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Guias e Dicas
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Mário Perini - Sofrendo A Gramática, Notas de estudo de Literatura

Sofrendo a gramática

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 28/07/2010

marcos-daud-3
marcos-daud-3 🇧🇷

4.3

(46)

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Baixe Mário Perini - Sofrendo A Gramática e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! =;;;=0;;;;=0;;;=een0;;;=92;==nd4=20==SOFRENDO A GRAMÁTICA - Mário A. Perini. =20 Ensaios sobre a linguagem. 3ª edição. =20 SUMÁRIO. =20 Apresentação . 9. 1. Nossa sabedoria gramatical oculta 11. (que significa "saber português"?) 2.Ver ou não ver 17. (verdades e ficções sobre a língua). 3. Um Prometeu da lingüística brasileira 23. (a obra lingüística de Capistrano de Abreu). 4. As duas línguas do Brasil 31. (qual é mesmo a língua que falamos?). 5. O adjetivo e o ornitorrinco 39. (dilemas da classificação das palavras). 6. Sofrendo a gramática 47. (a matéria que ninguém aprende). 7. As gravatas de Mário Quintana 57. (não basta saber uma língua para entendê-la). 8. Karl Verner, detetive 69. (três momentos na história da lingüística) 9. Pesquisa =em .gramática 77 (e será possível?). 10. O rock português 87. (a melhor língua para fazer ciência). 11. Quando um adjetivo é um verbo 95. =20 APRESENTAÇÃO. =20 O interesse pela linguagem não é privilégio dos =profissionais (qual é a relação entre palavras e coisas?) - é =algo que todos nós sentimos em maior ou menor grau. Desde o lingüista que se dedica ao esclarecimento dos grandes Mistérios da linguagem humana até o leigo que se pergunta =qual Será a forma "correta" de uma palavra, somos todos em certa Medida pesquisadores da linguagem - se entendermos como ="pesquisador" aquele que faz perguntas sobre a linguagem, não apenas =aquele que tenta respondê-las. No decurso de uma vida dedicada ao =estudo e ao ensino da lingüística, tenho me defrontado Constantemente com esse interesse quase universal. E aprendi a Avaliar meus colegas de profissão não em função do =quanto sabem Da teoria lingüística, mas em função do quanto são =dominados Pela paixão do estudo da linguagem. Há muitos tipos de lingüistas: alguns passam meses ou anos em =uma aldeia, aprendendo e descrevendo pela primeira vez (e, infelizmente, =às vezes pela última) uma língua indígena. Outros teorizam sobre a linguagem da maneira mais abstrata. Uns =trabalham em grandes departamentos universitários, outros (como 9 Capistrano de Abreu, herói de um dos ensaios deste livro) em =isolamento quase completo. Uns arriscam a vida procurando os últimos falantes de um dialeto quase extinto nos altos do Himalaia, =outros apenas acumulam gordura e problemas de coluna em frente ao =computador. Mas são todos impelidos pela mesma força, que pode mais do =que todos nós: o incrível fascínio que encerra o estudo da =linguagem - a mesma força que leva o homem da rua a se maravilhar com =a diferença entre as línguas, ou com o fato de que utilizamos hoje muitas das mesmas palavras =que eram usadas em Roma, no tempo de César. Neste livro reuni alguns ensaios que venho escrevendo há anos. =Em cada um deles considero um problema lingüístico de valor atual, =ou descrevo o trabalho dos pioneiros da nossa disciplina. Tive a =preocupação de me dirigir não aos lingüistas profissionais, mas às pessoas interessadas em geral, em um =texto que, espero, será acessível à maioria dos leitores. Cada =ensaio é, pois, uma pequena janela,mostrando um fragmento do mundo da linguagem =e de seu estudo. Em cada um deles procuro dar uma idéia da =complexidade e do pitoresco da linguagem, assim como dos esforços que =vêm sendo feitos há séculos pelos lingüistas em sua difícil tarefa de descrever um fenômeno que nos =governa e ultrapassa em tão grande medida. =20 M.A.P =20 Belo Horizonte, 1997. =20 1. NOSSA SABEDORIA GRAMATICAL OCULTA. (que significa "saber português"?) =20 "Saber gramática", ou mesmo "saber português", é =geralmente considerado privilégio de poucos. Raras pessoas se atrevem =a dizer que conhecem a língua. Tendemos a achar, em vez, que=20falamos "de qualquer jeito", sem regras definidas. Dois fatores =principais contribuem para essa convicção tão generalizada: primeiro, o fato de que falamos com uma facilidade muito =grande, de certo modo sem pensar (pelo menos, sem pensar na forma do que =vamos dizer), e estamos acostumados a associar conhecimento a uma =reflexão consciente, laboriosa e por vezes dolorosa. Segundo o ensino escolar Mas se o pronome estiver modificado de alguma maneira, como por =exemplo se estiver contraído com a preposição de (for mando a =palavra dele), ou se estiver em forma oblíqua (-o, -lo, -lhe), o acréscimo de uma oração adjetiva dá resultados =bem menos aceitáveis. Parece haver uma gradação: uma =oração adjetiva acrescentada a dele, dela é um pouco estranha; =se for acrescentada a um pronome oblíquo, ou a um possessivo, fica simplesmente horrível. O resultado é =o seguinte: (8) * Fui à casa dela, que não me recebeu. (9) * Fui procurá-la, que não me recebeu. (10) * Fui à sua casa, que não me recebeu. Esses julgamentos de aceitabilidade são bastante uniformes entre =os falantes. Mas não podem ter sido aprendidos na escola: esse =fenômeno nunca é mencionado nas gramáticas, e certamente a =maioria dos professores nem tem consciência dele. Trata-se de mais um aspecto do nosso conhecimento =implícito dos mecanismos da nossa língua; somos capazes de tomar =decisões e fazer julgamentos de aceitabilidade com segurança, =baseando-nos em um tipo de conhecimento que manejamos com facilidade quase incrível. Tomemos um último exemplo. Nas frases abaixo, há um sujeito =(em itálico) e um objeto direto (em negrito): (11) Eu vi Raimundinho na TV. (12) Nós vimos Marília na TV. (13) Eu nos vi na TV. Mas há uma restrição muito curiosa à co-ocorrência de objetos e sujeitos: nunca se pode usar uma frase na qual o =objeto direto exprima um subconjunto do conjunto expresso pelo sujeito. =Assim, sabemos que a palavra eu exprime um subconjunto do conjunto =expresso por nós (isto é, nós quer dizer eu + outros). Correspondentemente, não se pode fazer uma =frase na qual nós seja sujeito e eu (ou sua forma oblíqua) seja =objeto direto: (14) * Nós me vimos na TV. Isso se aplica igualmente a sujeitos e objetos não pronominais, =como se pode ver em: 1 Essa restrição foi observada por Paul Postal (Ou raising, =MIT Press, Cambridge, 1974). (15) * Meus irmãos viram meu irmão na TV. Essa frase só é aceitável se, se entender que o irmão =que foi visto na TV não pertence ao grupo dos irmãos que o viram. =Será inaceitável se, se entender que o irmão que apareceu na TV faz parte do conjunto dos que assistiram ao =programa. De onde tiramos esse conhecimento? Como se explica que tenhamos =intuições tão definidas acerca de frases que nunca encontramos =antes? Tudo provém do uso que fazemos a todo momento desse mecanismo maravilhosamente =complexo que temos em nossas mentes, e que manejamos com admirável =destreza! Esse mecanismo é o nosso conhecimento implícito da =língua, objeto principal da investigação dos lingüistas. =20 2. VER Ou NÃO VER. (verdades e ficções sobre a língua) =20 Os homens sempre tiveram um grande desejo de compreender o mundo =que habitam. Tentando satisfazer esse desejo, criaram a ciência, =assim como a religião e todo tipo de explicações mais ou menos =racionais para dar conta da multidão de fatos que os cercam. No entanto, esse desejo de compreender está =sempre em luta com uma estranha necessidade de influir diretamente =nesses mesmos fatos e em sua interpretação O homem sempre sonhou =encontrar fatos que=20fizessem sentido, harmonizando-se com suas idéias preconcebidas; e =com freqüência esse sonho se interpõe entre ele e os fatos, =levando-o a interpretar o mundo de uma maneira peculiar. Claro, a gente não tem acesso direto aos fatos do mundo - sempre =os vemos à luz de teorias ou expectativas prévias. Isso aparece, =por exemplo, na maneira como se entende às vezes a pergunta: - Quantos animais de cada espécie Moisés levou para a arca? A tendência é responder "dois" (ou "um casal"). Mas é =claro que a resposta correta não é essa. Temos de responder que =Moisés não tem nada a ver com a arca, pois esta foi construída =por Noé. Esse é um exemplo de como é fácil deixar de perceber coisas muito claras, só porque nos =baseamos o tempo todo em conhecimentos anteriores e, de certa forma, ="não gostamos" de ser surpreendidos. Um dos aspectos mais traiçoeiros dessa limitação damente =humana é a grande vontade que todos nós, lá no fundo, temos de =encontrar as coisas "certas" - a vontade de que os fatos venham a =confirmar brilhantemente nossas convicções confessas ou implícitas. Quando Galileu, utilizando pela primeira =vez uma luneta para examinar o céu, descobriu quatro dos satélites =de Júpiter, a opinião geral ficou contra ele. Argumentou-se que =só podia haver sete planetas, nem mais nem menos: afinal só há sete aberturas na cabeça; só =há sete dias na semana; e só há sete metais. Logo, os planetas =são apenas o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e =Saturno (a definição de "planeta" era diferente da de hoje, claro). Conclusão =inevitável: Galileu não tinha visto, não podia ter visto =satélite algum; era ilusão, ou talvez mentira dele. A história da ciência está cheia de casos como esse. Um =exemplo desenvolvido em detalhes está no fascinante livro de Stephen =Jay Gould publicado no Brasil com o título Vida maravilhosa. Nesse =livro, Gould relata um caso em que a interpretação de certos dados (no campo da paleontologia) foi falseada por =influência de expectativas prévias. Todas as áreas de investigação correm esse perigo; e a =gramática não é exceção. Voumostrar alguns exemplos em =que o desejo de encontrar confirmação para as crenças do =observador leva a uma descrição da língua seriamente falseada. São exemplos muito comuns, e creio que a =maioria dos leitores já teve contato com eles. Vamos começar com um caso bem simples, que tem a ver com a =relação entre a ortografia e a pronúncia: a primeira vogal da =palavra tomate, na pronúncia, é u. isso não é =característica da "pronúncia inculta", mas da fala de todas as pessoas, de qualquer classe =social ou nível de escolarização. Se você não acredita, =vá ao mercado ou ao sacolão e fique de tocaia junto a uma banca de =legumes: quantas pessoas perguntam o preço do "tumate", e quantas perguntam o do "tomate"? Você rapidamente se =convencerá de que a pronúncia normal é com u. No entanto, muita =gente nega isso. Alguns professores de português (que deveriam estar bem- informados a respeito) insistem comigo que "a =pronúncia É com o. Eles não podem ter chegado a essa conclusão observando os =fatos, pois estes não a sustentam. Foram levados a acreditar que o ="certo" é pronunciar como se escreve (sempre que possível); é =como se a escrita tivesse primazia sobre a pronúncia. Daí, passam a acreditar que aquilo que ouvem a todo momento =não existe. Não querem ouvir e, por conseguinte, não ouvem o u =de tomate. Querem mais um exemplo? Aqui vai: sabemos que é freqüente, =entre nós, fazer o plural marcando-o apenas no primeiro elemento do =sintagma, dizendo por exemplo os relógio. Essas construções, =quando não são simplesmente ignoradas, são dadas como da linguagem das "pessoas incultas", ou de "baixa =classe". Segundo essa opinião, não se trataria de um fato normal =do português brasileiro, mas de um "erro" cometido por aquelas =pessoas (coitadas) que não tiveram a sorte de uma educação for mal suficiente. No entanto, qualquer levantamento mostra o contrário: =construções do tipo de os relógio são amplamente utilizadas =pela totalidade da população, incluindo os "cultos" (está bem, =vamos excetuar alguns ranzinzas amigos do lhe e do lho). Duvidam? Pois gravem uma conversa entre interlocutores de =nível universitário, e depois vejam se pelo menos 50% dos =sintagmas no plural não são marcados apenas no primeiro elemento. Por que é que não conseguimos enxergar esse fenômeno =tão freqüente na nossa língua? Pela mesma razão, creio, que =impediu os astrônomos do início do século XVII de enxergarem os =satélites de Júpiter. Vamos pegar agora um exemplo um pouco mais complexo, mas =provavelmente do conhecimento de muitos leitores: a diferença entre ="verbos transitivos" e "verbos intransitivos". Neste caso, o que =interfere é a crença de que os fatos da língua estão consignados nas gramáticas e nos dicionários, de maneira =exaustiva e totalmente segundo volume da História geral =do Brasil, de Varnhagen (que Capistrano editou e anotou em parte), nos =mostra um homem de meia-idade, de cabelo e barba grisalhos e =expressão modesta. Em uma caricatura da época aparece decididamente desleixado quanto à aparência, mais ou =menos o protótipo do intelectual distraído e desligado das coisas =mundanas. No entanto, o olhar que nos encara da foto é o de uma criatura =inteligente e perspicaz. No que se referia a seus empreendimentos =intelectuais, não havia nada de desleixado nem de distraído em Capistrano. Seu renome profissional foi grande enquanto ele viveu, =e após sua morte seus admiradores fundaram uma Sociedade com o =objetivo de (como está no Estatuto) prestarem homenagem à sua memoria. Isso incluía, notadamente, a publicação de seus trabalhos =inéditos e de suas cartas, assim como a republicação de obras =esgotadas. A segunda edição de Rã-txa (a de 1941) saiu =justamente através dos esforços dessa Sociedade. A lista dos membros da Sociedade Capistrano de Abreu é um =verdadeiro catálogo das grandes figuras intelectuais do Brasil na =década de 1920 e mostra que, longe de ser um gênio obscuro, Capistrano chegou a obter amplo reconhecimento durante sua vida. Constam da =lista de membros: Afonso Arinos de Melo Franco, Afonso E. Taunay, =Afrânio Peixoto, Alceu Amoroso Lima, Cândido Rondon e por aí vai, até Washington =Luís, e mesmo (como correspondente) H. G. Wells. Gosto de imaginar Capistrano como um espírito inquieto, =interessado em muitos assuntos fora de sua especialidade. Certamente se =interessava por estudos indigenistas; em 1908, aco lheu em sua casa dois =índios da nação caxinauá, como auxiliares domésticos, com o intuito de estudar sua língua =e cultura. Os dois índios, Bô-rô e Tux-i- ni, lhe serviram de =informantes durante vários meses; posteriormente, Capistrano =colocou-os em empregos no Rio de Janeiro. A nação caxinauá habitava, e ainda habita, uma área na =bacia do rio javari, na fronteira do Acre com o Peru; hoje em dia, parte =dos caxinauás é peruana, e parte brasileira. Capistrano produziu, =após seu trabalho com os índios, o livro mencionado, ao qual deu o nome de Rã-toca hu-ni-ku-i, ="falar de gente verdadeira", que é o nome que os caxinauás dão =à sua língua. O livro se compõe de um breve estudo da estrutura da língua =(em 22 páginas), mais 490 páginas de textos, traduzidos =literalmente e às vezes acompanhados de comentários gramaticais. =Finalmente, há um vocabulário ("brasileiro-caxinauá" e "caxinauá brasileiro"). Nos textos, Capistrano incluiu não apenas frases soltas, como =exemplos da sintaxe da língua, mas também descrições, feitas =pelos dois índios, de vários aspectos da vida da aldeia ("vida da =aldeia", "alimentação", "festas" etc.); lendas e fábulas; e parte do conhecimento do =mundo, tal como visto por olhos caxinauás: "astronomia", "o fim do mundo e o novo mundo", "a dispersão". =Esses textos são um pouco difíceis de ler, pelo caráter muito literal da tradução; mas são fascinantes em virtude da =visão que proporcionam de um modo de ver o mundo muito diferente do nosso. Capistrano colheu os ecos de uma cultura desenvolvida em =completo isolamento da civilização européia, ecos esses que =hoje devem estar quase extintos sob o impacto da cultura moderna. Capistrano não tinha treinamento formal em lingüística =(ou, como se dizia então, "filologia"); ele mesmo se considerava "um =mal aproveitado dilettante". Mas é quase incrível o quanto esse =diletante conseguiu realizar; não é exagero afirmar que, em certos pontos, ele estava à frente da =maioria dos lingüistas profissionais de sua época (por vezes, é =bom considerar o quanto pode ser feito quando se acopla um cérebro de =primeira linha à ausência de formação específica). De posse apenas de sua intuição, Capistrano pôde incluir =em sua breve descrição gramatical traços que dificilmente se =encontrariam nas obras lingüísticas de 1914, mas que são hoje =largamente aceitos como conquistas da lingüística moderna. Por exemplo, ele parece ter descoberto, sozinho, o =princípio da alternância fonológica. Vejamos primeiro o que vem =a ser isso. Trata-se da noção de que diferentes sons de uma língua, =claramente distintos do ponto de vista de sua articulação, podem =ser identificados como uma só entidade namente dos falantes. Assim, o =a inicial de asa tem pronúncia diferente do a final da mesma palavra: o primeiro é bem mais =aberto do que o segundo. Mas os falantes do português "sentem" que os =dois aa são a repetição do mesmo "som". Diz-se então que =são dois sons diferentes, mas que estes são realizações do mesmo Essa observação está na base =de toda a análise fonológica atual, e existem procedimentos =bastante elaborados para depreender tais casos. Mas no início do =século a distinção entre sons e fonemas ainda não havia sido feita com clareza. Apesar =do trabalho pioneiro do polonês Baudouin de Courtenay, aliás, =praticamente desconhecido na época, a descrição dos sons de uma =língua se fazia em bases naturalísticas, isto é, reduzia-se ao esforço de descrever todos os sons =tais como eram realmente pronunciados, sem associá-los em =função de entidades psíquicas subjacentes. Como resultado, =identificavam-se centenas de sons diferentes em uma=20única língua, dando a errônea impressão de uma complexidade =infinita de pronúncia. Capistrano, nesse particular não seguiu a tendência de sua =época. Ao descrever os sons do caxinauá, deixou claro que as =oposições sonoras não são todas da mesma natureza, mas que, =em alguns casos, os sons parecem agrupar-se em entidades abstratas mais =abrangentes. Assim, ele observa que: h aspirado, r forte, v permutam-se: antes de a predomina r E...] h predomina antes de i e õ, e nem uma palavra começa por vi =ou võ; v predomina antes de ô ou u [ Confirmando essa intuição inteiramente correta, Capistrano =não separa as palavras começadas por h, r e v no vocabulário do =final do volume, colocando-as em seus respectivos lugares na ordem =alfabética. Em vez disso, agrupa as palavras começadas por h, r e v em um =só bloco, tal como se faria hoje (já que esses três sons não =se distinguem funcionalmente em caxinauá). Igualmente, percebe ele a alternância entre r "brando" (isto =é, como no português cara) e d inicial transforma-se geralmente em r brando no meio do =vocáblo. Que isso é efeito da posição intervocálica se confirma =pela seguinte observação: dô-rô pronunciado espaçadamente B. e T. [ dois informantes =indígenas] dizem dô-dô, isto é, r volta a ser d, como si o =vocábulo recomeçasse. Na "Nota explicativa", Capistrano menciona o efeito da =alternância d/r (mais a ausência da lateral l) na pronúncia =portuguesa de um dos informantes: - lodo pronunciava doro. Em uma observação marginal sobre o português, Capistrano =continuamostrando sua percepção do funcionamento da fonologia: Em nossa lingua fim, final ,findar E...] reproduzem o phenomeno da =desnasalisação antes de vogal, da renasalisação antes de =consoante. Aqui ele se refere ao processo fonológico que, de uma palavra =com i nasal (fim), deriva uma com i oral (final), ou com i nasal, se =este estiver em sílaba terminada por consoante nasal (findar). Essa =interpretação é idêntica à proposta por Matoso Câmara em uma tese de 1949, quase quatro =décadas depois do trabalho de Capistrano, e ainda aceita pela maior =parte dos fonologistas. Outro pormenor em que Capistrano estava à frente de seus =contemporâneos é na recusa em impor à língua que estudava as =categorias tradicionais, criadas em função da estrutura do grego e =do latim, e geralmente adaptadas, bem ou mal,=20à descrição das línguas européias modernas. O =lingüista típico de 1914 (e alguns de 1997) examinava uma =língua indígena procurando ver nela as classes de palavras =tradicionais: substantivos, adjetivos, preposições, verbos etc., sem criticar a possível inadequação desse =quadro à estrutura de uma língua tão diferente. Capistrano, ao =contrário, prefere comentar a dificuldade de encaixar as formas do =caxinauá nas classes usuais: As partes do discurso [ classes de palavras]mostram-se muito =instáveis; a cada passo se dão transgressões de uma para outra progressos do inglês em certas áreas, o português continua firme como o veículo de =todos os aspectos da cultura brasileira. A imensa maioria da =população (incluindo os universitários) é incapaz de se =exprimir, e mesmo de ler, em qualquer outra língua. Logo, como se pode ter dúvida sobre a posição do =português na comunidade brasileira? Mas notem que eu não perguntei qual era a língua de =civilização do Brasil. Perguntei que língua se fala no Brasil. =Explicando melhor: será que falamos a mesma língua que escrevemos =e lemos? Muita gente tem opinião sobre isso; mas para formar nossa =própria opinião vamos colher alguns dados. Digamos que estamos =usando um binóculo durante o jogo de futebol e um amigo também =queira dar uma olhada. Ele chega e diz: - Me empresta ele aí um minuto. É importante observar que essa é uma forma correta de falar =naquele local e naquele momento. E que qualquer pessoa poderia utilizar =uma frase como essa (não apenas as chamadas "pessoas incultas"). A =frase acima faz parte do repertório lingüístico de todos os brasileiros; em uma palavra, é assim que nós =falamos. Podemos escrever diferente (por exemplo, empreste-mo um =minuto), mas falamos daquele jeito. Imaginemos outra situação: uma senhora está na confeitaria =encomendando salgadinhos; diz ela: - Você pode fazer eles pra sábado? A festa vai ser domingo, =mas domingo eu não posso vim aqui, porque o bairro que eu moro é =muito longe, e meu marido vai no jogo e vai levar o carro. Aí eu =busco eles no sábado, se você tiver de acordo. Imagine a pessoa falando, e verá que essa fala é =perfeitamente natural. Mas escrita ela choca um pouco, porque está =cheia de traços que não costumamos encontrar em textos escritos: a preposição pra (em vez de para); o infinitivo vim (em vez de vir); a construção o bairro que eu moro (em vez de o bairro onde/em que eu moro); a regência vai no jogo (em vez de vai ao jogo); as expressões fazer eles (em vez de fazê-los) e busco eles =(em vez de busco-os ou mesmo, Deus nos livre!, busca-los-ei). o verbo tiver (em vez de estiver). Agora, uns exemplos tirados da morfologia. A estrutura do verbo na =língua que falamos é bem diferente da que se encontra na língua =que escrevemos. Assim, há formas que nunca aparecem na fala, como: o mais - que-perfeito (fizera, gostáramos ,fora); o futuro do =presente (farei, gostaremos, irá). Na língua falada em Minas, também raramente ocorre o presente =do subjuntivo (façamos, gostem, vá); essas formas são, =entretanto, usuais no Norte e Nordeste do Brasil. O verbo falado difere do verbo escrito em outros detalhes. Assim, =escreve-se (ou, mais exatamente, as gramáticas mandam que se escreva) =quando eu te vir. Mas na fala essa expressão é difícil até de entender; falamos quando eu te ver. As gramáticas afirmam que no =presente o verbo vir tem a forma vimos: nós vimos aqui toda semana. =Na fala, claro, só se usa viemos, seja presente, seja passado. Na fala, o pronome nós é cada vez mais substituído por =agente; e, paralelamente, as formas de primeira pessoa do plural =(fizemos, gostamos, íamos) vão caindo em desuso. Há pessoas que =não as usam praticamente nunca. Q mais? Na fala, a marca de plural não precisa aparecer em todos =os elementos do sintagma. Assim, formas como esses menino levado (ou =mesmo, pelo menos em Minas, ques menino levado!) existem na fala de todas as pessoas. =Na escrita, naturalmente, a marca de plural é sempre obrigatória =em todos os ele mentos flexionáveis: esses meninos levados. Mais um exemplo: o imperativo se forma de maneira distinta na fala =e na escrita. Falando, dizemos: vem cá mas escrevemos: venha cá =(no Nordeste, esta forma é também a falada). Outro: na fala, =colocamos com toda liberdade o pronome oblíquo no início da frase: me machuquei na quina da mesa; escrevendo, tem de ser: machuquei- =me na quina da mesa. Mais outro: falando, nem sempre usamos o artigo =depois de todos(as): todas meninas têm relógio; na escrita, deve =ser: todas as meninas. Acho que não é necessário continuar. As diferenças =são muitas, como todos sabemos. Elas constituem uma das dificuldades =principais que enfrentamos na escola, ao tentar produzir textos =escritos. Aliás, por que temos tanta dificuldade em escrever textos em português? =Não é a nossa língua materna? A resposta é simples, mas pode surpreender alguns: não, o =português (que aparece nos textos escritos) não é a nossa =língua materna. A língua que aprendemos com nossos pais, irmãos =e avós é a mesma que falamos, mas não é a que escrevemos. As diferenças são bastante profundas, a ponto =de, em certos casos, impedir a comunicação (que criança de cinco anos entende =empreste-lho?). Em outras palavras, há duas línguas no Brasil: uma que se =escreve (e que recebe o nome de "português"); e outra que se fala (e =que é tão desprezada que nem tem nome). E é esta última que =é a língua materna dos brasileiros; a outra (o "português") tem de ser =aprendida na escola, e a maior parte da população nunca chega a =dominá-la adequadamente. Vamos chamar a língua falada no Brasil de vernáculo =brasileiro (ou, para abreviar, simplesmente vernáculo). Assim, =diremos que no Brasil se escreve em português, uma língua que =também funciona como língua de civilização em Portugal e em alguns países da África. Mas a língua que se =fala no Brasil é o vernáculo brasileiro, que não se usa nem em =Portugal nem na África. O português e o vernáculo são, é claro, línguas =muito parecidas. Mas não são em absoluto idênticas. Ninguém =nunca tentou fazer uma avaliação abrangente de suas diferenças; =mas eu suspeito que são tão diferentes quanto o português e o espanhol, ou quanto o =dinamarquês e o norueguês. Isto é, poderiam ser consideradas =línguas distintas, se ambas fossem línguas de civilização e =oficialmente reconhecidas. Mas sendo as coisas como são, tendemos a pensar que o =vernáculo é simplesmente uma forma errada de falar português. =Só que, para que o vernáculo fosse "errado", teria de existir =também uma forma "certa" de falar; mas no Brasil não se fala, nem se pode falar português. Imaginem o seu companheiro de =estádio de futebol dizendo: - Empreste-mo um minuto. Ou então uma mocinha dizendo para a melhor amiga: - Se eu a vir amanhã, devolver-lhe-ei estas velhas fitas de =vídeo. É evidente que essas pessoas ficariam, no mínimo, com =fama de pedantes. As duas línguas do Brasil têm cada uma seu domínio =próprio e, na prática, não interferem uma na outra. O =vernáculo se usa em geral na fala informal e em certos textos =escritos, como em peças de teatro, onde o realismo é importante; já o português é usado na escrita formal, e só =se fala mesmo em situações engravatadas como discursos de =formatura ou de posse em cargos públicos. Assim, o "certo" (isto é, o aceito pelas convenções =sociais) é escrever português e falar vernáculo. Não pode =haver troca: é "errado" escrever vernáculo e é também ="errado" falar português. Não sei se gosto dessa situação; mas é um fato arraigado em nossa =cultura e temos de conviver com ele. Agora, uma observação: o vernáculo é a língua =materna de mais de cento e cinqüenta milhões de pessoas, que o =utilizam constantemente e não conhecem outra língua. Mas não se =escreve a não ser em ocasiões particulares, não aparece na grande imprensa e não tem grande tradição =literária; além disso, não é reconhecido como língua =oficial. Isso faz do vernáculo uma língua ágrafa, como as que =examinamos na primeira parte deste ensaio. Não só isso, mas com toda probabilidade a maior língua ágrafa do =mundo. Já houve tentativas, ou pelo menos sugestões, de que se =passasse a escrever em vernáculo no Brasil. Mário de Andrade =passou vários anos escrevendo uma Gramatiquinha da fala brasileira, que nunca gramática seria um =pouco difícil de manusear. E também é pouco provável que as =pessoas aprendam uma língua desse jeito, decorando listas imensas várias vezes. O que as =pessoas fazem é reconhecer uma palavra como pertencente a determinada =classe, e aí atribuir à classe as propriedades relevantes. Assim, um falante aprende a reconhecer um verbo, e é só os =verbos que ele faz variar em pessoa e em tempo. Isso não é coisa =que se aprende na escola; faz parte do nosso conhecimento gramatical =implícito (ver o ensaio "Nossa sabedoria gramatical oculta"). Nenhum falante, =mesmo analfabeto, tenta conjugar a palavra computador, ou a palavra sempre, ou a =palavra e. Conjuga palavras como vender, ver e viver; andar, amar e =amarrar; partir, ir e punir. De um jeito ou de outro, os falantes =reconhecem todas essas palavras como verbos e sabem que podem dizer eu vendo, ele vende, eu vendi, ele vendeu. O caso dos verbos é bastante favorável, porque eles são =muito diferentes das outras palavras da língua. Isto é, a classe =dos verbos é muito fácil de definir: são as únicas palavras =que variam em pessoa, as únicas que fazem o plural com sufixos especiais como -mos, as únicas =que têm tempos. São como as vacas e as lagartixas, que têm =várias características que as colocam claramente em determinado =lugar na classificação geral. As coisas se tornam muito diferentes quando tratamos dos chamados ="adjetivos" e "substantivos". Essas duas classes, embora =tradicionalmente separadas, são extremamente difíceis de =distinguir. Na verdade, depois de vários anos estudando o problema, acredito que são impossíveis de =distingüi pelo menos em duas classes como fazem as gramáticas =usuais. O que temos aí é ou um grande número de classes ou, mais provavelmente, uma grande classe composta de =membros cujas propriedades são muito variadas. é melhor começar a dar exemplos, para ilustrar o que estou =querendo dizer. Para tratar de adjetivos e substantivos como classes, a primeira =coisa a fazer é definir essas classes. O que é que faz de uma =palavra um adjetivo ou um substantivo? Não podemos dar simplesmente a =lista dos adjetivos=20e a dos substantivos, porque, além de ser uma maneira anti =econômica de fazer as coisas, uma lista pode ser =arbitrária,juntando alhos e bugalhos sob o mesmo rótulo. =Precisamos de definições, pois são a garantia de que estamos falando de classes que realmente funcionam =dentro da língua. Tradicionalmente, diz-se que os substantivos são "nomes de =coisas", e os adjetivos expressam "qualidades". Ignorando por ora a =vaguidão dessas definições (já sofremos bastante com elas no =primeiro grau), vamos fazer de conta=20que sabemos o que são nomes de coisas e o que são qualidades; e =vamos tentar aplicar essas definições a algumas palavras. Se as palavras forem João e paternal, a aplicação é =razoavelmente fácil. João é nome de uma coisa (uma pessoa) e =paternal exprime apenas uma qualidade; logo,João é substantivo e =paternal é adjetivo. Mas como classificar maternal? Essa palavra parece, à primeira =vista, ser idêntica a paternal com a única diferença de que se =refere à mãe, não ao pai. Assim, dizemos atitudes maternais do =mesmo jeito que dizemos atitudes paternais. Mas na verdade há uma =diferença: maternal (mas não paternal) é também o nome de =uma coisa, ou seja, designa um tipo de escola infantil: meu menino ainda =está no maternal. E agora? Maternal é adjetivo, porque expressa uma qualidade; e =é substantivo, porque é o nome de uma coisa. Ou será um caso, =com certeza excepcionalíssimo, de palavra que está no limi te das =duas classes e tem as propriedades de ambas? Nem isso, porque o caso de maternal não é raro nem =excepcional. Há milhares de palavras que se comportam de maneira =semelhante. Basta ver os exemplos abaixo: (1) a. Uma palavra amiga (qualidade) b. Um amigo fiel (nome de =coisa) (2) a. Uma menina magrela (qualidade) b. Essa magrela (nome de =coisa) (3) a. Um homem trabalhador (qualidade) b. Os trabalhadores (nome =de coisa) (4) a. O carro verde (qualidade) b. O verde está na moda (nome de coisa) etc., etc., etc. O leitor poderá facilmente aumentar a lista. 43 Agora dá para ver o problema com mais clareza: se aceitarmos as =definições tradicionais, dadas anteriormente, teremos pelo menos =três classes, e não apenas duas: há as palavras como João, =xícara e alto-falante, que só podem ser nomes de coisas; depois, há as palavras como paternal, =genial e triangular, que só podem expressar qualidades; e, =finalmente, há as palavras como maternal, amigo, magrelo, trabalhador =verde, que podem ser as duas coisas. E o pior é que estas últimas são as mais numerosas, O mínimo que podemos =concluir é que a distinção entre substantivos e adjetivos, tal =como formulada nas gramáticas comuns, é inadequada. É como se as espécies de animais como o ornitorrinco fossem =mais numerosas do que os casos claros de mamíferos e répteis: teríamos de começar a desconfiar das próprias noções =de "réptil" e de "mamífero", pois não seriam suficientemente =úteis para nos permitir reconhecer a classe a que pertence um animal. =Parece que não é isso o que acontece na zoologia; mas na gramática a situação, =como acabamos de ver, é mais incômoda. Há muitas maneiras de classificar as palavras, e cada uma dessas =maneiras atende a uma necessidade específica. No exemplo anterior, =vimos uma classificação pelo significado; mas também podemos =necessitar de uma classificação pela forma, isso quando estivermos tratando da descrição dessa =mesma forma. Assim, podemos definir o substantivo como a palavra que: =(a) pode aparecer logo depois de um artigo, formando um sintagma, como =em a xícara (mas não o paternal); e (b) aceita aumentativo e diminutivo, como em xicrinha. =Essa definição pode ter seus méritos, mas os resultados de sua =aplicação discordam, mais uma vez, das classes tradicionais, Assim, verde, =tradicionalmente um adjetivo, pode ocorrer depois de artigo (o verde =está na moda) e aceita diminutivo,=20 mesmo quando exprime qualidade ( um pé de alface verdinho). =Também podemos definir o substantivo como a palavra que faz plural em =-s; isso o distingue eficazmente do verbo (cujo plural se faz de outra =maneira) e das palavras que não têm plural (preposições, advérbios etc.). Porém, a classe dos =substantivos assim definida vai incluir não só os substantivos =tradicionais, mas também os adjetivos e os pronomes: xícaras, =paternais, eles. A conclusão é que a classificação tradicional, no que =se refere aos substantivos e aos adjetivos (e ainda aos pronomes), =não tem salvação. Não se conseguiu, até hoje, uma =definição que separasse com clareza essas três classes. Eu tendo a acreditar que são uma grande classe, dentro da =qual se distinguem muitos tipos de comportamento gramatical. Acredito =que as diferenças de comportamento dentro dessa grande classe (que =podemos chamar a classe dos nominais) provêm principalmente de diferenças de significado. No momento em que =uma palavra começa a ser usada com um novo significado (o que =acontece com freqüência), ela precisa mudar seu comportamento =gramatical de acordo com sua nova função. isso se harmoniza com a flexibilidade que se observa no uso dos =nominais. Por exemplo, a palavra cabeça era, até há pouco, das =que só se usavam como nomes de coisas. Um belo dia, alguém teve a =idéia de usá-la para designar uma pessoa ou coisa admirável de certo ponto de =vista; a partir daí, a palavra cabeça não só passou a ter o =significado de "qualidade", mas também passou a ser usada em =estruturas tipicamente "adjetivais", como: (5) Ontem fui ver um filme muito cabeça. Essa flexibilidade, que todos conhecemos, segue estritamente a =necessidade de comunicação: no momento em que isso é =necessário, um "substantivo" vira "adjetivo", ou vice-versa. O que =aconteceu com cabeça também aconteceu com gato (ela tem um irmão gato) e ultimamente com prego (mas que sujeito prego.) . O =processo oposto se deu com maternal, que há alguns anos só podia A resposta =é: sobra aquela disciplina da qual todos nos lembramos com arrepios de horror. Vamos examinar cada uma dessas deficiências (e aqui sugiro que o =leitor confronte o que digo com suas lembranças de sala de aula). Em primeiro lugar: os objetivos da disciplina estão mal =colocados. Muitos professores dizem (e acreditam) que o estudo da =gramática é um dos instrumentos que levarão o aluno a ler e =escrever melhor - ou, para ser mais exato, o levarão a um domínio adequado da =linguagem padrão escrita. Esse motivo é alegado constantemente, =quando se quer defender a presença da gramática no currículo. Ora, não existe um grão de evidência em favor disso; toda =a evidência disponível é em contrário. Vamos pensar um =momento: se é preciso saber gramática para escrever bem, será =de esperar que as pessoas que escrevem bem saibam gramática - ou, 'pelo menos, que as =pessoas que sabem gramática escrevam bem. Será que isso acontece? Meu autor brasileiro favorito é =Luís Fernando Veríssimo; na minha opinião (e na de alguns =outros), ninguém escreve melhor do que ele hoje em dia, no Brasil. =Mas o Veríssimo não sabe praticamente nada de gramática; por ter sido mau aluno, por ter abandonado a escola, por =não ter feito letras? Não. Não sabe gramática pela mesma =razão que nós, que fomos bons alunos, fizemos nossos cursos até =o fim e temos diploma de letras, não a sabemos: porque ninguém sabe gramática. E isso não impede =pelo menos alguns de nós de escrever toleravelmente bem ou mesmo =(como o Veríssimo) muito bem. Façam um levantamento entre seus amigos: vocês descobrirão =que alguns deles escrevem corretamente, outros até bem. Mas nenhum =deles lhes dirá que sabe gramática; isto é, que tem =segurança na análise de uma oração, ou na classificação de uma palavra como advérbio ou =preposição. A conclusão necessária é que as pessoas que =escrevem bem nem sempre (na verdade, quase nunca) sabem gramática. Por outro lado, se lermos uma gramática qualquer (inclusive, =provavelmente, a minha), nos convenceremos rapidamente de que saber =gramática não é garantia de escrever bem. Quantas gramáticas =são vazadas em estilo confuso e deselegante? Isso não deveria =acontecer, se a gramática é a panacéia que dizem ser. Voltemos ao ponto principal: os objetivos dessa disciplina estão =mal colocados. Quando justificamos o ensino de gramática dizendo que =é para que os alunos venham a escrever (ou ler, ou falar) melhor, =estamos prometendo uma mercadoria que não podemos entregar. Os alunos percebem isso com bastante clareza, embora =talvez não o possam explicitar; e esse é um dos fatores do =descrédito da disciplina entre eles. Em segundo lugar: a metodologia é inadequada. Aqui, em vez de =metodologia, eu deveria falar de "atitude diante da matéria". E, para =compreender bem esse problema, vamos comparar o ensino de gramática =com o de outras disciplinas. Pensemos no caso de um professor de história que diga a seus =alunos que, no século XVI, a região onde vivemos era ocupada por =povos indígenas. Nesse momento, um aluno pode perguntar: "Professor, =como é que o senhor sabe disso?". E o professor deve ter meios de responder; =ele pode alegar que há documentos da época que atestam a =presença dos índios, escavações arqueológicas que revelam =artefatos indígenas e restos de habitações etc. O importante a observar é: o aluno tem o direito de fazer =aquela pergunta, e o professor tem o dever de responder, ou pelo menos =tentar responder. Afinal de contas, em um curso de história estuda-se o que realmente aconteceu no passado, e saber história =é também saber como é que se sabe hoje o que aconteceu há =trezentos ou quatrocentos anos atrás. Isso vale, em termos =básicos, para as outras disciplinas, seja a física, seja a geografia. Mas, em gramática, as coisas costumam ser diferentes. O =professor diz que o futuro do subjuntivo do verbo ver é quando eu vir =etc.: assim, "devemos" (ou "deveríamos") dizer quando eu te vir =amanhã... O aluno sabe muito bem que ninguém fala assim; todos dizemos quando eu te vei Em outras palavras, o que o =professor está ensinando não bate com o que se observa na =realidade. Se um aluno perguntar por que o professor está dizendo que =a forma é quando eu vir, a resposta (se houver resposta) será que é assim =que é o certo. Note-se: não se deu nenhum motivo racional, deu-se =uma ordem: faça assim, senão vai ser pior para você. Será que um professor de história poderia dizer a um aluno =que havia índios no Brasil porque assim é que é o certo? =Será que, na aula de física, se pode dizer que os corpos se =dilatam com o calor porque é assim que está no livro? Essa situação é que eu tinha emmente quando disse que a =atitude diante da matéria é inadequada, O professor e o aluno de =geografia entendem a matéria como o estudo de um aspecto da =organização do universo; no caso, a estrutura do nosso planeta, o modo pelo qual =está ocupado pelos seres vivos, sua divisão em unidades =políticas etc. Mas o estudo de gramática não é, na cabeça =deles, o estudo de um aspecto do universo: é apenas uma série de ordens a serem obedecidas, porque é assim que =é o certo. Será de espantar que pouca gente se interesse? E, além do mais, a matéria carece de organização =lógica. Mas note- se: não estou dizendo que a gramática não =tem lógica. Falo da matéria que se ensina nas escolas com o nome =de "gramática"; não da gramática enquanto disciplina racional. Essa é uma acusação séria, e evidentemente é preciso =justificá-la amplamente. Aqui vou dar só um exemplo, que deve ser =suficiente para deixar o leitor com a pulga atrás da orelha. Quem =quiser maiores detalhes poderá dar uma olhada, por exemplo, na obra de Amini B. Hauy, Da necessidade =de uma gramática padrão da língua portuguesa (Ática, 1983), =ou no meu livrinho Para uma nova gramática do português (Atica, =1985). Encontramos em uma das gramáticas portuguesas mais conhecidas, a =de Celso Cunha e Lindley Cintra', a seguinte definição de sujeito: Estou tomando a obra de Cunha e Cintra como exemplo; mas qualquer =das gramáticas atualmente utilizadas nas escolas apresenta os mesmos =defeitos. Os autores de gramáticas são antes vítimas de uma =tradição do que culpados dela. Sujeito é o ser sobre o qual se faz uma declaração. (p. =119) Muito bem, isso nos diz com certa clareza o que é um sujeito. =Mas a própria gramática não respeita a definição. Em =outras passagens, os autores chamam de "sujeito" outra coisa, que não é aquilo que foi definido com esse nome. Assim, na página 125, dizem: Algumas vezes o verbo não se refere a uma pessoa determinada, ou =por se desconhecer quem executa a ação, ou por não haver =interesse no seu conhecimento. Dizemos, então, que o sujeito é =indeterminado. Mas o que tem a ver o sujeito com quem pratica a ação? O =sujeito não é o ser sobre o qual se faz uma declaração? =Deveríamos ter sujeito indeterminado quando não se sabe, ou não =se quer dizer, sobre quem se faz a declaração. Mas aqui o autor simplesmente pulou para outra concepção de =sujeito, sem nem sequer avisar: sujeito seria o elemento que pratica a =ação. Na página 122, encontramos a frase: Quem disse isso? e o pronome quem vem marcado como sujeito. Mas qual é a =declaração que se faz sobre quem? Aliás, essa frase, que é =uma pergunta, nem sequer contém uma declaração. Logo, segundo a =definição dada, não deveria ter sujeito, pois nela não se faz declaração sobre =coisa alguma. Novamente, o autor desrespeita a definição que ele =mesmo deu. Vamos à página 126; ali se encontra a frase: Na sala havia ainda três quadros do pintor. Essa frase é dada como sem sujeito. Não há dúvida de =que essa frase contém uma declaração; mas será uma =declaração sobre nada (já que não há sujeito)? Será =possível fazer uma declaração sobre nada? Para mim, pelo menos, essa frase faz uma =declaração sobre a sala e também sobre os três quadros. Mas, =se não tem sujeito, Será que há outros termos da oração =que são também aqueles "sobre os quais se faz uma declaração"? A esta altura, o estudante que pretende, com toda seriedade, =utilizar a gramática para aprender alguma coisa sobre a estrutura da =língua já deve estar pelos cabelos. Afinal de contas, o que é =realmente o assim por diante. Uma vez isso arranjado, as duas pessoas =se entenderão. Para que as pessoas se entendam, é necessário - =e suficiente - que falem a mesma língua. É isso mesmo? Veremos que não. Na verdade, para que se dê =a compreensão, mesmo em nível bastante elementar é =necessário que as pessoas tenham muito mais em comum que simplesmente uma língua. Precisam ter em comum um grande número de =informações, precisam pertencer a meios culturais semelhantes, =precisam mesmo ter até certo ponto, crenças comuns. Sem isso, a =língua simplesmente deixa de funcionar enquanto instrumento de comunicação. Na verdade, a =comunicação lingüística é um processo bastante =precário; depende de tantos fatores que falham com muita =freqüência, para desânimo de muitos que ficam gemendo Por que é que ele não me =entendeu? O problema é que o que a língua exprime é apenas uma parte =do que se quer transmitir. Geralmente, se pensa no processo de =comunicação como uma rua de mão única: a informação passa do falante para o ouvinte (ou do autor para o leitor). Se fosse =assim, a estrutura lingüística teria de ser suficiente para =veicular a mensagem, porque, afinal de contas, a única coisa que o =emissor realmente produz é um conjunto de sons (ou de riscos no papel), organizados de acordo com =as regras da língua. Mesmo isso, como vimos, depende de alguma coisa =por parte do receptor a saber, o conhecimento das palavras e das regras =da língua; mas poderia ser só isso, e as coisas seriam muito mais simples - e, também, talvez os =seres humanos se entendessem melhor. Nesse caso, uma frase como: Você sabe onde fica a biblioteca? seria apenas uma pergunta e deveria ser entendida como tal. O =ouvinte poderia responder simplesmente "Sei", e o diálogo estaria =pronto. O problema é que essa frase não é necessariamente uma =pergunta. Ela é uma pergunta em determinadas circunstâncias, mas =em outras pode ser outra coisa. Suponhamos que estou pedindo a alguém =que devolva um livro para mim. Aí, pergunto a ele (ou ela): Você sabe onde fica a biblioteca? Nesse =caso, a minha frase será entendida como pergunta, e meu interlocutor =responderá simplesmente "Sei". Mas digamos que eu estou no corredor com cara de perdido, chego =para alguém que vai passando e digo: Você sabe onde fica a =biblioteca? Seria muito estranho (e um pouco desagradável) se esse =indivíduo me respondesse "Sei" e seguisse o seu caminho. Acontece que, nesse contexto, a =minha frase não é, em absoluto, uma pergunta; é antes um pedido =de informação, e equivale a Por favor me diga onde fica a =biblioteca. Como se vê, a mudança de contexto altera de maneira fundamental o significado de uma frase. =Tanto é assim que, se apresentarmos essa frase a alguém, sem =informação alguma sobre o contexto em que foi proferida, e perguntarmos se se =trata de uma pergunta ou de um pedido de informação, a pessoa =não terá condições de responder. Em conclusão, para entender uma frase simples como a que =acabamos de analisar, não basta saber português: é preciso =ainda ter certas informações sobre o contexto em que a frase foi =dita. O significado de uma frase não é simples função de seus elementos constitutivos, mas depende ainda de =informação extralingüística. Ou ainda (e aqui me oponho =às crenças de boa parte dos meus colegas lingüistas), uma frase =fora de contexto não tem, a rigor, significado. Vamos ver outro exemplo: seja o sintagma as gravatas de Mário =Quintana. Que significa isso? E, em especial, que tipo de relação =exprime a preposição de? Evidentemente, de exprime "posse", e o sintagma equivale a as =gravatas que pertencem a Mário Quintana. Pode parecer, então, que =computamos o significado do sintagma simplesmente juntando o significado =das palavras: as gravatas + de + Mário Quintana. Mas ainda aqui isso é só a primeira impressão. Digamos que =o sintagma fosse as gravatas de Pierre Cardin; agora, para alguém que =sabe quem é Pierre Cardin, a relação expressa pela =preposição de já não precisa ser de Posse Na verdade, é mais provável que se entenda =como "autoria", isto é, as gravatas criadas por Pierre Cardin. Ora, a preposição é a mesma nos dois casos. De onde vem =essa diferença de significado? Simplesmente do que sabemos sobre =Mário Quintana (um poeta) e sobre Pierre Cardin (um estilista de =moda). Se dissermos os poemas de Mário Quintana, a preposição já não exprimirá posse, mas =autoria - porque,já que Mário Quintana é um poeta é =plausível que se fale dos poemas de sua autoria; além do mais em =geral não se pensa em poemas como tendo possuidor ao Contrário das gravatas, =que têm tanto autor quanto possuidor. Se a situação é essa, não faz sentido perguntar se o =significado da preposição de é posse ou autoria. Será posse =ou autoria segundo o que soubermos dos diversos objetos ou pessoas =mencionadas: se se trata de um objeto possuível, como uma gravata, ou não possuível, como um poema; e se se =trata de um poeta ou de um costureiro. Para explorar mais um pouco o significado da preposição de, =vejamos os sintagmas: um copo de vinho um copo de vidro Por que é que entendemos de vinho como o conteúdo do copo e =de vidro como o material de que ele é feito? Por que não o =contrário? A resposta é óbvia: porque sabemos que é comum encher- se =um copo de vinhos e não de vidro; e sabemos que os copos, muitas vezes, são feitos de vidro, e nunca de vinho. Na verdade, =a organização lingüística dos sintagmas não nos dá =nenhuma pista a esse respeito; é nosso conhecimento do mundo que =resolve a questão. O mesmo acontece com a diferença entre roupa de Maria (dona da =roupa), roupa de linho (material de que é feita a roupa) e roupa de =palhaço (tipo de roupa): só não entendemos, por exemplo, de =Maria como o material de que é feita a roupa porque não existe nenhum tipo de pano chamado Maria. Mas isso mostra um fato importante sobre o funcionamento da =linguagem: a comunicação lingüística precisa apoiar-se, a =todo instante, no conhecimento de uma infinidade de coisas não =lingüísticas, informações gerais sobre o mundo - coisas como "Pierre Cardin é um estilista =de moda", "vidro é um material usado para fazer copos", "palhaço =é um artista que se veste de uma maneira especial para fazer =graça", e assim por diante. Outra coisa que é essencial para a compreensão é saber que =tipo de texto estamos lendo ou ouvindo. Consideremos o significado da =palavra análise: se quisermos captá-lo de antemão, teremos dificuldades, porque essa palavra tem significados muito =diferentes segundo o tipo de texto em que está inserida. Assim, para =um gramático, análise quer dizer a explicitação da estrutura =de um período; para um psicólogo,=20é alguma coisa que se faz deitado em um divã; para um químico, =uma atividade realizada no laboratório; e assim por diante. Ou seja, =só poderemos compreender essa palavra se soubermos de que se está =falando - a informação puramente lingüística não é suficiente. Na falta de =informação relevante, a palavra é incompreensível; se uma =pessoa diz Estou aprendendo afazer análise, e não soubermos em que =faculdade ela estuda, não saberemos o que=20é que ela está aprendendo. O que acontece com análise não é excepcional. Convido o =leitor a considerar as condições de compreensão de palavras =como tela (falando-se de pintura ou de computadores); subordinada =(falando-se de análise sintática ou de administração);piso (falando-se de salários ou de construção de =casas); e mesmo língua (falando-se de lingüística, de anatomia =da boca, da fabricação de sapatos etc.). Raro é encontrar uma palavra que realmente signifique sempre a mesma coisa - acho que =isso só acontece com termos técnicos utilizados apenas em uma =disciplina, como fonema. Como se vê, mesmo a compreensão de uma simples palavra =depende crucialmente de informação extralingüística: temos =de saber em que tipo de texto ela está inserida, quem é que a =usou, e mesmo se a palavra seguinte é o nome de um poeta ou de um costureiro. Isso mostra que a =compreensão das frases e das palavras não é uma tarefa =especificamente lingüística - é uma tarefa em que se empenha todo o nosso conhecimento. Nos exemplos =vistos anteriormente,mostrei como esse processo se aplica à =compreensão de frases, sintagmas e simples palavras. Vamos ver agora =como a coisa funciona na compreensão de unidades maiores, isto é, textos. Vamos começar com um pequeno texto como o seguinte: Mamãe comprou um frango; ela vai dar um churrasco amanhã. Isso é um texto (ou seja, uma pequena história) porque tem um =sentido unificado. Por exemplo, qualquer pessoa consegue ver a =ligação entre o fato de mamãe comprar o frango e o fato de ela =estar planejando um churrasco. O texto é, portanto, fácil de entender. Mas digamos que o texto fosse: Mamãe comprou um pastor alemão; ela vai dar um churrasco =amanhã. O que fizemos foi apenas substituir o nome de um animal (frango) =pelo de outro animal (pastor alemão). Mas com isso imediatamente o =texto ficou difícil de compreender. linguisticamente não há =dificuldade alguma: todas as palavras são conhecidas, as frases são simples e claras etc. Mas o texto não =faz sentido (pelo menos não à primeira vista). Q ligação =existe entre comprar um cachorro e planejar um churrasco? Vamos analisar a dificuldade. Entendemos facilmente o primeiro =texto porque sabemos, do nosso conhecimento do mundo, que o frango é =um animal comestível e que quando alguém com pra frangos é quase sempre para comer. Logo, comprar um frango e dar um churrasco =são duas atividades que se completam de maneira bastante natural: =mamãe comprou o frango para assá-lo no espeto e comê-lo durante =o churrasco. Por outro lado, entre nós não é costume comer cachorros =(nem convidar cachorros para um churrasco). Portanto, fica difícil =ver a conexão entre a compra do pastor alemão e o churrasco. Aqui, o nosso conhecimento do mundo não nos ajuda; conseqüentemente =o texto é difícil, dá a impressão de estar mal construído ou incompleto. Note-se como o problema não está ligado ao nosso conhecimento =da língua portuguesa, nem à nossa habilidade de construir frases e =textos. Está na ausência de certos conhecimentos sobre o mundo em geral. Se esse conhecimento estivesse =presente, talvez o segundo texto fosse fácil de compreender. Vamos tentar. Digamos que eu informe os leitores de que, da =última vez que mamãe fez churrasco, sobrou tanta carne que ela =teve de jogar uma parte fora. Aí eu digo: Mamãe comprou um pastor alemão; ela vai dar um churrasco =amanhã. Imediatamente, se abre um caminho para a compreensão do texto: =ela comprou o cachorro para não desperdiçar a carne que sobrar. =Essa compreensão se tornou possível em virtude da informação extra que eu forneci, mais o conhecimento que temos de que os =cachorros são carnívoros (se ela tivesse comprado um canário, a =informação dada não ajudaria em nada e o texto continuaria =misterioso). Na minha opinião, o mais interessante nesse exemplo é que ele =evidencia como o leitor precisa trabalhar para entender o texto. Não =basta deixar passar o texto pelo sistema lingüístico português, =que o espremeria para retirar o suco (que=20é o significado). O receptor tem de colocar em jogo seu conhecimento =do mundo, localizar a parte desse conhecimento que é relevante para a =compreensão do texto em questão e construir as "pontes" de sentido que amarram o texto, fazendo dele =uma unidade. Por isso se diz, corretamente, que o receptor produz o =sentido (não =pesquisas que valem como romances de mistério de primeira classe. Neste ensaio, vou relatar algumas breves =passagens de uma dessas histórias de mistério, que começou em =fins do século XVIII e, de certa forma, continua ainda hoje. =Selecionarei apenas três momentos importantes, associados aos nomes de =20 1 Este ensaio foi publicado originalmente em Ciéncia Hoje =(1995). =20 William Jones, Jakob Grimm e Karl Verner (em ordem cronológica). =Devo dizer que essa história tem material para a confecção de =vários volumes; estas linhas podem servir de aperitivo. A história de mistério a que me refiro é a do =descobrimento de certas relações entre as línguas do mundo. =Começando com um trabalho bastante prosaico de comparação entre =línguas, nossos heróis acabaram descobrindo algumas características importantes da =evolução delas; e, como brinde, descobriram também alguns fatos =até então insuspeitados sobre a história e a pré-história =da humanidade. - Vamos começar nos finais do século XVIII, na Índia, na =época uma possessão britânica. William Jones era um alto =funcionário da Companhia das Índias Orientais, servindo em Bengala =(hoje Bangladesh). Jones, embora jurista de profissão, interessava-se pelas linguas e culturas do país onde vivia; =estudou o sânscrito, uma língua antiga que era usada pelos hindus, =mais ou menos como o latim era usado pelos europeus da época: como =língua da erudição e da religião. Só que, no decorrer desse estudo, ele encontrou algo que =não esperava: um enorme número de palavras que se pareciam muito =com os termos correspondentes do latim, do grego, do inglês e do =alemão. Por exemplo, "mãe" em sânscrito se dizia matar, que certamente se assemelha ao latim mater, ao =grego meter, ao alemão 1 Vlutter, ao inglês mother... "Pai" era =pitar, que Jones com parou com o latim pater, o grego pater, o alemão =Vater, o inglês father. O antigo deus do fogo dos hindus era Agnis, e "fogo" em latim =é ignis; e assim por diante. Impressionado com essas semelhanças, =Jones apresentou, em 1786, à Royal Ásiatic Society de Calcutá, =uma comunicação onde afirmava: A língua Sânscrita, por mais antiga que seja, tem uma =estrutura maravilhosa; mais perfeita do que o Grego, mais copiosa do que =o Latim e mais requintadamente refinada do que qualquer das duas; e no =entanto tem com ambas uma afinidade, tanto nas raízes dos verbos quanto nas formas da gramática, mais forte =do que poderia ter sido produzida por acidente; tão forte, na =verdade, que nenhum filólogo poderia examinar as três sem acreditar que se originaram de alguma fonte comum, que talvez =já não exista. Há uma razão semelhante, embora não tão =forte, para supor que tanto o Gótico quanto o Céltico têm a =mesma origem do Sânscrito; e o Antigo Persa poderia ser acrescentado à mesma =família. Outras pessoas já haviam feito observações semelhantes, =desde o século XVI, mas suas idéias não foram divulgadas, ou =então se chocaram com as convicções da época, que =sustentavam que todas as línguas teriam de ser derivadas do hebraico, tido este como a língua de Adão e, portanto, a =língua original de toda a humanidade. Mas a comunicação de =Jones teve alguma divulgação; e, além disso, chegou num momento em que o mundo dos estudiosos estava =preparado para tais idéias. Na Europa, começava o grande interesse pela história não =escrita, pelo folclore e pelos dialetos populares, que chegaria a se =desenvolver enormemente nos inícios do século XIX, com o movimento =romântico; portanto, as observações de jones devem ter caído em ouvidos interessados. O que é certo =é que, a partir dessa época, houve um número cada vez maior de =pesquisadores procurando os grandes traços, assim como os detalhes, das =semelhanças entre as línguas do norte da Índia, do Irã e da =Europa. Não só fizeram comparações, como ainda iniciaram a =tentativa de reconstruir, pelo menos em parte, a língua original da qual todas essas outras línguas teriam derivado =(a essa língua reconstruída, hipotética, se dá hoje o nome =de "indo-europeu"). isso nos leva ao nosso segundo momento, que ocorreu em 1822, com a =publicação da Gramática alemã, de Jakob Grimm. Grimm era nada mais nada menos que um dos célebres irmãos =Grimm, que compilaram a famosa coleção de contos populares =conhecida como Contos de Grimm. Ele e seu irmão Wilhelm figuram assim =entre os fundadores dos estudos folclóricos. Mas Jakob, além disso, foi também um dos fundadores da =lingüística moderna. William Jones, ao detectar a possível origem comum das =línguas da Índia, do Irã e da Europa, não realizou =comparações cuidadosas que lhe permitissem descobrir os detalhes =do relacionamento entre essas línguas. Grimm (assim como alguns contemporâneos seus) iniciou esse =trabalho. Ou seja, Jones apontou o mistério; Grimm e seus colegas =começaram a investigação para elucidá-lo. O grande mérito da geração de Grimm foi descobrir que a =evolução das línguas não se faz aleatoriamente, mas segue =princípios bastante rigorosos e fixos. Talvez não tão fixos como se chegou a crer mais tarde; mas pelo menos fixos a ponto =de possibilitar a reconstrução parcial dos estágios =pré-históricos de uma língua, assim como a demonstração =do parentesco entre duas línguas, mesmo quando este já não é evidente para o observador =leigo. Aqui vou ilustrar essas descobertas através do trabalho de =Grimm; mas é importante assinalar que ele não trabalhou isolado e foi mesmo antecedido, em seus principais =resultados, por outros lingüistas, em especial por Rasmus Rask. Rask =foi prejudicado por publicar seus trabalhos na Dinamarca, e em =dinamarquês, ao passo que Grimm escrevia em alemão, a grande língua da ciência do século XIX. Grimm se interessou principalmente pelo estudo do alemão e das =línguas germânicas (holandês, inglês, línguas da =Escandinávia e o extinto gótico). Mas, ao contrário do que se =havia feito durante os séculos precedentes, em vez de limitar- se a algumas observações =anedóticas, ele procurou um sistema coerente que unis se as =línguas comparadas. Grimm notou que, quando uma palavra latina, grega ou sânscrita tinha um p, a correspondente nas =línguas germânicas tinha um f na mesma posição. Dessa forma, =aos já citados sânscrito pitar ("pai"), latimpater, gregopater, =corresponde o alemão Vater (pronunciado fater) e o inglês father. Igualmente, "pluma" se =diz em sânscrito patram, em latim penna (mas antes era petna) e em =grego pteron é "asa"; ora, "pluma" em inglês éjêather, em =alemão Feder. Em latim "pé" se diz pes, em grego é podos; em inglês é foot, e em =alemão Fuss. A regularidade é tão extensa que Grimm se sentiu =autorizado a chamá-la "lei" (e até hoje essa correspondência se denomina "Lei de Grimm"). A Lei de Grimm vale igualmente para =outras consoantes: onde o latim e o grego têm o som de k, as =línguas germânicas têm h (nesses casos, o sânscrito costuma ter s, em virtude de outra lei). Por exemplo, o latim =cornu ("chifre"), grego keras, inglês horn, alemão Horn. Há correspondências semelhantes para as demais consoantes, =assim como para as vogais. Mas o que nos interessa aqui (e o que =certamente mais impressionou Grimm) é a grande, se bem que não =absoluta, regularidade das correspondências. Quando uma palavra começa em latim e em grego com o som k, =é quase certo que a palavra correspondente nas línguas =germânicas (caso exista) comece com h. Outros exemplos são: latim =cord- ("coração"), grego kardia, inglês=20heart, alemão Herz; latim capuz' ("cabeça"), grego kephale, =inglês head alemão Haupt. Nas décadas seguintes à publicação do livro de Grimm, =os lingüistas trabalharam na identificação de novas línguas =pertencentes ao grupo indo-europeu; e, ao mesmo tempo, procuravam =reconstituir pelo menos alguns traços da língua primitiva. Hoje, se supõe que essa língua deve ter sido =falada em algum local do sudeste das atuais Rússia e Ucrânia, =possivelmente nas imediações dos mares Negro e Cáspio, mais de =dois mil anos antes de Cristo. Migrações e invasões levaram essa língua, e seus diferentes estágios =posteriores, a muitas regiões da Europa e da Ásia, de maneira que hoje se falam formas modernas do indo-europeu em uma =imensa área que vai de Portugal até a Índia (para não falar =das extensões de algumas dessas línguas à América, à =África e à Oceania). Essas formas modernas do indo-europeu se chamam "línguas =indo-européias"; as línguas românicas como o português, as =germânicas como o alemão e o inglês, as eslavas como o russo e o tcheco, as indo- arianas como o hindi e o bengali, e ainda outras: o iraniano, o armênio, o irlandês, o grego... Isso não =quer dizer que os povos que as falam sejam descendentes diretos do povo =que falava originalmente o indo-europeu (muito freqüentemente, uma =língua é imposta a um povo de outra origem); mas pode- se afirmar que todas =essas línguas são descendentes diretas do indo europeu. =Lingüisticamente, somos primos distantes dos Indianos do norte, dos =iranianos, dos poloneses e dos armênios. Em meados do século XIX, os lingüistas estavam trabalhando =com várias "leis" do tipo da Lei de Grimm, e conseguiam explicar =grande parte das formas encontradas nas línguas clássicas e =modernas como derivações regulares a partir de formas hipotéticas iniciais. Mas, como é =de se esperar, alguns mistérios persistiam (e muitos persistem até =hoje). Um desses mistérios tinha a ver com certas irregularidades =aparentes encontradas na evolução das consoantes nas línguas germânicas. A Lei de Grimm previa que, quando uma palavra em latim e em =sânscrito tivesse um É, este devia ser representado pelo som th =(como no inglês thin) nas línguas germânicas (pelo menos nas =antigas); igualmente, o k latino, correspondente ao s sânscrito, deveria corresponder a h em germânico. Isso acontece, =com efeito, na maioria das palavras. Mas há um grupo de =exceções atestadas em gótico, a mais antiga língua =germânica conhecida, que não se conseguia explicar. Vamos ver duas dessas exceções, como =exemplos. A palavra que significa "irmão" é bhratar em sânscrito,fra =ter em latim e brothor em gótico; aqui se verifica a =correspondência tal como prevista pela Lei de Grimm. Mas a palavra "pai", já =vista antes, é diferente: pitar em sânscrito, pater em latim; em =gótico deveria serfathar, mas na verdade é fadar. Aparentemente, pois, a lei falha neste caso. Outro exemplo se =encontra nas palavras para "sogro" e "sogra". "Sogro" em latim é =socer (pronunciado soker) , e, conforme o esperado, o gótico tem um h no lugar do k latino: swehar. Mas a "sogra" também aqui =cria problemas: em latim é socrus, mas em gótico é swigar: em =vez do h esperado, temos um g. Esses fatos não tinham explicação, pois fugiam à regra =e nin guém havia descoberto sequer uma outra regra, que estivesse =aqui interferindo com a Lei de Grimm para dar tais resultados. Alguns =autores se resignavam a considerá-los exceções, e pronto. Não contavam com a astúcia do lingüista dinamarquês =Karl Ver ner. Para começar, talvez tendo emmente seu infeliz =conterrâneo Rasmus Rask, Verner teve o cuidado de publicar sua =descoberta em alemão, em uma revista científica da Alemanha (em 1877). Desse modo, tornou-se imediatamente =conhecido, e a regularidade que descobriu recebeu o nome de "Lei de =Verner". Essa lei explicou adequadamente as aparentes exceções =à Lei de Grimm. Verner examinou cuidadosamente todos os casos excepcionais, tais =como apareciam nas diversas línguas. E descobriu um fator que não =tinha sido levado em conta pelos estudiosos do assunto até o momento: =a posição do acento tônico na palavra. O indo-europeu, tal como muitas outras linguas, =acentuava uma das sílabas da palavra; é o que acontece também =com o português, ao distinguir cara de cará. Mas o acento =indo-europeu desapareceu nas línguas germânicas, que e o pronome pode referir-se ao primeiro ou então =ao segundo, mas não ao terceiro, que é o mais próximo. Nem isso. Na próxima frase, (4) Joaquim contou a Cristiano que o caluniaram. temos que o pode ser tanto Joaquim quanto Cristiano, apesar de =Cristiano ser o nome mais próximo. Como se vê, o fenômeno é relativamente complexo. Antes de =tentar uma solução melhor vamos refletir um pouco sobre o que é =que estamos realmente procurando. O fato de que conseguimos dizer sem dificuldade a quem é que o =pronome se refere, nas frases anteriores, significa que temos na =cabeça um mecanismo qualquer que processa essas frases, extraindo delas =certos aspectos de seu significado (ver o ensaio "Nossa sabedoria =gramatical oculta"). O que estamos procuran do formular - e o que a =pesquisa em gramática tenta encontrar - são peças desse mecanismo. Ao escutar ou ler uma frase =como: (1) Joaquim desconfia que Cristiano não o ajudaria. as pessoas a submetem a uma espécie de processamento mental, que =dá como resultado (entre muitas outras coisas) que o, isto é, a =pessoa que não seria ajudada, pode ser Joaquim, mas não Cristiano. =E elas conseguem fazer isso porque têm namente um programa - um pouco como um programa de computador - que =lhes diz quando é que um pronome pode se referir a um nome e quando =é que não pode. O trabalho do pesquisador éjustamen te =descobrir como é esse programa. Esses programas costumam ser expressos como conjuntos de regras. =Mas atenção! Não são regras que mandam a gente falar deste =ou daquele jeito; são regras que descrevem como é que as coisas =devem ser lá namente dos falantes. No caso das frases vistas, podemos formular a regra mais ou menos =assim: Um pronome não-reflexivo (como o, a, lhe) se refere sempre a um =nome que está em outra oração; um pronome reflexivo (se) se =refere a um nome que está na mesma oração. Não vamos verificar como é que os falantes conseguem dividir =as orações (uma tarefa que muitos de nós nunca conseguimos =fazer direito no papel). Basta saber que todos os falantes fazem isso na =cabeça, e muito bem, só que não têm consciência do que estão fazendo. Dividem orações assim =como colocam os músculos para funcionar sem nem saberem que têm =músculos. Agora vejamos as frases citadas, que repito aqui com a divisão =de orações: (1) (Joaquim desconfia que [ não o ajudaria].) (2) (Cristiano desconfia que [ não o ajudaria].) (3) (Joaquim disse a Cristiano que [ o ajudaria].) (4) (Joaquim contou a Cristiano que [ caluniaram].) Notemos agora que o pronome o (que não é reflexivo) tem =sempre um antecedente em outra oração. Com o reflexivo se as =coisas se invertem: (5) (Joaquim desconfia que [ não se ajudaria].) O pronome se em (5) só pode se referir a Cristiano, nunca a =Joaquim - isso é coisa que qualquer falante do português percebe. =E a razão é que Cristiano pertence à mesma oração que se, =ao passo que Joaquim está em outra oração. A regra que vimos antes é, portanto, uma parte da =programação que os falantes do português têm na cabeça e =que lhes permite falar e entender sua língua. E, naturalmente, a =formulação da regra foi resultado de pesquisa - pesquisa em gramática, =justamente aquilo que nos perguntávamos se podia existir. E o =resultado é um aspecto da estrutura da língua que nem sequer é =mencionado nas gramáticas que utilizamos nas escolas. A pesquisa em gramática também tem seus mistérios - =aspectos da língua que ninguém conseguiu até hoje formular =direito. Na verdade, não há falta de mistérios; acho que não =exagero se disser que a grande maioria dos fenômenos gramaticais observados até hoje não tem uma explicação =satisfatória. Posso dar exemplos, e a única dificuldade é a =escolha: os mistérios são muitos, apesar da impressão (que =recebemos na escola) de que a gramática está pronta e morta. Vejamos um exemplo. Sabemos que, em muitas frases, o sujeito =exprime o ser que pratica a ação (ou, mais exatamente, que causa o =evento). Isso acontece na frase: (6) Minervina entortou meu guarda-chuva. Aqui, Minervina exprime quem praticou a ação, e meu =guarda-chuva é o que sofreu a ação. Acontece que. com o verbo entortar, nem sempre o sujeito exprime =quem pratica a ação. Se não houver objeto, isto é, se só =houver o sujeito e o verbo, o sujeito exprime quem sofre a ação, =como em: (7) Meu guarda-chuva entortou. Essa frase, naturalmente, não significa que o guarda-chuva =praticou a ação de entortar alguma coisa, mas que ele ficou torto. =Mesmo se o sujeito for o nome de uma pessoa (que, em princípio, =poderia praticar uma ação), o efeito se verifica: (8) Minervina entortou. Essa frase quer dizer que Minervina ficou torta, não que ela =entortou alguma coisa. A mudança de significado do sujeito que vimos acima acontece com =muitos verbos do português; por exemplo, quebrar, esquentar, rasgar. =Para verificar isso, basta comparar exemplos como os seguintes: (9) O gato quebrou o vaso. / O vaso quebrou. (10) Marquinhos esquentou o leite. / O leite esquentou. (11) Ela rasgou meu retrato. / Meu retrato rasgou. Até aqui, descrevemos um fenômeno bastante regular, que afeta =um bom número de verbos do português - quando o verbo tem sujeito =e objeto, o sujeito exprime o ser que pratica a ação, ou causa o =evento; já quando só há sujeito, este exprime o ser que sofre a ação ou evento. =Naturalmente, esse comportamento dos verbos deve (ou deveria) ser =incluído na gramática portuguesa, como uma observação =importante. Agora, o mistério: em certos casos, o fenômeno da mudança =de significado do sujeito não ocorre, e ninguém sabe ao certo por quê. Vimos que o verbo esquentar funciona como entortar, =rasgar etc. Assim, podemos dizer: (12) O leite esquentou. e isso quer dizer que o leite se tornou quente, não que ele =esquentou alguma coisa. Mas na frase: (13) Esse cobertor esquenta. entende-se que o cobertor esquenta a gente (isto é, causa o =aquecimento), e não que ele se torna quente E o mais estranho é =que na frase: (14) Esse cobertor esquentou. o que se entende é que o cobertor se tornou quente. Ou seja, em =(14) observa-se a mudança de significado esperada, mas em (13) =não. E a única coisa que mudou foi o tempo do verbo. Ninguém sabe direito por que o verbo esquentar (e v outros) =não se comporta como o esperado em frases como (13). =Provávelmente, o fenômeno tem a ver com o verbo - ou, mais =exatamente, com a situação evocada pelo verbo, que é diferente segundo se diga esquentou ou esquenta. Mas falta ainda um =estudo sistemático, e por enquanto esses fatos não cabem em teoria =nenhuma. Como se vê, ainda há o que descobrir em gramática. E, se =considerarmos a qualidade das gramáticas que andam por aí, =entenderemos que há muito o que fazer. Por exemplo, o que é, afinal de contas, um =substantivo? E em que se distingue de um adjetivo? À primeira vista, =podemos achar que as respostas já foram encontradas, pois nas =gramáticas encontramos definições dessas duas classes de palavras. Mas =quem realmente entende essas definições? Quem é capaz de =aplicá-las com segurança? Uma gramática define o substantivo assim: "a palavra com que =designamos ou nomeamos os seres em geral". E o adjetivo é ="essencialmente um modificador do substantivo" - ou seja, para se saber =o que é um adjetivo é preciso primeiro saber o que=20é um substantivo. Mas o que é um "ser"? Essa noção não é nada clara. =Em geral, concordamos que João designa um ser; o mesmo para gato. Mas =já com estante, algumas pessoas ficam em dúvida: será um "ser"? =E que dizer de matemática ou de manhã, ou ainda de gravidade? Serão seres? O que sabemos é que essas =palavras são substantivos, pelo menos segundo as gramáticas =usuais. Mas falta uma definição de "substantivo" que realmente se =possa aplicar. E certamente a definição encontrada nas gramáticas não deve ser correta - a menos que deixemos de considerar matemática, manhã e =gravidade como substantivos. Aqui, é necessário adotar uma abordagem totalmente diferente. =Em minha Gramática descritiva do português (Ática, 1995), =tentei fazer justamente isso; o leitor interessado encontrará a minha =solução nas páginas 321 a 329. Mas devo dizer que ainda essa é pouco =satisfatória - embora, espero, bem melhor que a tradicional. Como =ainda não temos uma solução realmente boa, continua de pé a =pergunta: o que é um substantivo? Por exemplo, o que é, afinal de contas, um substantivo? E em que =se distingue de um adjetivo? A primeira vista, podemos achar que as =respostas já foram encontradas, pois nas gramáticas É =possível entender (13) também da maneira regular, mas aí é necessário "preparar" um pouco o =contexto: sempre que o sol entra pela janela este cobertor esquenta. Mas =a interpretação mais fácil e imediata é a de que o cobertor =causa o aquecimento. Para quem gosta de certezas e seguranças, tenho más =notícias: a gramática não está pronta. Para quem gosta de =desafios, tenho boas notícias: a gramática não está pronta. =Um mundo de questões e problemas continua sem solução, à espera de novas idéias, novas teorias, novas =análises, novas cabeças. =20 10. O Rock PORTUGUÊS. (a melhor língua para fazer ciência). =20 Em uma passagem das Memórias de Giacomo Casanova, o famoso =aventureiro relata uma conversa com um erudito que lhe contou que existe =uma tradução da Bíblia em dialeto napolitano, e uma da =Odisséia de Homero, e que ambas "fazem rir". Tal é a natureza do dialeto napolitano, continuou ele, que não é =possível falar de assunto nenhum, por mais grave que seja, sem =provocar o riso. Se isso for verdade, é sem dúvida uma limitação curiosa =e bastante incômoda para aqueles (numerosos no tempo de Casanova) =incapazes de falar qualquer outra língua. Mas será que tais coisas =acontecem mesmo? Haverá línguas especialmente apropriadas a produzir certos efeitos, ou mais =adaptadas à transmissão de certos conteúdos do que outras? O caso mencionado por Casanova, evidentemente, é extremo. Mas, =em formas mais brandas, idéias semelhantes são defendidas por =muita gente, mesmo hoje. Lembro-me de ter lido em algum lugar que um =cantor se queixava de que o português era uma língua pouco própria para o rock. Poderíamos acrescentar a essa =observação a estranheza que certamente provocaria um =20 1 Este ensaio foi publicado originalmente em Ciência Hoje =(1994). samba em alemão, uma modinha em japonês etc. Parece, pois, =que há fatos que, até certo ponto, sustentam essas =afirmações. Mas a questão importante para nós é se a =interpretação desses fatos é correta. Ou seja: os fatos observados são conseqüência de =qualidades e defeitos das diversas línguas ou, antes, produto de =preconceitos e hábitos excessivamente enraizados? Isso dito, não há dúvida de que o maior perigo que correm =as línguas, hoje em dia, é o de não desenvolverem =vocabulário técnico e científico suficiente para acompanhar a =corrida tecnológica. Se a defasagem chegar a ser muito grande, os próprios falantes =acabarão optando por utilizar uma língua estrangeira ao tratarem =de assuntos científicos e técnicos. Por outro lado, as línguas têm, em princípio, recursos =para enriquecer seu vocabulário rapidamente. Cada língua tem uma =maneira diferente de fazer isso. Por exemplo, algumas línguas, como o =inglês, são muito tolerantes quanto à entrada de palavras estrangeiras (empréstimos), de modo que =completam as lacunas simplesmente utilizando os termos originais. Outras =línguas, como o alemão, dão preferência a formações =vernáculas, como Fernsehen (defern, "longe", e sehen, "ver") para ="televisão". Ainda outras recorrem a formações eruditas: as =línguas românicas, entre elas o português, traduzem os termos =estrangeiros, muitas vezes, através de formações greco-latinas, como quando se traduz o termo lingüístico =alemão Umlaut por meta fonia (em inglês fica umlaut mesmo). O =português também se temmostrado receptivo a empréstimos, em =certas áreas como a computação. O empréstimo, evidentemente, é a solução mais fácil e =cômoda; mas, levada a extremos, tem a desvantagem de desfigurar o =texto com um excesso de termos de aspecto estrangeiro: software, =holding, off-road, station wagon etc. Confesso que acho antiestética a acumulação de =empréstimos que se verifica atualmente nos textos de economia, =administração e informática (sem falar de certos textos de =lingüística, onde a culpa é maior). Mas é preciso reconhecer que talvez seja esse o menor dos males. o maior =perigo está em não acompanhar de maneira alguma, o desenvolvimento =internacional do léxico. Isso é que acaba reduzindo uma língua =às dimensões do napolitano ou do xavante: um dialeto de interesse local, inadequado =às necessidades gerais da vida moderna. É do ponto de vista do vocabulário, portanto, que faz sentido =comparar as línguas, distinguindo as mais adequadas das menos =adequadas à expressão de certas áreas do conhecimento. =Aliás, levando em conta as limitações do nosso desenvolvimento, a língua portuguesa tem se saído =bastante bem na tentativa de seguir o passo da ciência e da =tecnologia modernas. Apesar de surgirem ocasionalmente algumas =dúvidas (como no caso citado da revista científica), o português é a única língua de cultura do Brasil. =Não se pode dizer isso de outros países, como a Holanda, a =Suécia e o Japão, por exemplo, onde as publicações =científicas se fazem, em grande parte, em inglês. Em 1794, a Academia de Berlim ofereceu um prêmio ao melhor =trabalho que tratasse de comparação das diversas línguas da =Europa, para verificar qual seria a mais perfeita. O prêmio foi =conquistado pouco depois, por D. Jenisch. e um crítico posterior comentou, azedamente, que era difícil decidir quem era =o maior idiota: o que propôs a questão ou o que tentou =respondê-la. Nós não precisamos ser tão radicais; colocada =em termos do desenvolvimento do vocabulário especializado e dos objetivos da expressão, a questão da =comparação das línguas faz sentido. E, o que é mais, chama =nossa atenção para um aspecto importante da vida de nossa =língua, uma das condições de sua sobrevivência como idioma de cultura no mundo atual. =20 11. QUANDO UM ADJETIVO É UM VERBO. (qual é a relação entre palavras e coisas?) =20 Que é uma língua? Em que é que as línguas diferem? Uma resposta imediata (que, como veremos, é incorreta, mas que =é comum) é a seguinte: uma língua é um sistema de =nomenclatura, que atribui a cada coisa um nome. As línguas diferem =porque dão nomes diferentes às coisas: um cavalo se chama Pferd em alemão, e "comer" em francês =é manger. Basicamente (continua a resposta), cada língua =compreende um certo número de palavras e cada palavra designa uma =coisa: um ser, uma ação, um estado, ou ainda uma relação mais abstrata, como no caso das =conjunções: porque, mas etc. Neste ensaio vou examinar alguns aspectos interessantes que tornam =inadequada essa concepção de "língua". Podemos começar do seguinte: a própria noção de ="palavra" pode variar muito de língua para língua. Vamos admitir =que uma palavra se caracteriza por não poder ser, normalmente, =interrompida por uma hesitação da fala: assim, podemos dizer ela tem .. . ééé... uma =fazenda, mas nunca ela tem umafa . . .ééé... zenda. Isso =caracteriza fazenda como uma palavra 1 É interessante observar que, segundo esse Critério, as =expressões idiomáticas, do tipo bater as botas, também são =palavras, pois não podem ser interrompidas. Ora, em muitas línguas indígenas americanas uma "palavra" =corresponderia a uma frase inteira do português. O lingüista =Edward Sapir dá (em um livro que é um clássico da =lingüística vários exemplos, um dos quais vou reproduzir aqui. O exemplo de Sapir é tirado do nutka, língua falada na costa =noroeste da América do Norte. Em nutka, a palavra inikwihlma =significa "o fogo está ardendo dentro de casa"; essa palavra é =formada de inikw-, que é "fogo", mais o elemento -ihl-, "dentro de casa", mais o sufixo de valor =verbal -ma. Sapir continua a acrescentar elementos e mostra como =conceitos muito complexos, que só se podem expressar em inglês (ou =em português) através de frases, são exprimíveis em nutka com simples palavras. Ou seja, em nutka temos =palavras que não correspondem a nenhuma palavra do português, e =também vice-versa, já que alguns dos elementos de inik wihlma nunca ocorrem sozinhos. Note-se =que, segundo o critério proposto anteriormente, inikwihlma é =realmente uma palavra, pois não pode ser interrompida por outros =elementos, como hesitações, por exemplo. Uma diferença tão profunda entre o nutka e as línguas =européias de certo modo atrapalha a idéia de que uma língua =seria uma nomenclatura para as coisas do mundo. Essa noção de ="língua" não vai ftmcionar se compararmos o nutka com o português: que palavra =portuguesa corresponde a inikwihlma? Mas pode-se argumentar que o nutka =é uma língua exótica, e é de se esperar que essa dificuldade =de comparação desapareça quando se consideram línguas relativamente próximas. Afinal de =contas, quem de nós pretende estudar nutka? 2 Sapir, Language, New York, Harcourt Brace Jovanovich (a primeira =edição é de 1921). Existe tradução para o português (Ed. Persp São =Paulo, 1980). Sapir escreveu esse livro não para especialistas, mas =para o público em geral. É obra de leitura fácil e agradável, altamente recomendada para quem se interessa pelo fenômeno da =linguagem. Ainda não é por aí que se pode escapar do problema. Vamos =tomar duas línguas bem próximas: digamos, o português e o =italiano. Em português, temos o verbo perder, que aparece em frases como ela perdeu o passaporte e ela perdeu o =trem. Em italiano, essas frases se traduzem, respectivamente, como lei =há smarrito ilpassa porto e lei haperduto il treno. Como se vê, o =verbo perder do português corresponde, em italiano, a smarrire na primeira frase e perdere na =segunda. Acontece que o italiano diferencia entre "perder" alguma coisa =que você poderia, em princípio, reencontrar (como um passaporte), =e "perder" algo que não pode ser recuperado. No primeiro caso, usa-se em geral smarrire e, no =segundo, perdere. Há, na verdade, a possibilidade de se usar perdere =no primeiro caso (lei haperduto ilpassaporto), mas nunca se usa smarrire =no segundo caso. Assim, se alguém diz lei ha smarrito iltreno, isso só pode significar que ela perdeu =um trem e não sabe onde o deixou (um trem de brinquedo, por exemplo), =e nunca que ela não conseguiu pegar o trem. Agora podemos perguntar que palavra portuguesa correspon de =exatamente ao italiano smarrire. Não pode ser perder, porque, como =vimos,perder em italiano é às vezes smarrire e às vezesper =dere; logo,perder só corresponde parcialmente a smarrire. Ou seja, não existe nenhuma =palavra portuguesa que corresponda exatamente ao smarrire italiano. Mas, =e a "idéia" de perder, afinal, como é que fica? Qual das =línguas a expressa melhor? O italiano está distinguindo coisas demais, ou é o português que está deixando =passar alguma distinção fundamental? Essa pergunta se origina, na verdade, da concepção ingênua =de linguagem antes mencionada: a de que as línguas são sistemas de =nomenclatura para as "coisas" do mundo. A pergunta parte da idéia de que essas "coisas" sempre se distinguem umas das outras, =independentemente de nossa percepção delas; assim, - existiria o "perder" como algo independente da cognição e da =linguagem, e a função de uma língua seria dar-lhe um nome. Mas os fatos não sustentam essa concepção da relação =entre as línguas e os conceitos que temos das coisas. As línguas, =longe de serem meros sistemas de nomenclatura, são também sistemas =de recorte da realidade; cada língua reflete uma organização própria imposta pela nossamente =às coisas do mundo. Assim, o que temos a dizer não é que o =português (ou o italiano) é a língua que exprime mais =adequadamente o conceito de "perder", mas antes que esse conceito é definido coerentemente por falantes do italiano e =do português. O exemplo dado não é excepcional; é antes a regra, e é =muito fácil encontrar outros casos paralelos. Em francês, o que =chamamos rio se traduz como fleuve ou rivière. Fleuve é um rio que =desemboca no mar; rivière, um que desemboca em outro rio; desse modo, o São Francisco é =umfleuve em francês, e o Tietê é uma rivière, embora ambos =sejam "rios" em português. Aqui, novamente o português deixa de =fazer uma distinção que outra língua faz. Por outro lado, sabemos que o português distingue entre =saber e conhecer, mas em inglês essas duas palavras correspondem a =uma só: know. I know him significa "eu o conheço" e I know that he =is here é "eu sei que ele está aqui". Em português, distinguimos árvore, madeira e bosque como =três palavras; mas o inglês tem só duas: tree é "árvore" =e woodé "bosque" e também "madeira"; e o russo também tem só duas palavras, mas as distribui de modo diferente do inglês: lyes =é "bosque" e dye revo é "árvore" ou "madeira". Quem está =certo? Ninguém está certo - cada língua reflete uma organização própria da =realidade. Essas são transliterações minhas, representando sua =pronúncia aproximada. A ortografia correta, naturalmente, é no =alfabeto cirílico, e prefiro poupar aos leitores a decifração =de caracteres desconhecidos. Isso não significa, evidentemente, que os falantes das =línguas não consigam fazer as distinções que sua língua =não faz. Podemos perfeitamente compreender a diferença entre =smarrire eperdere, assim como a diferença entrefleuve e rivière, embora nossa língua não as realize =através de palavras distintas. E um falante do inglês distingue =muito bem a diferença entre "conhecer" (uma pessoa) e "saber" (estar =informado de alguma coisa). Mas não há dúvida de que as características de cada língua revelam alguma =coisa da visão de mundo de seus falantes. Há quem acredite que =para um francês os grandes cursos de água se dividem naturalmente em dois tipos, e que um falante do =português precisa de um certo esforço cognitivo para fazer a mesma =distinção. Eu prefiro não me comprometer com essa posição =- a exemplo dos velhos políticos mineiros, direi apenas que "pode ser que seja". O que é certo =é que um francês, ao falar de rios, precisa especificar se o rio =em questão corre para o mar ou não. já nós podemos mencionar =rios sem fazer essa especificação. Um exemplo interessante vem da maneira como as línguas expressam =os nomes de cores. Sabemos que as diferenças entre as cores não =são nítidas: existe o amarelo, existe o laranja e existe um =sem-número de matizes intermediários. Assim, os limites entre as diversas cores são sempre um tanto =arbitrários. É verdade que não há nenhuma língua (que eu =saiba) que deixe de distinguir branco de preto. Mas muitas não =distinguem azul de verde, como o latim, onde ambas essas cores podem ser designadas com =o termo caeruleus.
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