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A saúde mental está doente - a síndrome de burnout em psicólogos, Trabalhos de Enfermagem

A SAÚDE MENTAL ESTÁ DOENTE - A SÍNDROME DE BURNOUT EM PSICÓLOGOS QUE TRABALHAM EM UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE

Tipologia: Trabalhos

2010

Compartilhado em 04/11/2010

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gerson-souza-santos-7 🇧🇷

4.8

(351)

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Baixe A saúde mental está doente - a síndrome de burnout em psicólogos e outras Trabalhos em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! MPR TR ES í Carolina Guimarães Araujo | NIH Carolina Guimarães Araujo A Saúde Mental está doente! A Síndrome de Burnout em psicólogos que trabalham em Unidades Básicas de Saúde. Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Orientadora: Prof". Drº. Maria Júlia Kovács Pesquisa realizada com apoio do CNPq São Paulo 2008 Dedicatória Aos meus queridos pais, pela intensa dedicação para que eu me tornasse quem sou, por me incentivarem a seguir mesmo os caminhos mais difíceis, por me ajudarem a nunca desistir dos meus sonhos... Mãe, você me ensinou a sonhar... Pai, você me ensinou a colocar em prática meus sonhos... Ao meu irmão, por me trazer à realidade quando necessário, por ser o contraponto para minhas fantasias e meus contos de fada... À querida Madrinha, simbólica e eterna, por ter me inspirado a seguir a vida acadêmica... Aos meus quatro avós, por terem me ensinado que é preciso bastante estudo e persistência para obter o sucesso... A você, meu grande amor, por sempre ter acreditado em mim, pelo apoio constante, pela compreensão nos momentos de incerteza, pela segurança necessária para sentir que meus passos estão sempre sendo acompanhados... Vento, que me impulsiona para lugares distantes... Brisa, que me mantém suspensa no ar... Seu olhar me dá asas, que me permitem voar cada vez mais alto... Sua admiração me aquece, me ajuda a voar nos dias frios... Seu abraço me dá segurança, nos momentos de fraqueza... Seu carinho me conforta, quando passeio pela tempestade... Sua simples presença durante todo o caminho me fez voar até aqui! Agradecimentos Querida Julia, obrigada por me ajudar a enxergar as coisas de forma mais relativa, propiciando mais reflexões do que afirmações. Obrigada por me incentivar a me “soltar”, e depois trazer meus “pés para o chão”, quando necessário. Obrigada, enfim, por ser ter sido mais que orientadora: você foi mãe, amiga, colega e terapeuta. Ingrid, você esteve ao meu lado desde o começo, e me ensinou muito sobre como ser uma excelente profissional em momentos de crise. Se todas supervisoras fossem iguais a voci Ao Prof. Avelino, pela imensa contribuição neste trabalho, sendo uma referência sobre a Síndrome de Burnout. Às queridas Laura e à Silvana, pela rica ajuda na reflexão sobre este tema a partir da abordagem junguiana. Às entrevistadas, sem vocês este trabalho não existiria... Aos meus pacientes, que me fazem crescer como pessoa e psicóloga todos os dias Ao CNPq, pelo apoio financeiro, e a todos funcionários da secretaria da Pós e do PSA. Às amigas do grupo de orientação, Ana, Cláudia, Clô, Elaine, Jana, Jú, Lucélia, Nancy, Silvana, Tissi, Vanessa, pela escuta, pela fala, ou simplesmente pelo carinhoso silêncio nos momentos que precisei... A meus pais, por conseguirem dosar o respeito aos meus momentos de total isolamento no escritório, e o interesse em participar de todas as etapas do processo... Ao meu amor, Marcos, pela paciência e compreensão diante dos momentos de crise durante todo esse percurso, pelo companheirismo e incentivo ao meu trabalho, pela demonstração constante de admiração pelo que eu faço. À Madrinha, pela imensa colaboração durante toda a pesquisa; você me ensinou muito! “Quando eu crescer, quero ser igual a você!” Ao Gui, ou “Andrezinho”, por resolver minhas “crises” com o computador! E a todos àqueles que em algum momento cruzaram meu caminho, pois cada pessoa que passou pela minha vida, trouxe algum ensinamento, que me fez ser quem hoje sou. | LA “Enquanto médico, sempre me pergunto que imagem traz o doente. O que significa ele para mim? Se nada significa, não tenho um ponto de apoio. O médico só age onde é tocado. “Só o ferido cura." Mas quando o médico tem uma persona, uma máscara que lhe serve de couraça, não tem eficácia. Levo meus doentes a sério. Talvez esteja exatamente como eles diante de um problema.” (C. G. Jung). Lista de Siglas CAPS AD: Centro de Apoio Psicossocial para usuários de álcool e drogas CAPS: Centro de Apoio Psicossocial CAPS I: Centro de Apoio Psicossocial para crianças e adolescentes com transtorno psicótico e transtorno global do desenvolvimento CAPS II: Centro de Apoio Psicossocial para pacientes com Transtornos Psicóticos, Transtornos de Humor e Neuroses graves. IPq-HC-FMUSP: Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo PA: Pronto Atendimento PS: Pronto Socorro PSF: Programa Saúde Família SUS: Sistema Único de Saúde UBS: Unidade Básica de Saúde UTI: Unidade de Terapia Intensiva Sumário 1 Apresentação ............... sir ererereeeeremeerereeeeremeerereceerareecereeaearescaerereaescasereneaescaereseasereass u 2 A Síndrome de Burnout... iteermameererrerre er era eme eer ee aeeereereae eee erre eareneertertas 16 2.1 O termo Burnout 16 2.2 História... res eeaeereeeree aeee reaereeaees corante aeer ea atee near rare anes cera aare nara aee aernaat 16 2.3 Estresse X Burnout ......eemeremerereereremeerereeeerareecerenearaescacereneaescnenenearesenserenearerems 17 2.4 Definições e Concepções Teóricas ............ireeremeeeeeeeeeereseneererearereneerenearerencerereaser 19 2.5 Principais Sintomas ...........cememeremerereemeremeerereeeerereecereeeerareeceseseacaresenseseneasesensenenta 20 2.6 Aspectos Facilitadores e/ou Desencadeadores do Burnout .........eeeseaereasereeaerem 21 2.6.1 Características Organizacionais ...........crememeremeerereeeererereneereneaeesencererearerems 22 2.6.2 Características Pessoais...........cremereeeeeremeerereeeeraresenceeneacesencerenearesencerereasere 24 3 Psicólogos que trabalham em Unidades Básicas de Saúde (UBS) .......................... 27 3.1 Caracterização da Instituição .......... rr ee err ere are rererereaere nene rerno 27 3.2 Atenção Primária, Secundária e Terciária: qual o papel do psicólogo de UBS?....29 3.3 O cuidado ao cuidador ............eeremeeeeeeeeeemeeeeeererearereneeeneacesenceeneaesenceenearesenserenta 32 3.4 Formação do psicólogo na graduação .............eremereeeeeeeameeeaeerenearereneaeereneereneate 35 4 A Síndrome de Burnout em Psicólogos: uma visão junguiana ..................s 41 5 Objetivos ............ is iereeeeremeremeeeremerereeeeremee nene eeremeereeacasaresceseneararescasenencases ease reneanes 51 6 Método . .52 6.1 Abordagem Qualitativa ............ ss ceereremeremeerereereremeecereeeeareseareenearesencenenearerenserens 52 6.2 Participantes ........... ui sescereremeremeremeereremeerereeeremeerereereamee care aeerarescnseseacasescnsenesasne 54 6.3 Sobre a Coleta ............. ci eremeremeereremeeremeaeeremeerereareremeerereeeaescereseaasescnsenencasesenses 55 55 6.3.1 Procedimento... 6.3.2 Instrumento............... rir reeeeeremeeeereeereareserreeaeareseaereneaescneneneareseneneneaesensne 55 6.4 Sobre a Compreensão dos Dados ..............iemeremeerereeeeremeeeereereareseneereneaserenserenta 57 6.5 Considerações Éticas ................ us tiiteeeeeseiiitaaeeeeee iria aeee reee errante 59 7 Análise das entrevistas ................ rss ceiteeeeerre aerea ee meer eee areererreare err eereeeeerea 61 8 Discussão.............. ci eemerenemeremerereeeremeerereeereneereneareareereeaearaescaereararescnseneneaesensereneasa 170 9 Considerações Finais......................ct. ts ir erereserte roer rerteree eee eereamee corrente aeee rerreneenserserearseno 198 10 Referências Bibliográficas ................. re re res aare renas erre ner ares errar 204 ANEXO A Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ... ..209 ANEXO B Modelo da Entrevista..............eemererereremeerereeeeramee care renearesenceeneasesencererearerense 210 ANEXO C Entrevistas............... see rereeeremeerereeeeremeeeereerearereareenearescnserenearesensenene ares enseneneasents 21 1- Luiza... reta aeee aeee aeee aeee aeer aeee aeee aeee aeea aca area ara ara aee aea area arerarenanena 211 2 - Paula 216 3 - Renata... sesereerereaeeremereeeeremeereemreremee nene rereeereeareraseeceseacasasescaseneasases cases 220 4- Olívia... irirereaeeeeaeeare ear eeteamee errar aee rere rates aere aee neer camara err eare ares nene 226 5 - Verônica... eremeremeereremeerereeeremeerereeeaeecereseasasesceseneaarescasenenarescnseneneaserens 231 Em consulta à literatura existente na época, percebi que existiam ainda poucos estudos realizados sobre possíveis intervenções com os profissionais da Saúde, principalmente com os psicólogos, que muitas vezes trabalham em condições precárias, e estão constantemente em contato com a dor/sofrimento psíquico do outro. Assim, fica difícil para o profissional buscar algum tipo de ajuda específica para lidar com as questões ligadas ao trabalho. Dessa forma, acabamos nos deparando com o seguinte dilema: a Saúde Mental está doente! E agora... quem cuida do cuidador? Assim, acredito que seja fundamental que se pense não somente em humanização dos cuidados com os pacientes, mas que se pense o mesmo com relação aos profissionais da Saúde. Logo, é necessário um aprofundamento do estudo das causas deste adoecimento, bem como das medidas preventivas e como reabilitá-los. Afinal, conforme Esslinger afirma: “Para que eu possa cuidar do outro, devo, antes, cuidar de mim (...)” (ESSLINGER, 2003, p.xi). O problema da minha pesquisa traduz algumas dúvidas que tenho, que me impulsionam a encontrar respostas: será que a Síndrome de Burnout está relacionada à impotência em resolver problemas de falta de estrutura física (Instituição)? Ou será que a causa seria mais profunda e de mais difícil solução, como a falta de preparo técnico para lidar com pacientes com distúrbios psicológicos de difícil tratamento? Ou ainda, será que a desvalorização dos psicólogos, somada à sobrecarga de trabalho estão como principais fatores desencadeadores da síndrome? Será que os problemas dos pacientes, somados às questões institucionais, se refletiram nos psicólogos que, apesar do esforço diário empregado, acabariam não encontrando respostas em suas tarefas cotidianas? Então, minha pergunta é se a combin: ção das impotências, seja no plano técnico, seja no conceitual, conduz o profissional a um nível de estresse que se acentua a cada dia, visto que ambas as impotências se perpetuam, dadas às dificuldades de sua solução. O objetivo dessa pesquisa é verificar porque os psicólogos que trabalham na rede de Saúde Mental estão adoecendo, como é essa vivência para os profissionais de UBS, e quais formas de enfrentamento utilizadas para lidar com as possíveis dificuldades. Para refletir sobre o que foi observado durante o período em que trabalhei na rede, bem como para analisar as entrevistas, vou utilizar o referencial teórico da Síndrome de Burnout. Essa pesquisa está dividida em três capítulos: no primeiro, será realizada uma revisão bibliográfica sobre a Síndrome de Burnout, com definições, sintomas e principais fatores facilitadores do seu desenvolvimento. No segundo capítulo, farei uma contextualização sobre o trabalho de psicólogos em Unidades Básicas de Saúde, para que o leitor compreenda suas especificidades, com os possíveis agentes estressores envolvidos. Dessa forma, espero apresentar as particularidades da Síndrome de Burnout em psicólogos que trabalham em UBS. No terceiro, realizo uma compreensão do fenômeno a partir da abordagem teórica de Jung, incluindo pós-junguianos. Desde a graduação, utilizo esse referencial teórico tanto para atender os pacientes do consultório, hospital e UBS, bem como para compreensão de qualquer fenômeno psicológico ao meu redor, pois acredito que os questionamentos que estou propondo encontram melhor ressonância nos conceitos propostos por Jung. Assim, embora não tenha a intenção nesta pesquisa de aprofundar essa reflexão, compreender o adoecimento desses profissionais a partir des: visão junguiana ainda é o caminho mais adequado para mim. Um dos desafios que encontrei foi o de tentar evitar que a minha relação prévia com as participantes de alguma forma prejudicasse a objetividade do estudo. Como eu já trabalhei nesta Instituição, além de ter vivenciado algumas das dificuldades relatadas, eu conhecia a maior parte das participantes da pesquisa. Essa foi uma das minhas maiores preocupações o tempo inteiro, ou seja, como conciliar o papel de pesquisadora com o de psicóloga que trabalhou na mesma rede? Porém, percebi que o “contágio” não só foi inevitável, como contribuiu em muitos momentos para a compreensão das diversas vivências relatadas. Espero que esta pesquisa possa ser útil aos psicólogos que trabalham em condições similares, no sentido de que, conhecendo a Síndrome de Burnout, possam preveni-la. 1. A fase de alerta, em que há um predomínio do nervosismo, na qual o organismo se sente ameaçado por algum agente nocivo. Nessa fase, o estresse pode ser considerado positivo à medida que o impulsiona para melhorar a situação, aumentando a: sua produtividade. 2. A fase de resistência, em que a pessoa acaba se acostumando com a presença do agente causador, tentando se adaptar e buscar novo equilíbrio e adaptar-se à situação. 3. A fase da exaustão, em que o organismo já perdeu sua capacidade de se adaptar e acaba por viver em um estado de excitação nervosa. Utilizando este modelo, a Síndrome de Burnout pode ter início em qualquer uma dess fases, mas geralmente ocorre neste terceiro estágio, quando o indivíduo permaneceu exposto durante um longo período a uma situação estressante e acaba chegando à exaustão. (DIAS, 2003). Pereira (2002) também acredita que a síndrome consiste em uma resposta a um estado de estresse prolongado; quando os métodos de enfrentamento se tornam insuficientes ou falham, ocorrendo a cronificação do quadro, chegando ao Burnout. Uma outra diferença é que o Burnout tem sempre um caráter negativo (distress), enquanto o estresse pode apresentar aspectos positivos e negativos. O Burnout está sempre relacionado com atividades laborais, e o estresse não necessariamente. Assim, apesar de estar ligada ao estresse, essa síndrome tem suas própria características e, portanto, devem ser levadas em consideração suas especificidades. A Síndrome de Burnout pode ser tanto um quadro temporário, como pode se tornar uma situação constante e permanente. 2.4 Definições e Concepções Teóricas. Maslach e Jackson apresentaram a seguinte definição: (...) reação à tensão emocional crônica gerada a partir do contato direto e excessivo com outros seres humanos, particularmente quando estes estão preocupados ou com problemas. Cuidar exige tensão emocional constante, atenção perene; grandes responsabilidades espreitam o profissional a cada gesto no trabalho. O trabalhador se envolve afetivamente com seus clientes, se desgasta e, num extremo, desiste, não agiienta mais, entra em burnout. (MASLACH; JACKSON, 1981, p.288). Estes autores entendem que alguns aspectos individuais, associados às condições de trabalho, propiciam o aparecimento de fatores multidimensionais, envolvendo basicamente três componentes: Exaustão Emocional, Despersonalização e Reduzida Satisfação Pessoal no Trabalho/ Profissional. (Maslach; Jackson, 1986). Exaustão Emocional: sensação de esgotamento físico e mental, falta de energia, limite de qualquer possibilidade. Despersonalização: a personalidade do indivíduo vai sofrendo alterações, fazendo com que passe a ter um contato mais distante, frio, impessoal com os usuários de seus serviços, chegando inclusive, às vezes, a apresentar atitudes de cinismo, ironia e indiferença. Reduzida Satisfação Profissional: insatisfação com as atividades laborais, sentimento de insuficiência, fracasso, baixa auto-estima, baixa eficiência, chegando, em alguns momentos, a causar o abandono do emprego. Embora as definições de Maslach e Jackson sejam provavelmente as mais difundidas conceituadas no meio acadêmico sobre Burnout, acredito que seja interessante citar outros autores que pesquisaram o tema. Cherniss (1980, p. 21) acredita que “Burnout é um processo que começa com os níveis de estresse laboral excessivos e prolongados (...) O processo está completo quando o trabalhador passa a lidar de forma defensiva com o trabalho, tornando-se apático, cínico ou 20 inflexível”. Codo (1999, p.237), por sua vez, fornece uma visão mais simplificada, ao dizer que esta síndrome “afeta principalmente os trabalhadores encarregados de cuidar”. Para Ballone (2005), esta síndrome está geralmente relacionada a um tipo específico de estresse laboral e institucional, que acomete especialmente profissionais que mantém um contato interpessoal constante e direto com outras pessoas, cuidando destas, como por exemplo, médicos, enfermeiros, psicólogos, entre outros. Codo (1999) acredita que as pessoas acometidas por esta síndrome acabam perdendo o sentido de sua relação com o trabalho, chegando a concluir que seus esforços não importam mais, são inúteis. Para Lozano (1994), o Burnout está intimamente ligado ao alto índice de absenteísmo no trabalho, tanto por problemas de saúde física como psicológica além de serem fregientes casos de associação à depressão, automedicação e até aumento de consumo de tóxicos. Rodrigues (1998) acredita que cuidar de pess as doentes por si só gera um estresse significativo: “(...) existem profissionais que lidam com estas situações a todo o momento; que têm como foco de seu trabalho, ajudar os outros justamente nestas situações”.(p. 37). 2.5 Principais sintomas Ballone (2005) descreveu seus principais sintomas: esgotamento emocional; despersonalização ou desumanização; sintomas físicos, como fadiga crônica, cefaléia crônica, insônia, úlceras digestivas, hipertensão arterial, taquiarritmias, desordens gastrintestinais, entre outros; manifestações emocionais, como falta de realização emocional, baixa auto- estima profissional, sentimentos de frac: o; irritabilidade e impaciência; aumento do 23 (oncologia, UTI, neurologia, etc.) em que o psicólogo atua também interfere no maior ou menor nível de estresse que vai vivenciar. Relacionamento com os colegas: O contexto organizacional também vai determinar como serão os relacionamentos entre toda s pessoas do local de trabalho (profissional- paciente, profissionais da equipe Saúde entre si, equipe de Saúde e pessoal administrativo). Deckard, Meterko e Field (1994) verificaram que a baixa satisfação com trabalho e os altos índices de exaustão emocional tem íntima relação com a falta de suporte por parte da equipe de Saúde. Falta de trabalho em equipe interdisciplinar: Outro fator de grande importância como desencadeador do Burnout no nível organizacional é a falta de comunicação entre os diversos profissionais. Segundo Hyrkis (2005), supervisões clínicas são consideradas benéficas para profissionais de Saúde Mental, diminuindo o índice de Burnout, bem como a supervisão ineficiente está correlacionada a altos índices de insatisfação com o trabalho. Reid et al. (1999) acreditam que manter relacionamentos informais com os colegas, bem como supervisões clínicas e grupos de apoio são essenciais para evitar Burnout e ajudar no coping?. Ainda, consideram importante o treinamento do profissional para a demanda específica, e em como reagir a determinadas situações com pacientes “especiais”. 2 Variável individual representada pelas formas como as pessoas comumente reagem ao estresse, determinadas por fatores pessoais, exigências situacionais e recursos disponíveis (Lazarus; Folkman, 1984). 24 2.6.2 Características Pessoais Para esse levantamento, utilizei como base o artigo “Job Burnout”, escrito em 2001 pelos autores Maslach, Schaufeli e Leiter. Idade: Estes autores observaram maior incidência do Burnout em profissionais mais jovens, até 30 anos aproximadamente. Alguns autores acreditam que este fato esteja relacionado a pouca experiência profissional, que gera insegurança ou mesmo um choque ao se depararem com uma realidade de trabalho bem diferente das ilusões que possuíam sobre a profissão. Há os que acreditam que o que ocorre na verdade é uma crise de identidade face às dificuldades de socialização encontradas no meio de trabalho. (CHERNISS, 1980). Gênero: Apesar de não haver unanimidade entre os autores, na maioria dos estudos as mulheres têm apresentado altos índices de exaustão emocional e os homens de despersonalização. Isso pode ser explicado da seguinte forma: como as mulheres geralmente têm mais facilidade de falar sobre suas emoções, podem expr ar suas dificuldades e, assim, aliviam sentimentos como raiva, hostilidade e indignação, enquanto o homem expressaria essas emoções somente depois de ter atingido um nível insustentável. Nível Educacional: Diversos estudos demonstram que as pessoas que apresentam um nível educacional mais elevado têm maior propensão ao Burnout, o que pode ser explicado considerando que es as pe: alvez tenham maiores expectativas profissionais e um grande sentimento de responsabilidade. Estado Civil: Segundo Burke e Greenglass (1989), pessoas casadas ou em um relacionamento estável apresentam menor propensão ao Burnout, ao contrário de solteiros, viúvos ou divorciados. Porém, não há uma unanimidade. Então Pereira (2002) acredita que o 25 que vai influenciar no desenvolvimento da síndrome é a qualidade do relacionamento, e não propriamente o estado civil. Filhos: Este fator também não é unânime. Sampson (1990) observou que psicólogos com filhos apresentavam menor índice de estresse que aqueles que não os tinham. Cobb (1976, apud. Pereira, 2002) acredita que a maternidade/paternidade equilibra a parte profissional propiciando estratégias de enfrentamento mais eficazes contra os agentes estressores. Já Maslach, Schaufeli e Leiter (2001) apontam que ter ou não filhos, bem como o número destes podem não ter relação direta com o Burnout. Essas questões ainda são controvertidas, porque se por um lado à maternidade propicia um amadurecimento e maior equilíbrio da mulher, por outro lado deixar os filhos pequenos sozinhos em casa pode ser um fator desencadeador de estresse. Personalidade: Segundo Pereira (2002, p. 54) “as características de personalidade interagem de modo complexo com os agentes estressores tanto no sentido de incrementá-los, como, ao contrário, inibi-los ou eliminá-los”. Algumas vezes, a associação de alguns traços de personalidade, que serão abordados abaixo, potencializam o desenvolvimento da síndrome. Em seu estudo, Semmer (1996) observou que pessoas com baixos níveis de hardness (termo definido abaixo), bem como a presença de lócus de controle externo e estratégia de enfrentamento caracterizada pela fuga, teriam um perfil propenso ao Burnout. Hardness: Kobasa (1981, apud. Semmer, 1996) elaborou o conceito de hardness - personalidade resistente ao estresse. Para o autor, algumas pessoas são capazes de interpretar agentes estressores como sendo passíveis de controle, o que possibilita o desenvolvimento pessoal. Em pessoas com personalidade resistente encontramos três dimensões: 1) compromisso: as pessoas se implicam profundamente em tudo que fazem 2) controle: sentem que podem controlar as situações 3) desafio: as condições adversas são encaradas como 28 auxílio diagnóstico e terapêutico (se necessário) e para verificar a necessidade de novo encaminhamento. Após a entrevista de triagem, o paciente aguarda em lista de espera para iniciar seu acompanhamento psicológico na Unidade. Dentre as possibilidades de atendimento realizado estão: o psicoterapia individual/ em grupo/ familiar o avaliação psicológica e orientação familiar / orientação de pais Durante o manejo de um caso, os psicólogos também elaboram os relatórios rios para os profissionais que encaminharam o caso ou para o Conselho Tutelar. Mensalmente, são realizadas reuniões entre os membros da equipe de Saúde Mental, nas quais são discutidas questões administrativas. Raramente há discussões clínicas, não existe supervisão clínica e institucional no próprio município, bem como não há reuniões com outros profissionais que não os da Saúde Mental. Os próprios psiquiatras raramente conseguem participar des s reuniões devido à enorme demanda de atendimento agendado para eles. A troca de informações sobre pacientes se dá por meio dos prontuários, relatórios, e no máximo, conversas breves nos corredores, o que pode empobrecer o entendimento do caso. Assim, os psicólogos que trabalham neste contexto se deparam com a dificuldade em lidar com pacientes com diagnósticos psiquiátricos graves, devido à falta de discussões em equipe que possam auxiliar na compreensão destes casos. 29 3.2 Atenção Primária, Secundária e Terciária: qual o papel do psicólogo de UBS? O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado pela Constituição Federal de 1988, com a finalidade de diminuir a desigualdade na assistência à Saúde, para garantir efetivamente o atendimento público a qualquer cidadão. O SUS foi regulamentado pela Lei Orgânica da Saúde (Leis 8080/90). (http://www. sespa.pa.gov.br/Sus/sus/sus oquee.htm) Essa lei também define os princípios e diretrizes do SUS. As diretrizes são a equidade, universalidade, integralidade e controle social, e os princípios básicos são a integralidade, universalidade e hierarquização. (http://portal.saude.gov br/saude/area.cfm?id area=169). Para esta pesquisa, vou aprofundar apenas o último princípio, que está relacionado com o tema desta pesquisa. A hierarquização dos serviços de Saúde consiste na organização desses segundo a complexidade das ações desenvolvidas. Existem três níveis de atendimento: Atenção Primária (baixa complexidade), Atenção Secundária (média complexidade) e Atenção Terciária (alta complexidade). Atenção Primária: (...) conjunto de ações de caráter individual ou coletivo, que envolvem a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação dos pacientes. Nesse nível da atenção à saúde, o atendimento aos usuários deve seguir uma cadeia progressiva, garantindo o acesso aos cuidados e às tecnologias necessárias e adequadas à prevenção e ao enfrentamento das doenças, para prolongamento da vida. (http://www..saude .gov.br/susdeaz/) A Atenção Primária é o primeiro contato do usuário com o serviço de Saúde, e envolve atendimentos realizados pelas especialidades básicas de Saúde (clínica médica, pediatria, obstetrícia, ginecologia, etc). Ainda, é função desses profissionais realizar encaminhamentos dos usuários para os atendimentos de média e alta complexidade. “Uma 30 atenção básica bem organizada garante resolução de cerca de 80% das necessidades e problemas de saúde da população de um município e consolida os pressupostos do SUS: equidade, universalidade e integralidade.” (http://www .saude.gov.br/susdeaz/) Atenção Secundária: “ações e serviços que visam a atender aos principais problemas de saúde e agravos da população, cuja prática clínica demande disponibilidade de profissionais especializados e o uso de recursos tecnológicos de apoio diagnóstico e terapêutico”.Ex: procedimentos especializados realizados por profissionais da Saúde; cirurgias ambulatoriais especializadas; procedimentos traumato-ortopédicos; ações especializadas em odontologia; patologia clínica; anatomopatologia e citopatologia; radiodiagnóstico; exames ultra-sonográficos; diagnose; fisioterapia; terapias especializadas; próteses e órteses; anestesia. (http://www saude. gov.br/susdeaz/) Atenção Terciária: “Conjunto de procedimentos que, no contexto do SUS, envolve alta tecnologia e alto custo, objetivando propiciar à população acesso a serviços qualificados, integrando-os aos demais níveis de atenção à saúde (atenção básica e de média complexidade)”.Ex: assistência ao paciente portador de doença renal crônica; assistência ao paciente oncológico; diversas cirurgias de alta complexidade, como as cardiovasculares; assistência em traumato-ortopedia; procedimentos de neurocirurgia; procedimentos para a avaliação e tratamento dos transtornos respiratórios do sono; assistência aos pacientes portadores de queimaduras; assistência aos pacientes portadores de obesidade (cirurgia bariátrica); genética clínica; terapia nutricional; entre outros. (http:/Awww .saude.gov.br/susdeaz/) Com relação à Atenção Primária, a rede nacional do SUS dispõe de diversas unidades, entre essas a UBS. Então, teoricamente os profissionais na UBS deveriam focar na promoção e manutenção da Saúde Pública. As ações relativas à promoção de Saúde devem ser dirigidas a grupos comunitários, e muitas vezes demanda contatos interinstitucionais. Além disso, 33 que o paciente se sinta acolhido, seguro, e com isso acabe mais mobilizado ao tratamento. Ao psicólogo cabe o “cuidado à alma”, o acolhimento e escuta do paciente (ESSLINGER, 2003) A prestação de cuidados exige tanto a expressão de afeto quanto a obrigatoriedade de uma postura profissional. Com toda certeza, a promoção de Saúde, a cura, e a prevenção de novas crises trazem enorme satisfação para o profissional, mas também trazem desajustes e tensões. Por se tratarem de atividades que exigem um contato próximo com pessoas, leva os profissionais da Saúde a ficarem mais suscetíveis a fatores de risco inerentes ao trabalho. No dicionário, cuidado significa atenção, cautela. “Cuidado diz respeito a uma atitude de preocupação, responsabilização e envolvimento afetivo que revelam a natureza humana, a forma mais concreta de ser humano” (REGO, 2007, p. 88). Assim, quando o psicólogo se propõe a cuidar, interage com o outro, compartilha e participa, deixando-se tocar pelo outro. Para Ayres (2004), em todas as ações de Saúde, o cuidado consiste em uma interação entre os sujeitos, que visa o alívio de um sofrimento ou alcance de um bem-estar. Para Merhy (2002), o trabalho nessa área é fundamentalmente a oferta do cuidado, ou seja, seu objeto não é somente a cura e a proteção da Saúde, mas também a produção de um cuidado que as favoreça. Ainda com relação ao tema, é importante falar sobre a humanização. No dicionário, o significado mais geral de humanizar é tornar humano, benévolo, afável. Na área da Saúde, o termo significa particularizar, atender às circunstâncias e necessidades individuais. (ROMANO 1999). Neste sentido, Minayo (2004) nos leva a um questionamento quanto ao termo humanizar: existe a possibilidade do ser humano praticar um ato desumano? Então, conclui que só ao homem isso é possível, e faz uma revisão histórica sobre a questão. Durante o humanismo (Renascimento) houve uma primazia dos valores humanos sobre os religiosos, trazendo uma atitude humana individualista e questionadora. Este 34 movimento sinalizou a crise do racionalismo, e tornou a explicação do homem e sua natureza concebida pela Igreja secundária. Então, retoma a preocupação com o sentido da existência, sedimentando a concepção do homem como ser livre e pensante, concreto em sua singularidade. (MINAYO, 2004). Rego (2007) compreende a humanização a partir da visão de Nogare: A humanização implica em nos tornar mais humanos pelo reconhecimento da humanidade do outro e por sermos por ele reconhecidos. Não há humanismo sem autonomia. Assim, a humanização conduz ao crescimento, a liberdade de criação e de vida, delimitando as possibilidades de reciprocidade entre os homens com relação a direitos, deveres e condições de bem estar, traduzindo-se em um movimento histórico realizado no cotidiano a fim de alcançar o crescimento, a independência e o desenvolvimento dos indivíduos. (2001, apud. REGO, 2007) Atualmente, a necessidade da consolidação da humanização da assistência ao usuário vem sendo amplamente discutida, visto que é um dos grandes desafios nos serviços de Saúde. Cada dia, mais tecnologia é alcançada, e o cuidado às pe: acaba ficando em segundo plano. Deslandes (2004) acredita que para isso é necessário uma “assistência que valorize a qualidade do cuidado do ponto de vista técnico, associada ao reconhecimento dos direitos do paciente, de sua subjetividade e referências culturais. Implica ainda a valorização do profissional e do diálogo intra e inter equipes” (DESLANDES, 2004, p.8). Para a autora, a humanização da assistência apresenta quatro pilares, que são a humanização como: 1) oposição à violência, 2) capacidade de oferecer atendimento de qualidade articulando os serviços tecnológicos com o bom relacionamento 3) melhoria das condições de trabalho aos cuidadores 4) ampliação do processo comunicacional. Nesta pesquisa, o foco é o cuidado ao cuidador em Saúde, ao psicólogo mais especificamente. Então, é fundamental entender melhor no que consiste o terceiro pilar. Este representa uma preocupação em ter equipes de trabalho saudáveis, além do “reconhecimento da necessidade de cuidar dos profissionais de Saúde, seja oferecendo melhores condições de trabalho (infra-estrutura adequada, compartilhamento de ações, respeito às especificidades) ou 35 investindo em qualificação e melhor remuneração” (REGO, 2007, p. 97). Para Esslinger (2003), o cuidado ao cuidador consiste na possibilidade desses profissionais compartilharem experiências e sentimentos despertados durante a interação com o paciente. A humanização não pode ser pensada apenas do ponto de vista do usuário, embora seja fundamental. Afinal, se o profissional não tiver condições de saúde para prestar um bom atendimento, de nada vai adiantar ter recursos e boa vontade. Neste sentido, o psicólogo, que se depara diariamente com a dor e sofrimento psíquico do outro, precisa cuidar, oferecer acolhimento necessário para auxiliar no processo de cura. Porém, antes de cuidar do outro ele precisa estar bem, e para isso, cuidar de si mesmo. Não existe apenas um lado, e cada instituição/equipe tem sua forma de conduzir e colocar em prática a humanização de seu serviço. Porém, é fundamental que se valorize e favoreça a autonomia de cada pessoa, seja ele profissional ou usuário. 3.4 Formação do psicólogo na graduação A psicologia da Saúde é o agregado de contribuições educacionais, científicas e profissionais específicas da Psicologia à Promoção e a manutenção da saúde, à prevenção e ao tratamento da doença, à identificação de correlatos etiológicos e diagnósticos da saúde e da doença e respectivas disfunções. Ela visa ainda à análise e o progresso do sistema de assistência à saúde e o desenvolvimento da política sanitária. (MATARAZZO, 1982, p.154) Quando o tema é humanização dos cuidados, é necessário pensar na formação do profissional da Saúde, neste caso, do psicólogo, para que ele possa ter mais clareza sobre possíveis dificuldades e os conceitos previamente concebidos que com certeza estão presentes em sua prática profissional. O que se percebe é que existe muito pouco durante graduação que 38 atividade está intrinsecamente ligada aos recursos e exigências institucionais, ditadas por políticas publicas. ((AMAMOTO, 1998). Ainda, o perfil do cliente a ser atendido não é o mesmo do consultório particular, e isso pode ser um choque para o profissional recém-formado, devido ao contato com realidades sociais diferentes, com respectivas diferenças no que diz respeito às queixas ou do ambiente propriamente dito. ((AMAMOTO, 1998). Assim, o que se percebe é que não existe um trabalho homogêneo entre os psicólogos, em qualquer esfera de ação. Atuar na área pública não significa que o psicólogo tenha que excluir o atendimento psicoterápico por completo, m: sim que precisa agregar outras formas de atendimentos mais eficazes para atender a uma demanda maior. Portanto, para que este profissional esteja apto a atuar em diversos campos, faz-se necessária uma reformulação de sua formação na graduação. Há uma lacuna entre o aparelho formador e o mercado de trabalho, e o psicólogo fica neste “vazio”, sem saber como atuar nas diferentes áreas. (SILVA, 1988). Na Psicologia, após a graduação, a grande maioria dos profissionais precisa buscar um aprofundamento maior da prática, em cursos de extensão, aprimoramentos ou especializações. Essa busca surge a partir da necessidade de se tornarem mais competitivos no mercado de trabalho. Na realidade, o ideal seria que a graduação efetivamente formasse o profissional, que o preparasse para a atuação, como autônomos, ou em Instituições de Saúde Pública. Para isso, seria fundamental introduzir disciplinas que articulassem a teoria com a prática supervisionada. (SILVA, 1988). Atualmente, a grade curricular da maior parte das Instituições de Ensino consiste em uma compartimentalização do ensino, que institui a matrícula por disciplina, regime de créditos, e departamentalização. Isso faz com que o aluno acabe vivenciando a graduação como um “supermercado”, no qual é obrigado a comprar alguns itens, e outros não. “A 39 formação universitária acaba sendo resultado da mistura que cada aluno consegue realizar com o que lhe foi oferecido” (SILVA,1988, p. 225). Dentro da formação universitária estão também presentes os estágios profissionalizantes, que são realizados geralmente nos dois últimos anos. Porém, o número de horas por semana dedicadas a ess es, a fregiiência da supervisão, e a forma como acontece à atuação (aplicação de técnicas, e não reflexão sobre a práxis) não são suficientes para que este aluno esteja efetivamente preparado para o mercado profissional. Se a formação em psicologia não transmite ao aluno — ou não o leva a elaborar — um conceito amplo de atuação psicológica, abstraído dos modelos específicos de trabalho aos quais é exposto nos cursos, parece-nos claro que não estamos formando profissionais capazes de construir a psicologia, mas apenas repeti-la. (CARVALHO, 1984, p.9) Essa questão é ainda mais complicada na área da Saúde Pública, principalmente porque a teoria ensinada acaba sendo diferente da prática, da realidade dos Serviços de Saúde Pública do Brasil. Conforme já mencionado, a inserção do psicólogo nessa área é ainda recente; somente nas últimas duas décadas que este campo tornou-se significativo, com um número representativo de psicólogos atuando em UBS, hospitais, redes de reabilitação, entre outros. Então, o grande questionamento que se faz é como, quando e onde começar a formação do psicólogo para atuar em Saúde. (AMARAL, 1999) Atualmente, a maior parte dos estudantes termina a graduação com uma noção básica de Saúde Pública, adquirida em aulas ministradas muitas vezes por profissionais acadêmicos que nunca vivenciaram a prática diária de uma instituição de Saúde. Com isso, o recém- formado acaba buscando um aprofundamento da prática em cursos de aprimoramento, especialização e formação em Psicologia da Saúde. (AMARAL, 1999) Matos (2000) acredita que a formação é demasiadamente teórica, com pouca exposição do aluno a situações reais do trabalho. Então, é fundamental e urgente essa reestruturação na grade curricular do estudante de psicologia, para garantir que este saia apto 40 a trabalhar em áreas diversas à clínica. Para isso, propõe um modelo em que a prática e teoria sejam indissociáveis, que possam ser articuladas durante do estágio e supervisão. O número de horas de estágio deveria ser consideravelmente aumentado, e a supervisão focada na reflexão sobre a prática, e não meramente um espaço para ensinar regras rígidas a serem aplicadas. Com relação à competência profissional, Matos (2000) coloca que esta “necessita de uma atuação prática intensa, prolongada e sistemática, em situação real, sob supervisão estrita”. Além do aumento de horas em contato com situações reais de trabalho, a teoria precisa ser atualizada, pois o estudante de Psicologia aprende, por exemplo, sobre as diretrizes do SUS, mas como estas não são compatíveis com a realidade, acaba gerando uma lacuna entre a teoria e a prática, o ideal e o real. Assim, com essas alterações, acredito que o profissional teria mais condições de enfrentar a realidade do trabalho em Saúde Pública, como por exemplo, nas UBS. 43 No entanto, essas polaridades nem sempre caminharam juntas, e durante muitos séculos o aspecto feminino foi duramente reprimido, o que trouxe consegiiências para a sociedade contemporânea. Para uma melhor compreensão, é necessário fazer uma breve revisão histórica sobre estes princípios, e como eles foram interagindo na psique coletiva ao longo dos anos. A estrutura da consciência foi em um primeiro momento matriarcal: “os povos arcaicos falam do surgimento do mundo a partir de uma deusa-mãe: A Grande Deusa Criadora, ao mesmo tempo útero e força geradora do universo” (KOSS, 1999, p. 61). Nesse período a vida emergia espontaneamente, e o homem se alimentava daquilo que conseguia diretamente na natureza. Com a formação dos primeiros grupos, para organização da caça e da comunidade como um todo, foi necessário o estabelecimento de algumas regras de convivência. Então, surgiu a cultura patriarcal, na qual os padrões masculinos foram sendo gradualmente super valorizados, e os femininos rejeitados, reprimidos, determinados inconscientes. Desde o início da era do ego patriarcal, houve uma desvalorização da vida, da matéria, da existência mundana e do corpo. Assim, “a interioridade de ser no mundo, que é o reino feminino, era rejeitada.” (WHITMONT, 1991, p.144). Durante todo o período patriarcal, principalmente com a grande influência do cristianismo na cultura ocidental, o o. Quando specto feminino sofreu intensa repres alguma polaridade permanece reprimida na sombra, conforme o princípio da auto-regulação psíquica, ela precisa ser reintegrada. “Um novo mitologema está emergindo em nosso meio e pede para ser integrado às nossas referências contemporâneas. Trata-se do mito da antiga Deusa que governou a terra e o céu antes do advento do patriarcado e das religiões patriarcais.” (WHITMONT, 1991, p.9). 44 A consciência humana precisa do “retorno da deusa” enquanto força do feminino, para que a unidade do ser, a vida e o sentido de viver sejam restaurados. Para Sá, faz-se necessário o reencontro com a natureza, a harmonia consigo mesmo, a conexão com a fonte de vida. (SÁ, 2001). Ao mesmo tempo em que o mal precisa ser elevado à consciência, pessoal e coletiva, para tornar-se fonte de criatividade, a feiticeira, que é a antítese da mulher idealizada, símbolo das energias criadoras instintuais, não domesticadas e não disciplinadas precisa ser ouvida. A integração desta sombra traz de volta a mulher selvagem, que segue seu instinto de preservação, que possui sua energia vital, sexual, que fareja o perigo, que intui a cura e sabe o que a alma está pedindo, que sabe aplacar o sofrimento e pode transmitir o dom da vida. Esta integridade faz a ponte para a transcendência. É a mulher novamente apresentando-se como agente de mudança para uma nova etapa no desenvolvimento da consciência humana. (Sá, 2001, p.7). Assim, Sá (2001) acredita que a alma humana busca um sentido, contestando os valores que foram esquecidos, exigindo uma reflexão para redescobrir os mistérios femininos ligados ao ciclo vida (morte-vida) e encaminha-se para a elaboração da morte simbólica. A questão espiritual é repensada, o ser criativo é recriado, fazendo com que a humanidade regenere-se e cure-se dos excessos de violência e agressividade a que se submeteu em virtude do desenvolvimento unilateral da razão. Atualmente, na cultura ocidental, o comportamento das pessoas indica que está para surgir um novo indivíduo, que tenta conciliar essas forças dentro de si e que procura um equilíbrio dinâmico, reunindo em si o que há de positivo tanto no masculino quanto no feminino. Nesse primeiro estágio de uma evolução que mal acaba de começar, a desejada e temida reintegração do feminino pode, antes de qualquer coisa, levar a um casamento de cada um consigo mesmo, a um ressuscitar do poder simbólico da serpente, de renovação, de mudança de pele, de tão sonhada juventude, que é um processo muito interior de relação entre o efêmero e o eterno, pois aquilo que se renova alcança a sabedoria e a eternidade. (Furlani, p. XX). Faria (2001) relata que, para Jung, a consciência coletiva vem passando por uma grande transformação, e afirma que: 45 (..) o princípio feminino havia sido duramente reprimido e desconsiderado pela cultura patriarcal desde os seus primórdios, e que a ênfase no princípio masculino havia atingido um ponto insustentável, criando um abalo na consciência coletiva, em que o excesso de racionalidade criava um ego inflado desconectado da Totalidade, do mundo da natureza e da vida instintiva. (FARIA, 2001, p.11). O autor ressalta a necessidade de uma reformulação da consciência patriarcal, de modo que haja uma alternância entre o matriarcal e o patriarcal, numa perspectiva de alteridade. Apesar disso, comenta que o processo de uma transformação da psique coletiva é lento. Assim como as sociedades com base no arquétipo da Grande Mãe levaram um tempo para se tornarem patriarcais, a sociedade atual também custará a sofrer uma real transformação. Estamos vivendo um período transitório. Neste contexto, o que se percebe é que as pessoas da sociedade atual ainda não conseguiram integrar aspectos do feminino fundamentais para a sobrevivência: vivemos em um mundo ocidental patriarcal, no qual tempo é dinheiro, num ritmo acelerado, em que a quantidade prevalece sobre a qualidade. Como vimos, um dos aspectos do feminino é a capacidade de gerar vida, o maternal. O Arquétipo materno engloba tanto a Boa Mãe quanto a Mãe Terrível. Esse arquétipo só se tornou negativo porque também foi reprimido durante muito tempo. “Levando em consideração que os elementos positivos da experiência infantil, como alimento, calor, proteção, segurança e aconchego estão associados com a imagem da Grande Mãe, a privação destes elementos em função da separação e supressão da mãe, está na base da formação da Mãe Terrível” (KOSS, 1999, p. 114) A partir dessa compreensão sobre a sociedade e deste aspecto do feminino, podemos refletir até que ponto a Síndrome de Burnout está relacionada a essa questão. Conforme vimos neste capítulo, existem diversos fatores facilitadores do Burnout. Minha pergunta é se essa falta de cuidado pessoal, esse modo de trabalhar, em que a pressão pelo sucesso prevalece sobre a saúde do trabalhador, poderia estar relacionado à desconexão com esse aspecto do 48 seu pedido, Zeus, o supremo deus do Olimpo, fulminou o ousado e atrevido médico com um raio. Porém, depois de sua morte, recebeu-o entre os deuses. (GROESBECK, 1983) Uma das reflexões que podemos fazer sobre esse mito diz respeito especialmente ao que pode ocorrer com os terapeutas quando estão muito mobilizados por seus pacientes. O analista, quando fica totalmente identificado com a imagem arquetípica do curador, pode manifestar uma inflação”, um estado de onipotência, assim como Asclépio. Na prática, o que se percebe é que é bastante comum ficarmos envaidecidos com essa projeção idealizada recebida do paciente, então precisamos sempre estar conscientes com relação a isso, pois se nos fixarmos nesta posição, sob o fascínio do arquétipo, o processo terapêutico pode ficar paralisado. Além disso, o mito nos remete à imagem arquetípica do curador-ferido, que está presente no relacionamento terapêutico. Todo arquétipo é bipolar, ou seja, possui dois pólos. No início normalmente somente um dos pólos fica ativado, enquanto o outro fica inativo, ou inconsciente. O mesmo ocorre no encontro analítico: o paciente tem dentro de si o curador, só que inativo e projetado e o terapeuta tem internamente o paciente, a doença, a ferida. No início é exatamente isso que é esperado, ou seja, um busca à cura, e o outro representa essa possibilidade. Porém, o pólo curador também precisa ser ativado no paciente para que a relação terapêutica seja criativa e fecunda, e para isso devem ser retiradas as projeções feitas sobre o terapeuta. Assim, no paciente devem ser despertadas as forças de cura, pois a doença só pode ser curada se houver a ação deste curador ou médico interior. (GROESBECK, 1983) O terapeuta por sua vez, também carrega dentro de si a imagem e a vivência da doença, tem intimidade com o sofrimento — a imagem do curador ferido, de Quíron. Segundo Jung (1981, p.111), o terapeuta “só vai curar na medida de seu próprio ferimento”. 2 Termo utilizado por Jung para indicar evento do totalitarismo psíquico, pelo qual uma parte qualquer da psique se identifica com toda a vida psíquica. Manifesta-se no plano da simbolização. (PIERI, 2002) 49 Assim, podemos nos questionar se somos nós que curamos ou se seriam as forças de cura mobilizadas no próprio paciente. Segundo a abordagem junguiana, a psique tem um poder de auto-cura, ou seja, existe um centro regulador da homeostase psíquica, o Self, cuja função é manter o equilíbrio energético entre os opostos. Então, se há uma atitude unilateral e rígida na consciência, há uma tendência a compensar essa unilateralidade sinalizando através de símbolos ou sintomas. Para Jung, a transformação será possível a partir de um relacionamento adequado com o inconsciente. Nesta visão, no Self estão as mesmas forças que causam e curam a doença, assim como diz o oráculo de Apolo: “aquele que fere também cura” (GROESBECK, 1983). Algumas condições são fundamentais para propiciar a constelação curador/paciente no relacionamento terapêutico, acionando assim o curador no paciente. A principal é que o analista deve se permitir ser “afetado”, ser “tocado” pelo paciente, num processo dialético em que ambos se transformam. Para Jung, a transferência é considerada fundamental para o processo de cura, por ser um canal de expressão da criatividade; através des , são atualizados os complexos e os conteúdos do inconsciente, revelando seu pano de fundo arquetípico (JUNG, 1981). Ao entrar em contato com sua ferida, reconhecendo-se como vulnerável e imperfeito, o terapeuta irá vivenciar seu lado “doente, sua própria ferida, saindo de uma postura onipotente.” Só assim poderá acionar o pólo “curador” do paciente, ou seja, irá permitir que a energia do arquétipo curador/doente possa ser mobilizada e fluir nas duas direções. E conscientização da ferida do terapeuta fará com que seja mais empático, tornando-o capaz de dar suporte ao sofrimento do paciente. Esse, por sua vez, conecta ao seu “terapeuta interno”, e se compromete com seu processo. Se nos ativermos, num momento de reflexão, a este aspecto do mito, perceberemos o quão fregiientemente os profissionais de saúde são postos nesta situação, a de médicos feridos pela própria prática médica, pelos pacientes, em suma — e como esta experiência poderá ser usada para uma compreensão dos processos internos do 50 próprio profissional, o que poderá resultar numa melhor compreensão do paciente. (CARVALHO, 1996, p.62) A partir dessa reflexão, podemos pensar que para que o terapeuta entre em contato com sua ferida, ajudando assim seu paciente, sem ser totalmente dominado por esta, ele precisa realizar uma constante auto-avaliação, ou seja, entrar em contato com aspectos inconscientes seus, para poder integrá-los de forma positiva. Neste sentido, a análise e supervisão do próprio terapeuta irão contribuir para este processo. Novamente, vale ressaltar que para cuidar do outro, o psicólogo precisa antes de tudo, cuidar de si mesmo. A partir dos dados levantados na parte teórica, observamos que a Síndrome de Burnout apresenta diversas especificidades, e seu desenvolvimento está relacionado tanto a aspectos organizacionais, quanto pessoais. Assim, um dos objetivos desta pesquisa é abordar ambos os aspectos, verificando se estão ou não presentes no discurso das participantes. 53 A partir disso, durante a pesquisa, tanto o pesquisador quanto o participante vão se modificando mutuamente. Para o autor, o problema vai sendo delimitado gradualmente, o pesquisador é participante do conhecimento produzido e ocorre uma intervenção entre pesquisador e participante. Turato (2003) acredita que o pesquisador precisa estar sempre atento aos próprios sentimentos, como angústias e ansiedades, deixando que estas cumpram um papel de motor da pesquisa, deixando-se tocar por elas, para poder compreender as questões humanas, as angústias e as ansiedades do outro. Ainda, o autor acredita que o objetivo não é o estudo do fenômeno enquanto objeto e sim seu significado para as pessoas. Assim, o sentido da experiência tem uma função estruturante, que define inclusive a forma como as pes oas organizam sua vida e se inter relacionam. (TURATO, 2005) Para Esslinger (2003), “pode-se dizer que a relação que se estabelece na pesquisa qualitativa é a de sujeito/sujeito, na qual, pesquisador e pesquisado, ao se constituírem mutuamente, constituem também o próprio objeto de investigação.” Neste sentido, existe uma afinidade entre estes autores e a abordagem de pesquisa junguiana, visto que para a Psicologia Analítica toda relação humana apresenta uma complexa rede de influências e interdependências, com comunicações nos mais diversos níveis entre os participantes. A pesquisa qualitativa caracteriza-se como uma abordagem interpretativa e compreensiva dos fenômenos, buscando seus significados e finalidades. Essa metodologia baseia-se numa perspectiva epistemológica em que o conhecimento resulta de processos dinâmicos que fluem dialeticamente. Do princípio da relatividade, da complementaridade e da incerteza deriva uma concepção de verdade relativa e temporária. Do ponto de vista metodológico, os fenômenos são considerados em função do contexto em que são investigados; tanto a objetividade quanto à subjetividade são consideradas, sendo que a intersubjetividade se configura como a melhor posição possível do pesquisador diante do conhecimento e de seu objeto de investigação. (PENNA, 2005, p.80). Para a autora, a relação entre pesquisador e fenômeno é dialética, sujeito e objeto ou pesquisador e fenômeno participam ativamente da produção de conhecimento. (PENNA, 54 2005). Dessa forma, acredito que a melhor escolha para esta pesquisa seja a utilização da abordagem qualitativa. 6.2 Participantes A princípio tentei selecionar apenas os psicólogos que tivessem apresentado, em algum momento, sintomas físicos ou emocionais, que poderiam estar associados à Síndrome de Burnout. Para isso, a coordenadora da Saúde Mental do município selecionado me indicou duas profissionais que haviam tirado licença médica durante um período superior a 15 dias. Porém, após o exame de qualificação, reavaliei esses critérios, visto que meus objetivos eram justamente verificar a presença de sintomas, e se estes estavam ou não relacionados à síndrome. Além disso, ess sintome poderiam ser manifestos ou expressos de diversas formas, e não neces ariamente implicariam em um afastamento do profissional. Assim, optei por convocar todos os psicólogos que trabalham ou trabalharam em Unidades Básicas de Saúde desse município, dos quais 7 participaram dessa pesquisa. 55 6.3 Sobre a Coleta. 6.3.1 Procedimento Como eu já trabalhei na equipe de Saúde Mental deste município, conheço o grupo de psicólogos em questão e já tinha seus contatos. Então, entrei em contato com todas as participantes por telefone. Marcamos um encontro nas UBS em que trabalham ou em seus consultórios particulares, tomando o cuidado para ser fora do horário de expediente e não prejudicá-las em suas atividades. 6.3.2 Instrumento Para a coleta dos dados relativos ao tema estudado, realizei entrevistas semidirigidas, com perguntas pré-elaboradas (vide ANEXO B), e outras que foram sendo formuladas no decorrer da própria entrevista, seguindo o modelo clínico. As perguntas do questionário foram elaboradas com o intuito de responder aos objetivos da pesquisa, estavam relacionadas às vivências/experiências enquanto psicólogas de UBS, às dificuldades encontradas, e à presença ou não de algum grau de adoecimento. A última pergunta “Gostaria que você falasse o que você entende sobre Síndrome de Burnout.” foi realizada para verificar se as participantes 58 No início houve uma grande preocupação da minha parte em não misturar minhas experiências prévias com os conteúdos das entrevistadas. Porém, percebi que o fato de optar por levar em consideração meu envolvimento prévio com as participantes não comprometeu a objetividade científica da pesquisa, pelo contrário, enriqueceu a análise do material: Em nenhum outro campo como na psicologia é requisito básico que o observador deve ser adequado ao seu objeto, no sentido de ser capaz de ver, não apenas subjetivamente, mas também objetivamente. A exigência de que ele deva ver apenas objetivamente está fora de questão, pois isto é impossível. Devemos ficar satisfeitos se ele não vir subjetivamente demais. (Jung, 1921/2002, p.26). Dessa forma, o envolvimento faz parte do processo, porém não pode ser “cego”, ou seja, demasiadamente subjetivo. Então, tive que realizar um trabalho metódico, com disciplina, tanto durante as entrevis quanto na análise dos dados, o que demandou um constante auto-exame. A compreensão dos dados foi dividida nas seguintes etapas: em um primeiro momento optei por deixar minha intuição ir permeando os discursos das participantes, fazendo uma leitura flutuante, trabalhando com a subjetividade de cada uma, destacando alguns trechos que me chamavam a atenção. Neste momento tentei reconhecer algumas vivências emocionais, tanto a partir dos sentimentos que elas relataram, quanto daquilo que ressoava em mim conforme eu lia a entrevista. Então, fiz uma reflexão pontual em cima das falas de cada uma delas separadamente, destaquei os principais temas e finalizei com um resumo daquilo que mais chamou atenção em suas vivências individuais. Em um segundo momento, procurei observar quais os pontos comuns das entrevistas, fazendo comparações e associações entre estas. Dessa forma, fui tentando encontrar o material simbólico. Para isso, agrupei os temas recorrentes, que apareciam na maioria das entrevistas, que estão relacionadas aos fatores desencadeadores da Síndrome de Burnout, para tentar compreender até que ponto suas vivências estão relacionadas ao fenômeno em questão. 59 Segundo Jung (1921/2002), durante a análise do material coletado, a função que compreende o símbolo vai sendo conduzida pelo pensamento simbólico, através de associações, comparações e analogias entre as funções da consciência. Neste sentido, a compreensão do fenômeno é dada por meio do processamento simbólico do material pesquisado, a partir dos seguintes parâmetros: causalidade, finalidade e sincronicidade. O conhecimento vai sendo produzido à medida que os aspectos do inconsciente vão sendo integrados ao sistema ego-consciência, levando então a uma ampliação da consciência. Assim, para Penna, “o método de investigação da Psicologia Analítica se caracteriza pelo processamento simbólico do material pesquisado, utilizando-se a amplificação simbólica como meio através do qual os aspectos desconhecidos do símbolo se tornam conhecidos” (PENNA, 2005, p. 88). 6.5 Considerações Éticas Os objetivos da pesquisa foram claramente explicitados, sendo respeitado o desejo ou não de participar dos psicólogos, deixando claro que aqueles que não participassem não teriam nenhum prejuízo em seu trabalho. Além disso, as entrevistas foram realizadas fora do horário de trabalho, para que os participantes não fossem prejudicados. Os participantes terão a garantia total de sigilo, visto que foram tomados todos os cuidados necessários para que nem a identidade dos participantes da pesquisa, nem o nome da Instituição onde trabalham sejam divulgados. Na compreensão dos dados, foram utilizados nomes fictícios. Além disso, é importante comentar que, embora um dos tópicos de análise 60 seja o tempo de experiência profissional, optei por não colocar em nenhum lugar desta pesquisa o tempo exato que cada participante trabalhou na rede, para evitar sua identificação. Nesta pesquisa, uma das preocupações foi com relação ao respeito às informações relatadas, sem emissão de juízo de valor, tanto durante as entrevistas quanto durante a realização da compreensão dos resultados. A pesquisa não envolveu riscos diretos à saúde, mas se houvesse necessidade, seria aberto um espaço de escuta e acolhida aos participantes que solicitassem, caso algum conteúdo discutido na entrevista fosse mobilizador de algum tipo de sofrimento. A partir disso, foi solicitado aos participantes que assinassem um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (vide ANEXO A). 63 Luiza demonstra a sensação de gratificação por se sentir ajudando um número maior de pessoas do que poderia se trabalhasse em um consultório particular. O atendimento realizado em UBS compreende o modelo visto para Luiza como o ideal de psicólogo, à medida que viabiliza um atendimento “gratuito”, para um maior número de pessoas, tornando o campo da Psicologia mais acessível ao povo. Resumindo, para ela o trabalho em UBS significa ganho de experiência, desafio e idealismo. Sobre as consegiiências que essa prática tem sobre sua vida, Luiza aponta: “Eu estou no início de carreira (...) eu acho que se eu tivesse mais experiência antes, talvez fosse não tão difícil, mas é difícil a gente aprender a lidar com a dor e a miséria e situações que parecem que são grandes demais para uma pessoa só. Na minha vida particular eu cheguei a alguns momentos a me mobilizar muito com a situação das pessoas, mas aprendi a lidar com isso, aprendi que a gente tem que se conformar com um pouquinho de cada vez, mas não parar nunca. Eu amadureci muito com esse trabalho. Eu mudei muito, não só amadureci, mas mudei muito, porque a gente olhar de fora é uma coisa, e a gente estar dentro da situação e trabalhar com ela é completamente outra. Então a gente que tem uma educação de “patricinha”, parece que o mundo lá fora, a miséria, a violência, é uma coisa muito distante. E a gente realmente entrar nessa dor, entrar nessa situação e sentir realmente o que é, e ver a casa de um cômodo com um monte de gente morando ali dentro, ver as marcas e cicatrizes no corpo de uma criança, isso realmente transforma... desestrutura e a gente tem que se reestruturar de novo.” Luiza acredita que a falta de experiência profissional tornou sua atuação mais difícil no começo, por não saber ainda lidar com situações tão graves, o que desencadeou nela um processo de amadurecimento pessoal. Neste trecho, comenta bastante sobre a dificuldade em lidar com a dor do outro, com situações de miséria, talvez por serem realidades muito distantes da sua até o momento em que ingressou na rede pública. Parece então que a maior dificuldade era falta de experiência profissional, associada à falta de experiência de vida (falta de contato com outros “mundos”, diferentes do seu). Neste sentido, Luiza conta sobre seu processo de amadurecimento pessoal e profissional, que foi se transformando da “patricinha”, que não sabia lidar com situações 64 adversas, em uma psicóloga capaz de se colocar na situação e aprender com as dificuldades do outro. No início, parece que Luiza tinha dificuldade tanto de entender as questões dos pacientes, por viver em uma realidade diferente, ou então ficava completamente mergulhada na dor do outro, não conseguindo se distanciar de forma saudável para poder buscar estratégias de enfrentamento. Ou seja, parece que não há um equilíbrio: até que ponto deve se envolver com a questão do outro, como entrar na dor, sem ser “dominada” por essa? Com o tempo e amadurecimento, Luiza fala da sensação de ter se desestruturado e, depois, como foi se reestruturando. Podemos pensar nessa questão simbolicamente, como se ela precisas e desconstruir idéias, formas de ser a agir no mundo, como a antiga “patricinha”, de certa forma protegida dos conflitos, para só então conseguir construir novos modelos internos, uma nova estrutura que consiga dar conta dos processos do outro/paciente, para poder compreender seu modo de ser, vendo a partir desse ponto de vista, mas já com recursos internos para mobilizar estratégias de enfrentamento. Ainda com relação ao seu processo de amadurecimento, Luiza comenta: “(...) Eu acho que a gente amadurece quando a gente aprende a lidar com a frustração, quando a gente pára de olhar só para o próprio umbigo, quando a gente percebe que a gente consegue ser útil apesar de tudo... que não é só receber, que a gente tem alguma coisa para dar e que muitas vezes o cuidado que a gente dá para uma outra pessoa depende de um amadurecimento, porque se eu for uma criança, eu não vou conseguir cuidar de outra pessoa. Não vou conseguir olhar, abraçar, entrar na dor e sair da dor, e fazer todo um movimento de suporte. O suporte é uma coisa que só a gente faz. Então a gente meio que tem que passar por essa situação para poder cuidar mesmo, né? Eu acho que em qualquer área, mesmo que não seja da Psicologia, a pessoa que tem mais experiência de vida até, ela tem mais maturidade, então ela não entra tão criança assim.” Luiza acredita que conseguiu amadurecer quando aprendeu a abaixar um pouco suas expectativas com relação à sua atuação, o que foi essencial para que conseguisse entrar em contato com a dor do outro, com um distanciamento necessário para que os conteúdos não a 65 paralisassem. Para entrar na dor do outro, é necessário sair do “próprio umbigo”. Simbolicamente, é necessário um olhar de dentro para fora, num primeiro momento, para entender como aquelas questões mexem internamente, para depois, conseguir olhar de fora para dentro, ter uma visão mais ampla e não egocêntrica sobre o outro e o mundo. Luiza também fala sobre a necessidade de um crescimento interno, de sair da posição de “criança” para poder compreender as questões psicológicas do outro, para poder cuidar. Novamente, podemos pensar na formação que ela diz ter tido, como “patricinha”, que pode ser considerada uma forma egocêntrica de se relacionar com o mundo apenas a partir de seu referencial, de uma cl; e social privilegiada, que não consegue entender questões particulares das clas es menos favorecidas. Neste sentido, Luiza parece ter uma reflexão autocrítica sobre sua experiência, antes e depois de sua atuação na rede pública, e sua transformação em virtude de tantos conteúdos novos com os quais ela teve que aprender a lidar com muito esforço. A “criança patricinha” conseguiu se transformar em uma psicóloga competente, capaz de entender a dor do outro. Com relação às dificuldades de seu trabalho, Luiza relata: “A gente é muito pouca gente, e muita gente precisando. Faltam não só psicólogos, mas faltam também psiquiatras, psicopedagogos. Nós temos uma demanda muito grande e não tem como a gente estar atendendo, e o nosso trabalho não é um trabalho como o do médico. Demanda certo tempo. (...) O difícil é aquilo que desafia a gente, desafia nosso limites. Então o que eu posso melhorar, eu vou melhorando. Mas aquilo que não depende da gente, isso sim é o que é a dificuldade, o que complica. Eu acho que seria muito a questão da responsabilidade, não só do Governo (...) existe uma responsabilidade geral que só com o tempo todo mundo vai se conscientizando, de que cada um tem que fazer sua parte, né? O Governo não pode ser corrupto, tem que contratar muito profissional, mas também a população tem que se conscientizar (...).” Luiza acredita que a principal dificuldade é a falta de profissionais para atender a uma vasta demanda de pacientes. Com relação a isso, diz que algumas dificuldades, que dependem só dela e de sua atuação, acaba encarando como um desafio e se esforçando para resolver. 68 posso estar cuidando de todo mundo, mas eu posso pelo menos estar orando”. Eu acho so me segurou muito. Eu confio que tem um Deus, que colocou as vidas aqui, sabe por que está nessa situação, qual que é o fim disso. Então eu acredito que se eu orar por ela, alguma coisa de bom vai acontecer. Não é que Ele é tudo, mas é que as contecem quando a gente pede. Então, eu peço por elas. E eu acho que i: me trangúiliza um pouco.” Luiza sente-se impotente frente à dificuldade de lidar com tanta demanda, a ter que dizer “não”. Então, se apóia em Deus para se tranquilizar de alguma forma. Assim, vemos um conflito entre impotência e onipotência: se em alguns momentos ela se sente capaz de dar conta da demanda, e atende as pessoas que sente que estão precisando, inclusive pulando outras pe: s que estão na fila só para suprir esta emergência, por outro, acaba se sentindo impotente quando percebe que disse “sim” a apenas um, e “não” a tantos outros, afinal de contas, ela não é Deus, mas sim, um ser humano. Neste sentido, acredita na importância em poder contar com Deus, para de alguma forma se trangiuilizar e não se sentir tão sozinha. Para Luiza, outra dificuldade é a falta de informação das pessoas: “(...) uma dificuldade seria a pessoa não saber direito para que serve a Psicologia, como funciona. Muitas vezes eles vêm pedindo remédio, pedindo mágica, soluções rápidas. E isso meio que a gente tem que chegar e esclarecer. Não é que dificulta o trabalho, é uma das situações que se as pessoas já tivessem essa consciência, elas já chegariam sabendo o que elas podem contar ou qual que é o caminho delas (...) Então isso muitas vezes parece que a gente fala línguas diferentes. Daí a gente tem que se trabalhar também pra tentar fazer eles entenderem, mas com o tempo, melhora.” Luiza comenta que as pessoas querem do psicólogo uma resposta rápida, uma solução mágica a seus problemas, com grandes expectativas, o que pode aumentar o sentimento de impotência do psicólogo à medida que ele não consegue suprir estas necessidades. Ela reclama da necessidade de ter que explicar tudo, de ter uma linguagem diferente do paciente. Novamente parece que Luiza está falando de sua dificuldade de entender e conseguir entrar em sintonia com as adversidades, com o outro diferente de si. Sobre a forma como ela lida com essas dificuldades, ela diz: 69 “(...) A gente busca se unir muito, procura estar com as outras psicólogas para a gente sentir que não está tão sozinho. A gente entra em contato com pessoas da comunidade mesmo que podem ser multiplicadores. No caso os agentes de saúde, eles são uma ponte muito legal com a população. Muitas vezes eles estão num contato mais fregiente, mais íntimo até com a população, então a gente pode estar dando um apoio, estar capacitando muitas vezes. Em palestras e orientações. (...) eles vão transmitir essa idéia, e vão formar grupos, e vão estar alcançando uma forma da gente não se sentir tão sozinho. A gente vence essa dificuldade da grandeza da tarefa juntando gente em volta. (...) Eu acho que a ponte com outras pessoas é o que facilita, é o que viabiliza o trabalho (...) com agentes comunitários, é uma coisa que ajuda bastante. Os outros profissionais também, às vezes a gente podendo estar fazendo. (...) Às vezes tem muitos professores que encaminham aluno por questões próprias, e ai quando eles começam a se dar conta dos conteúdos deles, eles passam essa idéia pra outros professores. Então o que facilita o trabalho seria justamente estar em pontes, alianças com outras pessoas.” Luiza busca estar em contato com outros profissionais para trocar experiências e ter ajuda mútua, além de participar de palestras e orientações. O contato com outros profissionais é visto como potencial de trabalho. Os outros psicólogos e as próprias pe: s da comunidade são multiplicadores. Capacitando outras pe as, a Psicologia pode ultrapassar as barreiras físicas do consultório da UBS, e levar o conhecimento, esclarecimento, e até mesmo aliviar a dor dos outros de forma mais abrangente. Luiza considera as pontes e alianças com outras pessoas como facilitadores de seu trabalho; a troca de experiências é positiva à medida que não se sente tão só, por poder ouvir e aprender com o outro, com seus respectivos pontos de vista, que pode enriquecer o seu. Com relação ao que poderia ser feito para que seu trabalho fosse melhorado, Luiza comenta: “Para o meu trabalho ser melhorado... ganhar melhor! (risos). (...) a gente sentir que é recompensado, que nosso trabalho é reconhecido. Então o pagamento realmente não corresponde. E eu acredito que pelo que a gente fala com a coordenação, o Município, o até Estado, teria condições de pagar melhor e de trazer novos profissionais. Mas, eu acho que isso depende muito também da questão das pessoas saberem que é preciso, é necessário ter psicólogo no posto de saúde. Então quanto mais valorizado for o profissional, mais para frente eles vão estar pagando melhor, eu espero (risos).” 70 ão de não se sentir devidamente valorizada, que 2 refletida em seu salário. Porém, acredita que em primeiro lugar as pessoas precisam entender o que faz o psicólogo, qual sua real importância, para poder valorizá-lo. A partir disso, consegiientemente, este será devidamente recompensado do ponto de vista financeiro. Outra questão que Luiza coloca é a falta de cuidado aos profissionais da Saúde Mental: “Assim, tem uma supervisão (...) Eu não participei de nenhuma ainda, porque ele (supervisor) também faz dá o curso, que é a cada 15 dias, então quem está no curso não faz a supervisão. E essa supervisão seria só para quem faz um trabalho corporal, da psicossomática (...) é em Y (nome de outra cidade). (...) Eu busco independente do Município, porque realmente não tem condições de ficar sem. Nossa, é essencial, completamente, absolutamente necessário ter um suporte. A gente lida com muitos conflitos, e a gente não está pronto para lidar com tudo. E tem situações (...) uma mãe que perdeu o filho, tem situações que doem demais, né? E a gente às vezes está ali, a gente abraça naquele momento, e a gente sai da sala com aquilo estraçalhando por dentro da gente, porque eu senti toda dor daquela pessoa. E eu não sei o que fazer com aquilo. Então é muito importante eu poder estar levando e trabalhando, elaborando isso com alguma outra pessoa que está lá, para trabalhar isso comigo, por que mexeu (...) Então a terapia é base nisso. Sozinha, fazer tudo isso realmente não dá. Porque a gente não pode, muitas vezes as situações mexem muito com a gente mesmo e a gente às vezes não entende o porquê. Ai a gente tem que buscar nas nossas vivências, onde é que foi que ressoou aquilo, né? E não só a dor, vamos dizer assim, a perversão. (...) se de repente eu estou com uma pessoa que está no crime, que está na droga, traficando, como é a minha postura diante dessa pessoa? Como é que é minha concepção de certo/errado (...) Como é meu conceito de ética, de autoridade, do que dá certo, que que deu errado? Isso mexe muito com a gente. A gente vai trabalhando, e vai chegando a conclusões cada vez ma não digo melhores, mas eu falo muito assim: “Certo é o que faz bem e errado o que faz mal”. Vamos ver o que funciona, em prol da saúde, do equilíbrio. Então a gente vai descobrindo no caminho.” Outro fator importante para Luiza seria ter supervisão e um suporte terapêutico para o profissional. Ela conta com insatisfação que existe uma supervisão quinzenal, mas que não é no próprio Município, não consegue se aprofundar em todos os casos que precisariam ser discutidos, e ainda é de uma abordagem diferente daquela que procura. Não há um oferecimento desse suporte por parte da Instituição. Então, acaba buscando tanto supervisão quanto terapia em caráter particular, pois acredita ser essencial para seu trabalho. 73 “(...) foi uma experiência de maturação porque acumulou com uma série de vivências. Eu era muito imatura, muito dependente, então acumulou com o falecimento da minha mãe, e a independência ou maturação rápida e necessária em pouco tempo.” Assim, percebe-se que questões pessoais também interferiram em sua transformação. Fazendo um paralelo com o que discutimos sobre o amadurecimento da jovem “patricinha” despreparada, inexperiente, podemos pensar que o falecimento da mãe a coloca novamente de frente com a questão do crescimento. Neste momento, aquela “criança”, que só olha “para o próprio umbigo”, precisa crescer e tornar-se independente da mãe, que faleceu em um momento crucial de sua vida. Neste sentido, vida pessoal e profissional sincronicamente enviam sinais de que o amadurecimento se faz necessário, de que é preciso deixar o velho morrer para que o novo possa surgir. Porém, essas mudanças em sua vida ocorrem em um curto espaço de tempo, o que faz com que Luiza não consiga dar conta das crises que se superpõem, e acaba chegando ao colapso e adoecendo, o que para ela resulta em um processo depressivo, que a levou a um afastamento, e assim pode olhar mais para si. Quando pergunto sobre o que entendia sobre Síndrome de Burnout, Luiza diz que não sabia exatamente o que era, mas fala um pouco sobre o cuidador: “Eu acho que em primeiro lugar todo mundo vai amadurecendo e vai percebendo que o médico, o psicólogo... muitas vezes existe aquilo que a gente imagina das pessoas e aquilo que elas realmente são. E a gente perceber assim, por que será que os médicos e os psicólogos sofrem? Por que eles adoecem também? Eu acho que por um lado é realmente muito estranho as pessoas não perceberem que o médico e o psicólogo tem o direito de adoecer. E como a gente mesmo cai nessa armadilha mesmo de acreditar que a gente não pode ficar doente, porque a gente tem que corresponder às expectativas. “Eu vou deixar de ser uma boa psicóloga se eu não suportar alguma angústia, algum tipo de dor em alguns momentos. Eu vou deixar de ser uma boa psicóloga se eu tiver até que encaminhar um caso porque naquele momento eu não me sinto em condições...” Até dividir um caso. Será que eu não posso chegar para um colega e dizer “Olha, eu não sei como lidar com essa situação, como é que você faz?”. Ou pesquisar. Então eu acho que é muito importante isso, da gente perceber... você falou que a saúde mental fica doente? Fica! Por que fica doente? Porque ela é humana. Não só porque existe uma carga muito difícil, porque existe exigência e tudo. Fica, mas a gente fica doente porque faz parte do processo. A doença em si não é ruim, a febre, a depressão, a angústia. São partes do processo. Não que a gente deva evitar: 74 “Nunca fique doente, nunca saia do seu equilíbrio, seja perfeita, viva inteira.” Não existe isso.” Luiza finaliza a entrevis ta falando sobre a saúde do cuidador. Acredita que o psicólogo, como o médico, ou melhor, como qualquer ser humano, também adoece. Fala sobre a necessidade de um olhar para a própria saúde do cuidador. Ainda, comenta sobre a dificuldade que os próprios profissionais da Saúde tem em realmente perceber que podem adoecer, e se cuidar, prevenir que isso aconteça. Fala de uma atitude muitas vezes onipotente do próprio psicólogo achar que consegue resolver todos os problemas das pess s, lidar com a dor do outro ininterruptamente, sem se dar conta de que também pode adoecer. Questiona se pode ou não encaminhar um paciente para outra pessoa atender quando sente que não consegue lidar com determinada situação, como fazer isso sem se sentir “menos” psicólogo, como admitir os limites que a condição humana lhe colocam? Essas questões estão relacionadas à onipotência do psicólogo. Por fim, fala que a doença em si não é ruim, porque faz parte de um processo, de desenvolvimento da psique saudável, e porque pelo afastamento da situação, pode-se olhar mais para si. 75 Temas abordados: . UBS = ganho de experiência, essencial para o consultório. . UBS = idealismo - atender maior número de pessoas que no consultório. Atendimento mais acessível. . Falta de experiência — dificuldade em atender, lidar com a dor. . Contato com a miséria e a dor do outro — muito doloroso. . Experiência profissional X experiência de vida . Amadurecimento: transformação da “patricinha”, “criança”, que só olha para o “próprio umbigo”, em uma psicóloga que precisa lidar com a dor do outro. . Diferente linguagem entre o psicólogo e o povo — dificuldade. . Multiplicadores = Capacitar pessoas da comunidade — alianças, pontes com outras pessoas para atender mais pessoas. . Sentimento de desvalorização = falta de reconhecimento/recompensa — salário muito baixo. . Vasta demanda X número insuficiente de psicólogos = necessidade de contratação de mais psicólogos para dar conta da demanda. . Pressão dos políticos para atender maior número de pessoas — quantidade X qualidade. . Pressão dos usuários, que demandam atendimento. . Dificuldade de dizer não — estabelecer limites. . Psicólogo = salvação: necessidade de suprir demandas, de corresponder às expectativas dos outros. . Dilema: como definir urgências, prioridades, quem precisa mais de atendimento? 78 PAULA “..) eu tive um problema grave de coluna (...) psicologicamente eu carreguei mais do que eu podia dar conta. A minha estrutura balançou, inflamou mesmo.” Minhas impressões: Nesta segunda entrevista, eu estava me sentindo mais preparada, mais segura com relação ao material de coleta. Se por um lado isso foi positivo, pois pude dar atenção maior a outros aspectos da entrevista, como a linguagem corporal/não verbal, por outro lado senti que por algum motivo essa entrevista ficou um pouco mais “formal”. Paula respondia as perguntas de forma já elaborada, talvez por ter feito anos de terapia, não dando muito espaço para reflexões acerca de contradições ou do que pudesse dar margem a outras questões. Na hora de analisar, senti novamente como se o discurso já estivesse pronto, como se ela já tivesse um nível de consciência elevado sobre suas questões, o que poderia me colocar em “armadilhas”, se eu não conseguisse ver o que estava expresso nas entrelinhas. Assim que entramos na sala, notei que era bem apertada, com diversos estímulos visuais, como se fosse um aglomerado de brinquedos. Então, ela comentou que estava dividindo sala com a Fonoaudióloga, porque sua sala também estava sendo utilizada por médicos. Novamente percebemos o não lugar do psicólogo, a sua não valorização. 79 Análise da entrevista: Em primeiro lugar, pergunto sobre o significado de sua prática profissional: “Eu me sinto muito útil trabalhando aqui, porque embora os pacientes tragam questões muito além das questões psicológicas, questões sociais, que a gente não tem como intervir, mesmo assim eles trazem também uma carência muito grande de atenção, de afeto, de um espaço para estar se colocando. De alguém inclusive que olhe para eles, falta até isso, inclusive as crianças. Então, embora seja uma participação mínima, um que eu faço aqui, que a gente faz na UBS, mesmo diante dessas carências eu acho que é muito importante, muito útil, ajuda o paciente, e é isso (...). Eu particularmente tenho esse perfil de gostar de me sentir útil, de precisar me sentir útil, inclusive e com isso eu acabo me completando. (...) Eu senti que eu amadureci muito depois que eu comecei a trabalhar aqui. É uma profissão em que eu percebo a troca. E essa troca é uma troca de aprendizado, de vivências, de experiências. Isso é muito enriquecedor.” Paula relata que se sente útil, pois por menor que seja sua intervenção, acredita que seu trabalho sempre é considerado importante para os pacientes. A questão de se sentir útil parece ser comum em profissionais da saúde, que sentem que precisam fazer alguma coisa o tempo todo para/pelo o outro. Neste sentido, o sentimento de se sentir útil parece colocar Paula em uma posição de objeto, que precisa exercer alguma função para ter utilidade. Paula acredita ter amadurecido muito, e que a experiência foi enriquecedora, por aprender a trocar experiências, enfim, aprender com o outro novas formas de ser. Com relação às dificuldades, relata: “A questão da infra-estrutura é difícil. Toda a estrutura da Saúde na Prefeitura. A Saúde Mental na estrutura da Prefeitura não tem uma colocação digna. Não é vista como deveria ser. Vira e mexe a gente está correndo atrás de visibilidade, de recursos (...) E para você ver, a gente teve um problema aqui de mudar a estrutura do posto, e aí “Ah, a psicóloga vai para outro posto”. Sabe, simplesmente assim? Ou “Coloca ela na sala da fono.” E esquece-se da demanda local, esquece-se de tudo porque a Saúde Mental realmente não tem (...) não tem a valorização adequada. Não tem mesmo. E isso é uma coisa que dificulta. E por conta disso, eu creio que é uma consegiiência, 80 você não tem a infra-estrutura, você não tem um espaço adequado, você não tem reciclagem, você não tem investimento, você não tem nem salário... sabe, a gente não tem um salário digno. (...) Além dessa questão da estrutura da Prefeitura, aqui mesmo faltam recursos. Não temos brinquedos suficientes, não temos espaço suficiente, não temos uma sala que ofereça privacidade suficiente. Tem muitos estímulos aqui, e não tem como evitar que a pessoa se distraia, barulhos... enfim.” Para Paula, a maior dificuldade são as questões institucionais de infra-estrutura, de não ter espaço adequado, material suficiente, investimento, o que acaba fazendo com que o psicólogo não se sinta valorizado. Ela fala sobre a necessidade de correr atrás de visibilidade, o que nos faz pensar em como muitas vezes ela pode se sentir “invisível” em seu trabalho. Um exemplo disso é quando ela foi deslocada para outra sala sem ao menos ser consultada, como se seu trabalho e ela fossem realmente “invisíveis”. O mesmo pode ser dito em relação a fonoaudióloga, que teve seu espaço “invadido”. Em seu discurso, pode-se perceber que há falta de todos os recursos necessários para um bom atendimento, o que os faz pensar em como é possível garantir um tratamento/ atendimento, como cuidar do outro ne: s condições? É interessante notar que Paula fala sobre essas dificuldades utilizando o pronome pessoal “você”, ao invés da primeira pessoa, como se deslocasse essas questões para um terceiro, como uma não personalização, não apropriação das próprias insatisfações. Para lidar com essas dificuldades, Paula precisa usar a criatividade: “Criatividade. Criando e trazendo recursos próprios, recorrendo a recursos próprios. No caso, a minha supervisora chegou a me dar uma boneca com fraldas para trazer para cá porque não tinha. Eu estava tratando de um paciente de quatro anos com ecoprese, e foi vital, foi muito legal trabalhar com a boneca, e eu precisei trazer. Tem coisas assim que... olha (aponta para uma caixa), recentemente eu fiz um arquivinho pra mim. Eu mesma que fiz, eu mesma comprei, uma improvisação. É uma caixa de sapatos, eu coloquei um parafuso. Os envelopes, a maior parte, eu que comprei, porque se eu for esperar que eles me dêem (risos). São os prontuários dos pacientes só de Psicologia (...)” 83 “(...) eu tive um problema grave de coluna. Estorou aqui, mas antes, quando eu ainda estava na outra empresa, eu comecei a apresentar esse problema. (...) Ai eu entrei aqui em março, e em outubro mais ou menos, eu precisei me afastar. Fiquei duas semanas inicialmente, porque eu fiquei sem andar. Eu travei a coluna, sai de ambulância de casa.(...) E assim, eu fiquei muito chateada de ter que parar de trabalhar, ter me afastado. Mas eu acho que o fato de inicialmente eu estar assumindo muito 2 responsabilidades pela vida das pessoas que eu atendo, pelos caminhos que as su vidas poderiam seguir, isso acabou realmente afetando minha coluna. E psicologicamente eu carreguei mais do que eu podia dar conta. A minha estrutura balançou, inflamou mesmo. Depois eu voltei, ai eu tive uma cj de pânico inclusive. Eu faço psicoterapia com um psiquiatra (...) na ocasião ele entrou com antidepressivo.(...) Aí voltei a trabalhar, me forçando mesmo, mas eu não estava muito bem. Aí novamente eu me afastei, por mais ou menos uma semana ou duas. E aí depois eu comecei a fazer hidroginástica, fiz um monte de fisioterapia (...) Eu mudei colchão, mudei travesseiro, mas principalmente mudei postura diante da vida. Na minha vida o trabalho é super importante, está incluído. Tem uma participação super importante, e eu mudei minha postura. (...) é uma nova postura que hoje ajuda que minha coluna não doa mais. Então eu não carrego mais tantos problemas, eu não me responsabilizo, não me sinto responsável mais pelas questões, pelos caminhos que as outras pessoas vão escolher. Eu entendo minha participação na vida das pessoas como uma participação mínima de ajuda para que eles se ajudem “se, quando e como” quiserem. Então assim, a partir de um ponto eu não posso ir mais, eu não me responsabilizo mais. Eu não carrego isso comigo. (...) Se eu não estou bem, se eu estou num momento de oscilação, eu vou sair mais fragilizada. De repente eu vou pra casa com uma questão, vou pra casa com um paciente, mas aí logo eu já consigo me separar disso, porque é importante que eu esteja bem. Para mim, em primeiro lugar, e para as pessoas que eu vou atender, paro o meu trabalho.” Paula relata um grave problema na coluna, que associa ao estresse desencadeado no seu trabalho. Ainda, faz um paralelo interessante sobre o fato de “carregar” problemas de seus pacientes, com a sobrecarga que sua coluna sofreu. O excesso “balança” sua estrutura; a sobrecarga gera um colapso mental e corporal. Parece que a trava ocorre quando a sobrecarga é demais. Em um primeiro momento, a partir de seu relato, pode-se pensar o quanto ela parece ter amadurecido com esta experiência, mudando postura de vida, tendo mais cuidado com sua própria saúde. Porém, mesmo com todos os problemas de saúde, parece que Paula continua diante de um dilema, sentindo a necessidade de voltar a trabalhar, como se mesmo com esses sinais, não pudesse parar, olhar para si mesma, se cuidar. 84 Paula comenta que atualmente entende sua participação na vida das pessoas como sendo “mínima”. Parece que quando não pode dar tudo o que tem, não acha que a sua participação é suficiente. Diz que procura não se envolver, não “carregar” os problemas dos pacientes consigo, mas 0? rá que consegue fazer Paula parece caminhar de um extremo (onipotência) a outro (impotência). No início tinha muita dificuldade de colocar seus limites, e reagia quase que onipotentemente. A partir do problema da coluna, passou a refletir, e restabelecer limites. Porém, com isso passou a considerar sua atuação como sendo insuficiente, desconsiderando assim sua atividade, e voltando à sensação de impotência, e falta de realização profissional. Isso nos faz pensar o quanto é difícil lidar com essa questão dos limites frente a demandas tão intensas. Além disso, nos faz refletir sobre o contato direto e constante com pessoas que estão em sofrimento, como fator importante no desenvolvimento da Síndrome de Burnout, principalmente quando se tem a percepção de que o trabalho não é suficiente. “Na nossa profissão a gente lida muito com questões de potência, você está sempre nos extremos, se sentindo ora impotente, ora onipotente. E ir pelo caminho do meio, pelo meio termo, é uma busca, e a gente tem que ficar meio que vigilante quanto a isso para que você realmente se sinta relativamente potente, como em tudo. Então, você não é Deus, mas também sua participação não é nula. Existe essa possibilidade com todas as limitações que fazem parte de uma maneira geral do nosso trabalho, e aqui especificamente com as pessoas que a gente tem, problemas que a gente tem de infra- estrutura, e carências das pessoas (...) E é muito legal descobrir que não se é onipotente, porque ai realmente você fica mais leve. Eu vivenciei essa leveza, de retirar das minhas costas literalmente as questões dos outros, e perceber que não é comigo, que não sou eu que vou dar conta, que eu não posso. O que eu posso vai até certo limite, a partir daquilo eu não posso mais. Então eu tenho uma potência relativa.” Neste trecho, Paula fala sobre a sensação de impotência e/ou onipotência que teve que aprender a lidar ao longo desse processo. Acredita que o ideal é buscar um equilíbrio entre essas polaridades, não ficar em nenhum dos extremos, conseguir um balanço ideal entre os dois. Aqui novamente aparece o simbolismo da coluna, como uma estrutura que não pode 85 pender para nenhum dos lados, à medida que é o ponto de equilíbrio que faz com que a pessoa consiga ficar em pé. Paula também fala sobre a condição de ser humana, e não ser Deus, como uma instância onipotente. Entre ser Deus e não ser nada, existe um caminho no meio que deve ser percorrido pelo psicólogo. Como ela mesma coloca, ela tem uma “potência relativa”. Perceber-se como não Deus a ajudou a sentir-se mais “leve”. Para ela foi importante o processo da conscientização de seus limites, de que não pode fazer tudo, ser o tempo todo útil para os outros, e não olhar para si mesma. Além disso, acredito que foi interessante o fato dela perceber que não precisa “carregar” os outros nas questões dos outros, separando aquilo que cabe ou não ao seu trabalho, que vai só até um determinado limite. Com relação à Síndrome de Burnout comenta: “Eu li recentemente (...) Dei uma pincelada nos sintomas, eu acho que é uma síndrome evidente assim, óbvia, né? Nosso tipo de trabalho vai resultar nesse tipo de problema, se a pessoa não se cuidar. É muito importante que a pessoa faça psicoterapia, que ocasionalmente você tenha supervisões, que são coisas diferentes né? Na minha psicoterapia eu trato das minhas questões pessoais, então eu vou evitar e melhorar as questões de contratransferência para não estar é... atrapalhando meu trabalho. Eu acho importante estar fazendo psicoterapia. E outra coisa que eu faço particularmente é não sobrecarregar. Eu conheço pessoas que tem dois, três vínculos. É consultório, é prefeitura de não sei onde. Bom, cada um na sua. Eu prefiro ganhar pouco, viver na linha amarela pra vermelha, mas estar me sentindo bem, me cuidando, fazendo coisas que eu gosto. Ai eu cuido da minha saúde, faço coisas que eu gosto, fico mais saudável. Isso é uma constante. A vida é dinâmica. Você tem movimento, você está em constante movimento. Uma hora você está bem, uma outra hora você não está bem. As questões psicológicas ressurgem. Eu creio que você não resolva como um seguimento que você cure e não deixe cicatriz. As questões psicológicas têm mais raízes, tem mais, enfim... influência, e você acaba tendo que estar sempre trabalhando isso. É a vida! Para algumas pessoas. Nem todos olham a vida através da Psicologia. A gente tem que respeitar isso. Algumas pessoas vão para a religião, vão para os esportes, vão para... enfim, mas para quem vê a vida através da Psicologia, eu acho que é um trabalho constante de auto-análise, de análise, de desenvolvimento, proc: As questões são processuais, elas vão acontecendo. E uma coisa puxa a outra e a: gente vai vivendo” 88 Síntese: Paula contou sobre sua transformação a partir do trabalho em UBS. Ela disse que no início sentia muita necessidade de atender o tempo todo, de ser útil para os pacientes, e levava para casa os problemas dos outros; carregava consigo toda carga emocional do encontro terapêutico. Com o tempo, simbolicamente isso foi sobrecarregando sua coluna, até que uma hora ela “quebrou” e teve que parar. Neste momento, teve uma reflexão autocrítica e entendeu a simbologia de sua doença. A partir de então, acredita que mudou sua postura: postura da coluna e postura de vida. Disse que a partir de então, não se sobrecarrega mais, consegue diferenciar o que é de sua responsabilidade e o que é do outro, estabelecer limites do alcance de sua ajuda profissional, e acima de tudo, consegue se desligar de seu trabalho, buscando formas de lazer fora do período de trabalho. Contou que além de não ter mais de um vínculo empregatício, quando sai da UBS procura fazer atividades manuais, para desligar a mente dos problemas dos outros. Além disso, faz terapia e busca uma constante auto-análise. Com isso, acredita que está se cuidando, olhando para si, para prevenir que adoeça. 89 RENATA “..eu fiz até uma cirurgia, deu um cisto. Ai eu tive que ficar, devido à cirurgia, sem trabalhar. Eu tive um cisto nessa parte do palato (pega no pescoço). Eu acho que eu não queria falar mesmo. Ai eu fiz a cirurgia, e a conduta, a recomendação era não falar. Ah, eu sem fala, meu trabalho não existe porque o combustível é a fala.” Minhas impressões: Esta foi a terceira entrevista realizada, e a primeira após a qualificação, então se por um lado eu estava mais trangiila e familiarizada com o protocolo da entrevista, por outro, estava preocupada em não ficar tão “engessada” como antes. Mas esta preocupação logo passou, pois senti que a entrevista acabou fluindo de forma natural. O fato de conhecer pouco Renata talvez tenha sido importante, pois ela parecia não ter receio de me falar o que pensa; senti que a cada pergunta, acabava falando o que realmente acredita, o que tornou a situação mais próxima de uma conversa informal. Análise da entrevista: Em primeiro lugar, Renata fala sobre sua experiência em Unidade B; “Então, é uma coisa que eu me identifiquei muito. Porque eu venho da Educação. (...) Ai de repente eu disse: “Ah, eu vou me especializar um pouco mais dentro da Educação.” Ai eu conheci a Saúde e me encantei. É algo que eu gosto muito, eu gosto do trabalho. Mas (...) hoje, principalmente, que eu estou queixosa, eu acho (...) que (...) 90 é mal remunerado, eles não te dão estrutura (...). Mesmo im eu invisto, até no aspecto físico. (...) eu pintei a parede, fiz uns outros negócios assim. Eu pego quadro da minha casa (aponta), os arranjos da minha casa. Porque é uma coisa que eu gosto de fazer, me dá prazer. Eu acho que a gente tem que gostar muito, porque o salário é ridículo, você trabalha em consultório, você sabe como é em comparação. Mas é algo que eu curto, é algo que eu me sinto realizada. E quando tem os retornos ainda né? Síndrome do Pânico, uma fobia. (...) Aqui tem muita criança, fobia escolar, então quando você vê uma criança elaborando, superando um monte de questões... indo pra escola, entrando na escola, dançando a quadrilha, interagindo com as outras crianças, nossa, pra mim isso é muito gratificante. Profissionalmente, agora financeiramente... Mas o trabalho da Unidade em si eu gosto também. (...)” Renata fala do quanto se sente realizada nesta profissão, e neste trabalho em UBS, apesar da baixa remuneração. Acredita que embora não tenha a estrutura necessária, e financeiramente não seja devidamente recompensada, a experiência de atender casos graves, e ver o paciente melhorando, é gratificante. Por isso, investe em seu trabalho, trazendo inclusive seus próprios objetos de decoração, para tornar aquele ambiente mais prazeroso. Neste sentido, seu comportamento pode ser considerado positivo, na medida em que, apesar do salário ser “ridículo” e não se sentir devidamente valorizada, busca outros recursos de forma ativa para lidar com essa dificuldade, ao invés de ficar só reclamando, já que pretende continuar exercendo a profissão que tanto gosta. Depois, conta um pouco de outras experiências que teve em Instituições Públicas: “eu venho de um Centro de Referência onde eu trabalhava com mulheres, especificamente oncologia. E quando eu chego aqui tem um “leque”, então você é uma (...) uma generalista e você atende tudo, e você tem que pesquisar. Dizem que é básico, mas não é básico, tem todo tipo de patologia, então o “leque” é uma gama legal. Eu me sinto realizada, que não é básico, não é primário, vai muito além. Então pra mim eu estou uma “bagagem” legal. E eu gosto, eu acho que é uma coisa que eu aprendo muito. É um aprendizado legal. Tenho muito que aprender, mas eu aprendo bastante. E assim, a cada dia você tem um desafio né? (...) as patologias tão diferentes, as idades... eu tenho crianças de 4 anos e pessoas de 70 anos. Então estude minha filha, porque senão você não dá conta do negócio.” Renata acredita que a “bagagem” que está adquirindo a partir dessa experiência é válida devido à variedade de casos, ou seja, está aprendendo a atender pacientes dentro de 93 “Acho que uma dificuldade é a valorização. Porque em todas as 3 Unidades que eu trabalhei, (...) o modelo é médico. Assim: “Você tem que atender assim, fazer isso, fazer aquilo outro” (...) Porque é um modelo médico. Então, uma fala dessas: “E: sala poderia ser dividida para dois médicos, por que o psicólogo” Então não tem esse reconhecimento. O médico é importante e a Psicologia não. Ai o que você tem que fazer? Você tem que estar a todo minuto dizendo: “Olha: Psicologia é isso, funciona nisso, o objetivo é esse, serve para isso” e assim por diante. Então isso é uma dificuldade, acho que o desconhecimento: *O que que é isso? O que que é esse “bicho” a dificuldade de estar integrando esse médico, com as Psicologia?”. E além de: enfermeiras, uma equipe mesmo, multidisciplinar. Eu acho que , não dá... eu já tentei várias vezes. É uma dificuldade. (...) São tantas... a integração dessa equipe é difícil, o reconhecimento é difícil. (...)” Renata acredita que uma das principais dificuldades que o psicólogo que trabalha em UBS enfrenta é a desvalorização e o desconhecimento sobre as peculiaridades da Psicologia. Os Diretores e muitos colegas de área não entendem o trabalho do psicólogo em UBS, e por isso acabam não respeitando seus limites como tempo/duração da sessão e espaço físico. Para não perder seu lugar dentro da UBS, ou seja, para continuar trabalhando em uma sala sozinho, com a estrutura necessária para o desenvolvimento de um trabalho adequado, o psicólogo precisa o tempo todo explicar sobre sua profissão para que os Diretores entendam sua importância, o que se torna desgastante. Aqui entra uma questão importante: por que é tão difícil essa compreensão? Por que é o psicólogo que tem que garantir seu espaço, enquanto que isso deveria ser garantido pela Secretaria da Saúde do Município, que se espera que saiba o que é a Psicologia e sua importância. Os Diretores, os médicos e outros profissionais deveriam ser orientados desde a graduação sobre o trabalho de outros profissionais da área da Saúde, mas se a formação da graduação não fosse o suficiente, no mínimo todo profissional que ingressasse na UBS deveria p: ar por um “treinamento”, em que todas as especialidades seriam explicadas, e só assim, poderiam ser valorizadas e respeitadas com suas especificidades. Por outro lado precisamos refletir também sobre o psicólogo: o que ele está fazendo, ou deixando de fazer, para que não seja valorizado? Qual sua parcela de responsabilidade 94 nessa situação”? Parece que o próprio profissional tem dificuldade de explicar sua profissão, de conhecer seus limites e possibilidades de atuação. Ainda, Renata fala sobre o modelo médico, e como a forma de atendimento em UBS tende a ser como este modelo, em que a sala tem maca, sem espaço para brinquedos, grupos terapêuticos, ou seja, as particularidades da atuação do psicólogo não são consideradas. Percebe-se que o relacionamento com os médicos sempre é o mais difícil, talvez porque normalmente os Diretores são médicos que geralmente pouco entendem sobre as outras especialidades da Saúde, e acabam estabelecendo regras de acordo com critérios que só fazem sentido para sua área. Além disso, a falta de um trabalho “multidisciplinar” é vista como outra dificuldade significativa. Parece que a insatisfação de Renata tem a ver com a falta de um trabalho em equipe, de uma integração, interdisciplinar. Na UBS existem várias especialidades trabalhando, ou seja, é multidisciplinar, mas sem um diálogo entre os membros, reuniões de equipe para tratar o paciente em conjunto; é tudo dividido. E isso é apontado por ela como um fator que dificulta seu trabalho. Neste sentido, acredita que o próprio Conselho Regional de Psicologia (CRP) tem sua parcela de culpa: “Mas o CRP também não tem essa (...) uma vez eu precisava saber quantas horas o psicólogo deve trabalhar na Unidade, e eles não sabem te responder. Ai elas te dizem assim: “Ah, cada lugar funciona de um jeito. Se muda o salário, eu não sei, mas cada lugar funciona de um jeito.” Então, nem o nosso Conselho sabe te informar: “Olha, o psicólogo vai trabalhar 7 horas, porque já se entende que ele precisa de um horário pra se cuidar, estudar os casos”. Então nem o CRP tem isso, imagine as Unidades, que não sabem nem o que é Psicologia? É, porque cada dia tem um diretor, eu estou numa Unidade que em 5 meses passaram 5 diretores! Ai você tem que explicar “Psicologia é is ai passa (...) 2 meses, entra outro “Como o médico atende 50 e você atende 127" Ai você explica “Psicologia é isso, isso, isso Sabe? É até um negócio d tante. (...) É muita desvalorização. Porque o médico tem claro, trabalha 4 horas, ganha tanto. Claro que se ele quiser trabalhar 8 é uma opção dele. Mas ele tem tudo bonitinho e a gente não. A desvalorização já vem do nosso Conselho, imagine dos médicos, e da Secretaria.” 95 Neste momento, demonstra a indignação frente ao CRP, que não sabe fornecer informações necessárias, não tem uma padronização para poder garantir um “respaldo” ao psicólogo, no sentido de que ele tem um tempo máximo de trabalho por dia, para não haver sobrecarga. Ainda, faz uma comparação novamente com o médico, como uma classe mais coesa, que tem mais claro quais suas funções, tem salários definidos, e só trabalha a mais por opção. Então, acredita que se nem o CRP e os próprios psicólogos conseguem se valorizar, fica ainda mais difícil que os outros profissionais os valorizem. Olhando por outro ângulo, qual a valorização de um local que troca de Diretor a cada mês? Este também é um dificultador, não só para o trabalho do psicólogo, mas para o atendimento da comunidade, para a saúde dos usuários. Para lidar com essa questão, conta como tenta fazer sua parte: “Eu acho que eu vou mostrando o que (...) é a Psicologia. Acho que eu mostro. Por exemplo, o Centro de Convivência, é uma dificuldade pra eu fazer um trabalho lá, por que “Como, você vai deixar de atender tantas pessoas na Unidade, vai ficar 6 horas ausente da Unidade pra ir no Centro de Convivência?” Então eu acho que eu vou mostrando: “Centro de Convivência é isso, serve pra isso, meu trabalho eu faço assim, eu atendo tantas pessoas.” Mostro o quanto que o trabalho em grupo, o tanto que a Unidade ganha com isso.” Então, Renata ensina, explica quantas vezes forem necessárias as particularidades de seu trabalho, em diferentes locais de atuação, como forma de valorizar seu trabalho. Como já coloquei, na realidade a Secretaria da Saúde é quem deveria orientar os profissionais quanto às outras especialidades. Mesmo a sim, me questiono por que será que é mais difícil para o psicólogo apresentar sua profissão do que para o médico, por exemplo. Acredito que um dos motivos é porque realmente se compararmos as duas profissões, a Psicologia é muito mais recente que a Medicina, então as pessoas de um modo geral tem maior conhecimento sobre essa última.
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