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Teoria das Formas de Governo - Norberto Bobbio, Notas de estudo de Matemática

Teoria das Formas de Governo - Norberto Bobbio.doc

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Brigadeiro
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Baixe Teoria das Formas de Governo - Norberto Bobbio e outras Notas de estudo em PDF para Matemática, somente na Docsity! Norberto Bobbio A teoria das formas de governo Tradução Sérgio Bath 10a Edição EDITORA UnB Sumário Prefácio para a edição brasileira 3 Nota para a edição brasileira 7 Prefácio - Celso Lajer 13 Agradecimentos 29 Nota 31 Introdução 33 Capítulo I Uma Discussão Célebre 39 Capítulo II Platão 45 Capítulo III Aristóteles 55 Capítulo IV Políbio 65 Apêndice 75 Capítulo V Intervalo 77 Capítulo VI Maquiavel 83 Capítulo VII Bodin 95 Capítulo VIII Hobbes 107 Capítulo IX Vico 117 Capítulo X Montesquieu 127 Capítulo XI Intervalo: o Despotismo 139 Capítulo XII Hegel 145 Apêndice (Michelangelo Bovero) A Monarquia Constitucional: Hegel e Montesquieu 157 Capítulo XIII Marx 163 Capítulo XIV Intervalo: a Ditadura 173 Prefácio para a edição brasileira 5 O fato de o curso terminar com Marx não significa que o tema se tenha exaurido na segunda metade do século passado. Trata-se de um término puramente ocasional e imposto pelas circunstâncias. Tanto o tema não se exauriu, que foi amplamente desenvolvido, na trilha da tradição, por duas das maiores obras de teoria política do século passado, Vorlesungen über Politik, de Heinrich von Treitschke (1897-1898) e os Elementi di scienza política, de Gaetano Mosca (1895), que retoma, entre outras coisas, a teoria tradicional do governo misto com uma referência explícita a Aristóteles e a Políbio. A escolha dos autores, esta sim, talvez seja arbitrária. Não quero dizer que não existam outros autores que também merecessem entrar no nobile castello*: faltam os autores medievais, desde John of Salisbury e São Tomás, e, entre os modernos, falta, por exemplo, Giovanni Althusius. Mas tenho motivos para acreditar que todos aqueles por mim considerados como co-autores mereceriam entrar naquele castelo. Sou grato à Editora da Universidade de Brasília por ter tido a idéia de publicar este meu livro no Brasil em uma língua bem mais difundida que o italiano, dando-me assim a satisfação de, pela primeira vez, poder ler um livro meu escrito em português, língua que nunca estudei, mas na qual muitas vezes me exercitei para ler as obras do meu colega e amigo, o Professor Miguel Reale. Quando escrevi estas páginas para os meus alunos de Turim, não poderia jamais imaginar que a minha voz chegaria tão longe. Agradeço com particular afeto ao tradutor, ao Professor Nelson Saldanha, ao Professor Celso Láfer, por me haver apresentado de forma tão insigne, embora com alguns elogios excessivos, demonstrando sobre a minha obra um conhecimento que me impressionou e me deixou assombrado. Norberto Bobbio Setembro de 1981. Dante, Divina Comédia, Canto IV, verso 106. Nota para a edição brasileira Sendo esta a primeira tradução do livro de Norberto Bobbio surgida no Brasil, cabe certamente realçar o alto significado do fato. E realçá-lo com algumas palavras, destinadas não propriamente a "apresentar" aos leitores brasileiros a obra ou a figura do eminente professor italiano, vastamente divulgado como pensador e crítico, mas a situar alguns traços e aspectos fundamentais de sua obra em geral, como também do presente livro, em especial. Comecemos pelos dados pessoais. Nascido em Turim em 1909, ensinou em Siena (1938-1940) e em Pádua (1940-1948), na peregrinação que freqüentemente se nota na vida docente européia. A partir de 1948, professor em Turim. Seus escritos iniciais, que revelam um interesse forte e nítido pela filosofia alemã, aliás pela filosofia em geral, constituem, no dizer de um estudioso de sua obra1, uma fase preparatória, que terá ido até 1945. A partir de 1945, o pensamento de Bobbio se definirá, sob a forma de trabalhos cada vez mais seguros, em torno de alguns temas centrais, ligados à teoria do direito (e da ciência jurídica) e à teoria política (e das ideologias). O desenvolvimento da obra de Bobbio se manifestou através de uma quase ininterrupta seqüência de ensaios e livros, abrangendo questões de filosofia jurídica, lógica e teoria da linguagem, bem como problemas de história do pensamento político - campo, aliás, que cultivou desde cedo com admirável penetração. Nos livros sobre teoria do direito (dos quais se destacam o sobre a teoria da norma, o sobre a teoria do ordenamento e o sobre a teoria da ciência jurídica), a reflexão de Bobbio se notabiliza pelo consciencioso hábito do rigor de expressão, que se distingue daquele verbalismo fácil vez por outra encontrado em autores latinos, mas que por outro lado não se transforma num culto excessivo, numa mania. A este rigor de expressão, que evidentemente corresponde a um rigor de pensamento, se liga uma visceral tendência ao racionalismo. Este racio-nalismo se acha patente em alguns de seus ensaios críticos mais interessantes, inclusive naquele sobre o existencialismo2 e nos estudos sobre o problema do direito natural3. 10 A Teoria das Formas de Governo pensadores do direito ou da política, tem sido realmente o caminho mais fértil para o aprofundamento das reflexões, em ambos os campos. Na Itália, este tem sido o caminho do próprio Bobbio, como tem sido o de Luigi Bagolini e como foi, em dias passados, o de Piero Calamandrei; na Alemanha, vem sendo o caminho de Niklas Luhmann, entre outros. No Brasil, foi o de Pontes de Miranda como vem sendo o de Miguel Reale (tão diferentes entre si, embora), o de Afonso Arinos, de Paulo Bonavides e de Tércio Ferraz Júnior, para citar apenas estes9. Na introdução do livro, Bobbio coloca o problema dos "dois aspectos" sob os quais tem sido feita a história do problema das formas de governo. Ele os denomina aspecto descritivo e aspecto prescritivo. Do mesmo modo distingue, correlatamente, dois "usos" na exposição daquele problema: o uso sistemático e o uso axiológico, aos quais, adiante, acrescenta a alusão ao "uso histórico". Este corresponderia, diz, à utilização do problema das formas de governo para a construção de uma imagem filosófica da história. Estas lineares tipologias, propostas de resto sem maiores pretensões, mas antes como estratégia expositiva, são efetivamente mantidas por Bobbio nas explanações que enchem os diversos capítulos do livro. Infelizmente, porém, o caráter didático destas explanações - bem como o fato de que o capítulo final se demarca em torno das experiências dos anos trinta e quarenta — não permitiu que o autor aprofundasse e desdobrasse a meditação sobre os caracteres 0 0 1 F"axiológicos" e os sistemá ticos de certas recentes manifestações doutrinárias referentes a formas de governo. Creio pessoalmente que as grandes reformulações do problema têm ocorrido nos momentos de transformação maior das estruturas e da experiência institucional dos povos, tal como as grandes reformulações do tema "classificação das ciências" sempre ocorreram em correlação com revoluções científicas fundamentais. A partir de Revolução Francesa, por exemplo, o triadismo clássico, de origem sobretudo aristotélica, passou a ser superado pelos dualismos (Maquiavel havia proposto um dualismo, com as frases iniciais de O Príncipe, mas sua formulação não obteve maior continuidade): daí que no século XX a diferença entre autocracia e democracia, presente em Kelsen, em Heller e outros, se tornasse mais representativa e mais convincente do que o antigo tríptico "democracia-aristocracia- monarquia", porque o avanço da mentalidade democrática tornara 0 0 1 Fobsoleta a separação entre monarquia e aristo cracia10. Mas hoje a objetividade tipológica que se achava ínsita nos dualismos (que ainda continham alguns elementos do relativismo liberal) se acha ameaçada por alguns maniqueísmos emergentes: uma forma de governo é para estes uma opção radical conjugada a uma decisão escatológica e uma concepção dogmática das coisas. O livro de Bobbio, iniciado com a clássica e fictícia, mas sempre exemplar, teorização de Heródoto, na qual o triadismo se propõe pela primeira vez, e terminado com algumas reflexões sobre a ditadura - infelizmente um tanto breves -, tenta ser uma eficiente síntese da evolução do tema. E consegue sê-lo, como indicação precisa e preciosa de pontos Nota para a edição brasileira 1 1 fundamentais, e como autorizada base para que se volte sempre e sempre à reflexão sobre o tema, tão essencial, tão decisivo nas cogitações dos homens sobre seus modos de ser e de conviver. Nelson Saldanha Recife, fevereiro de 1980 Notas 1. ASTÉRIO DE CAMPOS, SDB, O pensamentojurídico de Norberto Bobbio, ed. Saraiva- Editora da USP, São Paulo, 1966, capítulo I, p. 5. 2. NORBERTO BOBBIO, El existencialismo, ensayo de interpretación, .Trad. L. Terracini, ed. FCE. México, 1958 (o original italiano foi de 1944). A mesma critica à filosofia existencial, por sinal algo rígida, se encontra no parágrafo 27 da Introduzione alia Filosofia dei Diritto (ed. Clappichelli, Turim, 1948). 3 Por exemplo. "Quelques arguments contre le droit naturel", em Le Droit NatureL, obra coletiva, PUF, Paris, 1959; "II modello giusnaturalistico", em Revista Intemazionale di Füascfia dei Dirilto, outubro-dezembro 1973, p. 603 e segs. 4. O artigo sobre o modelo jusnaturalístico, citado na nota anterior, se acha todo montado sobre esquema histórico. Também na Teoria deWordinamenio giuridico (Giappichelli, Turim, 1960) o item 2 do capítulo II se volta para a formação histórica do ordenamento. Vejam-se tam bém os estudos sobre o jusnaturalismo em H obbes e em Locke, em Da Hobbes a Marx, Ed. Morano, Nápoles, 1965. 5. El problema dei positivismo jurídico, trad. E. Garzón Valdés, ed. Eudeba, Buenos Aires, 1965. Cf. às pp. 9 e 10 da "Introdução". 6. Cf. por exemplo "Eguaglianza ed equalitarismo" em Riv. Intemazionale di Filosofia dei Dintto, julho-setembro 1976, p. 321 e segs. Na Introduzione alia Filosofia dei Diritto (op. cit.), o capítulo II, referente à justiça, se acha todo enlaçado a uma idéiasocía/ de justiça, concluindo o livro com um parágrafo sobre a conexão entre justiça e ideologia política. "- Cf por exemplo sua parte na mesa-redonda sobre "Poder e Participação", ocorrida em Veneza em 1969 e editada na Riv. Int. de FiL dei Diritto, janeiro-março de 1970, p. 23 e segs. E também seu debate com Umberto Cerroni e outros sobre o marxismo e o Estado, editado nos Quadernt de Mondoperaio (O Marxismo e o Estado, trad. F. L. Boccarelo e R. Levie, ed. Graal, Rio de Janeiro, 1979). 8. CARL SCHMITT, Legalidad y Legitimidad, trad. José DÍaz Garcia, ed. Aguillar, Madrid 1971, passim e principalmente p. 106 e segs. - Para GIESE, que para as "formas constitucionais" se vale do triadismo clássico, as "formas de governo" abrangeriam o absolutismo e o constitucionalismo. Seu esquema é complicado e discutível mas sem dúvida interessante e muito representativo para o segundo pós-guerra e os esforços doutrinários alemães de então (AUgemeines Staatsrecht, ed. J.C.B. Mohr, Tübingen, 1948, § § 8 e 9). 9. Tomaria a liberdade de incluir nesta linha meas trabalhos, inclusive a tese/4í Formas de Governo e o Ponto de Vista Histórico (Recife, Imprensa Industrial, 1958; 2? edição RBEP, Belo 0 0 1 FHorizonte, 1960). Também vale mencionar, dentro da bibliografia brasileira, pela ampli tude da análise, o livro deJOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, Regimes Políticos, ed. Resenha Universitária, S. Paulo, 1977. 10. NELSON SALDANHA, As Formas de Governo e o Ponto de Vista Histórico, cit., 0 0 1 Fprincipal mente capítulos V e VI. A referência às ditaduras do século XX se acha sobretudo no capítulo VII, inclusive nas notas. Prefácio Norberto Bobbio nasceu em Turim (Itália) em 1909. Estudou Direito e Filosofia, tendo sido aluno e discípulo de Gioele Solari (1872-1952), o eminente historiador de filosofia jurídica e política. Foi professor nas Universidades de Siena (1938-1940) e Pádua (1940-1948), até assumir, em 1948, a cátedra de filosofia do direito na Universidade de Turim, da qual acaba de aposentar-se. A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político é sua primeira obra publicada na íntegra no Brasil. Daí a conveniência de oferecer ao leitor brasileiro algumas indicações a respeito de como esta obra se insere no pensamento de Bobbio - um homem, conforme apontou com justa pertinência Guido Fassò, atento aos mais vivos e novos problemas de nosso tempo, que vem examinando, por força de um temperamento racional, com um rigor intelectual e uma limpidez expositiva verdadeiramente admiráveis1. A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político foi o curso dado por Bobbio na Universidade de Turim, no ano acadêmico de 1975/76. Creio, por isso mesmo, que as primeiras indicações sobre esta obra podem ser encontradas no programa de trabalho que Bobbio traçou para si enquanto professor de filosofia do direito. Num ensaio de 1962, posteriormente inserido em Giusnaturalismo e Positivismo Giuridico, Bobbio aponta que os seus cursos universitários obedeciam a três ordens de indagações, que constituiriam as três partes em função das quais organizaria um tratado de filosofia do direito. A primeira parte é a Teoria do Direito. Para Bobbio, o problema fundamental da teoria do direito é a determinação do conceito de direito e a diferenciação do fenômeno jurídico de outros fenômenos, como a moral e o costume. Em matéria de teoria do direito, Bobbio realça o "normativismo", vendo o direito como um conjunto de normas a serem Prefácio 15 é axiológico e sociológico, inclusive etnográfico, e é por isso que, ao contrário dos jusnaturalistas, a natureza do homem é o seu ponto de chegada e não de partida. Neste sentido, Bobbio é um historicista que combina a deontologia (o que o direito deve ser) com a sociologiajurídica (a evolução do direito na sociedade e as relações entre o direito e a sociedade)7. À falta de melhor termo, Bobbio denomina a terceira parte de "teoria da ciência jurídica", nela inserindo o problema metodológico e o estudo dos modelos utilizados na percepção da experiência jurídica. Na sua indagação epistemológica, que é também histórica, indica ele como o modelo dos jusnaturalistas era o matemático; como o da escola histórica era a historiografia; como Jhering assume o modelo de história natural; como, com o positivismo lógico no campo jurídico, a ciência do direito foi encarada do ângulo da teoria da linguagem; e assim por diante. Conclui que, diante da variedade de modelos e da dificuldade de ajustá-los à experiênciajurídica concreta, o mais pertinente é inverter a rota e começar por uma análise dos tipos de argumentos que os juristas usam no seu trabalho quotidiano. Esta preocupação com a "logica legalis"* é o que aproxima Bobbio, nesta sua reflexão epistemológica e metodológica, não só da 0 0 1 Flógica jurídica moder na mas, também, de Perelman e da nova retórica; de Viehweg e da tópica; de Recasens Siches e da lógica do razoável; do Ascarelli dos estudos sobre a origem da dogmática jurídica e sobre a interpretação e, entre nós, de Tércio Sampaio Ferraz Jr. e da pragmática9. Bobbio, no seu já mencionado ensaio de 1962, também faz referência à história da filosofia do direito, que ele vê como algo útil e apaixonante no contexto de seu programa de trabalho, apontando que não concebe uma boa teoria do direito sem o conhecimento, por exemplo, de Grócio, Hobbes, Kant ou Hegel; uma boa teoria da justiça sem o Livro V da Ética a Nicômaco, de Aristóteles, e uma boa teoria da ciência jurídica sem Leibniz ou Jhering. Não aprecia ele, no entanto, as histórias de filosofia do direito enquanto elencos expositivos sumários de doutrinas heterogêneas. Para Bobbio, igualmente, enquanto discípulo de Solari, o melhor modo de fazer história da filosofia do direito é refazer as doutrinas do passado, tema por tema, problema por problema, sem esquecer, no trato dos assuntos e argumentos, os precedentes históricosi°. Exemplos desta sua maneira de fazer história da filosofia e história da filosofia do direito podem ser apreciados no seu curso, publicado em 1957 e revisto em 1969, sobre direito e Estado no pensamento de Kant; no seu curso, publicado em 1963, sobre Locke e o direito natural; na coletânea de ensaios reunidos no livro Da Hobbes a Marx (1964) e também - que é o que interessa apontar - no curso sobre A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Polüicou. Portanto, a primeira indicação a respeito deste livro, que ora se publica em português, é a de que se insere, coerentemente, num programa de trabalho pedagógico e numa determinada maneira de fazer a história da filosofia esclarecer e permear as indagações a partir das quais Bobbio organiza o campo da filosofia do direito. 16 A Teoria das Formas de Governo II A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político, como o próprio título indica, é um mergulho na filosofia política. Daí a pergunta: qual é, para Bobbio, a relação entre filosofia política e filosofia do direito, e como ê que esta relação, uma vez explicitada, se ajusta à sua proposta pedagógica? A resposta a esta indagação permite oferecer uma segunda ordem de indicações a respeito da inserção desta obra no percurso intelectual de Norberto Bobbio. Como se sabe, o termo filosofia do direito é recente, tendo-se difundido na Europa nos últimos 150 anos. Uma das muitas acepções do termo, diz Bobbio, é a que engloba propostas sistemáticas de reforma da sociedade presente, com base em pressupostos, explícitos ou implícitos, tendo como objetivo realizar certos fins axiológicos, tais como: liberdade, ordem, justiça, bem-estar, etc. Nesta acepção, a filosofia do direito confina com a filosofia política. Para a difusão desta acepção cabe dizer que muito contribuiu a estreita relação que se verificou entre a noção de direito e a de Estado, ocorrida na Europa com o aparecimento do Estado moderno12. Tal relação, que provém da utilização do direito como instrumento de governo e da conseqüente estatização das fontes de criação normativa, aparece, por exemplo, na história da filosofia explicitada em Hobbes, autor que Bobbio estudou com grande interesse e acuidade, tendo preparado e prefaciado a edição italiana de De Civel3. A convergência entre filosofia política e filosofia do direito exige, para ser bem compreendida, uma discussão sobre o inter- relacionamento entre o direito e o poder. Em estudo recente, Bobbio aponta a relevância das grandes dicotomias no percurso do conhecimento, mencionando entre outras: comunidades X sociedade, 0 0 1 Fsolidariedade orgânica X solida riedade mecânica, estado de natureza X estado de sociedade civil. No campo do direito, diz Bobbio, a grande dicotomia é a que resulta da distinção entre direito privado e direito público14. É com base nesta distinção que se pode aferir de que maneira os juristas lidam com o fenômeno do poder. Para os juristas e jusfilósofos, que encaram o direito a partir do direito privado, o direito aparece kantianamente como um conjunto de relações intersubjetivas que se distinguem da classe geral das relações intersubjetivas pelo vínculo obrigatório que une os dois sujeitos. Nesta perspectiva, a força é vista como um "meio" de realizar o direito através do mecanismo da sanção organizada15. Entretanto, para os juristas e jusfilósofos que encaram o direito a partir do direito público, como é o caso de Santi-Romano, Kelsen, Bobbio - e, entre nós, de Miguel Reale — o que salta aos olhos é a existência do Estado como instituição16. Nesta perspectiva, que é a de quem encara a existência da pirâmide escalonada de normas a partir do seu vértice, o direito aparece como um conjunto de normas que estabelecem competências e que permitem o exercício do poder, inclusive o poder de criar novas normas jurídicas17. Bobbio, no entanto, não analisa a pirâmide escalonada de normas "ex parte principis", isto é, na perspectiva daqueles a quem as normas conferem poderes. Para esses, como ele aponta em A Teoria das Formas de Governo na de Governo exigência de rigor com uma concepção democrática de Estado, posto que vislumbra, numa das dimensões do positivismo jurídico, uma ética de liberdade, de paz e de certeza. Creio não distorcer o seu pensamento ao afirmar que, num segundo momento, conceitualmente distinto no seu percurso - que é o da crítica das leis26 - o rigor de seu normativismo está a serviço da causa da liberdade. A este tema consagrou ele, na década de 1950, importantes ensaios, entre os quais me permito lembrar Democrazia e Dittatura e Delia Liberta dei Moderni Comparata a quella dei Posteri. Nesses ensaios, ele chamou a atenção tanto para a liberdade moderna enquanto não-impedimento e não-interferência do todo político-social em relação ao indivíduo, quanto para a liberdade antiga enquanto autonomia na aceitação da norma elaborada por meio da participação do cidadão na vida pública. Nestas duas dimensões de liberdade, Bobbio enxerga estados desejáveis do homem que, no entanto, só surgem quando se cuida institucionalmente do problema do exercício do poder. O problema do exercício do poder, continua Bobbio nestes ensaios da década de 50, encontrou, historicamente, contribuições importantes na técnica jurídica e na agenda de preocupações do Estado liberal que não podem ser desconsideradas em qualquer 0 0 1 Fproposta significativa de refor ma da sociedade27. Entretanto, em virtude de sua percepção sociológica das funções do direito numa dada sociedade, a causa da liberdade e da reforma da sociedade exigiram de Bobbio que fosse além do tema técnico da validade da norma e da legalidade do poder, confrontando-se igualmente tanto com o problema da justificação do poder e do título para o seu exercício, quanto com a justiça das normas. Para Bobbio, poder e norma são as duas faces da mesma moeda, existindo um evidente paralelismo entre os dois requisitos fundamentais da norma jurídica - justiça e validade - e os dois requisitos do poder -legitimidade e legalidade28. Este paralelismo conclusivo apontado por Bobbio permite chegar a uma segunda ordem de indicações a respeito de como o livro que ora se publica em português se insere no seu percurso intelectual. Como norma e poder, no mundo moderno, são as duas faces da mesma moeda, existe uma convergência substantiva entre filosofia política e filosofia do direito. A teoria do direito, com a qual se ocupa Bobbio, enquanto teoria do ordenamento, requer uma teoria do Estado. Ambas exigem uma teoria da justiça e da legitimidade, pois não existe uma cisão, mas um continuum entre forma e substância, uma vez que a legalidade remete à validade, a validade à legitimidade e a 0 0 1 Flegitimidade à justiça, assim como, inversa mente, a justiça fundamenta a legitimidade, a legitimidade fundamenta a validade e a validade fundamenta a legalidade na interseção que se estabelece entre a linha do poder e a norma29. III A Teoria das Formas de Governo na História do Pensamento Político é, como já foi apontado, o curso dado por Norberto Bobbio no ano acadêmico de 1975/76. Data também de 1976 o seu livro Quale Socialismo?, que reúne Prefácio 1 9 trabalhos redigidos entre 1973 e 1976. Quale Socialismo? é um excelente exemplo daquilo que Bobbio denomina crítica ético-política, que ele vem conduzindo na forma de incisivas e bem formuladas perguntas em relação a certos temas para os quais não tem respostas definitivas30. Daí a conveniência de mais uma indagação para arrematar estas indicações a respeito de seu percurso intelectual. Esta última indagação cifra-se, em síntese, no seguinte: qual é a relação entre filosofia jurídico-política, tal como a concebe Norberto Bobbio, e a sua crítica ético-política, exemplificada em Quale Socialismo? Quale Socialismo? é um livro denso e qualquer resumo de seu conteúdo corre o risco de nào fazer justiça à inteireza de seus argumentos. Com esta ressalva, arriscaria, no entanto, dizer que a tese central de Bobbio neste livro é a de que não se evita, a partir de uma verdadeira ótica socialista, o problema de "como" se governa realçando apenas a dimensão de "quem" governa (de poucos burgueses para as massas operárias). Como tanto o Estado, quanto o poder político continuam a perdurar nos regimes comunistas com a estatização dos meios de produção, é uma ilusão pensar que a ditadura do proletariado é um fenômeno efêmero. A mudança de hegemonia, afirma Bobbio, não é suficiente para mudar a estrutura do poder e do direito, e o proletariado é, na melhor das hipóteses, um sujeito histórico. Por essa razão, a "ditadura do 0 0 1 Fproleta riado" não é uma instituição apta a resolver o problema do bom governo, que não se esgota com a mera mudança dos detentores do poder. Por isso, as metas de uma democracia socialista- entendida como uma democracia não-formal, mas substancial; não apenas 0 0 1 Fpolítica, mas também econô mica; não só dos proprietários, mas de todos os produtores; não apenas representativa, mas também direta; não só parlamentar, mas de conselhos - exige a discussão e a proposta quanto a instituições político-jurídicas. É com base nesta colocação que Bobbio insiste na atualidade de uma das perguntas clássicas de filosofia política- "como se governa?" - "bem ou mal?". Bobbio afirma que, por mais pertinente que seja a pergunta sobre "quem governa?" —"poucos ou muitos?" -eaoportunidade de se discutir a afirmação de Marx e Engels, baseada no realismo político, de que, quem governa, governa em função dos interesses da classe dominante, é igualmente urgente cuidar do problema institucional e das formas de governo em qualquer proposta significativa de reforma da sociedade31. Bobbio lembra que o socialismo, enquanto aspiração de justiça, é um movimento que visa acabar não apenas com a mais-valia econômica, mas também assegurar a emancipação do homem de suas servidões. Essa liberação, para ser traduzida em liberdade, exige autonomia. No campo do direito, o conceito de autonomia é utilizado no sentido próprio de norma ou complexo de normas em relação às quais os criadores e os destinatários das normas se identificam. É o caso da esfera da autonomia privada- um contrato, por exemplo, bilateral ou plurilateral, em relação ao qual os que põem as regras e os que as devem seguir são as mesmas pessoas. É o caso de um tratado no direito das gentes e é também o caso, no campo do direito público, do ideal a que tende o Estado moderno que se deseja democrático, e que se diferencia de um Estado autocrático 22 A Teoria das Formas de Governo as descontinuidades entre Montesquieu e a tradição que o precede. O elemento de continuidade, em relação à categoria do despotismo, reside na delimitação histórica e geográfica desta forma de governo, que a tradição ocidental sempre localizou fora da Europa - na Ásia ou no Oriente. O elemento de descontinuidade é a originalidade de 0 0 1 FMontes quieu ao considerar o despotismo não como uma monarquia degenerada, à maneira de Aristóteles, Maquiavel e Bodin, mas sim como uma forma autônoma de governo, explicável por uma série de variáveis entre as quais se incluem o clima, o terreno, a extensão do território, a religião e a índole dos habitantes. Até o século XVII, seja como monarquia degenerada, seja como categoria autônoma, o despotismo sempre foi encarado como uma forma negativa de governo. Entretanto, é nesta época que pela primeira vez na história do pensamento político surge, com os fisiocratas, uma avaliação positiva do despotismo. É a célebre tese do "despotismo esclarecido", propugnada por François Quesnay (1694-1774); Pierre- Samuel Dupont de Nemour (1739-1817) e Paul-Pierre Mercier de la Rivière (1720-1793). Em síntese, para esses autores as leis positivas devem ser leis declaratórias da ordem natural, aplicadas por um príncipe ilustrado, pois apenas o governo de uma só pessoa pode se deixar guiar pela evidência racional42, que segundo essa corrente é capaz de esclarecer e nortear a vida da comunidade política. Se o despotismo até o século XVII sempre foi visto como uma forma degenerada de governo, o mesmo não se pode dizer da ditadura, que na sua origem romana, como lembra Bobbio no "intermezzo" final de seu curso, era uma magistratura constitucional extraordinária, que nada tinha a ver com o despotismo, pois a excepcionalidade dos poderes do ditador, proveniente de um estado de necessidade e não da história ou da geografia, tinha como contrapeso uma duração limitada. Classicamente, o poder do ditador era apenas o executivo. Ele podia suspender as leis, mas não modificá-las. Esta é a acepção de ditadura tal como aparece, por exemplo, nas reflexões e análises de Maquiavel, Bodin e Rousseau*3. Este conceito de ditadura se altera com a Revolução Francesa, quando se instaurou, como dirá Carl Schmitt, uma ditadura soberana e 0 0 1 Fconstituin te. Esta, na lição de Saint-Just e Robespierre, baseia-se na concomitância da virtude e do terror, posto que o terror, sem a virtude, é funesto, e a virtude sem o terror é impotente. A ditadurajacobina, ao insistir no terror, aproxima, pela primeira vez, o despotismo, caracterizado, como dizia Montesquieu, pela igualdade diante do medo, da ditadura. A ditadura jacobina assinala também o desaparecimento da mono- craticidade do poder, pois este não é mais, como na tradição clássica, a magistratura de uma só pessoa, mas a ditadura de um grupo 0 0 1 Frevolucioná rio - no caso da França-, a Comissão de Salvação Pública. Esta dissociação entre o conceito de ditadura e o conceito de poder monocrático indica, consoante Bobbio, a passagem do uso clássico do conceito ao uso marxista, engelsiano e leninista, que introduziu e divulgou a expressão "ditadura da burguesia" e "ditadura 0 0 1 Fdo proletariado", com isso enten dendo o domínio exclusivo de uma só classe social44. Prefácio 2 3 Não é preciso lembrar que o medo e o terror que se associaram ao conceito de ditadura jacobina deram a esta forma de governo uma conotação negativa, que se verifica hoje em dia no uso quotidiano da palavra. Por outro lado, a dimensão de virtude imprime ao termo a sua conotação positiva clássica. Esta conotação positiva tem, como aponta Bobbio, um nexo com o despotismo esclarecido na medida em que, na sua vertente marxista-leninista, é uma forma de governo conduzida por uma vanguarda aparentemente iluminada por propósitos de virtude. Se existe um nexo com a tirania- e estas são as palavras finais de Bobbio no seu curso- este é um juízo que ele submete, hegelianamente, ao tribunal da história45. Se Bobbio, no seu curso, suspende o juízo, até mesmo por uma exigência de rigor explícita na sua proposta pedagógica, não é isto o que ele faz na sua crítica ético-política quando, em Quale Socialismo?, não hesita em dizer que, se ditadura é domínio discricionário e se esta não se reveste de uma natureza excepcional e provisória, o termo apropriado é despotismo, com todas as cargas negativas que esta forma de governo carrega na tradição da filosofia política46. Daí a insistência de Bobbio, enquanto liberal e socialista, na democracia enquanto forma de governo. Diria, neste sentido, que a tradição do pensamento liberal - Locke, Kant, Benjamin Constante, Tocqueville - e as técnicas do Estado de direito que inspiraram o normativismo convergem, na reflexão de Bobbio, no sentido de evidenciar que o exercício do poder, no bom governo, requer instituições disciplinadas pelo princípio da legalidade. Por outro lado, a tradição socialista de Bobbio o impele a insistir no aprofundamento e na extensão, ex parte populi, da legalidade, através da recuperação das instâncias democráticas da sociedade por meio de regras que permitam a participação de maior número de cidadãos nas 0 0 1 Fdelibe rações que lhes interessam, seja nos diversos níveis (municipal, regional, nacional), seja nos diversos loci (escola, trabalho, etc). Em síntese, para Bobbio o problema do desenvolvimento da 0 0 1 Fdemo cracia no mundo contemporâneo não é apenas quem vota, mas onde se vota e se delibera coletivamente, pois é no controle democrático do poder econômico que, segundo ele, se vencerá ou se perderá a batalha pela democracia socialista. Esta postura em prol da democracia, que é mais revolucionária do que a socialização dos meios de produção, posto que subverte a concepção tradicional de poder, Bobbio a justifica com argumentos históricos, éticos, políticos e utilitários47. Bobbio aponta que hoje se atribui à democracia um valor positivo, que contrasta com significativas correntes da tradição clássica. 0 0 1 FHistori camente, este valor positivo resulta do desenvolvimento, a partir do século passado, no contexto institucional do Estado liberal, do movimento operário, da extensão do sufrágio e da entrada em cena dos partidos de massa que, num processo de ação conjunta, evidenciaram as necessidades de reforma da sociedade. Eticamente, Bobbio explica por que o método democrático tende a ativar a autonomia da norma aceita e, portanto, diminuir a heteronomia da norma imposta. Politicamente, evoca ele a sabedoria institucional da 24 A Teoria das Formas de Governo democracia, que enseja um controle dos governantes através da ação dos governados, com isto institucionalizando um dos poucos remédios válidos contra o abuso de poder. E, finalmente, a partir de uma ótica utilitária, Bobbio reafirma a sua convicção de que os melhores intérpretes do interesse coletivo são os próprios interessados48. Bobbio não ignora as dificuldades da democracia, porém insiste nos seus méritos, seja porque examina os problemas do Estado ex parte populi, vendo portanto como problema de fundo das formas de governo o da liberdade49, seja porque, coerentemente com esta perspectiva, realça que as normas podem ser criadas de dois modos: autonomamente pelos seus próprios destinatários, ou heteronomamente por pessoas diversas dos destinatários. Ex parte populi, é evidente a razão pela qual Bobbio prefere a democracia enquanto processo de nomogênese jurídica, posto que se trata de uma forma de governo que privilegia uma concepção ascendente de poder graças à qual a comunidade política elabora as leis através de uma organização apropriada da vida coletiva. De fato, como diz Bobbio, democrático é o sistema de poder no qual as decisões que interessam a todos - e que por isso mesmo são coletivas - são tomadas por todos os membros que integram uma coletividade50. Isto, no entanto, não ocorre espontaneamente, sem uma organização apropriada que, por sua vez, requer regras de procedimentos. Daí o papel do direito enquanto técnica de convivência indispensável para a reforma da sociedade. Estes procedimentos que, enquanto legalidade, conferem qualidade ao exercício do poder, são indispensáveis, dada a relevância da relação entre meios e fins e o nexo estreito que existe entre procedimentos e resultados. O resultado da tortura, lembra Bobbio, pode ser a obtenção da verdade, entretanto trata-se de procedimento 0 0 1 Fque desqualifica os resul tados. Os meios, portanto, condicionam os fins, e os fins, conclui Bobbio, só justificam os meios quando os meios não corrompem e desfiguram os fins almejados51. É neste sentido que se pode dizer que o rigor técnico do normativis-mo de Bobbio está a serviço da causa da liberdade na sua defesa de um socialismo democrático. De fato, uma das notas importantes que o rigor técnico de Bobbio evidencia, no estudo dos ordenamentos jurídicos do Estado contemporâneo, é o fato de os ordenamentos obedecerem, hoje em dia, a um princípio dinâmico, ou seja, as normas que os compõem mudam constantemente para enfrentar os desafios da conjuntura. É por essa razão que ele dá ênfase à distinção técnica entre normas primárias e normas secundárias. As normas primárias são as que prescrevem, proscrevem, estimulam ou 0 0 1 Fdesestimulam comportamentos para a socie dade. Como elas estão em contínua transformação, torna-se cada vez mais relevante - ao contrário do que ocorre num Direito tradicional e sedimentado — estudar os procedimentos por meio dos quais estas normas são criadas e aplicadas. Daí a relevância do estudo das normas secundárias, isto é, das normas sobre normas, que são basicamente aquelas que tratam, ou da produção das normas primárias, ou do modo como as normas primárias são aplicadas. É, portanto, através das normas secundárias que se pode, numa compreensão moderna da legalidade, 32 A Teoria das Formas de Governo chegando ao limiar da Idade Contemporânea. Em cada período 0 0 1 Fexamina remos apenas alguns autores, que reputo exemplares. Será desnecessário explicar ainda uma vez que nosso objetivo não será histórico, porém conceituai. Por outro lado, como não me consta que se tenha jamais feito tentativa semelhante do ponto de vista histórico - isto é, da história das idéias - o material aqui reunido poderá constituir um instrumento de trabalho útil também para os historiadores. Introdução Antes de dar início à exposição e ao comentário de algumas das teorias mais conhecidas sobre as formas de governo, cabe tecer certas considerações genéricas sobre o tema. A primeira delas é a de que, de modo geral, todas as teorias sobre as formas de governo apresentam dois aspectos: um descritivo, o outro prescritivo. Na sua função descritiva, o estudo das formas de governo leva a uma tipologia- classificação dos vários tipos de constituição política que se apresentam à consideração do observador de fato, isto é, na experiência histórica. Mais precisamente, na experiência histórica 0 0 1 Fconhecida e anali sada pelo observador. Nesse caso, o escritor político se comporta como um botânico que, depois de observar e estudar com atenção um determinado número de plantas, divide-as de acordo com 0 0 1 Fsuas peculiari dades, ou as reúne segundo suas afinidades, chegando assim a classificá-las com uma certa ordem. As primeiras grandes classificações das formas de governo, como as de Platão e Aristóteles, pertencem a essa categoria: baseiam-se em dados extraídos da observação histórica, espelhando a variedade dos modos com que se vinham organizando as cidades helênicas, a partir da Idade de Homero. No entanto, não há tipologia que tenha exclusivamente uma função descritiva. Ao contrário do botânico, que só se interessa pela descrição, evitando escolher entre as várias espécies descritas, o escritor político não se limita a um exercício descritivo: ele postula, geralmente, um outro problema - o de indicar, de acordo com critério que difere naturalmente de autor para autor, quais das formas descritas são boas, quais delas são más; quais as melhores e as piores; por fim, qual é a melhor de todas, e a pior. Em suma, não se limita a descrever, isto é, a expressar um julgamento de fato; sem o perceber exatamente, exerce também uma outra função — a de exprimir um ou mais julgamentos de valor, orientando a escolha por parte dos outros. Em outras palavras, 0 0 1 Fprescre vendo. Como se sabe, a propriedade de qualquerjuízo de valor na base da qual achamos que alguma coisa (uma ação, um objeto, um indivíduo, 34 A Teoria das Formas de Governo formação social) é boa ou má é a de exprimir uma preferência, com a finalidade de modificar o comportamento alheio no sentido por nós desejado. Posso dizer também a mesma coisa da seguinte forma: uma tipologia pode ser empregada de dois modos diferentes, "sistemático" ou "axioló-gico". O primeiro é aquele na base do qual a tipologia é usada para ordenar os dados colhidos; o segundo, aquele em que a mesma tipologia serve para determinar uma ordem de preferência entre tipos ou classes dispostos sistematicamente, com o propósito de suscitar nos outros uma atitude de aprovação ou desaprovação e, por conseguinte, de orientar sua escolha. Seria o caso de perguntar como o escritor político (de modo geral, o cientista social) pode ter comportamento diferente do botânico (de modo geral, do cientista da natureza). O problema é muito complexo, mas pode ter uma resposta bastante simples: a postura assumida pelo cientista social e pelo cientista da natureza, diante do objeto da sua investigação, é influenciada pelo fato de que o primeiro crê poder interferir diretamente nas transformações da sociedade, enquanto o segundo não pretende influir sobre as transformações da natureza. O emprego axiológico de qualquer conceito está ligado estreitamente à idéia de que uma mudança na estrutura da realidade, à qual o conceito em questão se refere, é não só desejável mas possível; um julgamento de valor pressupõe que as coisas a que atribuo importância podem vir a ser diferentes do que são. Um julgamento factual só tem a pretensão de dar a conhecer um certo estado de coisas; mas um julgamento de valor pretende modificar o estado de coisas existente. Pode-se dizer o mesmo de outro modo: enquanto uma teoria sobre um aspecto qualquer da natureza é apenas uma teoria, a teoria relativa a um aspecto da realidade histórica e social é quase sempre também uma ideologia- isto é, um conjunto mais ou menos sistemático de avaliações, que deveriam induzir o ouvinte a preferir uma determinada situação a outra. Em suma, para concluir - extraindo as conseqüências extremas do afastamento entre o cientista natural e o cientista social, e exibindo-o em toda a sua evidência -, ninguém se espanta quando um pesquisador social (que, de acordo com o ideal científico do naturalista, deveria só "descrever, explicar" e eventualmente "rever") nos oferece um projeto de reforma da sociedade; mas todos veriam com compreensível desconfiança o físico que apresentasse um projeto de reforma da natureza. Creio que será útil dizer algo mais sobre o emprego axiológico. Diante da variedade de formas de governo, há três posições possíveis: a) todas as formas existentes são boas; b) todas são más; c) algumas são boas, outras são más. De um modo muito geral, pode-se dizer que a primeira posição implica uma filosofia relativista e historicista segundo a qual todas as formas de governo são apropriadas à situação histórica concreta que as produziram (e não poderiam produzir uma outra, diferente): na conclusão de La Scienza Nuova, Vico fala a respeito de uma "eterna república natural, excelente em cada uma das suas espécies". Em Platão, encontramos um exemplo clássico da segunda posição, segundo a Introdução 3 7 negativo se transforma em algo historicamente necessário, o julgamento dos latos predomina sobre o julgamento de valor. Mas esteé um ponto ao qual farei aqui apenas uma referência. Capítulo I UMA DISCUSSÃO CÉLEBRE Uma história das tipologias das formas de governo, como esta, pode ter início na discussão referida por Heródoto, na sua História (Livro III, §§ 80-82), entre três persas-Otanes, Megabises e Dario- sobre a melhor forma de governo a adotar no seu país depois da morte de Cambises. O episódio, puramente imaginário, teria ocorrido na segunda metade do século VI antes de Cristo, mas o narrador, Heródoto, escreve no século seguinte. De qualquer forma, o que há de 0 0 1 Fnotável é o grau de desenvol vimento que já tinha atingido o pensamento dos gregos sobre a política ura século antes da grande sistematização teórica de Platão e Aristóteles (no século IV). A 0 0 1 Fpassagem é verdadeiramente exemplar porque, co mo veremos, cada uma das três personagens defende uma das três formas de governo que poderíamos denominar de "clássicas" - não só porque foram transmitidas pelos autores clássicos mas também porque se tornaram categorias da reflexão política de todos os tempos (razão por que são clássicas mas igualmente modernas). Essas três formas são: o governo de muitos, de poucos e de um só, ou seja, "democracia", "aristocracia" e "monarquia", embora naquela passagem não encontremos ainda todos os termos com que essas três modalidades de governo foram consignadas à tradição que permanece viva até nossos dias. Dado o caráter exemplar do trecho, e sua brevidade, convém reproduzi-lo integralmente: "Cinco dias depois de os ânimos se haverem acalmado, aqueles que se rebelaram contra os magos examinaram a situação; as palavras que disseram então pareceriam incríveis a alguns gregos, mas foram 0 0 1 Freal mente pronunciadas. Otanes propôs entregar o poder ao povo persa, argumentando assim: 'Minha opinião é que nenhum de nós deve ser feito monarca, o que seria penoso e injusto. Vimos até que ponto chegou a prepotência de Cambises, e sofremos depois a dos magos. De que forma poderia não ser irregular o governo monárquico se o monarca pode fazer o que quiser, se não é 40 A Teoria das Formas de Governo responsável perante nenhuma instância? Conferindo tal poder, a 0 0 1 Fmonar quia afasta do seu caminho normal até mesmo o melhor dos homens. A posse de grandes riquezas gera nele a prepotência, e a inveja é desde o princípio parte da sua natureza. Com esses dois defeitos, alimentará todas as malvadezas: cometerá de fato os atos mais reprováveis, em alguns casos devido à prepotência, em outros à inveja. Poderia parecer razoável que o monarca e tirano fosse um homem despido de inveja, já que possui tudo. Na verdade, porém, do modo como trata os súditos demonstra bem o contrário: tem inveja dos poucos bons que permanecem, compraz-se com os piores, está sempre atento às calúnias. O que há de mais vergonhoso é que, se alguém lhe faz homenagens com medida, crê não ter sido bastante venerado; se alguém o venera em excesso, se enraivece por ter sido adulado. Direi agora, porém, o que é mais grave: o monarca subverte a autoridade dos pais, viola as mulheres, mata os cidadãos ao sabor dos seus caprichos. O governo do povo, porém, merece o mais belo dos nomes, 'isonomia'; não faz nada do que caracteriza o comportamento do monarca. Os cargos públicos são distribuídos pela sorte; os magistrados precisam prestar contas do exercício do poder; todas as decisões estão sujeitas ao voto popular. Proponho, portanto, rejeitarmos a monarquia, elevando o povo ao poder o grande número faz com que tudo seja possível'. Esse foi o parecer de Otanes. Megabises, contudo, aconselhou a confiança no governo oligárquico: 'Subscrevo o que disse Otanes em defesa da abolição da monarquia; quanto à atribuição do poder ao povo, contudo, seu conselho não é o mais sábio. A massa inepta é obtusa e prepotente; nisto nada se lhe compara. De nenhuma forma se deve tolerar que, para escapar da prepotência de um tirano, se caía sob a da plebe desatinada. Tudo o que faz, o tirano faz conscientemente; mas o povo não tem sequer a possibilidade de saber o que faz. Como poderia sabê-lo, se nunca aprendeu nada de bom e de útil, se não conhece nada disso, mas arrasta indistintamente tudo o que encontra no seu caminho? Que os que querem mal aos persas adotem o partido democrático; quanto a nós, entregaríamos o poder a um grupo de homens escolhidos dentre os melhores - e estaríamos entre eles. É natural que as melhores decisões sejam tomadas pelos que são melhores'. Foi esse o parecer de Megabises. Em terceiro lugar, Dario manifestou sua opinião: 'O que disse Megabises a respeito do governo popular me parece justo, mas não o que disse sobre a oligarquia. Entre as três formas de governo, todas elas consideradas no seu estado perfeito, isto é, entre a melhor democracia, a melhor oligarquia e a melhor monarquia, afirmo que a monarquia é superior a todas. Nada poderia parecer melhor do que um só homem- o melhor de todos; com seu discernimento, governaria o povo de modo irrepreensível; como ninguém mais, saberia manter seus objetivos políticos a salvo dos adversários. Numa oligarquia, é fácil que nasçam graves conflitos pessoais entre os que praticam a virtude pelo bem público: todos querem ser o chefe, e fazer prevalecer sua opinião, chegando por isso a odiar-se; de onde Uma Discussão Célebre 4 3 e que, portanto, qualquer que seja a indicação da sorte, o resultado tem o mesmo valor. No que diz respeito às considerações de Megabises, vale observar que o governo popular também é caracterizado por atributos psicológicos (o desatino). O mais interessante é que das duas formas de governo rejeitadas, uma (o governo popular) é considerada pior do que a outra (o governo monárquico); essa comparação nos dá um exemplo claro da gradação das constituições, boas ou más, de que falei na Introdução (nào há apenas governos bons e maus, mas governos melhores e piores do que outros). O que falta na análise de Megabises é uma caracterização específica do governo proposto como melhor, diferentemente do que tínhamos observado no discurso de Otanes, onde o governo do povo é caracterizado por uma instituição peculiar - o sorteio. A propósito do governo de poucos, seu defensor se limita a dizer, numa petição de princípio, que "as melhores decisões (são) tomadas pelos que são melhores". Na exposição de Dario aparece pela primeira vez a condenação do governo de poucos; Otanes criticara o governo tirânico mas não o oligárquico, e Megabises havia considerado o governo de poucos como o melhor. O ponto crítico da oligarquia é a facilidade com que o grupo dirigente se fragmenta em facções - isto é, a falta de um guia único, necessário para manter a unidade do Estado. O ponto crítico do governo popular é justamente o contrário: não a discórdia dos bons, mas o acordo entre os maus (as "sólidas alianças entre os malfeitores"); não a cisão do que deveria permanecer unido, mas a conspiração do que deveria estar dividido. Ainda que por razões opostas, tanto o governo de poucos como o de muitos são maus. Justamente por causa da sua corrupção eles geram por contraste a única forma boa de governo - a monarquia — que, portanto, não é apenas melhor do que as outras constituições, de modo abstrato, mas também necessária, em conseqüência da corrupção das outras duas - por conseguinte, inevitável. Devemos ter presente o argumento usado por Dario em favor da monarquia: sua superioridade depende do fato de que responde a uma necessidade histórica, sendo a única forma capaz de assegurar a "estabilidade" do poder. Não é em vão que insistimos desde o início neste tema da "estabilidade", porque, como veremos, a capacidade que tem qualquer constituição de perdurar, de resistir à corrupção, à degradação, de se transformar na constituição contrária, é um dos critérios principais - se não mesmo o principal - com que podemos distinguir as boas constituições das que são más. Capítulo II PLATÃO Em várias das suas obras Platão (428-347 a.C.) fala das diversas modalidades de constituição, assunto que é desenvolvido 0 0 1 Fparticular mente nos três diálogos de A República, de O Político e das Leis. Vou deter-me aqui, em especial, em A República, que dedica ao tema dois livros, o oitavo e o nono; terminarei com uma referência ao O Político. O diálogo de A República é, como todos sabem, uma descrição da república ideal, que tem por objetivo a realização da justiça entendida como atribuição a cada um da obrigação que lhe cabe, de acordo com as próprias aptidões. Consiste na composição harmônica e ordenada de três categorias de homens- os governantes-filósofos, os guerreiros e os que se dedicam aos trabalhos produtivos. Trata-se de um Estado que nunca existiu em nenhum lugar, como comentam dois interlocutores, no final do livro décimo: "— Compreendo; tu falas do Estado que fundamos e discutimos inexistente a não ser nas nossas palavras; não creio que ele exista em nenhum lugar na terra. - Mas talvez haja um exemplo de tal Estado no céu, para quem queira encontrá-lo, ajustando-se a ele no governo de si próprio" (592 b). Todos os Estados que realmente existem, os Estados reais, são corrompidos - embora de modo desigual. Enquanto o Estado perfeito é um só (e não pode deixar de ser assim, porque só pode haver uma constituição perfeita), os Estados imperfeitos são muitos, de 0 0 1 Fconformi dade com o princípio afirmado em um trecho do diálogo, segundo o qual "A forma da virtude é uma só, mas o vício tem uma variedade infinita" (445 c). Segue-se que a tipologia das formas de governo de A República, em contraste com a que consideramos até agora, originada no primeiro debate sobre o tema, inclui só formas más, embora nem todas igualmente más; nenhuma dessas formas é boa. Enquanto no diálogo de Heródoto tanto as formas boas como as más são, de acordo com os pontos de vista 46 A Teoria das Formas de Governo dos três interlocutores, formas históricas realizáveis, em A República as formas históricas (que Platão examina detidamente no livro oitavo) são más, justamente porque não se ajustam à constituição ideal. A única forma boa ultrapassa a história - pelo menos até o presente. Ainda mais: como veremos melhor em seguida, a idéia predominante, de Aristóteles a Políbio, é a de que a história é uma sucessão contínua de formas boas e más, como no esquema seguinte: +-+-+- Para Platão, ao contrário, só se sucedem historicamente formas 0 0 1 Fmas cada uma pior do que a precedente. A constituição boa não entra nessa sucessão: existe por si mesma, como modelo, não importa se no princípio ou no fim da série. Pode-se representar a idéia platônica assim: +) ---- (+ Na verdade, Platão - como todos os grandes conservadores, que sempre vêem o passado com benevolência e o futuro com espanto — tem uma concepção pessimista da história (uma concepção "terrorista", como diria Kant). Vê a história não como progresso indefinido mas, ao contrário, como regresso definido; não como uma passagem do bem para o melhor, mas como um regresso do mal para o pior. Tendo vivido na época da decadência da gloriosa democracia ateniense, examina, analisa e denuncia a degradação da pólis: não o seu esplendor. É também - como todos os grandes conservadores - um historiador (e um moralista) da decadência das nações, mais do que da sua grandeza. Diante da degradação contínua da história, a solução só pode estar "fora" da história, atingível por um processo de sublimação que representa uma mudança radical (a ponto de levantar a suspeita de que a história não é capaz de recebê-la e de suportá-la) com relação ao que acontece de fato no mundo. As constituições corrompidas que Platão examina demoradamente no livro oitavo são, em ordem decrescente, as quatro seguintes: timocracia, oligarquia, democracia e tirania. Vê-se logo que faltam nessa enumeração duas das formas tradicionais - a monarquia e a aristocracia. Numa passagem que convém citar em seguida, essas duas formas são atribuídas indiferentemente à constituição ideal: "- Digo que uma das formas de governo é justamente a que consideramos (a constituição ideal), que podemos chamar de duas maneiras: se um dentre todos os governantes predomina sobre os outros, é a monarquia; se a direção do governo cabe a mais de uma pessoa, é a aristocracia. - É verdade. — Essas duas modalidades constituem, portanto, uma única forma: não importa se são muitos ou um só que governam; nada se altera nas leis fundamentais do Estado, desde que os governantes sejam treinados e educados do modo que descrevemos" (445 d). Platão 4 9 Está claro. Antes de mais nada, não serão homens livres, e não se encherá o Estado de liberdade - liberdade de palavra, licença para todos fazerem o que quiserem? Pelo menos é o que se diz. —E quando tudo se permite, está claro que cada um pode ter seu próprio estilo de vida pessoal, conforme melhor lhe pareça, não?" (557 b). O homem tirânico: "... O governante, vendo que a multidão está pronta a obedecer, não sabe evitar o derramamento de sangue dos cidadãos; com falsas 0 0 1 Facusa ções, usando os meios preferidos pelos que agem assim, arrasta as pessoas aos tribunais; macula-se com o homicídio, provando com a língua, e os lábios celerados, o sangue do próximo. A outros exila, promove sua morte. De outro lado, prevê a remissão de dívidas e a redistribuição de terras. Por isso não será necessário, inevitável mesmo, que esse homem morra pela mão dos seus inimigos ou se faça um tirano, transformando-se de lobo em homem?" (565 e). Como e por que ocorre a passagem de uma constituição para outra? Para descrever essa transformação, o filósofo acentua a importância do revezamento das gerações. A mudança de uma constituição para outra parece coincidir com a passagem de uma geração a outra. É uma mudança não só necessária, num certo sentido inevitável, mas também muito rápida. Parece ser a conseqüência fatal da rebelião do filho contra o pai, da mudança de costumes que ela provoca (mudança que corresponde a uma piora constante), especialmente na passagem da aristocracia para a timocracia, da timocracia para a oligarquia. Eis aqui um exemplo dessa análise sobre gerações (trata-se da passagem do pai timocrático ao filho oligárquico): "— Quando o filho de um homem timocrático desde o princípio emula o pai, seguindo-lhe os passos, ao ver que este se choca contra o Estado, como contra um escolho, e que depois de ter perdido tudo, a si mesmo e a seus bens, é processado ou nas suas funções de comandante supremo do exército ou enquanto ocupante de algum cargo governativo de importância, acusado por quem caluniou, e desse modo condenado à morte ou ao exílio, à perda dos direitos públicos e dos bens... Naturalmente. Precisamente por ver essas coisas e sofrimentos — por ter perdido tudo —, ele se deixa dominar pelo medo e, de repente, abandona precipitadamente a ambição e o orgulho da autoridade que havia antes no seu espírito. Humilhado pela pobreza, põe-se a ganhar dinheiro e, graças ao trabalho e ao esforço de economia, aos poucos recolhe uma nova riqueza. Não crês que, chegando a tal ponto, esse homem não é levado a entronizar a cupidez e a avareza, fazendo-as soberanas, cobrindo-as de tiaras, colares e cimitarras?" (553 b-c). Quanto ao motivo que explica a mudança, deve ser procurado sobretudo na corrupção do princípio que inspira todos os governos. Para 50 A Teoria das Formas Platão 5 1 que dizem como no que fazem. Por sua vez, os velhos são 0 0 1 Fcondescen dentes com relação aos jovens - com sua vivacidade e alegria -, imitando-os para não parecerem intolerantes e despóticos" (562 c-e - 563 a-b). Como se manifesta a corrupção do Estado? Essencialmente pela discórdia. Esse é um dos grandes temas da filosofia política de todos os tempos - um tema recorrente. Sobretudo devido à reflexão política que examina os problemas do Estado não ex parte populi (porque deste ponto de vista o problema de fundo é o da liberdade), mas ex parte principis - isto é, do ponto de vista daqueles que detêm o poder e que têm a responsabilidade de conservá-lo. Para os que consideram o problema político ex parte principis (e Platão é seguramente um deles, talvez o maior de todos), o tema fundamental não é o da "liberdade" do indivíduo com respeito ao Estado, mas o da "unidade" do Estado com relação ao indivíduo. Se este é o bem maior, o mal será a discórdia - princípio da desagregação da unidade. Da discórdia nascem os males da fragmentação da estrutura social, a cisão em partidos, o choque das facções, por fim, a anarquia- o maior dos males-, que representa o fim do Estado, a situação mais favorável à instituição do pior tipo de governo: a tirania. O tema da discórdia como moléstia, como patologia do Estado é freqüente; a corrupção do Estado é muitas vezes comparada à doença do organismo, dada a analogia contínua proposta por Platão entre o corpo do indivíduo e o corpo do Estado: "-Vamos! Tentemos explicar como é que a timocracia pode nascer da aristocracia. Para começar, não é verdade indiscutível que todas as formas de Estado se transformam devido justamente àqueles que governam, quando entre eles surge a discórdia? E que, enquanto o governo se mantém em harmonia, embora pequeno, permanece 0 0 1 Fneces sariamente inalterado?" (545 d). Mas especificamente, há duas modalidades de discórdia que levam uma cidade à ruína: a primeira é a que ocorre dentro da classe dirigente; a outra, o conflito entre a classe dirigente e a classe dirigida, entre governantes e governados. Na descrição platônica das formas 0 0 1 Fcorrompi das de convivência política, esses dois tipos podem ser vistos. Na passagem da aristocracia para a timocracia, e da timocracia para a oligarquia, a discórdia destrutiva é do primeiro tipo; na passagem da oligarquia para a democracia, ao contrário, é do segundo tipo. As duas primeiras são, com efeito, transformações internas das classes dirigentes; a terceira implica a transferência do poder de uma classe para outra: para usar a terminologia antiga (que perdurou até Rousseau), a mudança do domínio dos ricos para o dos pobres. É amplamente reconhecido que a teoria platônica do Estado como organismo deve muito à sua teoria do homem. A filosofia platônica é um exemplo notável da teoria orgânica da sociedade - isto é, da teoria que concebe a sociedade (ou o Estado) como um verdadeiro organismo, à imagem e semelhança do corpo humano. Como na república ideal, às três classes que compõem organicamente o Estado correspondem três almas individuais: a racional, a passional e a apetitiva; do mesmo modo, as formas de governo podem também ser distinguidas com base nas 52 A Teoria das Formas de Governo diferentes almas que as animam. O tema não foi perfeitamente 0 0 1 Fdesenvol vido, mas se não há dúvida de que a constituição ideal é dominada pela alma racional, é indubitável que a constituição timocrática (que exalta o guerreiro, mais do que o sábio) é dominada pela alma passional. As outras três formas são dominadas pela alma apetitiva: o homem oligárquico, o democrático e o tirano são todos eles cúpidos de bens materiais, estão todos voltados para a Terra - embora apresentem aspectos diversos. A passagem mais interessante onde se surpreende o critério para a distinção entre as várias formas, com base nas respectivas almas, é aquela que descreve o nascimento do homem timocrático como filho rebelde do homem aristocrático: "Nosso jovem, que ouve e vê tudo isso, e por outro lado escuta as palavras do pai, ao mesmo tempo que observa sua conduta, compara-a com a dos outros, sente-se atraído por uma e por outra: pelo pai, que irriga e cultiva o aspecto racional da sua alma; pelos outros, que alimentam o aspecto da concupiscência e do impulso. Não sendo mau por natureza, mas estando freqüentemente em más companhias, e sofrendo essa dupla atração, constitui em si mesmo um caráter intermediário, confiando o governo de si mesmo à parte média da alma, prepotente e ambiciosa, tornando-se um homem arrogante e sedento de honrarias" (550 a-b). Também sob esse aspecto a timocracia aparece como forma 0 0 1 Fqualita tivamente diferente das demais, intermediária entre a perfeita e a mais imperfeita. Embora não seja perfeita, é menos imperfeita do que as que se lhe seguem. No que concerne à parte da alma correspondente, as três últimas pertencem à mesma espécie, enquanto a timocracia participa de espécie distinta. Neste sentido, a diferença entre esta última e aquelas outras formas não é apenas de grau, mas de qualidade. Quanto às três últimas formas, o critério de distinção a que Platão recorre se baseia na diferença entre os vários tipos de necessidade ou de desejo (o termo grego é epithumia), que em cada uma delas é atendido preponderantemente. Há três espécies de necessidades: as essenciais, as supérfluas e as ilícitas. O homem oligárquico se 0 0 1 Fcaracteriza pelo aten dimento das necessidades essenciais; o democrático, das supérfluas; o tirânico, das ilícitas. Platão define os dois primeiros tipos da seguinte forma: "É justo chamar necessários aqueles desejos que não é possível desprezar, e todos os outros que devemos satisfazer - nos dois casos, são inclinações devidas a uma necessidade natural... No que respeita àqueles desejos de que nos podemos liberar, se nos dedicamos a isso desde a juventude, e que quando existem em nós não nos trazem nenhum bem, mas podem causar-nos mal, não estaríamos usando a denominação correta se os chamássemos de desejos supérfluos?" (558 d-e - 559 a). Eis alguns exemplos: o desejo de alimentar-se é necessário; o de comer alimentos refinados é supérfluo. As necessidades ilícitas são uma modalidade das supérfluas, próprias dos tiranos, embora aflijam todos os homens (podem contudo ser extirpadas pela educação). A diferença entre o homem normal e o tirano está em que esses desejos ilícitos ("violentos" Platão 5 3 ou "tumultuosos", como também são conhecidos) perturbam o primeiro só em sonhos, e o segundo na vigília. A República é uma descrição da melhor forma de constituição; O Político é uma investigação, estudo e descrição do melhor tipo de governante - o rei- filósofo, que possui a ciência do bom governo. O que nos interessa aqui é apenas um trecho de Platão em que o filósofo expõe suas idéias sobre as formas de governo. Trata-se de passagem curta, que reproduziremos completamente: "— Não acreditamos que a monarquia é uma das nossas formas de governo? Certamente. E depois da monarquia poderíamos citar o governo dos poucos. Naturalmente. Um terceiro tipo não seria o governo do grande número, a chamada democracia? -Sim. Ora, como são três, essas formas de governo não passarão a cinco, de certo modo, cada uma com dois outros nomes? Quais? Os que se referem, de certa maneira, à natureza violenta ou voluntária, à pobreza ou à riqueza, à legalidade ou ilegalidade, dividindo em duas cada uma das formas, assim como chamamos à monarquia tirania ou governo real. É verdade. E o Estado governado por poucos, nós o conhecemos como aristocracia, ou oligarquia. Exato. Na democracia, ao contrário, o povo domina os que possuem bens, seja com o seu consentimento, seja com a força; sejam as leis guardadas ciosamente, sejam violadas, nunca se alterou essa denominação" (291 d-e - 292 a). No que diz respeito à tipologia de A República, ela é menos original. Sua única diferença, em comparação com a tipologia que se tornará clássica, a das seis formas de governo - três boas e três más - é que em O Político a democracia tem um só nome, o que não quer dizer que, diferentemente das outras formas de governo, apresente um único modelo. Também do governo popular há uma versão boa e uma versão má (embora sob o mesmo nome), como vemos na seguinte passagem: "Temos, na monarquia, o governo real e o tirânico; já dissemos, com respeito ao governo dos poucos, que este pode ser a aristocracia, de nome promissor, ou a oligarquia; quanto ao governo dos muitos, admitimos inicialmente que dele existisse uma só modalidade: a democracia. É preciso aceitar agora que se apresenta também sob forma dupla... (Nós o dividiremos)... com um critério igual ao que foi aplicado aos outros, embora percebamos agora que o nome dessa forma tem duas acepções. Mas a distinção entre o governo de acordo com as leis e em oposição a elas é aplicável a este caso, como aos demais" (0 Político, 302 d). Continuando o diálogo, Platão coloca também o problema do 56 A Teoria das Formas de Governo Um tema a respeito do qual Aristóteles não cessa de chamar a atenção do leitor é o de que há muitas constituições diferentes; portanto, uma das primeiras tarefas do estudioso da política é descrevê-las e classificá-las. Aristóteles enfrenta o problema no § 7 do Livro III, em passagem, que, por sua importância histórica, merece ser reproduzida por inteiro: "Como constituição e governo significam a mesma coisa, e o governo é o poder soberano da cidade, é necessário que esse poder soberano seja exercido por 'um só', por 'poucos' ou por 'muitos'. 0 0 1 FQuando um só, pou cos ou muitos exercem o poder buscando o 0 0 1 Finteresse comum, temos neces sariamente as constituições retas; quando o exercem no seu interesse privado, temos desvios... Chamamos 'reino' ao governo monárquico que se propõe a fazer o bem público; 'aristocracia', ao governo de poucos..., quando tem por finalidade o bem comum; quando a massa governa visando ao bem público, temos a 'polida' , palavra com que designamos em comum todas as constituições... As degenerações das formas de governo precedentes são a ' tirania' com respeito ao reino; a ' oligarquia' , com relação à aristocracia; e a ' democracia', no que diz respeito à ' polida'. Na verdade, a tirania é o governo monárquico exercido em favor do monarca; a oligarquia visa ao interesse dos ricos; a democracia, ao dos pobres. Mas nenhuma dessas formas mira a utilidade comum" (1279 a-b). Em poucas linhas, o autor formula, com extrema simplicidade e concisão, a célebre teoria das seis formas de governo. Fica bem claro que essa tipologia deriva do emprego simultâneo dos dois critérios 0 0 1 Ffunda mentais - "quem" governa e "como" governa. Com base no primeiro critério, as constituições podem ser distinguidas conforme o poder resida numa só pessoa (monarquia), em poucas pessoas (aristocracia) e em muitas ("politia"). Com base no segundo, as constituições podem ser boas ou más, com a conseqüência de que às três primeiras formas boas se acrescentam e se contrapõem as três formas más (a tirania, a oligarquia e a democracia). A simplicidade e a clareza desta tipologia são tais que seria desnecessário qualquer comentário, além de certas considerações ter-minológicas. "Monarquia" significa propriamente "governo de um só", mas na tipologia aristotélica quer dizer "governo bom de um só", ao qual corresponde, como governo mau, a tirania. Do mesmo modo, 0 0 1 F"oligar quia", que significa propriamente "governo de poucos", corresponde a "governo mau de poucos", a que está relacionada a "aristocracia", como forma boa de governo. O termo "oligarquia" conservou de fato, nos séculos seguintes, seu significado pejorativo original; ainda hoje se costuma falar de "oligarquias", no sentido negativo, para designar grupos de poder restritos que governam sem o apoio popular (contrapondo-se assim à "democracia"). Quanto à 0 0 1 F"aristocracia", que significa pro priamente "governo dos melhores", é o único dos três termos designando as formas boas que tem por si mesmo um significado positivo: no curso do tempo manteve significação menos negativa do que a de "oligarquia", mas perdeu o sentido original de "governo dos melhores" (na linguagem política moderna entendemos, via de regra, por governos "aristocráticos" os que se baseiam em grupos restritos, nos quais o poder é transmitido por via Aristóteles 5 9 visam ao interesse dos governantes são errôneas, constituindo degene- rações com respeito às primeiras" (1279 a). A importância histórica da teoria das seis formas de governo, do modo como foi fixada por Aristóteles, é enorme. Mas não devemos dar-lhe uma importância excessiva dentro da obra aristotélica, que é mais rica de observações e determinações do que poderia parecer considerando a tipologia que estudamos. Poder-se-ia mesmo dizer que o êxito histórico do esquema de classificação (facilmente compreensível, como o de todos os esquemas que reduzem uma realidade histórica complexa, como era a das cidades gregas, de suas evoluções e revoluções) terminou induzindo uma leitura simplificada da Política, desprezando a complexidade das suas articulações internas. Aristóteles analisa cada uma das seis formas em especificações históricas, subdividindo-as em muitas espécies 0 0 1 Fparticu lares, cuja determinação faz com que o esquema geral pareça muito menos rígido do que ficou consignado na tradição do pensamento político. Por vezes, deixa de seguir esse esquema, ao estudar a passagem de uma subespécie para outra. Considere-se, por exemplo, a primeira forma de governo - a monarquia. Ao iniciar o seu estudo, Aristóteles afirma: "É preciso antes de mais nada determinar se a monarquia constitui um só gênero ou se está diferenciada em vários gêneros; é fácil perceber que abrange muitos gêneros, em cada um dos quais o governo é exercido de modo diferente" (1285 a). Estabelecida esta premissa, a exposição sobre a monarquia se articula por meio da distinção de várias espécies de monarquias, tais como: a dos tempos heróicos, "que era hereditária, baseando-se no consentimento dos súditos"; a de Esparta, em que o poder supremo se identificava com o poder militar, tendo duração perpétua; o regime dos "esimneti" - isto é, dos "tiranos eletivos" — bem como o dos chefes supremos de uma cidade eleitos por um certo período, ou em caráter vitalício, no caso de choques graves entre facções opostas; a monarquia dos povos bárbaros. Detenho-me em particular nesta última, que introduz uma categoria histórica destinada a ter grande importância nos séculos seguintes: a categoria da monarquia despótica ou, ratione loci, do "despotismo oriental", sobre a qual voltaremos a falar. São duas as características peculiares desse tipo de monarquia: a) o poder é exercido tiranicamente; neste sentido se assemelha ao poder do tirano; b) esse poder exercido tiranicamente é contudo legítimo, porque é aceito; e é aceito porque "como esses povos bárbaros são mais servis do que os gregos, e como os povos asiáticos são mais servis do que os europeus, suportam sem dificuldade o poder despótico exercido sobre eles" (1285 a). Essas duas características fazem com que não se possa assemelhar tal tipo de monarquia à tirania, já que os tiranos "governam súditos descontentes com o seu poder", poder que não se fundamenta no consentimento - não é "legítimo", no sentido preciso da palavra; ao mesmo tempo, é uma forma de monarquia que difere das monarquias helênicas porque é exercida sobre povos "servis", o que exige sua aplicação despótica. O poder despótico é aquele que o senhor (em grego, despotes) exerce sobre os escravos; diferente, como já 60 A Teoria das Formas de Governo vimos, tanto do poder paterno como do poder político. O poder despótico é absoluto e, ao contrário do paterno, exercido no interesse dos filhos, e do poder político ou civil, exercido no interesse de quem governa ou de quem é governado, visa ao interesse do senhor, que o detém. Como se sabe, Aristóteles justifica a escravidão por considerar que há homens escravos pela sua natureza. Da mesma forma, há 0 0 1 Ftambém povos natural mente escravos (os "povos servis" das grandes monarquias asiáticas). Só se pode exercer sobre esses povos o poder do tipo despótico que, não obstante, é perfeitamente legítimo: é o único tipo de poder ajustado à natureza de certos povos, embora duríssimo, como o do senhor de escravos. Tanto é assim que esses povos o aceitam "sem dificuldade" -melhor dito, sem lamentar-se (na tradução latina medieval, "sine tris-titia") -, enquanto os tiranos, cujos súditos são povos livres, governam cidadãos "descontentes", sem serem aceitos por eles. Justamente por isso a tirania é uma forma corrupta de governo, contrastando com a monarquia. Para avaliar o afastamento entre o esquema geral das seis formas de governo e as análises particulares, nada melhor do que examinar de perto a forma denominada, à falta de outro termo mais apropriado, "politia". No esquema, a "politia" corresponde à terceira forma - deveria consistir, portanto, no poder de muitos exercido no interesse comum. Mas, quando se chega à definição que lhe dá Aristóteles, encontramos coisa bem diferente: "A "politia" é, de modo geral, uma mistura de oligarquia e de democracia; via de regra são chamados de polidas os governos que se inclinam para a democracia, e de aristocracias os que se inclinam para a oligarquia" (1293 b). E preciso ter muita atenção, neste ponto: a politia é uma mistura de oligarquia e democracia. Mas, o esquema abstrato não nos diz que tanto a oligarquia como a democracia são formas corrompidas? O primeiro problema, portanto, colocado diante da politia, é o de que uma forma boa pode resultar de uma fusão de duas formas más. Em segundo lugar, se a politia não é (conforme deveria ser, de acordo com o esquema) o governo do povo ou a democracia na sua acepção correta, mas sim uma mistura de oligarquia e democracia, isso significa que (este é o segundo problema) o governo bom de muitos, que figura no terceiro lugar do esquema geral, é uma fórmula vazia, uma idéia abstrata que não corresponde, concre-tamente, a qualquer regime histórico do presente ou do passado. Trata-se pois de um problema que é complicado (o que quer dizer é tornado historicamente mais interessante) pelo fato de que, contrariando também o esquema geral, para Aristóteles nem a oligarquia é o governo de poucos nem a democracia é o governo do povo. O critério adotado por Aristóteles para distinguir a oligarquia e a democracia não é o critério numérico, de caráter geral, mas um critério bem mais concreto: a diferença entre ricos e pobres: "Na democracia governam os homens livres, e os pobres, que constituem a maioria; na oligarquia governam os ricos e os nobres, que representam a minoria" (1290 b). Aristóteles 6 3 pensamento político ocidental, que chega até os nossos dias. Trata-se do tema do "governo misto", sobre o qual todos os grandes escritores políticos terão algo a dizer - pró ou contra. Sua formulação mais feliz será dada pelo escritor que discutirei no próximo capítulo - Políbio. Capítulo IV POLÍBIO Além dos textos de Platão e de Aristóteles, a Antigüidade clássica nos legou uma terceira obra fundamental para a teoria das formas de governo: o livro VI da História de Políbio. É um texto de autoridade não menor do que a de Platão e Aristóteles (basta pensar em Maquiavel). Ao contrário dos dois primeiros, Políbio (que viveu no século II 0 0 1 Fa.C.) não é um fi lósofo mas um historiador. Grego de nascimento, foi deportado para a Roma depois da conquista da Grécia; entrou em contato ali com os meios mais elevados, especialmente o círculo dos Cipiões, escrevendo em grego a primeira grande história (apologética) de Roma antes de Tito Livio. Terminadas as guerras púnicas, Roma avizinhava-se do auge da sua potência. Depois de narrar os episódios da batalha de Cannes (216 a.C), Políbio se detém, no Livro VI, para fazer uma exposição pormenorizada da constituição romana, redigindo um pequeno tratado de direito público romano, no qual descreveu as várias funções públicas (os cônsules, o senado, os tribunos, a organização militar, etc). O motivo por que o historiador 0 0 1 Fdescreve a constituição do povo, cuja história narra, é expli citado: "Deve-se considerar a constituição de um povo como a causa primordial do êxito ou do insucesso de todas as ações" (VI, 2). Baseando-se nessa premissa, quer demonstrar a importância que teve a excelência da constituição romana para explicar o sucesso da política de um povo que "em menos de cinqüenta e três anos", como se lê no mesmo parágrafo, conquistou todos os outros Estados, impondo-lhes o seu domínio. Antes de examinar a constituição romana, Políbio tece algumas considerações sobre as constituições em geral - considerações que constituem uma das mais completas teorias das formas de governo que a história nos legou. Nessa teoria ele expõe sobretudo três teses que merecem ser enunciadas, ainda que brevemente: 1) existem fundamental- 66 A Teoria das Formas 68 A Teoria das Formas de Governo esta concepção regressiva da história e a visão progressiva, tão 0 0 1 Fcaracte rística da idade moderna, pelo menos a partir do Renascimento (embora o tema merecesse outro tipo de desenvolvimento), segundo a qual o que vem depois é em última instância, senão imediatamente, melhor do que o que vem antes (recorde-se a famosa metáfora do anão sobre os ombros do gigante); entre uma concepção - a platônica - para a qual a história caminha do mau para o pior e uma outra- moderna- para a qual o curso da história vai do bom para o melhor. Em outras palavras, entre uma teoria do retorno indefinido e uma concepção do progresso indefinido. A terceira observação que se pode fazer é a de que esta concepção da história é fatalista, no sentido de que a passagem de uma forma para outra parece predeterminada, necessária e inderrogável; parece 0 0 1 Ftambém na tural, no sentido de estar prevista pela natureza das coisas, isto é, de estar implícita na própria natureza dos governos, que não podem deixar de sofrer o processo de transformação - e também no sentido, ainda mais fértil, segundo o qual cada forma de governo só se pode converter em uma outra forma determinada. Note-se, na passagem citada, a insistência em expressões como "naturalmente", "natural", "pela força da natureza", etc. Para demonstrar de modo evidente que o germe da corrupção está no interior de todas as constituições, Políbio usa a imagem da oxidação do ferro e da ação do caruncho na madeira, como se vê nesta passagem: "Da mesma forma como a ferrugem, que é um mal congênito do ferro, o caruncho e as traças, que são males (internos) da madeira, pelos quais um e outra são consumidos, ainda que escapem a todos os danos externos, assim também toda constituição apresenta um mal natural que lhe é inseparável: o despotismo com relação ao reino; a oligarquia com relação à aristocracia; o governo brutal e violento com respeito à democracia. Nessas formas, como já disse, é impossível que não se alterem com o tempo todas as constituições" (VI, 10). Falta dizer o que acontece no fim do ciclo, quando a degradação das constituições chega à fase final (que é a oclocracia). Em Platão - pelo menos no livro oitavo de A República, a pergunta tinha ficado sem resposta. Mas Políbio dá uma resposta muito precisa (resposta que está oculta no próprio Platão): no fim do primeiro processo, o curso das constituições retorna ao ponto de partida. Da oclocracia se volta, com um salto, diretamente ao reino: da forma pior à melhor. A concepção que Políbio tem da história é cíclica; segundo ele, a história é uma repetição contínua de eventos que tornam sempre sobre si mesmos - o "eterno retorno do mesmo". Depois de deter-se longamente a descrever de forma analítica os seis momentos sucessivos (e fatais), conclui: "Este é o rodízio das constituições: a lei natural segundo a qual as formas políticas se transformam, decaem e ' retornam ao ponto de partida'" (VI, 10; ênfase acrescentada). Mesmo nesse caso, não se pode deixar de indicar outra grande teoria cíclica da história, a de Giambattista Vico, embora tanto os momentos quanto o ritmo e as dimensões históricas dessa concepção sejam completamente diferentes, conforme teremos oportunidade de ver. Basta dizer que enquanto a teoria de Políbio deriva do campo de observação Políbio 6 9 muito limitado das cidades gregas, a teoria de Vico abrange toda a história da humanidade. A teoria polibiana dos ciclos é deduzida da história das cidades gregas no período do seu crescimento, esplendor e decadência; aplica-se portanto só àquela limitada parte do mundo. As grandes monarquias asiáticas escapam ao âmbito dessa concepção histórica; continuarão, aliás, fora do fluxo da história européia mesmo nos séculos seguintes - até Hegel, e mesmo depois dele. Representam não o princípio do movimento e do progresso, mas o da imobilidade (que não se deve confundir com a "estabilidade"). A tese principal da teoria polibiana das constituições é sem dúvida a do governo misto. Políbio passou para a história do pensamento político como o defensor por excelência do governo misto. Não será difícil descobrir o nexo existente entre a idéia do governo misto e a teoria dos ciclos: esta pôs em evidência o fato de que todas as formas simples - tanto aquelas consideradas tradicionalmente "retas" como as corrompidas -têm uma duração breve, porque estão destinadas pela própria natureza a transformar-se numa forma diferente. Isso significa 0 0 1 Fque todas as cons tituições sofrem de um vício, o da falta de estabilidade - vício grave porque, por consenso geral, quanto mais estável uma constituição, mais louvável. Qual é o objetivo de uma constituição? Para repetir a definição aris-totélica, pode-se dizer que é ordenar os cargos governativos, isto é, estabelecer quem deve governar, permitir o desenvolvimento regular e ordeiro da vida civil - o que não pode ocorrer se o sistema político sofre alterações contínuas. Um dos temas recorrentes da filosofia política é o da ordem (muito mais do que seu contrário, a liberdade). A teoria dos ciclos demonstra que as constituições comuns são instáveis; enquanto instáveis, todas elas, mesmo as consideradas tradicionalmente boas, são más -embora isso possa parecer paradoxal. Do ponto de vista do valor supremo da ordem, garantido pela estabilidade, desaparece a distinção entre constituições boas e más. Essa distinção desaparece se se observa o que umas e outras têm em comum: são constituições simples, nas quais quem governa são o rei (ou tirano), os melhores (ou os mais ricos), ou o povo (ou a plebe). A tese de Políbio é a de que todas as constituições simples são más porque são simples (mesmo as constituições "retas"). Qual o remédio, então? O "governo misto", isto é, uma constituição que combine as três formas clássicas. Antes mesmo de terminar a enumeração das três formas boas (na passagem citada acima), Políbio acrescenta as seguintes palavras, antecipando um conceito que desenvolverá mais completamente nos parágrafos sucessivos. "Está claro, de fato, que precisamos considerar ótima a constituição que reúne as características de todas as três formas" (VI, 3). O exemplo histórico que demonstra essa idéia é a Esparta de Licurgo. Não importa que tenha havido as mais diversas interpretações da constituição de Esparta, nem cabe discutir se a interpretação de Políbio estava correta. O que nos interessa aqui é que, para Políbio, a constituição de Esparta é excelente - porque é mista. A relação entre governo misto e estabilidade parece clara desde o início da passagem: "Licurgo tinha notado que cada uma das transformações mencio- Políbio 7 1 "Como dessa forma cada órgão pode 'obstaculizar' os outros ou 'colaborar' com eles, sua união é benéfica em todas as circunstâncias, de modo que não é possível haver um Estado melhor constituído". E termina assim: "Quando... um dos órgãos constitucionais, adquirindo força, cresce em soberba e exerce um domínio maior do que o conveniente, está claro que como nenhuma parte é autônoma, como já disse, e como todo desígnio pode ser desviado ou impedido, nenhuma das panes excede sua competência e ultrapassa sua medida. Assim, permanecem todos dentro dos limites prescritos — de um lado porque têm impedidos todos os impulsos agressivos, de outro porque desde o princípio temem a vigilância dos demais" (VI, 18). Com essas afirmativas, Políbio conclui perfeitamente a exposição que iniciara dizendo que a primeira causa do êxito ou do insucesso de um povo deve ser procurada na sua constituição. De fato, o que Políbio evidencia claramente, para afirmar a excelência de uma constituição, é o que hoje chamaríamos de seu "mecanismo". A teoria de Políbio é uma teoria dos mecanismos constitucionais que tornam possível uma forma de governo estável — por isso preferível a qualquer outra. É verdade que hoje não nos inclinamos tanto a admitir que a causa fundamental do êxito ou do fracasso de um povo seja sua constituição. Tendemos a afastar nossa análise do sistema político para o sistema social subjacente; da anatomia das instituições políticas para a anatomia da sociedade civil (como diria Marx); das relações de poder para as relações de produção. No entanto, a preferência atribuída às instituições perdurou longamente; conforme veremos, não será estranha a Hegel. Vale a pena fazer um rápido confronto com a "politia" de Aristóteles, representada como uma forma antecipada de governo misto. Segundo Aristóteles, a superação do antagonismo entre as duas partes em conflito não ocorre, como para Políbio, a nível institucional; acontece — quando acontece - na sociedade, por meio da formação de uma forte classe média com interesse próprio na estabilidade. Antes de ser institucional, o equilíbrio aristotélico é social; ele só é institucional se é previamente social. Neste sentido, a teoria aristotélica da "politia" não é tanto uma teoria do governo misto, mas sobretudo a admiração sentida por uma sociedade sem grandes desequilíbrios de riqueza. A presença simultânea dos três poderes e seu controle recíproco preserva as constituições mistas da degeneração a que estão sujeitos os governos simples, porque impede aqueles excessos que, por reação, desencadeiam a oposição e provocam mudanças. Como conciliar, então, a estabilidade dos governos mistos com a teoria dos ciclos? Não há talvez uma contradição entre a afirmativa peremptória de que os ciclos das constituições são um fato natural (portanto inevitável) e a afirmativa não menos peremptória de que os governos mistos são estáveis? Não é de hoje que os analistas do Livro VI de Políbio observam essa contradição: nota-se que é de fato estranho que o teorizador da fatalidade da mudança tenha dedicado depois algumas páginas, no mesmo contexto, a descrever e exaltar uma constituição cuja característica é subtrair-se à mudança. A 72 A Teoria das Formas de Governo existência de uma constituição como a romana, que se formou lentamente 0 0 1 Fmediante "grandes lutas e agitações" (e justamente porque se desenvol veu por meio da criação de um sistema complexo de poderes contrapostos não está sujeita à degeneração) não representa um desmentido solene da teoria dos ciclos? A contradição é mais aparente do que real. O fato de que as constituições mistas são estáveis não significa que sejam eternas, mas apenas mais duradouras do que as simples (de resto, o primeiro modelo de constituição mista, o modelo espartano, no tempo de Políbio já não passava de uma recordação histórica). O que diferencia as constituições mistas das simples não é mais a proteção contra as mudanças, o fato de que podem escapar ao destino mortal que condena todas as constituições - como todas as coisas vivas -, mais sim um ritmo diferente e uma razão diferente para a mudança. Não é por acaso que, referindo-se ao Estado romano, Políbio escreve, logo depois de enunciar a lei dos ciclos históricos: "Especialmente no caso do Estado romano, com este método (isto é, com a lei dos ciclos, segundo a qual 'as formas políticas se transformam, decaem e retornam a© ponto de partida') tomaremos consciência do seu surgimento, expansão e potência máxima, como da decadência que seguirá" (VI, 9). Parece não haver dúvida de que desde o princípio Políbio tem perfeita consciência de que até mesmo o Estado romano, não obstante sua excelência, está sujeito à "lei natural" do nascimento, crescimento e morte; que, portanto, o que constitui o título de mérito do governo misto é sua maior estabilidade - não sua perenidade. No que concerne ao ritmo de mudança, ele é mais lento do que o das constituições simples, porque, mediante o mecanismo de conciliação das três partes que compõem a sociedade no seu conjunto, os conflitos entre partes 0 0 1 F(que nas constituições simples provocam as transformações consti tucionais, a passagem brusca e violenta de uma forma para outra) são resolvidos dentro do sistema político; se produzem mudanças, elas são, como diríamos hoje, sistemáticas e não extra-sistemáticas; graduais e não violentas. Provocam não o desequilíbrio imprevisto que gera a revolução, mas uma alteração do equilíbrio interno que é absorvida por um deslocamento do mesmo equilíbrio em grau diferente. No que respeita à razão que pode explicar por que as constituições mistas também decaem e morrem, ela consiste num tal deslocamento do equilíbrio entre as três partes, em favor de uma delas, que a constituição deixa de ser mista para se tornar simples. A julgar pelo que Políbio diz sobre Cartago, que tinha um governo misto, mas que estava destinada à derrota porque tinha caído nas mãos de um governo democrático (no sentido depreciativo da palavra), enquanto Roma deveria ser vitoriosa porque ali o equilíbrio entre os três poderes ainda não se havia rompido em favor de um só dentre eles, poder-se-ia deduzir que há uma espécie de ciclo também dentro das constituições mistas, quedálugar a um "ciclo no ciclo" — com a conseqüência de que nem todas as constituições mistas deveriam ser colocadas no mesmo plano, mas sim deixadas separadamente, conforme Políbio 7 3 prevalecesse uma ou outra pane da cidade, em constituições mistas predominantemente monárquicas, aristocráticas ou democráticas. Pode-se talvez arriscar a hipótese (embora não inteiramente 0 0 1 Fexplici tada) de que Políbio tenha usado também esse "ciclo no ciclo" de modo axiológico, além de descritivo, estabelecendo uma graduação de mérito entre os diversos tipos de constituições mistas; dando sua preferência ao de predominância aristocrática, como era o da Roma do seu tempo, e considerando que a constituição mista de predominância democrática fosse o princípio do fim. Segundo esta hipótese, a melhor constituição mista seria aquela em que das três partes componentes predomina a do meio (isto é, a aristocrática) - outro exemplo claro da primazia do "meio-termo". de Governo "Enquanto as três primeiras formas de governo facilmente se desenvolvem nos defeitos opostos, de modo que o rei passa a tirano, os melhores constituem uma facção, o povo se faz turba e leva à desordem, transformando-se essas formas em outras, o mesmo não acontece, de modo geral, num governo como este, composto e moderadamente misto... Não há, de fato, razão para mudança (causa conversionis) onde todos se mantêm firmemente no seu lugar, afastando-se das condições que levam à precipitação e à queda". Aqui também se nota uma relação estreita entre constituição mista e estabilidade: quando o governo é composto, e cada uma das suas partes exerce a função que lhe cabe dentro do conjunto, não há causa conversionis -isto é, não há uma razão que leve o governo a degenerar, de modo que dessa degeneração surja uma forma de governo completamente nova. Mais uma vez encontramos, num texto clássico de filosofia política, o elogio da estabilidade ao lado do temor da mudança - especialmente quando esta conduz à "turba et confusio" do governo popular. Capítulo V INTERVALO Chamarei de "Intervalo" a estas poucas noções dedicadas à Idade Média — isto é, aos muitos séculos que separam a Antigüidade clássica de Maquiavel, ao qual está dedicado o próximo capítulo. Já disse que na presente excursão histórica vou deter-me só em algumas fases, que considero essenciais na história das teorias das formas de governo. Quer dizer: em algumas teorias que são exemplares. No curso da filosofia política medieval nada há de genuinamente 0 0 1 Ffundamental para o desen volvimento das teorias das formas de governo. Limitar-me-ei portanto a dar algumas razões para esse fato, a procurar explicá-lo. Não se pode silenciar um motivo externo que pode ter influído para motivar esse longo hiato histórico que vamos expor brevemente. O texto canônico dessa história — a Política de Aristóteles — não era conhecido pelos escritores cristãos dos primeiros séculos: perdeu-se, na crise da cultura antiga, e só foi redescoberto no fim do século XIII. Quanto ao De Republica de Cícero, foi redescoberto no princípio do século XIX. Reencontrado o texto aristotélico, teve grande repercussão — tanto que a célebre classificação das formas de governo passou a ser repetida servilmente, embora a realidade histórica fosse bem diversa da que tinha suscitado as observações e distinções dos autores gregos. Cito um exemplo muito significativo: uma das obras políticas mais importantes da Idade Média avançada é, sem dúvida, o Defensor Pacis, de Marcílio de Pádua (1324). No cap. VIII, dedicado à classificação das constituições, encontramos uma pura e simples repetição - quase uma tradução - do trecho de Aristóteles, que citamos: "Há dois gêneros de governos, um equilibrado e outro viciado. Com Aristóteles,... chamo de bem equilibrado o gênero em que o governante zela pelo bem comum, de acordo com a vontade dos seus súditos; o gênero viciado é o que apresenta falha, deste ponto de vista. Cada um desses gêneros se divide, em seguida, em três espécies: o equilibrado, em 78 A Teoria das Formas 80 A Teoria das Formas de Governo partida que tem como conseqüência o reconhecimento da necessidade de um domínio férreo, sem o qual a classe dominante não poderia manter seu poder. Para Marx também o Estado não pode ser mantido sem o terror. A diferença é que esse terror não é necessário devido à maldade dos súditos, mas as condições objetivas das relações de produção que deram origem a uma sociedade de desiguais, que só a força pode manter unida. Não é por acaso que Marx se refere ao Estado burguês como "ditadura da burguesia", e chama de "ditadura do proletariado" o Estado em que a classe dominante será o proletariado. Designa o Estado - qualquer forma de Estado - como um termo que sempre denotou uma forma de poder exclusivo e absoluto. Veremos oportunamente que, com respeito à teoria das formas de governo, a conseqüência é a mesma que extraímos da concepção negativa do Estado, própria de alguns escritores cristãos: mesmo em Marx não encontramos uma genuína teoria das formas de governo. Se todos os Estados são "ditaduras", pelo simples fato de serem Estados, todos valem o mesmo. Enquanto houver Estado haverá o domínio pela força, a coação, a repressão, a violência da classe que detém o poder sobre aquela que não o tem, etc. Está claro que Marx também não vê no Estado a finalidade da história: ele deverá desaparecer, sendo substituído pela sociedade sem Estado, quando não existirem mais classes antagônicas. Contudo, enquanto para os escritores cristãos a salvação do indivíduo depende de outra sociedade paralela ao Estado ("extra ecclesiam nulla salus"), para Marx a solução está na dissolução do Estado, isto é, na sociedade que não se baseia mais em relações de força, a qual poderá ser instaurada quando desaparecerem as divisões de classe. Dentro de uma concepção negativa do Estado, não pode haver a afirmação de um momento positivo, quer dizer, de uma entidade que se contraponha ao Estado, dominando-o e por fim destroçando-o. Para os escritores cristãos, esse momento positivo é a Igreja; para Marx, é a sociedade sem classes; para uns uma forma de verdadeiro antiestado, para outros o não-Estado. A fim de completar o quadro das concepções negativas do Estado, e uma vez que mencionei Platão, vale acrescentar que a solução platônica do Estado negativo não é nem o antiestado nem o não-Estado, mas sim o Estado ideal, uma sublimação: o superestado, a sociedade organizada de modo tal que a desigualdade entre os membros da comunidade estatal (que fundamenta o Estado como puro domínio) seja fixada de uma vez por todas, e perpetuada; em outras palavras, não se trata de eliminar a divisão da sociedade em classes, mas sim de eternizá-la. Pode-se dar também uma explicação filosófica para o escasso interesse que os escritores cristãos têm na classificação das formas de governo: o problema central dos escritores políticos dos primeiros séculos do cristianismo é antes de tudo um problema moral. Trata-se da relação entre o Estado (qualquer que seja sua forma histórica) e a justiça. Santo Agostinho tinha enunciado com extrema clareza esse problema, que todo o pensamento político medieval procura solucionar, ao perguntar- se: "Desprezada a justiça, que são os reinos senão bandos de ladrões? E de Governo principatus delatus est") e governa com justiça ("qui iustüiam ministrai et leges servat"). Estas breves indicações sobre a teoria do tirano servirão também como introdução a Maquiavel, tema do próximo capítulo. Capítulo VI MAQUIAVEL Com Maquiavel começam muitas coisas importantes na história do pensamento político, inclusive uma nova classificação das formas de governo. O assunto é tratado por Maquiavel tanto em O Príncipe como nos Comentários sobre a Primeira Década de Tito Livio (os Discorsi). Pretendo ocupar-me dos dois livros, e advirto que, com respeito ao tema que nos interessa, há também uma diferença entre eles - o primeiro trata da política militante, o segundo da teoria política, afastando-se 0 0 1 Fmais dos aconteci mentos da época. A novidade da classificação de Maquiavel, em comparação com a tipologia clássica, aparece já nas primeiras palavras de O Príncipe, dedicadas justamente a esse ponto: "Todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas ou monarquias". Palavras importantes para a história do pensamento político, 0 0 1 Finclu sive por introduzirem termo que perduraria até hoje - "Estado" -, para indicar o que os gregos tinham chamado de polis, os romanos de 0 0 1 Fres pu blica, e que um grande pensador, político, o francês Jean Bodin, meio século depois de Maquiavel, chamará de république. Já se escreveu muito, até recentemente, a respeito do emprego do termo "Estado" na época de Maquiavel e imediatamente depois, dentro e fora da Itália. Não me deterei neste ponto, mas aconselho, a este propósito, a leitura do cap. IV da Doutrina do Estado, de A. Passerim d'Entrèves (Turim, Giappichelli, 1962, pp. 47-60). No trecho citado observa-se logo que Maquiavel substitui a tripartição clássica, aristotélico polibiana, por umabipartição. As formas de governo passam de três a duas: principados e repúblicas. O 0 0 1 Fprincipado corres ponde ao reino; a república, tanto à aristocracia como à democracia. A diferença continua a ser quantitativa (mas não só quantitativa) e é simplificada: os Estados são governados ou por uma só pessoa ou por muitas. Essa é a diferença verdadeiramente essencial. Os "muitos" 84 A Teoria das Formas 86 A Teoria das Formas de Governo boas - quer dizer, são governos mistos propriamente. Não basta combinar uma forma de governo com outra para chegar a um governo misto. Há combinações que funcionam e outras que não. Uma 0 0 1 Fcombina ção pode constituir uma síntese feliz de constituições opostas, sendo assim superior às constituições simples; outra pode ser 0 0 1 Fuma contamina ção de constituições que não se ajustam entre si, sendo assim inferior a uma constituição simples. Conforme veremos adiante, o governo misto que Maquiavel identifica no Estado romano é uma república compósita, complexa, formada por diversas partes que 0 0 1 Fmantêm relações de concór dia contrastantes entre si. O Estado intermediário que ele critica deriva não de uma fusão de diversas partes, num todo que as transcende, mas da conciliação provisória entre duas partes que conflitam, que não chegaram a encontrar uma constituição unitária que as abranja, superando-as a ambas. Resta, contudo, o fato de que essa exposição sobre a reforma do Estado de Florença está associada muito de perto à circunstância histórica que a motivou para que possam ser comparadas sic et simpliciter à formulação teórica das formas de governo em geral que Maquiavel expõe nos Discorsi. Uma vez classificados os Estados em principados e repúblicas, O Príncípe se dedica ao estudo dos primeiros: "Não pretendo discorrer aqui sobre as repúblicas, assunto que já estudei extensamente em outra parte, mas somente sobre as monarquias, examinando de que modo suas várias modalidades, acima indicadas, podem ser mantidas e governadas (cap. II)". Detenho-me somente na classificação dos principados. A primeira distinção introduzida no livro é entre principados hereditários, nos quais o poder é transmitido com base numa lei constitucional de sucessão, e principados novos, onde o poder é conquistado por quem ainda não era um "príncipe" (como aconteceu em Milão, com Francisco Sforza, para dar o exemplo apresentado pelo próprio Maquiavel). O livro é dedicado quase inteiramente aos novos principados. O que motiva Maquiavel é o lançamento de premissas que lhe permitirão invocar finalmente, na célebre exortação final, o "novo príncipe" que redimirá a Itália do "domínio bárbaro", o novo "Teseu", o "redentor". No que concerne aos principados hereditários, há duas espécies: "No curso da história os reinos têm sido governados de duas formas: por um príncipe e seus assistentes que, na qualidade de ministros, o ajudam a administrar o país, agindo por sua graça e licença; ou por um príncipe e vários barões, cuja posição não se explica por um favor do soberano, mas pela antigüidade da própria família (cap. IV)". O critério de distinção entre as duas espécies é claro: há príncipes que governam sem intermediários, cujo poder é absoluto, com a 0 0 1 Fconseqüên cia que os súditos são seus "servos" - mesmo os que, por concessão graciosa do soberano, o ajudam como ministros; e há príncipes que governam com a intermediação da nobreza, cujo poder é original, não depende do rei. Esta segunda espécie de príncipe tem um poder não-absoluto, porque é dividido com os "barões", embora guarde uma posição preeminente. Na primeira categoria de principado, Maquiavel Maquiavel 87 retoma o conceito, já tradicional, da monarquia despótica, de que Aristóteles tinha falado - quer dizer, da monarquia na qual a relação entre dominante e dominado é semelhante à que existe entre senhor e servo. A distinção é elucidada com os exemplos seguintes: "Exemplos atuais desses dois tipos de governo são a Turquia e a França. A monarquia turca é dirigida exclusivamente por um soberano, que tem seus servidores e divide o reino em províncias, as quais envia administradores, que substitui e exonera livremente. Já o rei da França é cercado por um grande número de antigos nobres, reconhecidos como tais pelos próprios súditos, e 0 0 1 Fque são por eles estimados; têm prerroga tivas, de que o rei não pode privá- los sem perigo para si" (ibidem). O exemplo da Turquia é interessante: com a categoria da monarquia despótica se transmite também a noção do "despotismo oriental", que já aparecia claramente em Aristóteles, como vimos, e que persistirá até Hegel (e mais recentemente ainda). Há sempre um Estado oriental, não-europeu, a servir de exemplo para demonstrar a existência de uma forma de governo própria dos "povos servis": para Aristóteles era a Pérsia; para Maquiavel, a Turquia; no século XVIII, será a China. Quanto aos novos principados, assunto da maior parte do livro, Maquiavel distingue quatro espécies, de acordo com as diferentes maneiras como o poder pode ser conquistado: a) pela virtú; b) pela "fortuna"; c) pela violência; d) com o consentimento dos cidadãos. Estas quatro espécies podem ser dispostas em duplas antitéticas: virtú-"fortuna"; força-consentimento. Os conceitos de virtú (coragem, valor, capacidade, eficácia política) e de 0 0 1 F"fortuna" (sorte, acaso, influência das circunstân cias) têm grande importância para a concepção maquiaveliana da história, como é sabido. Por virtú Maquiavel entende a capacidade pessoal de dominar os eventos, de alcançar um fim objetivado, por qualquer meio; por "fortuna", entende o curso dos acontecimentos que não dependem da vontade humana. Diríamos hoje: o "momento subjetivo" e o "momento objetivo" do movimento histórico. Para Maquiavel, o que se consegue realizar não depende nem exclusivamente da virtú nem só da "fortuna"; quer dizer: nem só do mérito pessoal nem apenas do favor das circunstâncias, mas de ambos os fatores, em partes iguais: "Para não ignorar inteiramente nosso livre arbítrio, creio que se pode aceitar que a sorte decide a metade dos nossos atos, mas que nos permite o controle sobre a outra metade, aproximadamente. Compararia a sorte a um rio impetuoso que, quando turbulento, inunda a planície, derruba casas e ediiicios, remove terra de um lugar para depositá-la em outro... Contudo, embora tal seja sua natureza, quando as águas correm quietamente é possível construir defesas contra elas, diques e barragens, de modo que, quando voltem a crescer, sejam desviadas por um canal, para que seu ímpeto seja menos selvagem e maléfico" (cap. XXV). A diferença entre os principados conquistados pela virtú e os conquistados pela "fortuna" é que os primeiros são mais duradouros; os segundos, que o príncipe conquista devido a circunstâncias favoráveis, e não pelo próprio mérito, são menos estáveis, destinados a desaparecer em pouco tempo. 88 A Teoria das Formas de Governo O principado adquirido pela violência, per scelera, nos dá a 0 0 1 Foportuni dade de fazer outras considerações. Na distinção maquiaveliana entre principado e república, não só desaparece a tripartição clássica, mas falta também, pelo menos no plano visível, a duplicação das formas de governo, em boas e más. Pelo menos no que diz respeito aos principados- tema de O Príncipe —, Maquiavel não introduz a distinção entre principados bons e maus, entre príncipe e tirano. Como se viu ele distingue os vários tipos de principado de acordo com o modo da sua aquisição; aquele que chega a dominar um principado per scelera corresponde à figura do tirano clássico, mas, para Maquiavel, é um príncipe como os demais. A verdade é que quando se examina a figura do tirano ilegítimo, ex defec-tu tituli, verifica-se que todos os príncipes novos são tiranos - não só o príncipe "celerado". São tiranos no sentido moderno da palavra, pois seu poder é um poder de fato, cuja legitimação só ocorre (quando ocorre) com o tempo. Mas, justamente porque num certo sentido todos os príncipes novos são tiranos, nenhum o é verdadeiramente. No contexto maquiave-liano, não apresentam nenhuma conotação negativa. Ao contrário, os príncipes novos que conquistaram o poder pelo seu valor (virtú) são celebrados como fundadores de Estados, grandes protagonistas do desenvolvimento histórico - que Hegel chamará de "indivíduos cosmo-históricos", e a propósito dos quais Max Weber construirá a figura do chefe carismático. O caso do príncipe que conquista o Estado "per scelera" é diferente: é o tirano no sentido tradicional, como se vê em um dos dois exemplos apresentados por Maquiavel, o de Agátocles, rei de Siracusa (o outro exemplo é de um contemporâneo, Liverotto de Fermo). Contudo, mesmo nesse caso, o julgamento de Maquiavel não é de ordem moral. O critério para distinguir a boa política da má é o seu êxito. No que diz respeito ao príncipe novo, o êxito é medido pela capacidade de manter o Estado (entra outra vez em cena o valor da "estabilidade"). A introdução do critério do êxito como a única medida de julgamento político permite a Maquiavel distinguir, mesmo dentro da categoria do tirano "celerado", o bom tirano do mau. Bom é aquele que, como Agátocles, embora tenha conquistado o poder por meios criminosos, consegue depois mantê-lo. Mau é Liverotto de Fermo, que só se manteve no poder durante um ano, após o que teve o mesmo fim miserável que havia dado aos seus adversários. Em que consiste a diferença entre os dois príncipes? Comenta Maquiavel, com uma de suas frases que lhe valeram fama e infâmia: "Penso que depende da crueldade bem ou mal empregada". Os dois príncipes foram cruéis, mas a crueldade de um deles foi bem utilizada, tendo em vista seu objetivo — a única coisa que conta na atividade política (isto é, foi empregada para a conservação do Estado); a crueldade do outro não serviu ao único fim que deve orientar todas as ações de um príncipe — a manutenção do poder. Dou a palavra a Maquiavel: "...a diferença reside no uso adequado ou não da crueldade. No primeiro caso, estão aqueles que a usaram bem (se é que se pode qualificar um mal com a palavra "bem"), uma vez só, com o objetivo de se garantir,
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