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Guias e Dicas
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Ã?mile Durkheim. Sociologia, Notas de estudo de Enfermagem

Ã?mile Durkheim. Sociologia.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 31/07/2010

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gerson-souza-santos-7 🇧🇷

4.8

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Baixe Ã?mile Durkheim. Sociologia e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! GRANDES CIENTISTAS SOCIAIS Textos básicos da e Ciências Sociais, selecionadas | com a supervisão geral do Prof. Florestan Forttandon Abrangendo seis disciplinas Tuntiamentais da ciência nocial - Sociologia, História , Psicologia, Palítica e Antropologia a coleção apresenta 08 mitgras múdernos é contemporáneoa de maior destaque mu; focalizados através do introdução crítica biobibliográfica, assinada pos especialistas da universidade brasileira. À essa introdução c segue-se uma coletânea dos textos mais representativos de cada autor. iii uia Rr ER PESE ” = 1 Durkheim Elrgantnador José Albertino Rodrigues Donidenador Florestan Fernandes SOCIOLOGIA 4 E Conhecido como o maior sociólogo francês. É também um dos E 8. Cripu a famosa “Escola Suciblógica u diivamente do debate intelectual dus grandes problemas «e nossa época. demar de vários livros clássicos — 4 Divisão do Trabalho Social, O Sulsf naneiro 4 E orgao Ce Indução na Sovivlugia e m verdadeiro | furdador da Sociblegia Comparada, demonstrando que sa | podem estudar as variações continuas (dontro de um | mesmo “tipo social") e as variações descontínuas (atra: : vês de "tipos secials” dlvpraos) por meio da classificação Abriu um campa inédito na zação dus dados estatis- Licos (ao“estular 6 simbldio) e lançou as bases de uma preensão sociológica da educação. il em torao de si IN 85 DE de discipulos. que deram à França uma limpar tar como cer mento soclal lãe um belar Emile Durkheim. 158] | conanczaão | ra O seu e | | | | arítico, = 9 !/8850B'Dar6? GRANDES CIENTISTAS SOCIAIS Colação coordenada por Florestan Fernandes DURKHEIM José Albertino Rodrigues > FEBVRE, Carlos Guilherme Mota RADCLIFFE-BROWN Julio Cezar Melatti KOHLER Arno Engeimann LENIN Florestan Fernandes KEYNES Tamás Szmrecsányi COMTE Evaristo de Moraes RANKE Sérgio B. de Holanda VARNHAGEN Nito Odái 10 MARX (Sociologia) Octavio lanni 11. MAUSS Roberto C. de Oliveira e = o 13. WEBER Gabriel Cohn 14. DELLA VOLPE Wilcon J. Pereira 15 HABERMAS Barbara Freitag e Sérgio Paulo Rouanet 16. KALECKI Jorge Migliol 17 ENGELS José Paulo Netto 18. OSKAR LANGE Lenina Pomeranz 19. CHE GUEVARA Eder Sader 20 LUKACS José Paulo Netto 21 GODELIER Edgard de Assis Carvalho 2» TROTSK Orlando Miranda 2:3 JOAQUIM NABUCO Paula Beiguelman 24 MALTHUS Tamós Szmerecsánvi 2% MANNHEIM Marialice M. Foracchi 24 CAIO PRADO JR Francisco Iglésias 21 MARIATEGUI Manoel L, Bellotto e a Maria M. Corrêa 24 DEUTSCHER Juaraz Brandão Lopes STALIN «José Paulo Netto 10 MAO TSETUNG Sador 41 MARX IEconomia) Singer 17 MELANIE KLEIN Lábio À Hormmenn é A + CELSO tm O objetivo será não ser repetitivo. Colocar livros e autores que ainda não estão disponibilizados. Deixemos a preguiça de tado. Como diria 0. filosofo, "escaneio e publico no 4shared; logo existo” Como dizem, alguns autores pesquisam anos, e merecem uma gratificação por tal zelo para com o conhecimento. Aqui vai minha gratificação: MUITO OBRIGADO! Vou ler seu exemplar como forma de gratidão por seu incrível trabalho. "Não tenho ouro nem prata, mas tudo que tenho te dou”: Muito obrigado! A gral icação pecuniária deixe pra depois, visto que os homens para pensar sua existência devem estar com as necessidades materiais satisfeitas, vocês não precisam do dinheiro. Isso é um elemento acessório à existência! Ao comprar um livro, o autor recebe da editora uma micharia que não daria nem para sobreviver. Ou seja, baixem, leiam e não paguem nada! Essa será sua forma de gratificação! Z ESCANEAR E PRE o EO asa RA ARS EN 9º edição 2º impressão A SOCIOLOGIA DE DURKHEIM 1, Situação do Autor 2.1. Marcos sociais! Na adolescência, o jovem Da- vid Emile presenciou uma sé- re de acontecimentos que marcaram decisivamente todos os franceses em geral e a ele próprio em particular: a 1.º de setembro de 1870, a der- rota de Sedan; a 28 de janeiro de 1871, a capitula: á ção diante das tropas alemãs; sa ho de 18 de março a 28 de maio, NEAR a insurreição da Comuna de ?aris; a 4 de setembro, a proclamação da que ficou conhecida como TM República, com a formação do governo provisório de Thiers até à votação da Constituição de 1875 e a eleição do seu primeiro pre- idente (Mac-Mahon). Thiers fora encarregado tanto de assinar o ratado de Francfort como de reprimir os communards, até à liqui- lação dos últimos remanescentes no “muro dos federados”, Por wtro lado, a vida de David Emile foi marcada pela disputa franco- alemã: em 1871, com a perda de uma parte da Lorena, sua terra tatal tornou-se uma cidade fronteiriça; com o advento da Primeira O conceito de marcos sociais é emprestado de GURVITCH (1959) e já plicado, no caso de Durkheim, por NisBET (1965) é SICARD (1959). A mais recente e valiosa contribuição, na linha da Sociologia do 'onhecimento, é devida a CLARK, 1973. Trata-se também da mais original profícua abordagem da Escola Sociológica Francesa. Guerra Mundial, ele viu partir para o front numerosos discípulos seus, alguns dos quais não regressaram, inclusive seu filho Andrês, que parecia destinado a seguir a carreira paterna. Nesse entretempo, Durkheim assistiu e participou de aconteci- meêntos marcantes e que se refletem diretamente nas suas obras, ou pelo menos nas suas aulas. O ambiente é por vezes assinalado como sendo o “vazio moral da III República”, ? marcado seja pelas consegilências diretas da derrota francesa e das dívidas humilhantes da guerra, seja por uma série de medidas de ordem política, dentre as quais duas merecem destaque especial, pelo rompimento com as tradições que elas representam. A primeira é a chamada lei Naquet, que instituiu o divórcio na França após acirrados debates parlamentares, que se prolongaram de 1882 a 84. A segunda é representada pela instrução laica, questão levantada na Assembléia em 1879, por Jules Ferry, encarregado de implantar o novo sistema, como Ministro da Instrução Pública, em 1882. Foi quando a escola se tornou gratuita para todos, obrigatória dos 6 aos 13 anos, além de ficar proibido formalmente o ensino da religião. 3 O vazio correspondente à ausência do ensino de religião na escola pública tenta-se preencher com uma pregação patriótica representada pela que ficou conhecida como “instrução moral e cívica”. Ao mesmo tempo que essas questões políticas e sociais bali- zavam o seu tempo, uma outra questão de natureza econômica e social não deixava de apresentar continuadas repercussões políticas: é o que se denominava questão social, ou seja, as disputas e con- 2 Comentando nos Annaies (v. 1V, 1899-1900) um livro que Alfred Fouillée acabara de publicar (La France au point de vue moral. Paris, Alcan, 1900), Durkheim mostra-se convencido pela argumentação relativa “à une dissolution de nos croyances morales” e, apesar de discordar das soluções apontadas para os problemas de criminalidade, concorda com a argumen- tação do A. e afirma: “Il en résulte un véritable vide dans notre cons- cience morale” (DuRKHEIM, 1969: p. 303). Já em 1888 (“Cours de Science Sociale”) reconhecia uma crise moral de seu tempo (DUREHEIM, 1970: p. 107). 2 Em sua obra póstuma Education et Sociologie, Durkheim reconhece: “Estamos divididos por concepções divergentes e, às vezes, mesmo contra- ditórias”, Sua posição nessa polêmica é clara: “Admitido que a educação seja função essencialmente social, não pode o Estado desinteressar-se dela. Ao contrário, tudo o que seja educação deve estar até certo ponto sub- metido à sua influência”. Mas adverte: “Isto não quer dizer que o Estado deva, necessariamente, monopolizar o ensino” (cj. a trad. port, p. 48 e 47 9 fixos decorrentes da oposição entre o capital e o trabalho, vale dizer, entre patrão e empregado, entre burguesia e proletariado. Um marco dessa questão foi a criação, em 1895, da Confédération Générale du Travail (CGT). A bipolarização social preocupava profundamente tanto a políticos como a intelectuais da época, e sua interveniência no quadro político e social do chamado tournant du siêcle não deixava de ser perturbadora. Com efeito, apesar dos traumas políticos e sociais que assina- lam o início da II República, o final do século XIX' e começo do século XX correspondem a uma certa sensação de euforia, de progresso e de esperança no futuro. Se bem que os êxitos econô- micos não fossem de tal ordem que pudessem fazer esquecer a sucessão de crises (1900-01, 1907, 1912-13) e os problemas colo- cados pela concentração, registrava-se uma série de inovações tec- nológicas que provócavam repercussões imediatas no campo econômico. É a era do aço e da eletricidade que se inaugura, junto com o início do aproveitamento do petróleo como fonte de energia — ao lado da eletricidade que se notabiliza por ser uma exergia “limpa”, em contraste com a negritude do-carvão, cuja era declinava — e que, ao lado da telegrafia, marcam o início do que se convencionou chamar de “segunda revolução industrial”, qual seja, a do motor de combustão interna e do dínamo. Além dessas invenções, outras se sucediam. Embora menos importantes, eram sem dúvida mais espetaculares, como o avião, o submarino, O cinema, o automóvel, além das rotativas e do lino- tipo que tornaram as indústrias do jornal e do livro capazes de produções baratas e de atingir um público cada vez maior. Tudo isso refletia um avanço da ciência, marcada pelo advento da teoria respectivamente). Por outro lado, a preocupação de Durkheim com a moral não pode ser confundida de uma maneira simplista, como preo- cupação moralista de sua parte. Pode-se dizer mesmo que a análise socio- tógica da moral que empreende (ver por ex. I'éducation morale) é uma análise laica, no sentido de não ser informada por uma posição confessio- nal, que aliás ele não tinha. Sua posição, em última análise, não é a de um moralista — de quem fala com respeito mas guardando a devida distância —: e sim a de um racionalista (ver p. 3-5 e 47, onde diz: “Porque nós vivemos precisamente numa dessas épocas revolucionárias e críticas, onde a autoridade normalmente enfraquecida da disciplina tradicional pode fazer aparecer facilmente o espírito da anarquia”). Seu comprometimento com o sistema político-social da III República será visto mais adiante. 10 dos quanta, da relatividade, da radioatividade, da teoria atômica, além do propresso em outros setores mais diretamente voltados à aplicação, como a das ondas hertzianas, das vitaminas, do bacilo de Koch, das vacinas de Pasteur etc. Não é pois de se admirar que vigorasse um estilo de vida belle épogue, com a Exposição Universal comemorativa do cente- nário da revolução, seguida da exposição de Paris, simultânea com a inauguração do métro em 1900. O último quartel do século fora marcado, além da.renovação da literatura, do teatro e da música, pelo advento do impressionismo, que tirou a arte pictórica dos ambientes fechados, dos grandes acontecimentos e das grandes personalidades — da monumentalidade, enfim — para se voltar aos grandes espaços abertos, para as cenas e os homens comuns — para o quotidiano. , Porque este homem comum é que se vê diante dos grandes problemas representados pelo pauperismo, pelo desemprego, pelos grandes fluxos migratórios. Ele é objeto de preocupação do movi- mento operário, que inaugura, com a fundação da CGT no Con- gresso de Limoges, uma nova era do sindicalismo, que usa a greve como instrumento de reivindicação econômica e não mais exclusi- vamente política. É certo que algumas conquistas se sucedem, com os primeiros passos do seguro social e da legislação trabalhista, sobretudo na Alemanha de Bismarck. Mas se objetivam também medidas tendentes a aumentar a produtividade do trabalho, como o “taylorismo” (1912). Também a Igreja se volta para o problema, com a encíclica Rerum Nova- rum (1891), de Leão XIII, que difunde a idéia de que o prole- tariado poderia deixar de ser revolucionário na medida em que se tornasse proprietário. É a chamada “desproletarização” que se objetiva, tentada através de algumas “soluções milagrosas”, tais como o cooperativismo, corporativismo, participação nos lucros etc. Pretende-se, por várias maneiras, contornar a questão social e eliminar a luta de classes, espantalhos do industrialismo. Enfim, estamos diante do “espírito moderno”. Na Ecole Nor- male Supérieure, o jovem David Émile tivera oportunidade de assis- tir às aulas de Boutroux, que assinala os principais traços caracterís- ticos dessa época: progresso da ciência (não mais contemplativa, mas agora transformadora da realidade), progresso da democracia (resultante do voto secreto e da crescente participação popular “ nos negócios públicos), além da generalização e extraordinário piogresso da instrução e do bem-estar. Como corolário desses tra- ços, o mestre neokantiano ressalta as correntes de idéias derivadas, cuja difusão viria encontrar eco na obra de Durkheim: aspira-ss ã constituição de uma moral realmente científica (o progresso moral equiparando-se ao progresso científico); a moral viria a ser consi- derada como um setor da ciência das condições das sociedades humanas (a moral é ela própria um fato social); a moral se con- funde enfim com civilização — o povo mais civilizado é o que tem mais direitos e o progresso moral consiste no domínio cres- cente dos povos cuja cultura seja a mais avançada. * Não é pois de se admirar que essa época viesse também a assistir a uma nova vaga de colonialismo, não mais o colonialismo da caravela ou do barco a vapor, mas agora o colonialismo do navio a diesel, da locomotiva, do aeroplano, do automóvel e de toda a tecnologia implícita e eficiente, além das novas manifestações morais e culturais. Enfim, Durkheim foi um homem que assistiu ao advento e à expansão do neocapitalismo, ou do capitalismo monopolista. Ele não resistiu aos novos e marcantes acontecimentos políticos representados pela Primeira Guerra Mundial, com o apa- recimento simultâneo tanto do socialismo na Rússia como da nova roupagem do neocapitalismo, representada pelo Welfare Siate. 1 Durkheim e os homens de seu tempo Durkheim nasceu em Épinal, Departamento de Vosges, que fica exatamente entre a Alsácia e a Lorena, a 15 de abril de 1858. Morreu em 1917, De família judia, seu pai era rabino e elé próprio teve seu período de misticismo, tornando-se porém agnóstico após a ida para Paris. Aqui, no Lycée Louis-le-Grand (em pleno coração do Quartier Latin, entre a Sorbonne, O Collêge de France e a Fa- culté de Droit), preparou-se para o baccalauréat, que lhe permitiu entrar para a Ecole Normale Superieure. Bastou-lhe, pois, atravessar a praça do Panthéon para atingir a famosa rue d'Ulm, sem sair por- tanto do mesmo quartier, para completar sua formação. Na Normale vai se encontrar com alguns homens que mar- caram sua época. Entra em 1879 e sai em 1882, portando o título 4V. BoutRoux, Émile. La philosophie de Kant, Paris, J. Vrin, 1926. p. 367-69, 16 a Grécia (Glotz), os celtas (Hubert), a China (Granet), o Norte da África (Maunier), o direito romano (Declareuil). Os mais numerosos tornam-se membros da que ficou conhecida como Escola Sociológica Francesa: além de Mauss, Fauconnet, Davy, Halbwachs, Simiand, Bouglé, Lalo, Dupuit, Darbon, Milhau etc. etc. Trata-se na verdade de uma escola que não cerrou as portas. 2. A obra 2.1. Sur posição no desenvolvimento da Sociologia Em artigo publicado em 1900 na Revue Bleue (“La Socio- Jogie en France ao XIXº siêcle”), defende a tese de que a Socio- logia é “uma ciência essencialmente francesa” (DURKHEIM, 1970: p. 111), dado seu nascimento com Augusto Comte. Mas, morto o mestre, a atividade intelectual sociológica de seus discípulos foi sobrepujada pelas preocupações políticas. E a Sociologia imobili- zou-se durante toda uma geração na França. Mas prosseguira, enquanto isso, seu caminho na Inglaterra, com Spencer e o orga- nicismo. A França pós-napoleônica viveu num engourdissement mental, que só se interromperia momentaneamente com a Revolu- ção de 1848 e, posteriormente, com a Comuna de Paris. Durkheim é severo no julgamento do período que o antecedeu de imediato: fala mesmo de uma “acalmia intelectual que desonrou o meado do século e que seria um desastre para a nação” (id., ibid. p. 136). O revigoramento da Sociologia se teria iniciado com Espinas, que introduziu o organicismo na França, ao mostrar que as socie- dades são organismos, distintos dos puramente físicos — são orga- nizações de idéias. Mas para Durkheim tais formulações são pró- prias de uma fase heróica, em que os sociólogos procuram abranger na Sociologia todas as ciências. “É tempo de entrar mais diretamente em relação com os fatos, de adquirir com seu contato o sentimento de sua diversidade e suã especificidade, a fim de diversificar os próprios problemas, de os determinar e aplicar-lhes um método que seja imediata- mente apropriado à natureza especial das coisas coletivas” (id., ibid. p. 125-26). 17 Nada disso podia fazer o organicismo, que não nos dera uma lei sequer. A tarefa a que se propôs Durkheim foi: “em lugar de tratar a Sociologia in genere, nós nos fechamos metodicamente numa ordem de fatos nitidamente delimitados: salvo as excursões necessárias nos domínios limítrofes daquele que exploramos, ocupamo-nos apenas das regras jurídicas e mo- rais, estudadas seja no seu devir e sua gênese [cf. Division du travail] por meio da História e da Etnografia comparadas, seja no seu funcionamento por meio da Estatística [cf. Le suicide). Nesse mesmo círculo circunscrito nos apegamos aos problemas mais e mais restritos. Em uma palavra, esforçamo-nos em abrir, no que se refere à Sociologia na França, aquilo que Comte havia chamado a era da especialidade” (DURKHEIM, 1970: p. 126). Eis, em suas próprias palavras, as linhas mestras de sua obra. Sua preocupação foi orientada pelo fato de que a noção de lei estava sempre ausente dos trabalhos que visavam mais à lite- ratura e à erudição do que à ciência: “A reforma mais urgente era pois fazer descer a idéia socio- lógica nestas técnicas especiais e, por isso mesmo, transformá- -las, tornando realidade as ciências sociais” (id. ibid. p. 127). A superação dessa “metafísica abstrata” exigia um método, tal como o fez em Les rêgles de la méthode sociologique. Mas estas não surgiram de elaborações abstratas “desses filósofos que legiferam diariamente sobre o método so- ciológico, sem ter jamais entrado em contato com os fatos sociais. Assim, somente depois que ensaiamos um certo nú- mero de estudos suficientemente variados, é que ousamos tra- duzir em preceitos a técnica que havíamos elaborado. O mé- todo que expusemos não é senão o resumo da nossa prática” (id, ibid. p. 128). A tarefa a que se propôs era, pois, conscientemente da maior envergadura. Ela se tornou possível no final do século XIX devido à “reação científica” que estava ocorrendo. Nesse sentido, a França “voltava a desempenhar o papel predestinado no desenvolvimento da Sociologia. Dois fatores favoreciam isso: primeiro, o acentuado enfraquecimento do tradicionalismo e, segundo, o estado de espí- 18 rito racionalista, A França é o país de Descartes e, apesar de sua concepção ultrapassada de racionalismo, para superá-lo era mais importante ainda conservar os seus princípios: “Devemos empre- ender maneiras de pensar mais complexas, mas 'conservar esse culto das idéias distintas, que está na própria raiz do espírito fran- cês, como na base de toda ciência” (id., ibid. p. 135). Eis-nos portanto diante de um renascimento do iluminismo, na figura desse Descartes moderno que foi Emile Durkheim. 2.2. Concepção de Ciência e de Sociologia Dentro da tradição positivista de delimitar claramente os obje- tos das ciências para melhor situá-las no campo do conhecimento, Durkheim aponta um reino social, com individualidade distinta dos reinos animal e mineral. Trata-se de um campo com carac- teres próprios e que deve por isso ser explorado através de métodos apropriados. Mas esse reino não se situa à parte dos demais, pos- suindo um caráter abrangente: “porque não existe fenômeno que não se desenvolva na socie- dade, desde os fatos físico-químicos até os fatos verdadeira- mente sociais” ("La Sociologie et son domains scientifique.” Apud CUVILLIER, 1953: p. 179). Nesse mesmo artigo (datado também de 1900), em que con- trapõe suas concepções àquelas formalistas de Simmel, e onde antecipa várias colocações posteriores (como sua divisão da Socio- logia, cf. p. 41), Durkheim fala também de um reino moral, ao concluir que: “a vida social não é outra coisa que o meio moral, ou melhor, o conjunto dos diversos meios morais que cercam o indivíduo” (id., ibid. p. 198). Aproveita para esclarecer o que êntende por fenômenos morais: “Qualificando-os de morais, queremos dizer que se trata de meios constituídos pelas idéias; eles são, portanto, face às cons- ciências individuais, como os meios físicos com relação aos organismos vivos” (id., ibid.). No início de sua carreira Durkheim empregava o termo “ciên- cias sociais”, paulatinamente substituído pelo de “sociologia”, mas reservando aquele ainda para designar as “ciências sociais parti- 19 cutares” (i. é, Morfologia Social, Sociologia Religiosa etc.), que são divisões da Sociologia. Ao iniciar suas funções em Bordeaux, foi convidado a pro- nunciar a aula inaugural do ano letivo de 1887-88, publicada neste último ano sob o título de “Cours de Science Sociale” (DuRkHEIM, 1953: p. 77-110). Ele corresponde na verdade a um programa de trabalho e serve para expressar suas concepções básicas e sua preocupação dominante de limitar e circunscrever ao máximo a ex- tensão de suas investigações. Nesse sentido, a Sociologia constitui “uma ciência no meio de outras ciências positivas” (id., ibid. p. 78). E por ciência positiva entende um “estudo metódico” que conduz ao estabelecimento das leis, mais bem feito pela experimen- tação: “Se existe um ponto fora de dúvida atualmente é que todos os seres da natureza, desde o mineral até o homem, dizem respeito à ciência positiva, isto é, que tudo se passa segundo as leis necessárias” (id., ibid. p. 82). Desde Comte a Sociologia tem um objeto, que permanece entretanto indeterminado: ela deve estudar a Sociedade, mas a Sociedade não existe: “Il y a des sociétés” (id., ibid. p. 88) — que se classificam em gêneros e espécies, como os vegetais e os animais. Após repassar os principais autores que lidaram com essa disciplina, conclui: “Ela [a Sociologia] tem um objeto claramente definido e um método para estudá-lo. O objeto são os fatos sociais; o método é a observação e a experimentação indireta, em outros termos, o método comparativo. O que falta atualmente é traçar os quadros gerais da ciência e assinalar suas divisões essenciais. (...) Uma ciência não se constitui verdadeiramente senão quando é dividida e subdividida, quando compreende um certo número de problemas diferentes e solidários entre si” (id. ibid. p. 100). O domínio da ciência, por sua vez, corresponde ao universo empírico e não se preocupa senão com essa realidade. No men- cionado artigo publicado na Revue Bleue, e antes de tratar do tema a que se propusera, faz algumas considerações de grande in- teresse, para mostrar como a Sociologia é uma ciência que se constitui num momento de crise — “O que é certo é que, no dia em que passou a tempestade revolucionária, a noção da ciência so- 20 cial se constituir como por encantamento” (id., ibid. p. 115) — e quando domina um vivo sentimento de unidade do saber humano. Parte de uma distinção entre ciência e arte. Aquela estuda os fatos unicamente para os conhecer e se desinteressa pelas apli- cações que possam prestar às noções que elabora. A arte, ao contrário, só os considera para saber o que é possível fazer com eles, em que fins úteis eles podem ser empregados, que efeitos inde- sejáveis podem impedir que ocorram e por que meio um ou outro resultado pode ser obtido. “Mas não há arte que não contenha em si teorias em estado imanente” (id., ibid. p. 112).º “A ciência só aparece quando o espírito, fazendo abstração de toda preocupação prática, aborda as coisas com o único fim de representá-las” (id., ibid. p. 113). Porque estudar os fatos unica- mente para saber o que eles são implica uma dissociação entre teoria € prática, o que supõe uma mentalidade relativamente avan- cada, como no caso de se chegar a estabelecer leis — relações ne- cessárias, segundo a concepção de Montesquieu. Ora, com respeito à Sociologia, Durkheim concebe que as leis não podem penetrar senão a duras penas no mundo dos fatos sociais: “e isto foi o que fez com que a Sociologia não pudesse aparecer senão num momento tardio da evolução científica” (id., ibid.). Esta é uma idéia repetidas vezes encontrada nos vários artigos que Durkheim publicou na virada do século, como, por exemplo, na mencionada aula inaugural de Bordeaux. Fica evidente que, apesar do seu desenvolvimento tardio, a Sociologia é fruto de uma evolução da ciência. Ela nasce à sombra das ciências naturais; eis a idéia final do mencionado artigo a propósito de Simmel: a Sociologia não corresponde a uma sim- ples adição ao vocabulário, a esperança é a de que “ela seja e permaneça o sinal de uma renovação profunda de todas as ciên- cias que tenham por objeto o reino humano” (apud CUVILLIER, 1953: p. 207). * Observe-se que Durkheim está usando arte não no sentido estético, mas no sentido técnico, tal como se fazia na distinção que nos vem desde a antigiiidade, entre: artes mecânicas (carpintaria, por ex.), belas-artes Cpin- tura, por ex.) e artes liberais (cf. O trivium e O quadrivium que formavam as sete artes do programa pedagógico greco-romano), sendo estas desti- nadas a liberar o espírito. V. LALANDE. “Art” Vocabulaire technique et critique de la philosophie. 21 3. O método Les rêgles de la méihode sociologique (1895) constitui a primeira obra exclusivamente metodológica escrita por um soció- logo e voltada para a investigação e explicação sociológica. E importante ressaltar sua própria posição cronológica: publicada depois de Division du travail social (tese de doutoramento em 1893), seus princípios metodológicos são inferidos dessa investi- gação (ainda que não fosse trabalho de campo); tais princípios por sua vez são postos à prova e aplicados numa monografia exemplar que é Le suicide (1897), em que a manipulação de variáveis e dados empíricos é feita pela primeira vez num trabalho sociológico sistemático e devidamente delimitado. Simultaneamente com a elaboração dessa monografia em que utiliza o método estatístico, Durkheim organiza uma outra de menor porte em 1896 (“La prohibition de Vinceste et ses origines.” DUR- XHEIM, 1969: p. 37-101), e onde o método de análise de dados etnográficos é aplicado numa perspectiva sociológica. Esta linha de investigação tem prosseguimento na sua não menos importante monografia publicada em 1901-02 — “De quelgues formes primi- tives de classification” (id., ibid. p. 395-460), elaborada de par- ceria com Mauss. Estas duas monografias antecipam a última fase metodológica de Durkheim, que culmina com a publicação retati- vamente tardia de Les formes élémentaires de la vie religicuse (1912). Essa fase é de grande originalidade do ponto de vista metodo- lógico, na medida em que a manipulação de dados etnográficos permite a análise de representações coletivas, que são encaradas, num sentido estrito, como representações mentais ou, melhor dito, representações simbólicas que, por sua vez, são imagens da reali- dade empírica. Em outros termos, Durkheim empreende os pri- meiros delineamentos da sociologia do conhecimento. Sua origina- lidade consiste em que, através da análise das religiões primitivas — o totemismo como sua forma primeira e mais simples —, pode- -se perceber como os homens encaram a realidade e constroem uma certa concepção do mundo e, mais ainda, como eles próprios se organizam hierarquicamente, informados por tal concepção. Como se viu, a sucessiva introdução de elementos enriquecedores da análise adquire um significado metodológico especial, pois cons- 26 alternativa (tal como estava formulada) e fez com que teoria fosse muito mais veraz” (STINCHCOMBE, 1970: cap. esp. p. 36). * Madge, enfim (last but not least), mostra como Durkhei escolheu esse tema por três razões: 1) o termo “suicídio” pos ria ser facilmente definido; 2) existe muita estatística a respeil 3) é uma questão de considerável importância. “Durkheim estava absolutamente seguro de sua tarefa, que e; demonstrar que as ciências sociais podem examinar uma ques: social importante, sobre a qual outras pessoas haviam filosofal por muito tempo, e pôde mostrar, mediante a apresentação si temática de fatos existentes, que é possível chegar a conclusõ úteis que podem ajudar com proposições práticas as ações turas” (MADGE, 1967: cap. 2, esp. p. 16). 3.2. Posição metodológica Les Rêpgles constituem um esforço sistemático com vistas elaboração de uma “teoria da investigação sociológica” (FERNA DES, 1959: p. 78), voltada para a busca de regularidades que s próprias do “reino social” e que permitem explicar os fenômens que ocorrem nesse meio sem precisar tomar explicações emprest: das de outros reinos. A posição metodológica de Durkheim é, conseguinte, estritamente sociológica, a tal ponto que se torna di cil enquadrá-lo numa determinada corrente sociológica sem corr o risco de tomar a parte pelo todo. Assim, por exemplo, sua tipologia social evolutiva estabel: cida a partir da solidariedade social mecânica e orgânica pode) sugerir, tal como as primeiras páginas de La division du tray: poderiam confirmar, que se trata meramente de um organicist: Mas o problema não se coloca de maneira tão simplista. Pai compreendê-lo é preciso levar em conta o ambiente intelectu: do século XIX, quando surgiu, principalmente na Inglaterra me; gulhada no industrialismo, uma reação contra à concepção meci nica da sociedade, fruto desse mesmo industrialismo e na qual divisão do trabalho se apresentava como uma grande conquis! do espírito inventivo do homem. Essa reação visava antes de tudo a uma valorização do home: para superar à excessiva valorização da máquina. Daí uma sé de esforços no sentido de uma concepção orgânica da sociedad 27 que instruiu tanto concepções conservadoras — tal como a de Spencer — quanto socialistas — tal como a de John Ruskin. 1º Na verdade, qualquer tentativa de simplesmente explicar o social pelo orgânico esbarraria com os preceitos metodológicos explici- tados nas Rêgles. Ao concluir Les rêgies, Durkheim sintetiza seu método em três pontos básicos: a) independe de toda filosofia; b) é objetivo; c) é exclusivamente sociológico — e os fatos sociais são antes de tudo coisas sociais. Buscando uma “emancipação da Sociolo- gia” (DuRKHEIM, 1895: p. 140) e procurando dar-lhe “uma per- sonalidade independente” (id., ibid. p. 143) diz claramente nas páginas finais “Fizemos ver que um fato social não pode ser explicado senão por um outro fato social e, ao mesmo: tempo, mostramos como esse tipo de explicação é possível ao assinalar no meio social interno o motor principal da evolução coletiva. A Socio- logia não é, pois, o anexo de qualquer outra ciência; é, ela mesma, uma ciência distinta e autônoma, e o sentimento do que tem de especial a realidade social é de tal maneira ne- cessário ao sociólogo, que apenas uma cultura especialmente sociológica pode prepará-lo para a compreensão dos fatos so- ciais” (id, ibid.). Assim, o enquadramento que se pode fazer de Durkheim numa ou noutra corrente sociológica só é válido para aspectos parciais de sua obra. Florestan Fernandes ressalta que “a primeira formulação adequada dos fenômenos de função e da utilização da explicação funcionalista na Sociologia surge com A Divisão do Trabalho Social e As Regras do Método Sociológico de Durkheim” (FERNANDES, 1959: p. 204-05). Em sua obra metodológica Dur- O termo orgânico ocupa uma importante posição entre os saint-simonia- nos. Para eles o desenvolvimento -da humanidade se alternou em “é épocas críticas” (períodos de crise, de negação, de dissolução) e “épocas orgânicas” (períodos em que reina um pensamento unificado e uma concepção cole- tiva da vida). Tal emprego é feito pelo carbonário Buchez (cf. ISAMBERT, Fr-André. “Époques critiques et épogues organiques. Une contribution de Buchez à Félaboration de la théorie sociale des saint-simoniens.” Cahiers Internationaur de Sociologie. 1959. vw. XXVII (nova série), p. 131-52, esp. p. 140) e pejas exposições gerais dessa escola (cf. BouoLÉ e Hacfvr (org). Doctrine de Saint-Simon. Exposition, premiêre année, 1829. Nova ed. Paris, Marcel Riviêre, 1924. Segunda sessão, p. 157-78, esp. p. 161). As con- cepções são diferentes, mas é certo que se tratava de um termo em voga, antes do advento do organicismo. Cf. também WiLLtams, Raymond. Cultura e Sociedade. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1969. cap. VIT, esp. p. 152-55. 28 kheim coloca a explicação, posteriormente chamada funcionalista (embora não revestida de preocupações teleológicas que, segundo ele, levariam a confusões com a filosofia), entre outras explicações que não se enquadram nessa corrente e mesmo a contradizem. Assim ocorre com a explicação genética, que tanto repudiam os funcionalistas modernos. 15 Em suas obras posteriores, a abordagem funcionalista está ausente (Le suicide) ou aparece esporádica e secundariamente (Les formes élémentaires de la vie religieuse). Outras caracterizações comumente feitas de Durkheim engua- dram-no como sociologista e/ou positivista. Sua caracterização como sociologista, tal como faz Sorokin, por exemplo, coloca-o ag lado de Comte e serve sobretudo para marcar uma linha divisória entre Durkheim e Tarde, este caracterizado como Psicologista (SoroxIN, 1938: cap. VIII, esp. p. 329 et segs.). A divergência básica consiste na precedência ou proeminência do indivíduo e da sociedade. Durkheim, na medida em que desenvolve sua teoria mediante a adoção de conceitos básicos de coerção, solidariedade, autoridade, representações coletivas ete., está na realidade funda- mentalmente preocupado com à manutenção da ordem social. Nesse sentido, sua posição é antiatomista e se antepõe à abordagem de Spencer e Tarde sobretudo, essencialmente individualistas e em linha com a tradição liberal do século XIX com que, na medida em que o indivíduo busca sua realização pessoal (sobretudo sua riqueza), estará contribuindo para o bem-estar social. A posição durkhei- miana à propósito das relações indivíduo-sociedade talvez seja uma das mais universais e coerentes em toda a sua obra. Apesar de uma interpretação muito pessoal — que não vem ao caso discutir aqui — das formulações durkheimianas, Parsons Tessalta que a metodologia de Durkheim é a do “positivismo socio- logista” (PARSONS, 1968: v, 1 cap. IX, p. 460 e segs.; para as citações a seguir, ver Pp. 307, 61 e 343 respectivamente). 1º Identi- 15 Coser, 1971: p. 141, reconhece O conceito de função como desempe- nbando um papel crucial na obra de Durkheim, mas assinala igualmente a ocorrência de outros procedimentos analíticos. 180 enquadramento feito por Parsons de Durkheim como um positivista foi formalmente contestado por Porg (1973: p. 400) em artigo recente, Aquela interpretação estaria baseada numa acumulação de erros cometidos por Parsons. Na opinião de Pope, sempre Durkheim permaneceu um rea- lista social, que jamais busecu outras explicações para os fenômenos sociais senão nos fatores sociais. 29 cando-o como “herdeiro espiritual de Comte”, seu Positivismo nplica “o ponto de vista de que a ciência positiva constitui a nica posição cognitiva possível” do homem face à realidade externa. 'arsons ressalta que a originalidade de Durkheim está em diferen- iar-se de seus antecessores, para quem a tradição positivista tinha ido predominantemente individualista. Ele elevou o “fator social o status de elemento básico e decisivo para explicar os fenômenos vue tinham lugar no “reino social”, e que o social só se explica elo social e que a sociedade é um fenômeno sui generis, indepen- lente das manifestações individuais de seus membros componentes. “arsons chama à atenção para o fato de que na obra metodológica nais antiga de Durkheim (Division du travai!) se encontram duas inhas principais de pensamento: “Uma, polêmica, é uma crítica do nível metodológico das con- cepções subjacentes do individualismo uitilitarista. Outra, sua própria doutrina, é um desenvolvimento da tradição positivista geral, a que a maior parte do argumento deste estudo se refere”. Com efeito, a clareza das posições conceituais de Durkheim obedece a uma constante metodológica: discute primeicamente as zoncepções correntes (vulgares ou não) a Tespeito de pm fenôme. no, para, em seguida, apresentar a sua própria, soli ame ane truída em termos coerentes com uma interpretação estril sociológica. Após a análise e interpretação dos dados empéticos, dar cussão teórica do problema é ad Do fem pe a ões que não só caracterizem em À t dido, mas constituam também acréscimo Salorativo des emos anteriormente elaboradas. Nesse sentido, Le suicide gi dias constituem modelos de trabalho científico no campo du sociais e a demonstração de como fazer um estu o, a aii fenômeno isolado, seja de um fenômeno de delimitação ida cil. Este é o caso da vida religiosa, em que 9 A Csiosas da análise foi localizado no estudo das ita as mais antigas e, por conseguinte, mais simples — oie o enô. para se atingir em seguida os aspectos mais come Ds tesiana meno. Concretiza-se, assim, a já mencionada influênc sobre a metodologia durkheimiana. 30 4. O esquema teórico O esquema aqui apresentado para sintetizar a teoria socio- lógica durkheimiana constitui antes uma leitura dessa teoria que uma criação original propriamente dita do chefe da Escola Socio- lógica Francesa. Nesse sentido, corresponde a uma certa violen- tação, justificada porém numa coleção para fins didáticos. Assim, o esquema funciona como um guia para o leitor, visando à inte- gração dos textos adiante selecionados. O leitor pode encontrar no esquema os principais elementos contidos na teoria durkheimiana, mas, evidentemente, não encontra ali suas formulações. Estas podem ser encontradas nos textos sele- cionados, os quais podem ser melhor situados no conjunto da obra de Durkheim e no esquema em foco, onde as vinculações entre as partes selecionadas da obra podem ser vistas, ainda que esque- matizadas; o que é, a um só tempo, defeito e qualidade do esquema. Assim sendo, o esquema não explica propriamente a teoria, mas é explicado por ela — ou pretende sê-lo, na forma em que foi graficamente construído. O esquema pretende ser tanto diacrônico como sincrônico, por se supor que ambas as diretivas podem ser encontradas na teoria sociológica de Durkheim. A diacronia é representada horizontal- mente, tendo a solidariedade social — ponto de partida da teoria durkheimiana ao iniciar seus cursos em Bordeaux — como ponto de partida também da organização social; e a anomia como fim desta, melhor dito, quando ela afrouxa seus laços e permite a desorganização individual, ou ausência dos liames e normas da solidariedade. A sincronia é simultaneamente representada na ver- tical — tal como uma estrutura” — a partir de um fundamento “7 “Sem dúvida, os fenômenos que concernem à estrutura têm qualquer coisa de mais estável que os fenômenos funcionais, mas entre as duas ordens de fatos não existem senão diferenças de graus. A própria estrutura se reencontra no vir a ser [deveniy] e não se pode esclareçê-la senão com à condição de não perder de vista esse processo de vir a ser Ela se forma e se decompõe sem cessar; ela é a vida que atingiu um certo grau de consolidação & distinguita da vida de onde ela deriva ou da vida que ela determina, equivale a dissociar coisas inseparáveis” (apud CUVILIIER, (953: Pp. 190). Cuvillier, em noa a essa página, diz: “Vêse aqui o quanto é falso se acusar Durkheim, tal como ainda se faz comumente ipor Gur- viteh], de não ter percebido senão o lado cristalizado, estereotipado Ifigé] «da vida social”. Sagrado Profato: FISIOLOGIA SOCIAL E GONSCIENCIA COLETIVA: | GRUPOS E. INSTITUIÇÕES “Breno 'Repressivo SOCIEDADE icompleso : Integrado de = datos sociais] ! t I ! ! tipo aee 1 / 1 I 1 1 4 ————» ij: MECANICA ORGÂNICA coerção INDIVIDUO; | MORBOLOGIA SOCIAL: ANISOS. agveniuvanos 36 Crark, Terry Nichols. Prophets and Patrons: The French University and the Emergence of the Social Sciences. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1973. Coser, Lewis A. Masters of Sociological Thought. New York, Har- court, Brace, Jovanovich, 1971. CuviLLIER, Armand. Oi va la sociologie française? Avec un étude Émile Durkheim sur la sociologie formaliste. Paris, Marcel Ri- vitre, 1953. Davy, Georges. Sociologues d'hier et d'aujourd'hui. 2 ed., revista e aumentada. Paris, Presses Universitaires de France, 1950. Duvicnau, Jean. Durkheim. Sa vie, son euvre. Avec un exposé de sa philosophie par —. Paris, PUF, 1965. FERNANDES, Florestan. Fundamentos Empíricos da Explicação Socio- lógica. (12 ed. 1959) São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972. FiLLoUx, Jean-Claude. Durkheim et le socialisme. Genêve, Droz, 1977. GiANNOTTI, José Arthur. “A Sociedade como Técnica da Razão: Um Ensaio sobre Durkheim." In: Seleções CEBRAP, Exercícios de Filo- sofia. n.º 2, p. 43-84 (São Paulo, 1975). 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SrincHcomBE, Arthur L. La Construcción de Teorías Sociales. Buenos Aires, Nueva Visión, 1970. TiRYAKIAN, Edward A. The Phenomenon of Sociology. New York, Appleton-Century-Crofts, 1971. Notas complementares Em 1978 constituiu-se, junto à Maison des Sciences de PHomme (54 bd Raspail, 75270, Paris) o Groupe d'études dur- kheimienne, animado por Philippe Besnard e que publica um Boletim de Informação intitulado Etudes Durkheimiennes. Trata- -se da principal fonte de informações atualizadas sobre a vida e a obra de Émile Durkheim, bem como sobre a chamada Escola Sociológica Francesa. Nesse Boletim colaboram especialistas em Durkheim de todo o mundo, e isto constitui o grande tributo pago pelos estudiosos contemporâneos ao grande sociólogo francês. O referido Boletim registra regularmente todas as recentes publica- gões sobre Durkheim, completando assim as bibliografias de Lukes 38 e de Karady. Esse registro contém ainda informações sobre tra- duções das obras de Durkheim em várias línguas, especialmente 9 espanhol e o japonês. A bibliografia de Durkheim foi objeto de um complemento no n.º 2 do Boletim (jun. 1978) de uma forma sistemática. O prof. Howard F. Andrews organizou um “Analytical Re- search Guide” (Boletim, n.º 5, out, 1980, p. 5-15) sobre L'Année Sociologique, que pode ser consultado mediante correspondência para o autor: Erindale College, University of Toronto, Mississauga, Ontario, LSL 1€G, Canadá. O guia contém índices por autor, por titulos e resenhas, bem como um índice por assuntos, além de tabulações de fregiiências e cruzamentos. O guia está disponível também junto ao referido Groupe d'études durkheimiennes. Cons- tatou o prof. Andrews que L'Année publicou 1 767 resenhas com- pletas (sobre 2 003 obras), 1 162 resenhas curtas (sobre 1215 obras) e 1553 notícias (sobre 1 581 obras), no período de du- ração da revista (1896-1912), ou seja, 12 volumes. Na Alemanha foi constituído o Soziologischer Arbeitskeis Emile Durkheim, cuja primeira reunião teve lugar em Bad Homburg de 10 a 12 de fevereiro de 1982. O animador do grupo é o prof. Werner Gephart (Sozialwissenschafiliches Institut, Universitat Diisseldorf, Universitátsstrasse 1, 4000 Diisseldorf). O grupo reúne especialistas interessados na obra de Durkheim e sua escola, e procura suprir o atraso na recepção de Durkheim na Alemanha, sobretudo quando comparado à maior recepção de Weber na França. Está sendo programada uma edição em alemão das obras de Durkheim, que reunirá publicações avulsas já feitas, devida- mente melhoradas e completadas. | OBJETO E METODO 1. DIVISÕES DA SOCIOLOGIA AS CIÊNCIAS SOCIAIS PARTICULARES * Mas se, num certo sentido, a Sociologia é uma ciência. una, não tcixa de abranger uma pluralidade de questões e, portanto, de “iências particulares. Vejamos, pois, quais são estas ciências de que ela *o corpus. Comte já havia sentido a necessidade de dividi-la: distinguia duas artes, a Estática e a Dinâmica sociais. A Estática estuda as sociedades "onsideradas fixas num momento de sua evolução e pesquisa as leis le seu equilíbrio. A cada momento, os indivíduos e os grupos por eles vrmados unem-se por laços de um certo tipo, que asseguram a coesão wcial, e os diversos estados de uma mesma civilização sustentam entre si conexões definidas: a um determinado estado da ciência, por exem- lo, corresponde um certo estado da religião, da moral, da arte, da ndústria etc. A Estática tenta assim mostrar em que consistem esses mços de solidariedade e essas conexões. A Dinâmica, ao contrário, “onsidera as sociedades na sua evolução e se empenha em descobrir a lei de seu desenvolvimento. Mas o objeto da Estática, tal como Comte 1 entendia, não é muito bem determinado pela maneira como resulta definição que acaba de ser dada: da mesma forma, ela ocupa apenas gumas páginas do Cours de philosophie. A maior parte é ocupada pela Dinâmica. Ora, o problema de que trata a Dinâmica é um só: segundo Comte, uma única lei domina a segiência da evolução; é a famosa lei dos três estados. ! Pesquisar esta lei seria o único objeto a Dinâmica Social. Assim entendida, a Sociologia se reduziria pois n uma só questão, se bem que, no dia em que esta questão fosse resol- vida — e Comte acreditava ter encontrado a solução definitiva —, a + Reproduzido de DuRKHEIM, E. “Sociologie et Sciences Sociales.” In: La science suciale et Faction. Paris, PUF, 1970. p. 137-53. Trad. por Laura Natal Rodrigues. Pa lei em virtude da qual a humanidade teria passado sucessivamente e deveria ecessariamente passar por três épocas: a idade teológica, depois a idade meta- “nicn e enfim a idade da ciência positiva. 2. O QUE É FATO SOCIAL? * Antes de indagar qual o método que convém ao estudo dos fatos sociais, é necessário saber que fatos podem ser assim chamados. A questão é tanto mais necessária quanto esta qualificação é utilizada sem muita precisão; Empregam-na correntemente para designar quase todos os fenômenos que se passam no interior da sociedade, por pouco que apresentem, além de certa generalidade, algum interesse social. Todavia, desse ponto de vista, não haveria por assim dizer ne- nhum acontecimento humano que não pudesse ser chamado de social. Cada indivíduo bebe, dorme; come, raciocina e a sociedade tem todo o interesse em que estas funções se exerçam de modo regular. Porém, se todos esses fatos fossem sociais, a Sociologia não teria objeto pró- prio e seu domínio se confundiria com o da Biologia e da Psicologia. Na verdade, porém, há em toda sociedade um grupo determinado de fenômenos com caracteres nítidos, que se distingue daqueles estu- dados pelas outras ciências da natureza. Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo ou de cidadão, quando me desincumbo de encargos que contraí, pratico deve- res que estão definidos fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos que me são próprios, sentindo-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação. Contudo, quantas vezes não ignoramos o detalhe das obri- gações que nos incumbe desempenhar, e precisamos, para sabê-lo, con- sultar o Código e seus intérpretes autorizados! Assim também o devoto, * Reproduzido de DurkHeim, E. “O que é fato social?” In: As Regras do Método Sociológico. Trad. por Maria Isaura Pereira de Queiroz. 6.2 ed. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972. p. 1-4, 5, 8-1L. . 47 ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O sistema de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de moedas que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo nas relações comerciais, as práticas seguidas na profissão, ete., etc., funcionam independentemente do uso que delas faço. Tais afirmações podem ser estendidas a cada um dos membros de que é composta uma sociedade, tomados uns após outros. Estamos, pois, diante de maneiras de agir, de pensar e de sentir que apresentam a propriedade marcante de existir fora das consciências individuais. Esses tipos de conduta ou de pensamento não são apenas exte- riores ao indivíduo, são também dotados de um poder imperativo e coercitivo, em virtude do qual se lhe impõem, quer queira, quer não. Não há dúvida de que esta coerção não se faz sentir, ou é muito pouco sentida quando com ela me conformo de bom grado, pois então torna-se imútil. Mas não deixa de constituir caráter intrínseco de tais fatos, e a prova é que se afirma desde que tento resistir. Se experimento violar as leis do direito, estas reagem contra mim de maneira a impedir meu ato se ainda é tempo; com o fim de anulá-lo e restabelecê-lo em sua forma normal se já se realizou e é reparável; ou então para que eu o expie se não há outra possibilidade de reparação. Mas, e em se tratando de máximas puramente morais? Nesse caso, a consciência pública, pela vigilância que exerce sobre a conduta dos cidadãos e pelas penas especiais que têm a seu dispor, reprime todo ato que a ofende. Noutros casos, 'a coerção é menos violenta; mas não deixa de existir. Se não me submeto às convenções mundanas, se, ao me vestir, não levo em consideração os usos seguidos em meu país e na minha classe, o riso que provoco, o afastamento em que os outros me conservam, produzem, embora de maneira mais atenuada, os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Noutros setores, embora a coerção seja apenas indireta, não é menos eficaz. Não estou obrigado a falar o mesmo idioma que meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas é impossível agir de outra maneira. Minha tentativa fracas- saria lamentavelmente, se procurasse escapar desta necessidade. Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos e técnicas do século passado; mas, se o fizer, terei a ruína como resultado inevi- tável. Mesmo quando posso realmente me libertar destas regras e violá- -tas com sucesso, vejo-me sempre obrigado a lutar contra elas. E quando são fimalmente vencidas, fazem sentir seu poderio de maneira suficien- temente coercitiva pela resistência que me opuseram. Nenhum inovador, por mais feliz, deixou de ver seus empreendimentos se chocarem contra oposições deste gênero. Estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta carac- teres muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não poderiam se con- fundir com os fenômenos orgânicos, pois consistem em representações e em ações; nem com os fenômenos psíquicos, que não existem senão na consciência individual e por meio dela. Constituem, pois, uma espé- cie nova e é a eles que deve ser dada e reservada a qualificação de sociais. Esta é a qualificação que lhes convém; pois é claro que, não tendo por substrato o indivíduo, não podem possuir outro que não seja a sociedade: ou a sociedade política em sua integridade, ou qual- quer um dos grupos parciais que ela encerra, tais como confissões reli- giosas, escolas políticas e literárias, corporações profissionais, etc. Por outro lado, é apenas a eles que a apelação convém; pois a palavra social não tem sentido definido senão sob a condição de designar unicamente fenômenos que não se englobam em nenhuma das cate- gorias de fatos já existentes, constituídas e nomeadas. Estes fatos são, pois, o domínio próprio da Sociologia. É verdade que o termo coerção, por meio do qual o definimos, corre o risco de amedrontar os zelosos partidários de um individualismo absoluto, Como professam que o indi- víduo é inteiramente autônomo, parece-lhes que o diminuímos todas as vezes que fazemos sentir que não depende apenas de si próprio. Porém, já que hoje se considera incontestável que a maioria de nossas idéias e tendências não são elaboradas por nós, mas nos vêm de fora, con- clui-se que não podem penetrar em nós senão através de uma imposi- ção; eis todo o significado de nossa definição. Sabe-se, além disso, que toda coerção social não é necessariamente exclusiva com relação à personalidade individual. (...) Esta definição do fato social pode, além do mais, ser confirmada por meio de uma experiência característica: basta, para tal, que se observe a maneira pela qual são educadas as crianças. Toda a educação consiste num esforço contínuo para impor às crianças maneiras de ver, de sentir e de agir às quais elas não chegariam espontaneamente, — observação que salta aos olhos todas as vezes que os fatos são enca- 49 ados tais quais são e tais quais sempre foram. Desde os primeiros nos de vida, são as crianças forçadas a comer, beber, dormir em horas agulares; são constrangidas a terem hábitos higiênicos, a serem calmas obedientes; mais tarde, obrigamo-las a aprender a pensar nos demais, respeitar usos e conveniências, forçamo-las ao trabalho, etc., etc. Se, om o tempo, esta coerção deixa de ser sentida, é porque pouco à ouco dá lugar a hábitos, a tendências internas que a tornam inútil, as que não a substituem senão porque dela derivam. É verdade que, egundo Spencer, uma educação racional deveria reprovar tais proce. imentos e deixar a criança agir em plena liberdade; mas como esta soria pedagógica não foi nunca praticada por nenhum povo conhecido, ão constitui senão um desiderato pessoal, não sendo fato que possa er oposto àqueles que expusemos atrás. Ora, estes últimos se tornam rarticularmente instrutivos quando lembramos que a educação tem justa- nente por objeto formar o ser social; pode-se então perceber, como que rum resumo, de que maneira este ser se constitui através da história. 4 pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão lo meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão de que tanto »s pais quanto os mestres não são senão representantes. e interme- tiários. (...) Chegamos assim a conceber de maneira precisa qual o domínio ia Sociologia, o qual não engloba senão um grupo determinado de enômenos. O fato social é reconhecível pelo poder de coerção externa [ue exerce ou é suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença leste poder é reconhecível, por sua vez, seja pela existência de alguma anção determinada, seja pela resistência que o fato opõe a qualquer mpreendimento individual que tenda a violentá-lo. Todavia, podemos lefini-lo também pela difusão que apresenta no interior do grupo, desde ue, de acordo com as precedentes observações, se tenha o cuidado de crescentar como característica segunda e essencial que ele existe inde- endentemente das formas individuais que toma ao se difundir. Nalguns asos, este último critério é até mesmo mais fácil de aplicar do que o nterior. Com efeito, a coerção é fácil de constatar quando ela se traduz o exterior por qualquer reação direta da sociedade, como é o caso m se tratando do direito, da moral, das crenças, dos usos, € até das 1odas. Mas, quando não é senão indireta, como a que exerce uma rganização econômica, não se deixa observar com tanta facilidade. ieneralidade e objetividade combinadas podem então ser mais fáceis e estabelecer. A segunda definição não constitui senão uma forma 50 diferente que toma a primeira: pois o comportamento que existe exte- riormente às consciências individuais só se generaliza impondo-se a estas. 1 Poder-se-ia, todavia, perguntar se esta definição é completa. Com efeito, os fatos que nos forneceram a base para ela são todos eles modos de agir; são de ordem fisiológica. Ora, existem também maneiras de ser coletivas, isto é, fatos sociais de ordem anatômica ou morto- lógica. A Sociologia não se pode desinteressar daquilo que concerne ao substrato da vida coletiva. No entanto, o número e a natureza das partes elementares de que é composta a sociedade, a maneira pela qual estão dispostas, o grau de coalescência a que chegaram, a distribuição da população na superfície do território, o número e a natureza das vias de comunicação, a forma das habitações, ete., não parecem, a um pri- meijro exame, passíveis de se reduzirem a modos de agir, de sentir e de pensar. Contudo, em primeiro lugar, apresentam estes diversos fenômenos o mesmo traço que nos serviu para definir os outros. Do mesmo modo que as maneiras de agir de que já falamos, também as maneiras de ser se impõem aos indivíduos. De fato, quando queremos conhecer como está uma sociedade dividida politicamente, como se compõem estas divisões, a fusão mais ou menos completa que existe entre elas, não é com o auxílio de uma investigação material e por meio de obser- vações geográficas que poderemos alcançá-lo; pois estas divisões são 1 Vemos o quanto esta definição do fato social se afasta daquela que serve de base ao engenhoso sistema de Tarde. Primeiramente, devemos declarar que as pesquisas não nos fizeram de modo algum constatar a influência preponderante que Tarde atribui à imitação na gênese dos fatos coletivos. Além do mais, da definição precedente (que não é uma teoria, mas um simples resumo dos dados imediatos da observação) parece resultar que a imitação não exprime sempre, e nem mesmo exprime nunca, o que há de essencial e característico no fato social. Não há dúvida de que todo fato social é imitado; apresenta, como aca- bamos de mostrar, tendência para se generalizar, mas isto porque é social, isto é, obrigatório. Seu poder de expansão não é a cansa e sim a consegilência de seu caráter sociológico. A imitação poderia servir, se não para explicar, pelo menos para definir os fatos sociais, se ainda estes fossem os únicos a produzir esta consegiiência, Mas um estado individual que ricocheteia não deixa por isso de ser individual. E, mais ainda, podemos indagar se o termo imitação é real- mente aquele que convém para designar uma propagação devida a uma influência coercitiva. Sob esta expressão única imitação — confundem-se fenômenos muito diferentes que seria necessário distinguir. 51 morais, ainda quando apresentam algum ponto de apoio na. natureza física. É somente através do direito público que se torna possível estudar tal organização, pois é ele que a determina, assim como determina nossas relações domésticas e cívicas. Tal organização não é, pois, menos obrigatória do que outros fatos sociais, Se a população se comprime nas cidades em lugar de se dispersar nos campos, é porque existe uma corrente de opinião, uma pressão coletiva que impõe aos indivíduos esta concentração. Não podemos escolher a forma de nossas casas, nem a de nossas roupas; pois uma é tão obrigatória quanto a outra. As vias de comunicação determinam de maneira imperiosa o sentido em que se fazem as migrações interiores e as trocas, e mesmo até a intensidade de tais trocas e tais migrações, etc., etc. Por conseguinte, haveria, no máximo, possibilidade de acrescentar à lista de fenômenos que enume- ramos como apresentando o sinal distintivo do fato social uma categoria a mais, a das maneiras de ser; e como aquela enumeração nada tinha de rigorosamente exaustiva, a adição não era indispensável. Mas não seria nem mesmo útil; pois tais maneiras de ser não passam de maneiras de agir consolidadas. A estrutura política de uma sociedade não é mais do que o modo pelo qual os diferentes segmentos que a- compõem tomaram o hábito de viver uns com os outros. Se suas relações são tradicionalmente estreitas, os segmentos tendem a se con- fundir; no caso contrário, tendem a se distinguir. O tipo de habitação a nós imposto não é senão a maneira pela qual todo o mundo, em nosso redor — e em parte as gerações anteriores —, se acostumaram a construir as casas. As vias de comunicação não passam de leitos que a corrente regular das trocas e das migrações, caminhando sempre no mesmo sentido, cavou para si própria, etc. Sem dúvida, se os fenô- menos de ordem morfológica fossem os únicos a apresentar esta fixidez, poder-se-ia acreditar que constituem uma espécie à parte. Mas as regras jurídicas constituem arranjos não menos permanentes do que os tipos de arquitetura e, no entanto, são fatos fisiológicos. A simples máxima moral é seguramente mais maleável; porém, apresenta formas muito mais rígidas do que os meros costumes profissionais ou do que à moda, Existe toda uma gama de nuanças que, sem solução de continuidade, liga os fatos de estrutura mais característicos a estas livres correntes da vida social que não estão ainda presas a nenhum molde definido. O que quer dizer que não existem entre eles senão diferenças no grau de consolidação que apresentam. Uns e outros não passam de vida mais ou menos cristalizada. Pode, sem dúvida, ser mais interessante reservar 56 dade estética não se subordina a nenhum fim útil; ela se desenvolve pelo simples prazer de se desenvolver. Do mesmo modo, a especulação pura é o pensamento liberto de qualquer fim utilitário e exercido com o único fim de exercitar-se. Quem poderia contestar, entretanto, que a humanidade sempre colocou os valores artísticos e especulativos bem acima dos valores econômicos? Como a vida intelectual, a vida moral tem uma estética que lhe é peculiar. As mais altas virtudes não con- sistem na prática regular e estrita dos atos mais imediatamente neces- sários à boa ordem social; mas são feitas de movimentos livres e espon- tâneos, de sacrifícios desnecessários e que mesmo, por vezes, são con- trários aos preceitos de uma economia prudente. Existem virtudes que são verdadeiras loucuras, e é nesta loncura que reside sua grandeza. Spencer pôde demonstrar que a filantropia é muitas vezes contrária ao perfeito interesse da sociedade, sua demonstração não impedirá os ho- mens de colocar bem alto na sua estima'a virtude que ele condena. A própria vida econômica não se submete estritamente à regra da econo- mia. Se os objetos de luxo são aqueles que custam mais caro, não é unicamente porque em geral sejam os mais raros; é também porque são os mais apreciados. É que a vida, tal qual foi concebida pelos homens de todos os tempos, não consiste simplesmente em estabelecer exatamente o orçamento do organismo individual ou social, a respon- der, com a menor despesa possível, às excitações vindas de fora, a bem equilibrar as despesas e a receita, Viver é, antes de mais nada, agir, agir sem cálculo, pelo prazer de agir. E se, evidentemente, não se pode prescindir da economia, se é preciso reunir para poder gastar, é entretanto o gasto que é a meta, e o gasto É a ação. Mas vamos mais longe e remontemos ao princípio fundamental sobre o qual se baseiam todas essas teorias. Todas supõem igualmente que o valor exista nas coisas e exprima sua natureza. Ora, esse postu- lado é contrário aos fatos. Há rumerosos casos em que não existe, por assim dizer, nenhuma relação entre as propriedades do objeto e o valor que lhe é atribuído. Um ídolo é uma coisa muito santa e a santidade é o valor mais elevado que o homem reconhece. Ora, um ídolo é, na maioria das vezes, um monte de pedras ou um pedaço de madeira que, por si Só. é despido de qualquer espécie de valor. Não existe ser, por humilde que seja, ou objeto vulgar que, num determinado momento da história, não tenha inspirado sentimentos de respeito religioso. Adoraram-se os animais mais inúteis ou os mais inofensivos, os mais pobres em qual- quer espécie de virtude. A história contradiz o conceito corrente de que 57 as coisas, às quais o culto é dirigido, foram sempre as que mais im- pressionavam a imaginação. O valor incomparável que lhes era atri- buído não decorria de suas características intrínsecas. Não existe fé que seja um pouco viva, ainda que nada tenha de religiosa, que não possua seus fetiches, onde a mesma desproporção se manifesta. Uma bandeira não é mais do que um pedaço de pano; o soldado, entretanto, morre para salvá-la. A vida moral não é menos rica em contrastes desse gênero. Entre o homem e o animal há, do ponto de vista anatômico, fisiológico e psicológico, apenas diferenças de gradação; e, entretanto, o homem tem uma eminente dignidade moral, o animal não tem ne- nhuma. No que se refere a valores, existe, portanto, um abismo entre eles. Os homens são desiguais tanto em força física como em talento; apesar disso, tendemos a reconhecer em todos um idêntico valor moral. Sem dúvida, o igualitarismo moral tem um limite ideal que não será jamais atingido, mas do qual nos aproximamos sempre mais. Um selo é um simples quadrado de papel, desprovido, o mais das vezes, de qual. quer característica artística; ele pode, não obstante, valer uma fortuna. Não é, evidentemente, a natureza interna da pérola ou do diamante, das peles ou das rendas, que faz com que o valor desses diferentes artigos varie com os caprichos da moda. (...) Em resumo, se o valor das coisas não pode ser e nem nunca foi avaliado senão em relação com certas noções ideais, impõe-se que estas sejam explicadas. Para compreender de que forma os julgamentos de valor são possíveis, não bastaria estabelecer como postulado um certo número de ideais; seria preciso apreciá-los, mostrar de onde se originam, como se ligam com a experiência embora a ultrapassem, e em que con- siste sua objetividade. Já que variam com os grupos humanos, assim como os sistemas de valores correspondentes, não se pode concluir que ambos devam ter origem coletiva? E verdade que anteriormente expusemos uma teoria sociológica de valores da qual mostramos a insuficiência; mas acontece que ela se baseava numa concepção da vida social que menosprezava a sua verdadeira natureza. A sociedade foi apresentada como um sistema de órgãos e funções que tendia a se conservar a despeito das causas de destruição que o atacavam de fora, assim como um corpo vivo, no qual toda a vida cónsiste em responder de maneira apropriada às exci- tações vindas do meio exterior. Ora, realmente, a sociedade é, além disso, a morada de uma vida moral interior, da qual nem sempre se reconheceram a pujança e a originalidade.. 58 Quando as consciências individuais, em vez de ficarem separadas, entram em relação íntima, agindo ativamente umas sobre as outras, origina-se de sua síntese uma vida psíquica de um novo gênero. Primei- ramente ela se distingue daquela que leva o indivíduo solitário, pela sua intensidade especial. Os sentimentos que nascem e se desenvolvem no seio dos grupos têm uma energia que os sentimentos puramente individuais não atingem. O homem que os experimenta tem a impressão de que é dominado por forças que não reconhece como suas, das quais não é mais o dono, que o conduzem, e todo o meio no qual ele está mergulhado lhe parece sulcado por forças do mesmo gênero. Ele sen- te-se como que transportado para um mundo diferente daquele onde flui sua existência privada. A vida não lhe é apenas intensa; ela é qualitativamente diferente. Arrastado pela coletividade, o indivíduo desinteressa-se de si mesmo, esquece-se de si, dá-se por inteiro aos obje- tivos comuns. O pólo de sua conduta é deslocado e levado para fora de si. Ao mesmo tempo, as forças que são assim provocadas, precisa- mente porque são teóricas, não se deixam facilmente canalizar, discipli- nar, ajustar a fins estritamente determinados; elas experimentam a necessidade de expandir-se simplesmente por expandir-se, por nada, sem finalidade, sob forma, às vezes, de violências estupidamente destruido- ras, outras por loucuras heróicas. Em certo sentido, é uma atividade de luxo porque é uma atividade muito rica. Por todas essas razões, ela opõe-se à vida que levamos cotidianamente, assim como o superior se opõe ao inferior, o ideal à realidade. É, com efeito, nos momentos de efervescência desse tipo que sem- pre foram estabelecidos os grandes ideais sobre os quais se baseiam as civilizações. Os períodos criadores ou inovadores são precisamente aqueles em que, sob a influência de circunstâncias diversas, os homens são levados a aproximar-se mais intimamente, onde as reuniões, as assem- bléias são mais fregúentes, as relações mais seguidas, as trocas de idéias mais ativas: é a grande crise cristã, é o movimento de entu- siasmo coletivo que, nos séculos XII e XII, arrastou para Paris a população estudiosa da Europa e deu nascimento à escolástica, é a Reforma e a Renascença, é a época revolucionária, são as grandes agitações socialistas do século XIX. Nesses momentos, é bem verdade, essa vida mais elevada é vivida com tal intensidade e de uma maneira tão exclusiva que ela ocupa quase todo o lugar nas consciências e delas expulsa quase completamente as preocupações egoístas e vulgares. O ideal tende, então, a formar com o real uma só coisa; eis porque os homens têm a impressão de que é chegado o momento em que o ideal 59 se transformará na própria realidade e que o reino de Deus se realizará sobre esta terra. Mas a ilusão não é jamais durável, porque a própria exaltação não pode durar: ela é por demais extenuante. Uma vez pas- sado o momento crítico, a trama social abranda-se, o comércio intelec- tual e: sentimental torna-se mais lento, os indivíduos retornam ao seu nível habitual. Então, tudo aquilo que foi feito, pensado, sentido du- rante o período da tormenta fecunda sobrevive apenas sob a forma de lembrança, de lembrança prestigiosa, sem dúvida, tal qual a realidade que ela evoca, mas com a qual cessou de se confundir. Não é mais do que uma simples idéia ou um conjunto de idéias. Dessa vez, a oposição é nítida. Existe, de um lado, aquilo que é dado pelas sensações e percepções e, de outro, aquilo que é imaginado sob forma de ideais. Naturalmente que esses ideais se estiolariam, se não fossém periodica- mente revivificados. Eis para que servem as festas, as cerimônias públi- cas, religiosas, ou leigas, as pregações de toda espécie, as da Igreja ou as da Escola, as representações dramáticas, as manifestações artísticas, em uma palavra, :tudo aquilo que pode reaproximar os homens e fazê- “los comungar de uma mesma vida intelectual e moral. São como que renascimentos parciais e enfraquecidos da efervescência das épocas cria- doras. Mas todos esses meios têm apenas uma ação temporária. Durante um momento, o ideal retoma a exuberância e a vida da atualidade, aproxima-se novamente do real, mas não tarda a diferenciar-se dele de novo. Se, portanto, o homem concebe ideais, se não pode mesmo pres- cindir de concebê-los e a eles se ligar, é porque ele é um ser social. É a sociedade que o impulsiona ou o obriga a erguer-se acima de si mesmo, e é ela também que para tanto lhe fornece os meios. Ao mesmo tempo em que toma consciência de si, ela arrebata o indivíduo de si mesmo e -arrasta-o a um círculo de vida superior. Ela não pode se constituir sem criar um ideal. Esses ideais são simplesmente as idéias com as quais se pinta e se resume a vida social, tal como ela existe nos pontos culminantes de seu desenvolvimento, Diminui-se a socie- dade quando nela se vê apenas um corpo organizado a fim de cumprir certas funções vitais. Nesse corpo vive uma alma: é o conjunto dos ideais coletivos. Mas esses ideais não são abstrações, frias represen- tações intelectuais, despidas de qualquer eficácia, São essencialmente motores; porque, atrás deles, existem forças reais e ativas: são as forças coletivas e, por conseguinte, forças naturais, ainda que sejam todas forças morais, e comparáveis àquelas que agem no resto do universo. O próprio ideal é uma força desse gênero: a ciência pode, portanto, 0 estudá-lo. O ideal provém do real, ainda que o ultrapasse: eis por q o ideal pode se incorporar ao real. Os elementos que compõem o ide são tomados à realidade, mas se combinam de uma maneira nova, a novidade da combinação que faz a novidade do resultado. Abandonac a si mesmo, jamais poderá o indivíduo tirar de si O material necessár; para uma tal construção. Entregue às suas próprias forças, como poderi ele ter tanto a idéia como o poder de se ultrapassar? Sua experiênci pessoal pode bem permitir-lhe distinguir objetivos futuros e desejávei de outros que já foram realizados. Mas o ideal não é somente alg que falte e que se deseje. Não é um simples futuro em cuja direçã se deseja ir. Ele tem sua maneira de ser; tem sua realidade, Concebe-s: o ideal pairando, impessoal, acima das vôntades Particulares que ek movimenta, Se ele fosse o produto da razão individual, de onde The proviria essa impersonalidade? Invocar-se-ia a impersonalidade da razãc humana? Mas isto é adiar o problema e não resolvêlo. Pois esse impersonalidade não é ela própria senão um fato, ligeiramente diferente do primeiro, o que é preciso que se considere. Se as razões se comu nicam a esse ponto, não será Porque elas vêm de uma mesma fonte, Porque participam de uma razão comum? €.) De que maneira, pois, deve-se conceber a relação dos julgamentos de valor com os julgamentos de realidade? Resulta do que apresentamos até agora que não existe entre eles diferenças de natureza. Um julgamento de valor exprime a relação de uma coisa com um ideal. Ora, o ideal é dado como a coisa, ainda que de outra maneira; é, pois, uma realidade a seu modo. A relação ex- pressa une, pois, dois termos dados, tal como num julgamento de exis- tência. Dir-se-á que os julgamentos de valor põem em jogo os ideais? Mas não é diferente o que ocorre com os julgamentos de realidade. Pois, os conceitos são igualmente construções de espírito e, portanto, são ideais; não seria difícil demonstrar que eles são, na realidade, ideais coletivos, uma vez que não se podem constituir senão na linguagem e por meio da linguagem que é, no mais alto grau, uma coisa coletiva. Os elementos do julgamento são, portanto, os mesmos de parte a parte. Isto não quer dizer, todavia, que o primeiro desses julgamentos conduza ao segundo ou reciprocamente. Se eles se assemelham é por- que são obra de uma única e idêntica faculdade. Não há uma maneira de pensar e de julgar para estabelecer existências e uma outra para avaliar valores. Todo julgamento tem necessariamente uma base no dado: mesmo aqueles que se referem ao futuro retiram seus elementos seja 61 do presente, seja do passado. Por outro lado, todo julgamento põe em ação os ideais. Não existe, Portanto, e nem deve existir mais do que uma única faculdade de julgar. Apesar disso, as diferenças que assinalamos ao longo do caminho não deixam de subsistir. Se todo julgamento ativa ideais, estes são de espécies diferentes. Existem alguns cujo papel é unicamente exprimir as realidades às quais se aplicam, de exprimi-las como são. São os con- ceitos propriamente ditos. Existem Outros, ao contrário, cuja função consiste em transfigurar as realidades com que se relacionam, São os ideais de valor. No primeiro caso, é o ideal que serve de símbolo à coisa, de maneira a torná-la assimilável pelo pensamento. No segundo, é a coisa que serve de símbolo ao ideal e que o torna representável aos diversos espíritos. Naturalmente os julgamentos diferem segundo os ideais que empregam. Os primeiros se limitam a analisar a realidade e a traduzila o mais fielmente possível. Os últimos, ao contrário, mos- tram o aspecto novo da realidade, com o qual ela se enriquece sob a ação do ideal. Sem dúvida, esse aspecto novo também é real, mas sob um outro prisma, de maneira diferente daquela que decorre das propriedades inerentes ao objeto. A prova é que uma mesma coisa pode perder o valor que tem, ou adquirir valor diferente sem mudar de natureza: basta que mude o ideal. O julgamento de valor acrescenta, portanto, alguma coisa ao dado, ainda que o acréscimo seja tomado de um dado de outra espécie. Dessa forma, a faculdade de julgar funciona diferentemente conforme as circunstâncias, mas sem que essas diferen- sas alterem a unidade fundamental da função. Tem sido censurada algumas vezes a Sociologia positiva por uma espécie de fetichismo empirista com relação ao fato e uma indiferença sistemática para com o ideal, Observa-se como essa censura é injusti- ficada, Os principais fenômenos sociais, religião, moral, direito, econo- mia, estética, são apenas sistemas de valores e, portanto, ideais. A socio- logia coloca-se, pois, inteira no ideal; ela não chega a ele lentamente, ao fim de suas pesquisas; ela parte dele. O ideal é seu domínio. Entre- tanto (e é por isso que se poderia qualificá-la de positiva se unir a um nome de ciência esse adjetivo não criasse um pleonasmo) ela só trata do ideal para dele estabelecer a ciência. Ela não cogita de construí-lo: ao contrário, ela o toma como um dado, como um objeto de estudo, e tenta analisá-lo e explicá-lo, Vê a faculdade do ideal como uma faculdade natural, da qual procura as causas € as condições, com a finalidade, se possível, de ajudar os homens a disciplinar o seu 86 Considerada sob esse aspecto, afirma, “ela nos leva imediatamente a ver não somente os indivíduos e a classes, mas também, sob muitos aspectos, os diferentes povos, com- que participando à sua maneira, segundo um modo peculiar e nur grau especial exatamente determinado, de uma obra imensa e comu cujo inevitável desenvolvimento gradual liga além disso também q atuais cooperadores à série de seus predecessores quaisquer, da mesm maneira que seus diversos sucessores. É pois a contínua distribuiçã dos diferentes trabalhos humanos que constitui, de maneira principa' a solidariedade social e que se torna a causa elementar da extensã e da complexidade crescente do organismo social”. 1 . Se essa hipótese fosse demonstrada, a divisão do trabalho desem penharia um papel muito mais importante do que se lhe atribui comu mente. Ela não serviria apenas para dotar nossas sociedades de ur luxo, invejável talvez, mas supérfluo; ela seria uma condição de exis tência da sociedade. Graças à divisão do trabalho, ou pelo menos po seu intermédio, se garantiria a coesão social; ela determinaria os traço essenciais da constituição da sociedade. Por isso mesmo, e ainda qu não possamos por enquanto resolver rigorosamente a questão, pode-s no entanto entrever desde já que, caso seja essa realmente a função da divisão do trabalho, ela deve ter um caráter moral, porque a necessidades de ordem, de harmonia e de solidariedade social são geral mente consideradas morais. Mas antes de examinar se é correta essa opinião comum, é precis: verificar a hipótese que levantamos sobre o papel da divisão do trabalhc Vejamos, com efeito, se, nas sociedades em que vivemos, a solidariedad social deriva essencialmente dela. Mas como se pode fazer essa verificação? Não temos apenas que verificar se, em certos tipos de sociedades existe uma solidariedade social que decorra da divisão do trabalhe Esta é uma verdade evidente, visto que, se a divisão do trabalho . muito desenvolvida, ela produz a solidariedade. Mas é preciso sobretud: determinar em que medida a solidariedade por ela produzida contribui para a integração geral da sociedade: somente então saberemos at que ponto ela é necessária, se é um fator essencial da coesão socia 1 Cours de philosophie positive. IV, p. 425. Encontram-se idéias análogas en SCHarrFLE. Bau und Leben des sozialen Koerpers. IL, pas. é CLÉMENT. Seienc sociate. 1, p. 235 et segs. 87 ou, ao contrário, se não passa de uma condição acessória e secundária. Para responder a essa questão é preciso pois comparar essa relação social com outras, a fim de medir a parte que lhe cabe no cômputo total — e para isso é indispensável começar por classificar os diferentes tipos de solidariedade social. Mas a solidariedade social é um fenômeno sobretudo moral que, por si mesmo, não se presta à observação exata e principalmente a uma medição. Para proceder tanto a essa classificação como a essa comparação, é preciso substituir, ao fato interno que nos escapa, o fato exterior que o simboliza, e estudar o primeiro através do segundo. Esse símbolo visível é o direito. Com efeito, onde existe solidarie- dade social, apesar do seu caráter imaterial, ela não permanece no seu estado puro, mas manifesta sua presença pelos seus efeitos sensí- Quando ela é forte, aproxima os homens uns dos outros, coloca-os fregiientemente em contato, multiplica as oportunidades de seu rela- cionamento. Para ser mais exato, no ponto a que chegamos, é errôneo dizer que ela é produto desses fenômenos, ou, ao contrário, que ela é o resultado; se os homens se aproximam uns dos outros porque ela é forte, ou antes se ela é forte porque eles estão próximos uns dos outros. Mas não é necessário no momento elucidar a questão, Basta constatar que essas duas ordens de fatos estão ligadas e variam ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Quanto mais solidários sejam os membros de uma sociedade, mais eles mantêm relações diversas, seja uns com os outros, seja com o grupo tomado coletivamente. Porque se os seus contatos fossem raros, eles não dependeriam uns dos outros senão de maneira frágil e intermitente. Por outro lado, o número dessas relações é necessariamente proporcional àquele das regras jurí- dicas que o determina. Com efeito, a vida social, sempre que exista de maneira durável, tende inevitavelmente a assumir uma forma defi- nida e a se organizar. E o direito não é outra coisa senão essa própria organização, naquilo que ela tem de mais estável e mais preciso. A vida geral da sociedade não pode se desenvolver num certo ponto sem que a vida jurídica se desenvolva ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Podemos portanto estar seguros de ver refletidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social. Poder-se-ia, é certo, objetar que as relações sociais podem se estabelecer sem assumir por isso uma forma jurídica. É que a regula- mentação não atinge esse grau de consolidação e de precisão: elas não permanecem indeterminadas por esse motivo, mas, ao invés de serem reguladas pelo direito. o são pelos costumes. O direito só reflete uma parte da vida social e, consequentemente, não nos fornece senão dados incompletos para resolver o problema. E tem mais: acontece fregiente- mente que os costumes não estão de acordo com o direito; diz-se repe- tidamente que eles temperam os rigorismos, que corrigem os excessos formalistas e, mesmo, por vezes, que estão animados por um outro espírito. Não poderia portanto ocorrer que manifestassem outros tipos de solidariedade social, além daqueles expressos pelo direito positivo? Mas essa oposição só se produz em circunstâncias inteiramente excepcionais. É preciso para isso que o direito não corresponda mais ao estado presente da sociedade e se mantenha, portanto, sem razão de ser, pela força do hábito. Nesse caso, com efeito, as novas relações que se estabelecem apesar dele, não deixam de se organizar; pois elas não podem perdurar sem tentar consolidar-se. Só que, como elas estão em conflito com o antigo direito que persiste, não ultrapassam o estado de costumes e não chegam a integrar a vida jurídica propriamente dita. É assim que surge o antagonismo. Mas este só se produz naquelas raras e patológicas ocasiões em que não pode perdurar sem constituir uma ameaça. É verdade que sobre essa base nada se constrói. Pode haver relações sociais que só comportam aquela regulamentação difusa que vem dos costumes; mas elas não têm importância nem continuidade, salvo, bem entendido, os casos anormais a serem considerados. Se por- tanto podem ocorrer tipos de solidariedade social de que os costumes sejam as únicas manifestações, eles são certamente secundários; o direito, ao contrário, reproduz todos os que sejam essenciais, e são os únicos que temos necessidade de conhecer. Será que poderíamos ir mais longe e sustentar que a solidariedade social não se encontra inteiramente nas suas manifestações sensíveis; que estas não a exprimem que parcial e imperfeitamente; que, por trás do direito e dos costumes existe um estado interno de onde ela se deriva e que, para conhecê-la verdadeiramente é preciso penetrá-la diretamente e sem intermediários? — Mas não podemos conhecer cien- tificamente as causas senão pelos efeitos que produzem e, para melhor determinar-lhe a natureza, a ciência nada mais faz que escolher entre esses resultados e aqueles que sejam os mais objetivos e que se prestam melhor para medi-la. Ela estuda o calor através das alterações de volume que as variações de temperatura produzem nos corpos, a eletricidade através dos seus efeitos físico-químicos, a força através do movimento. Por que motivo a solidariedade social seria uma exceção? O que subsistiria, aliás, desde que se a despojasse de suas formas sociais? O que lhe dá suas características especificas é a naturéza do 8 grupo cuja unidade é assegurada por ela, e por esse motivo ela varia conforme os tipos sociais. Ela não é a mesma no seio da família e nas sociedades políticas; não somos ligados à nossa pátria da mesma ma- neira que o romano o era à cidade e o germano à sua tribo. Mas posto que essas diferenças têm causas sociais, só podemos aprendê-las por intermédio das diferenças que apresentam os efeitos sociais da solida- riedade. Se negligenciarmos estes últimos, todas as suas variedades tornam-se imperceptíveis e não se pode perceber senão aquilo que é comum a todas, ou seja, a tendência geral da sociabilidade, tendência que é sempre e em todo lugar a mesma e não se liga a qualquer tipo social em particular. Mas este resíduo não passa de uma abstração pois a sociabilidade em si não se encontra em parte alguma. O que existe e tem vida real são as formas particulares da solidariedade, a solidariedade doméstica, a solidariedade profissional, a solidariedade nacional, a de ontem, de hoje etc. Cada uma tem sua natureza própria; consegilentemente, essas generalidades não poderiam dar em todo caso senão uma explicação muito incompleta, porque deixariam necessaria- mente escapar aquilo que é concreto e vivo. O estudo da solidariedade pertence pois à Sociologia. É um fato social que só se pode conhecer por meio de seus efeitos sociais. Se tantos moralistas e psicólogos puderam tratar a questão sem seguir esse método é porque eles contornaram a dificuldade. Eles eliminaram do fenômeno tudo que ele tem de mais especificamente social, para reter apenas o germe psicológico de que ele é o desenvolvimento. E certo, com efeito, que a solidariedade, sendo um fato social de primeira cate- goria, depende do nosso organismo individual. Para que ela possa existir, é preciso que a nossa constituição física e psíquica a comporte. Pode-se, pois, a rigor, contentar-se em estudá-la apenas sob esse as- pecto. Mas, nesse caso, só se vê a parte mais indistinta e menos especial; não é dela que se deve tratar, mas antes do que a torna possível. Esse estudo, embora abstrato, não seria muito fecundo pelos seus resultados. Porque, na medida em que constitua simples predisposição da nossa natureza psíquica, a solidariedade é qualquer coisa de muito indefinido para que se possa atingila facilmente. Trata-se de uma virtualidade intangível, que não se presta à observação. Para que ela assuma uma forma perceptível, é indispensável que algumas consegiiên- cias sociais traduzam-na exteriormente. Além do mais, mesmo nesse estado de indeterminação, ela depende das condições sociais que a expliquem e que, consegientemente, dela não se podem destacar. É por esse motivo que só muito raramente as análises puramente psico- 7 lógicas deixam de se misturar com alguns pontos de vista sociológicos. Assim, por exemplo, quando se diz alguma coisa acerca da influência do estado gregário sobre a formação do sentimento social em geral; ? ou quando se indica rapidamente as principais relações sociais de que depende a solidariedade de maneira aparente. * Essas considerações sem dúvida complementares, introduzidas sem método e a título de exem- plos e ao acaso das sugestões, não seriam suficientes para elucidar muita coisa da natureza social da solidariedade. Elas demonstram pelo menos que o ponto de vista sociológico se impõe mesmo aos psico- lógicos. (...) Para proceder metodicamente, precisamos encontrar alguma carac- terística que, sendo essencial aos fenômenos jurídicos, seja susceptível de variar quando eles variam. Ora, todo preceito jurídico pode ser definido assim: uma regra de conduta sancionada. Por outro lado, é evidente que as sanções mudam segundo a gravidade atribuída aos preceitos, o lugar que eles ocupam na consciência pública, o papel que desempenham na sociedade. Convém pois classificar as regras jurídicas segundo as diferentes sanções a que estão ligadas. Existem dois tipos. Umas consistem essencialmente num castigo, ou pelo menos numa redução infligida ao agente; outras têm por objeto atingi-lo na sua fortuna, na sua honra, na sua vida ou na sua liberdade, privá-lo de alguma coisa de que ele usufrute. Diz-se que elas são repressivas; é o caso do direito penal. É certo que as que se ligam às regras puramente morais têm o mesmo caráter: entretanto, estas são distribuídas de maneira difusa entre todos indistintamente, enquanto aquelas só se aplicam por intermédio de um órgão definido; elas são organizadas. Quanto ao outro tipo, não implica necessariamente um sofrimento do agente, mas consiste apenas no restabelecimento do estado de coisas anterior, na renovação das relações afetadas na sua forma normal, tanto que o ato incriminado seja recambiado à força à norma de que se desviou, quanto seja anulado, isto é, privado de todo valor social. Deve-se pois repartir em duas grandes espécies as regras jurí- dicas, segundo elas tenham sanções repressivas organizadas, ou sanções meramente restitutivas. A primeira compreende todo o direito penal; a segunda o direito civil, comercial, processual, administrativo e cons- titucional, abstração feita às regras penais que aí possam se encontrar. 2 BAIN. Emotions et volonté. Paris, F. Alcan. p. 117 et segs. 3 SpeNCER, Principes de psychologie. Paris, F. Alcan. Parte VIII, cap. V. IL DIVISÃO DO TRABALHO E SUICÍDIO 76 a sociedade sem a qual não existiria. Quando um dos elementos dest: última é quem determina nossa conduta, não é em vista do nosx interesse pessoal que agimos, mas perseguimos fins coletivos. Ora, aind: que distintas, essas duas consciências são ligadas uma à outra, poi: que, em suma, elas formam uma só, não havendo para ambas que un só e único substrato orgânico. São portanto solidárias. Daí resulta um: solidariedade sui generis que, nascida das semelhanças, liga diretamente o indivíduo à sociedade; mostraremos melhor, no próximo capítulo porque nos propomos chamá-la mecânica. Esta solidariedade não con- siste somente numa ligação geral e indeterminada do indivíduo ac grupo, mas toma também harmônicos os pormenores dessa conexão. De fato, como os objetos coletivos são sempre os mesmos, produzem sempre os mesmos efeitos. Consegiientemente, cada vez que eles se desencadeiam, os desejos se movem espontânea e conjuntamente nc mesmo sentido. É esta solidariedade que o direito repressivo exprime, pelo menos no que ela tem de vital. Com efeito, os atos que ele proíbe e qualifica como crimes são de dois tipos: ou bem eles manifestam diretamente uma dessemelhança muito violenta contra o agente que os executou e o tipo coletivo, ou então ofendem o órgão da consciência comum. Tanto num caso como no outro, a autoridade atingida pelo crime que o repele é a mesma; ela é um produto das similitudes sociais as mais essenciais, e tem por efeito manter a coesão social que resulta dessas similitudes. É esta autoridade que o direito penal protege contra todo enfraquecimento, exigindo ao mesmo tempo de cada um de nós um mínimo de semelhanças sem as quais o indivíduo seria uma ameaça para a unidade do corpo social, e nos impondo o respeito ao símbolo que exprime c resume essas semelhanças, ao mesmo tempo que lhes garante. Explica-se assim que muitos atos tenham sido comumente reputados criminosos e punidos como tal sem que, por si mesmos, sejam malfa- zejos para a sociedade. De fato, tal como o tipo individual, o tipo coletivo se forma sob o efeito de causas muito diversas e mesmo de conjunções fortuitas. Produto do desenvolvimento histórico, ela leva a marca das circunstâncias de todo o tipo que a sociedade atravessou ao longo de sua história. Seria pois miraculoso que tudo o que aí se encontra fosse ajustado a qualquer fim útil; mas não se pode tampouco introduzir elementos mais ou menos numerosos que não tenham qual- 7 quer relação com a utilidade social. Entre as inclinações e tendências que o indivíduo recebeu de seus ancestrais ou que formou por sua própria conta, muitas certamente ou para nada servem, ou custam mais do que elas reportam. Sem dúvida, não poderiam ser nocivas na sua maioria, porque O indivíduo, nessas condições, não poderia sobre- viver; mas algumas se mantêm sem serem úteis e, dentre estas, algumas mesmo, cujos serviços são os mais incontestáveis, têm por vezes uma intensidade que não está conforme à sua utilidade, pois esta decorre em parte de outras causas. O mesmo ocorre com as paixões coletivas. Todos os atos que as atingem não são perigosos em si mesmos, ou pelo menos não são tão perigosos tal como foram reprovados. Entretanto, a reprovação de que são objeto não deixa de ter sua razão de ser; pois, qualquer que seja à origem desses sentimentos, uma vez que façam parte do tipo coletivo, e sobretudo se constituem seus elementos essen- ciais, tudo que contribua para abalá-los afeta igualmente a coesão social e compromete a sociedade. Não há qualquer utilidade no seu apareci- mento; mas desde que tenham durabilidade, é necessário que persistam apesar de sua irracionalidade. Eis porque é bom, em geral, que os atos que os ofendam não sejam tolerados. Sem dúvida, raciocinando abstra- tamente, pode-se demonstrar que não há razão para que uma sociedade proíba a ingestão de tal ou qual tipo de carne, que em si é inofensiva. Mas desde que a repulsa por esse alimento se tornou parte integrante da consciência comum, ela não pode desaparecer sem que o laço social se afrouxe e que as consciências sadias sejam obscurecidas. O mesmo ocorre com a pena. Ainda que resulte de uma reação inteiramente mecânica, de movimentos passionais e em grande parte irrefletidos, não deixa de desempenhar um papel útil, Só que esse papel não está onde o vemos ordinariamente. Ela não serve, ou serve apenas secundariamente, para corrigir o: culpado ou para intimidar seus pos- síveis imitadores; sob esse duplo ponto de vista, sua eficácia éa rigor duvidosa e, em todo caso, medíocre. Sua verdadeira função está em manter intacta a coesão social, ao manter a consciência comum em toda a sua vitalidade. Negada tão categoricamente, esta última perderia necessariamente sua força se uma reação emocional da comunidade não vier compensar essa parte, e daí resultaria um relaxamento da soli- dariedade social. E preciso pois que ela se afirme com vigor no mo- mento em que seja contrariada, e o único meio de se afirmar é exprimir a aversão uhânime que o crime continua a inspirar, por um ato autên- tico que não pode ser senão um castigo infligido ao agente. Ássim, 78 sendo antes de tudo um produto necessário das causas que o engendram, esse castigo não é uma crueldade gratuita, É o signo que atesta que os sentimentos coletivos são sempre coletivos, que a comunhão de espíritos numa só fé permanece inalterada e, por seu intermédio, repara o mal que o crime fez à sociedade. Eis porque se tem razão de dizer que o crimi- noso deve sofrer na proporção de seu crime, porque as teorias que recusam à pena todo caráter expiatório é por muitos considerada subversiva da ordem social. Isto porque, de fato, essas doutrinas só poderiam ser praticadas numa sociedade em que toda consciência comum fosse quase abolida. Sem essa satisfação necessária, aquilo que se chama consciência moral não poderia ser conservado, Pode-se portanto dizer, sem para- doxo, que o castigo é sobretudo destinado a atuar sobre as pessoas honestas; isto porque, dado que ele serve para curar as feridas causadas nos sentimentos coletivos, só pode preencher o seu papel onde esses sentimentos existam e na medida em que estejam vivos. Sem dúvida, prevenindo-se os espíritos já abalados por um novo enfraquecimento da alma coletiva, pode-se melhor impedir que os atentados se multipliquem; mas este resultado, útil aliás, não passa de um revide particular. Em resumo, para se dar uma idéia exata da pena, é preciso reconciliar as duas teorias contrárias que foram referidas: aquela que vê na pena uma expiação e a que vê nela uma arma de defesa social. É certo, com efeito, que ela tem por função proteger a sociedade, mas porque é expiatória; por outro lado, se deve ser expiatória, não quer dizer que, em resultado de não sei qual virtude mística, o castigo repara a falta, mas que ela só pode produzir o seu efeito socialmente útil sob essa única condição. Deste capítulo resulta que existe uma solidariedade social decor- rente de um certo número de estados de consciência comuns a todos os membros da mesma sociedade. É ela que o direito repressivo repre- senta materialmente, pelo menos naquilo que tem de essencial. A par- cela que ela tem na integração geral da sociedade depende evidente- mente da extensão mais ou menos grande da vida social abrangida e que regulamenta a consciência comum. Além do mais, existem relações diversas em que esta última faz sentir sua ação, mas ela, por sua vez, criou os laços que ligam o indivíduo ao grupo; e mais, em consegiiênci: disso, a coesão social deriva completamente dessa causa e traz a sua marca. Mas, por outro lado, o número dessas relações é por si mesmo proporcional àquele das regras repressivas; ao determinar qual fração do aparelho jurídico o direito penal representa, estamos medindo ao 79 mesmo tempo a importância relativa dessa solidariedade. É certo que, procedendo dessa maneira, não nos damos conta de certos elementos da consciência coletiva que, devido à sua menor energia e à sua deter- minação, permanecem estranhos ao direito repressivo, contribuindo em tudo para garantir a harmonia social; tais elementos é que são prote- gidos pelas penas simplesmente difusas. Mas o mesmo acontece com outras partes do direito. Não que elas não sejam completadas pelos costumes e, como não há razão para supor que a relação entre o direito e os costumes não seja a mesma nessas diferentes esferas, tal eliminação não corre o risco de alterar os resultados de nossa comparação. 6. SOLIDARIEDADE ORGÂNICA * Em resumo, as relações que regulam o direito coopera- tivo com sanções restitutivas e a solidariedade que elas exprimem re- sultam da divisão do trabalho social, Em outro lugar explicamos que, em geral, as relações cooperativas não comportam outras sanções. Com efeito, é da natureza das tarefas especiais escapar à ação da consciência coletiva; porque, para que uma coisa seja objeto de senti- mentos comuns, a primeira condição é que ela seja comum, isto é, que esteja presente em todas as consciências e que todas possam repre- sentá-las de um único ponto de vista, Sem dúvida, dado que as funções têm uma certa generalidade, todos podem ter qualquer sentimento: quanto mais elas se especializam, menor é o número daqueles que têm consciência de cada uma delas; consegiientemente, elas sobrepujam a consciência comum. As regras que as determinam não podem pois ter essa força superior, essa autoridade transcendente, que exige uma ex- piação quando ela venha a ser ofendida. O mesmo ocorre com a opinião decorrente de sua autoridade, tal como a das regras penais, mas é uma opinião que se circunscreve a setores restritos da sociedade. Além do mais, mesmo nos círculos especiais em que elas se apli- cam e onde, em decorrência, estão presentes nos espíritos, elas não correspondem a sentimentos muito vivos, nem mesmo mais fregiiente- mente. a qualguer tipo de estado emocional. Porque, como elas fixam a maneira pela qual as diferentes funções devem concorrer nas várias combinações de circunstâncias que se podem apresentar, os objetos a que se reportam não se acham sempre presentes nas consciências. Não * Reproduzido de Durkwerm, E. “La solidarité due à la division du travail ou organique” In: De ia division du travail social, 7.3 ed. Paris, PUF, 1960. Liv. 19, cap. 3.º, p. 96-102. Trad. por Laura Natal. Rodrigues. 8 se tem sempre que administrar uma tutela, uma curatela, ! nem exercer seus direitos de' credor ou de comprador etc., nem sobretudo exercê-los em tal ou qual condição. Ora, os estados de consciência só são fortes na medida em que sejam permanentes. A violação dessas regras não atinge pois as partes vivas nem a alma comum da sociedade, nem mesmo, pelo menos em geral, a dos grupos especiais e, por conseguinte, só podem determinar uma reação muito moderada. Basta que as funções concorram de uma maneira regular; se essa regularidade é perturbada, basta que seja restabelecida. Isto não quer dizer, é certo, que o desen- volvimento da divisão do trabalho não possa se refletir no direito penal. Existem, como já vimos, funções administrativas e governamen- tais em que certas relações são reguladas pelo direito repressivo, em razão do caráter particular de que se reveste o órgão da consciência comum e tudo que se refira a ela. Em outros casos ainda, os laços de solidariedade que unem certas funções sociais podem ser tais que sua ruptura provoca repercussões bastante gerais, para citar uma reação penal. Mas, pela razão que já dissemos, esses contragolpes são excep- cionais. Definitivamente, este direito tem na sociedade um papel análogo ao do sistema nervoso no organismo. Este último, com efeito, tem por tarefa regular as diferentes funções do corpo, de maneira a fazê-las fluir harmonicamente: ele exprime assim naturalmente o estado de concentração que o organismo alcançou, em consequência da divisão do trabalho fisiológico. Além disso, aos diferentes níveis da escala ani- mal, pode-se medir o grau dessa concentração segundo o desenvolvi- mento do sistema nervoso. Quer dizer que se pode medir igualmente o grau de concentração alcançado por uma sociedade em consequência da divisão do trabalho social, segundo o desenvolvimento do direito cooperativo com sanções restitutivas. Pode-se prever todas as vantagens propiciadas por esse critério. ... Visto que a solidariedade negativa não produz por si mesma ne- nhuma integração e que, além disso, ela não tem nada de específico, reconhecemos apenas duas espécies de solidariedade positiva que apre- sentam as seguintes características: 1 Eis porque o direito que regula as relações de funções domésticas não é penal, mesmo que essas funções sejam muito gerais. 8% número de sociedades parciais (a maior abrange oito) que apresentan todos os caracteres que acabamos de indicar. Os adultos dos dois sexo são iguais uns aos outros. Os caciques e os chefes que lideram cada un desses grupos, e cujo conselho administra os negócios comuns da tribo não gozam de nenhuma superioridade. O próprio parentesco não est: organizado; porque não se pode dar esse nome à distribuição do pow por ondas de gerações. A observação desses povos em época tardi: revela algumas obrigações especiais que uniam a criança a seus pai maternos, mas essas relações reduziam-se a quase nada e não se distin guiam sensivelmente das que se estabeleciam entre os demais membro da sociedade. Em princípio, todos os indivíduos da mesma idade eran parentes uns dos outros no mesmo grau. ' Em outros casos, nos apro ximamos ainda mais da horda; Fison e Howitt descrevem tribos austra lianas que só compreendem duas divisões. ? Damos o nome de ciã à horda que deixou de ser independent para se tornar membro de um grupo mais extenso, assim como chama mos de sociedades segmentares à base de clãs os povos constituído: por uma associação de clãs. Dizemos que essas sociedades são segmen tares para indicar que são formadas pela repetição de agregados seme lhantes entre si, análogos aos anéis de uma cadeia e que esse agregade elementar é um clã porque esta palavra exprime bem a natureza mista ao mesmo tempo familiar e política. É uma família no sentido de que todos os membros que a compõem se consideram parentes uns do: outros, o que faz com que sejam, na maioria, consanguíneos. As afini dades que a comunidade de sangue engendra são principalmente aquela: que os mantêm unidos. Além disso, elas mantêm entre si relações que se pode qualificar de domésticas, visto que as encontramos alhures na! sociedades cujo caráter familiar não é contestado: quero dizer da vin dita coletiva, da responsabilidade coletiva e, desde que a propriedade individual começa a aparecer, da herança mútua. Mas, por outro lado não se trata da família no sentido próprio do termo; porque, para fazes parte dela não é preciso manter com os demais membros do clã relações de consangúinidade definidas. Basta apresentar um critério exterior que geralmente consiste no fato de ter o mesmo nome, Se bem que este signo seja indicado para denotar uma origem comum, tal estado civi: constitui na realidade uma prova muito pouco demonstrativa e muitc 1 MorGaN, Ancient Society. p. 62-122. 2 Kamilaroi and Kurnai. Este foi, aliás, O estado por que passaram, em suas origens. as sociedades indígenas da América (v. MORGAN. Op. cit). 87 fácil de imitar. Assim, o clã conta com muitos estrangeiros, o que lhe permite alcançar dimensões jamais atingidas por uma família propria- mente dita: compreende muito frequentemente milhares de pessoas. Daí resulta a unidade política fundamental, os chefes dos clãs são as únicas autoridades sociais. * Pudemos assim qualificar essa organização de político-familiar. Não apenas o clã tem por base a consanguinidade, mas os diferentes clãs de um mesmo povo se consideram muito frequentemente como parentes uns dos outros. Entre os iroqueses, eles se tratam, segundo o caso, de irmãos ou de primos. * Entre os Hebreus, que apresentam, como vere- mos, os traços mais característicos da mesma organização social, o ancestral de cada um dos clãs que compõe a tribo é apontado como descendente do fundador desta última, o que é por ele próprio encarado como um dos filhos do pai da raça. Mas esta denominação tem sobre a precedente o inconveniente de não ressaltar aquilo que constitui a própria estrutura dessas sociedades, Mas de qualquer maneira que se denomine esta organização, tal como a horda de que é um prolongamento, ela não comporta evidente- mente outra solidariedade que aquela derivada das similitudes, visto que a sociedade é formada de segmentos similares e que estes, por sua vez, só abrangem elementos homogêneos. Cada clã sem dúvida tem sua fisionomia própria e se distingue portanto dos outros; mas a solidarie- dade, por sua vez, é tanto mais fraca quanto mais heterogêneos eles sejam, e vice-versa. Para que a organização segmentar seja possível, é preciso, ao mesmo tempo, que os segmentos se pareçam, sem o que não seriam unidos, e que eles se diferenciem, sem o que se perderiam uns nos outros e se diluiriam. Conforme as sociedades, estas duas ne- cessidades contrárias são satisfeitas em proporções diferentes; mas o tipo social continua o mesmo. o) Essas sociedades constituem o lugar típico da solidariedade mecê- nica, tanto que delas derivam seus principais caracteres fisiológicos. 3Se no seu estado puro, pelo menos o cremos, o clã forma uma família indi- visível, confusa, aparecem mais tarde famílias particulares, distintas uma das ou- tras, sobre o fundo primitivamente homogêneo. Mas esta aparição não altera os traços essenciais da organização social que descrevemos; é por isso que não se pode parar aí. O clã permanece a unidade política e, como as famílias São semelhantes e iguais entre si, a sociedade permanece formada de segmentos simi- lares e homogêneos, visto que, em meio aos segmentos primitivos, começam a aparecer segmentos novos, mas do mesmo gênero. AMoRGaN, Op. cit. p. 90. Sabemos que nelas a religião penetra toda a vida social, isto por- que esta é composta quase exclusivamente de crenças e práticas comuns, que tiram da adesão unânime uma intensidade muito particular. Femon- tando, exclusivamente pela análise dos textos clássicos, até uma época inteiramente análoga à de que falamos, Fustel de Coulanges descobriu que a organização primitiva das sociedades era de natureza familiar e que, por outro lado, a constituição da família primitiva tinha como base a religião. Só que ele tomou a causa como efeito. Depois de ter colocado a idéia da religião, sem fazê-la derivar de nada, ele deduziu os arranjos sociais que observara, º mas, ao contrário, são estes últimos que explicam a influência e a natureza da noção da religião. Como toda massa social era formada de elémentos homogêneos, ou seja, por- que o tipo coletivo era aí muito desenvolvido e os tipos individuais rudimentares, era inevitável que toda a vida psíquica da sociedade adqui- risse um caráter relígioso. É daí também que deriva o comunismo, que se tem muitas vezes assinalado entre esses povos. O comunismo, com efeito, é o produto necessário dessa coesão especial que absorve o indivíduo dentro do grupo, a parte no todo. A propriedade não é em definitivo que a ex- tensão da pessoa sobre as coisas. Onde a personalidade coletiva é a única, a propriedade também não pode deixar de ser coletiva. Ela só pode se tornar individual quando o indivíduo, se desligando da massa, se torne ele também um ser pessoal e distinto, não apenas enquanto organismo, mas enquanto elemento da vida social. 8 “Nós fizemós a história de uma crença. Ela se estabelece: a sociedade se constitui, Ela se modifica: a sociedade passa por uma série de revoluções. Ela desaparece: a sociedade muda de aspecto.” (Ciré antique, final). 8 Spencer já mostrara que a evolução social, como aliás a evolução universal, começou por um estado mais ou menos perfeito de homogeneidade. Mas essa proposição, tal como ele a entende, não se assemelha em nada àquela que aca- bamos de desenvolver. Para Spencer, com efeito, uma sociedade perfeitamente homogênea não seria na verdade uma sociedade; porque à homogeneidade é instável por natureza e a sociedade é essencialmente um todo coerente. O papel social da homogeneidade é inteiramente secundário; ela pode abrir caminho para uma ulterior cooperação (Soc. HI. p. 368), mas ela não é uma fonte específica de vida social. Em certos momentos, Spencer não parece ver nas sociedades que acabamos de descrever senão uma efêmera justaposição de indivíduos inde- pendentes, o zero da vida social (ibid. p. 390). Acabamos de ver, ao contrário, que elas têm um vida coletiva muito forte, ainda que sui generis, que se mani- festa não por intercâmbios e contratos, mas por um grande número de crenças e de práticas comuns. Esses agregados são coerentes, não só porque homogêneos, mas na medida em que sejam homogêneos. Não só a comunidade não é aí 89 Este tipo pode mesmo se modificar sem que a natureza da solida- riedade social mude por isso. Com efeito, os povos primitivos não apresentam todos essa falta de centralização que acabamos de observar; existem, ao contrário, aqueles que estão submetidos a um poder absoluto. A divisão do trabalho faz assim seu aparecimento. Entretanto, o laço que une neste caso o indivíduo ao chefe é idêntico ao gue, nos nossos dias, liga a coisa à pessoa. As relações do déspota bárbaro com os seus súditos, como as do dono com os seus escravos, do pai de família romano com os seus descendentes, não se distinguem daquelas do pro- prietário com o objeto que possui. Elas nada têm dessa reciprocidade que produz a divisão do trabalho. Já se disse com razão que elas são unilaterais. 7 A solidariedade que elas exprimem permanece pois meçã- nica; toda a diferença é que ela liga o indivíduo não mais diretamente ao grupo, mas àquilo que é sua imagem. A unidade do todo é porém, como anteriormente, exclusiva da individualidade das partes. Se esta primeira divisão do trabalho, por mais importante que seja, não resulta num abrandamento da solidariedade social como era de se esperar, isto se deve às condições particulares em que ela ocorre. De fato, constituí uma lei geral que o órgão proeminente de toda. socie- dade participe da natureza do ser coletivo que ele representa. Onde pois a sociedade tem tal caráter religioso e, por assim dizer, sobre-huma- no, cuja origem mostramos na constituição da consciência comum, ele se transmite necessariamente ao chefe que a dirige e que se encontra assim situada muito acima do resto dos homens. Onde os indivíduos são mera dependência do tipo coletivo, eles tornam-se naturalmente dependentes da autoridade central que o encarna. Do mesmo modo ainda, o direito de propriedade que a comunidade exercia sobre as coisas de uma maneira indivisível, passa integralmente para a personalidade superior que se encontra assim constituída. Os serviços propriamente profissionais prestados per esta última são pois insignificantes face ao poder extraordinário de que ela é investida. Se, nesses tipos de socie- dade, o poder diretor possui tanta autoridade, não é, como se diz, porque tenham necessidade especial de uma direção enérgica; mas essa autoridade é toda uma emanação da consciência comum, e ela é grande porque essa própria consciência comum é muito desenvolvida. Suponha muito fraca, mas se pode dizer que só ela existe. Além do mais, as sociedades têm um tipo definido, que deriva de sua homogeneidade. Não se pode pois considerar negligenciáveis a quantidade desses agregados. TV. TARDE. Loi de Pimitation. p. 402-12. 90 que esta seja mais fraca ou que abranja apenas uma menor parte da vida social, a necessidade de uma função reguladora suprema não será menor; no entanto, o resto da sociedade não terá mais quem se encar- regue disso no mesmo estado de inferioridade. Eis porque a solidariedade é ainda mecânica, enquanto a divisão do trabalho não é desenvolvida. É exatamente nessas condições que ela atinge seu maximum de energia: pois a ação da consciência comum é mais forte quando se exerce não mais de maneira difusa, mas por intermédio de um órgão definido. Existe pois uma estrutura social de determinada natureza, à qual corresponde a solidariedade mecânica. O que a caracteriza é que ela é um sistema de segmentos homogêneos e semelhantes entre. si. Inteiramente diferente é a estrutura das sociedades onde a solida- riedade orgânica é preponderante. Elas são constituídas não por uma repetição de segmentos simi- lares é homogêneos, mas sim por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos quais tem um papel especial e se forma de partes diferenciadas. Os elementos sociais não são da mesma natureza, ao mesmo tempo que não se acham dispostos da mesma maneira. Eles não se acham justa- postos linearmente como os elos de uma cadeia, nem encaixados uns nos outros, mas sim coordenados e subordinados uns aos outros, em torno de um mesmo órgão central que exerce uma ação moderadora sobre o resto do organismo. Este órgão, por sua vez, não tem o mesmo caráter que no caso precedente; porque se os outros dependem dele, ele, por sua vez, depende dos: outros. Há sem dúvida uma situação particular e, se quisermos, privilegiada; mas ela decorre da natureza do papel que desempenha e não de qualquer coisa estranha às suas fun- ções e de qualquer força transmitida do exterior. Nada mais tem de temporal e humano; entre ele e os outros órgãos só há diferença de grau. Assim é que, entre os animais, a preeminência do sistema nervoso sobre os outros sistemas se reduz ao direito, se é que se pode falar assim, de receber uma alimentação mais escolhida e pegar sua parte antes dos demais; mas ele precisa dos outros, da mesma forma que os oútros precisam dele. Esse tipo social se assenta em princípios tão diversos do precedente que só se pode desenvolver na medida em que este desapareça. Com efeito, os indivíduos estão agrupados não mais segundo suas relações de descendência, mas segundo a natureza particular da atividade social 91 a que se consagram. O meio natural e necessário não é mais o meio natal, mas o meio profissional. Não é mais a consangiiinidade, real ou fictícia, que marca o lugar de cada indivíduo, mas a função que ele desempenha. Sem dúvida, quando essa nova organização começa a aparecer, tenta utilizar e se assimilar àjá existente, A maneira em “que as funções se dividem, se modela pois, tão fielmente quanto possível, sob o modo pelo qual a sociedade já está dividida. Os segmentos ou pelo menos os grupos de segmentos unidos por afinidades especiais tor- nam-se órgãos. Assim é que os clãs cujo conjunto forma a tribo dos levitas, se apropriam, entre os hebreus, das funções sacerdotais. De maneira geral, as classes e as castas não têm provavelmente outra ori- gem nem outra natureza: elas resultam da mistura da organização pro- fissional nascente com a organização familiar preexistente, Mas este arranjo misto não pode durar muito tempo, pois entre os dois termos que ele pretende conciliar existe um antagonismo que acaba necessa- riamente por explodir. Não há qualquer divisão do trabalho, por mais rudimentar que seja, que se possa adaptar a esses moldes rígidos, defi- nidos, é que não são feitos para ela. Ela só pode crescer ao se libertar desse quadro que a encerra. Desde que atinja um certo grau de desen- volvimento, desaparece a relação entre o número invariável de segmen- tos e aquelas crescentes funções que se especializam, bem como cu as propriedades hereditariamente fixadas dos primeiros € as poves o i- dões que as segundas exigem. É preciso pois que a matéria social entre em combinações inteiramente novas para se organizar sobre outras bases. Ora, a antiga estrutura, enquanto persiste, opõe-se à isso, eis porque ela deve necessariamente desaparecer. ) , A história desses dois tipos mostra que, de fato, um só progrediu na medida em que o outro regrediu. Entre os iroqueses, a organização social à base de clãs acha-se no seu estado puro, tal como entre os hebreus, como nos mostra O Pentateuco, salvo a ligeira alteração que já indicamos. O tipo oreant zado não existe igualmente entre ambos, ainda que se possa talvez perceber seus primeiros germes na sociedade judia. (...) Justifica-se assim à hierarquia que estabelecemos, segundo outros critérios menos metódicos, entre os tipos sociais que havíamos compa- rado. Se pudemos dizer que os hebreus do Pentateuco pertenciam a um tipo social menos avançado que os francos da lei sálica, e que estes, por sua vez, estavam acima dos romanos das XII Tábuas, é que, via de regra, quanto mais aparente e nais forte seja a organização segmentar à base de clãs num determinado povo, maior é o seu grau nal não coincide mais com o meio territorial, do mesmo modo que com o meio familiar. É um novo quadro que substitui os outros; a substituição porém só é possíve! na medida em que esses últimos de- sapareçam. Se pois esse tipo social não se observa nunca em estado de pureza absoluta, a solidariedade orgânica também jamais se encontra sozinha, a menos que ela se livre cada vez mais de toda liga, do mesmo modo que ela se torna cada vez preponderante. Esta predominância é tanto mais rápida e completa que no momento em que essa estrutura se afirma mais, a outra torna-se mais indistinta. O segmento tão definido que formava o clã é substituído pela circunscrição territorial. Pelo menos em sua origem, esta última correspondia, ainda que de maneira vaga e aproximada, à divisão real e moral da população; mas ela perde pouco a pouco este caráter para ser apenas uma combiração arbitrária e convencional. Ora, na medida em que se eliminam essas barreiras, elas são substituídas por um sistema de órgãos cada vez mais desen- volvido. Se pois a evolução social continua submetida à ação das mes- mas causas determinantes — e veremos mais adiante que esta hipótese é a única concebível — pode-se prever que este dúplo movimento continuará no mesmo sentido e dia virá em que toda a nossa organiza- ção social e política terá uma base exclusivamente profissional. Além disso, as pesquisas que se seguem estabelecerão 1+ que esta organização profissional não chegou a ser ainda hoje tudo o que deveria ser; quantas coisas anormais impediram-na de alcançar o grau de de- senvolvimento reclamado até agora pelo nosso estado social. Pode-se julgar por af a importância que ela deve assumir no futuro. C..) Em resumo, distinguimos dois tipos de solidariedades; e acabamos de ver que existem dois tipos sociais correspondentes. E também que as primeiras se desenvolvem na razão inversa uma da outra, dos dois tipos correspondentes um regride regularmente na medida. em que o outro progride, e este último é aquele que se define pela divisão do trabalho social. Além de confirmar o que precede, esse resultado vem demonstrar toda a importância da divisão do trabalho. Assim como é ela que, na maioria das vezes, torna coerentes as sociedades no meio das quais vivemos, é ela também que determina os traços constitutivos de sua estrutura, e tudo faz prever que, no futuro, seu papel não fará que aumentar sob esse ponto de vista. MV, [De la division du travail social]. Mesmo livro. cap. VII, $ Ie liv. IM. cap. 1.º, x 8. DIVISÃO DO TRABALHO ANÔMICA * ; As regras do método são para a ciência o que as regras do di- reito são para o comportamento; elas dirigem o pensamento do sábio como estas governam as ações dos homens. Ora, se cada ciên- cia tem seu método, a ordem que ela realiza é absolutamente interna. Ela coordena as investigações dos sábios que cultivam uma mesma ciência, não suas relações externas. Existem poucas disciplinas que co- ordenam os esforços de diferentes ciências em vista de um fim comum. Isto é verdade sobretudo para as ciências morais e sociais; visto que as ciências matemáticas, físico-químicas e mesmo biológicas não pare- cem ser a tal ponto estranhas umas das outras. Mas o jurista, o psicó- Jogo, o antropólogo, o economista, o estatístico; o lingiista, o historia- dor procedem em suas investigações como se as diversas ordens de fatos que eles estudam, formassem outros tantos mundos independentes. Contudo, na realidade, eles se penetram por todas as partes; em cohse- qiiência, o mesmo deveria ocorrer com as ciências respectivas. Eis de onde vem a anarquia que se assinalou, não sem exagero aliás, na ciên- cia em geral, mas que é sobretudo verdadeira nessas determinadas ciências. Elas oferecem, com efeito, o espetáculo de uma agregação de partes distintas que gão cooperam entre si, Se elas formam pois um todo sem unidade, não é porque não tenham uma compreensão sufi- ciente de suas semelhanças; é que elas não são organizadas. Estes vários exemplos são pois variedades de uma mesma espécie; em todos esses casos, se a divisão do trabalho não produz a solidarie- | dade é que as relações dos órgãos não são regulamentadas, é que elas estão num estado de anomia. * Reproduzido de DURKHEIM, E. “La division du travail anomique” Im: De lá division du travail social. 72 ed. Paris. PUF, 1960. 1iv. 3.º. cap. 1º, p. 359-65. Trad. por Laura Natal Rodrigues. 98 Mas de onde provém esse estado? Visto que um corpo de regras é a forma definida que, com o tempo, assumem as relações que se estabelecem espontaneamente entre as funções sociais, pode-se dizer a priori que o estado de anomia é impossível sempre que os órgãos solidários estejam em contato bas- tante e suficientemente prolongado. Com efeito, sendo contíguos, eles são facilmente advertidos em qualquer circunstância da necessidade que têm uns dos outros e adquirem por consegiiência um sentimento vivo e continuo de sua mútua dependência. Pela mesma razão, os intercâm- bios entre eles se fazem facilmente; tornam-se fregientes por serem regu- lares; eles se regularizam por si próprios e o tempo termina pouco a pouco a obra de consolidação. Enfim, porque as menores reações podem ser mutuamente sentidas, as regras assim formadas trazem a sua marca, isto é, prevêem e determinam até no detalhe as condições de equilíbrio; mas se, ao contrário, qualquer elemento opaco se interpõe, desaparecem as excitações de uma certa intensidade que possam se comunicar de um órgão para outro. Às relações sendo raras não se repetem bastante para se definirem; a cada nova oportunidade correspondem novas ten- tativas. Os caminhos por onde passam as ondas de movimentos não podem se aprofundar porque essas ondas são muito intermitentes. Se pelo menos algumas regras conseguem, no entanto, se constituir, elas são gerais e vagas; porque, nessas condições, só os contornos mais gerais dos fenômenos é que se podem fixar. O mesmo ocorrerá se a consangiinidade, ainda que suficiente, for muito recente ou durar muito pouco, ! Essa condição se realiza geralmente pela força das coisas. Porque uma função não pode se distribuir em duas ou mais partes de um orga- nismo, à não ser que estas sejam mais ou menos contíguas. Além do mais, uma vez que o trabalho esteja dividido e como elas necessitam umas das outras, tendem naturalmente a diminuir a distância que as separa. Por isso, na medida em que se eleva na escala animal, vê-se que os órgãos se aproximam e, como diz Spencer, introduzem-se nos interstícios uns dos outros. Mas um conjunto de circunstâncias excep- cionais pode fazer com que isto ocorra de outra forma. 1 Existe, porém, um caso em que a anomia pode se produzir, ainda que a conti giiidade seja suficiente. É quando a regulamentação necessária só pode se esta- belecer à custa de uma transformação que a estrutura social não comporta; porque a plasticidade das sociedades não é indefinida. Quando ela está se acabando, as mudanças necessárias são impossíveis. É o que acontece nos casos de que nos ocupamos. Quanto mais acentuado seja o tipo segmentar, os mercados econômicos serão mais ou menos correspondentes aos vários segmentos; consequentemente, cada um deles será muito limitado. Os produtores, estando muito pró- ximos dos consumidores, podem colocar-se mais facilmente a par da extensão das necessidades a serem satisfeitas. O equilíbrio se estabelece portanto sem dificuldade e a produção regula-se por si mesma. Ao con- trário, na medida em que o tipo organizado se desenvolve, a fusão dos diversos segmentos conduz os mercados a serem um só, que abrange quase toda a sociedade. Ele se estende além mesmo e tende a se tornar universal; pois as fronteiras que separam os povos se reduzem, ao mes- mo tempo que aquelas que separavam os segmentos uns dos outros. Resulta que cada indústria produz para consumidores que estão espa- lhados sobre toda a supertície do país ou mesmo do mundo inteiro. O contato não é mais suficiente. O produtor não pode mais abranger o mercado pelo olhar, nem mesmo pelo pensamento; ele não pode mais fazer representar seus limites, pois que o mercado é por assim dizer ilimitado. Em consegiiência, a produção não tem freio nem regra; ela só pode tatear ao acaso e, no curso desses tateamentos, é inevitável que as medidas sejam ultrapassadas, tanto num sentido como no outro. Daí essas crises que perturbam periodicamente as funções econômicas. O crescimento destas crises locais e restritas que são as falências é certa- mente um efeito dessa mesma causa. Na medida em que o mercado se amplia, aparece a grande indús- tria. Ora, ela tem como efeito transformar as relações entre patrões e operários. Uma maior fadiga do sistema nervoso, juntamente com a influência contagiosa das grandes aglomerações, aumentam as necessi- dades destas últimas. O trabalho da máquina substitui o do homem; o trabalho da manufatura ao da pequena oficina. O operário é colo- cado sob regulamentos, afastado o dia inteiro de sua família; vive sempre separado daquele que o emprega etc. Estas novas condições da vida industrial exigem naturalmente uma nova organização; mas como estas transformações se completaram com extrema rapidez, os interesses em conflito não tiveram tempo ainda para se equilibrarem. 2 2 Lembremos ainda que, como veremos no capítulo seguinte [De la division du travail social], este antagonismo não é devido inteiramente à rapidez dessas trans- formações mas, em boa parte, à designaldade ainda muito grande entre as con- dições exteriores da luta. Sobre este fator o tempo não tem nenhuma ação. 100 Enfim, o que explica o fato de as ciências morais e sociais estarem no estado que nós indicamos é que elas foram as últimas a entrar no círculo das ciências positivas. Não é por menos, com efeito, que há um século que este novo campo de fenômenos se abriu para a inves- tigação científica. Os sábios se instalaram, uns aqui, outros ali, segundo suas inclinações naturais. Dispersos nessa vasta área, eles permanece- ram até agora muito afastados uns dos outros para sentir todos os laços que os unem. Mas só porque eles conduziram suas pesquisas cada vez mais longe do ponto inicial, acabarão necessariamente por alcançar e, em consegiiência, tomar consciência de sua própria solida- riedade. A unidade da ciência se formará portanto por si mesma; não pela unidade abstrata de uma fórmula, aliás muito exígua para a mult plicidade de coisas que ela deveria envolver, mas pela unidade viva de um todo orgânico. Para que a ciência seja una, não é necessário que se apegue inteiramente ao campo de visão de uma só e mesma consciência — o que é aliás impossível — mas basta que todos aqueles que a cultivam sintam que colaboram numa mesma obra. Isto que precede tira todo fundamento das mais graves restrições feitas à divisão do trabalho. Ela foi muitas vezes acusada de diminuir o indivíduo, reduzindo-o ao papel de máquina. E, com efeito, se ele não sabe para onde tendem essas operações que se lhe exigem, não as associa a qualquer fim e só pode se contentar com a rotina. Todos os dias ele repete os mesmos movimentos com uma regularidade monótona, mas sem se interessar nem compreendê-los. Não é mais a célula viva de um organismo vivo, que vibra incessantemente ao contato com as células vizinhas, que age sobre elas e responde por vezes à sua ação, estende-se, contrai-se, dobra-se € se transforma segundo as necessidades e as circunstâncias; não passa de uma engrenagem inerte que uma força externa põe em funcionamento e que se move sempre no mesmo sentido e do mesmo modo." Evidentemente, de qualquer maneira que se represente o ideal moral, não se pode ficar indiferente a um tal aviltamento da natureza humana. Porque se a moral tem como objetivo o aperfeiçoamento individual, não pode permitir que se arruine a tal ponto o indivíduo, e se ela tem por fim a sociedade, não pode deixar que se esgote a própria fonte da vida social; porque o mal não ameaça apenas as fun- ções econômicas, mas todas as funções sociais, por mais elevadas que sejam. “Se, diz A. Comte, tem-se muitas vezes que lamentar na ordem ma- terial o operário exclusivamente ocupado durante sua vida inteira na 101 fabricação de cabos de facas ou de cabeças de alfinetes, uma filosofia sã não deve, no fundo, fazer menos que lastimar na ordem inte- lectual o emprego exclusivo e contínuo do cérebro humano na reso- Iução de algumas equações ou à classificação de alguns insetos: o efeito moral, num e noutro caso, é infelizmente muito análogo.” 3 Propôs-se algumas vezes como remédio dar aos trabalhadores, ao lado de seus conhecimentos técnicos e especiais, uma instrução geral. Mas, supondo que se possa compensar assim alguns dos maus efeitos atribuídos à divisão do trabalho, não é um meio de preveni-los. A divisão do trabalho não muda de natureza porque se a faz preceder de uma cultura geral. Sem dúvida, é bom que o trabalhador esteja em condições de se interessar pelas coisas da arte, da literatura etc.; mas isto não torna menos mal o fato de que ele tenha sido tratado o dia inteiro como uma máquina. Que não se veja, além disso, que estas duas existências sejam muito divergentes para serem conciliáveis e po- derem ser levadas avante pelo mesmo homem! Se se tem o hábito de vastos horizontes, de vistas de conjunto, de belas generalidades, não se deixa mais confinar sem impaciência nos limites estreitos de uma tarefa especializada. Tal remédio não só tornaria a especialização ino- fensiva, mas intolerável também e, por consegiiência, mais ou menos impossível. O que constitui uma contradição é que, contrariamente ao que se diz, a divisão do trabalho não produz essas consegiências em virtude de uma imposição de sua natureza, mas somente em circunstâncias anormais e excepcionais. Para que ela se desenvolva sem provocar tal desastrosa influência sobre a consciência humana, não é preciso tem- perá-la pelo seu contrário; basta que seja ela mesma, que nada venha desnaturá-la de fora. Porque normalmente, o desempenho de cada fun- ção especial exige que o indivíduo não se feche estreitamente, mas que se mantenha em relações constantes com as funções vizinhas, tome consciência de suas necessidades, de mudanças que ocorram, etc. À divisão do trabalho supõe que o trabalhador, longe de ficar curvado sobre sua tarefa, não perde de vista seus colaboradores, mas age sobre eles e sofre sua ação. Não é pois uma máquina que repete movimentos dos quais ele não percebe a direção, mas ele sabe que elas tendem para algum lugar, para um objetivo que ele concebe mais ou menos distintamente. Ele sente que serve para alguma coisa. Para isto, não 3 Cours, IV. 480. 106 então provocada pelos tratados de comércio. Pode ser que se deva à mesma causa o novo recrudescimento constatado entre nós por volta de 1865. Enfim, depois da guerra de 1870, começou um novo movi- mento ascensional, que ainda permanece e que é mais ou menos geral em toda a Europa. Cada sociedade tem, pois, a cada momento de sua história, uma atitude definida face ao suicídio. Mede-se a intensidade relativa dessa atitude tomando a relação entre o número global de mortes voluntárias e a população de todas as idades e dos dois sexos. Chamamos a esse dado taxa de morialidade-suicídio própria da sociedade considerada. Calcula-se geralmente com relação a um milhão ou a cem mil habi- “ tantes. Não somente essa taxa é constante durante longos períodos de tempo, mas a invariabilidade é mesmo maior que a dos principais fenô- menos demográficos. A mortalidade geral, notadamente, varia -muito mais fregiientemente de um ano para outro e as variações por que ela passa são muito mais importantes. Para comprovar isso, basta com- parar, durante vários períodos, a maneira como evoluem um e outro fenômeno. (...) A taxa de suicídios constitui pois uma ordem de fatos única e determinada: é isto que demonstram, ao mesmo tempo, sua perma- nência e variabilidade. Pois essa permanência seria inexplicável se ela não se ligasse a um conjunto de características distintas, solidárias umas das outras, que, apesar da diversidade de circunstâncias ambientais, se afirmam simultaneamente, e essa variabilidade testemunha a natureza individual e concreta desses mesmos caracteres, visto que eles variam como a própria individualidade social. Em suma, esses dados estatís- ticos exprimem a tendência 20 suicídio pela qual cada sociedade é afligida. Não vamos dizer agora em que consiste essa tendência, se ela é um estado sui generis da alma coletiva, tendo sua realidade pró- pria, ou se não representa senão uma soma de estados individuais. Se bem que as considerações precedentes sejam dificilmente conciliáveis com esta última hipótese, reservamos para tratar do problema ao longo desta obra [Le suicide]. O que quer que se pense a esse respeito, é certo que essa tendência existe, sob uma forma ou outra. Cada socie- dade está predisposta a fornecer um contingente determinado de mor- tes voluntárias. Essa predisposição pode, pois, ser objeto de um estudo especial e que pertence à sociologia. É esse estudo que vamos em- preender. 107 Nossa intenção não é pois fazer um inventário tão completo quanto seja possível de todas as condições que possam afetar a gênese dos suicídios particulares, mas somente pesquisar aquelas de que dependem esse fato bem definido que chamamos de taxa social de suicídios. Con- cebe-se que as duas questões sejam muito distintas, qualquer que seja a relação que possa no entanto haver entre elas. Com efeito, entre as condições individuais, existe certamente muita coisa que não seja sufi- cientemente geral para afetar a relação entre o número total de mortes voluntárias e a população. Elas podem talvez fazer com que tal ou qual indivíduo isolado se mate, mas isto não significa que a sociedade in globo tenha uma tendência mais ou menos intensa ao suicídio. Da mesma forma que elas não dizem respeito a um certo estado de: orga- nização social, não têm reflexos sociais. Interessam portanto ao psicó- logo, não ao sociólogo. O que este investiga são as causas pelas quais ele possa agir, não sobre indivíduos isolados, mas sobre o grupo. Por consegiiência, entre os fatores dos suicídios, os únicos que lhe inte- ressam são aqueles que fazem sentir sua ação sobre o conjunto da sociedade. A taxa de suicídios é o produto desses fatores. Eis porque devemos nos ater a isto. 10. SUICÍDIO EGOÍSTA * Estabelecemos pois sucessivamente as três proposições seguintes: o suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade religiosa. O suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade doméstica. O suicídio varia na razão inversa do grau de integração da sociedade política. Esta relação demonstra que, se essas diferentes sociedades têm sobre o suicídio uma influência moderadora, não é devido aos caraç- teres particulares de cada uma delas, mas em virtude de uma causa que é comum a todas. Não é à natureza especial dos sentimentos reli- Biosos que a religião deve sua eficiência, visto que as sociedades domés- ticas e as sociedades políticas, quando fortemente integradas, produzem os mesmos efeitos; é o que aliás já havíamos provado ao estudar dire- tamente a maneira pela qual as diferentes religiões agem: sobre o suicídio, * Inversamente, não é o que tem de específico o laço domés- tico ou o laço político que pode explicar a imunidade que eles confe- rem; pois a sociedade religiosa tem o mesmo privilégio. A causa só pode se encontrar numa mesma propriedade que todos esses grupos sociais possuem, ainda que, talvez, em graus diferentes. Ora, a única que satisfaz essa condição é que todos eles são grupos sociais forte- mente integrados. Chegamos então a esta conclusão geral: o suicídio varia na razão inversa do grau de integração dos grupos sociais de que o indivíduo faz parte. + Reproduzido de DurkHEIM, E. “Le suicide égoiste.” In: Le suicide. Paris, PUF, 1969. Liv. 2.º, cap. 3.9, p. 222-23, 228-32, Trad. por Laura Natal Rodrigues. , 1V. [Le suicide] p. 172. - 109 Mas a sociedade não pode se desintegrar sem que, na mesma medida, o indivíduo seja desengajado da vida social, sem que seus próprios fins se tornem preponderantes sobre os fins comuns, sem que sua personalidade, em uma palavra, tenda a se colocar acima da per- sonalidade coletiva. Quanto mais enfraquecidos sejam os grupos a que pertence, menos depende deles e mais, por consegiência, depende ape- nas de si próprio por não reconhecer outras regras de conduta que as estabelecidas no seu interesse privado. Se se está de acordo em chamar de egoísmo a este estado onde o ego individual se afirma demasiada- mente face ao ego social e à custa deste último, nós poderemos dar o nome de egoísta para o tipo particular de suicídio que resulta de uma individualização desmesurada. (...) Em outros termos se, como se disse muitas vezes, o homem é um duplo, é que ao homem físico se acrescenta o homem social. Ora, este último, supõe necessariamente uma sociedade que ele exprime e a que ele serve. Se ela vier, ao contrário, a se desagregar, se nós não a senti- mos mais viva e atuante em torno e acima de nós, e isto que há de social em nós se vê desprovido de todo fundamento objetivo. É apenas uma combinação artificial de imagens ilusórias, uma fantasmagoria que basta um pouco de reflexão para se dissipar; nada portanto que possa servir de fim para nossos atos. Todavia, este homem social é o conjunto do homem civilizado; é ele que paga o preço da existência. Resulta que nos faltam as razões da existência; porque a única vida que podía- mos sustentar não corresponde mais à realidade e a única que se fun- damente ainda na realidade não corresponde mais às nossas necessi- dades. Visto que fomos iniciados numa existência mais relevante, aquela com que se contentam a criança e o animal não. pode mais nos satis- fazer, e eis que a primeira nos escapa e nos deixa desamparados. Não existe pois nada mais a que se possam prender nossos esforços e temos a sensação de que eles se perdem no vazio. É nesse sentido que se torna correto dizer que falta à nossa atividade um objeto que a sobrepuje. Não que nos seja indispensável para manter a ilusão de uma imortalidade impossível; é que ela se liga à nossa constituição mo- ral e não pode se esquivar, mesmo em parte, sem que, na mesma medida, perca sua razão de ser. Não é preciso mostrar que, em tal estado de perturbação, as menores causas de desânimo podem facil- mente dar origem a resoluções desesperadas. Se a vida não vale a pena que se a viva, tudo se torna pretexto para se desembaraçar dela. Mas isso não é tudo. Esse desligamento não se produz somente entre indivíduos isolados. Um dos elementos constitutivos de todo tem- 10 peramento nacional consiste numa certa maneira de estimar o valor da existência. Existe um humor coletivo, tal como existe um humor indi- vidual, que conduz os povos à tristeza ou à alegria, que lhes faz ver as coisas sob cores risonhas ou sombrias. Só a sociedade se encontra em condições de dar ao valor da vida humana um julgamento de con- junto, para o que o indivíduo não é competente. Pois ele não conhece senão efe próprio e seu pequeno horizonte; sua experiência é portanto muito restrita para poder servir de base a uma apreciação geral. Ele pode julgar bem que sua vida não tem objetivo; ele nada pode dizer que se aplique aos outros. A sociedade, ao contrário, pode, sem sofis- ma, generalizar o sentimento que ela tem de si mesma, do seu estado de saúde e de doença. Os indivíduos participam muito estreitamente de sua vida para que eta possa estar doente sem que eles sejam atingidos. O sofrimento dela torna-se necessariamente o sofrimento do indivíduo. Visto que ela é o todo, o mal que ela sente se comunica às partes de que ela é feita. Ela não se pode desintegrar portanto sem ter consciên- cia de que as condições regulares da vida geral sejam perturbadas na mesma medida. Como ela é o fim de que depende a melhor parte de nós mesmos, não pode sentir que nós lhe escapamos sem perceber ao mesmo tempo que nossa atividade se torna sem finalidade. Dado que somos sua obra, ela não pode provar o seu fracasso sem sentir que, daí por diante, essa obra não serve para mais nada. Assim se formam as correntes de depressão e de desencanto, que não emanam de qual- quer indivíduo em particular, mas que exprimem o estado de desagre- gação em que se encontra a sociedade. O que elas traduzem é o relaxa- mento dos laços sociais, é uma espécie de astenia coletiva, de doença social, tal como a tristeza individual, quando é crônica, traduz o mau estado orgânico do indivíduo. Aparecem então esses sistemas metafí- sicos e religiosos que, reduzindo esses sentimentos obscuros a fórmulas, procuram demonstrar aos homens que a vida não tem sentido e que se enganam a si mesmos em lhe atribuir sentido. Formam-se então novas morais que, erigindo o fato em direito, recomendam o suicídio, ou, pelo menos, conduzem a ele ao recomendar que vivam o menos possível. No momento em que elas se produzem, parece que foram integralmente inventadas por seus autores e toma-se a estes o desen- corajamento que eles pregam. Na realidade, elas são um efeito antes que uma causa; elas simbolizam, numa linguagem abstrata e sob uma forma sistemática, a miséria fisiológica do corpo social. ? E como são > Eis porque é injusto acusar esses teóricos da tristeza de generalizarem as im- pressões pessoais, Eles são o eco de um estado geral. “1 coletivas, essas correntes têm, por essa origem, uma autoridade que faz com que elas se imponham ao indivíduo e o levem com mais força ainda para aquele sentido para o qual já se inclina o estado de desam- paro moral que suscitou diretamente nele a desintegração da sociedade. Assim, no próprio momento em que ele se libertou inteiramente do meio social, ele sofre ainda sua influência. Por mais individualizado que cada um seja, existe sempre qualquer coisa que permanece cole- tiva, é a depressão e a melancolia que resultam dessa individualização exagerada. As pessoas se comunicam na tristeza quando não há mais outra coisa que lhes seja comum. Este tipo de suicídio bem merece pois o nome que lhe damos. O egoísmo não é um fator simplesmente auxiliar; ele é a causa geradora. Se nesse caso se afrouxa o laço que liga o homem à vida, é gue o laço que o liga à própria sociedade se relaxou. Quanto aos incidentes da existência privada, que parecem inspirar imediatamente o suicídio e que passam por ser as condições determinantes, não são na realidade mais do que causas ocasionais. Se o indivíduo cede ao menor choque das circunstâncias, é que o estado em que se encontra a sociedade o fez uma presa fácil para o suicídio. Vários fatos confirmam essa explicação. Sabemos que o suicídio é excepcional entre as crianças-e que diminui entre os velhos que atin- gem os limites da vida; é que, num e noutro, o homem físico tende a abranger todo o homem. A sociedade está ainda ausente do primeiro, que ela não teve tempo de o formar à sua imagem; ela começa a se retirar do segundo, ou, o que resulta no mesmo, ela se retira dele. Por conseguinte, eles se bastam cada vez mais. Tendo menos necessi- dade de se completar por outra coisa que eles mesmos, são também menos sujeitos à falta do que é necessário para viver. A imunidade do animal não tem outras causas. Da mesma maneira, como veremos no próximo capítulo, se as sociedades inferiores praticam um suicídio que lhes é próprio, aquele de que acabamos de falar é mais ou menos com- pletamente ignorado por clas. Isto porque, sendo a vida social mais simples, as tendências sociais dos indivíduos têm o mesmo caráter é, por conseguinte, falta-lhes pouca coisa para estarem satisfeitos. Eles encontram facilmente no exterior um objeto ao qual se possam apegar. Onde quer que vá, o primitivo pode levar consigo seus deuses e sua família, tem tudo aquilo que sua natureza social reclama. » Eis enfim porque ocorre que a mulher pode, mais facilmente que o homem, viver isolada. Quando se vê a viúva suportar sua condição 116 infelizes que se matam para poilpar a família de uma vergonha; nesses casos eles obedecem a móveis altruístas. Porque se uns € outros renun- ciam à vida, é porque existe qualquer coisa que eles amam mais que a si mesmos. Mas são casos isolados que não se produzem senão excepcionalmente. ? Entretanto, ainda hoje, existe entre nós um meio especial onde o suicídio altruísta se encontra em estado crônico: é o exército. SE provável que os suicídios tão fregientes entre os homens da Revolução se devessem, pelo menos em parte, a um estado de espírito altruísta. Nesses tempos de lutas internas, de entusiasmo coletivo, a personalidade individual perde o seu valor. Os interesses da pátria ou do partido estão acima de tudo. A multipli- cidade de execuções capitais provêm, sem dúvida, da mesma causa. Matavam-se os outros tão facilmente como se matava a si próprio. 12. SUICÍDIO ANÔMICO * Assim, não é verdade que a atividade humana possa ser livre de todo freio. Não existe ninguém no mundo que possa gozar de tal pri- vilégio. Pois todo ser, sendo parte do universo, está relacionado com o resto do mesmo; sua natureza e a maneira como a manifesta não dependem somente dele, mas também dos outros seres que portanto o contêm e o regulam. A este respeito, existem apenas diferenças de grau e de forma entre o mineral e o ser pensante. O que o homem tem de característico é que o freio ao qual está submetido não é físico, mas moral, isto é, social. Ele recebe sua lei não de um meio material que se lhe impõe brutalmente, mas de uma consciência superior à sua e da qual ele sente a superioridade. Porque a maior € a melhor parte de sua vida se sobrepõe ao corpo e ele escapa ao jugo do corpo mas suporta ao da sociedade. Só que, quando a sociedade se vê perturbada, seja por uma crise dolorosa ou por favoráveis mas súbitas transformações, ela se vê provi- soriamente incapaz de exercer essa ação; e aí está de onde resultam essas ascensões bruscas da curva dos suicídios, cuja ocorrência repis- tramos acima. Com efeito, no caso de desastres econômicos, produz-se uma es- pécie de desorganização que lança bruscamente certos indivíduos numa situação inferior à que eles ocupavam até então. É preciso pois que eles reduzam suas exigências, que restrinjam suas necessidades, que aprendam a conter-se cada vez mais. Todos os frutos da ação social estão perdidos naquilo que os concerne; sua educação moral deve se refazer. Ora, não é em um instante que a sociedade pode levá-los a essa vida nova e fazer exercer sobre eles esse acréscimo de contenção » Reproduzido de Durkutim, E. “Le suicide anomique.” In: Le suicide. Paris, PUF, 1969. Liv. 2.º, cap. 5.º. p. 279-88. Trad. por Laura Natal Rodrigues. 118 a que não estão acostumados. Resulta que eles não estão ajustados à condição que lhes é imposta e gue tal perspectiva lhes é mesmo into- lerável; daí os sofrimentos que os deslizam de uma existência reduzida antes mesmo que eles a tenham experimentado. Mas não é diferente a crise que tem por origem um brusco aumen- to de poder e de riqueza. Então, com efeito, como as condições de vida estão mudando, o padrão segundo o qual se regulam as necessidades não pode mais continuar o mesmo; pois ele varia com os recursos so- ciais, visto que determina a maior parte do que deve caber a cada categoria de produtores. A graduação é transtornada; mas, por outro lado, um novo padrão não poderia ser improvisado. É preciso algum tempo para que homens e coisas Sejam novamente classificados pela consciência pública. Enquanto as forças sociais assim libertadas não recobrarem o equilíbrio, seu respectivo valor fica indeterminado e, por consegiiência, toda regulamentação permanece defeituosa durante algum tempo. Não se sabe mais o que é Possível e o que não é, o que é justo e injusto, quais são as reivindicações e as aspirações legítimas, quais são aquelas que passam da medida. Por conseguinte, não existe nada que não se pretenda. Por Pouco profundo que seja esse abalo, ele atinge até os princípios que presidem à distribuição dos cidadãos entre os diferentes empregos. Pois como as relações entre as diversas Partes da sociedade estão necessariamente modificadas, as idéias que exprimem essas relações não podem continuar mais as mesmas. Uma classe que tenha sido especialmente favorecida pela crise não se vê mais disposta à mesma posição e, em contrapartida, o espetáculo da sua maior riqueza desperta em torno e abaixo dela toda espécie de cobiça. Assim, os apetites, não sendo mais contidos por uma opinião desorientada, não sentem mais onde estão Os limites diante dos quais devam parar. Além disso, nesse mesmo momento, eles estão num estado de eretismo natural, e apenas por isso a vitalidade geral é mais intensa. Porque a prosperidade decaiu, os desejos estão exaltados. A presa mais rica que lhes é oferecida estimula-os, torna-os mais exigen- tes, mais impacientes face a qualquer regra e é justamente quando as regras tradicionais perdem sua autoridade. O estado de desregramento ou de anomia é ainda reforçado pelo fato de que as paixões são menos disciplinadas no momento mesmo em que elas teriam precisão de uma disciplina mais forte. É então que suas exigências fazem com que seja impossível satis- fazê-las. As ambições superexcitadas vão sempre além dos resultados obtidos, quaisquer que sejam; pois elas não estão mais advertidas de 119 que não devem ir adiante. Nada pois a contenta e toda essa agitação subsiste perpetuamente sem alcançar qualquer apaziguamento. Sobretudo quando essa corrida em direção ao saque não pode ter outro prazer que a própria corrida, e se esta vier a ser impedida, continua-se com as mãos inteiramente vazias. Ora, verifica-se que, ao mesmo tempo que a luta se torna mais violenta e mais dolorosa, é porque ela é menos regulada e as competições são mais ardorosas. Todas as classes são envolvidas, porque não existe mais uma ordem estabelecida. O esforço é portanto mais considerável no momento em que ele se torna mais improdutivo. Como, nestas condições, a vontade de viver não viria a se enfraquecer? Esta explicação é confirmada pela singular imunidade de que go- zam os países pobres, Se a pobreza Protege contra o suicídio, é porque ela mesma é um freio. O que quer que se faça, os desejos devem, numa certa medida, contar com os meios; o que serve em parte como indi- cador para determinar o que se gostaria de ter Por consegiiência, quanto menos se possui, menos é-se levado a estender sem limites o círculo de suas necessidades. Constrangendo-nos à moderação, a impos- sibilidade nos habitua a isto, ao mesmo tempo que a mediocridade é geral e nada vem excitar a inveja. A riqueza, ao contrário, pelos pode- res que confere, nos dá a ilusão de que só interessa a nós mesmos. Diminuindo a resistência que as coisas nos opõem, ela nos induz a crer que essas coisas podem ser indefinidamente vencidas. Ora, quanto menos nos sentimos limitados, mais insuportável parece qualquer tmi- tação, Não é pois sem razão que tantas religiões celebraram os bene- fícios e o valor moral da pobreza. É que ela é, com efeito, a melhor das escolas para ensinar o homem a conter-se. Obrigando-nos a exer- cer sobre nós uma constante disciplina, ela nos prepara para aceitar docilmente a disciplina coletiva, enquanto a riqueza, exaltando o indi- víduo, arrisca sempre despertar esse espírito de rebelião que é a própria fonte da imortalidade. Sem dúvida, não é uma razão para impedir a humanidade de melhorar sua condição material. Mas se o perigo moral que provoca qualquer aumento de facilidade não tem remédio, é pre- ciso ainda não perdê-lo de vista. (...) Eis de onde vem a efervescência que reina nesta parte da socie- dade, mas que daí se estende para o restante. É que o estado de crise e de anomia é constante e, por assim dizer, normal. De alto a baixo na escala social, aumentam as cobiças, sem que elas saibam onde se fixar definitivamente. Nada poderia acalmá-las, visto que o fim para onde elas tendem é infinitamente além de tudo que possam atingir. O 120 real parece sem valor, ao preço daquilo que as imaginações inebriantes entrevêem como possível; desliga-se dele pois, mas para se desligar em seguida do possível, que, por seu tumo, torna-se real. Tem-se sede de coisas novas, de alegrias desconhecidas, de sensações inconfessáveis, mas que perdem todo o sabor quando se tornam conhecidas. Ao mesmo tempo que não se tem força para suportar o menor revés .que sobre- venha. Toda essa febre se desmorona e percebe-se o quanto estéril fora esse tumulto e que todas essas sensações novas, indefinidamente acumuladas, não chegam a constituir um sólido. capital de felicidade sobre o qual se possa viver nos dias difíceis. O prudente, que sabe usufruir dos resultados alcançados sem suportar perpetuamente o desejo de substituí-los por outros, encontra aí como se conter quando soa a hora das contrariedades. Mas o homem que sempre esperou tudo do porvir, que viveu de olhos voltados para o futuro, não tem nada do passado que o reconforte nas amarguras do presente; porque 0 passado não foi para ele senão uma série de etapas impacientemente vencidas. O que lhe permitia ocultar-se de si mesmo é que ele contava sempre encontrar mais adiante a felicidade que não tinha alcançado até então. Mas eis que tem a sua marcha interrompida; daí por diante ele nada mais tem nem atrás nem adiante de si onde se possa fixar. A fadiga, finalmente, basta por si só para produzir o desencanto, porque é difícil deixar de sentir, com o tempo, a inutilidade de uma perseguição sem fim. Pode-se mesmo perguntar se não é sobretudo este estado moral que torna hoje tão fecundas em suicídios as catástrofes econômicas. Nas sociedades em que o homem é submetido a uma disciplina sã, ele se submete também mais facilmente aos golpes da sorte. Habituado a constranger-se e a conter-se, o esforço necessário para se impor um pouco mais de moderação lhe custa relativamente pouco. Mas quando todo limite é odioso, como uma limitação mais estreita não pareceria insuportável? A impaciência febril na qual se vive quase não leva à resignação. Quando não se tem outro objetivo que. ultrapassar sempre o ponto a que se atingiu, quanto é doloroso ser jogado para trás! Ora, esta mesma desorganização que caracteriza nosso estado econômico, abre a porta para todas as aventuras. Como as imaginações são ávidas de novidades e nada as regula, elas ensaiam ao acaso. Os fracassos cruzam necessariamente com os riscos e, assim, as crises se multiplicam no momento em que se tornam mais mortais. Entretanto, essas disposições são tão arraigadas que a sociedade se acostuma a considerá-las normais. Repete-se constantemente que é da natureza do homem ser um eterno descontente, de ir sempre à frente 121 sem tréguas e sem repouso, em direção a um fim indeterminado. A paixão pelo infinito é diariamente apresentada como uma marca de distinção moral, ainda que ela só possa produzir-se no seio de cons- ciências desregradas e que erigem em geral o desregramento de que elas sofrem. A doutrina do progresso quanto mais rápido possível se torna um artigo de fé. Mas também, paralelamente a estas teorias que celebram os benefícios da instabilidade, vê-se aparecer outras que, gene- ralizando a situação da qual elas derivam, declaram que a vida é per- versa, acusam-na de ser mais fértil em dores do que em prazeres e de só seduzir o homem por atrativos enganosos. E como é no mundo econômico que esta confusão atinge seu apogeu, é aí também que eles fazem mais vítimas. As funções industriais e comerciais estão, com efeito, entre as profissões que conduzem ao suicídio (ver quadro XXIV, p. 122). Elas estão quase no mesmo nível das profissões liberais e, às vezes, chegam a ultrapassá-las; são sobretudo sensivelmente mais fregiientes que na agricultura. É que o meio rural é aquele ém que os antigos poderes reguladores fazem ainda sentir melhor sua influência e onde a febre dos negócios penetrou menos. Ele relembra melhor o que era antiga- mente a constituição geral da ordem econômica. E o desvio seria ainda mais marcado se, dentre os suicidas do setor industrial se distinguissem os patrões dos operários, pois são provavelmente os primeiros os mais atingidos pelo estado de anomia. A enorme taxa da população que vive de renda (720 por milhão) mostra bem que são os mais afortu- nados que mais sofrem. É que tudo o que obriga à subordinação atenua os efeitos desse estado. As classes inferiores têm ao menos seu hori- zonte limitado por aquelas que lhe estão sobrepostas e, por isto mesmo, seus desejos são mais definidos. Mas aqueles que têm apenas o vazio acima deles, são quase obrigados a se perder, se não houver força que os faça retroceder. A anomia é, pois, nas nossas sociedades modernas, um fator regu- lar e específico 'de suicídios; ela é uma das fontes nas quais se alimenta o contingente anual. Estamos por consegiiência na presença de um novo tipo que deve ser distinguido dos outros. Ele difere daquilo de que depende, mas da forma pela qual ela os regulamenta. O suicídio egoísta resulta de que os homens não vêem mais razão de ser na vida; o suicídio altruísta de que esta razão lhes parece estar fora da própria vida; o terceiro tipo de suicídio, cuja existência acabamos de constatar, decorre do fato de estar desregrada a atividade dos homens, e é disto” 126 35 anos, para decrescer em seguida. É o que mostra o quadro XXXI. É impossível de se perceber aí a menor prova tanto de uma identidade de natureza quanto de um antagonismo entre o suicídio e os crimes de sangue. Quadro XXXI 16 a 21º 8,2 8 14 9 21 a 25 9,7 14,9 23 9 25 a 30 154 154 30 9 30 a 40 E! 15,9 33 9 40 a 50 89 “ 50 12 50 a 60 2 6,5 89 17 + de 60 23 25 91 20 Resta a ação da temperatura. Se se reúnem num conjunto todos Os crimes contra as pessoas, a curva que se obtém parece confirmar a teoria da escola italiana. Ela sobe até junho e desce regularmente até dezembro, como a dos suicídios. Mas esse resultado decorre simples- mente de que, sob a expressão comum de crimes contra a pessoa, con- tam-se, além dos homicídios, os atentados ao pudor e as seduções. 4 Os dados relativos aos dois primeiros períodos não são, para o homicídio, de exatidão rigorosa, porque a estatística criminal começa o primeiro período aos 16 e vai até 21, enquanto o censo discrimina a população de 15 a 20. Mas essa pequena inexatidão não altera em nada os resultados gerais que se depreen- dem do quadro, Para o infanticídio, o máximo é atíngido mais cedo, por volta dos 25 anos e o decréscimo é muito mais rápido. Compreende-se facilmente por quê. 127 Como esses crimes têm seu máximo em junho e como são muito mais numerosos que os atentados contra a vida, são eles que emprestam à curva essa configuração. Mas eles não têm semelhança alguma com o homicídio; se se deseja pois saber como este último varia nas diferentes épocas do ano, é preciso isolá-lo dos outros. Ora, se se procede a essa operação e sobretudo se se toma o cuidado de distinguir as diferentes formas de criminalidade homicida umas das outras, não se descobre qual- quer traço do anunciado paralelismo (ver quadro XXXII). aneiro fevereiro 926 750 937 março 766 7.83 840 abril 712 662 8e7 maio 8og 666 983 junho 853 552 938 julho 776 491 919 agosto 849 501 997 setembro 839 495 993 outubro 815 478 892 novembro 942 497 960 dezembro 866 542 886 Com efeito, enquanto o crescimento do suicídio é contínuo & Tegu- lar de janeiro à junho miais ou menos, assim como seu decréscimo durante a outra parte do ano, o homicídio simples, o homicídio quali- ficado e o infanticídio oscilam de um mês a outro da maneira mais caprichosa. Não apenas a tendência geral não é a mesma, mas também 5 Segundo CHAUSSINAND. 128 as máximas e as mínimas não coincidem. O homicídio simples tem duas máximas, uma em fevereiro e outra em agosto; o homicídio qualificado também tem duas, mas em partes diferentes, uma em fevereiro e outra em novembro. Para os infanticídios é em maio; para os golpes mortais é em agosto e setembro. Se se calculam as variações não mais mensais, mas sazonais, as divergências não são menos acentuadas. O outono conta quase tantos homicídios simples quanto o verão (1.968 e 1.974) e o inverno mais que a primavera. Para o homicídio qualificado o inverno vem à frente (2.621), o outono em seguida (2.596), depois o verão (2.478) e enfim a primavera (2.287). Para o infanticídio, é a primavera que ultrapassa as outras estações (2.111), sendo seguida pelo inverno (1.939), Para os golpes e ferimentos, o verão e o outono situam-se no mesmo nível (2.854 para um e 2.845 para o outro); depois vem a primavera (2.690) e, a pouca distância, o inverno (2.653). Inteiramente diferente é, como já vimos, a distribuição do suicídio. Aliás, se a tendência ao suicídio não passa de uma inclinação recuada ao homicídio simples, dever-se-ia ver nos homicidas simples e os qualificados, uma vez que neles cessam seus instintos violentos que não podem mais se manifestar exteriormente, tornarem-se eles. próprios vítimas. A tendência homicida deveria pois, sob a influência da prisão, se transformar em tendência ao suicídio. Ora, do testemunho de diversos observadores resulta o contrário, que os grandes criminosos se matam raramente. Cazauvieilh recolheu junto aos médicos de nossas diferentes prisões dados sobre a intensidade de suicídios entre os for- gados. º Em Rochefort, durante trinta anos, só se observou um caso; nenhum em Toulon, onde a população era normalmente de 3 a 4.000 indivíduos (1818-1834). Em Brest, os resultados eram um pouco dife- rentes: em 17 anos, para uma população média de cerca de 3.000 indivíduos, foram cometidos 13 suicídios, o que dá uma taxa anual de 21 por 100.000; ainda que mais elevado que os precedentes, esse dado nada tem de exagerado, posto que se refere a uma população principal- mente masculina e adulta. Segundo o Dr. Lisle, “sobre 9.320 faleci- mentos constatados nas prisões de 1816 a 1837 inclusive, só se contaram 6 suicídios”.” De um inquérito feito pelo Dr. Ferrus resulta que houve apenas 30 suicídios em sete anos nas diferentes penitenciárias, sobre uma população média de 15.111 prisioneiros. Mas a proporção foi ain- S Du suicide, de Faliénation mentale et des crimes contre les personnes, com- parés dans leurs rapporis réciproques. 1840. 2 v., p. 310 et segs. 7 Du Suicide. Paris, 1856. p. 67. 129 da menor nas prisões, onde só se constataram 5 suicídios de 1838 a 1845 para uma população média de 7.041 indivíduos. * Brierre de Boismont confirma este último fato e acrescenta: “Os assassinos de profissão, os grandes culpados, recorrem mais raramente a esse meio violento para fugir à expiação penal que os detentos de uma perversi- dade menos profunda.”? O Dr. Leroy ressalta igualmente que “os ca- nalhas de profissão, os fregientadores de prisões” raramente atentam contra a sua própria vida. 10 Duas estatísticas, uma citada por Morselli!! e outra por Lom- broso, 2 tendem, é certo, a estabelecer que os detentos em geral são excepcionalmente inclinados ao suicídio. Mas, como esses documentos não distinguem os homicidas- simples e qualificados dos outros crimi- nosos, nada se poderia concluir relativamente à questão que nos ocupa. Elas parecem mesmo talvez confirmar as observações precedentes. Com efeito, provam que, por si própria, a detenção desenvolve uma forte inclinação ao suicídio. Mesmo que não se levem em conta os indivíduos que se matam no» momento de serem presos e antes de sua condenação, sobra um considerável número de suicídios que só podem ser atribuídos à influência exercida pela vida da prisão. Mas, nesse caso, o homicida simples encarcerado deveria ter uma inclinação extremamente violenta pela morte voluntária, se a agravação que já resulta de seu encarcera- mento fosse ainda reforçada pelas predisposições congênitas que se lhe atribuem. O fato é que, sob esse ponto de vista, talvez mais acima que abaixo da média, quase não se confirmaria a hipótese segundo a qual haveria, apenas em virtude de seu temperamento, uma afinidade natu- ral para o suicídio, prestes a se manifestar desde que as circunstâncias favorecessem seu desenvolvimento. Aliás, não pretendemos sustentar que ele goze de uma verdadeira imunidade; os dados disponíveis não são suficientes para encerrar a questão. É possível que, em certas con- dições, os grandes criminosos façam bom uso de sua vida e renunciem a ela sem muito pesar. Mas pelo menos o fato não tem a generalização e a necessidade logicamente implícitas na tese italiana, É o que preci- samos estabelecer. * Des prisionniers, de Pemprisionnement ex des prisons. Paris, 1850. p. 133. “Op. cit. [Du suicide et de la folie-suicide. Paris, 1865.] p. 95. 1o Le suicide dans le dépariement de Seine-er-Marne. U Op. cit po 377. ?º L'homme criminel. Trad. fr. p. 338. 130 Mas a segunda proposição dessa escola precisa ser discutida. Dado que o homicídio e o suicídio não derivam de um mesmo estado psico- lógico, é preciso pesquisar se há um antagonismo real entre as con- dições sociais de que eles dependem. A questão é mais complexa do que pensavam os autores italianos e muitos de seus adversários. É certo que, em numerosos casos, a lei da inversão não se verifica. Muito frequentemente, os dois fenômenos, em lugar de se afastarem e de se excluírem, se desenvolvem paralela- mente. Assim, na França após o fim da guerra de 1870, os homicídios simples têm manifestado certa tendência a crescer. Contou-se uma mé- dia anual de 105 somente durante os anos 1861-65; eles se elevaram a 163 de 1871 a 1876 e os assassinatos, durante o mesmo período, passaram de 175 a 201. Ora, na mesma época, os suicídios aumentaram em proporções consideráveis. O mesmo fenômeno se produziu durante os anos 1840-50. Na Prússia, os suicídios que, de 1865 a 1870, não haviam ultrapassado 3.658, atingiram 4.459 em 1876, 5.042 em 1878, num aumento de 36%. Os homicídios simples e os qualificados segui- ram o mesmo caminho: de 151 em 1869, passaram sucessivamente a 166 em 1874, 221 em 1875, 253 em 1878, num aumento de 67%. 3 O mesmo fenômeno ocorreu no Saxe. Antes de 1870, os suicídios osci- laram entre 600 e 700; só uma vez, em 1868, atingiram 800. A partir de 1876, sobem a 981, depois a 1.114, a 1.126 e, enfim, em 1880, atingiram 1.171. 14 Paralelamente, os atentados contra a vida de outrem passam de 637 em 1873 para 2.232 em 1878. 15 Na Irlanda, de 1865 à 1880, o suicídio cresce de 29%, o homicídio também quase na mesma proporção (23%), 18 Na Bélgica, de 1841 a 1885, os homicídios passaram de 47 para 139 e os suicídios de 240 para 670: isto corresponde a um acréscimo de 195% para os primeiros e de 178% para os segundos. Esses números são tão pouco conformes à lei de Ferri que chegam a colocar em dúvida a exatidão da estatística belga. Mas mesmo que se atenha aos anos mais recentes e sobre os quais os dados são menos suspeitos, chega-se ao mesmo resultado. De 1874 a 1885, o aumento é, para os homicídios, 14 Cf. OBTTINGEN, Moraistatistik. Anexos, quadro 61. 14 Ibid. Quadro 109. 15 Ibid. Quadro 65. 18 Segundo as mesmas tabelas construídas por FERRI, 131 de 51% (139 casos em lugar de 92) e, para os suicídios, de 79% (670 casos em lugar de 374). A distribuição geográfica dos dois fenômenos permite observações análogas. Os Departamentos franceses onde se contam mais suicídios são: o Sena, o Sena-e-Marme, o Sena-e-Oise, o Mame. Ora, se eles não se mantêm à frente para o homicídio, não deixam de ocupar um lugar bastante elevado: o Sena está em 26.º para os homicídios simples e no 17.º para os homicídios qualificados; o Sena-e-Marne no 33.º e 14.9; o Sena-e-Oise no 15.º e 24.º, o Mame no 27.º e no 21.º, O Var, que está em 10.º para os suicídios, é o 5.º quanto aos homicídios qualificados e o 6.º para os homicídios simples. No Baixo-Rhône, onde há muitos suicídios, mata-se igualmente muito: estão no 5.º lugar os homicídios simples e em 6.º os qualificados. 1” No mapa da distribuição do suicídio, tal como no do homicídio, a Ilha-de-França está repre- sentada por uma mancha escura, assim como a faixa formada pelos Departamentos mediterrâneos, com uma única diferença de que a pri- meira região é de uma tinta menos escura no mapa de homicídio. que sobre o mapa do suicídio, enquanto o inverso ocorre com o segundo. Da mesma forma, na Itália, Roma, terceiro distrito judiciário para as mortes voluntárias, ainda é o quarto para os homicídios qualificados. Enfim, já vimos que, nas sociedades inferiores, onde a vida é pouco respeitada, os suicídios são fregiientemente muito numerosos. Mas, por mais incontestáveis que sejam esses fatos e qualquer interesse que haja em não perdê-los de vista, existem os contrários que não são menos constantes e que são mesmo muito mais numerosos. Se, em certos casos, os dois fenômenos concordam, pelo menos parcial- mente, em' outros eles estão manifestamente em antagonism: 1.º) Se, em certas fases do século, eles progridem no mesmo sentido, as duas curvas, tomadas em conjunto, pelo menos quando se pode segui-las durante um período bastante longo, contrastam nitida- mente. Na França, de 1826 a 1880, o suicídio cresce regularmente, tal como já havíamos visto; o homicídio, ao contrário, tende a decrescer, ainda que menos rapidamente. Em 1826-30, havia anualmente 279 acusados de homicídio simples em média, enquanto não havia mais que 160 em 1876-80 e, no intervalo, seu número tinha mesmo caído para 121 em 1861-65 e para 119 em 1856-60. Em dois momentos, por 7 Esta classificação dos Departamentos é emprestada de BOURNET. De la crimi- nalité em France et en ltalie. Paris, 1884. p. 41 e 51. 136 4.9) O suicídio é muito mais urbano que rural. O contrário se dá com o homicídio. Adiciohando-se o conjunto de homicídios simples, parricídios e infanticídios, tem-se que, no campo, em 1887, cometeram- -se 11,1 crimes desse tipo e apenas 8,6 nas cidades. Em 1880 os números são mais ou menos os mesmos: eles são respectivamente 11,0:e 9,3. 5.º) Vimos que o catolicismo diminui a tendência ao suicídio, enquanto o protestantismo áumenta, Inversamente, os homicídios são muito, mais freguentes nos países católicos que entre os povos protes- tantes: Itália 70,0 234 Espanha 64,9 82 Hungria 56,2 11,9 Áustria 10,2 87 Irlanda 81 23 Bélgica 85 42 França 364 5,6 MÉDIA 32,1 941 Alemanha 34 33 Inglaterra 39 17 Dinamarca 46 37 Holanda 31 25 Escócia 44 07 MÉDIA 38 23 37 Sobretudo no que diz respeito ao homicídio simples, a oposição entre esses dois grupos de sociedades é flagrante. O mesmo contraste se observa no interior da Alemanha. Os dis- tritos que se elevam acima da média são todos católicos: é o caso de Posen (18,2 homicídios simples e qualificados por milhão de habi- tantes), Donau (16,7), Bromberg (14,8), Alta e Baixa Baviera (13,0). Da mesma maneira, no interior da Baviera, as províncias são tanto mais fecundas em homicídios quanto menos protestantes elas contam: me aa E a ni mi no e A ri o rn Palatinado do Reno 2,8] Francônia Inferior 9,0] Alto Palatinado Francônia Central 6.9] Suábia 9,2] Alta Baviera Alta Francônia 8,9 Baixa Baviera MÉDIA 55 MÉDIA 81 MÉDIA Somente o Alto Palatinado faz exceção à regra. (...) 6.º) Enfim, enquanto a vida familiar tem sobre o suicídio uma ação moderada, ela talvez estimule o homicídio simples. Durante os anos de 1884-87, um milhão de casados provocavam, em média anual, 5,07 homicídios; um milhão de solteiros acima de 15 anos, 12,7. Os “primeiros pareciam pois apresentar, com relação aos segundos, um coeficiente de preservação igual a cerca de 2,3. Só que se deve levar em conta o fato de que essas duas categorias de indivíduos não têm a mesma idade e que a intensidade da inclinação homicida varia nos diferentes momentos da vida. Os celibatários têm em média 25 a 30 anos, os casados cerca de 45. Ora, é entre os 25 e 30 anos que a tendência ao homicídio atinge seu máximo; um milhão de indivíduos dessa idade produziu anualmente 15,4 homicídios simples, enquanto aos 45 anos a taxa não passa de 6,9. A relação entre o primeiro e o segundo desses números é de 2,2. Assim, pelo “único fato de sua idade 138 mais avançada, as pessoas casadas deveriam cometer 2 vezes mais homicídios que os celibatários. Sua situação, privilegiada na aparência, não decorre de que eles sejam casados, mas de que são mais idosos. A vida doméstica não lhes confere qualquer imunidade. Ela não só preserva do homicídio, mas se pode supor que o provoca. Com efeito, é muito verossímil que a população casada des- frutasse, em princípio, de uma moralidade mais alta que a população solteira. Ela deve essa superioridade não tanto, cremos nós, à seleção matrimonial, cujos efeitos todavia não são negligenciáveis, quanto à própria ação exercida pela família sobre cada um de seus membros. É pouco duvidoso. que uma pessoa tenha menos têmpera do ponto de vista moral quando está isolada e abandonada a si mesma, que quando ela sofre a cada momento a disciplina benfazeja do meio familiar. Se pois, no que diz respeito ao homicídio, os casados não estão em situação melhor que os solteiros, é que a influência moralizante de que se bene- ficiam, e que deveria afastá-los de todos os tipos de crime, é neutra- lizada parcialmente por uma influência agravante que os impele ao crime e que devia se atribuir à vida familiar. Em resumo, o suicídio tanto coexiste com o homicídio como eles se excluem mutuamente; tanto reagem da mesma maneira sob a in- fluência das mesmas condições, quanto reagem em sentido contrário, e os casos de antagonismo são mais numerosos. Como explicar esses fatos, na aparência contraditórios? A única maneira de conciliá-los é admitir que existem diferentes espécies de suicídios, dentre os quais uns têm certo parentesco com o homicídio, enquanto outros se excluem. Pois não é possível que um mesmo fenômeno se comporte tão diferentemente nas mesmas circuns- tâncias. O suicídio que varia com o domicílio e aquele que varia no sentido contrário não podem ser da mesma natureza. E, com efeito, já mostramos que existem diferentes tipos de suicí- dio, cujas propriedades características não são as mesmas, A conclu- são do livro precedente se vê assim confirmada, ao mesmo tempo que serve para explicar os fatos que vêm de ser expostos. Por si sós eles foram suficientes para conjecturar sobre a diversidade interna do suicí- dio; mas a hipótese deixa de ser una, ligada aos resultados anteriormente obtidos, além de que estes recebem essa aproximação como uma prova suplementar. Da mesma maneira, agora que sabemos quais são os dife- rentes tipos de suicídio e em que consistem, podemos facilmente perce- ber quais são aqueles incompatíveis com o homicídio, bem como os que, 139 ao contrário, dependem em parte das mesmas causas, de onde resulta que a incompatibilidade é de fato geral. O tipo de suicídio atualmente mais frequente e que mais contribui para aumentar o número anual de mortes voluntárias é o suicídio egoísta. O que o caracteriza é um estado de depressão e de apatia pro- duzido por um individualismo exagerado. O indivíduo não resiste mais porque não resiste mais ao único intermediário que o liga ao real, qual seja, à sociedade. Tendo de si mesmo e de seu valor próprio um senti- mento muito vivo, ele deseja ser por si mesmo seu próprio fim e, como tal objetivo não poderia satisfazê-lo, suporta em toda extensão o des- gosto de uma existência que lhe parece, desde então, desprovida de sentido. O homicídio depende de condições opostas. É um ato violento que não se realiza sem paixão. Ora, onde a sociedade é integrada de tal maneira que o individualismo das partes é pouco pronunciado, a intensidade dos estados coletivos determina o nível geral da vida passio- nal; o próprio terreno não é de forma alguma favorável ao desenvolvi- mento das paixões especialmente homicidas. Onde o- espírito doméstico mantém sua antiga força, as ofensas dirigidas contra a família" são con- sideradas sacrilégios que não poderiam ser muito cruelmente vingados e cuja vingança não pode ser abandonada a terceiros. Daí é que vem a prática da vendeita que cobre de sangue ainda a nossa Córsega e certos países meridionais. Onde a fé religiosa é muito viva, ela é muitas vezes inspiradora de mortes, o mesmo ocorrendo com a crença política. Além do mais e sobretudo a corrente homicida, de uma maneira geral, é tanto mais violenta quanto menor seja o conteúdo da consciên- cia pública, isto é, os atentados contra a vida são julgados mais venais; e como lhe é atribuída tanto menos gravidade quanto menor é o valor que a moral comum atribui ao indivíduo e àquilo que o interessa, um frágil individualismo ou, para retomar nossa expressão, um estado de altruísmo excessivo conduz aos homicídios. Eis porque, nas sociedades inferiores, eles são ao mesmo tempo numerosos e pouco reprimidos. Esta frequência e indulgência relativa de que se beneficiam derivam de uma só e mesma causa. O menor respeito dispensado às personalidades individuais expõe os indivíduos mais às violências, ao mesmo tempo que provoca essas violências menos criminosas. O suicídio egoísta e o homi- cídio resultam pois de causas antagônicas e, por conseguinte, é impos- sível que um possa se desenvolver facilmente onde o outro é flores- cente. Onde as paixões sociais são vivas, o homem é muito menos inclinado, seja aos sonhos estéreis, seja aos cálculos frios do epicurista. 140 Quando se habitua a desconsiderar os destinos particulares, não é levado a se interrogar ansiosamente sobre seu próprio destino. Quando faz pouco caso da dor humana, o peso de seus sofrimentos pessoais lhe é mais leve. Ao contrário e pelas mesmas causas, o suicídio altruísta e o homi- cídio podem muito bem caminhar paralelamente; porque dependem de condições que só diferem em grau. Quando se é levado a desprezar a própria existência, não se pode estimar muito a de outrem. É por esta razão que homicídios e mortes voluntárias encontram-se igualmente em estado endêmico entre certos povos primitivos. Mas não é verossímil que se possa atribuir à mesma origem os casos de paralelismo que encontramos entre as nações civilizadas. Não se trata de um estado de altruísmo exage- rado que possa ter produzido esses suicídios, que vimos por vezes nos meios mais cultivados coexistir em grande número com os homicídios. Pois, para conduzir ao suicídio, é preciso que o altruísmo seja excepcional- mente intenso, mais intenso mesmo que para conduzir ao homicídio. Com efeito, por mais fraco que seja o valor que eu empreste à exis- tência do indivíduo em geral, o valor do indivíduo que eu sou será sempre maior aos meus olhos que aos de outrem. Dentro das mesmas condições, o homem médio é mais inclinado a respeitar a pessoa hu- mana em si mesmo que em seus semelhantes; por conseguinte, é preciso uma causa mais enérgica para abolir esse sentimento de respeito no primeiro caso que no segundo. Ora, hoje em dia, com exceção de alguns meios especiais e pouco numerosos como o exército, o gosto da impersonalidade e da renúncia é muito pouco pronunciado e os sentimentos contrários são mais gerais e mais fortes para tornar a tal ponto fácil a imolação de si mesmo. Deve pois haver uma outra forma, mais moderna, do suicídio, suscetível igualmente de se combinar com o homicídio. É o suicídio anômico. A anomia, com efeito, provoca um estado de exasperação e de lassidão irritada que pode, segundo as circunstân- cias, voltar-se contra o próprio sujeito ou contra outrem; no primeiro caso, ocorre O suicídio, no segundo, o homicídio. Quanto às causas que determinam a direção que tomam as forças assim superexcitadas, dizem respeito aparentemente à constituição moral do agente. Conforme ela seja mais ou menos resistente, tende num ou noutro sentido. Homens de moralidade medíocre matam mais do que se suícidam. Vimos mesmo que, por vezes, essas duas manifestações se produzem uma em seguida à outra e não passam de duas faces de um mesmo ato; o que demons- 141 tra seu estreito parentesco. O estado de exacerbação em que se encontra o indivíduo é tal que, para superá-lo, precisa de vítimas. Eis por que hoje em dia se encontra um certo paralelismo entre o desenvolvimento do homicídio e do suicídio, sobretudo nos grandes centros e nas regiões de civilização intensa. É que a anomia atinge aí um estado agudo. A mesma causa impede os homicídios de decrescer tão rapidamente quanto o crescimento dos suicídios. Com efeito, se os progressos do individualismo esgotam uma das fontes do homicídio, a anomia, que acompanha o desenvolvimento econômico, abre uma outra. Notadamente, pode-se crer que, na França e sobretudo na Prússia, se os homicídios de si mesmo e os de outrem aumentaram simultanea- mente depois da guerra, a razão se deve à instabilidade moral que, por causas diferentes, tornou-se maior nesses dois países. Enfim, pode-se assim explicar como, apesar dessas concordâncias parciais, o antago- nismo é o fato mais geral. E que o suicídio anômico só ocorre em massa em lugares especiais, onde a atividade industrial e comercial tiveram grande expansão. O suicídio egoísta é, aparentemente, o mais comum; ora, ele exclui os crimes de sangue. Chegamos portanto à seguinte conclusão. Se o suicídio e o homi- cídio variam freqiientemente na razão inversa um do outro, não é por- que sejam duas faces diferentes de um mesmo fenômeno; é porque constituem, de certa maneira, duas correntes sociais contrárias. Eles se excluem então como o dia exclui a noite, como as doenças de extrema secura excluem aquelas de extrema umidade. Se; não obstante, essa oposição geral não impede a harmonia, é que certos tipos de suicídio, em lugar de dependerem de causas antagônicas àquelas de onde deri- vam os homicídios, exprimem, ao contrário, o mesmo estado social e se desenvolvem no seio do mesmo meio moral. Pode-se aliás prever que os homicídios que coexistem com o suicídio anômico e aqueles que se conciliam com o suicídio altruístico não devem ser da mesma natureza; que o homicídio, por conseqgiiência, tal como o suicídio, não. é uma entidade criminológica una e indivisível, mas deve compreender uma pluralidade de tipos muito diferentes uns dos outros. Mas não é aqui o lugar de insistir sobre essa importante proposição de criminologia. Não é exato que o suicídio tenha felizes contragolpes que dimi- nuem a imoralidade e que ele leva, consegientemente, a ter interesse em não prejudicar o desenvolvimento. Não é um derivativo do homi- cídio. Não há dúvida que a constituição moral de que o suicídio egoísta 14. SOCIOLOGIA DA RELIGIÃO E TEORIA DO CONHECIMENTO * Propomo-nos estudar neste livro a religião mais primitiva e mais simples atualmente conhecida, analisá-la e tentar explicá-la. Dizemos de um sistema religioso que ele é o mais primitivo que nos seja dado observar, quando preenche as duas seguintes condições: em primeiro lugar, é preciso que seja encontrado em sociedades cuja organização não seja superada por qualquer outra em simplicidade 1; é preciso além disso que seja possível explicá-la sem introduzir qualquer elemento em- prestado de uma religião anterior. Empenhar-nos-emos em descrever a economia desse sistema com a exatidão e a fidelidade que poderiam ser dadas por um etnógrafo ou um historiador. Mas nossa tarefa não se limitará a isso. A sociologia se coloca outros problemas que a história ou a etnografia. Ela não procura conhecer as formas antigas de civilização apenas com a finali- dade de conhecê-las e reconstituí-las. Mas, como toda ciência positiva, tem por objeto antes de tudo explicar uma realidade atual, próxima de nós, capaz portanto de afetar nossas idéias e nossos atos: essa realidade é o homem e, mais especialmente, o homem de hoje, porque ninguém mais do que nós está interessado em conhecê-lo bem. Não estudaremos pois a religião mais arcaica que vai ser nosso tema, pelo único prazer de relatar suas bizarrices e singularidades. Se a tomamos como objeto de nossa pesquisa, é porque nos parece melhor do que qualquer outra * Reproduzido de DurzHEiM, E.. “Sociologie religieuse et théorie de la connais- sance” In: Les formes élémentaires de la vie religieuse, SA ed. Paris, PUF, 1968. p. 1:28. Trad. por Laura Natal Rodrigues. 1 No mesmo sentido, diremos dessas sociedades que elas são primitivas, e chama- remos de primitivo o homem dessas sociedades. A expressão é, sem dúvida, imprecisa, mas é dificilmente evitável e, aliás, quando se tem o cuidado de deter- minar-lhe o significado, ela não tem inconvenientes. 148 para compreender a natureza religiosa do homem, isto é, para revelar um aspecto essencial e permanente da humanidade. Mas essa proposição não deixa de levantar vivas objeções. Consi- dera-se estranho que, para chegar a conhecer a humanidade atual, seja preciso que se comece por voltar atrás e se transportar aos inícios da história. Essa maneira de proceder parece particularmente paradoxal na questão que nos ocupa. As religiões são tidas, com efeito, como tendo um valor e uma dignidade desiguais; diz-se geralmente que elas não contêm todas a mesma dose de verdade. Parece, pois, que não se podem comparar as formas mais elevadas do pensamento religioso com as mais baixas, sem rebaixar as primeiras ao nível das segundas. Admitir que os cultos grosseiros das tribos australianas possam nos ajudar a compre- ender o cristianismo, por exemplo, não é supor que este provenha da, mesma mentalidade, ou seja, que tenha as mesmas superstições e se assente nos mesmos erros? Eis como a importância teórica que se tem por vezes atribuído às religiões primitivas pôde passar por um índice de religiosidade sistemática que, prejulgando os resultados de uma pes- quisa, viciou-os por antecipação. Não vamos pesquisar aqui se se encontram realmente estudiosos que tenham merecido esse reparo e que tenham feito da história e da etnografia religiosas um instrumento de guerra contra a religião. Em todo caso, esse não poderia ser o ponto de vista de um sociólogo. É, com efeito, um postulado essencial da Sociologia que uma instituição humana não poderia 'se assentar sobre o erro e a mentira: sem o que ela não teria podido durar. Se não estivesse baseada na natureza das coisas, poderia encontrar nelas resistências que não conseguiria vencer. Quando pois abordamos o estudo das religiões primitivas é com a segurança de que elas se referem ao real e que o exprimem; veremos esse princípio retomado sem cessar no curso das análises e discussões que se seguem, e aquilo que reprovamos nas escolas de que nos afas- tamos é precisamente o haverem-no desconhecido. Sem dúvida, quando se considera apenas a expressão das fórmulas, essas crenças e práticas religiosas parecem por vezes desconcertantes e pode-se ser tentado a atribuí-las a uma profunda aberração. Mas sob o símbolo é preciso saber atingir a realidade que ele expressa e que lhe dá sua verdadeira significação. Os ritos mais bárbaros ou mais bizarros e os mitos mais estranhos traduzem alguma necessidade humana, algum aspecto da vida, seja individual, seja social. As razões que o fiel dá a si próprio para justificá-los podem ser, e o mais das vezes o são, erradas; as verda- deiras razões não deixam de existir; é uma tarefa da ciência descobri-las. 149 Não existem pois, no fundo, religiões que sejam falsas. Todas são erdadeiras à sua maneira: todas respondem, ainda que de diferentes odos, a determinadas condições da existência humana. Não é impos- ível, sem dúvida, dispô-las numa ordem hierárquica. Umas podem ser hamadas superiores a outras, no sentido de que desencadeiem funções nentais mais elevadas, mais ricas de idéias e de sentimentos, que incor- orem mais conceitos, menos sensações e imagens, e que a sistematização eja mais sábia. Mas, por mais reais que sejam essa maior complexi- lade e essa idealização mais elevada, não bastam para colocar as religiões :orrespondentes em tipos separados. Todas são igualmente religiões, somo todos os seres vivos são igualmente vivos, desde o mais simples srotoplasma até o homem. Se pois nos dirigimos às religiões primitivas, ão é com a intenção de depreciar a religião de uma maneira geral; sorque essas religiões não são menos respeitáveis que as outras. Elas -espondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, de- sendem das mesmas causas; podem pois servir muito bem para mani- 'estar a natureza da vida religiosa que desejamos tentar. Mas por que lhes conceder uma espécie de prerrogativa? Por que as escolher de preferência a todas as outras como objeto de nosso estudo? — É unicamente por razões de método. Antes de tudo, só podemos chegar a compreender as religiões mais recentes, acompanhando na história a maneira pela qual elas se compuseram progressivamente. A história é, de fato, o único método de análise explicativa que parece possível de lhe aplicar. Apenas cla nos permite decompor uma instituição nos seus elementos constitutivos, pois ela no-los mostra nascendo no tempo e uns após outros. Por outro lado, situando cada um deles no conjunto de circunstâncias em que nasceram, ela nos proporciona o único meio que temos de determinar as causas que os têm suscitado. Todas as vezes portanto que se pretende explicar uma coisa humana, considerada num determinado momento do tempo — quer se trate de uma crença religiosa, de uma Iegra moral, de um preceito jurídico, de uma técnica estética, de um regime econô- mico — é preciso começar por remontar até sua forma mais primitiva e mais simples, procurar descobrir os caracteres pelos quais ela se define nesse período de sua existência, para depois ver como se desen- volveu e se complicou, pouco a pouco, como veio a se tornar o que é no momento considerado. Ora, concebe-se sem dificuldade qual a sua importância, mediante essa série de explicações progressivas, bem como a determinação do seu ponto de partida. Trata-se de um prin- cípio cartésiano que, na cadeia de verdades científicas, o primeiro elo 150 desempenha um papel preponderante. Certamente, não seria o caso de colocar na base da ciência das religiões uma noção elaborada de ma- neira cartesiana, isto é, um conceito lógico, puro, possível, construído unicamente pela força do espírito. O que nos falta encontrar é uma reali- dade concreta, que apenas a observação histórica e etnográfica pode reve- lar-nos. Mas se essa concepção cardial deve ser obtida por procedi- mentos diferentes, é certo que ela é chamada a ter, sobre toda a segiiência dé proposições que a ciência estabelece, uma influência considerável, A evolução biológica foi concebida de modo totalmente diferente, a partir do momento em que se soube da existência dos seres monocelulares. Do mesmo modo, o detalhe dos fatos religiosos se explica diferentemente, conforme se coloque na sua origem evolutiva o naturismo, o animismo ou qualquer outra forma religiosa. Mesmo os sábios mais especializados, se não se limitam a uma tarefa de pura erudição, se desejam tentar compreender os fatos que analisam, são obrigados a escolher uma ou outra dessas hipóteses e a se inspirar nelas. Quer desejem ou não, as questões por eles levantadas assumem necessariamente a seguinte forma: como o naturismo ou o animismo foram determinados a assumir, aqui ou ali, tal aspecto particular, a se enriquecer ou empobrecer desta ou daqueia maneira? Posto que não se pode evitar de tomar partido nesse problema inicial e posto que a solução que se dê está fadada a afetar o conjunto da ciência, convém abordá-lo de frente, é isto que nos propomos fazer. Aliás, mesmo fora dessas repercussões indiretas, o estudo das reli- giões primitivas tem, por si mesmo, um interesse imediato, que é da maior importância, Se, de fato, é útil saber em que consiste tal ou qual religião parti- cular, importa mais ainda pesquisar o que é a religião de uma maneira geral. Este é o problema que sempre atraiu a curiosidade dos filósofos e não sem razão; porque ele interessa a toda a humanidade. Infeliz- mente, o método que eles empregam de ordinário para resolvêlo é puramente dialético: limitam-se a analisar a idéia que fazem da religião, salvo para ilustrar os resultados dessa análise mental pelos exemplos emprestados às religiões que melhor realizam seu ideal. Mas se esse método deve ser abandonado, o problema permanece inalterado e o grande serviço que a filosofia prestou foi o. de impedir que viesse a ser prescrito pelo desprezo dos eruditos. Ora, ele pode ser retomado por outras vias. Visto que todas as religiões são comparáveis, pois todas são espécies do mesmo gênero, existem necessariamente elementos essen- ciais que lhes são comuns. Por esse motivo, não pretendemos falar 151 simplesmente das características exteriores e visíveis que apresentam igualmente e que permitem dar, desde o início da pesquisa, uma defi- nição provisória; a descoberta desses sinais aparentes é relativamente fácil, porque a observação que exige não ultrapassa a superfície das coisas. Mas essas semelhanças exteriores supõem outras mais profundas, Na base de todos os sistemas de crenças e de todos os cultos deve haver, necessariamente, um certo número de representações fundamen- tais e de atitudes rituais que, apesar da diversidade de formas de que umas e outras possam se revestir, têm sempre a mesma significação objetiva e preenchem sempre as mesmas funções. Esses são os elemen- tos permanentes que constituem aquilo que há de 'etemo e de humano na religião; eles são o conteúdo objetivo da idéia que se exprime quando se fala da religião em geral. Como é possível chegar a atingi-los? Não é, por certo, observando as religiões complexas que aparecem na segiiência da história. Cada uma delas é formada por uma tal varie- dade de elementos que é muito difícil distinguir o secundário do prin- cipal e o essencial do acessório. Que se considerem religiões como as do Egito, da Índia ou da antiguidade clássica! Trata-se de uma densa mistura de cultos múltiplos, variáveis com as localidades, com os tem- plos, com as gerações, as dinastias, as invasões etc. As superstições populares estão aí misturadas com os dogmas mais refinados. Nem o pensamento nem a atividade religiosa são igualmente repartidas na massa dos fiéis; conforme os homens, os meios e as -circunstâncias, as crenças, tal como os ritos, se manifestam de maneira diferente. Aqui são os padres, lá os monges, por todo o lugar os leigos; existem os místicos, os racionalistas, os teólogos, os profetas etc. Nessas condições, é difícil perceber o que é comum a todos..Pode-se encontrar uma ma- neira de estudar utilmente, através de um ou outro desses sistemas, tal ou qual fato particular que se encontre aí especialmente desenvol- vido, como o sacrifício ou o profetismo, a vida monástica ou os mis- térios; mas como descobrir o fundo comum da vida religiosa sob a vegetação luxuriante que o recobre? Como, sob as disputas das teolo- gias, as variações dos ritos, a multiplicidade dos agrupamentos, a diver- sidade dos indivíduos, reencontrar os estados fundamentais, caracteris- ticos da mentalidade religiosa em geral? Completamente diferente é o que ocorre nas sociedades inferiores. O menor desenvolvimento das individualidades, a extensão mais fraca do grupo, a homogeneidade das circunstâncias exteriores, tudo contribui para reduzir ao mínimo as diferenças e as variações. O grupo realiza, de maneira regular, uma uniformidade intelectual e moral de que en- 156 humano em virtude de sua constituição nativa. É porque se diz que elas são a priori, Para outros, ao contrário, seriam construídas, feitas de peças e pedaços, e o indivíduo é que seria o operário dessa cons- trução. 4 (...) Eis aí dois tipos de conhecimento que são como que dois pólos contrários da inteligência. Nessas condições, reduzir a razão à experiência é fazê-la esvanecer: porque é reduzir a universalidade e a necessidade que a caracterizam a puras aparências, ilusões que podem ser cômodas do ponto de vista prático, mas que não correspondem a nada nas coisas: consiste, por conseguinte, em recusar toda realidade objetiva à vida lógica que as categorias têm por função regular e orga- nizar. O empirismo clássico conduz ao irracionalismo; talvez mesmo seja por este último termo que conviria designá-lo. Os aprioristas, apesar do sentido ordinariamente ligado a etique- tas, são mais respeitadores dos fatos. Porque eles não admitem como verdade evidente que as categorias sejam feitas dos mesmos elementos que nossas representações sensíveis, eles não são obrigados a empo- brecê-las sistematicamente, a esvaziá-las de todo conteúdo real, a redu- zilas a meros artifícios verbais. Eles lhes deixam, ao contrário, todas as suas características específicas. Os aprioristas são os racionalistas; crêem que o mundo tem um aspecto lógico que a razão exprime no mais alto grau. Mas, por esse motivo, é preciso atribuir ao espírito um certo poder de superar a experiência, de acrescentar àquilo que lhe é dado imediatamente; ora, eles não dão explicações nem justificativas deste poder singular. Porque se limitar a dizer que é inerente à natu- reza da inteligência humana não é explicar. Seria preciso ainda demons- trar de onde nos vem essa surpreendente prerrogativa e como podemos ver, nas coisas, as relações que o espetáculo das coisas não poderia nos revelar. Dizer que a própria experiência só é possível em certas condições, é talvez contornar o problema; mas não o resolve. Porque se trata precisamente de saber por que a experiência não basta, mas 4 Mesmo na teoria de Spencer é com a experiência individual que são construídas as categorias. A única diferença que existia, sob esse aspecto, entre o empirismo ordinário e o evolucionista é que, segundo este último, os resultados da expe- riência individual são consolidados pela hereditariedade. Mas essa consolidação não lhe acrescenta nada de essencial; não entra na sua composição qualquer elemento que não tenha sua origem na experiência do indivíduo. Também nesta teoria a necessidade pela qual as categorias se nos impõem atualmente é produto de uma ilusão, de uma prenoção supersticiosa, fortemente enraizada no organismo, mas sem fundamento na natureza das coisas. 157 supõe condições que lhe são exteriores e anteriores e como se faz com que essas condições .sejam realizadas, quando e como é conveniente. Para responder a essas questões imagina-se às vezes que existe, acima das razões individuais, uma razão superior e perfeita de que as primeiras emanariam e de quem resultariam por uma espécie de participação mís- tica, sua maravilhosa faculdade: é a razão divina. Mas essa hipótese tem, pelo menos, o grave inconveniente de se subtrair a todo controle experimental; ela não satisfaz pois às condições exigíveis de uma hipó- tese científica. Além do mais, as categorias do pensamento humano não são jamais fixadas sob uma forma definida; elas se fazem, se desfazem e se refazem sem cessar; mudam segundo o lugar e o tempo. À razão divina é, ao contrário, imutável. Como essa imutabilidade poderia re- fletir tal incessante variabilidade? Tais são as duas concepções que se defrontam há séculos; e, se o debate se eterniza, é que na verdade os argumentos trocados se equi- valem sensivelmente. Se a razão não passa de uma forma da experiência individual, não há mais razão. Por outro lado, reconhecendo-se-lhe os poderes que ela se atribui, mas sem admiti-lo, parece que ela é colo- cada fora da natureza e da ciência. Em presença dessas objeções opos- tas, o espírito permanece incerto. — Mas se se admite a origem social das categorias, torna-se possível uma nova atitude que permitirá, acre- ditamos nós, fugir a essas dificuldades opostas. A proposição fundamental do apriorismo é que o conhecimento se forma por dois tipos de elementos irredutíveis um ao outro & como duas camadas distintas e superpostas. Nossa hipótese mantém integral mente esse princípio. Com efeito, os conhecimentos chamados empíri- cos, os únicos de que os teóricos do empirismo se têm servido para construir a razão, são aqueles que a ação direta dos objetos suscita nos nossos espíritos. São pois estados individuais, que se explicam intei- ramente pela natureza psíquica do indivíduo. Ao contrário, se, como pensamos, as categorias são representações essencialmente coletivas, traduzem antes de tudo estados da coletividade: elas dependem da ma- neira pela qual esta é constituída e organizada, de sua moriologia, de suas instituições religiosas, morais, econômicas, etc. Existe pois, entre dois tipos de representação, toda a distância que separa 0 individual do social e não se pode mais derivar o segundo do primeiro como pão se pode deduzir a sociedade do indivíduo, º todo da parte, o complexo do simples. A sociedade é uma realidade sui generis; tem seus caracteres próprios que não são encontrados, ou não são sob a mesma forma encon- trados, no resto do universo. As representações que a exprimem têm 158 pois um conteúdo inteiramente diferente das representações puramente individuais e pode-se ter certeza, por antecipação, que as primeiras acres- centam qualquer coisa às segundas. . A própria maneira pela qual se formam umas e outras leva-as à diferenciar-se. As representações coletivas são o produto de uma imen- sa cooperação que se estende não apenas no espaço mas no tempo também; para fazê-las, uma multiplicidade de espíritos diversos asso- ciaram, misturaram e combinaram suas idéias e seus sentimentos; longas séries de gerações acumularam af sua experiência e sua sabedoria. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e mais com- plexa que a do indivíduo, aí está como que concentrada. Compreende-se desde então como a razão tem o poder de ultrapassar o alcance dos conhecimentos empíricos. Ela não o deve a não sei qual virtude miste- riosa, mas simplesmente ao fato de que, segundo uma fórmula conhe- cida, o homem é duplo. Existem nele dois seres: um ser individual que tem sua base no organismo e cujo campo de ação se encontra, por isso mesmo, estreitamente limitado, e um ser social que representa em nós a mais alta realidade, de ordem intelectual e moral, que só podemos conhecer pela observação, qual seja, a sociedade. Essa dualidade de nossa natureza tem, por consegiiência de ordem prática, a irredutibili- dade do ideal moral ao móvel utilitário e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual. Na mesma medida em que participa da sociedade, o indivíduo ultrapassa a si mesmo, tanto quando pensa, como quando age. (...) o Mas se as categorias só traduzem originalmente os estados sociais, não se segue que elas não se podem aplicar ao restante da natureza que a título de metáforas? Se elas são feitas unicamente para exprimir coisas sociais, elas só seriam capazes, ao que parece, de se estender aos outros reinos por convenção. Assim, enquanto elas nos servissem para pensar sobre o mundo físico ou biológico, só poderiam ter o valor de símbolos artificiais, úteis do ponto de vista prático, talvez, mas sem relação com a realidade. Retornaríamos pois, por outra via, ao nomi- nalismo e ao empirismo. Mas interpretar dessa maneira uma teoria sociológica do conheci- mento é esquecer que, se a sociedade é uma realidade específica, não é entretanto um império dentro do império; ela faz parte da natureza, ela é sua manifestação mais elevada. O reino social é um reino natural, que só difere dos outros por sua maior complexidade. Ora, é impossível que a natureza, naquilo que ela tem de mais essencial, seja radical- 159 mente diferente dela mesma, onde quer que seja. As relações funda- mentais que existem entre as coisas — aquelas que as categorias têm justamente por função exprimir — não poderiam ser essencialmente diferentes conforme os reinos. Se, por motivos que vamos pesquisar, elas se desprendem de uma maneira mais aparente do mundo social, é impossível que elas não se encontrem alhures, ainda que sob formas mais desenvolvidas. A sociedade as torna mais manifestas, mas ela não tem o privilégio. Eis como as noções elaboradas sob o modelo das coisas sociais podem nos ajudar a pensar sobre as coisas de uma outra ma- neira. Pelo menos se essas noções, quando são assim desviadas de sua significação primeira, desempenham, num certo sentido, o papel de símbolos, são símbolos bem fundamentados. Se apenas por isso eles são símbolos construídos, entra aí um artifício, que segue de perto a natu- reza e que se esforça por se aproximar dela cada vez mais. * No que diz respeito às idéias de tempo, de espaço, de gênero, de causa e de personalidade, se são construídas com elementos sociais, não se deve concluir que sejam despidas de todo valor objetivo. Ao contrário, sua origem social faz antes presumir que não é sem fundamento que elas estão na natureza das coisas. * A teoria do conhecimento assim renovada parece pois destinada a reunir as vantagens opostas das duas teorias rivais, sem ter os seus inconvenientes. Conserva todos os princípios essenciais do apriorismo; mas, ao mesmo tempo, se inspira nesse espírito de positividade ao qual o empirismo se esforça em satisfazer. Deixa à razão seu poder 5) racionalismo imanente a uma teoria sociológica do conhecimento é pois inter- mediário entre o empirismo e o apriorismo clássico. Para o primeiro, as cate- gorias são construções puramente artificiais; para o segundo, ao contrário, são dados naturais; para nós eles são, num certo sentido, obras de arte, mas de uma arte que imita a natureza com uma perfeição suscetível de aumentá-la sem limite. 6 Por exemplo, o que está na base da categoria de tempo é o ritmo da vida social; mas se existe um ritmo da vida coletiva, pode-se ter certeza de que existe um outro da vida individual. O primeiro é somente mais marcado e mais apa- rente que os outros. Da mesma forma, veremos que à noção de gênero é formada sobre a do grupo bumano. Mas se os homens constituem grupos na turais, pode-se presumir que existem, entre as coisas, grupos ao mesmo tempo análogos e diferentes. Os grupos naturais de coisas são os gêneros e as espécies. Se a muitos espíritos parece que não se pode atribuir uma origem social às categorias sem lhes tirar todo valor especulativo, é que a sociedade passa por não ser, ainda muito frequentemente, uma coisa natural; donde se conclui que as representações que a exprimem nada exprimem da natureza. Mas a conclusão só vale na medida em que este princípio seja válido também. 160 específico, mas leva-o em conta e isto sem sair do mundo observável. Afirma como real a dualidade da nossa vida intelectual, mas explica-o por causas naturais. As categorias deixam de ser consideradas fatos primeiros e não-analisáveis; mantêm no entanto a complexidade que análises tão simplistas como aquelas com que se contentava o empirismo não poderiam ter validade. Elas aparecem então não mais como noções muito simples, que o primeiro observador pode deduzir de suas im- pressões pessoais e que a imaginação popular teria desencontradamente complicado, mas, ao contrário, como sábios instrumentos de pensa- mento, que os grupos humanos forjaram laboriosamente ao longo dos séculos e onde acumularam o melhor de seu capital intelectual. 7? Toda uma parte da história da humanidade está aí como que resumida. Quer dizer que, para se chegar a compreendê-los e julgá-los, é preciso recor- :Ier a outros procedimentos que os usados até agora. Para saber de que são feitas essas concepções que não elaboramos, seria suficiente que interrogássemos nossa consciência; não queremos dizer que é preciso considerá-la, é a história que se deve observar, é toda uma ciência que é preciso instituir, ciência complexa, que só pode avançar lentamente, mediante um trabalho coletivo e para o qual a presente obra pretende trazer, à título de ensaio, algumas contribuições fragmentárias. Se:n fazer dessas questões objeto direto de nosso estudo, aproveitaremos todas as ocasiões que se ofereçam para levantar pelo menos algumas dessas noções que, sendo religiosas por suas origens, deviam entretanto permanecer na base da mentalidade humana. 7 Por 1 é Test 1 Por isto que é legítimo comparar as categorias às ferramentas, pois estas, de Sua parte, constituem um capital material acumulado. Alifs, entre as três noções le ferramenta, de categoria e de instituição, existe uma estreita relação. 15. SISTEMA COSMOLÓGICO DO TOTEMISMO * No trabalho a que já fizemos alusão muitas vezes, mostramos quais esclarecimentos estes fatos trazem sobre a maneira pela qual se formou entre 'os homens a noção de gênero ou de classe. Com efeito, essas classificações sistemáticas são as primeiras que encon- traríamos na história; ora, acabamos de ver que elas se modelaram pela organização social ou, melhor dizendo, que elas tomaram como modelo os próprios elementos da sociedade. Foram as fratrias que serviram de gêneros e os clãs de espécies. É porque estavam agrupados que os homens puderam agrupar as coisas; isto porque, para classificar estas últimas, limitaram-se a substituí-las por grupos formados por eles pró- prios. E se estas diversas classes de coisas não foram simplesmente justapostas umas às outras, mas ordenadas segundo um plano unitário, é porque os grupos sociais com os quais elas se confundem são eles mesmos solidários e formam, pela sua união, um todo orgânico, a tribo. A unidade destes primeiros sistemas lógicos apenas reproduz a unidade da sociedade. Uma primeira oportunidade nos é assim oferecida para verificar a proposição que enunciamos no começo desta obra, e para nos garantir que as noções fundamentais do espírito, as categorias essen- ciais do pensamento, podem ser produto de fatores sociais. O que pre- cede demonstra, com efeito, que é o caso mesmo da noção de categoria. Não pretendemos todavia recusar à consciência individual, mesmo reduzida à única força, o poder de perceber semelhanças entre as coisas particulares que ela representa para si. Está claro, ao contrário, que as classificações, mesmo as mais primitivas e as mais simples, já supõem essa faculdade. Não é ao acaso que os australianos dispõem as coisas num mesmo clã ou em clãs diferentes. Entre eles, como entre nós, as * Reproduzido de DURKHEIM, E. “Le systême cosmologique du totemisme et la notion de genre.” In: Les formes élémentaires de la vie religieuse. SA ed. Paris, PUF, 1968. Liv. 2º, cap. 3.9, p. 205-11, Trad. por Laura Natal Rodrigues. 16. SOCIEDADE COMO FONTE DO PENSAMENTO LÓGICO * o Fregiientemente os teóricos que se dispuseram à exprimir a reli- glão em termos racionais viram nela, antes de tudo, um sistema d idéias, respondendo a um determinado objeto. Esse objeto foi c q cebido de maneiras diferentes: natureza, infinito desconhecido, ideal etc.; mas essas diferenças importam pouco. Em todo caso, as crenças, consideradas elemento essencial da religião, eram representa. ções. Quanto aos ritos, só aparecem, sob esse ponto de vista, como uma deadução exterior, contingente e material daqueles estados interio- que, por si sós, eram considerados como tendo um valor intrínseco. Essa concepção é de tal maneira difundida que, na maior parte das vezes, os debates a propósito da religião giraram em torno da questã de saber se ela pode ou não se conciliar com a ciência, isto eve ko lado do conhecimento científico, existe um lugar para outra forma de Pensamento que seria especificamente religioso. o Mas os crentes, homens que, vivendo a vida religiosa, têm a sen- sação direta daquilo que a constitui, objetam a essa maneira de ver que ela não corresponde à sua experiência quotidiana. Eles sentem, com efeito, que a verdadeira função da religião não é a de nos fazer pensar, de enriquecer nosso conhecimento, de acrescentar às represen- tações' que devemos à ciência representações de outra origem e de outro caráter, mas de nos fazer agir, de nos ajudar a viver. O fiel em comunhão com seu deus não é apenas um homem que vê as verdades novas que o incréu ignora: é um homem que pode mais. Ele sente mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las. Ele como que é elevado acima das misérias humanas, porque * : Reproduzido de DurkHeiM, E. “Conclusion.” In: Les formes élémentaires de la vie religieuse, 5.3 EE Rodiigues ed. Paris, PUF, 1968. p. 594-638. Trad. por Laura Natal 167 é elevado acima de sua condição de homem; acredita-se salvo do mal, qualquer que seja a forma pela qual o conceba. O primeiro artigo de toda fé é a crença na salvação pela fé. Ora, não se vê como uma simples idéia poderia ter tal eficácia. Uma idéia, com efeito, não passa de um elemento: de nós mesmos; como poderia ela nos conferir poderes supe- riores àqueles que temos por nossa natureza? Por mais rica que seja em virtudes afetivas, ela nada poderia acrescentar à nossa vitalidade natural; porque ela só pode desencadear forças emotivas que estão em nós, não criá-las, nem acrescê-las. Do fato de que nos representamos um objeto como digno de ser amado e buscado não se segue que nos sintamos mais fortes; mas é preciso que esse objeto desprenda energias superiores àquelas de que dispomes e, mais, que tenhamos algum meio de fazê-las penetrar em nós e de misturá-las na nossa vida interior. Ora, para isso, não basta que pensemos neles, mas é indispensável que nos coloquemos sob sua esfera de ação, que mudemos de posição para que possamos melhor sentir sua influência; em uma palavra, é preciso que ajamos e que repitamos os atos que sejam assim necessários, todas as vezes que seja útil para renovar seus efeitos. Percebe-se como, desse ponto de vista, tal conjunto de atos regularmente repetidos, que constitui o culto, retome toda a sua importância. De fato, qualquer um que tenha realmente praticado uma religião sabe muito bem que é o culto que suscita essas impressões de alegria, de paz interior, de serenidade, de entusiasmo, que são, para o fiel, como que a prova experimental de suas crenças. O culto não é simplesmente um sistema de símbolos pelos quais a fé se traduz exteriormente, é a coleção de meios pelos quais ela se cria e se recria periodicamente. Consistindo em operações mate- riais ou mentais, ele é sempre eficaz. Todo o nosso estudo repousa sobre o postulado de que esse senti- mento unânime dos crentes de todos os tempos não pode ser pura- mente ilusório. Tal como um recente apologista da fé, ! admitimos pois que as crenças religiosas repousam sobre uma experiência específica, cujo valor demonstrativo, em um certo sentido, não é inferior àquele das experiências científicas, embora seja diferente. Nós também pen- samos “que uma árvore se conhece pelos seus frutos” 2 e que sua fecundidade é a melhor prova do que valem suas raízes. Mas o fato de existir, digamos, uma “experiência religiosa” e de que ela tenha de qualquer maneira um fundamento — e existe aliás alguma experiência 1 James, William. The Varieties of Religious Experience. 21d. Op. cit. (p. 19 da trad. francesa). 168 que não o tenha? — não se segue de maneira alguma que a realidade que a fundamente seja objetivamente conforme à idéia que dela fazem os crentes. O próprio fato de que a maneira pela qual ela foi concebida tenha variado infinitamente no tempo basta para provar que nenhuma dessas concepções a exprime adequadamente. Se o cientista coloca como um axioma que as sensações de calor e de luz que os homens sentem correspondem a alguma causa objetiva, não se conclui que esta seja tal como parece aos sentidos. Da mesma maneira, se as impressões que sentem os fiéis não são imaginárias, elas não constituem entretanto intuições privilegiadas; não há razão alguma para pensar que elas nos informem melhor sobre a natureza de seu objeto que as sensações vulgares sobre a natureza dos corpos e de suas propriedades. Para descobrir no que consiste esse objeto, é preciso pois fazê-lo sofrer uma elaboração análoga àquela que substituiu a representação sensível do mundo pela representação científica e conceitual. Ora, é precisamente isso que tentamos fazer e vimos que essa realidade, as mitologias, é representada sob muitas formas diferentes, mas que a causa objetiva, universal e eterna dessas sensações sui generis de que é feita a experiência religiosa é a sociedade. Demonstramos quais as forças morais que ela desencadeia e como desperta esse senti- mento de apoio, de salvaguarda, de dependência tutelar que liga o fiel ao seu culto. É ela que o eleva acima de si mesmo; é ela mesma que o faz. Pois o que faz o homem é esse conjunto de bens intelectuais que constitui a civilização, e esta é obra da sociedade. Assim se explica o papel preponderante do culto em todas as religiões, quaisquer que sejam elas. A sociedade só pode fazer sentir sua influência se ela é um ato, e ela só é um ato se os indivíduos que a compõem estão reunidos e agem em comum. É pela ação comum que ela toma consciência de si e se afirma; ela é, antes de tudo, uma cooperação ativa. Mesmo as idéias e os sentimentos coletivos só são possíveis graças aos movimentos exteriores que os simbolizam, assim como pudemos ver. É pois a ação que domina a vida religiosa e só por isso que a sociedade é sua fonte. Além de todas as razões que foram dadas para justificar essa con- cepção, talvez se deva acrescentar uma última que resulta de toda esta obra. Estabelecemos ao longo dela que as categorias fundamentais do pensamento e, por conseguinte, da ciência têm origens religiosas. Vimos que o mesmo ocorre com a magia €, portanto, com as diversas técnicas decorrentes. Por outro lado, sabe-se há muito tempo que, até um período relativamente avançado da evolução, as regras da moral e do direito 169 foram indistintas das prescrições rituais. Pode-se portanto dizer, em resumo, que quase todas as grandes instituições sociais nasceram da religião. 3 Ora, para que os principais aspectos da vida coletiva tenham começado por ser meras variedades da vida religiosa, é preciso evidente- mente que a vida religiosa seja a forma mais elevada e como que uma expressão abreviada de toda a vida coletiva. Se a religião engendrou a alma da religião. As forças religiosas são portanto forças humanas, forças morais. Sem dúvida, posto que os sentimentos coletivos só podem ter consciên- cia de si mesmos fixando-se em objetos exteriores, aqueles não se po- dem constituir sem tomar das coisas alguns de seus caracteres: elas adquirem assim uma espécie de natureza física; sob essa forma elas são levadas a se confundir com a vida do mundo material e é por intermédio dele que se acreditava poder explicar o que se passa. Mas quando se as considera só por esse lado e nesse papel, só se vê o que elas têm de mais superficial. Na realidade, é à consciência que são emprestados os elementos essenciais de que elas são feitas. Parece que, normalmente, elas só têm um caráter humano quando são pensadas sob a forma humana; * mas mesmo as coisas mais impessoais e anôni- mas não passam de sentimentos objetivados. É com a condição de ver as religiões por esse viés que se torna possível perceber seu verdadeiro significado. Considerados nas aparên- cias, os ritos parecem ser por vezes o efeito de operações puramente manuais: são unções, lavagens, refeições. Para se consagrar uma coisa, ela é colocada em contato com uma fonte de energia religiosa, tal como hoje em dia, para aquecer um corpo ou eletrificá-lo, ele é colo- cado em ligação com uma fonte de calor ou de eletricidade; os procedimentos empregados num caso e no outro não são essencialmente 3 Uma única forma de atividade social não foi ainda expressamente referida à religião: é a atividade econômica. Todavia, as técnicas que derivam da magia parecem, por si mesmas, ter origens indiretamente religiosas. Além do mais, O valor econômico é uma espécie de poder e nós conhecemos as origens religiosas da idéia do poder. À riqueza pode ser conferida pelo mana; ela portanto o tem. Por isso se percebe que as idéias do valor econômico e do religioso não dessem de ter alguma relação. Mas a questão de saber qual é a natureza dessa relação não foi aínda estudada. o 4E por essa razão que Frazer é mesmo Preuss colocam as forças religiosas impessoais fora, ou, pelo menos, no portal da religião, para ligá-las à magia. 170 diferentes. Assim entendida, a técnica religiosa parece ser uma espécie de mecânica mística. Mas essas manobras materiais não passam de um invólucro externo sob o qual se dissimulam operações mentais. Final- mente, não se trata de exercer uma coerção física sobre forças cegas e portanto imaginárias, mas de atingir as consciências, de fortalecê-las e discipliná-las. Diz-se muitas vezes que as religiões inferiores eram materialistas. A expressão é inexata. Todas as religiões, mesmo as mai: rústicas, são, num certo sentido, espiritualistas: os poderes que elas desprendem são, antes de tudo, espirituais e, por outro lado, é sobre a vida moral que eles têm por principal função de agir. Compreende-se assim que o que se fez em nome da religião não teria sido em vão: porque foi necessariamente a sociedade dos homens, a humanidade, que colheu os seus frutos. (...) Assim, a formação de um ideal não constitui um fato irredutível, que escapa à ciência; ele depende das condições que podem ser atin- gidas pela observação: trata-se de um produto natural da vida social. Para que a sociedade possa tomar consciência de si mesma e manter, num grau de intensidade necessário, o sentimento que tem de si mesma, é preciso que ela se reúna e se concentre. Ora, essa concentração deter- mina uma exaltação da vida moral, que se traduz por um conjunto de concepções ideais em quç vem manifestar-se uma nova vida assim des- pertada; elas correspondem a esse afluxo de forças psíquicas que se superpõem portanto àquelas de que dispomos para as tarefas quoti- dianas da vida. Uma sociedade não se pode criar nem se recriar sem, ao mesmo tempo, criar um ideal, Essa criação não é para ela uma espécie de indulgência pela qual ela se completaria, uma vez formada; é o ato pelo qual ela se faz e se refaz periodicamente. Da mesma forma, quando se contrapõe a sociedade ideal à sociedade real como dois anta- gonistas que nos conduziriam para sentidos contrários, realizamos e comparamos abstrações. A sociedade ideal não se coloca fora da socie- dade real; faz parte dela. Não se pode participar delas como dois pólos que se 'repelem, mas não se pode estar numa sem estar na outra. Isto porque uma sociedade não é constituída simplesmente pela massa de indivíduos que a compõem, pelo território que eles ocupam, pelas coisas de que se servem, pelos movimentos que executam, mas, antes de tudo, pela idéia que ela faz de si mesma. Ocorre, sem dúvida, que ela hesita sobre a maneira pela qual deve se conceber: sente-se solicitada em sentidos divergentes. Mas esses conflitos, quando ocorrem, têm lugar não entre o ideal e a realidade, mas entre ideais diferentes, entre aquele de ontem e o de hoje, entre o que tem a tradição como autoridade e 171 o que está apenas em vias de vir a ser. Pode-se certamente pesquisar a evolução dos ideais, mas, qualquer solução que se dê ao problema, não é menos certo que tudo se passa no mundo do ideal. Não quer dizer que o ideal coletivo expresso pela religião se deva a não sei qual poder inato do indivíduo; é melhor dizer que foi na vida coletiva que o indivíduo aprendeu a idealizar. Foi assimilando os ideais elaborados pela sociedade que se tornou capaz de conceber o ideal, Introduzindo-o na sua esfera de ação, a sociedade fê-lo contrair a necessidade de se alçar acima do mundo experimental e forneceu-lhe ao mesmo tempo os meios de conceber um outro mundo. Pois esse mundo novo ela o construiu ao construir-se a si mesma, visto que ela o exprime. Assim, tanto entre os indivíduos como no grupo, a faculdade de idealizar nada tem de misteriosa. Ela não é uma espécie de luxo que o homem poderia dispensar, mas uma condição de sua existência. Ele não seria um ser social, isto é, não seria um homem, se não a tivesse adquirido. Sem dúvida, os ideais coletivos, ao se encarnarem nos indivíduos, tendem a individualizar-se. Cada um os entende à sua maneira e lhes empresta sua feição; eliminam-se alguns elementos e acrescentam-se outros. O ideal pessoal deriva pois do ideal social, na medida em que a personalidade individual se desenvolve e se torna uma fonte autônoma de ação. Mas se pretendemos compreender essa atitude, tão singular na aparência, de viver fora da realidade, basta refefila às condições sociais de que depende. É preciso evitar ver essa feoria da religião como simples restabe- lecimento do materialismo histórico: isso seria desprezar demais nosso pensamento. Ao mostrarmos a religião como uma coisa essencialmente social, não queremos dizer que ela se limite a traduzir, numa outra linguagem, as formas materiais da sociedade e suas necessidades vitais imediatas. Sem dúvida, consideramos evidente que a vida social depende de seu substrato e traz sua marca, da mesma forma que a vida mental do indivíduo depende do encéfalo e mesmo do organismo como um todo. Mas a consciência coletiva é outra coisa que simples epifenômeno de sua base morfológica, tal como a consciência individual é outra coisa que uma simples germinação do sistema nervoso. Para que a primeira apareça, é preciso que se produza uma síntese sui generis das consciências particulares. Ora, essa síntese tem por resultado desen- cadear todo um mundo de sentimentos, de idéias, de imagens que, uma vez nascidas, obedecem a leis que lhe são próprias. Elas atraem-se, repelem-se, fundem-sé, desmembram-se e proliferam sem que todas 176 poder tratar com seus semelhantes; mas a assimilação é sempre imper- feita. Cada um de nós as vê à sua maneira. Existem as que nos esca- pam completamente, que permanecem fora do nosso círculo visual; outras de que só percebemos certos aspectos. Existem mesmo muitas que deformamos ao pensarmos sobre elas; pois como são coletivas por natureza, não podem se individualizar sem serem retocadas, modificadas e, por conseguinte, falsificadas. Daí resulta que temos tantas dificuldades para nos entendermos que, muitas vezes, mentimos sem o saber: é que todos empregamos os mesmos termos sem lhes dar o mesmo sentido. Pode-se agora entrever qual é a participação da sociedade na gêne- se do pensamento lógico. Este só é possível a partir do momento em que, acima das representações fugidias que a experiência sensível nos proporciona, o homem chega a conceber todo um mundo de ideais estáveis, lugar comum das inteligências. Pensar logicamente, com efeito, é sempre, em alguma medida, pensar de maneira impessoal; é também pensar sub specie aeterninatis. As duas características da verdade são impersonalidade e estabilidade. Ora, a vida lógica supõe evidentemente que o homem sabe, pelo menos confusamente, que existe uma verdade distinta das aparências sensíveis. Mas como poderia ele alcançar essa concepção? Raciocinamos fregiientemente como se ela devesse apresen- tar-se-lhe espontaneamente, assim que abrisse os olhos para o mundo. Entretanto, nada há na experiência imediata que possa sugeri-la; tudo mesmo a contradiz. A criança e o animal igualmente não têm a suspeita. A história mostra por sinal que ela leva séculos para se desprender e se constituir. No nosso mundo ocidental foi com os grandes pensadores da Grécia que, pela primeira vez, ela tomou uma clara consciência de si mesma e das consegiiências que implica; e, quando se fez a desco- berta, foi um encantamento, traduzido por Platão em linguagem mag- nílica. Mas se foi somente nessa época que a idéia veio se exprimir em fórmulas filosóficas, ela necessariamente preexistia num estado de sentimento obscuro. Os filósofos procuram elucidar, mas não criam esse sentimento. Para que eles pudessem refletir e anatisá-lo, era preciso que ele lhes fosse dado e tratava-se de saber de onde ele vinha, isto é, em que experiência se baseava esse sentimento. É na experiência coletiva. E sob a forma do pensamento coletivo que o pensamento im- pessoal se revelou à humanidade pela primeira vez; e não se vê outra via por onde se poderia ter feito essa revelação. Por isso que, se a sociedade existe, existe também, fora das sensações e das imagens .indi- viduais, todo um sistema de representações que apresentam propriedades maravilhosas. Por seu intermédio, os homens se compreendem, as inte- 177 ligências se penetram umas nas outras. Elas são possuídas por uma espécie de força e de ascendência moral, em virtude da qual se impõem aos espíritos particulares. Desde que o indivíduo se dá conta, pelo menos obscuramente, de que, acima de suas representações privadas, existe um mundo de noções-tipo, segundo as quais ele pode regular suas idéias, entrevê todo um reino intelectual de que participa, mas que o excede. Trata-se da primeira intuição do reino da verdade. Sem dúvida, a partir do momento em que ele tem consciência dessa intelec- tualidade superior, empenha-se em perscrutar a natureza; busca saber de onde advêm as prerrogativas dessas elevadas representações e, na medida em que julga ter descoberto as causas, incorpora-as a fim de tirar, por suas próprias forças, os efeitos que elas implicam; quer dizer que ele concede a si mesmo o direito de elaborar os conceitos. Assim, a faculdade de conceber se individualiza. Mas para compreender bem as origens da função, é preciso referir-se às condições sociais de que ela depende. Objetar-se-á que só mostramos o conceito por um de seus aspec- tos, que ele não tem por papel apenas- garantir a concordância dos espíritos uns com os outros, mas também, e mais ainda, sua concor- dância com a natureza das coisas. Parece que só tem sua razão de ser na condição de ser verdadeiro, isto é, objetivo, e que sua imperso- nalidade deve ser uma consegiiência de sua objetividade. E nas coisas pensadas tão adequadamente quanto possível que os espíritos deveriam comungar. Não negamos que a evolução conceitual se faça em parte nesse sentido. O conceito que, primitivamente, era tido por verdadeiro porque coletivo, tende a se tornar coletivo com a condição de ser tido por verdadeiro: solicitamos-lhe 'seus títulos antes de lhe conceder nosso acordo. Mas antes de tudo é preciso não perder de vista que, ainda hoje, a grande generalidade dos conceitos de que nos servimos não se constituiu metodicamente; nós os herdamos pela linguagem, ou seja, pela experiência comum, sem que tenham sido submetidos a qualquer crítica prévia. Os conceitos cientificamente elaborados e criticados cons- tituem sempre uma pequena minoria. Além do mais, entre eles e aqueles que derivam sua autoridade apenas do fato de serem coletivos, só exis- tem diferenças de grau. Uma representação coletiva, porque coletiva, já apresenta garantias de objetividade; pois não é sem razão que ela pode generalizar-se e manter-se com suficiente persistência. Se ela esti- vesse em desacordo com a natureza das coisas, não poderia ter alcan- gado um domínio extenso e prolongado sobre os espíritos. No fundo, o que provoca a confiança inspirada pelos conceitos científicos é que 178 eles são suscetíveis de serem metodicamente controlados. Ora, uma representação coletiva está necessariamente submetida a um controle repetido indefinidamente: os homens é que lhe concedem a versificação pela própria experiência. Ela não poderia pois ser completamente ina- dequada ao seu objeto. Ela pode, sem dúvida, exprimi-lo com a ajuda de símbolos imperfeitos, mas os símbolos científicos por si próprios não são mais que aproximações. É precisamente esse princípio que está na base do método que seguimos no estudo dos fenômenos religiosos: consideramos um axioma que as crenças religiosas, por estranhas que possam ser por vezes na aparência, têm sua verdade que é preciso descobrir. Inversamente, falta ver que os conceitos, mesmo quando são cons- truídos segundo todas as regras da ciência, retiram sua autoridade ape- nas do seu valor objetivo. Não basta que eles sejam verdadeiros para serem acreditados. Se eles não estão em harmonia com outras crenças, outras opiniões, em uma palavra, com o conjunto de representações coletivas, eles serão negados; os espíritos se lhes fecharão; seriam por- tanto como se não existissem. Se atualmente basta em geral que eles tragam o epíteto de científico para alcançar uma espécie de crédito privilegiado, é porque temos fé na ciência. Mas essa fé não difere essencialmente da fé religiosa. O valor que atribuímos à ciência depende, em suma, da idéia que fazemos coletivamente de sua natuteza € de seu papel na vida; quer dizer, ela exprime um estado de opinião. Isto porque, de fato, como tudo na vida social, a própria ciência se assenta na opinião. Sem dúvida, pode-se tomar a opinião como objeto de estudo e fazer ciência; é nisto principalmente que consiste a sociologia. Mas a ciência de opinião não faz opinião; ela só pode esclarecer, torná-la mais consciente de si. Por isso que é verdade que ela pode levar a mudar; mas a ciência continua a depender da opinião, no momento em que ela parecia fazer lei; porque, como demonstramos, é da opinião que ela tira a força necessária para agir sobre a opinião. Dizer que os conceitos exprimem a maneira pela qual a sociedade Tepresenta para si as coisas, significa também que o pensamento con- ceitual é contemporâneo da humanidade. Recusamo-nos pois à ver nele o produto de uma cultura mais ou menos tardia. Um homem que não pensasse por conceitos não seria um homem; pois não seria um ser social, Reduzido apenas aos preceitos individuais, seria indistinto do animal. Se a tese contrária pudesse ser sustentada, é porque se teria definido o conceito por características que não lhe são essenciais. Nós 179 a identificamos com a idéia geralº e com uma idéia geral nitidamente limitada e circunscrita. º Nessas condições, poderia parecer que as socie- dades inferiores não conhecem o conceito propriamente dito: porque só dispõem de procedimentos rudimentares de generalização e as noções de que se servem não são geralmente definidas. Mas a maior parte dos nossos conceitos atuais têm a mesma indeterminação: só nos preocupa- mos em defíni-los nas discussões e quando fazemos o trabalho de eru- dito. Por outro lado, vimos que conceber não é generalizar. Pensar conceitualmente não é simplesmente isolar e agrupar as características comuns de um certo número de objetos: isso é tomar o variável pelo permanente, o individual pelo social. Visto que o pensamento lógico começa com o conceito, segue-se que ele sempre existiu; não houve período histórico durante o qual os homens tivessem vivido, de uma maneira crônica, na confusão e na contradição. Certamente, não pode- ríamos insistir muito sobre as características diferenciais que apresentã a lógica nos diversos períodos históricos. Mas, por reais que sejam as diferenças, elas não deveriam menosprezar as similitudes que não são menos essenciais. (...) . o. Em resumo, a sociedade não é, de maneira alguma, o ser ilógico ou alógico, incoerente e fantástico, que se quer ver nela muitas vezes. Ao contrário, a consciência coletiva é a forma mais elevada da vida psíquica, visto que é uma consciência das consciências. Situada fora e acima das contingências individuais e Jocais, só vê as coisas por seu aspecto permanente e essencial, as quais ela fixa em noções comuni- cáveis. Ao mesmo tempo que ela vê do alto, vê ao longe; a cada mo- mento do tempo, abrange toda a realidade conhecida; eis por que só ela pode proporcionar aos espíritos os marcos que se aplicam à totali- dade dos seres e que permitem pensar sobre eles. Ela não cria esses marcos artificialmente: encontra-os em si própria; nada mais faz que tomar consciência deles. Eles traduzem as maneiras de ser que se en- contram em todos os níveis do real, mas que só aparecem com toda a clareza na cúpula, visto que a extrema complexidade da vida coletiva que aí se descórtina necessita maior desenvolvimento da consciência. Atribuir origens sociais ao pensamento lógico não é pois rebaixá-lo, nem diminuir seu valor e reduzilo a meras combinações artificiais; é, 8 Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures, p. 131-138. 9Ibid. p. 446. 180 ao contrário, relacioná-lo a uma causa que o envolve naturalmente. Não quer dizer necessariamente que as noções dessa maneira elaboradas se encontrem imediatamente adequadas aos seus objetivos. Se a sociedade é qualquer coisa de universal com relação ao indivíduo, não deixa de ser ela mesma uma individualidade que tem sua fisionomia pessoal, sua idiossincrasia; é um sujeito particular e que, por consegiiência, particula- riza O que pensa. As representações coletivas contêm pois, elas também, elementos subjetivos e é necessário que elas sejam progressivamente depuradas para se tornarem mais próximas das coisas. Mas, por mais grosseiras que possam ser na sua origem, ocorre que, com elas, O germe de uma mentalidade nova é dado àquela que o indivíduo jamais poderia criar pelas suas próprias forças; por conseguinte, o caminho está aberto ao pensamento estável, impessoal e organizado que, em segiiência, só teria de desenvolver sua natureza. Aliás, as causas que determinaram esse desenvolvimento parecem não diferir especificamente daquelas 'que o germe inicial suscitou. Se o pensamento lógico tende cada vez mais a se desembaraçar dos ele- mentos subjetivos e pessoais que traz na sua origem, não é porque os fatores extra-sociais tenham intervindo; é antes porque uma vida social de tipo novo se desenvolveu cada vez mais. Trata-se dessa via inter- nacional que já teve por efeito universalizar as crenças religiosas. Na medida em que ela se estende, o horizonte coletivo se alarga; a socie- dade deixa de aparecer como o todo por excelência, para se tornar parte de um todo muito mais vasto, de fronteiras indeterminadas e suscetíveis de recuarem indefinidamente. Por conseguinte, as coisas não podem permanecer nos marcos sociais em que foram primitivamente clássificadas; procuram organizar conforme os princípios que lhes são próprios e assim, a organização lógica diferencia-se da organização so- cial e torna-se autônoma. Eis, ao que parece, como os laços que ligavam desde cedo o pensamento às individualidades coletivas determinadas vão-se destacando cada vez mais; como, por consequência, ela se torna sempre impessoal e se universaliza. O pensamento verdadeiro e propria- mente humano não é um dado primitivo; é um produto da história; é um limite ideal de que nos aproximamos cada vez mais, mas que, ao que parece, não conseguiremos atingir jamais. Assim, não quer dizer que haja, entre a ciência de um lado, a moral e a religião de outro, uma espécie de antinomia que se admitiu muitas vezes; esses diferentes tipos de atividade humana derivam, na realidade, de uma única e mesma fonte. É isto que Kant compreendeu muito bem e porque ele fez da razão especulativa e da razão prática dois aspectos diferentes da mesma faculdade. O que, segundo ele, fez a unidade dela, é que as duas são orientadas para-o universal. Pensar racionalmente é pensar segundo as leis que se impõem à universalidade dos seres racionais; agir moralmente é conduzir-se segundo as máximas que possam, sem contradição, ser estendidas à universalidade das von- tades. Em outros termos, a ciência e a moral implicam que o indivíduo é capaz de se elevar acima do seu próprio ponto de vista e viver uma vida impessoal. Não há dúvida, com efeito, que não esteja aí um traço comum a todas as formas superiores do pensamento e da ação. O kantismo só não explica de onde vem o tipo de contradição que o homem se vê assim realizar. Por que seria ele constrangido a se violentar para sobrepor sua natureza de indivíduo e, inversamente, por que a Jei impessoal é obrigada a se rebaixar, encarnando-se nos indivíduos? Dir-se-ia que existem dois mundos antagônicos dos quais participamos igualmente: o mundo da matéria e dos sentidos de um lado, o mundo da razão pura e impessoal de outro? Mas isto é repetir a questão em termos pouco diferentes; pois se trata precisamente de saber por que devemos conduzir concorrentemente essas duas existências. Por que mo- tivo esses dois mundos, que parecem contradizer-se, não permanecem fora um do outro e do que necessitam para se penetrarem mutuamente, a despeito de seu antagonismo? A única explicação que jamais foi dada dessa necessidade singular é a hipótese da queda, com todas as difi- culdades que ela implica e que é inútil repetir aqui. Ao contrário, todo mistério desapareceu no momento em que se reconheceu que a razão. impessoal não é senão outro nome dado ao pensamento coletivo. Pois este só é possível pelo agrupamento dos indivíduos; ela os supõe por- tanto e, por sua vez, eles a supõem porque só se podem manter agru- pando-se. O reino dos fins e das verdades impessoais só pode realizar-se pelo concurso das vontades e das sensibilidades particulares, e as razões pelas quais estas participam são as mesmas pelas quais elas concorrem. Em uma palavra, existe o impessoal em nós porque existe aí o social e como a vida social compreende, por sua vez, representações e prá- ticas, essa impersonalidade se estende naturalmente às idéias como aos atos. Talvez cause espanto o fato de relacionarmos à sociedade as for- mas sociais mais elevadas da mentalidade humana: a causa parece bem simples, com relação ao valor que damos ao seu efeito. Entre o mundo dos sentidos e dos apetites de um lado e aquele da razão e da moral de outro, a distância é tão considerável que o segundo parece ter podido 186 australianas, nas quais até hoje passou desapercebida; mas não podemos prejulgar resultados de observações que não forem feitas. Os documen- tos de que dispomos atualmente nos permitem afirmar, todavia, que essa classificação certamente é ou foi muito espalhada. Em primeiro lugar, essa forma de classificação não foi observada diretamente em muitos casos, mas totens secundários foram encontrados e nos foram assinalados; e estes, como vimos, supõem tal classificação. Observação que é notadamente verdadeira para as ilhas do estreito de Torres, vizinhas da Nova Guiné Britânica. Em Kiwai, os clãs possuem quase todos por totem (miramara) espécies vegetais; um deles, o da árvore de palma (nipa), tem por totem secun- dário o caranguejo, que habita a árvore do mesmo nome. !º Em Mabuiag (ilha situada a oeste do estreito de Torres) !! encontramos uma organiza- são de clãs agrupados em duas fratrias: a do pequeno augiid (augid sig- nífica totem) e a do grande augid. Uma é a fratria da terra, a outra, a fratria da água; uma acampa a favor do vento, a outra contra o vento; uma está a leste, a outra a oeste. A da água tem por totens a vaca-marinha * e um animal aquático que Haddon chama de shovel- -nose skate; Os totens da outra são todos auimais terrestres, com exceção do crocodilo, que é anfíbio: o crocodilo, a serpente, o casoar. 'º Aí estão evidentemente traços importantes de classificação. Ainda mais, Haddon menciona expressamente “totens secundários ou subsidiários propria- mente ditos”: o tubarão-martelo, o tubarão, a tartaruga, a raia-de-ferrão (sting ray) estão ligados assim à fratria da água; o cão, à fratria da terra. Dois outros subtotens estão ainda atribuídos a esta última; são os ornamentos feitos de conchas em forma de crescente. 1º Se lembrar- mos que, em todas essas ilhas, o totemismo está em pfena decadência, parecer-nos-á muito legítimo considerar tais fatos como restos de um sistema mais completo de classificação. É também muito possível que uma organização análoga se encontre noutros lugares do estreito de 10 Happon. Head Hunters, Londres, 1901. p. 102. 1 Sabe-se, desde as obras de Haddon (Head Hunters. p. 13 e “The Etnography of the Westem Tribe of Torres Straits” J. 4. I. XIX, p. 39) que o totemismo não é encontrado senão nas ilhas de Oeste, e não nas de Leste. * Dugong. (N. do T.) 12 HADDON. Head Hunters, p. 132. Mas os nomes que damos às fratrias não são dados por Haddon. 13 HADDON. Jbid. p. 138. Cf. RIVERS, W. H. “A Genealogical Method of Collec- ting”, etc. 7. A. 1 1900. p. 75 et segs. 187 Torres e no interior da Nova Guiné. O princípio fundamental, isto é, a divisão em fratrias e em clãs agrupados três a três, foi formalmente constatado em Asibai (ilha do estreito) e em Daudai. ! Sentimo-nos tentados a apontar traços da mesma classificação nas ilhas Murray, Mer, Waier' e Dauar. ! Sem entrar em detalhes sobre a organização social delas, tal qual no-la descreveu Hunt, chamamos a atenção sobre o seguinte fato. Um certo número de totens existe entre esses povos. Cada um dos totens confere aos indivíduos, deles porta- dores, poderes variados sobre diferen es espécies de coisas. Assim, aos indivíduos que têm por totem o tambor, estão atribuídos os poderes seguintes: é a eles que compete realizar a cerimônia que consiste em imitar os cães e em tocar os tambores; são eles que fornecem os feiti- ceiros encarregados de fazer multiplicar as tartarugas, de assegurar a colheita das bananas, de adivinhar os assassinos por meio dos movimen- tos do lagarto; são eles, finalmente, que impõem o tabu da serpente. Pode-se, pois, dizer com verossimilhança que ao clã do tambor estão ligados, de. certa maneira, além do próprio tambor, a serpente, as ba- nanas, os cães, as tartarugas, 2s lagartos. Todas estas coisas dependem, pelo menos parcialmente, de 1m mesmo grupo social e, por conseguinte, como as duas expressões são no fundo sinônimas, de uma mesma classe de seres. 16 A mitologia astronômica dos australianos apresenta marcas desse mesmo sistema mental. Efetivamente, sua mitologia é, por assim dizer, modelada sobre a organização totêmica. Os nativos dizem, quase por toda a parte, que tal astro é determinado antepassado. 17 E mais que provável que se deveria mencionar para o astro, como para o indivíduo com o qual se confunde, a que fratria, a que classe, 14 HADDON. Op. cit. p. 171. 13 Hunr. “Ethnographical Notes of the Murray Islands.” J, 4. 1. 1, nova série, p. 5 et segs. 16 Queremos chamar a atenção para este fato, porque nos fornece a ocasião de uma observação de ordem geral. Por toda a parte onde encontramos um clã ou uma confraria religiosa exercendo poderes mágico-religiosos sobre espécies diferentes de coisas, é muito legítimo inquirir se não existe nisso O indício da antiga classificação, atribuindo a esse grupo social tais espécies diferentes de seres. 17 Os documentos a respeito são de tal maneira numerosos que não os citaremos todos. A referida mitologia é mesmo tão desenvolvida que, muitas vezes, os europeus acreditaram que os astros eram as almas dos mortos. (V. CURR. L, p. 255, 403; 11, p. 475; HI, p. 25.) 188 a que clã pertence. Em vista disso, ele se encontraria classificado em determinado grupo; um parentesco, um lugar determinado lhe seriam atribuídos na sociedade. O que é certo é que estas concepções mitoló- gicas são observadas nas sociedades australianas em que temos encon- trado a classificação das coisas em fratrias e em clãs, com todos os seus traços característicos; nas tribos do Monte Gambier, entre os wotjobaluk, nas tribos do norte de Vitória. “O sol”, diz Howitt, “é uma mulher Krokitch do clã do sol, que todos os dias parte em busca do filhinho que perdeu”. 18 Bungil (a estrela Fomalhaur) foi, antes de subir ao céu, um poderoso cacatua branco da fratria Krokitch. Este cacatua possuía duas mulheres que, em virtude naturalmente da regra exogã- mica, pertenciam à fratria oposta, Gamuich. Eram cisnes (provavel- mente dois subtotens do pelicano). Ora, ambas são também estrelas. 'º Os woiworung, vizinhos dos wotjobaluk, 2º acreditam que Bungil (nome da fratria) com todos os seus filhos, todos eles seres totêmicos (homens e animais ao mesmo tempo), subiu ao céu num turbilhão; *! Bungil é Fomalhaut, como entre os wotjobaluk, e cada um de seus filhos é uma estrela; ?? dois dos filhos são duas estreias do Cruzeiro do Sul. Os mycooloon do sul do Queensland, *º grupo que se encontra muito afas- tado dos atrás citados, classificam as nuvens do Cruzeiro do Sul no totem da ema; o cinturão de Orion faz parte do clã Marbaringal, e cada estrela cadente, do clã Jinbabora. Quando uma dessas estrelas cai, vai tocar a árvore gidea e se transforma numa árvore do mesmo nome. Isto indica que a citada árvore está também relacionada com o referido clã. A lua é antigo guerreiro, do qual não se sabe nem o nome, nem a classe. O céu está povoado de antepassados dos tempos imaginários. As mesmas classificações astronômicas estão em uso entre os arun- ta, dos quais tornaremos a falar mais tarde, sob um ponto de vista diferente, Para eles, o sol é uma mulher da classe matrimonial Panunga, e é a fratria Panunga-Bulthara que está encarregada da cerimônia reli- 18ºOn Australian Medicine Men.” J. 4. 1 XVI, nota 2, p. 53. 19 HowirT. “On the Migration on the Kurnai Ancestors.” 4. 4. 1. XV, nota 1, p. 415. Cf. “Further Notes” etc. J. 4. 1. XVIII, nota 3, p. 65. 20 “Further Notes” etc. 4. 4. 1 XVIII, p. 66. 21 Ibid. p. 59. Cf. nota 2, p. 63. Correspondem aos cinco dedos da mão. ibid. p. 66. 23V. PALMER. Artigo citado. 3. 4. 1 XI, p. 293, 294. 189 giosa que o concerne. *! Deixou na terra descendentes que continuam a se reencarnar ” e que formam um clã especial. Este último detalhe da trádição mítica deve, porém, ser de formação tardia. Pois, na ceri- mônia- sagrada do sol, o papel preponderante é desempenhado por indi- víduos que pertencem ao grupo totêmico do bandicoot e do grande lagarto. O que significa então que o sol devia ser antigamente um Panunga do clã do bandicoot, habitando o território do grande lagarto. Por outro lado, sabemos que isto é o que se dá com suas irmãs. Ora, estas se confundem com ele. Ele é o “filhinho delas”, “o sol delas”; em suma, elas não são mais do que um desdobramento do sol. Em dois mitos diferentes, a lua está ligada ao clã do gambá. Num dos mitos, ela é um homem desse clã; 2º noutro mito, ela é ela mesma, mas foi roubada a um homem do clã?” e foi este homem quem lhe deter- minou o rumo. Não nos dizem, é verdade, a que fratria ela pertencia. Mas o clã implica a fratria, ou pelo menos implicava a princípio, entre os arunta. Sabemos, da estrela da manhã, que pertencia à classe Kumara; vai refugiar-se todas as noites numa pedra que está no território dos grandes lagartos, com os quais parece estar estreitamente aparentada. ** O fogo está, também, intimamente ligado ao totem do “euro”. Foi um homem: desse clá que o descobriu no animal do mesmo nome. * Finalmente, quando, em muitos casos, estas classificações não estão imediatamente aparentes, não deixam de ser encontradas, mas sob uma forma diferente da que acabamos de descrever. Mudanças sobrevindas à estrutura social alteraram a economia desses sistemas, mas não a ponto de torná-los completamente irreconhecíveis. Aliás, as mudanças resul- tam em parte dessas classificações e seriam suficientes para revelá-las. O que caracteriza as referidas classificações é que as idéias estão nelas organizadas de acordo com o modelo fornecido pela sociedade. Mas desde que esta organização da mentalidade coletiva exista, ela é suscetível de reagir à sua causa e de contribuir para modificá-la. Vimos 24 Os indivíduos que realizam a cerimônia devem, em sua maior parte, pertencer a esta fratria. V. SPENCER é GULLEN. Native Tribes of Central Australia. p. 561. 25 Sabe-se que, para os arunta, cada nascimento é a reencamação do espírito de um ancestral mítico. 26 Jbid. p. 564. = ibid. p. 565. 28 Ibid. p. 563, in fine. 20 fbid. p. 444. | 190 como as espécies de coisas, classifizadas num clã, servem de totens secundários ou de subtotens; isto é, no interior do clã, cada grupo parti- cular de indivíduos, sob a influência de causas que ignoramos, passa a se sentir mais especialmente em reações com tais e tais coisas que são atribuídas, de maneira geral, ao clã inteiro, Desde que este, tornan- do-se muito volumoso, tenda a segmentar-se, será segundo as linhas marcadas pela classificação que se processará a segmentação. Não se deve crer que estas divisões sejam necessariamente o produto de movi- mentos revolucionários e tumultuosos. Parece, as mais das vezes, que eles têm lugar segundo um processo perfeitamente lógico. Foi assim que, em grande número de casos, se constituíram as fratrias, que se dividiram os clãs. Em muitas sociedades australianas, as fratrias se opõem uma à outra como o branco e o negro, isto é, como os dois termos de uma antítese, e nas tribos do estreito de Torres, como a terra e a água; e ainda, os clãs que se formaram no interior de cada uma delas, conser- vam uns com os outros relações de parentesco lógico. Assim, é raro na Austrália que o clã do corvo seja de outra fratria que não a do trovão, das nuvens e da água. Da mesma forma, quando num clã a segmentação se torna necessária, são os indivíduos "agrupados em torno de uma das coisas classificadas dentro do clã que se destacam do resto, para formar um clã independente, e o subtotem se torna um totem. Uma vez começado o movimento, pode continuar e sempre segundo o mesmo processo. Efetivamente, o subclã que assim se emancipou trans- porta consigo, para seu domínio ideal, além da coisa que lhe serve de totem, algumas outras que são consideradas solidárias com aquela. Estas coisas, no novo clã, desempenham o papel de subtotens e podem, se for necessário, tornar-se outros tantos centros em torno dos quais se produzirão, mais tarde, novas segmentações. 3º Os wotjobaluk nos permitem precisamente capturar esse fenômeno por assim dizer ao vivo, em suas relações com a classificação. :! Segundo 30 O estudo das listas de clãs repartidos em fratrias, que Howitt apresenta em suas “Notes on the Aust. Class Systems.” J. 4. 1. XII, p. 149, em suas “Further Notes on the Aust” etc. 7. 4. L XVII, p. 52 et segs, e em suas “Remarks on Mr. Palmers Class Systems.” Ibid. XII, p. 385, é altamente convincente. 8 Foi, aliás, sob esse ponto de vista exclusivo que Howitt estudou os wotjobaluk, e foi esta mesma segmentação que, dando a uma espécie de coisas ora o caráter de um totem, ora .o caráter de subtotem, tornou difícil a constituição de um quadro exato dos clãs e dos totens, 191 Howitt, certo número de subtotens são totens em vias de formação. *º “Eles conquistam uma espécie de independência”, ** Assim, para deter- minados indivíduos, o pelicano branco é um totem e o sol um subtotem, enquanto outros os classificam em ordem inversa. Provavelmente, as duas denominações deviam servir de subtotens a duas secções de um clã antigo, cujo velho nome teria “decaído”,º! e que compreenderia, entre as coisas a ele atribuídas, o pelicano e o sol. Com o tempo, as duas secções se destacaram de seu tronco comum; uma tomou o peli- cano como totem principal, deixando o sol em segundo lugar, enquanto a outra fez o contrário. Noutros casos em que não se pode observar tão diretamente a maneira pela qual a segmentação se faz, ela se torna sensível através das relações lógicas que unem entre eles os subclãs provindos de um mesmo clã. Vê-se claramente que correspondem às espécies de um mesmo gênero. É o que mostraremos expressamente mais adiante, a propósito de certas sociedades americanas. Ora, é fácil de ver que mudanças esta segmentação deve intro- duzir nas classificações. ºº Enquanto os subtotens, provenientes de um mesmo clã original, conservarem a lembrança de sua origem comum, sentirão que são parentes, associados, partes de um mesmo todo; por conseguinte, seus totens e as coisas classificadas sob esses fotens ficam subordinados, de certa maneira, ao totem comum do clã total. Mas com o tempo, esse sentimento se apaga. A independência de cada secção aumenta e termina por se tornar completa autonomia. Os laços que uniam todos esses clãs e subclãs numa mesma fratria se distendem ainda mais facilmente e toda a sqciedade acaba por se resolver numa poeira de pequenos grupos autônomos, iguais uns aos outros, sem ne- nhuma subordinação. Naturalmente, a classificação se modifica em con- sequência. As espécies de coisas atribuídas a cada uma dessas subdivi- sões constituem outros tantos gêneros separados, situados no mesmo 32 “Further Notes” etc. p. 63 e sobretudo 64. 33 “Australian Group Relations” in Report. Reg. Smith Inst. 1883. p. 818. 84 “Further Notes.” p. 63, 64, 39. si (...) Esta segmentação e as modificações que delas resultam na hierarquia dos totens e dos subtotens permitem talvez explicar uma particularidade interes- sante de tais sistemas sociais. Sabe-se que, principalmente na Austrália, os totens são geralmente animais, e muito mais raramente objetos inanimados. Pode-se crer que primitivamente todos eram emprestados ao mundo animal. Mas sob esses totens. primitivos estavam classificados objetos inanimados que, devido às segmentações, acabaram por ser promovidos ao lugar de totens principais.
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