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Quem tem direito ao 'uso do véu'? - Análise da questão brasileira, Notas de estudo de Sociologia

Este artigo analisa a questão do direito ao uso do véu por mulheres muçulmanas, baseando-se em dois textos fundamentais: o relatório de uma comissão de alto nível que recomendou a proibição do uso do véu em escolas públicas francesas e o livro 'the claim of culture' de seyla benhabib. A análise visa contribuir para a discussão sobre estratégias de inclusão no brasil atual, particularmente em relação à proposta de políticas compensatórias de cotas para estudantes negros e de escolas públicas em universidades públicas.

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 25/01/2011

paulo-henrique-dantas-pinto-6
paulo-henrique-dantas-pinto-6 🇧🇷

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Baixe Quem tem direito ao 'uso do véu'? - Análise da questão brasileira e outras Notas de estudo em PDF para Sociologia, somente na Docsity! cadernos pagu (26), janeiro-junho de 2006: pp.377-403. Quem tem direito ao “uso do véu”? (uma contribuição para pensar a questão brasileira)* Céli Regina Jardim Pinto** Resumo Este artigo analisa o dilema entre as posturas defensoras do universalismo e das diferenças, tendo como pressuposto que ambas podem resultar no reforço de essencialisarmos excludentes em cenários sociais de desigualdade. A hipótese que foi perseguida é a de que mesmo tomando como primado a necessidade da construção de uma “igualdade mínima essencial” isso só pode ocorrer tomando em consideração os princípios e as lutas que se organizam em torno do direito à diferença. Este paper tratará basicamente com a questão brasileira. A discussão que será levada a efeito aqui tem como base dois textos fundamentais: o relatório da comissão de alto nível que recomendou ao governo francês a proibição do uso véu pelas jovens mulçumanas nas escolas públicas francesas e o último livro de Seyla Benhabib – The Claim of Culture. Palavras-chave: Universalismo, Diferença, Mulheres, Religião, Esfera Pública. * Recebido para publicação em abril de 2005, aprovado em outubro de 2005. ** Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS. celirjp@terra.com.br Quem tem direito ao “uso do véu”? 378 Who Has the Right of Using the Scarf: (a Contribution to Think the Brazilian Question) Abstract This article analyses the dilemma between the positions that has defended the universalism and those that has defended the differences, having as presupposition that both can result in the strong ness of exclude essentialism in scenario of social inequalities. The hypothesis that has pursued is as the follow: taking as presupposition the necessity of the construction of a “minimal essential equality” this only can take places taken into consideration the principle and the struggles that organize themselves around the right to the difference. This paper will discuss mainly the Brazilian question. The discussion that will be done in this paper has as bases two fundamentals texts: the Report of the High Commission that has recommended to the French government the prohibition of the use of the scarf by the young Muslim women in the French public school and the last book that was written by Seyla Benhabib – The Claim of Culture. Key Words: Universalism, Difference, Women, Religion, Public Sphere. Céli Pinto 381 sujeitos distintos, o reconhecimento era a forma de justiça que mais se adequava aos clamores dos gays, enquanto a redistribuição era vista como uma questão econômica que resolveria a questão das classes. Raça e gênero eram vistas por Fraser como bivalentes, necessitando redistribuição e reconhecimento.3 Em seu mais recente trabalho, sua posição é bastante diversa e oferece subsídios para o argumento que quero desenvolver neste artigo: To build broad support for economic transformation requires challenging cultural attitudes that demand poor and working people, for example, “culture-of-poverty” ideologies that suggest they simply get what they deserve. Likewise, poor and working people may need a recognition politics to support their struggles for economic justice; they may need, that is, to build class communities and cultures in order to neutralize the hidden injuries of class and forge the confidence to stand up for themselves. Thus, a politics of class recognition may be needed both in itself and to help get a politics of redistribution off the ground.4 Esta segunda perspectiva tratada por Fraser tem importância especial no caso presente do Brasil, quando o governo começa a propor políticas de ação afirmativas, que envolvem políticas de reconhecimento. Estou referindo-me especificamente à atual (2005) discussão sobre políticas de cotas para estudantes negros e de egressos de escolas públicas nas universidades públicas do país. Até há muito pouco tempo a questão do ensino público dizia respeito à escola pública como instituição, à formação de professores, aos baixos salários destes mesmos professores, à falta de estrutura material de trabalho, à violência e à depredação dos 3 FRASER, Nancy. Justice Interrupus. Critical Reflections on the “postsocialist” condition. New York, Routledge, 1997, p.17. 4 FRASER, Nancy e HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political- philosophical exchange. London, Verso, 2003, p.24. Quem tem direito ao “uso do véu”? 382 prédios Os alunos da escola pública eram vistos como conseqüência, eram positivamente incluídos quando se computava o número de crianças brasileiras em idade escolar que freqüentavam a escola. Eram negativamente incluídos como estatística de evasão e fracasso escolar. Os alunos das escolas públicas brasileiras foram tratados até então como vítimas e não como sujeitos. Entretanto, no momento em que é proposta uma política compensatória que garante um percentual de vagas nas universidades públicas para alunos afro- descendentes e alunos de escolas públicas, está reconhecendo-se o direito de um grupo de pessoas, que completou o ensino médio em escolas oficiais do país. O não reconhecimento (e por vias de consequência a exclusão) seria ignorar a existência deste aluno, através da construção de um tipo de retórica perversa, onde uma ou várias gerações são condenadas a não terem oportunidade no ensino superior, por conta da defesa de uma reforma no ensino médio, que resultará em efeitos positivos para gerações futuras. Seyla Benhabib, em seu livro The Claims of Culture5, expõe um conjunto de teses que constituem uma contribuição muito importante para o avanço da discussão sobre políticas de reconhecimento. No que pese Benhabib estar particularmente preocupada com a questão da cultura e de populações multiculturais, seus argumentos permitem aprofundar a discussão sobre políticas de reconhecimento em situação de profunda desigualdade social. A primeira questão central do livro é a que chama de “usos e abusos da Cultura”. Benhabib aponta para uma reificação da cultura tanto por parte do pensamento conservador como do progressista. Essa tendência compartilha, segundo a autora, premissas epistemológicas imperfeitas, que entendem as culturas como fechadas, congruentes e, por conseguinte, não reconhecem a pluralidade cultural dentro dos grupos humanos, resultando em 5 BENHABIB, S. The Claims of Culture… op.cit. Céli Pinto 383 uma sociologia da cultura reducionista, o que define a forma como se tem pensado a questão da injustiça sofrida por grupos na sociedade. Para a autora, que propõe um aporte de sociologia construtivista, a questão fundamental em reconhecer culturas distintas não é de preservá-las, mas de defendê-las em nome da justiça e da liberdade.6 Culturas não são reificações, mas: Constant creations, recreations, and negotiations of imaginary boundaries between “we” and the “other(s)” The “other” is always also within us and is one of us. A self is a self only because it distinguishes itself from a real or more often than not imagined, “other”.7 A relação ente o “nós” e o “eles” é tensa e, segundo a autora, é muito difícil que o “nós” reconheça o direito de um “eles” profundamente diferente. Frente a isso propõe: I argue that the task of democratic equality is to create impartial institutions in the public sphere and civil society where this struggle for the recognition of cultural differences and the contestation for cultural narratives can take place without domination.8 Benhabib introduz aqui um elemento fundamental no debate sobre igualdade, justiça, direitos diferenciados, que é a presença do Estado. Mesmo que não o cite explicitamente, fica bastante evidente a referência, quando menciona a criação de instituições. Essa referência é importante, pois nas discussões sobre reconhecimento de diferenças e direitos há uma tendência de identificar a ocorrência de espaços onde elas se manifestam na sociedade civil, que seria o espaço da diferença por natureza, 6 ID., IB., p.8. 7 ID., IB. 8 ID., IB. Quem tem direito ao “uso do véu”? 386 classificatory taxonomies”.11 A autora indica que uma estrutura pluralista para ser democrática e justa não pode violar três normas: reciprocidade igualitária; auto-definição voluntária; liberdade para sair ou associar-se. Essas três normas dividem duas naturezas completamente distintas, a primeira, que garante igualdade de direito a todos os grupos é uma norma que deve ser assegurada pelo estado, as duas outras, mesmo que tenham algum amparo oficial, têm fundamentalmente a ver com a relação de cada indivíduo com o grupo, com o grau de liberdade que o indivíduo tem em relação ao grupo, com a pressão social e as sansões que o indivíduo teria por tomar uma ou outra decisão. Em relação, por exemplo, à auto-definição, é bastante óbvio que um estado democrático não pode, em hipótese alguma, definir grupos, entretanto, isto não garante, e na verdade não há formas de garantir, que famílias, grupos de parentesco, grupos religiosos não induzam a definição das pessoas, assim como não controlem a possibilidade de entrada e saída. Tais obstáculos, não invalidam a importância das três normas, apenas chamam a atenção para as dificuldades que elas envolvem. Um outro tema fundamental tratado por Benhabib, que envolve uma contribuição importante para a questão que estou tratando de examinar, está presente no capítulo três “From redistribution to Recognition? The paradigm Change of Contemporary Politics”, no qual a autora faz severas críticas às posições de Taylor e Kimlicka a propósito do conceito de reconhecimento. Discute a tese de Taylor mostrando como ele divide com Honneth e Benjamin a idéia de reconhecimento como auto confiança e auto respeito, isto é, como sendo um processo moral e psicológico. Tal posição, segundo Benhabib, leva Taylor a fazer uma identificação entre auto-identidade e identidade de grupo, o que para a autora pode resultar em um rompimento com 11 ID., IB., p.18. Céli Pinto 387 o princípio de identificação individual, que deve ser entendido em uma outra perspectiva. It is both theoretically wrong and politically dangerous to conflate individual’s search for the expression of his-her unique identity with politics of identity/difference. The theoretical mistake comes from the homology drawn between individual and collective claims.12 A questão examinada por Benhabib permite focalizar com muita propriedade algumas dificuldades postas na prática por esse tipo de equívoco. Em casos limites, de ditadura, fanatismo religioso, ou grande ameaça externa a uma cultura ou mais amplamente a uma forma de vida, essa identificação pode se verificar, mas se pensarmos em cotidianos sem níveis de tensão radicais, o indivíduo tem uma teia complexa de fatores que lhe dão consistência como individualidade, enquanto uma certa cultura pode de maneira mais ou menos aleatória constituir-se de forma harmônica e unitária. Benhabib aponta outro sério problema de políticas que enfatizam as diferenças culturais, ao analisar a questão do multiculturalismo e a cidadania de gênero. Para Benhabib as formas de convivência multiculturais levam em grande medida a reforçar as condições de dominação das mulheres, pois as culturas tendem a ser patriarcais. O argumento cultural segundo a autora transforma indivíduos (agentes morais) em fantoches de suas culturas. A defesa, por exemplo, de um indivíduo que cometeu um crime a partir de sua extração cultural leva a considerar o indivíduo como apenas uma conseqüência de sua cultura. Benhabib se pergunta por que outros indivíduos da mesma cultura frente ao mesmo problema não cometem crimes. The cultural defense strategy imprisons the individual in a cage of univocal cultural interpretations and psychological 12 ID., IB., p.53. Quem tem direito ao “uso do véu”? 388 motivations; individual’s intentions are reduced to cultural stereotypes; moral agency is reduced to cultural puppetry.13 Se a consideração da cultura no julgamento pode fazer justiça ao criminoso, não faz justiça a vítima. Isto é particularmente forte quando a questão refere-se a relações entre homens e mulheres, onde assassinatos, torturas, privação de liberdade, são justificados como princípios culturais. Até onde, pergunta a autora, mulheres que estão em contato com diferentes culturas e com a própria luta feminista, principalmente mulheres migrantes em países europeus ou nos Estados Unidos desejam manter estes princípios culturais.14 O aporte de Benhabib à questão da presença de culturas múltiplas introduz elementos importantes na discussão, que tanto entre os teóricos como na prática dos grupos e dos estados tendem a ser reduzidas aos argumentos de contra ou a favor. A análise do caso do uso do véu por jovens francesas em escolas públicas é paradigmática de um aporte que toma em consideração as contradições e as potencialidades do encontro entre culturas e a esfera pública. Benhabib argumenta que, se por um lado, o uso do véu indica uma submissão das mulheres, por outro, lhes possibilita entrar em contato com uma cultura laica e com outras culturas o que trará mais possibilidade de colocar em xeque suas condições, o que não aconteceria se fossem afastadas do convívio público e condenadas a frequentar escolas religiosas ou simplesmente permanecerem na clausura doméstica. Discutindo o caso de três jovens, que ficou famoso pela repercussão ainda em 1989, Benhabib afirma: Ironically, they used the freedom given to them by French society and French political traditions, not the least of which is the availability of free and compulsory public education for all children on French soil, to juxtapose an aspect of 13 ID., IB., p.89. 14 ID., IB., p.93. Céli Pinto 391 redigido pela Comissão de Reflexão sobre a aplicação do princípio de laicidade na república datado de 11 de dezembro 200317, que se constituiu na verdade em um documento sobre o direito das jovens mulçumanas usarem véus nas escolas públicas francesas. A hipótese que norteará esta análise é a de que o relatório constrói um argumento que inviabiliza qualquer experiência no território francês de pluralismo identitário e de alargamento democrático pela incorporação de diferenças. O relatório, que está dividido em quatro partes, é introduzido por uma carta ao Presidente da República, onde a comissão estabelece as bases a partir das quais elaborou o documento, que se refere a ameaça aos valores da república francesa por grupos extremistas. Esses grupos segundo o relatório, devido ao conflito no Oriente Médio estariam criando problemas nas cidades francesas. “C’est tenant compte de ces menaces et à lumière des valeurs de notre Republique, que nous avons formule les propositions qui figurent dans ce rapport.”18 Há, portanto, um território ameaçado a partir de dentro pelo estranho, por aquele que não faz parte do “nous”, em contraposição a uma unidade formada pelos valores franceses. A primeira parte do relatório trata da laicidade, como princípio universal e valor republicano. A laicidade é entendida como uma conquista frente a influência da Igreja Católica, garantindo a plena liberdade de culto e a neutralidade do estado. Entretanto, essa não é a questão central do argumento, mas sim a ameaça aos valores franceses nunca definidos pela presença de manifestações religiosas. O relatório textualmente afirma: La défense de la liberté de conscience individuelle contre tout prosélytisme vient aujourd’hui compléter les notions de 17 O relatório – “Rapport au President de la Republique. Commission de Reflexion sur l’application du principe de laícite dans la Republique”, 11 de dezembro de 2003 – encontra-se no site www.ladocfrancaise.gouv.fr, acessado em 10 de janeiro de 2004. 18 ID., IB., p.7. Quem tem direito ao “uso do véu”? 392 séparation et de neutralité centrales dans la loi de 1905 [e completa mais adiante] l’école ne saurait devenir la chambre d’écho des passions du monde, sous peine de faillir à sa mission éducative.19 A França, como de resto toda a Europa ocidental e o Reino Unido, tem sido cenário nas últimas décadas de uma grande efervescência de culturas imigrantes, além de identidades constituídas a partir dos novos movimentos sociais como o feminista, movimentos de defesa de opções sexuais, etc. Ora estes sujeitos se encontram nas mais diversas esferas públicas no país, interagem, hibridizam-se e, ao mesmo tempo, buscam novos adeptos ou apoiadores. A formação de uma consciência individual ocorre, entre outras coisas, pelo enfrentamento com diferenças, quanto maior for a inserção pública dos indivíduos de culturas, religiões e identidades diversas, maior as possibilidades de escolhas. Não se pode confundir a neutralidade do estado e de seus representantes legais (servidores públicos) com a neutralidade do cidadão. Possivelmente o espaço público mais aberto para o entendimento e/ou confronto de idéias e posições é a escola, que, ao contrário do que prediz o relatório, tem sido “eco das paixões do mundo”, até pelo elemento de juventude que contém. A Europa em geral e a França em particular enfrentam a diluição de uma cultura pretensamente unívoca calcada em valores vividos como universais. Estes valores, como será possível perceber ao longo do argumento do relatório, são tomados como pétreos, não admitindo contestação. Na verdade são resignificados de forma cada vez mais excludente, na medida em que são “ameaçados” no confronto com novas culturas, por exemplo, é interessante observar que o conceito de laicidade é construído como um referente único dos “valores comuns da sociedade”20, onde o islamismo aparece a priori como 19 ID., IB., p.14. 20 ID., IB., p.15. Céli Pinto 393 incompatível, na medida em que pressupõe uma relação diferente entre o estado e a religião. Uma pergunta impõe-se, o que é o islamismo que existe na França? Há um islamismo ou muitos islamismos? Todos os praticantes da religião relacionam-se com os não praticantes da mesma forma? Como o islamismo é modificado/ou não quando exercido em um país majoritariamente cristão? O relatório impõe à “cultura do outro” uma unidade que dificilmente existe, uma vez que os imigrantes além de muçulmanos têm nacionalidades distintas, chegaram em momentos distintos e ocupam posições diversas na sociedade. Benhabib mostrou bastante claramente o equívoco de confundir a experiência dos indivíduos com idéias unívocas e equivocadas de cultura. O que fica bastante claro no relatório é que o islamismo não poderá ser uma diferença (uma cultura) constitutiva de um espaço público plural, mas só será tolerada, quando for praticado no espaço privado. A diferença neste caso vem de encontro a um princípio que inclusive dá título a uma das partes do relatório: “viver junto, construir um destino comum”. Nesta parte, o relatório enfatiza a diversidade de novas religiões e culturas que vivem na França e que dão a ela a “Chance de s’enrichir du libre dialogue entre ces diverses composantes”. Mas logo em seguida define a filosofia política francesa como a expressão da defesa da unidade do corpo social e o que é mais caracterizador do “espírito do relatório” “Ce souci d’uniformité l’emportait sur toute expression de la différence perçue comme menaçante”. O relatório revela uma visão reducionista da questão de reivindicação dos direitos culturais, quando atribui sua reivindicação a necessidades de auto-afirmação e não a uma luta por justiça social. Neste sentido o relatório aproxima-se da perspectiva de Honneth21, mas diferentemente do pensador 21 HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento – a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34, 2003. Quem tem direito ao “uso do véu”? 396 do islamismo entre jovens, até em suas versões mais radicais, ocorre tanto na Holanda como na França, que possuem políticas absolutamente distintas, mas que provocam o mesmo isolacionismo e radicalização da cultura/religião. O que ocorre é que em ambas as situações o Estado não possibilitou a integração através da incorporação da cultura do outro como mais uma cultura capaz de modificar e ser modificada. O isolamento, somado a questões sempre presente de preconceitos e da própria crise de empregos, tende a levar os jovens a buscar identificação em um passado reconstruído idealmente. Na terceira parte do relatório sob o título de “O desafio da Laicidade” é trabalhada com muito detalhe a questão central que suscitou o relatório, o uso do véu por jovens muçulmanas. O relatório aponta a volta do uso do véu como uma regressão na situação das mulheres nas comunidades muçulmanas, que estariam sendo obrigadas a usá-los sob pena de serem estigmatizadas com prostitutas. O relatório afirma textualmente: Les jeunes filles, une fois voilées, peuvent traverser les cages d’escalier d’immeubles collectifs et aller sur la voie publique sans craindre être conspuées, voire maltraitées, comme elles l’etaient auparavant, tête nue. Le voile leur offre ainsi, paradoxalement, la protection que devrait garantir la République. Celles qui ne portent pas et le perçoivent comme un signe d’infériorisation qui enferme et isole les femmes sont désignées comme “impudique”, voire “infidèles”.24 Aparece aqui um conjunto muito importante de situações a examinar a partir deste pequeno texto. Partamos de uma presunção, que o relatório está errado e que as jovens usam o véu por livre espontânea vontade, até porque sentem-se despidas sem ele, devido a cultura da qual fazem parte. Eu, particularmente, concordo com o relatório que o véu é prova da discriminação e da 24 ID., IB., p.47. Céli Pinto 397 posição subalterna da mulher na religião muçulmana, pelo menos na forma que chegou até o mundo contemporâneo. Entretanto, a pergunta que necessita ser respondida é: em que contribuiria para mudar a posição da mulher a proibição do véu? Não levaria, de forma distinta a uma tendência a afirmação da diferença e uma radicalização e justificação da cultura sexista? De forma diversa, se partirmos da presunção que o relatório está certo, que as jovens são obrigadas a usar o véu, a questão permanece a mesma: qual a justiça que se faria a estas mulheres ao obrigá-las a não usar o véu? Com poderia o estado francês garantir uma vida digna a estas mulheres se elas rompessem com a sua comunidade? Teria o Estado como garantir a “boa vida” a estas mulheres apartadas de suas famílias e de sua comunidade? Se estas mulheres, ou porque não querem ou porque não têm liberdade, passam a não freqüentar a escola porque não lhe é permitido não usar o véu, qual é o serviço que o estado francês está fazendo a favor da liberação destas mulheres? Concordo plenamente com Benhabib que a única forma de agir com justiça com estas mulheres é permitir que elas sejam expostas ao espaço público, laico, diferenciado. Que elas estejam em locais públicos, e a escola laica francesa é um desses locais privilegiados, onde possam expressar-se e ouvir posições distintas das suas. Aí reside a possibilidade da retirada do véu a seu favor. Possivelmente, neste cenário, muitas mulheres retirariam o véu, outras tantas não. Mas esta é a única forma igualitária de tratar todos os cidadãos. O relatório associa ao uso do véu uma série de outras práticas como não assistirem aulas de educação física, não usarem piscinas públicas, não permitirem serem examinadas por médicos do sexo masculino. Fora da escola, o sexismo da religião muçulmana é apontado no local de trabalho, onde os homens não aceitam terem superiores mulheres, ou como já foi citado o ato de pacientes e familiares não obedecerem princípios básicos de higiene em hospitais. Estes exemplos são de qualidade muito distintas e confundem questões que podem ser vistas como de Quem tem direito ao “uso do véu”? 398 fórum privado com questões que dizem respeito ao interesse coletivo, ou ao tratamento igualitário dos cidadãos. O fato das mulheres não freqüentarem as piscinas públicas porque há homens é uma questão privada, outras mulheres não muçulmanas também podem não se sentir a vontade em uma piscina, ou mesmo não a frequentarem por não as acharem higiênicas. A piscina pública não pode criar impedimentos para que qualquer pessoa a frequente, neste particular cabe a comunidade construir piscinas com horários diferentes se assim entenderem. Quanto a ser examinado por médicos ou médicas, esse deveria ser um direito de todas as pessoas e principalmente das mulheres, na medida em que são cada vez mais freqüentes as denúncias por parte de pacientes de abusos sexuais em consultórios médicos, principalmente de mulheres jovens.25 Os outros exemplos têm qualidades diferentes, que envolvem o bem estar e direitos coletivos. O caso do hospital é o mais grave, porque diz respeito à saúde e à vida das pessoas e cabe ao estado garanti-las. No caso das aulas de educação física, não se pode submeter pessoas a vestirem-se com roupas que as fazem sentir despudoradamente nuas.26 Por outro lado, essas jovens só poderão ser introduzidas às atividades físicas se estas lhe forem proporcionadas dentro dos limites de sua própria identidade como pessoas. Finalmente, o caso dos homens que não aceitam chefes mulheres, também é só através da exposição que esta situação poderá ser superada. Lembremos que a menos de meio século atrás isto também não era aceito por homens ocidentais europeus. A última parte do relatório intitulada “afirmar uma laicidade firme que reúna” é especialmente importante, pois é nela que o relatório propõe medidas para garantir a laicidade, que tomam 25 Não se está afirmando que tenha crescido o número de casos de abusos sexuais por parte de médicos homens, o que ocorre é o maior número de denúncias, por força de uma nova posição da mulher na sociedade. 26 Lembremo-nos que a nudez tem sido uma forma de tortura aos prisioneiros Afegãos por parte das forças militares norte americanas Céli Pinto 401 no espaço público, pode se transformar e ser um agente transformador na volta ao espaço privado. O relatório assume o que Benhabib chama de incomensurabilidade das culturas, tanto da cultura francesa, como da cultura muçulmana. Neste particular é que a incomensurabilidade tem um sinal positivo quando é a cultura francesa e negativo quando se refere à cultura do outro. Benhabib indica muito fortemente a necessidade da presença do estado na promoção de instituições imparciais na esfera pública, no entanto, isso não pressupõe o não reconhecimento das diferenças. O relatório francês está muito centralizado na responsabilidade estatal em promover essas instituições, mas ao contrário do argumento de Bernhabib, exige imparcialidade dos sujeitos que entram em contato com ele. No obstante os conteúdos contidos tanto no trabalho teórico de Benhabib como no relatório da Comissão estarem muito distante da problemática brasileira, os temas levantados são subsídios importantes para tratar as questões da democracia brasileira, que estão na pauta no momento, a saber, políticas compensatórias: quem tem direito no Brasil, através da reafirmação de suas diferenças, de lutar por igualdade na esfera pública. Quem tem direto a usar “véu” no Brasil? Tomando como base o que foi discutido neste artigo, a resposta mais abrangente a esta questão é a seguinte: tem direito a usar véus todos os cidadãos e cidadãs que por questões culturais, de raça, etnia, classe, sexo, religião, opção sexual, idade não têm condições de usufruir em sua totalidade o direito a terem direitos. Em um país como o Brasil onde as desigualdades sociais atingem proporções de catástrofe, onde as populações negras e indígenas estão entre as mais pobres e excluídas de direitos, meu argumento é que essas populações devem chegar a esfera pública através da reafirmação de suas identidades, não com objetivo de reafirmá-la como essencial, ou manter tradições, mas porque a afirmação da identidade é uma forma de fazer justiça e de incluir essas populações. Se as jovens muçulmanas francesas proibidas de usar o véu podem ficar excluídas das escolas públicas, os jovens Quem tem direito ao “uso do véu”? 402 brasileiros pobres, negros, trabalhadores se não trouxerem para a esfera pública estas marcas, que, historicamente, tem sido a razão da exclusão (exatamente pelo não reconhecimento da diferença), também continuarão fora do direito ao ensino formal público em todos os níveis. Isso no caso do Brasil não se restringe à questão da educação, mas envolve uma gama diferenciada de populações que, por etnia, cultura, graus de pobreza e até local de moradia, têm sido excluídas historicamente do direito a ter direitos. Quando a reprodução dessas desigualdades é vivida como natural, até pelos que sofrem com elas, a reafirmação das diferenças como forma de inclusão e superação da miséria, da falta de educação formal e de tantos outros direitos é fundamental. O espaço da educação, especialmente a escola, por suas características intrínsecas é fundamental para criar um novo caldo de cultura que rompa isolamentos e proporcione uma interação mais igualitária entre as pessoas. É a partir dessa perspectiva que o tema do direito ao uso ao véu traz uma potencialidade muito grande para se pensar a questão brasileira. Se nossa cultura popular é uma mescla muito profícua de influências, onde negros e índios comparecem com muita vivacidade, nossa cultura erudita, aquela que possibilita ascensão social, trabalho, realização profissional, condições de educação, saúde e moradia dignas é uma cultura homogênea, branca, de classe média, que deixa vastas parcelas excluídas. Os dados relativos à educação desde o ensino fundamental até o ensino superior mostram com muita força a exclusão das camadas pobres e dentre elas da população negra e, nesse sentido, o efeito é paradoxalmente, para os incluído e excluídos, o mesmo. Esclareço: a desigualdade como princípio de assujeitamento atua igualmente para criar diferentes graus de cidadania, onde os que se identificam como portadores de direitos não vêem os não portadores como cidadãos dotados destes direitos e estes últimos, eles próprios, não se identificam como também portadores de direito. Em comunidades complexas, como é o caso da francesa e da brasileira, mudar posições relativas na sociedade depende de um conjunto de ações determinadas Céli Pinto 403 combinadas com tempo, que podem resultar em diferentes cenários. Entretanto, o que parece fundamental é romper a cultura dominante, não através do assujeitamento dos que estão fora dela, pois isso tem revelado resultados socialmente irrelevantes, na medida em que esses grupos não reconhecidos em suas especificidades entram no campo escolar, por exemplo, em uma posição de falsa igualdade. O caso francês não é de ação afirmativa como tende a ser o caso brasileiro, mas em ambas as situações o reconhecimento da diferença parece ser fundamental para criar condições positivas de integração dos grupos em questão em um pacto cidadão que garanta igualdades de direitos.
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