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Plasticidade neural: interações organismo-ambiente e recuperação de função, Notas de estudo de Fisioterapia

Uma visão geral sobre estudos de plasticidade neural, enfatizando as interações entre o organismo, o ambiente e a recuperação de função após lesões no sistema nervoso. O texto aborda diferentes abordagens em estudos de plasticidade neural, suas relações com a análise do comportamento e da aprendizagem, e as mudanças morfológicas e funcionais em circuitos neurais. Palavras-chave: plasticidade neural, sistema nervoso, comportamento, aprendizagem.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 13/09/2010

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Baixe Plasticidade neural: interações organismo-ambiente e recuperação de função e outras Notas de estudo em PDF para Fisioterapia, somente na Docsity! 187 1 Apoio Financeiro: CNPq, proc. 300975/89-9; CAPES- Bolsas de Mestrado e Doutorado, (Pós-graduação em Ciências Biológicas-Fisi- ologia, IB, UNICAMP). 2 Endereço: Elenice A. de Moraes Ferrari, Laboratório de Sistemas Neurais e Comportamento, Departamento de Fisologia e Biofísica, IB, UNICAMP, Cidade Universitária Prof. Zeferino Vaz, 13083-970, Campinas, SP, Brasil. Fax: 019-2893124; e-mail: elenice@obelix.unicamp.br Psicologia: Teoria e Pesquisa Mai-Ago 2001, Vol. 17 n. 2, pp. 187-194 Plasticidade Neural: Relações com o Comportamento e Abordagens Experimentais1 Elenice A. de Moraes Ferrari2, Margarete Satie S. Toyoda e Luciane Faleiros Universidade Estadual de Campinas Suzete Maria Cerutti Universidade Estadual de Campinas e Universidade São Francisco RESUMO - As interações entre os estímulos ambientais e as respostas de um organismo determinam as propriedades comportamentais que lhe garantem adaptação a diferentes situações e individualidade comportamental. A interação organis- mo-ambiente também diferencia e molda os circuitos neurais, que caracterizam a plasticidade e a individualidade neural do organismo. Os estudos sobre plasticidade neural incluem aqueles que manipulam o ambiente e analisam mudanças em circui- tos neurais e outros que enfatizam recuperação comportamental após lesão do sistema nervoso. Diferentes questões relativas à fisiologia e ao comportamento, como também à morfologia, à bioquímica e à genética, são abordadas. Este trabalho procura caracterizar diferentes abordagens no estudo da plasticidade neural, indicando as suas relações com a análise do comporta- mento e da aprendizagem. A investigação dos efeitos que a interação organismo-ambiente produz sobre os sistemas neurais subjacentes ao comportamento é enfatizada como interessante. Palavras-chave: comportamento; plasticidade neural; sistema nervoso; aprendizagem. Neural Plasticity: Relations With Behavior And Experimental Approaches ABSTRACT - Behavioral adaptiveness to different situations as well as behavioral individuality result from the interrelations between environmental sitmuli and the responses of an organism.These kind of interrelationships also shape the neural circuits as well as characterize the plasticity and the neural individuality of the organism. Studies on neural plasticity may analyze changes in neural circuitry after environmental manipulations or changes in behavior after lesions in the nervous system. Issues on neural plasticity and recovery of function refer both to physiology and behavior as well as to the subjacent mecha- nisms related to morphology, biochemistry and genetics. They may be approached at the systemic, behavioral, cellular and molecular levels. This work intends to characterize these kinds of studies pointing to their relations with the analyis of behav- ior and learning.The analysis of how the environmental-organismic interrelationships affect the neural substrates of behavior is pointed as a very stimulating area for investigation. Key words: behavior; neural plasticity; nervous system; learning. ram classes de comportamento favoráveis à sobrevivência dessa espécie; as contingências ontogenéticas foram estabe- lecidas pelas interações particulares desse organismo com o seu ambiente, desde o início do seu desenvolvimento e sele- cionaram as classes de respostas eficazes para a adaptação a um ambiente que muda constantemente. Neste sentido, pode- se afirmar que o comportamento de um indivíduo é produto de sua história filogenética, ontogenética e cultural (Bussab, 2000; Catania, 1999; Skinner, 1981). As mesmas pressões evolutivas que determinaram as mudanças na topografia e na função das reações do indiví- duo ao ambiente também determinaram alterações na for- ma, no tamanho e nas funções do sistema nervoso. O pro- cesso evolutivo resultou em cérebros com uma abundância de circuitos neurais que podem ser modificados pela experi- ência (Carlson, 2000). Assim, a interação sistema nervoso- ambiente resulta na organização de comportamentos sim- ples ou complexos que modificam tanto o ambiente como o próprio sistema nervoso. Essa capacidade denota a plastici- dade do sistema nervoso, ou seja, a plasticidade neural que As interações organismo-ambiente vivenciadas por um indivíduo determinam fundamentalmente a topografia e a função de suas respostas. As relações entre os eventos am- bientais e as respostas do organismo podem estabelecer con- tingências, ou seja, relações condicionais entre classes de comportamento e as classes de estímulos que lhes são ante- cedentes ou conseqüentes. Em cada espécie, os indivíduos têm um repertório com- portamental que, de um lado, resulta da interação entre as contingências filogenéticas e ontogenéticas. As contingên- cias filogenéticas atuaram durante a evolução e seleciona- 188 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Mai-Ago 2001, Vol. 17 n. 2, pp. 187-194 E. A. M. Ferrari & cols. está presente em todas as etapas da ontogenia, inclusive na fase adulta e durante o envelhecimento. A capacidade de modificação do sistema nervoso em função de suas experi- ências, tanto em indivíduos jovens como em adultos, foi re- conhecida apenas nas últimas décadas (Rosenzweig, 1996). O presente trabalho pretende indicar as relações entre os processos comportamentais e a plasticidade neural, caracteri- zando as abordagens no estudo experimental da plasticidade neural que evidenciam essas relações. Procurar-se-á demons- trar que a plasticidade neural é determinada por interações organismo-ambiente e está diretamente relacionada com a plasticidade comportamental, característica dos processos de aprendizagem e memória (Cerutti, Cintra, Diáz-Cintra & Ferrari, 1997; Cerutti & Ferrari, 1995a, 1995b; Cerutti, Ferrari & Chadi, 1997; Eichenbaum, 1999; Izquierdo, Medina, Vianna, Izquierdo & Barros, 1999; Tsukahara, 1981). Comportamento e Plasticidade Neural No estudo do comportamento, um dos princípios bási- cos afirma que as propriedades funcionais do comportamento são determinadas pelas relações, simples ou complexas, en- tre os estímulos e as respostas de um organismo (Skinner, 1981). São essas relações que definem as contingências de reforçamento que alteram a freqüência de classes de respos- tas. Os objetivos primordiais da análise do comportamento relacionam-se com a identificação, a descrição e a progra- mação de relações condicionais que estabelem e controlam a probabilidade de classes de comportamento (Baum, 1999; Catania, 1999). As pesquisas orientadas por tais objetivos permitiram o acúmulo de um conjunto de dados e procedimentos com só- lida fundamentação experimental e conceitual (Catania, 1999), cuja importância abrange não apenas as questões investigadas pela Psicologia, mas também questões de ou- tras disciplinas científicas. Para citarmos um exemplo, a metodologia e os conceitos derivados da análise do compor- tamento têm fornecido a possibilidade de linhas de base comportamentais adequadas para as investigações dos me- canismos biológicos subjacentes ao comportamento. Assim, a validade do conhecimento científico sobre o comportamen- to transcende os limites da Psicologia como disciplina cien- tífica específica e integra-se a áreas de conhecimento com caráter multidisciplinar. Nesse sentido é que se desenvolve- ram as disciplinas denominadas Psicofarmacologia, Psicobio- logia e Psicofisiologia. Mais recentemente, o desenvolvimento científico dessas e de outras áreas propiciaram o surgimento de uma nova disciplina científica integradora de metodologias e concei- tos neurofisiológicos, psicológicos, farmacológicos, bioquí- micos, anatômicos e genéticos: a neurociência. O seu prin- cípio básico é que o ambiente físico e social determina a atividade de células neurais, cuja função, por sua vez, deter- mina o comportamento (Kandel, Schwartz & Jessell, 1995; Strumwasser, 1994). O ambiente fornece estímulos/informa- ções que são captados por receptores sensoriais e converti- dos em impulsos elétricos, que são analisados e utilizados pelo sistema nervoso central para o controle de respostas vegetativas, motoras e cognitivas. Essas respostas constitu- em os padrões comportamentais que atuam sobre e modifi- cam esse ambiente. Do mesmo modo que o comportamento altera a probabili- dade de outros comportamentos (Catania, 1999), a atividade neural altera a probabilidade das funções neurais. Uma das evidências para este fato é que tanto as situações de mera ex- posição à estimulação ambiental quanto às situações de trei- namento sistemático em aprendizagem resultam em altera- ções no comportamento e nos circuitos neurais (Rosenzweig, 1996). Ou seja, subjacentes aos processos comportamentais de aprendizagem e de memória encontram-se as alterações funcionais e morfológicas que ocorrem no sistema nervoso e que caracterizam a plasticidade neural (Cuello, 1997). Desse modo, verifica-se que os processos comportamentais e os pro- cessos de plasticidade neural possuem relações mais estreitas e complexas do que se supôs durante muito tempo. Em resumo, considera-se que tal como o ambiente dife- rencia e modela a forma e função das respostas de um orga- nismo, a interação organismo-ambiente também diferencia e molda circuitos e redes neurais. Cada indivíduo tem um padrão comportamental característico, resultante de sua his- tória pessoal de reforçamento, assim como tem um sistema nervoso com características próprias, resultantes também de sua história de interação com o ambiente externo. Essas ca- racterísticas do sistema nervoso atribuem uma individuali- dade neural ao indivíduo que se relaciona, conseqüentemente, com a sua individualidade comportamental (Kandel & Hawkins, 1992). Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais Numa forma abrangente, plasticidade neural pode ser definida como uma mudança adaptativa na estrutura e nas funções do sistema nervoso, que ocorre em qualquer estágio da ontogenia, como função de interações com o ambiente interno ou externo ou, ainda, como resultado de injúrias, de traumatismos ou de lesões que afetam o ambiente neural (Phelps, 1990). De acordo com Pia (1985), o termo plasticidade foi in- troduzido por volta de 1930 por Albrecht Bethe, um fisiolo- gista alemão. Plasticidade seria a capacidade do organismo em adaptar-se às mudanças ambientais externas e internas, graças à ação sinérgica de diferentes órgãos, coordenados pelo sistema nervoso central (SNC). Os trabalhos pioneiros de Santiago Ramón y Cajal e Eugênio Tanzi (citados por Rosenzweig, 1996) sobre regeneração neural apresentam relações mais diretas entre plasticidade e o sistema nervoso. Como assinala Rosenzweig (1996), Tanzi, propôs a hipóte- se de que durante a aprendizagem ocorreriam mudanças plás- ticas em junções neuronais enquanto que Cajal aventou a possibilidade de que o exercício mental poderia causar mai- or crescimento de ramificações neurais. Na literatura recente, os estudos sobre a plasticidade do sistema nervoso podem ser classificados como pertencentes à categoria daqueles que manipulam o ambiente e analisam Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Mai-Ago 2001, Vol. 17 n. 2, pp. 187-194 191 Plasticidade Neural e Comportamento sistema negroestriatal. Após as lesões, foram analisadas dife- rentes categorias de comportamento, incluindo a não ocor- rência, a diminuição ou a manutenção do comportamento assimétrico durante os testes. Os animais que mostraram recu- peração do comportamento de rotação, ou seja, a diminuição da assimetria, reduziram o número de rotações ipsilaterais à lesão e, com o tempo, aumentaram o número de rotações contralaterais. A análise histológica usou um marcador neuronal retrógrado (captado nos terminais das fibras pré-siná- pticas e transportado até o corpo celular), injetado nos núcle- os da base. Assim, foi possível observar que os animais que mostraram a recuperação comportamental apresentaram mai- or número de células marcadas na SNe. Esses dados sugeri- ram que os axônios remanescentes à lesão desenvolveram ra- mificações e estabeleceram novos contatos sinápticos, um dos processos que caracterizam a plasticidade pós-lesão. Ou seja, após a lesão ocorreu uma recuperação comportamental correlacionada com mecanismos celulares e processos fisio- lógicos relacionados com a formação de novas sinapses e al- terações funcionais daquelas sinapses remanescentes. Desenvolvimento, aprendizagem e correlatos neuroanatômicos pós-lesão O desenvolvimento do sistema nervoso é caracterizado por mudanças que normalmente são consideradas como evi- dências da plasticidade do sistema. Durante a embriogênese são gerados números excessivos de neurônios e, por isso, uma grande parte desses é eliminada por um processo de morte celular que é regulado geneticamente e que resulta num ajuste fino da população neuronal (Oliveira, 1999). Após o nascimento, ocorre a regulação da população e da circuitaria neuronal em momentos que são considerados períodos críti- cos no desenvolvimento. Ou seja, durante esses períodos são definidas tanto a sobrevivência de neurônios que estabele- ceram contatos sinápticos eficientes quanto a manutenção dessas sinapses. Essa regulação da circuitaria neural resulta de uma coordenação sutil e complexa entre as atividades dos elementos pré- e pós- sinápticos, que garantem a inte- gridade e a plasticidade do neurônio. Muitas vezes, o conceito de períodos críticos é usado como justificativa para a existência de maior plasticidade neural ou de maior capacidade de reorganização e de recu- peração funcional em cérebros jovens, em comparação com cérebros adultos. Foi nesse sentido que Brabander, Van Eden e De Bruin (1991) investigaram se haveria diferenças de aprendizagem entre ratos que sofreram lesões do córtex pré- frontal medial no período neonatal ou na idade adulta. A análise da manutenção da função comportamental avaliou o comportamento de escolha entre os braços do labirinto em T, com alternação a cada tentativa, inicialmente com um in- tervalo de zero segundos (sem atraso) e com intervalo de 15 segundos (com atraso). Foram investigadas as mudanças neuroanatômicas em dois sistemas neurais com conexões ao córtex pré-frontal medial: uma projeção talâmica e uma pro- jeção de fibras dopaminérgicas (sistema dopaminérgico meso-cortical) da área tegmental ventral do mesencéfalo. Ambos os sistemas têm um denso padrão de axônios que se projetam para as áreas pré-frontais, transmitindo informa- ções cruciais para o córtex pré-frontal. Foi usado um marca- dor neuronal anterógrado (captado ao nível do corpo celular e transportado pelo axônio até sua terminação pré-sináptica) para analisar essas projeções. Esse marcador foi injetado nos núcleos neuronais cujos axônios se projetam para o córtex pré-frontal. Após o teste de alternação espacial com atraso, os animais foram sacrificados e os cérebros foram processa- dos para a obtenção de cortes cerebrais, marcação imunohis- toquímica e análise de axônios dopaminérgicos. Os ratos que sofreram lesões bilaterais neonatais mos- traram desempenho similar aos animais-controle. Ao con- trário, os ratos que foram lesados quando adultos mostra- ram maior número de erros no teste do labirinto em T, não alcançando o critério de aprendizagem. A maioria das le- sões realizadas no período neonatal não apresentou uma indi- cação morfológica precisa, exceto como uma cicatriz, en- quanto que todas as lesões realizadas em ratos adultos, fo- ram visíveis como uma cavidade limitada por tecido glial. A análise morfológica também não revelou perda de células dopaminérgicas, tanto após as lesões neonatais, quanto na idade adulta. Contudo, em todos os ratos com lesões neona- tais, foi observado um aumento da densidade dos axônios dopaminérgicos em todas as camadas do córtex, acompa- nhado por um aumento de ramificação dos axônios e uma maior quantidade de vesículas sinápticas, em comparação com os animais controles. O aumento dos axônios e das vesículas pode ser uma indicação de maior atividade dopa- minérgica ou de um acúmulo de dopamina nos terminais pré-sinápticos. Em resumo, esses dados indicam a ocorrên- cia da plasticidade neural em dois momentos do desenvolvi- mento ontogenético, demonstrando uma capacidade reorga- nizadora mais efetiva do sistema nervoso quando as lesões ocorreram precocemente, logo após o nascimento. Efeitos a longo prazo de lesões neurais sobre a interação neurônio-glia e a aprendizagem Além de toda a importância da função neuronal, deve-se lembrar que o tecido neural é constituído de um agregado complexo de células que constitui uma rede de comunica- ção entre os neurônios e a neuroglia. A literatura tem colo- cado ênfase crescente no fato de que neurônios e células gliais atuam como uma unidade fisiológica com função fun- damental na organização neural do comportamento. As cé- lulas gliais sempre foram consideradas elementos importan- tes do microambiente neural por participarem em processos durante o desenvolvimento neural e na regulação do meio extracelular neural. Porém, apenas recentemente surgiu uma maior compreensão das complexas interações neurônio- astrócito/microglia e de sua participação no desenvolvimen- to de plasticidade de conexões sinápticas e, consequente- mente, em processos de plasticidade neural e de aprendiza- gem (Aldskogius & Kozlova, 1998; Cerutti & Ferrari, 1995b; Moonen & cols, 1990; Ridel, Malhotra, Privat & Gage, 1997). A correlação entre ativação de células da glia e recupe- 192 Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Mai-Ago 2001, Vol. 17 n. 2, pp. 187-194 E. A. M. Ferrari & cols. ração do SNC fundamenta-se na presença de substâncias tróficas na área da lesão (Cerutti & Chadi, 2000; Chadi, Cao, Pettersson & Fuxe, 1994). As interações astroglia/microglia exercem papel fundamental em mecanismos tróficos de neurônios no SNC. Os neurônios que sofreram danos libe- ram secreções que estimulam as microglias que, por sua vez, interagem com os astrócitos e induzem a produção de outras substâncias tróficas. Todas essas respostas são importantes para manter a homeostase local e garantir a sobrevivência do neurônio. Nesse contexto, as funções dos astrócitos têm recebido grande atenção (Bignami, 1984). Recentemente, Cerutti, Ferrari & Chadi (1997) demonstraram aumento no número de astrócitos, quatro meses após a lesão massiva de tecido neural do telencefálo de pombos. Essa lesão provoca perda transitória do comportamento alimentar, associada a altera- ções imediatas na postura e no ciclo sono-vigília. Por isso, os animais são mantidos em ambiente controlado e alimen- tados no bico, três vezes por dia até a recuperação de com- portamento alimentar que ocorre cerca de um mes depois da lesão. Os pombos foram sacrificados quatro meses após a lesão e os cérebros preparados para análise por técnicas de marcação imunohistoquímica. Foi observada uma maior marcação para a proteína ácida fibrilar de glia (GFAP) no tálamo (núcleo rotundus) dos animais com lesão, indicando uma significante presença de astrócitos. Inversamente, a marcação de neurofilamentos, para identificação de neurô- nios íntegros, indicou que os animais lesados apresentaram menor número de neurônios. Esse dado é muito interessante por sugerir que nesse momento, longo tempo após a lesão, as funções de astrócitos estariam diretamente relacionadas aos processos de plasticidade neural. Essas análises estendem as observações de Cerutti e cols. (Cerutti, Cintra, Diáz-Cintra & Ferrari, 1997; Cerutti & Ferrari, 1995a) sobre a aprendizagem de discriminação dos pombos destelencefalados. Após a recuperação de compor- tamento alimentar, pombos foram treinados em discrimina- ção operante sucessiva, com luz vermelha no disco correla- cionada com reforçamento em esquema de razão-variável e luz amarela no disco, correlacionada com extinção. Os pom- bos lesados aprenderam a discriminação operante após um treinamento mais longo para a aquisição da resposta de bi- car o disco e para alcançar o critério de estabilidade do com- portamento discriminativo, em comparação aos pombos- controle. Porém, na condição de reversão da discriminação, os pombos lesados não alcançaram os critérios de aprendi- zagem e de estabilidade do comportamento discriminativo. Esses resultados comportamentais foram correlacionados com análises histológicas (com marcação de fibras mielínicas e de corpos celulares, seguida de morfometria quantitativa em estruturas das vias visuais) que mostraram (a) padrões anormais na orientação dos axônios (fibras neurais) e na or- ganização das camadas neuronais características do teto óptico (estrutura importante para o processamento visual em aves) e (b) uma reducão significativa no número de neurônios, inversamente relacionada a um aumento no número de va- sos sanguíneos, observada no tálamo (núcleo rotundus, re- gião que transmite informações para as áreas visuais do telencéfalo). Tais alterações morfológicas foram interpreta- das como evidências de mecanismos de plasticidade neural. Diferentes mecanismos celulares estão envolvidos na ma- nutenção do neurônio e no fortalecimento de seus contatos sinápticos e conseqüente funcionalidade. O aumento da vascularização possivelmente constitui um mecanismo com- pensatório para o sistema, no sentido de garantir o supri- mento energético adequado para a sobrevivência e funcio- nalidade dos poucos neurônios restantes após a lesão. Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural De um modo geral, pode-se afirmar que a análise da plasticidade neural e de recuperação de função, em suas di- ferentes abordagens, tem sido realizada por meio de investi- gações que utilizam métodos de análise do comportamento aprendido associados à metodologia neurobiológica, princi- palmente à de lesão e/ou estimulação neural. O desenvolvi- mento histórico desse conhecimento biomédico tem sido claramente ligado ao uso de animais, principalmente mamí- feros e aves, na pesquisa básica sobre aspectos plásticos do SNC e processos biológicos relacionados com os comporta- mentos, aprendizagem e memória. As últimas quatro décadas do século XX culminaram com a chamada década do cérebro nos anos 90 e constituem um período fascinante no que concerne à identificação de pro- cessos de plasticidade neural, à busca de mecanismos subja- centes a esses processos e às interrelações com as mudanças comportamentais (Rosenzweig, 1996; Strumwasser, 1994). Os avanços recentes no conhecimento da biologia molecular têm levado a novas perspectivas em termos de controle de mecanismos de plasticidade neural. O próprio conceito de sinapse sofreu uma modificação na medida em que passou a ser considerado como um processo de comunicação neuronal, bidirecional e automodificável (Jessell & Kandel, 1993). As interações sinápticas entre neurônios envolvem interação elétrica e química complexas, que dependem do meio extra- celular e de sistemas especiais de receptores celulares (Iz- quierdo, 1992; Izquierdo & cols, 1999). A ativação desses mecanismos receptores desencadeiam sistemas de sinaliza- ção intracelular, envolvendo segundo-mensageiros que po- dem regular canais iônicos, coordenar mecanismos de ativa- ção e de fosforilação de proteínas e, ainda, modificar prote- ínas regulatórias da transcrição gênica. A ativação de meca- nismos de transcrição gênica e de regulação de síntese protéica vão resultar em maior disponibilidade de proteínas que serão utilizadas como o material básico da célula. As- sim, maior síntese proteica pode garantir mudanças estrutu- rais de longa duração nas sinapses, contribuindo tanto para a função e comunicação sináptica, quanto para a organiza- ção funcional de circuitos locais. Sem dúvida alguma, as aplicações e implicações de todo esse conhecimento consti- tuem desafios para todos aqueles interessados em compor- tamento e sistema nervoso. Psic.: Teor. e Pesq., Brasília, Mai-Ago 2001, Vol. 17 n. 2, pp. 187-194 193 Plasticidade Neural e Comportamento Conclusão As considerações desenvolvidas no texto e as evidências experimentais que as suportam indicaram que os mecanis- mos subjacentes à plasticidade neural e à recuperação de função têm bases similares e constituem uma área de muito interesse para pesquisas em neurociências e comportamen- to. Os tipos de abordagens à plasticidade neural e à recupe- ração comportamental foram discutidos pela análise de al- guns estudos da área. Assim, foi possível verificar que a busca de correlações entre lesão no SNC, alterações neuronais e recuperação comportamental permitiu verificar a ocorrên- cia de mudanças morfológicas e funcionais das estruturas nervosas relacionadas com o comportamento. Os estudos referentes à plasticidade neural demonstraram que o SNC é mais plástico do que se acreditava. Ao mesmo tempo, é possível afirmar, conforme se pro- curou exemplificar no texto, que as pesquisas nessa área têm produzido dados coerentes e indicativos de como o compor- tamento pode alterar a morfologia e a função do sistema nervoso e vice-versa. O resultado geral é um belíssimo e instigante conjunto de resultados, com possibilidades de aplicação em diferentes aspectos clínicos comportamentais e neurológicos, principalmente referentes ao desenvolvimen- to e ao envelhecimento. Referências Aldskogius, H. & Kozlova, E. (1998). Central neuron-glial and glial-glial interactions following axon injury. Progress in Neu- robiology, 55, 1-26. Baum, W.M. (1999). Compreender o behaviorismo: ciência, com- portamento e cultura. (M.T.A. Silva, M.A. Matos, G.Y. Tomanari e E.Z. Tourinho, Trads.). Porto Alegre: Editora Artes Médicas, Bignami, A. (1984). The role of astrocytes in CNS Regeneration. Journal of Neurosurgery Science, 28, 127-132. Brabander, J.M., Van Eden, C.G. & De Bruin , J.P.C. 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