/90) disciplinou a oferta ao público no seu art. 35, atribuindo ao consumidor, no caso de recusa do fornecedor ao seu cumprimento, o direito de, à sua escolha, optar por: a) exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; b) aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; c) rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos. Vê-se que o Código do Consumidor foi além do Código Civil ao disciplinar a oferta ao público, tendo em vista que concedeu expressamente ao oblato a possibilidade de exigir o cumprimento específico da obrigação, se assim o desejar. A maior parte da doutrina que examinou a extensão da obrigatoriedade da proposta do art. 1.080 do Código Civil de 1916, repetido ipsis literis no art. 427 do Código de 2002, se encaminhou no sentido de, nas hipóteses em que o policitante não honra a proposta, conceder ao oblato apenas a via das perdas e danos, sem execução específica da obrigação de contratar. Essa orientação doutrinária e jurisprudencial deve mudar, diante da tendência moderna de se dar execução específica às obrigações de fazer. Há enorme variedade de contratos que se formam mediante ofertas ao público. Deixando de lado o contrato de adesão, que será estudado no nº 197, infra, podemos mencionar o que se realiza por licitação ou por concurso. No contrato por licitação, a oferta traz a convocação dos interessados para que apresentem suas propostas, nas quais, obrigados, embora, a submeter-se a certas condições fixas, pormenorizam as suas proposições quanto ao preço, prazo etc. ficando o anunciante com a liberdade de escolher aquela que seja de suas conveniências e até de não aceitar nenhuma. Estes contratos cobrem enorme área, desde os leilões de mercadorias e objetos, até as concorrências públicas, abertas pela Administração, e obrigatoriamente adotadas para a realização de obras públicas. Uma variante sua é o concurso, usado por grandes empresas para admissão de empregados, seleção de projetos, aquisição de produtos, realização de empreitadas etc. Os candidatos apresentam-se, sujeitos aos requisitos do edital ou anúncio, e o contrato se fará com aquele ou aqueles que se classifiquem no concurso. O que há de peculiar neste contrato é que o anunciante tem a obrigação de realizar o concurso, mesmo que não seja obrigado a contratar com o ganhador, por se ter reservado este direito.43 Deve ser observado que se não confunde a proposta de contrato por licitação ou concurso com a promessa de recompensa, que é obrigação por declaração unilateral de vontade (v. nº 277, infra). Constitui, ainda, tipo peculiar de oferta a que resulta do processo técnico com a adoção de aparelhos automáticos, nos quais a mercadoria é exposta e afixado o preço, formando-se o contrato com a introdução de moeda em uma ranhura; outros contratos, além da compra e venda, celebram-se pelo mesmo sistema, como o transporte em trem subterrâneo, pousada em motéis à margem das estradas, venda de jornais etc. O aparelho automático é que representa, no caso, o proponente; e oblato é o público em geral.44 Uma vez feita a proposta, que constitui em si mesma um negócio jurídico, a ela está o policitante vinculado. Cria no oblato a convicção do contrato em perspectiva, com todas as suas conseqüências, levando-o a despesas, cessação de atividades, estudos, dispêndios de tempo etc. por todos os quais o proponente responde, sujeitando-se à reparação de perdas e danos se injustificadamente a retira. Distingue-se a proposta das negociações preliminares em que aquela é o impulso decisivo para a celebração do contrato, exprimindo uma declaração de vontade definitiva enquanto que as negociações não têm este caráter, pois não passam de sondagens e projetos, sem força obrigatória.45 Resumindo os pontos de distinção, Carrara os formula em três planos: A - A proposta é um elemento de formação da relação contratual; as negociações não são. B - A proposta tem efeito jurídico específico; as negociações não têm. C - A proposta é um negócio jurídico; as negociações não são.46 porém devendo satisfazer-se com outro idêntico. É de acrescer ainda que o estado de oferta pressupõe implícita a cláusula "nos limites do estoque ou do disponível". Gênero de atividade que implica o estado de oferta permanente é todo aquele relativo à concessão de serviços monopolizados ou de primeira necessidade.52 Mesmo nos casos de oferta permanente ao público, considera-se implícita a reserva de recusar a contratação por justos motivos, como seria o balneário que recusa admitir pessoa de moral duvidosa, ou o concessionário de transporte coletivo que repele o bêbado ou o indivíduo indecentemente trajado (De Page). Opção As atividades modernas criaram a figura jurídica da opção, que o Código Civil italiano, art. 1.331, já consagrou, como uma espécie de proposta irrevogável, e que nos parece mais adequado definir como contrato preliminar unilateral (v. nº 200 e nº 223, infra), como o fez o art. 466 do Código de 2002. O terceiro momento da formação do contrato é a aceitação. Antes dela, há o impulso inicial tão-somente. Inexiste ainda contrato, cujo pressuposto é o consentimento. Somente quando o oblato se converte em aceitante, e faz aderir a sua vontade à do proponente, a oferta se transforma em contrato. Não há, salvo nos contratos formais, requisito especial para a aceitação. Pode ela ser expressa, se o aceitante declarar a sua anuência; ou ser tácita, se uma atitude, inequívoca, autoriza concluir pela integração de sua vontade na declaração contida na proposta, como no caso do oblato enviar, sem dito expresso, ao policitante, a mercadoria por este solicitada. Pode ser presumida, quando a conduta do aceitante, nos termos da lei, induz anuência, como se o proponente marca prazo ao oblato para que este declare se aceita, e o tempo decorra sem resposta negativa naqueles casos em que se não costuma aceitação expressa (Código Civil, art. 432). Em qualquer caso, porém, a aceitação traduz a adesão do oblato à oferta recebida, e só vale como tal, se a contiver. Para que se dê o contrato, a aceitação tem de ser oportuna, sob pena de já não encontrar proposta firme. Quando feita fora do prazo, ou contendo modificações ou restrições aos termos da proposta, não gera contrato, mas importa nova proposta (Código Civil, art. 431), que o primitivo proponente, à sua vez, tem o direito de aceitar ou de não aceitar. Esta regra, que é certa como princípio genérico, não pode ser encarada em termos absolutos, pois nem sempre a aceitação, para ser válida, tem de ser irrestrita. É possível que, conforme os termos da proposta, seja admissível aceitação parcial ou com restrições.53 Expedindo o aceitante a resposta em tempo oportuno, fica na convicção de que o contrato está perfeito. Mas é possível que a resposta chegue tarde ao proponente, por circunstância imprevista e estranha à vontade de seu emitente. Neste caso, o proponente tem o dever de comunicar o fato, imediatamente, ao aceitante, sob pena de responder por perdas e danos (Código Civil, art. 430). Guardando simetria com a faculdade conferida ao policitante, admite a lei a retratação do aceitante, desde que chegue antes desta ou simultaneamente com ela ao conhecimento do proponente (Código Civil, artigo 433). Tempo Ponto relevante na doutrina da formação das avenças é o que se refere a precisar em que momento se deve considerar formado o contrato entre ausentes, dos quais são exemplo os por correspondência epistolar ou telegráfica e os celebrados via e-mail, quando o oblato não manifesta incontinenti a sua aceitação. É modalidade contratual muito amiudada, e usada onde não se exija forma pública. Na vida mercantil tem a assiduidade habitual do seu dinamismo, e mesmo nas atividades civis ocorre com grande freqüência. Como instrumento comercial não difere, nos efeitos, de qualquer contrato em que ambas as partes assinem o mesmo documento, e tem valor idêntico. A peculiaridade que o marca é a ausência do oblato, razão por que o consentimento se não dá em um só instante, mas, ao revés a adesão do aceitante justapõe-se à oferta com a intermediação de um lapso de tempo, mais ou menos longo. Neste tipo de contrato, desperta interesse a fixação do momento em que se deve considerar perfeito. Partindo-se de que a adesão do oblato constitui o acordo gerador do ato contratual, a rigor este momento seria quando a aceitação se positivar na sua mente, uma vez que, em tal instante, o acordo teria surgido. Mas, não sendo possível deixar que as relações jurídicas se estabeleçam sobre base tão frágil, a lei requer uma exteriorização daquela vontade. Daí o surgimento de várias teorias, que indicamos em resumo: A - A teoria da informação ou cognição considera perfeito o contrato quando o proponente toma conhecimento da aceitação do oblato. Difundida por Troplong, Merlin, Toulier, Gabba, Lomonaco, e adotada pelo Código austríaco e pelos Códigos Civil e Comercial da Argentina, tem o inconveniente de deixar ao arbítrio do proponente abrir a correspondência e tomar conhecimento da resposta positiva e geradora do ajuste. B - A teoria de recepção entende-o celebrado quando o proponente recebe a resposta, mesmo que não a leia (Laurent, Arntz). C - A teoria da declaração ou agnição dá-o como concluído no momento em que o oblato escreve a resposta positiva. Sustentada por Puchta, Scheul, Baudry- Lacantinerie, Colin et Capitant, Bufnoir, peca do defeito de imprecisão, por não haver um meio certo de determinar o policitante quando o fato ocorra. D - A teoria da expedição afirma a sua realização no instante em que a aceitação é expedida. Aprovada por Demolombe, Aubry et Rau, Savigny, Serafini, Boistel, Lyon-Caen, Girault, Mazeaud et Mazeaud, é perfilhada no BGB, como nos Códigos Comercial e Civil brasileiros. De todas, a melhor é esta, embora não seja perfeita. Evita, entretanto, o arbítrio dos contratantes e reduz ao mínimo a álea de ficar uma declaração de vontade, prenhe de efeitos, na incerteza de quando se produziu. De outro lado, afasta dúvidas de natureza probatória, pois que a expedição da resposta se reveste de ato material que a desprende do agente. Nosso Código Comercial (art. 127) adotou-a francamente. O Código Civil aceitou-a (art. 434), mas mitigada. Não a manteve em sua integridade. Na verdade, recusando efeito à expedição se tiver havido retratação oportuna, ou se a resposta não chegar ao conhecimento do proponente no prazo, desfigura a teoria da expedição, admitindo um pouco a da recepção e um pouco a da informação, o que é um mal, já que a imprecisão doutrinária na fixação do conceito perturba a boa aplicação dos princípios. Arnoldo Medeiros da Fonseca, com a sua vibrante argumentação, a par da tese de que é mais científica a teoria da informação (de que pesarosamente divergimos), sustenta que o nosso Código Civil de 1916 não adotou a teoria da expedição, antes aproximou-se da eclética de Windscheid, observação que vale também para o Código de 2002, tendo em vista que reproduziu a regra do anterior. Estamos em que o Código Civil proclamando a regra, segundo a qual os contratos entre ausentes se formam com a expedição da resposta (art. 434), aderiu à teoria, que perfurou das exceções mencionadas. Mas nem chegou a adotar como regra a da informação, e nem se inclinou para a de Windscheid,54 que distingue os contratos bilaterais dos unilaterais, afirmando que estes se consideram perfeitos quando a aceitação chegar ao conhecimento do proponente, ao passo que os contratos bilaterais o são desde o momento em que o oblato lhe dá sua anuência, ao mesmo passo que reserva o poder de retratação enquanto a resposta não é conhecida pelo destinatário.55 Não obstante os aplausos que lhe deram Giorgi, Gianturco, Lacerda de Almeida, Arnoldo Medeiros da Fonseca, não lhe podemos dar nossa adesão.56 Não nos parece que uma regra com a conseqüência de induzir a integração das vontades possa variar em decorrência dos efeitos ulteriores do contrato, a saber se gerará este obrigações para uma só ou para ambas as partes. Em qualquer hipótese, e esta é uma observação importante, freqüentemente omitida, as regras legais e doutrinárias sobre o momento de formação dos contratos por correspondência têm caráter supletivo. Aplicam-se na falta de estipulação especial dos interessados, aos quais é livre a adoção de sistema diferente do legal, segundo as suas conveniências. Lugar Ponto mais pacífico é o que se refere ao lugar da formação do contrato, que assumiu maior importância com o recrudescimento dos contratos formados pela Internet, diante do incremento do número de contratos celebrados entre pessoas situadas em locais diversos. Embora em doutrina os critérios possam Recomenda, ainda, o Código Civil, art. 114, que os negócios jurídicos benéficos e a renúncia se interpretem restritivamente. Andou bem o legislador ao adotar esta política de comedimento, no enunciar as regras de hermenêutica. Assim também procedeu o BGB, que se dispensou de minúcias, além de enunciar no princípio do par. 133 a mesma regra do nosso artigo 112. O Código de 2002, preenchendo uma lacuna do Código de 1916, acrescentou ainda regra de hermenêutica no art. 113, determinando que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, acolhendo o princípio alemão da Treu und Glauben, que o artigo 157 do BGB aplica, a dizer, como já ordenava o nosso Código Comercial de 1850 (art. 131, al. 1ª) e antes dele o art. 1.134, alínea 3ª, do francês, que os contratos devem ser interpretados sob inspiração da boa-fé, segundo exigem a lealdade e confiança recíproca dos contratantes. O conceito de boa-fé, embora flexível, pode ser dominado por uma regulamentação pragmática, a dizer que o espírito da declaração deve preponderar sobre a letra da cláusula; a vontade efetiva predominar sobre o formalismo; o direito repousar antes na realidade do que nas palavras.63 Mais minudente foi o Código francês, que cristalizou nos arts. 1.156 a 1.164 uma série de normas de hermenêutica que a doutrina acabou por considerar antes como conselhos ao juiz que regras coercitivas, de vez que à doutrina e não à lei cabe preceitos de interpretação. A este respeito, não se podem omitir aquelas regras formuladas por Pothier, fundado a seu turno nas fontes clássicas: 1º - O intérprete deve indagar a intenção comum das partes, de preferência ao sentido gramatical das palavras - Potentior est quam vox mens dicentis. 2º - Quando uma cláusula for suscetível de dois entendimentos, deve ter aquele em que possa produzir algum efeito, e não no em que nenhum possa gerar - Quoties in stipulationibus ambigua oratio est, commodissimum est id accipi quo res de qua agitur in tuto sit. 3º - Quando um contrato encerrar expressões de duplo sentido, deve entender- se no sentido condizente com a natureza do negócio mesmo. 4º - A expressão ambígua interpreta-se segundo o que é de uso no país. 5º - Devem-se considerar implícitas em todo contrato as cláusulas de uso - In contractibus tacite veniunt ea quae sunt moris et consuetudini. 6º - As cláusulas contratuais interpretam-se uma em relação às outras, sejam antecedentes, sejam conseqüentes. 7º - Em caso de dúvida, a cláusula interpreta-se contra o estipulante e em favor do promitente. 8º - As cláusulas contratuais, ainda quando genéricas, compreendem apenas aquilo que foi objeto do contrato, e não as coisas de que os contratantes não cogitam - Iniquum est perimi pacto, id de quo cogitatum non est. 9º - Compreendem-se na universidade todas as coisas particulares que a compõem, mesmo quando as partes ao contratar não tenham tido conhecimento destas. 10 - O caso expresso para explicação da obrigação não deve considerar-se com o efeito de restringir o vínculo, e sim que este abrange os casos não expressos. 11 - Uma cláusula expressa no plural decompõe-se muitas vezes em cláusulas singulares. 12 - O que está no fim da frase se relaciona com toda ela e não apenas com o que imediatamente a precede, uma vez que guarde concordância em gênero e número com a frase inteira. 13 - Interpreta-se a cláusula contra aquele contratante, em razão de cuja má-fé, ou culpa, a obscuridade, ambigüidade ou outro vício se origina. 14 - As expressões que se apresentam sem sentido nenhum devem ser rejeitadas como se não constassem do texto do contrato. Além destas 14 regras de Pothier, a doutrina acrescenta que o intérprete deve cogitar de como o contrato tem sido anteriormente cumprido pelas partes, pois que são elas o melhor juiz de sua hermenêutica, devendo considerar-se que se se executou num dado sentido, é porque entenderam os contratantes que esta era a sua verdadeira intenção.64 Mas o princípio não pode ser tido como absoluto, pois que é lícito ao interessado impugnar a declaração por erro.65 Acrescente-se que na ocorrência de cláusula ambígua, ou obscura, os contratos a título gratuito devem interpretar-se da maneira menos gravosa ao obrigado (favor debitoris), enquanto que os onerosos se entenderão em termos que realizem equânime temperamento dos interesses em jogo (art. 114 do Código).66 O Código contém ainda uma regra de hermenêutica específica para os contratos de adesão, que se caracterizam pelo fato de o seu conteúdo ser determinado unilateralmente por um dos contratantes, cabendo ao outro contratante apenas aderir ou não aos seus termos. Exatamente em razão de nesses tipos de contrato não se dar ao aderente qualquer possibilidade de influir no conteúdo do contrato, o Código determinou no seu art. 423 que eventuais cláusulas ambíguas ou contraditórias sejam interpretadas de maneira mais favorável a ele. Sendo freqüente a divergência dos contraentes na fase de execução, o intérprete deve alertar-se contra a alegação de que, ao contratar, não foi bem naqueles termos que emitiu sua vontade. Daí a advertência de Anson, que "uma pessoa não pode ser ouvida ao alegar que pretende coisa diversa do que declarou" (cannot be heard to allege that did not mean what he said).67 A hermenêutica da vontade contratual está subordinada a esses dois elementos, como tenho proclamado: a intenção das partes e o sentido da linguagem. Conseqüentemente não pode qualquer delas modificar unilateralmente o seu conteúdo. Não pode igualmente a intenção dos contratantes estar subordinada ao entendimento subjetivo do intérprete, uma vez que aquela intenção somente pode ser entendida em plena conformidade com as palavras contidas no instrumento, "salvo se eivadas de vício, ilegalidade ou incapacidade de qualquer dos declarantes".68 O princípio da obrigatoriedade do contrato (nº 185, supra) não admite que, a título de "construção" da vontade contratual, sejam invocados princípios ou fatos estranhos, uma vez que tal "construção" somente é lícita na medida em que é governada pelas normas legais. A regra preponderante na hermenêutica da vontade é esta: o que o contrato significa é uma questão de direito. Desenvolvendo a teoria da "construção" o clássico Parsons preleciona que se trata de "matéria de lei" (Construction is governed by fixed principles), ou, em outras palavras, é matéria de lei. Daí emerge a primeira verdadeira regra: "o que o contrato significa é questão de lei" (what a contractmeans is a question of law).69 189-A. Os contratos que regulam as relações de consumo recebem interpretação de maneira mais favorável ao consumidor, conforme expressamente determina o art. 47 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078/90. Trata-se de regra de hermenêutica que tem em vista proteger a parte presumidamente mais fraca da relação jurídica. O Código do Consumidor, no entanto, vai ainda mais longe, ao dispor no seu art. 46 que os contratos que regulam as relações de consumo deixam de ser obrigatórios se ao consumidor não for dada oportunidade de conhecer previamente o seu conteúdo, ou forem redigidos de forma a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance. Esta norma visa a assegurar não só o efetivo prévio conhecimento do conteúdo do contrato por parte do consumidor, mas também que o contrato tenha sido redigido de forma tal, que possa ter sido entendido pelo consumidor, sob pena, em qualquer dos dois casos, de nulidade do próprio contrato. Não se trata, portanto, a rigor, de uma regra de interpretação, mas sim de uma regra de garantia do prévio conhecimento e prévio entendimento do conteúdo do contrato por parte do consumidor. zona grísea, entre mais de um, sugere às vezes aproximações várias, nenhuma das quais dotada de pura nitidez. A par de uns e outros, diz-se misto o contrato que alia a tipicidade e a atipicidade, ou seja, aquele em que as partes imiscuem em uma espécie regularmente dogmatizada, aspectos criados por sua própria imaginação, desfigurando-a em relação ao modelo legal. 191. Contratos consensuais, formais e reais Nomenclatura reminiscente da romana, esta classificação divide os contratos sob o aspecto de sua constituição, em atendimento às exigências legais respectivas. Dizem-se contratos consensuais aqueles que se formam exclusivamente pelo acordo de vontades (solo consensu). É claro que todo contrato pressupõe o consentimento. Mas alguns existem para cuja celebração a lei nada mais exige que esse consentimento. Uma vez que em nosso direito, como aliás no direito moderno em geral, predomina o princípio consensualista (nº 185, supra), pode- se com razão dizer que o contrato consensual é a regra, e exceções os que não o são. Diz-se, repetimos, consensual o contrato para cuja celebração a lei não exige senão o acordo das partes. Com isto frisamos que não deixa de sê-lo em razão de haverem as partes voluntariamente adotado forma escrita ou instrumento público, para a sua realização, por uma razão de sua particular conveniência. Somente quando a lei impõe, na sua formação, algo externo e material, além da necessária declaração de vontade, é que tal ocorre. Contrapondo-se aos consensuais, alinham-se de um lado os formais ou solenes, e de outro os reais. Chama-se contrato solene aquele para cuja formação não basta o acordo das partes. Exige-se a observância de certas formalidades, em razão das quais o contrato se diz, também, formal. As exigências legais, neste sentido, podem ser várias. A mais freqüente é a intervenção do notário, com a redução do ato a escrito. A forma pública pode ser convencional, quando os próprios interessados a elegem, e, neste caso, o contrato, que não seria, em princípio, formal, passa a sê-lo. Há grande diferença entre a adoção da forma pública impositivamente e a instituição da forma pública pela convenção, uma vez que esta a erija em requisito de validade do ato (Código Civil, art. 109). A lei exige o instrumento público como da substância do ato nos contratos constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis, de valor superior a 30 (trinta) vezes o maior salário mínimo do País (Código Civil, art. 108), regra esta que alguns já sustentam ser inconstitucional, em razão do disposto no art. 7º, IV, da Constituição Federal, que veda a vinculação do salário mínimo para qualquer fim. O argumento não procede porque a vinculação que a Constituição proíbe é a que tenha efeitos financeiros que dificultem ou impeçam o aumento do salário mínimo pelo fenômeno da indexação, o que não é o caso, já que o valor é mera referência para se exigir ou não a escritura pública como elemento formal do negócio de compra e venda de bens imóveis. A regra é importante sob o ponto de vista social, porque possibilita a desoneração do negócio de compra e venda de imóveis para a população de baixa renda. Para estes contratos a forma pública é determinante da validade do ato, e impostergável. Para outros, a lei contenta-se com o escrito, embora privado, como ocorre com a fiança (Código Civil, artigo 819), ou como a doação, salvo as de pequeno valor (Código Civil, art. 541). Constitui ainda formalismo, apelidado de indireto a inscrição no registro público, como se dá para que a cessão de crédito, por instrumento particular, seja oponível a terceiro (Código Civil, art. 288), ou a promessa de compra e venda de imóvel seja dotada de execução específica (Lei nº 649, de 11 de março de 1949). Cumpre, entretanto, distinguir as formalidades exigidas ad probationem das que o são ad solemnitatem. As primeiras não fazem o contrato formal, mas impõem-se como técnica probatória. Assim, quando a lei diz que as obrigações de valor superior ao décuplo do maior salário mínimo vigente no País (art. 227 do Código - vale aqui a mesma observação supra sobre a constitucionalidade desta regra quanto ao indexador) não se provam exclusivamente por testemunhas mas requerem um começo de prova por escrito, estatui uma formalidade ad probationem, porque, se o credor não pode provar a obrigação sem a exibição de um escrito qualquer, nem por isto deixa de prevalecer a solutio, espontânea, nem deixa de ter validade a confissão do devedor como suprimento da prova escrita. O mesmo não ocorre se a formalidade é instituída ad solemnitatem, porque aí é a validade da declaração de vontade que está em jogo. Se não revestir aquela forma determinada, o ato não prevalece. É como se não houvesse declaração de vontade. Como vimos no nº 185, supra, opera-se no direito de hoje um renascimento do formalismo, que vem preencher a função de segurança para as partes, obviando os inconvenientes dos excessos a que havia chegado o princípio consensualista. Denomina-se real o contrato para cuja perfeição a lei exige a traditio efetiva do objeto. Nele, a entrega da coisa não é fase executória, porém requisito da própria constituição do ato. O consentimento é seu elemento, pois não pode haver contrato sem acordo de vontades. Mas não é suficiente, devendo integrar nele a tradição da coisa. São poucos, na nossa sistemática, a comporem esta categoria: comodato, mútuo, depósito, a que se acrescenta a doação manual de pequeno valor. Estes contratos não se formam sem a tradição da coisa. Uma convenção em que as partes estipulem o empréstimo de quantia sem a sua entrega efetiva pode ser uma promessa de mutuar (pactum de mutuando), mas não é mútuo; assim para o comodato, como para o depósito. Outra figura de contrato real é o penhor, que, entretanto, em alguns casos deixa de formar-se re, substituindo-se a traditio efetiva do bem apenhado pela inscrição no registro: penhor rural, industrial, mercantil e de veículos (Código Civil, arts. 1.431 e 1.432). Os escritores modernos criticam o conceito de contrato real, considerando-o um romanismo injustificável, e entendem que não há razão para que se exija para a celebração do contrato a efetivação da entrega do objeto. Mais simples será compreender os chamados contratos reais como simplesmente consensuais e bilaterais, em que para um dos contratantes nasce a obrigação de entregar a coisa, e para o outro a de restituí-la se ela for entregue. Com esta concepção, a traditio deixa de ser elemento de constituição do negócio e passa a constituir a execução da obrigação do mutuante, ou do comodante, ao mesmo passo que a restituição é obrigação condicional do mutuário, do comodatário, do depositário.4 No direito brasileiro, contudo, é necessária uma ressalva, que para o seu direito já fez De Page: enquanto persistir, em direito positivo, o traditio erigida em requisito dos contratos ditos reais, a dogmática jurídica tem forçosamente de aceitar esta classificação, muito embora se deva reconhecer que em teoria pura este romanismo atenta contra o princípio da executoriedade das convenções geradas pelo consentimento livremente manifestado. Diante desta controvésia, inclinamo-nos pela suspensão da categoria dos contratos reais. Na elaboração de nosso Projeto de Código de Obrigações, tratamos o mútuo, o comodato, o depósito como consensuais, subordinando a obrigação do mutuário, do comodatário do depositário, ao fato da entrega da coisa. Destarte, os chamados contratos reais deixariam de sê-lo, e celebram-se solo consensu.O Código de 2002 não recolheu a inovação, preferindo manter, para esses contratos, o caráter de reais. 192. Contratos onerosos e gratuitos Encarados quanto ao objeto perseguido pelas partes, os contratos são: Onerosos, aqueles dos quais ambas as partes visam a obter vantagens ou benefícios, impondo-se encargos reciprocamente em benefício uma da outra. Gratuitos ou benéficos, aqueles dos quais somente uma aufere a vantagem, e a outra suporta, só ela, o encargo. Há quem distinga os contratos gratuitos propriamente ditos, ou pura liberalidade, dos contratos desinteressados, com a observação de que, naqueles, há diminuição patrimonial de uma das partes em proveito da outra (como na doação), enquanto que nos outros um dos contratantes presta um serviço ao outro sem nada receber em troca da prestação feita ou prometida, porém sem empobrecer-se, ou sem sofrer diminuição no seu patrimônio.5 São comutativos os contratos em que as prestações de ambas as partes são de antemão conhecidas, e guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Não se exige a igualdade rigorosa destes, porque os bens que são objeto dos contratos não têm valoração precisa. Podendo ser, portanto, estimadas desde a origem, os contratantes estipulam a avença, e fixam prestações que aproximadamente se correspondem. São aleatórios os contratos em que a prestação de uma das partes não é precisamente conhecida e suscetível de estimativa prévia, inexistindo equivalência com a da outra parte. Além disto, ficam dependentes de um acontecimento incerto. Há uma corrente doutrinária tradicional que situa a noção de contrato aleatório na existência da álea bilateral.13 Mas a evolução desse tipo de negócio o desautoriza. Basta que haja o risco para um dos contratantes. Com efeito, em vários contratos em voga como o seguro, a aposta autorizada nos hipódromos, a loteria explorada pela Administração ou pelo concessionário, existe álea apenas para um dos contratantes, ao passo que o outro baseia a sua prestação em cálculos atuariais ou na dedução de percentagem certa para custeio e lucro, de tal maneira que se pode dizer perfeitamente conhecida, e lhe não traz risco maior do que qualquer contrato comutativo normal.14 Se é certo que em todo contrato há um risco, pode-se contudo dizer que no contrato aleatório este é da sua essência, pois que o ganho ou a perda conseqüente está na dependência de um acontecimento incerto para ambos os contratantes. O risco de perder ou de ganhar pode ser de um ou de ambos; mas a incerteza do evento tem de ser dos contratantes, sob pena de não subsistir a obrigação. A álea pode versar sobre a existência da coisa, ou sobre a sua quantidade. Quando um dos contratantes toma a si o risco em torno da própria existência da prestação, o preço ajustado é devido, por inteiro, ainda que dela nada venha a produzir-se (Código Civil, art. 458). Exemplo clássico é o de quem compra do pescador, por preço certo, o que este retirar, assumindo o risco de não ser apanhado nenhum peixe. Neste caso, o objeto do contrato não são os peixes, mas o próprio lanço da rede (iactus retis). Se a álea versar sobre a quantidade, assumindo uma das partes o risco respectivo, o preço é devido, mesmo que a coisa se não produza na quantidade esperada; porém, não é de ser pago, se nada for produzido, porque neste caso o contrato estará sem objeto (Código Civil, artigo 459). Em qualquer caso, o adquirente não deve o preço, se a frustração do resultado provier de culpa da outra parte. O contrato aleatório pode versar sobre coisas futuras ou sobre coisas de existência atual, desde que sujeitas a riscos. Neste caso, o preço será devido, mesmo que da coisa nada mais exista no momento do contrato (Código Civil, art. 460). Mas, se a consumação do risco já era conhecida de um dos contratantes, pode o outro anular o contrato sob fundamento do dolo com que procedeu o primeiro (Código Civil, art. 461). O interesse desta classificação está em que a rescisão por lesão (art. 157) não tem lugar nos contratos aleatórios,15 nem a ação redibitória (arts. 441 e seguintes).16 195. Contratos de execução imediata, diferida e sucessiva De execução imediata ou instantânea é o contrato em que a solução se efetua de uma só vez e por prestação única, tendo por efeito a extinção cabal da obrigação. Exemplo típico é a venda à vista, em que o comprador, contra a entrega da coisa, faz o pagamento do preço em um só ato. De execução diferida ou retardada é aquele em que a prestação de uma das partes não se dá de um só jato, porém a termo, não ocorrendo a extinção da obrigação enquanto não se completar a solutio. De execução sucessiva ou de trato sucessivo, ou execução continuada, como denominado no art. 478, é o contrato que sobrevive, com a persistência da obrigação, muito embora ocorram soluções periódicas, até que, pelo implemento de uma condição, ou decurso de um prazo, cessa o próprio contrato. O que a caracteriza é o fato de que os pagamentos não geram a extinção da obrigação, que renasce. A duração ou continuidade da obrigação não é simplesmente suportada pelo credor, mas é querida pelas partes contratantes.17 Caso típico é a locação, em que a prestação do aluguel não tem efeito liberatório, senão do débito correspondente a período determinado, decorrido ou por decorrer, porque o contrato continua até a ocorrência de uma causa extintiva. Outro é o contrato de fornecimento de mercadorias, em que o comprador paga por período ou forfaitariamente, persistindo entretanto a obrigação do vendedor, quanto a novas remessas, e do comprador quanto à liquidação respectiva. Há interesse prático nesta classificação: a) em caso de nulidade do contrato de execução sucessiva, respeitam-se os efeitos produzidos, considerando-se impossível a restituição das partes ao estado anterior;18 b) a teoria da imprevisão, regulada expressamente no Código nos arts. 478 a 480 sob a rubrica de resolução por onerosidade excessiva incide sobre os contratos de execução diferida e continuada (v. nº 216, supra); c) somente em casos excepcionais pode uma das partes romper unilateralmente o contrato de execução continuada,19 salvo se ajustado por tempo indeterminado;20 d) a prescrição da ação de resolução do contrato, por descumprimento, corre separadamente de cada uma das prestações,21 podendo-se acrescentar que a prescrição do direito de receber cada prestação independe das anteriores como das posteriores (v. nº 123, supra, vol. I). 196. Contratos individuais e coletivos Contrato individual é o que se forma pelo consentimento de pessoas, cujas vontades são individualmente consideradas. Não é a singularidade de parte que o identifica. Pode uma pessoa contratar com várias outras ou um grupo de pessoas com outro grupo, e o contrato ser individual, uma vez que, na sua constituição, a emissão de vontade de cada uma entra na etiologia da sua celebração. O contrato é coletivo quando, na sua perfeição, a declaração volitiva provém de um agrupamento de indivíduos, organicamente considerado. A vontade do agrupamento é dirigida à criação do iuris vinculum, como o querer coletivo dele. Na convenção coletiva de trabalho, que é o tipo mais freqüente, embora já se não possa dizer o único da classe, as vontades dos interessados não figuram na celebração do contrato. A que tem força jurígena é aquela que organicamente se apura no momento em que se realiza a assembléia sindical, com observância do quorum e contagem dos votos, na forma da lei. O que o caracteriza é, então, a vontade do grupo, que só ela é tomada em consideração no momento em que se forma a relação contratual, já que as vontades individuais dos seus componentes ficaram para trás e somente foram consideradas na deliberação sindical. Uma vez celebrado o contrato, a decisão homologatória, seja administrativa, seja judicial, determina a extensibilidade a todos os indivíduos pertencentes àquela categoria abrangida no sindicato, ou até fora dele.22 A importância desta classificação está em que o contrato individual cria direitos e obrigações para as pessoas que dele participam; ao passo que o contrato coletivo, uma vez homologado regularmente, gera deliberações normativas, que poderão estender-se a todas as pessoas pertencentes a uma determinada categoria profissional, independente do fato de terem ou não participado da assembléia que votou a aprovação de suas cláusulas, ou até de se haverem, naquele conclave, oposto à sua aprovação. Seus efeitos determinantes de uma pré- regulamentação de condições de trabalho (Orlando Gomes) são tão notórios, que a natureza contratual chegaria a ser posta em dúvida se não houvesse a doutrina largamente admitido esta ramo de classificação (Mozart Victor Russomano), e não houvesse o legislador consagrado (Consolidação das Leis do Trabalho, art. 611). Uma observação completa o conceito. É que o contrato não gera obrigações individuais diretas. É uma figura de convenção que assume o aspecto de normatividade abstrata. Para a produção de efeitos imediatos e criação concreta de direitos e obrigações particulares é imprescindível a existência de contratos individuais.23 Assim, se o sindicato dos bancários celebra um contrato coletivo com o sindicato dos bancos, cria normas abstratas que disciplinarão as relações decorrentes dos contratos individuais entre cada bancário e o banco que o emprega. 197. Contratos de adesão concreto de contrato, gerador de efeitos diretos, enquanto que o coletivo formula as condições abstratas, a que o contratante individual deve obediência.27 Do contrato de adesão a separação é mais sutil, e a doutrina não a formula com segurança. A nós, parece-nos mais simples dizer que o contrato-tipo não resulta de cláusulas impostas, mas simplesmente pré-redigidas, às quais a outra parte não se limita a aderir, mas que efetivamente aceita, conhecendo-as, as quais, por isso mesmo, são suscetíveis de alteração ou cancelamento, por via de outras cláusulas substitutivas, que venham manuscritas, datilografadas ou carimbadas. Os contratos de adesão vêm hoje previstos, no tocante a seu conteúdo e regras de interpretação no Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.1990, art. 54), que ficou assim redigido: "Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo". O Código Civil de 2002 lhes dedicou os arts. 423 e 424, limitando-se a regras sobre a interpretação mais favorável ao aderente e a nulidade de cláusulas que venham a ser consideradas abusivas. Tendo em vista a natureza excepcional do contrato de adesão, entendeu o Código no art. 423 necessário destinar preceituação especial à sua hermenêutica. Sem embargo de estar ele submetido à norma geral de submissão aos princípios da probidade e boa-fé, preconizados no artigo anterior, o Código salienta a que vem expressa nesse artigo. Entre as regras clássicas enunciadas por POTHIER, já uma delas (a quinta) aludia às expressões ambíguas, que se deveriam interpretar segundo os usos do país; enquanto que outra (a terceira) aconselhava que naquelas de duplo sentido deverá prevalecer a mais condizente com a natureza mesma do contrato. Tendo em vista que, no contrato por adesão, o aderente limita-se a justapor a sua vontade ao padrão elaborado pela outra parte (policitante que estabelece previamente o próprio conteúdo contratual e não mera oferta) seu dever é redigir as cláusulas com clareza, precisão e simplicidade. Se, não obstante, inserir condição obscura, imprecisa e complexa, capaz de suscitar dúvidas ao intérprete, caberá a este adotar no seu entendimento o que for mais favorável ao aderente. Não tendo este a faculdade de debater, e sustentar estipulação menos onerosa, não pode ser sacrificado pela redação dada pelo outro contratante. Aliás, já no Direito Romano era norma que prevalecia o entendimento favorável ao promitente, contra o estipulante. Guardadas as proporções, a situação adapta-se a esta modalidade especial e moderna de contrato. Tendo em vista a pré-constituição do instrumento contratual, que é a fonte dos direitos e das obrigações convencionais, fulminou o Código no seu art. 423 de nulidade, as cláusulas de renúncia dos direitos fundamentais do aderente. O princípio assume caráter de ordem pública, e, conseqüentemente, desborda de regra de hermenêutica para o terreno da proibição. Será, portanto, de nenhum efeito tais cláusulas, a serem soberanamente desprezadas pelo juiz. Sem prejuízo, evidentemente, de quaisquer outras ofensivas das normas gerais ou especiais de ordem pública. Capítulo XXXIX - Contrato Preliminar Sumário: 198. Conceito de contrato preliminar. Generalidades. 199. Desenvolvimento da doutrina brasileira. 200. Efeitos do contrato preliminar. Bibliografia: Amílcar de Castro, Comentários ao Código do Processo Civil, Ed. Revista Forense, vol. X, nº 417; Filadelfo Azevedo, "Execução Coativa da Promessa de Venda", in Revista de Crítica Judiciária, vol. X, págs. 601 e segs.; Francesco Messineo, Dottrina Generale del Contratto, págs. 199 e segs.; Giovanni Carrara, La Formazione del Contratto, pág. 25 e segs.; Andreas Von Tuhr, Tratado de las Obligaciones, vol. I, nº 32, págs. 188 e segs.; De Page, Traité Élémentaire de Droit Civil, vol. II, 1ª parte, ns. 504 e segs.; Demogue, Obligations, vol. II, ns. 469 e segs.; Planiol et Ripert, Traité Pratique de Droit Civil, vol. VI, ns. 144 e segs.; Renato Scognamiglio, Contratti in Generale, nº 33; Serpa Lopes, Curso, vol. III, ns. 132 e segs.; Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, "Promessa de Compra e Venda de Imóvel", in Revista Forense, vol. 74, pág. 437; Colin et Capitant, Cours, vol. II, ns. 513 e segs.; Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, vol. II, § 138; Regina Condin, Contrato Preliminar; Gabba, Nuove Questioni di Diritto Civile, vol. I, págs. 141 e segs.; Edmundo Lins, Estudos jurídicos, pág. 303. 198. Conceito de contrato preliminar. Generalidades Quando duas pessoas querem celebrar um contrato, normalmente passam por aquelas fases a que nos referimos no nº 188, supra: debatem os seus interesses em negociações preliminares; uma delas formula a proposta; a outra declara a sua aceitação. Não é, porém, fora dos quadros habituais que ambas acordem sobre o objeto, fixem condições, e ajustem a celebração de um contrato que é, no entanto, transferido para um momento futuro, seja em razão de impossibilidade momentânea para a sua conclusão, seja porque surjam dificuldades no preenchimento de requisitos formais, seja pela demora na obtenção de financiamento, seja simplesmente por motivos particulares de conveniência. Em tais casos, firmam um contrato, tendo em vista a celebração do outro contrato: realizam um negócio, ajustando contrato que não é o principal, porém, meramente preparatório: não é a compra e venda ou o mútuo, mas a realização futura de um outro contrato, o principal, que, este sim, será a compra e venda, ou o mútuo, ou outra espécie contratual. Daí poder-se conceituar o contrato preliminar com aquele por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar mais tarde outro contrato, que será contrato principal.1 Diferencia-se o contrato preliminar do principal pelo objeto, que no preliminar é a obrigação de concluir o outro contrato, enquanto que o do definitivo é uma prestação substancial.2 Distingue-se, também, das negociações preliminares, em que estas não envolvem compromissos nem geram obrigações para os interessados, limitando-se a desbravar terreno e salientar conveniências e interesses, ao passo que o contrato preliminar já é positivo no sentido de precisar de parte a parte o contrato futuro. A figura não é nova. Já era conhecida dos romanos, não como um contrato propriamente dito, revestido das características e acompanhado dos efeitos dos contratos, porém como um pacto, que os romanistas generalizam como pactum de contrahendo, por indução das espécies especificamente individuadas nas fontes: pactum de mutuando, pactum de commodando, e menos relevantemente pactum de emendo. O nosso direito anterior, pela voz dos grandes mestres (Teixeira de Freitas, Correia Telles), aludia, a seu turno, à hipótese de alguém obrigar-se a vender, o que significa sem dúvida reconhecer o contrato preliminar de compra e venda. O seu desenvolvimento, entretanto, deveu-se à velocidade do tráfico jurídico especialmente neste século, com a sua difusão por todos os sistemas, onde tem penetrado vigorosamente: Vorvertrag, no direito alemão; contratto preliminare ou ante-contratto, no direito italiano; avant contrat ou promesse de contrat ou compromis, no francês; contracto preliminar, no espanhol e hispano-americano. No nosso direito difundiu-se largamente, não logrando a doutrina e a legislação unidade de vistas na escolha de seu nome: pré-contrato, antecontrato, contrato preparatório, compromisso (Lei nº 58, de 1937; Lei nº 649, de 11 de março de 1949; DL nº 745, de 7 de agosto de 1969; Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979), promessa de contrato (Código de Processo Civil de 1939, art. 1.006). Com boa sorte de escritores e com o nosso Projeto de Código de Obrigações, que traz o amparo da sua Comissão revisora, preferimos a todos eles a designação contrato preliminar, que dá melhor mostra de seu caráter preparatório, e de sua condição de ato negocial sem foros de definitividade, denominação esta adotada no Código Civil de 2002, em seus arts. 462 a 466. Sob certo aspecto, o contrato preliminar é uma fase particular da formação dos contratos, já que as partes, que querem os efeitos de um negócio definitivo, estipulam entretanto que certos deles se não produzirão desde logo, pela vontade das mesmas partes; afora isto, é ele um contrato comum.3 Não há razão para o contrato preliminar, senão como processo preparatório do definitivo.4 Mas, levando em conta que encerra o consentimento perfeito, e que Se este não é avençado, a parte interessada na constituição em mora terá de interpelar a outra para que o cumpra, no prazo que for fixado. Mas, se existe termo estipulado, ocorre aqui uma peculiaridade a que já nos referimos (nº 173, supra, vol. II): é que, via de regra, o cumprimento do contrato preliminar bilateral exige para sua execução a participação do credor (pagamento de impostos, comparecimento a cartório, assinatura de instrumento etc.). Daí a necessidade, mesmo quando há prazo ajustado, de notificação ao devedor, determinando tempo e lugar do cumprimento. 199. Desenvolvimento da doutrina brasileira O contrato preliminar não recebera disciplina específica no Código de 1916, muito embora os nossos escritores mais reputados já aludissem ao fenômeno da promessa de contratar em nosso direito tradicional. Não obstante a ausência de regra expressa no Código de 1916, ensaiaram os nossos doutrinadores os primeiros passos na construção dogmática do contrato preliminar, a qual é igual ou superior às mais adiantadas. Não nasceu tal doutrina como fruto de elucubrações cerebrinas, mas elevou-se em torno da promessa de compra e venda, que entre nós despertou o mais vivo interesse e teve a mais franca repercussão econômica, tanto mais que a valorização violenta dos terrenos próximos aos grandes centros urbanos provocou a indústria dos loteamentos, e a economia popular exigiu medidas severas contra a especulação e o aproveitamento. De início, vingou a doutrina da exigência da escritura pública para a validade da promessa de compra e venda, sem a qual nenhum efeito se lhe reconhecia. Neste sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal, acompanhando voto célebre de Edmundo Lins,12 e neste sentido falava a communis opinio. Contra o parecer, vozes valorosas levantaram-se, procurando solução mais compatível com a realidade e com as exigências do progresso. Os nossos Tribunais, não obstante, mostraram-se lamentavelmente tímidos e vacilantes, receosos de abrir a estrada e de acolher a tese dos que em trabalhos de valor doutrinário autêntico demonstravam a eficácia e os préstimos dos contratos preliminares de venda. Foi neste ponto que surgiu a teoria elaborada por Filadelfo Azevedo, no sentido destinado a ter a mais viva repercussão.13 Partiu de que o contrato preliminar é diverso, em sua natureza como nos seus efeitos, do principal, e, por esta razão, não sofre as restrições oriundas da forma deste. Gera obrigação de fazer, e, como tal, não está subordinado à exigência do instrumento público para ter eficácia. A regra é que a obligatio faciendi origina uma obrigação consistente em uma prestação de fato que deve cumprir-se especificamente, não se tornando inexeqüível no caso de recusa do devedor; pois que apenas aquelas personalíssimas são insuscetíveis de realização por outrem. As que o não forem, tanto se cumprem por ato do próprio devedor, quanto pelo de um terceiro (pág. 597). Por outro lado, sustentava que o contrato preliminar já encerra a obrigação de dar o consentimento para o contrato futuro, o que, levado um pouco mais longe, significa que "na promessa se contém potencialmente a própria venda" (pág. 596). Revestindo, então, a forma particular, nem por isto deixa de ter validade, pois que sujeita o inadimplente às perdas e danos, como ocorre no descumprimento de toda obrigação de fazer. Mas, se as partes tiverem adotado a forma pública, aproxima-se ele do contrato definitivo, e dá lugar à execução perfeita e coativa, valendo a sentença como título translativo do direito, em ação intentada para "compelir a execução da obrigação de fazer suprindo a sentença a injusta recusa do consentimento por parte do devedor" (pág. 611). Embora alicerçada em disposições legais e arrimada a fortes autoridades, e não obstante as soluções práticas de utilidade evidente, a tese não encontrou, de pronto, franca acolhida no pretório, sob fundamento de falta de amparo no direito positivo então vigente. Isto não obstante, não restou erma de aceitação, pois que algumas decisões a prestigiaram. Teve o mérito inconteste de abrir clareira, e traçar rumos, a que a evolução do instituto passou a obedecer. Com efeito, o Decreto-lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937, disciplinador da venda de terrenos loteados, estabeleceu no art. 16 ser lícito ao promitente- comprador, uma vez pagas todas as prestações, intimar o promitente-vendedor, que se recuse a dar-lhe escritura definitiva, para que o faça no prazo de 10 dias, e se nada opuser, ou for rejeitada sua oposição, o juiz por sentença adjudicará o terreno ao requerente. Desta sorte, atribuiu a lei efeitos amplos a este contrato preliminar, assegurando ao sujeito ativo execução direta, com que perseguir a própria coisa, se o devedor injustificadamente lhe recusar a prestação de fato a que era obrigado. Pouco depois do Decreto-lei nº 58, Carlos Fulgêncio da Cunha Peixoto, no mesmo rumo de Filadelfo Azevedo, sustentava que, se feito por escritura pública e com outorga uxória, o contrato preliminar de compra e venda comportava execução compulsória.14 Desprendendo-se da restrição contida no Decreto-lei nº 58, de 1937, o Código de Processo Civil de 1939, art. 1.006, deu maior amplitude ao contrato preliminar, ao cogitar da execução das obrigações de fazer, dispondo que, se condenado o réu a emitir declaração de vontade, será esta havida por enunciada logo que a sentença de condenação transite em julgado. E em particular, o seu § 2º dispôs que cabe ao juiz assinar prazo ao devedor para que execute a obrigação oriunda da promessa de contratar, desde que preencha ele os requisitos do definitivo. À vista disto, a doutrina reafirmou que a promessa de contratar tem sempre validade, qualquer que seja a forma de que se revista. Seus efeitos é que variam: se não preencher todos os requisitos de validade do contrato definitivo, o descumprimento sujeita o infrator a perdas e danos; se os revestir, a sentença suprirá a falta do contrato principal, e servirá de título ao credor.15 O Anteprojeto do Código de Obrigações, de 1941, marcha na mesma linha desta evolução, e no art. 94 faz uma distinção que é uma síntese do que a doutrina havia elaborado, e que o legislador estatuíra: se o contrato preliminar não revestir a forma especial prescrita para o definitivo, deve perdas e danos aquele dos contratantes que se recusar a outorgá-lo, salvo se houverem as partes estipulado arras penitenciais; se, ao revés, tiver sido adotada a mesma forma requerida para o contrato principal, a parte inadimplente estará sujeita à execução judicial, atribuindo-se à sentença, que então for proferida, o efeito de suprir a declaração de vontade do contratante que a tenha recusado. A linha de evolução da doutrina em torno do contrato preliminar tem sido marcada por uma constante: o crescente prestígio deste negócio jurídico, e a afirmação cada vez maior de seus efeitos, até alcançar um estado compatível com o desenvolvimento do comércio jurídico. Acompanhando o legislador as marchas que a doutrina realizava, foi pouco a pouco afeiçoando a norma aos imperativos práticos. O desenvolvimento da doutrina culminou com a entrada em vigor no Código Civil de 2002, que dedicou a Seção VIII, do Capítulo I, do Título V, ao contrato preliminar, estipulando expressamente não só a desnecessidade de forma pública, como também, conforme já autorizavam as normas processuais, a possibilidade de o juiz, a pedido do interessado, suprir a vontade da parte inadimplente, conferindo assim caráter definitivo ao contrato preliminar, salvo se a isto se opuser a natureza da obrigação. À parte credora foi resguardado o direito, em caso de inadimplemento da obrigação, de considerar o contrato desfeito e solicitar perdas e danos (arts. 463 a 465). 200. Efeitos do contrato preliminar À vista dos princípios legais em vigor, pode-se resumir o tratamento dado ao contrato preliminar em nosso direito. Como corolário natural do princípio consensualista entre nós vigorante, não há imposição de forma para a sua validade (art. 462), bem como para a produção normal de suas conseqüências jurídicas; quer revista a forma pública ou particular, quer se apresente ou não com os demais requisitos do contrato definitivo. Quanto à exigência de registro público, a regra do parágrafo único do art. 463 traz alguma dificuldade interpretativa, pois parece à primeira vista exigir o registro para a validade do contrato preliminar. Essa não é, no entanto, a melhor interpretação desta norma. O registro é exigido para que o contrato tenha efeitos em relação a terceiros. Entre as partes o contrato preliminar pode ser executado mesmo sem o registro prévio. O registro deve ser feito segundo a natureza do objeto. No caso de bens móveis, no Registro de Títulos e Documentos; no de bens imóveis, no Registro de Imóveis onde estiverem localizados. Sumário: 201. Noção e história das arras. 202. Função principal: confirmatória. 203. Função secundária: penitencial. Bibliografia: Van Wetter, Pandectes, vol. III, § 310; Giorgio Giorgi, Teoria delle Obbligazioni, vol. IV, nº 467; Ricci, Corso di Diritto Civile, vol. VI, § 196; Saleilles, Théorie Générale de l’Obligation, nº 249; Coelho da Rocha, Instituições de Direito Civil português, vol. II, § 740; Mazeaud et Mazeaud, Leçons de Droit Civil, vol. III, nº 806; Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nº 265; Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, vol. II, § 130; Colin et Capitant, Cours de Droit Civil, vol. II, nº 520; Enneccerus, Kipp y Wolff, Tratado, Derecho de Obligaciones, vol. I, § 36; Sílvio Rodrigues, Das Arras; Planiol, Ripert et Boulanger, Traité Élémentaire, vol. II, ns. 2.434; De Page, Traité Élémentaire de Droit Civil, vol. IV, ns. 270 e segs.; Giulio Venzi, Manuale di Diritto Civile Italiano, nº 436; Caio Mário da Silva Pereira, "Arras", in Revista Forense, vol. 68, pág. 476. 201. Noção e história das arras A palavra arra, que nos veio diretamente do latim arrha, pode ser pesquisada retrospectivamente no grego arrabôn, no hebraico arravon, no persa rabab, no egípcio aerb, com sentido de penhor, de garantia. É a mesma idéia que subsistiu através dos tempos. Sua riqueza de acepções demonstra, bem como a utilização do conceito em vários setores, técnicos e profanos, evidencia a sua utilização freqüente. Em vernáculo mesmo, significou de um lado o penhor, a quantia dada em garantia de um ajuste, como também a quantia ou os bens prometidos pelo noivo para sustento da esposa se ela lhe sobrevivesse, sentido em que a emprega Alexandre Herculano, num evidente paralelismo com o dote.1 A noção jurídica tem-se, contudo, mantido pura, dentro dos Códigos que inscrevem todos o milenar instituto. A existência das arras é assinalada, com efeito, em quase todas as antigas legislações,2 mas sua origem mais facilmente se rastreia no direito de família do que no de obrigações, pois que muito antes de se caracterizarem os contratos, quando não passavam ainda da permuta pura e simples de objetos, já elas eram conhecidas e usadas nos contratos esponsalícios.3 Extinguindo-se o regime da comunidade familiar, e tornando-se insuficiente a troca in specie para conter a complexidade dos negócios jurídicos, transplantou do direito de família para as relações obrigacionais o instituto da arra, para garantia do pacto avençado, ou o reforçamento do contrato ajustado, sem que fosse ele abolido naquela antiga utilização. Lado a lado viveram, durante muito tempo, as duas figuras, da arra que atestava a solidez das obrigações ajustadas, e da arra que afiançava a realização dos casamentos tratados.4 Sua primeira finalidade, no direito obrigacional, foi assegurar a perfeição do contrato. Mais tarde outro efeito foi-lhe atribuído. Nos primeiros tempos, não. Foi o valor assecuratório que se lhe reconheceu no direito pré-romano,5 esse o seu sentido no Direito Romano pré-justinianeu: para demonstrar o acordo de duas vontades na realização do negócio, uma das partes transferia à outra determinada soma de dinheiro, dava-lhe uma coisa móvel, ou lhe entregava um anel - arrha in signum consensus interpositi data.6 Ulteriormente, no direito das Institutas, modificação introduzida por Justiniano dá lugar a controvérsia que a inflexibilidade dos textos antigos nunca autorizara. Dividem-se os glosadores e comentaristas no caracterizá-las, e duas escolas se constituem. Uma primeira sustenta modificação radical do direito. Domat, Molitor, Demangeat, Brunemann e outros, sem distinguir se está ou não perfeito o contrato, atribuem às arras a faculdade de retratação do ajustado, e entendem que foram convertidas de confirmatórias em penitenciais.7 Uma segunda, tendo à frente Cino e Bartolo, Cujácio, Voet, Pothier, firmados estes na glosa,8 preconizam que houve modificação apenas parcial do velho texto, admitindo a distinção: podem as arras ser dadas antes da perfeição do contrato, ou podem ser entregues depois de concluído. Somente no primeiro caso lhes parece ter havido a comentada modificação; somente para as vendas projetadas é que, no seu entender, importam elas em faculdade de arrependimento. Quando, ao revés, são transferidas depois de completada a convenção, conservam o caráter antigo de arrha confirmatoria, e provam a existência dela.9 Estas duas funções assumidas pelas arras, segundo os doutores, vieram influenciar a evolução moderna do instituto, que surge nos códigos como reprodução dos entendimentos que os romanistas imprimiam às fontes. Definindo-as confirmatórias dos contratos, ou ligadas à faculdade de retracto, as legislações dos diversos povos nada têm feito além de reproduzir o que encontraram, relatado e explicado pelos romanistas, segundo a velha tradição quiritária, como confirmatórias dos ajustes ou autorizadoras do arrependimento, segundo a codificação do século VI. As arras eram reguladas no Código de 1916 na parte geral dos contratos, nos arts. 1.094 a 1.097. Dava-se ênfase, assim, ao seu caráter de instrumento preparatório para a celebração do contrato. O Código de 2002 transferiu as regras das arras do direito dos contratos para o direito das obrigações, mais exatamente para o Título do Inadimplemento das Obrigações, dando-lhes o caráter mais de pré-fixação de indenização dos danos sofridos pela parte inocente na hipótese de o contrato não vir a ser celebrado. 202. Função principal: confirmatória Para umas legislações como a alemã, a suíça, a brasileira, a arra ou sinal, em seguimento à tradição do Direito Romano antigo, importa em uma convenção acessória real, tendo o efeito de provar que o contrato principal está concluído, havendo as vontades conseqüentes realizado o negócio jurídico, e considerando-se as partes reciprocamente vinculadas. Motivos de ordem altamente moral apontam este sistema como preferível, porque não deixa a seriedade dos negócios à mercê de um direito de arrependimento comprado e pago antecipadamente. Dadas as arras, o negócio está concluído. Não é mais possível o arrependimento. A parte que, depois de sua transferência, se arrepende e recusa, não usa de um direito, mas infringe o contrato. Em que pese a opinião de Larombière,10 arra era, entre os romanos, o anel que um dos contratantes transferia ao outro, para simbolizar a convenção perfeita. Também no velho direito francês não era menos que arra um vintém marcado, ou uma pequena moeda de cobre do mais ínfimo valor (liard), entregue pelo comprador ao vendedor, a que Pothier denomina denier d’adieu, e Merlin chama denier à Dieu, e era nitidamente confirmatória, porque, se o comprador pudesse (ou o vendedor) arrepender-se da compra e venda por um vintém, nenhuma seria por certo a seriedade dos negócios. Efeitos: Dado o sinal, está firmado o negócio. Se o objeto dado em arras for dinheiro ou outro bem móvel (Código Civil, art. 417) ou, como mais precisamente enuncia Saleilles, se guardar relação de fungibilidade com o objeto do contrato,11 consideram-se princípio de pagamento, que apenas deverá completar-se; devolvem-se, ao contrário, se não existir aquela relação, no momento em que o contrato se executa. Se, porém, o negócio se impossibilitar sem culpa, restituem-se, porque não sobrevive a causa de sua retenção. No caso, entretanto, de a impossibilidade originar-se de culpa, ou se houver recusa de cumprimento, perdê-las-á em benefício do outro contratante, se arrependido ou culpado for o que as tiver dado, caso este não queira obter a execução do contrato (Código Civil, art. 418). Se arrependido for o que as tiver recebido, determina o art. 418 que aquele que as deu tem a faculdade de haver o contrato por desfeito e exigir a sua devolução mais o equivalente (devolução em dobro), acrescido de correção monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado. A inserção no Código Civil de regra determinando a correção monetária do débito é infeliz e desnecessária. Trata-se de regra elaborada dentro da mentalidade inflacionária que vingou no País desde 1964. A correção monetária é elemento alimentador da inflação, que em níveis altos constitui um dos maiores flagelos sociais, já que faz subsistir simultaneamente duas moedas: a moeda corrente, de quem não dispõe de conta bancária e não pode se proteger em aplicações financeiras; o indexador, que mantém para aquele que tem capital suficiente para depositar o seu dinheiro o seu valor de compra. Também infeliz é a inserção de regra determinando o pagamento de honorários de advogado com o simples inadimplemento da obrigação, independentemente de Mazeaud, Leçons de Droit Civil, vol. II, nºs 766 e segs.; Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nº 286; Renato Scognamiglio, Contratti in Generale, nº 58; Pacchioni, I Contratti a Favore di Terzi, passim; Lúcio Fonte de Resende, Promessa de Fato de Terceiro; Enneccerus, Kipp y Wolff, Tratado, Derecho de Obligaciones, §§ 34 e 35. 204. Contratos em favor de terceiro. Generalidades Dá-se o contrato em favor de terceiro quando uma pessoa (o estipulante) convenciona com outra (o promitente) uma obrigação, em que a prestação será cumprida em favor de outra pessoa (o beneficiário). Muito se tem debatido em doutrina a propósito da caracterização jurídica deste ato negocial, que por seu aspecto exterior, por sua estrutura e por seus efeitos, se diversifica dos negócios jurídicos ordinários, pelo fato de ostentar algo diferente, com o comparecimento das declarações de vontade de duas pessoas na celebração de um ajuste, o qual beneficiará um estranho à relação jurídica. A extraneidade cresce, atentando-se em que este terceiro, embora não participante da formação do ato, adquire as qualidades de sujeito da relação obrigacional. Eis por que os autores não se harmonizam na sua conceituação, havendo nada menos de cinco explicações teóricas ou cinco posições doutrinárias diferentes na sua caracterização:1 A - Uns pretendem que a estipulação em favor de terceiro não passa de uma oferta à espera de aceitação, resultando o contrato formado quando o beneficiário manifesta a vontade de receber a prestação a que o promitente está obrigado. Não satisfaz a teoria, se se observa que o promitente não é mero policitante, mas verdadeiramente obrigado ou vinculado. B - Outros enxergam na estipulação em favor de terceiro uma gestão de negócios, empreendida pelo estipulante, como representante oficioso do terceiro, entabulando negócio que permanece na expectativa de aprovação deste, na qualidade de dominus. Também esta explicação não pode satisfazer, pelo fato de agirem em seu próprio nome o estipulante e o promitente, e não nomine alieno, o que desfigura inteiramente a hipótese de negotiorum gestio. C - Uma terceira corrente vai buscar na expressão vinculativa da declaração unilateral de vontade a sua estruturação. Mas não logra convencer, já que a estipulação em favor de terceiro requer o concurso de duas vontades para ter nascimento, e é portanto um ato tipicamente convencional. D - Em quarto lugar aparece uma justificativa já mais próxima de realidade, defendida como exceção à regra res inter alios acta aliis nec nocet nec prodest. Admitem que o terceiro, não participante de um negócio jurídico, receba a repercussão de seus efeitos. Falta-lhe, no entanto, a complementação, consistente na determinação precisa de sua natureza jurídica. E - Finalmente vem a sua configuração como contrato. Não um contrato como todos os outros, porém sui generis, visto como nasce, firma-se, desenvolve-se e vive como os demais contratos, porém se executa de maneira peculiar, com a solutio em favor de um estranho à relação criada. Como nota Clóvis Beviláqua, que é defensor de seu caráter contratual, existe uma despersonalização do vínculo, ao contrário da generalidade dos contratos, criando o que ele denomina "relação contratual dupla".2 Buscando materialização gráfica para este ato, figuramo-lo como um triângulo, cujo vértice a é ocupado pelo estipulante, e os ângulos b e c da base respectivamente pelo promitente e pelo beneficiário: a b c A estipulação em favor de terceiro é, com efeito, um contrato, e por isto ganha terreno a preferência pela sua nomeação como contrato em favor de terceiro. Origina-se da declaração acorde do estipulante e do promitente, com a finalidade de instituir um iuris vinculum, mas com a peculiaridade de estabelecer obrigação de o devedor prestar em benefício de uma terceira pessoa, a qual, não obstante ser estranha ao contrato, se torna credora do promitente. No momento da formação, o curso das manifestações de vontade estabelece-se entre o estipulante e o promitente (lado a-b do triângulo). O consentimento do beneficiário não é necessário à constituição do contrato, e por conseguinte à criação de vantagens em seu proveito.3 E nem se argumente contra esta conseqüência, porque também o herdeiro adquire a herança no momento da abertura da sucessão, independentemente de sua aceitação e até de sua ciência.4 Não se pode, entretanto, negar ao terceiro a faculdade de recusar a estipulação em seu favor, expressa ou tacitamente.5 No momento de sua execução, flui pela base ou pela linha b-c do triângulo, isto é, entre promitente e beneficiário. E, para fechá-lo, lado a-c, há faculdades reconhecidas ao estipulante quanto à revogação da estipulação, substituição do beneficiário, e mesmo revogação do benefício em caso de descumprimento de encargo eventualmente imposto ao terceiro, como tudo veremos ao tratar dos seus efeitos no nº 205, infra. A conceituação contratualista da estipulação, que é a sua verdadeira caracterização jurídica, não pode sofrer entre nós a menor dúvida, uma vez que é doutrina legal, perfilhada e consagrada no Código Civil. Por outro lado, não vigora em nosso direito a concepção da estipulação como negócio jurídico acessório. Mesmo onde assim se entendia, como se dava no direito francês, a elaboração jurisprudencial e o trabalho hermenêutico rejeitaram este caráter, tratando-a como principal.6 A doutrina moderna está assente em que o fato só da estipulação, independentemente da intervenção ou anuência do terceiro, é que dá origem aos direitos a este destinados.7 Se não há harmonia entre os doutores na sua caracterização jurídica, aprovação da doutrina não lhe falta à caracterização econômica, apontando Tito Fulgêncio várias hipóteses de sua utilização no comércio jurídico: 1 - Constituição de renda em que o promitente recebe do estipulante um capital, e obriga-se a pagar ao beneficiário uma renda por tempo certo ou pela vida toda. 2 - Seguro, em várias de suas modalidades (de vida, contra acidentes pessoais, contra acidentes do trabalho, dotal), em que o segurado (estipulante) contrata com o segurador (promitente) pagar ao beneficiário (terceiro) o valor ajustado, em caso de sinistro. 3 - Doações modais, quando o donatário se obriga para com o doador a executar o encargo a benefício de pessoa determinada ou indeterminada. 4 - Contratos com o Poder Público, concessão de serviço público etc. em que o contratante (promitente) convenciona com a Administração (estipulante) a prestação de serviços aos usuários (terceiros indeterminados). Para a formação da estipulação em favor de terceiro exigem-se os requisitos necessários à validade dos contratos em geral - subjetivos, objetivos e formais, convindo tão-somente fazer algumas alusões a peculiaridades deste contrato. Começando pelo último observamos que se trata de contrato consensual, sendo livre a sua forma;8 é muito freqüente neste campo o contrato-tipo, como o de adesão. A liceidade e a possibilidade do objeto merecem encarecidas, pois que não muda os termos da equação jurídica o fato de ser o credor um elemento estranho à criação do vínculo. No tocante ao requisito subjetivo, é claro que o estipulante e o promitente hão de ter aptidão para contratar. Não se requer, porém, a capacidade de terceiro, já que ele não intervém na celebração do contrato9 Outro aspecto a considerar reside na indagação formulada pela doutrina (Colin et Capitant, Mazeaud et Mazeaud, De Page) se é válida a estipulação em favor de pessoa indeterminada e futura. Pelo nosso direito não padece dúvida. Somente a indeterminação absoluta do credor invalida o contrato. Se o terceiro é momentaneamente indeterminado, mas suscetível de identificação (determinável), o ato é válido. O mesmo dir-se-á da futuridade, desde que ligada a fatores positivos de caracterização, como a referência aos herdeiros do estipulante ou de pessoa conhecida, alusão à prole de certo casal etc. 205. Efeitos do contrato em favor de terceiro Também aqui há uma relação jurídica entre duas pessoas capazes e aptas a criar direitos e obrigações, as quais ajustam um negócio jurídico tendo por objeto a prestação de um fato a ser cumprido por outra pessoa, não participante dele. A doutrina18 igualmente controverte na sua caracterização jurídica: a) Gestão de negócios: com a qual guarda sem dúvida remota semelhança, mas de que vivamente difere, pelo fato de o promitente não se pôr na defesa dos interesses do terceiro, oficiosamente; ao contrário, o objetivo a que visa é tornar o terceiro devedor de uma prestação, no interesse do estipulante. b) Mandato: desassiste razão aos que aproximam ao mandato esta figura contratual, por faltar a representação, que em nosso direito lhe é essencial (v. nº 271, infra). c) Fiança: a aproximação com esta é também resultante de um desvio de perspectiva. A garantia fidejussória é contrato acessório, ao passo que o contrato por terceiro é principal. Tal qual ocorre na estipulação em favor de terceiro, aqui também há duas fases a considerar: I - Uma primeira, da formação, em que comparecem dois contratantes, e concluem um negócio jurídico no qual somente eles são partes e são interessados. II - Uma segunda fase, da execução, em que surge uma terceira pessoa, e, dando a sua anuência, obriga-se a uma prestação, para com o credor, segundo o que fora estipulado com o devedor na primeira fase. Este ato negocial compreende, assim, dois devedores. O credor é sempre o mesmo, com direito oponível a seu contratante até a anuência do terceiro, e contra este a partir de então. Os dois devedores são, portanto, sucessivos, e não simultâneos. Primeiramente, o credor o é daquele que se obrigou a obter a prestação do terceiro; uma vez dê este a sua anuência, o credor passa a ter direito de obter a solutio contra ele. A sucessividade da relação debitória está em que o terceiro a nada é obrigado enquanto não der o seu acordo, assumindo, destarte, a obrigação de prestar. A característica essencial desta espécie negocial está assentada precisamente em que não nasce nenhuma obrigação para o terceiro enquanto ele não der o seu consentimento. Pode-se prometer a prestação de fato do terceiro, mas obviamente não se pode compeli-lo a executar a prestação prometida.19 Durante a primeira fase, existe uma obrigação para quem contratou com o credor, assegurando a este que o terceiro faria a prestação. A denominação do negócio no direito francês dá bem a idéia de sua posição: convention de porte-fort, originária da fórmula adotada na celebração do ajuste, quando o devedor primário "se porte-fort pour un tiers" (Código Civil francês, art. 1.120), ou no exemplo da doutrina: "je me porte-fort que Pierre vous paiera cent", equivalente a "prometo que Pedro lhe pagará a soma indicada".20 A análise da convenção e a sua decomposição nas duas fases esclarecem bem a sua estrutura, quanto aos seus efeitos. No primeiro momento (formação), o devedor primário ajusta a constituição de uma obrigação convencional com o credor, de quem se torna devedor. O objeto da sua obrigação é conseguir que o terceiro se obrigue à prestação, isto é, que o terceiro consinta em tornar-se devedor de certa prestação.21 Ele não deve a prestação final, porque esta ficará a cargo do terceiro, mas é devedor de uma prestação própria, a qual consiste em obter o consentimento do terceiro. Não se desobrigaria, porém, mostrando que envidou esforços no sentido de obter a anuência, porque a sua obrigação, na terminologia que registramos no nº 32, supra (volume II), é da categoria das de resultado, e não de meios; é devedor de uma obrigação de fazer, consistente em conseguir o compromisso do terceiro.22 Se o terceiro consente, obriga-se, e com isto executa-se a obrigação do devedor primário. Mas, se não o fizer, o devedor primário (devedor da convenção de porte-fort) é inadimplente. E, como se não trata de prestação fungível, porque adstrita à obtenção de compromisso de um terceiro, sua inexecução sujeita-o a perdas e danos (Código Civil, art. 439). A fixação do objeto da obrigação, como bem acentua Serpa Lopes, é essencial para que se dê substância à obrigação, e para que se caracterizem os seus efeitos. O objeto da obrigação do devedor primário não é limitado a um "esforço" no sentido de obter o consentimento do terceiro. É mais do que isto. Consiste em atingir um resultado: obter aquele compromisso. Assegurando que o terceiro se obrigaria a determinada prestação, haverá inadimplemento se o terceiro negar o seu consentimento. E, então, as perdas e danos são devidas. Uma vez que o terceiro anua e se obrigue, o devedor primário exonera-se. Ele não é um fiador do terceiro; não é co-responsável pelo cumprimento específico da obrigação que o terceiro vem a assumir. O conteúdo da obrigação, como observa Messineo, não é diretamente o fato do terceiro.23 É o compromisso do terceiro. A sua obrigação extingue-se quando o terceiro assume o compromisso de prestar. E, se não o faz, o credor tem ação contra este que se obrigou ao débito específico, e não contra aquele que se comprometeu a conseguir o compromisso. Os objetos das obrigações não se confundem. Por não atentar nisto, muitos escritores se desviam do bom curso, e nem Clóvis Beviláqua escapou,24 sustentando tese desafinada da natureza do instituto, provavelmente mal inspirado na defeituosa redação do dispositivo do Código de 1916 por ele comentado, repetido no Código Civil de 2002. É preciso deixar bem certo que o promitente não é fiador do terceiro, embora nada impeça que se comprometa na dupla qualidade de porte-fort e de fiador. Quer dizer: que se obrigue pelo fato do terceiro e ao mesmo tempo assuma o encargo de substituí- lo como seu garante, no caso de faltar ele à execução do que venha a ser o objeto específico do próprio fato.25 O promitente não se exonera, com fundamento nos motivos da recusa do terceiro. Este pode ter razões poderosas para isto, e mesmo assim o devedor primário está sujeito a ressarcir perdas e danos. Seu compromisso era obter o consentimento do terceiro, e não apenas conseguir os motivos da recusa do terceiro. Exime-se, entretanto, de compor o id quod interest, quando a prestação do terceiro não pode ser feita por impossibilidade ou por iliceidade. No primeiro caso, a obrigação não tem objeto (obriga-se o devedor a que o terceiro lhe alugue um cavalo, e este morre); no segundo, não pode o credor fazer de um objeto ilícito fonte de obrigação jurídica (obriga-se a obter que a autoridade policial conceda licença para que o credor instale uma casa de tavolagem). Não se exonera o promitente em razão da incapacidade do terceiro, pois nada impede que se obrigue pela prestação de fato de um menor ou de um interdito, e até de pessoa futura, como é o caso, aliás freqüente, de quem assume o compromisso de obter o acordo de uma sociedade em vias de constituição.26 Em todas essas hipóteses o devedor primário responde pelas perdas e danos se o acordo não é obtido, como no caso de recusá-lo o menor ao atingir a maioridade, ou da autoridade judiciária negar autorização para o ato, ou de se não constituir a sociedade, ou de seus órgãos deliberativos decidirem em contrário. O parágrafo único do art. 439 contém uma exceção à regra do dever de indenizar por parte do promitente em caso de recusa por parte do terceiro de executar a obrigação. Quando o promitente se obrigar a fato de terceiro que seja seu cônjuge, consubstanciado em ato que para a sua validade e eficácia dependa da autorização do cônjuge, não será obrigado a indenizar o credor, caso tal indenização, em razão do regime de bens existente entre os cônjuges venha a afetar o patrimônio do cônjuge que não anuiu em se obrigar. Se assim não fosse, estaríamos diante de hipótese em que o terceiro acabaria prejudicado pela estipulação com a qual não anuiu. O Código dispõe ainda, em seu art. 440, que na hipótese de o terceiro anuir em prestar em favor do credor, ou seja, assumir a obrigação prometida, o promitente, por já ter cumprido a sua obrigação, fica exonerado e não responde perante o credor caso haja inadimplemento do terceiro que veio a se obrigar. 206-A. Contrato com pessoa a declarar O contrato com pessoa a declarar é modalidade contratual sem origem no Direito Romano, dado o caráter personalíssimo das obrigações, incompatível com a circunstância de duas pessoas celebrarem um contrato, cujos efeitos desbordem delas. Tradicionalmente, os direitos nascidos de um contrato percutem nos que dele participam, seus herdeiros e subrogatários, seus graduação dos respectivos efeitos, sem aparecer como elemento de sua caracterização. O erro tem sido apontado como seu fundamento, com o argumento de que o agente não faria o contrato se conhecesse a verdadeira situação (Carvalho de Mendonça); na teoria dos riscos vai justificá-lo Brinz; na responsabilidade do vendedor pela impossibilidade parcial da prestação, assenta-o Regelsberger; vai Windscheid ligá-lo à pressuposição; Cunha Gonçalves acha uma variante desta na inexecução do alienante: Von Ihering prende-o à eqüidade; Fubini toma em consideração a finalidade específica da prestação.1 Para nós, o seu fundamento é o princípio de garantia, sem a intromissão de fatores exógenos, de ordem psicológica ou moral. O adquirente, sujeito a uma contraprestação, tem direito à utilidade natural da coisa, e, se ela lhe falta, precisa de estar garantido contra o alienante, para a hipótese de lhe ser entregue coisa a que faltem qualidades essenciais de prestabilidade, independentemente de uma pesquisa de motivação. Por isto, Tito Fulgêncio, em síntese apertada e feliz, enuncia-o, dizendo que o alienante é, de pleno direito, garante dos vícios redibitórios.2 Ao transferir ao adquirente coisa de qualquer espécie, seja móvel, seja imóvel, por contrato comutativo, tem o dever de assegurar-lhe a sua posse útil, se não equivalente rigorosa, ao menos relativa do preço recebido. E, se ela não se presta à sua finalidade natural, ou se não guarda paralelismo com o valor de aquisição, prejudicada por defeito oculto, tem o adquirente o direito de exigir do transmitente a efetivação do princípio de garantia. Segundo o que se deduz da norma legal, e dos princípios doutrinários assentes, alinham-se alguns requisitos de verificação dos vícios redibitórios, a saber: A - Os defeitos devem ser ocultos, pois que os ostensivos, pelo fato de o serem, se presumem levados em consideração pelo adquirente, que não enjeitou mas recebeu a coisa. A verificação deste requisito é às vezes difícil na prática, já que um defeito pode ser oculto para uma pessoa e perceptível facilmente para outra. A apuração far-se-á, entretanto, in abstracto, considerando-se oculto o defeito que uma pessoa, que disponha dos conhecimentos técnicos do adquirente, ou que uma pessoa de diligência média, se não for um técnico, possa descobrir a um exame elementar.3 Não se reputa oculto o defeito somente porque o adquirente o não enxergou, visto como a negligência não merece proteção. B - Deverão ser desconhecidos do adquirente; se deles tiver conhecimento, mesmo que não sejam aparentes, não se pode queixar de sua presença. C - Somente se levam em conta os já existentes ao tempo da alienação e que perdurem até o momento da reclamação. Os supervenientes afetam coisa já incorporada ao patrimônio do adquirente; e se houverem cessado, deixam a demanda sem objeto.4 D - Não é qualquer defeito que fundamenta o pedido de efetivação do princípio, porém aqueles que positivamente prejudicam a utilidade da coisa, tornando-a inapta às suas finalidades, ou reduzindo a sua expressão econômica.5 O seu campo de ação é o contrato comutativo. Alguns Códigos os mantêm como integrantes das obrigações do vendedor (francês, italiano de 1865, italiano de 1942, montenegrino, espanhol, alemão, suíço das Obrigações etc.); o argentino insere-o na disciplina dos contratos comutativos; o Projeto Felício dos Santos cuidava deles na parte geral dos contratos; o Código Civil brasileiro consolida a sua dogmática na parte geral dos contratos, mas em particular restringe a sua incidência aos contratos comutativos. A estes, entretanto, e para o efeito de abrigar a teoria dos vícios redibitórios, a lei equipara as doações onerosas (Código Civil, art. 441, parág. único), porque, se não perdem o caráter de liberalidade, impõem ao donatário uma prestação em favor de outrem, determinada ou indeterminadamente (v. nº 233, infra). Desde que se configurem as condições de sua ocorrência, o alienante responde pelos vícios redibitórios. Não se exime, ainda que os ignore (Código Civil, art. 443), pois que o fundamento da responsabilidade, como vimos, não é a sua conduta, mas pura e simplesmente a aplicação do princípio de garantia. E não se exonera, igualmente, se a coisa, já em poder do adquirente, vier a perecer em razão do vício oculto e preexistente (Código Civil, art. 444), pois se é certo que res perit domino, a relação de causa e efeito, contudo, entre o perecimento e o defeito implica a responsabilidade do alienante. Neste caso, o adquirente tem direito ao reembolso do preço, posto não restitua a coisa perempta.6 Ressalva- se, porém, o perecimento devido a caso fortuito, e não em conseqüência do defeito anterior, para absolver o alienante da garantia, pois que o dano lhe viria de qualquer maneira.7 Igual solução merece o perecimento devido à culpa do adquirente e não ao vício oculto.8 E, de nossa parte, acrescentaríamos casus a nullo praestantur: ninguém pode ser responsabilizado pelo fortuito. Também não cabe responsabilidade se a coisa for alienada em hasta pública, não só porque a sua exposição prévia possibilitaria minucioso exame, como ainda pelo fato de ser forçada, em processo judicial, em que se realiza por autoridade da justiça. Aliás, é de esclarecer que por venda em hasta pública deve entender- se a que se faça compulsoriamente (penhora em ação executiva, venda por determinação judicial em inventário, venda de bens de órfãos etc.), pois que, se o interessado livremente escolheu o leilão para a alienação, subsistirá a garantia.9 Descabe, finalmente, se tiver havido, por parte do adquirente, renúncia expressa ou tácita à garantia. 208. Efeitos dos vícios redibitórios Recebida a coisa portadora de vício ou defeito oculto, pode o adquirente enjeitá- la redibindo o contrato. Não é obrigado, evidentemente, a manter o negócio e conservar a coisa que não se preste à sua finalidade, ou esteja depreciada. E voltam as partes ao statu quo ante. Já o Direito Romano, através da palavra de Ulpiano, havia disciplinado o instituto e determinado este efeito: "Reddhibere est facere ut rursus habet venditor quod habuerit: quia reddendo id ffiebat, idcirco reddhibitio est appellata. quasi redditio."10 Devolverá o adquirente o bem, ou o porá à disposição do alienante. E este terá de restituir o preço, mais as despesas do contrato. Aqui, neste ponto, é que tem importância a apuração da conduta do alienante, que verá sua responsabilidade agravada se conhecia o defeito, caso em que, além da restituição do preço, e mais despesas do contrato, tem de ressarcir ao adquirente as perdas e danos conseqüentes (Código Civil, art. 443). Pode acontecer que, portadora embora do vício oculto, a coisa ainda tenha utilidade para o adquirente, e não seja de seu interesse, nem de sua conveniência, enjeitá-la, devolvendo-a ao alienante por via da ação redibitória (actio reddhibitoria no Direito Romano, Wandelung no direito alemão). Em tal caso, faculta-lhe a lei outra ação, a estimatória ou de abatimento de preço (actio aestimatoria ou quanti minoris no Direito Romano, Minderung no alemão), pela qual o adquirente, conservando a coisa defeituosa, reclama seja o seu preço reduzido daquilo em que o defeito oculto a depreciou, para que não o pague por inteiro, ou, se já o tiver feito, para que obtenha restituição parcial do despendido (art. 442). Esta faculdade não pode ser levada ao extremo de criar para o adquirente uma fonte de enriquecimento, mas deve ser de damno vitando, limitada a proporcionar ao adquirente uma solução eqüitativa, que o resguarde de pagar pela coisa defeituosa o preço de uma perfeita. A lei cria, desta sorte, uma obrigação alternativa a benefício do adquirente. O alienante deve a redibição do contrato ou a diferença de preço, e, como a escolha cabe ao credor, fará este a opção, com o efeito de concentrar a prestação (v. nº 144, supra, vol. II). Daí afirmar-se, com boa extração, que a escolha é irrevogável. Uma vez feita, não admite recuo - electa una via non datur recursus ad alteram.11 Opinião contrária se encontra na doutrina alemã, em razão do § 465 do BGB permitir o pedido alternativo, e dispor que a redibição ou o abatimento do preço se consideram adquiridos no momento em que o vendedor der a sua aquiescência. O direito francês, além de outros casos em que é negada a opção ao adquirente, faculta-lhe tão-somente a ação de abatimento de preço quando o juiz estima o vício oculto pequeno demais para fundamentar a redibição.12 O direito do adquirente está sujeito a um prazo de decadência, que varia conforme se trate de coisa imóvel (um ano, art. 445 do Código Civil) ou de coisa móvel (30 dias, art. 445). Trata-se de decadência, porque o direito está condicionado ao exercício dentro de prazo legal, e por isto mesmo é insuscetível de interrupção. O prazo de 30 dias é suficiente quando a coisa móvel é mais simples, sendo exíguo para os aparelhos complexos (instrumentos de difícil instalação, aviões, motores etc.). Sentindo-o, a prática dos negócios corrige a Sumário: 209. Noção geral de evicção. 210. Efetivação da garantia. 211. Evicção parcial. Bibliografia: Alberto Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, nº 321; Ruggiero e Maroi, Istituzioni di Diritto Privato, vol. II, § 141; Clóvis Beviláqua, Comentários ao Código Civil Brasileiro, vol. IV, aos arts. 1.107 e segs.; Serpa Lopes, Curso de Direito, vol. III, ns. 103 e segs.; Arangio Ruiz, "Evizione", in Dizionario Pratico di Diritto Privato, de Scialoja; Planiol, Ripert et Boulanger, Traité Élémentaire de Droit Civil, vol. II, ns. 2.529 e segs.; Gaudemet, Obligations, pág. 357; Colin et Capitant, Cours Élémentaire de Droit Civil Français, vol. II, ns. 529 e segs.; Mazeaud et Mazeaud, Leçons de Droit Civil, vol. III, ns. 952 e segs.; Cunha Gonçalves, Da Compra e Venda, ns. 136 e segs.; Sebastião de Sousa, Da Compra e Venda, nº 127; Domenico Rubino, La Compravendita, nº 169; M. I. Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, ed. atualizada por José de Aguiar Dias, vol. II, ns. 705 e segs.; Enneccerus, Kipp y Wolff, Tratado, Derecho de Obligaciones, vol. II, § 106; Paulo Barbosa de Campos Filho, Da Evicção do Arrematante. 209. Noção geral de evicção Quando alguém adquire o domínio, a posse ou o uso de um bem, por contrato oneroso, está visando a uma utilidade que corresponde à contraprestação efetuada. Nos ns. 207 e 208 cogitamos dos defeitos materiais da coisa recebida, deduzindo a teoria dos vícios redibitórios. No presente capítulo vamos tratar do defeito de direito, que a atinja. A teoria dos vícios redibitórios aproxima-se da evicção, porque uma e outra vão assentar a responsabilidade do alienante na mesma razão jurídica, que é o princípio de garantia, oferecido pela lei ao adquirente contra o alienante. Chama-se evicção a perda da coisa, por força da sentença judicial, que a atribui a outrem, por direito anterior ao contrato aquisitivo:1 "Evincere est vincendo in iudicio aliquid auferre." Analisando esta definição, encontramos, a uma só vez, os seus requisitos e o desenvolvimento do instituto: A - Perda da coisa. Recebendo-a o adquirente em estado de servir, e sem que sofra a ação de qualquer defeito oculto que a atinja, vem a perdê-la privando-se do domínio, da posse ou do uso. A perda pode ser total ou parcial, conforme o adquirente seja dela despojado na sua integridade ou apenas parcialmente. B - Sentença. Não é qualquer perda que constitui evicção, mas aquela que se opera em virtude de sentença judicial. O perecimento do objeto, a sua destruição, a sua subtração pelas vias de fato de terceiro são hipóteses em que o adquirente sofre a perda da coisa ou de sua utilização. Mas não ocorre evicção, porque esta pressupõe um pronunciamento da Justiça. Não obstante a exatidão do princípio, conforme com a estrutura legal e dogmática do instituto, casos há assemelháveis à evicção, produtores dos mesmos efeitos jurídicos desta. 1 - Abandono da coisa antes de sentença, quando o direito do terceiro- reivindicante é de tal forma incontroverso que o prosseguimento do litígio implicaria injustificada recalcitrância e em dispêndio inútil de energia processual como financeira. Mas, para que o abandono possa equivaler à evicção, não pode ser arbitrário do adquirente, porém nele há de convir o alienante.2 2 - Remissão hipotecária, na forma do que dispõe o art. 1.481 do Código Civil, em virtude do qual o adquirente de um bem hipotecado, ante a alternativa de sofrer a excussão da hipoteca ou pagar o débito garantido, opta por esta segunda hipótese e, despendendo soma em solução da dívida do alienante, redime a coisa adquirida; não ocorre a sua perda, por ter sido evitada com o dispêndio realizado pelo adquirente, o qual, por isto mesmo, tem a faculdade de proceder contra o alienante, como se fosse evicto. 3 - Vias de fato de terceiro, confirmadas judicialmente, no caso do adquirente acorrer em defesa da coisa arrebatada, e na ação que intentar, para reivindicá-la ou sustentar a sua integridade jurídica, ser vencido sob o fundamento do direito anterior do terceiro demandado; a analogia com a evicção está em que o pronunciamento judicial confirmatório da situação fática criada pelo terceiro gera a mesma conseqüência que produziria uma sentença condenando o adquirente a efetuar sua entrega a outrem. 4 - Conservação da coisa por título diverso do contrato aquisitivo, caso em que não ocorre a perda do bem recebido, porque o adquirente vem a consolidar seu direito em virtude de uma causa jurídica diversa, como, por exemplo, no caso de ser herdeiro do terceiro evidente, e tornar-se dono por sucessão causa mortis; não há perda do bem jurídico, mas fatalmente o perderia se não ocorresse a interferência de outra causa jurídica para a sua retenção.3 C - Anterioridade do direito do terceiro. A perda da coisa, mesmo que se dê por sentença judicial, não caracteriza por si só a evicção. Esta pressupõe que o pronunciamento da Justiça se funda em causa preexistente ao contrato pelo qual se operou a aquisição do direito do evicto. Se este houver deixado constituir em favor de alguém um direito que motive a perda da coisa, sibi imputet e não vá reclamar do alienante, pois que este lhe transferira um bem escorreito. Somente pode o transmitente ser chamado a responder pela perda, quando esta é devida à motivação anterior ao contrato. Em caso de usucapião iniciado antes e completado depois da transmissão ao adquirente, a doutrina inclina-se pela sua absolvição, porque, estando nas mãos do adquirente interromper a prescrição, não pode atribuir ao alienante as conseqüências de ter deixado de fazê-lo e tolerado a continuação de uma posse prejudicial ao seu direito. A sentença atributiva da coisa ao usucapiente não se baseia em causa anterior, porque o início do prazo da prescrição aquisitiva era inidônea a converter a posse em domínio; requer o seu escoamento completo, e este veio ocorrer após o contrato aquisitivo.4 Ressalva-se contudo, a responsabilidade do alienante se o prazo prescricional se completa tão próximo do ato de aquisição que não haja tempo para que o adquirente conheça a situação e o interrompa.5 Exceção razoável ao princípio da anterioridade é a desapropriação da coisa, posteriormente ao contrato, sempre que o decreto declaratório da utilidade pública já exista no momento da transmissão e não tenha sido acusado pelo alienante,6 porque, embora a perda da coisa ocorra posteriormente ao contrato aquisitivo, sua causa o antecede, e não está nas mãos do adquirente evitá-la. O campo de ação da teoria da evicção são os contratos onerosos. Quase todos os Códigos, mesmo os mais modernos, disciplinam a evicção no contrato de compra e venda. Mas não têm razão, porque este gênero de garantia não fica adstrito a esta figura contratual. Andou bem o direito brasileiro, colocando-a na parte geral dos contratos, e foi fiel à tradição romana que não limitava os seus efeitos à emptio-venditio.7 Em princípio, o alienante não responde por ela nos contratos gratuitos, a não ser que expressamente o declare. Abre-se, porém, uma exceção legal para as doações modais, porque, sem perderem o caráter de liberalidade, assemelham-se aos contratos onerosos, em razão do encargo imposto ao donatário Em nosso direito é ociosa a indagação se cabe a garantia na hipótese de o adquirente ser despojado da posse e não do domínio, porque o art. 447 do Código Civil espaventou a dúvida, instituindo a garantia toda vez que, por contrato oneroso, se faça a transferência tanto do domínio quanto da posse ou do uso. O Código de 2002 inovou em relação ao direito anterior, ao dispor que subsiste a garantia da evicção ainda que a aquisição se tenha realizado em hasta pública. Diante de tal regra, a pergunta cabível, não respondida pelo Código, consiste em se saber quem responde pela evicção na alienação em hasta pública, tendo em vista que nessa hipótese a venda não se dá espontaneamente pelo proprietário da coisa, mas sim pelo Estado, a fim de que terceiro seja favorecido. Imagine-se a hipótese de um bem ser alienado em hasta pública após ter sido penhorado para a garantia de uma execução contra o proprietário. Em ocorrendo a evicção, o adquirente do bem deve exigir a indenização pela sua perda do antigo proprietário, ou do credor que obteve o proveito com a venda que veio a ser prejudicada em razão de um direito anterior? Na primeira hipótese, as chances de o adquirente vir a obter a sua indenização são diminutas, tendo em vista o provável estado de insolvência do proprietário que teve bem de sua propriedade levado a hasta pública. Na segunda hipótese, se estará transferindo a responsabilidade pela evicção a quem nunca foi proprietário da coisa evencida. Não é somente na transmissão de direitos reais que ocorre a responsabilidade pela evicção, senão também na de créditos.8 Mas aqui os princípios variam um tanto, pois que, conforme já vimos no nº 181, supra (vol. I), o cedente responde O adquirente não pode demandar pela evicção, afora as hipóteses supramencionadas, quando falta algum dos seus pressupostos essenciais: a) se a perda não ocorre em virtude de sentença, mas resulta de caso fortuito, força maior, roubo ou furto, mesmo que o perecimento se dê na pendência da lide (Clóvis Beviláqua), porque o alienante deve a garantia pela integridade jurídica do objeto, mas não tem obrigação de resguardá-lo do fato das coisas ou dos homens. Não há responsabilidade, igualmente, se, em vez de sentença judicial, a perda provier de um provimento administrativo, como a requisição da coisa ou a condenação do edifício pela saúde pública;16 b) não há responsabilidade para o alienante se o adquirente sabia que a coisa era alheia, porque seria ele, no caso, um cúmplice do apropriamento, e não pode fundar, na sua conduta ilícita, uma pretensão jurídica; c) igualmente inexiste se sabia o adquirente que a coisa era litigiosa, porque então estava ciente de que a prestação do outro contratante dependia de acertamento judicial que lhe podia ser desfavorável; d) se foi informado do risco da evicção e o assumiu expressamente, liberando o alienante das respectivas conseqüências, porque um tal contrato seria aleatório, não lhe cabendo reclamar pelo fato de nada vir a existir da coisa adquirida (emptio spei). Cabe ressaltar que, em qualquer caso de exclusão da garantia contra a evicção, o alienante pode invocar a cláusula para acobertar-se dos efeitos da ação do terceiro evincente. Jamais, sob tal fundamento, encontraria defesa para ato seu que perturbe a utilização da coisa ou prive o adquirente do direito transferido.17 Para efetivação do direito resultante da evicção, cria a lei um requisito impostergável: convocar o alienante à integração da lide - laudatio auctoris. Se a ação é intentada pelo adquirente contra o terceiro, na inicial pedirá a citação do alienante para que integre o processo, e responda pelas conseqüências. Se, ao revés, for réu na ação movida pelo terceiro reivindicante, convocará (denunciação da lide no linguajar processual) o alienante imediato, ou qualquer dos anteriores para que venha assumir a sua defesa (Código Civil, art. 456). Essa possibilidade de denunciação da lide de qualquer um dos alienantes, independentemente da posição que tenha na sucessão de titularidades sobre o bem, é uma inovação importante do Código de 2002, porque possibilita ao evicto cobrar a sua indenização diretamente do responsável pela aquisição viciada originária, sem que tenha que exercer o seu direito contra o alienante imediatamente anterior e sucessivamente. O Código de Processo Civil exige em seu art. 70, I, a denunciação da lide para que possa haver o exercício do direito de obter indenização por evicção. Se não denunciar a lide ao contestar a ação, o evicto perde o direito de obter posteriormente a indenização do alienante. O parágrafo único do art. 456 do Código Civil contém uma regra de direito processual, o que não é de boa técnica legislativa. A regra é, de todo modo, de difícil compreensão. Ela dá direito ao evicto de não oferecer contestação caso o alienante não atenda à denunciação e a procedência da evicção seja manifesta. Essa hipótese é de difícil ocorrência já que a denunciação da lide ao alienante se dá normalmente após a contestação do adquirente. Com a morte do alienante (ou de qualquer dos alienantes) a responsabilidade passa aos herdeiros. Enquanto pender a ação de evicção, está suspensa a prescrição da do adquirente contra o alienante (Código Civil, art. 199, nº III). 211. Evicção parcial De início dissemos, com a lei e a doutrina, que a evicção pode ser total ou parcial. Ao cuidar desta agora, começaremos por caracterizá-la: pode ser a perda de uma fração da coisa; pode consistir na negação, ao adquirente, de uma faculdade que lhe fora transferida pelo contrato, como seja uma servidão ativa do imóvel comprado; pode ainda considerar-se o fato de ter de suportar a coisa um ônus ou encargo não declarado, em benefício de outrem, como se dá quando o adquirente é vencido em ação confessória de servidão em favor de outro prédio.18 Sendo a evicção parcial mas considerável, abre-se ao adquirente uma alternativa: resolução do contrato ou restituição parcial do preço. Na primeira hipótese, tudo se passa como se fosse total a evicção, com a diferença apenas que o adquirente lhe devolve a parte remanescente do bem. Na segunda, isto é, optando pela conservação da coisa e abatimento do preço, tem o adquirente direito a que o alienante lhe restitua parte do preço, correspondente ao desfalque sofrido (Código Civil, artigo 455). Como pode decorrer largo tempo entre o contrato e a efetivação da garantia, e é normalmente o que se passa com o retardamento habitual do desfecho do pleito movido pelo terceiro evincente, sempre ocorre variação no valor da coisa evicta. Manda a lei (Código Civil, parágrafo único do art. 450) que a importância do desfalque seja calculada em proporção do valor dela ao tempo em que se evenceu, porque considera que nesse momento é que efetivamente ocorreu a diminuição patrimonial. Se tiver havido aumento, o adquirente recebe soma proporcional à valorização. Mas, reversamente, se tiver ocorrido depreciação, suporta-a o adquirente, pois que, pela aplicação do dispositivo, não vigora o mesmo princípio que relativamente à evicção total: nesta, a restituição do preço é integral; naquela, o adquirente evicto parcialmente suporta a menor-valia da coisa.19 Como visto, a opção pela rescisão do contrato ou pelo abatimento do preço somente se dá quando a evicção for parcial e considerável. Não cabe a alternativa naquela não considerável, caso em que se entende competir ao adquirente a ação quanti minoris, por via da qual peça a restituição proporcional, da parte do preço pago, pois que se não justifica o desfazimento de um negócio jurídico perfeito por questão de nonada (art. 455). Não cuidou, porém, a lei de definir o que seja parte considerável da coisa evicta, relegando-o à doutrina. Chamada a opinar, sustenta ser aquela perda que, em relação à finalidade da coisa, faça presumir que o contrato se não realizaria se o adquirente conhecesse a verdadeira situação.20 Cunha Gonçalves observa que a caracterização da parte considerável não atenderá somente ao critério da quantidade em relação ao todo, porém, à qualidade e à natureza, também, pois bem pode ser que um desfalque de extensão reduzida seja mais grave do que um maior, tendo em vista as circunstâncias de fato.21 Com efeito, se alguém compra fazenda de criar, e perde apenas pequena fração dela, porém na parte em que se situa a aguada, o desfalque é relevantíssimo, por alcançar a própria finalidade econômica do objeto, e a evicção será considerável, não obstante quantitativamente ínfima. Capítulo XLIV - Extinção dos Contratos Sumário: 212. Cessação da relação contratual. 213. Resilição voluntária. 214. Cláusula resolutiva: tácita e expressa. 215. Exceptio non adimpleti contractus. 216. Resolução por onerosidade excessiva. Teoria da imprevisão. Bibliografia: Orlando Gomes, Contratos, ns. 131 e segs.; De Page, Traité Élémentaire de Droit Civil, vol. II, parte I, ns. 752 e segs.; Planiol, Ripert et Boulanger, Traité Élémentaire de Droit Civil, vol. II, ns. 470 e segs.; Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol. III, ns. 110 e segs.; Carvalho de Mendonça, Doutrina e Prática das Obrigações, vol. II, ns. 614 e segs.; Colin et Capitant, Cours de Droit Civil Français, vol. II, ns. 83 e segs.; M. Picard et Prudhomme, "La Résolution Judiciaire des Contrats par Inexécution des Obligations", in Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1912, pág. 61; Mazeaud et Mazeaud, Leçons de Droit Civil, vol. II, ns. 720 e segs.; Trabucchi, Istituzioni di Diritto Privato, vol. II, § 139; Serpa Lopes, Exceções Substanciais, Exceção de Contrato não Cumprido, ns. 26 e seguintes; Karl Larenz, Base del Negócio Jurídico y Cumplimiento de los Contratos; Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, ns. 141 e segs.; Enneccerus, Kipp y Wolff, Tratado, Derecho de Obligaciones, vol. I, §§ 33 e segs. 212. Cessação da relação contratual Quando ensinamos o direito do contrato, pela primeira vez, em 1952, organizamos o nosso programa encerrando a sua parte geral com a tese 13ª, em que enfeixamos a matéria que constitui objeto desde capítulo. Não faltou quem criticasse a sua reunião tachada de aglomeração desencontrada. Mas sem razão. Sempre entendemos que a aproximação dos assuntos é muito maior do que aparenta, todos eles interligados pela idéia de cessação da relação contratual, embora sob a informação imediata de causa próxima diversa: convenção entre
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