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Guias e Dicas
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Livro Ironia e Argumentação - Jose Manuel Esteves, Manuais, Projetos, Pesquisas de Engenharia Agronômica

livro - livro

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2011
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Compartilhado em 07/02/2011

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Baixe Livro Ironia e Argumentação - Jose Manuel Esteves e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Engenharia Agronômica, somente na Docsity! i i i i i i i i i i i i i i i i i i i i i i i i José Manuel Vasconcelos Esteves Ironia e Argumentação Universidade da Beira Interior 2009 i i i i i i i i Livros LabCom www.livroslabcom.ubi.pt Série: Estudos em Comunicação Direcção: António Fidalgo Design da Capa: Madalena Sena Paginação: Marco Oliveira Covilhã, 2009 Este livro resulta da tese de Mestrado apresentada na Universidade Nova de Lisboa em 2007 Depósito Legal: 288743/09 ISBN: 978-989-654-010-4 i i i i i i i i Conteúdo 1 Ironia, ma non tropo: definição de ironia 7 2 Ironia, dialéctica, retórica e argumentação – os três mosqueteiros, que afinal também são quatro 21 3 Ironia e Negação: – Se non è vero è bene trovato 33 4 Do celibato à poligamia: ironia e interracionalidade 53 5 Sujeito e ironia: – philosophia certa in re incerta cernitur 67 6 Conclusão 91 7 Notas 93 8 Bibliografia 125 i i i i i i i i i 2 José Manuel Vasconcelos Esteves solidez. De facto, o exercício paradigmático de uma racionalidade cujo movi- mento auto-constituinte se dá na própria oposição e degradação gnoseológica da noção de argumento, cuja probabilidade deve ceder à provacidade, como é o caso da concepção platónica, faz inscrever na filosofia uma ilusão, uma ce- gueira da qual se alimentará até à exaustão e que só poderá ser acompanhada pela respectiva degradação ontológica do sensível e do contingente, devido à hiper-valorização extasiante e mística do metafí-sico. (2) É no âmago deste estigma, rapidamente alastrante e congenitamente per- meável nas múltiplas posturas filosóficas, cuja última evidência ainda é o posi- tivismo lógico, e que se traduz nas sucessivas e obsessivas "eugenias"de pen- samento fundamentante e fundamental e, por tal, exclusivo de todas as outras formas, metodolo-gica e contextualmente, de pensar, reduzidas a passos em falso e a miniaturas acessórias, quando não inúteis e, por isso, des-filosóficas de pensar; é portanto, no seio deste estigma que se vêm incluir a ironia e a argumentação. No fundo, todo este modelo animado e mortificado por uma fustigante ambição de atingir uma dimensão essencial, fundamental e universal, da qual constantes e ininterruptas réplicas se sucederam, numa herança interminável, traz, na sua medula, a sua pró-pria desmesura. A limite todas essas filosofias vinham e vêm eivadas de um único e absoluto projecto: acabar com a própria filosofia; anular a renovada, e cada vez mais reaberta, incisão entre o pensa- mento e o pensamento, entre o homem e o mundo. É por isso que todas elas soçobraram nas ruínas apressadas e doentias da sua megalomania faraónica, como se fosse possível permanecerem embalsamados os conceitos, subtraídos ao contágio degradante com o mundo do tempo e do sensível. (3) Ínsito a isto desenvolveu-se e apregoou-se um modelo episté-mico, cuja infalibilidade foi diversamente pontificada e associada a uma responsabilidade ética global (4), gerando a monocórdica ideia de que a objectividade, o mé- todo e a lógica garantiriam um saber incólume a todos os embates e combates, na cristalina, e ainda assim dura, estrutura do diamante. O que se verificou, nos tropeções múltiplos de uma lapidação do diamante, é que o mesmo foi delapidado e temos que nos preparar para dizer adeus (5) a essa racionalidade laboriosamente arquitectada e unificada, descobrindo que mesmo na sua estru- tura se revelam brechas, tensões, dissensões anunciadoras de uma impossível cooptação vedan-te e hermética. É evidente que esta orfandade do paradigma de uma racionalidade da exclusão, que erradicava ou, mais iluminadamente, Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 3 ostracizava todos os saberes informes e incapazes de almejar essa consistência a toda a prova, resultante da pretensa mimesis entre a filosofia, as matemáti- cas e as ciências da natureza -a scientia universalis-, mimesis tendente a uma adaequatio a more geometrico, que não mais deixou de habitar e alimentar as grandes filosofias da idade moderna, levou a uma espécie de emulação cria- dora de impasses e auto-esgotamentos, que têm o seu desfile nessa série de despedidas cultivadas às vezes com alguns laivos de ironia. (6) É dentro deste contexto, que a ironia desponta sempre nas comissuras mais leves de uma racionalidade enredada numa lógica que a coloca entre Cila e Ca- ríbdis. De facto, o que esta racionalidade extremizou foi o seu próprio impasse numa lógica de opostos e contrários incompatibilizados, gerando permanen- tes oposi-ções e contradições entre universal e particular,abstracto-concreto, verdadeiro-falso,sujeito-objecto,consciência-linguagem e muitas outras nas quais, patibularmente, todos os sistemas filosóficos acaba-ram por se entregar e decapitar. É em consequência disto, da própria auto-voracidade intrínseca a essa Razão majestática, capaz de debelar todas as deformidades, banindo, numa engenharia lógica, tudo o que fosse da ordem do provável e do con- tingente e garan-tindo a apoteose da prova e do demonstrativo conclusivo e, consagradamente, concludente, que a questão da ligação entre ironia, argu- mentação e retórica regressa ao foro, e quão apropriada é esta designação, público do pensamento, expondo-se nessa relação o solo fértil, e não ácido e árido pela presença da ironia, de uma revitalização e tonificação da própria ironia, que tinha sido encolhida e reduzida à escala milimétrica e liliputiana de uma figura de estilo, pretensamente limada de todo o furor argumentativo que nela se exerce, pois ironizar é sempre argumentar. (7) Assim, a partir do azímute destas questões, delinear-se-ão, nesta disserta- ção, alguns dos meridianos da relação intrínseca entre ironia, argumentação e retórica, explorando, por acréscimo, e nos bastidores inevitáveis do problema, a concepção de linguagem a ela subjacente. Por isso, pretende-se fazer re- tornar a ironia à sua verdadeira pátria da qual foi, em certa medida, expulsa, evidenciando que, neste momento, a ironia só ganha nova pensabilidade na sua verdadeira força e ímpeto argumentativos, tal como ela assumiu no seu momento inaugural, o socrático, e do qual, autêntica ironia do destino, nunca mais se recompôs, no enquadramento de uma racionalidade argumentativa, que não se encandeie numa alucinante miragem de uma anulação e pacifica- ção do problemático no pensar e no dizer. www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 4 José Manuel Vasconcelos Esteves Consequentemente, já não podemos decifrar a realidade de uma forma sis- temática, nesse cismar obsessivo do racionalismo, mas temos que estar face a nós próprios e ao mundo de uma forma precária e problemática, da qual a iro- nia é apurado exemplo. Perante esta situação, há que reconhecer que o que se perdeu, nessa aposta (pari) pascaliana, que animou a filosofia, foi muito; mas que só agora poderemos aprender o gosto de ganhar pouco e de nesse pouco obedecer aos rumores esquecidos e abusivamente silenciados, que uma racio- nalidade entregue ao precário do que pensa ainda pode captar, na dificuldade extrema de entender-se a cada momento de si mesma na intersecção entre lin- guagens que já não obedecem ao modelo autoritário e mono-fundamentado em si mesmo. Se as grandes ideias começam por ser escritas em letra maiúscula, passam a ser escritas em minúscula e acabam entre aspas (8) é porque nesse processo corrosivo irrompeu um permanente contacto com a minusculidade do argu- mentativo assente em validades não formais, que enfraqueceram e impregna- ram a racionalidade e a lógica de uma radicação oscilante e problematológica. Deste modo, e perante uma retórica esvaziada da argumentação, como a que foi cultivada ao longo de séculos (9), a abordagem da ironia tem que ser articulada a partir da reintegração da teoria da argumentação na retórica, em prol de uma análise retórica e argumentativa da ironia. Deste amplo terreno promanam alguns veios de referência, capazes de de- limitar a necessidade de uma nova concepção da ironia, na sua interligação à argumentação; de rastrear vários percursos conducentes a essa concepção; de polarizar a ironia de uma forma ampla, extensiva e intensivamente, com uma racionalidade aberta, precária e contingente, da qual a racionalidade irónica seria um exemplum e de redefinir a ironia, passando do seu estado apopléc- tico subjectivo, exponenciado pelo romantismo, para uma dimensão intersub- jectiva, no jogo entre logos e pathos e enquanto presença de sujeitos a sujeitos. A suportar estas linhas de força, intenta-se cartografar alguns dos pas- sos fundamentais do percurso da ironia, na sua interligação com a retórica e a argumentação, embora não num sentido histórico-cronológico, o qual se enredaria nesse labirinto sempre superficial e epidérmico do sucessório, mas projectivo, ou seja, enquanto integrador e anunciador de um problema ainda em questionação. Portanto ,mais do que ficar prisioneiro de uma visão glo- balizante e pretensamente erudita, arriscar-se-á na elaboração deste trabalho uma metodologia retórica, argumentativa e, por vezes, irónica, capaz de tra- Livros LabCom i i i i i i i i Capítulo 1 Ironia, ma non tropo: definição de ironia Der Intellekt, jener Meister der Verstellung Nietzsche A consulta de qualquer manual de retórica (10), essa cinzelagem ancestral, dá-nos a visão da ironia como um tropo (tropoV) e um dos magnos (12), definindo tropo como o "voltar-se"(trepes-qai) da seta semântica indicativa de um corpo de palavras ou de pensamentos. Esta definição, aceitável pelo aparente grau zero de problematicidade que encerra, é, analisada à lupa, já uma indicação perfeita dos imensos alçapões que toda a concepção retórica encerra. De facto, este movimento que os tropos desencadeiam na linguagem é o sinal evidente e complexo da questão do literal e do figurado, onde o que está em questão é, fatalmente, o jogo permanente, a incisão que toda a linguagem exerce entre o homem e o mundo. Decerto, uma linguagem absolutamente literal seria tudo me-nos uma lin- guagem e uma linguagem absolutamente figurada seria uma meta-linguagem. No entanto, é difícil evitar a necrose que uma e outra concepções podem adi- tar à questão, porque é inevitável interrogar-se sobre este tropismo inerente à linguagem, pois ele exprime um dos seus mais perturbantes e inflamados usos, o de estabelecer relações. De facto, toda a linguagem é uma rede de relações determinável por uma combinatória de substituições permanentes de 7 i i i i i i i i 8 José Manuel Vasconcelos Esteves domínios semânticos por outros domínios semânticos, o que leva a esse mo- vimento expansivo e labiríntico da linguagem, a essa dilatação incessante, onde o próprio se transfigura e se multiplica numa redescrição de si mesmo. Há assim um excesso da linguagem, um furor dionisíaco, um ser a mais, um sobre-dizer-se que incorre no uso pleonástico e, por vezes, rebarbativo da lin- guagem, do qual alguns lógicos desejariam, almejariam livrar-se em absoluto, pois o consideram inquinador de uma intelecção pura, categorial e categórica da natureza lógica da linguagem. No entanto, pretender expulsar, esconjurar da linguagem o seu próprio excesso, o movimento camaleónico da exploração sistemática de relações de semelhança e parentesco de imagens, figuras e palavras que os tropos im- plicam, seria querer encontrar o idílio e o paraíso de uma linguagem total e divinamente pura, uma linguagem universal e essencializada, jamais filtrada pelas circunstâncias contextuais e totalitariamente auto-referente. Neste sen- tido, haveria uma translucidez radical da qual a turva luz do uso quotidiano da linguagem seria brutal sombra e ineficiente e ambígua aplicação, ignorando- se, aristocraticamente, que a linguagem, enquanto excesso, é a presença de conflitualidades e paixões, de consensos e razões, de incertezas e indetermi- nações, de certezas e determinações, num permanente desvio de si mesma, por vezes labiríntico, mas numa relação onde o radical determinante é o carácter multi-factorial do uso da linguagem (12). No limite, há, em toda a linguagem, sempre Alguém e Algo e, por conseguinte, nunca o mesmo enunciado, "eu vou hoje ao restaurante", dirá o mesmo, repetido indefinida e eternamente por todos os sujeitos e em todas as circunstâncias. Este simples enunciado pode ser construído através de diversos e heterogéneos contextos interpretativos que aumentam a complexidade problemática que lhe está subjacente, na inesgotá- vel tarefa da sua inteligibilidade. Toda a linguagem configura estas dificulda- des e, em coerência, intromete em si própria um grau de possível e de incerto que não é decidível a não ser a cada momento, refazendo o seu sentido cir- cunstancial. "Eu vou hoje ao restaurante "tanto pode ser a conclusão-desabafo de um longo processo de discussão como a cândida-premissa da impossibili- dade de conclusão, sendo isto só dois dos entre muitos factores conjunturais de interpretação. É isto o uso empírico da linguagem, o exercício premente do particular, que não se compadece com uma visão descarnada da mesma, onde não hou- vesse implicações subjectivas e intersubjectivas, onde não houvesse munda- Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 9 nidade. Em absoluto, a linguagem é sempre presença de uma relação, um encontro entre sujeitos e realidades que se faz e desfaz sempre nela própria. Na linha disto, nenhuma filosofia da linguagem pode enclausu-rar-se mo- nasticamente numa perspectiva insular, seja ela logicista, estruturalista, des- construcionista, etc. , mas terá que deixar respirar nas suas análises o inevi- tável problema dos múltiplos usos da linguagem, dos quais o empírico é, em si mesmo, um dos mais complexos de determinar. E se, em certa medida, de modos diversos, todas as filosofias se deixaram encantar por arroubos místi- cos de uma linguagem incólume às contradições, às incoerências, às flutuantes indeterminações de sentido, a esse movimento múltiplo, fraccionante e fricci- onante da linguagem consigo própria, acabaram também por ceder, às vezes fácil e simploriamente, à tentação de escarnecer da dimensão de fundo que determina e atravessa toda a análise da linguagem: o seu carácter problemá- tico. Na esteira destes pressupostos, os tropos não escapam ao processo de pro- blematização que atravessa, medular e modularmente, a linguagem, acabando por ser rematados exemplos do mesmo. O que cada tropo exerce é (13), ime- diatamente, a experiência do múltiplo da linguagem ,uma abertura precária ao sentido e à interpretação, essa relação indómita entre o problematizar e o criar (14), ou seja, o trazer e acrescentar indefinição e mesmo surpresa à linguagem. De facto, os tropos pretendem sempre gerar o efeito retórico do estranhamento (to xenikon) do inusitado, ruptura de sentido que perturba e dá sempre nova voz ao que se diz, ao que se exprime, tentando provocar efeitos do delectare ou do movere, revelando a linguagem como permanente relação e intromissão de algo que só nela se pode experimentar. Laboratório imenso, a linguagem é assim a permanente abertura do ho- mem a si mesmo, na experiência dos seus limites e, por isso, nela se ensaiam problemas cujas formulações são sempre provisórias. Daí que os tropos são parte integrante da transição clara de uma concepção da linguagem como mero inventário para uma linguagem como invenção. Associativamente, toda a re- tórica é a expressão desse conatus essendi da linguagem: a sua permanente inventabilidade (15). A inventio é , de modo indefectível, o movimento ori- ginal de toda a linguagem e os tropos exprimem esse movimento basilar em todos os planos. A ars inveniendi é , por razão de sobra, o proto-movimento da linguagem, onde o discursivo se organiza pela e a partir de uma presença rela- www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 12 José Manuel Vasconcelos Esteves arte de inventar, enquanto não confinada à especificidade de uma inventio, mas albergando a dispositio e a elocutio, então a retórica é a arquitectura inevitável da invenção dos conceitos e da sua formulação temática, inscrita igualmente no ordenamento e na coerência dos pensamentos e na sua respectiva forma expressiva, o que nos conduz à inelutabilidade de ser impossível desirmanar a retórica da filosofia, como foi ensaiado na voluntarista e radical concepção platónica. (25) Em congruência com isto, os tropos são em si a projecção de algo mais do que o simples exercício estilístico ou mesmo de uma estrutura linguística indemne, ao manifestarem já e sempre o perturbante e indeterminado impulso para uma conceptualização, que se exerce na perversão e no desvio interno (26) que toda a linguagem revela e que se condensa na sua incontornável di- mensão retórica. Toda a linguagem é sempre desvio, não a uma realidade ou a uma es- sência exterior a ela própria, da qual ela fosse um ser menor ou uma epi- fântica/epifenoménica manifestação e que, por isso, servisse de mediadora e calçasse as sandálias voadoras de um Hermes incumbido de transportar men- sagens entre soberanos deuses, mas, bem pelo contrário, a linguagem é sempre desvio a ela própria, mediando-se a si própria. Ora, neste sentido, o problema da identidade e da diferença não se constitui em razões exógenas à lingua- gem, mas é a fulgurante experiência da linguagem como desvio potenciado e inventado de si mesma, de que os tropos e os conceitos são expoentes in- desmentíveis e inextricáveis, no sentido em que representam, pela figuração, a actualização de uma dynamis que arrebata a linguagem e a amplifica per- manentemente. Em última instância, é esta configuração de possibilidades que faz com que a linguagem se medeie a si mesma e se inscreva numa sem- pre renovada rede de circunstâncias, contextos, conjecturas, conjunturas que despoletam novos sentidos de inteligibilidade e racionalidade. Municiados destas ideias e desta perspectiva, não se poderá cair ingenua- mente numa visão inocente da linguagem, desprovida de uma dimensão retó- rica, entendendo-se aqui retórica de modo bifronte, como Janus, ou seja, teo- ria dos tropos e da argumentação (27). É neste sentido indissolúvel que toda a retórica é argumentação, todos os tropos são argumentativos, quer dizer, transportadores de uma probabilidade de persuasão e convicção, geradoras e ordenadoras de um modo de racionalidade. Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 13 É do enquadramento destas questões que decorre precisamente a relação entre ironia e metáfora, enquanto relação entre diferença e identidade. Com este pano de fundo, não se quer trazer ao teatro das operações o problema clássico da identidade e da diferença, que percorreu solenemente as filosofias e cuja hesitação ontológica e lógica pairou dentro delas. Seria supérfluo refe- rir, -e quantas vezes o pensamento filosófico tornou supérfluas questões!-,que não se deseja aqui vertebrar todas as questões adjacentes e subjacentes à re- lação identidade e diferença, quer como ela foi entendida na ontologia quer na lógica. Permanecer nelas seria indiferenciar tudo, mergulhar na viscosa concepção de que tudo se equivale, traindo a missão-mor dos conceitos, num sentido pragmático, como é advogado por Wittgenstein, quando, no seu es- tilo granítico afirma que "os conceitos levam-nos a fazer investigação-são a expressão do nosso interesse e guiam o nosso interesse."(28) Mais do que rediscutir esta questão, o que se pretende é determinar como ela pode surgir numa concepção retórica e argumentativa da linguagem e o que dela se apodera da e na relação entre metáfora e ironia. Sabemos que toda a linguagem é o exercício de identidades e diferenças, que a própria lin- guagem é a precipitação dessa problemática relação (29), no sentido em que toda a linguagem é um jogo de identidades na diferença e de diferenças na identidade. O uso argumentativo e retórico da linguagem coloca-nos no cerne da própria contradição intrínseca a ela, pois é nele que se configura o debate permanente do homem consigo mesmo, no que há de mais indeciso, provável e verosímil nos seus discursos e decisões. Por isso mesmo, falar de identidade e diferença não é querer colocá-las num colete de forças de uma lógica formal, muitas vezes enredada numa entificante subtileza algébrica, que não dá conta da vibração e oscilação permanentes do inteligível na linguagem. Decorrente disto, há que então encarar a questão sob a égide de uma lógica não formal, e muito menos formalizada, que determine o uso mais evidente e amplo da linguagem e a deixe respirar, na plenitude de todas as suas dimensões, que se entrecruzam como soluções complexas de um mesmo domínio. A montante destes pressupostos, encontra-se a ideia de que há tanta mais linguagem e logicidade quanto mais problemático se enfrenta , o que se dá sem sombras de dúvida no conflito entre identidade e diferença. Reduzir es- tas a definições lógicas, entregá-las à angélica analítica lógica é sugar-lhes o sentido crucial e vital : a relação questão/resposta que sub e sobredetermina todo o uso retórico e argumentativo da linguagem e que intensifica, num ex- www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 14 José Manuel Vasconcelos Esteves pressionismo vivaz, a diferença problematológica, tal como foi designada por Michel Meyer (30). A diferença problematológica é a própria experiência de nós na relação com o outro, experiência feita, desfeita e refeita na lingua- gem, acabando esta por ser sempre uma diferença no problemático e razão de fluidez e impermanência de todas as razões. É com e na diferença problema- tológica que todo o pensamento e a linguagem se articulam, nessa presença de alguém perante quem nos exprimimos por uma diferença ou por uma iden- tidade, onde se encaixam problemas que podem ter desde um nível mínimo de diferenciação, próximos de uma consensualidade, até uma amplitude to- tal e irreconciliável, onde a ironia e o sarcasmo são formas possíveis da sua concretização. Definitivamente, a presença do problemático na linguagem é a abertura de sujeitos a sujeitos, na multidão de diferenças e identidades que se podem esta- belecer entre eles, que garantem a diversidade de inteligibilidade e de comu- nicabilidade, nunca anulando a diferença de base que é, para Michel Meyer, quase a fundação de uma diferenciação de sujeitos. Se a linguagem é a multi- plicação de sentidos e todas linguagens são abertas, então ela é a multiplicação de problemas e, por conseguinte, a multiplicação de diferenças entre sujeitos, o que significa quase a consagração de um novo humanismo retórico. Por este motivo, a linguagem é a consolidação da possibilidade de sermos sujeito, não como detentores de uma realidade, mas como transfiguradores de uma realidade que nos escapa permanentemente, num ponto de fuga , simultanea- mente convergente e divergente, que é a linguagem, e que nos torna sempre recém-chegados ao seu domínio , através do qual nos inventamos como seres problemáticos. Dessa forma, a linguagem não se estrutura a não ser neste conflito, onde a identidade e a diferença são contextos e formas de um inesgotável trabalho da configuração do possível e do provável, em que a relação entre tropos linguís- ticos e conceitos é passível de uma análise e leitura retóricas geminadas, e nas quais a relação ironia/metáfora é uma expressão exemplar do problema retó- rico identidade e diferença, duplicando, reduplicando e multiplicando sentidos e níveis de compreensão. A articulação identidade e diferença exprime, numa gradação interna, o próprio escalonamento dos tropos linguísticos sob uma grelha, bastamente evidenciada por M. Meyer (31). É neste contexto, nesta estruturação dos tro- pos, ou seja e nas palavras de M. Meyer "au départ, on l’a vu tout concept Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 17 conceptualmente nos problemas. Internar não é aqui vir de fora para dentro, mas tão só ir mais para dentro, quer dizer, pensar mais problematicamente. É sob a égide desta perspectiva que, sendo a ironia uma implicitação de negações e oposições , nenhum conceito escapa à tensão contrastante entre metáfora e ironia, como formas extremas de uma perspectiva de identidades e diferenças, que dinamiza a própria linguagem. Nietzsche deu-se bem conta de todo este problema e se há nele "um modo retórico radicalmente irónico", como afirma Paul de Man (39), então é porque Nietzsche considerou que a única forma de superar uma filosofia da consciência, dominada pela luta ti- tânica do idealismo alemão, representada na antinomia radical entre um eu e um não-eu, é através de uma filosofia retórica da linguagem, onde a maior ilusão seria a de confundir as metáforas originais, as imagens e tomá-las pelas próprias coisas em si, isto é, essencializá-las. (40) No fundo, se a advertência nietzschiana é ainda a de ultrapassar o colapso do idealismo alemão, enredado no conflito entre a esfera do sujeito e a es- fera do objecto, para usar expressões do próprio Nietzsche, ela só pode ser cumprida pela presença da ironia, que não é um mero cepticismo linguístico ou retórico, mas é a própria revelação da contingência no interior da lingua- gem e da elaboração de multiplicidades, num referencial de diferenças, que esgarçam a possibilidade de um topos de acesso a uma unidade, quase sempre enlutada, pois nos é oferecida ora como perdida ou irreferenciável. Em função disto tudo, não será abusivo lançar a suspeita de que a ironia poderá ser o próprio método genealógico, apregoado por Nietzsche, ao in- verter e escavar no "cemitério"de algumas filosofias, cuja perenidade aparece como lápide, onde o laconismo do biográfico, quer dizer, do conceptual, ra- refaz e esquematiza a vitalidade insondável que enforma a própria elaboração dos conceitos, suspeitos de terem uma vida oculta. E se de igual modo alguns pensamentos e filosofias são acusados de negarem a vida, também os con- ceitos desvitalizam a linguagem, na sua ascensão ao essencial, criando assim a última e mais anónima máscara, a que renega mais absolutamente o rosto grosseiro, rude e disforme do exército de tropos que , quais sátiros à solta, exprimem uma vontade de poder da linguagem. Sobrevoa toda esta questão, a concepção de um conflito entre uma lin- guagem apolínea, desoxigenada e quase anémica, face ao seu jejum e dieta , in nomine Dei et alii, e uma linguagem dionisíaca que brota na força vio- lenta do que exprime retoricamente, como excesso e como fúria. De certo www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 18 José Manuel Vasconcelos Esteves modo, a linguagem é uma forma de ser possuído, de furor, de demência, num jogo de sombras e claridades que nos aproximam do trágico, no sentido em que nele se revela a própria mutabilidade dos destinos e das palavras sem destino, pura errância. À beira disto tudo, a ironia também tem algo de dio- nisíaco e nela também a linguagem se descobre enlouquecida, num furor de argumentatividade que atinge em cheio a própria base da sua identidade, ao compatibilizar a negação com a afirmação, geminando de tal forma uma com a outra que quase parece desvanecer-se o sentido do que é afirmado. Através dela é como se, no fundo, acedessemos multiplamente a nós mesmos, na con- figuração não de uma fragmentação e subtracção (41), mas de um acréscimo, de um multiplicar de sentidos retóricos e racionais. Assim, os tropos linguís- ticos, entendidos na sua realidade argumentativa, inventam mais e diferentes perspectivas, rasgando cada vez mais soluções conjunturais e, naturalmente, mais problemáticas. Encastrado nestas questões, aparece todo o exercício brilhante que Nietzs- che faz do método genealógico dos conceitos, nessa minuciosa descida aos seus subterrâneos, onde se cruzam sentidos e inteligibilidades geneticamente dinâmicas (42). De todos eles, e pela supremacia inevitável que assume no discurso filosófico, é a verdade que ele mais ilustra como concretização su- prema da ilusão e da dissimulação e o que ele mais arrasta para a desconstru- ção tropológica (43), numa paródia de associações, onde a metáfora é ironia e vice-versa, como acaba por ser o famoso início de prefácio ao Para Além do Bem e do Mal, "Vorausgesetzt, dass die Wahrheit ein Weib ist -, wie? Ist der Verdacht nicht gegründet, dass alle Philosophen, sofern sie Dogmatiker waren, sich schlecht auf weiber Verstanden?". (44) Na linha disto, o conceito de verdade, como qualquer outro, esculpido e dominado lógica e racionalmente pelas filosofias, não pode escapar às ten- sões que o originaram, e mesmo no seu esgotamento e enquanto presença residual das imagens originárias, está sujeito ainda à abertura retórica, à su- posição e à comparação, ainda que a mais inesperada, integradas na cadeia de associações-a verdade como mulher-que percorrem metaforica e ironica- mente essa imagem que traz um suplemento de sentido e absurdo ao conceito. A ironia , subentendida e implícita, é ainda uma súbita reductio ad absurdum (45), num falso e encapotado silogismo (46), endividado a uma conclusão cujo efeito e eficácia são retóricos e nunca lógicos, porque trazem no seu seio mais problemas do que resolvem e nada nos garantem da própria verdade, porque Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 19 exigem uma racionalidade de adesão, enxertada na conjugação entre sentidos e sujeitos. Se a verdade é mulher então os filósofos pouco perceberam as mulheres significa, pelas portas das traseiras do que é dito, que os filósofos pouco perceberam da filosofia e vaguearam na ilusão de julgarem como ver- dade o seu próprio erro. É assim que, em definitivo, a filosofia não escapa à ironia de ter tomado a sério, em si própria, o que era pura ironia, ignorando, algo olimpicamente, que só a ironia nos coloca para além do problema epis- temológico no qual o céptico se debate, pois só ela ultrapassa essa dimensão, centrando o problema da negatividade como um problema retórico e argumen- tativo, fazendo explodir, num tecido múltiplo de relações e associações, novos horizontes do problema em causa. A afirmação nietzscheana, "Se a verdade é uma mulher...", exemplifica ni- tidamente a perspectiva apontada, focalizando a ques-tão da negatividade no conceito de verdade numa dimensão retórica, argumentativa e negativa, pelo quadro irónico, e não num cepticismo epistemológico, que paralise definiti- vamente o pensamento na sua própria aporia. A ironia é a sugestão de uma pensabilidade por fazer, e não a sua exaustão. É por estas razões, que Nietzsche entendeu bem que se nos quisermos livrar do cepticismo a ironia é a única forma de o garantir, pois só ela acres- centa, para além da pura negação céptica, uma nova interrogação e uma nova problematização, conferindo maior densidade racional e conceptual em rela- ção ao problema, quer recriando quer aumentando esse problema. Decorrente disto a ironia introduz uma diferença problematológica, que nos garante um crédito considerável na abordagem frontal das questões fi- losóficas e da própria questão da filosofia. Só que nesta tarefa ela não está sozinha, mas vem na companhia dos tropos linguísticos, que restauram, no palimpsesto conceptual, não só a origem do problema que o conceito aneste- siou mas, igualmente, a abertura à invenção de novos problemas, numa tran- sitividade permanente, que não é passível de ser estancada. www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 22 José Manuel Vasconcelos Esteves os significados, problematiza e argumenta, numa direcção sempre precária e, inevitavelmente, interpretativa. Com toda a propriedade, alguns exemplos, recolhidos avulsamente, po- dem ser indicadores fiáveis do que se afirma: a) "O homem casado é um quadrúpede."(48) b) "Le supérieur à Itzig, soldat intelligent mais indiscipliné: -Itzig, ta place n’est pas parmi nous. Je te donne un conseil: achète-toi un canon et établis- toi à ton propre compte."(49) c) "Noel Coward, escritor e actor inglês, encontrou uma novelista americana, Edna Farber , que usava um fato de homem: "Você quase parece um homem!", disse-lhe ele. "Você também.", respondeu-lhe ela."(50) d) "Je n’ai rien, je dois beaucoup, je donne le reste aux pauvres."Testamento de aristocrata francês. (51) Nesta estreita relação entre o dito espirituoso, o gracejo humorado, até ao sarcasmo quase cínico, pelos quais sempre se definiu a ironia, numa relação íntima com o humor (52), qualquer destes casos é determinável como ironia por um quadro de referências e de contrastes, mais ou menos explícitos ou implícitos, gerando qualquer deles um aumento retórico de inteligibilidade no dito ou no escrito e, por isso, um empolamento multiplicativo do argumentá- vel. Apesar do puzzle complexo de ironia da palavra e do pensamento e na misceginação entre os diversos tropos, o que leva à ironia de hipérbole, de perífrase, de alegoria, de sinédoque, etc., até a essa bifurcação, na ironia do pensamento, entre simulatio e dissimulatio, num processo excessivo de enti- ficação, onde se calhar os entes são já meros enteados e exercícios de tédio, todas as formas de ironia são a expressão de uma reversabilidade argumenta- tiva, pela situação de inversão subjacente à linguagem irónica. A reversabilidade e a inversão são características intrínsecas e maiores da ironia. Através delas, o próprio reverte-se em figurado e este no próprio, numa situação de especularidade invertida, que dissemina uma simultaneidade tópica e lógica entre afirmação e negação, certo e incerto, provável e imprová- vel. Em absoluto, a ironia é a esgrima mais rebuscada de uma estratégia que só é resolúvel na decifração, contextual e probabilística, que indefine e equivale sentidos mas, simultaneamente, insere a necessidade de uma pesquisa inter- pretativa, que só é determinável em níveis privilegiados de descodificação, isto é, na clarificação de sentidos cruzados e interrelacionados. A reversabi- Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 23 lidade argumentativa irónica começa por ser o desdobramento de um sentido, em oposição, que transfigura e determina uma teia de sentidos relacionais. Por conseguinte, a ironia, como todos os tropos, é uma lupa que, por leis e feixes retóricos, amplia ao pormenor o sentido do que é enunciado. É mesmo este estado de contradição, de afirmar pela negação e negar pela afirmação, que faz da ironia o tropo dialéctico (53), e que materializa a com- plexidade e a relatividade do antagónico, como se com a ironia a linguagem excedesse a fronteira lógica da negação e absurdizasse o princípio da não con- tradição. Ao fazer isto, a ironia empurra-nos sempre para uma amplitude es- tratégica que já não encaixa no reducionismo lógico, impondo, ao invés, uma contrastante polemização da enunciação, a qual só tem sentido interpretativo numa aplicação circunstancial e contextual (54), em que fervilha a visão da linguagem como enunciação de problemas, que insuflam volume à linguagem, tridimensionando-a, multidimensionando-a e anulando-lhe , por isso, a plati- tude procurada, por vezes, pela dita decantação e depuração lógicas. Aliás, a passagem a uma teoria da linguagem argumentativa e retórica pode ser equipa- rada, sem rebuço de maior, à passagem de uma geometria euclidiana para uma geometria multi-dimensional ou, noutro contexto, a introdução da terceira di- mensão pictórica operada como resposta à secura bidimensional da pintura medieval, como se com aquela o etéreo se corporalizasse e mundanizasse. Em decorrência de tudo isto, e em apertada conotação com a definição de ironia, se há tropo mais especializado na problematização e o que é, pela den- sidade problemática que contém, mais difícil de interpretar e de contextualizar e ainda o que corre mais riscos de ser obscuro, é, precisamente, a ironia. Na verdade, a ironia, em vez de pressupor uma semelhança ou valorização de uma parte em relação ao todo, remete para a negação e para uma desiden- tificação, o contrário do operado na metáfora, o que lhe gera riscos de má interpretação e ambiguidade que são, apesar da sua dimensão negativa, ele- mentos constituintes e necessários à ironia. Enquanto a metáfora é um símil, e por isso expande-se pela assimilação e pela mimetização, a ironia é descons- trutora, criando uma redescrição e refiguração pelo negativo, cuja captação e compreensão exigem um excesso de inteligibilidade descodificadora em com- paração com os outros tropos. Em última análise, quase se poderia dizer que a ironia é um tropo que põe em jogo múltiplos códigos de linguagem, o que sempre vincou a sua dificuldade, a sua raridade e, até, as suspeitabilidades e www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 24 José Manuel Vasconcelos Esteves susceptibilidades com que foi encarada ou recebida, provocando disfunções e perigando, pateticamente, a sociabilidade. Não é de estranhar então, que sendo a ironia um jogo, é um jogo que leva ao limite o próprio conceito de jogo, ao introduzir uma regra suspeita, que se reveste dum estilo próximo do bluff. Em última instância, poder-se-ia dizer que a ironia é, em certa medida, a perda da inocência da linguagem, dessa "virgindade"de uma linguagem que dissesse só o que diz, numa cooptação indescolável, sem diferenciação e problemas e, a contrario, a descoberta da possibilidade da diferença e da cisão da linguagem consigo própria, como se uma máscara invadisse e negasse a frontal nudez do rosto. É esta descoberta, este jogo alucinado que a ironia introduz, que sempre a transformou num rastilho de pólvora incómodo e sobre o qual, muitas vezes, incidiram palavras condenatórias e o anátema da moral (55). A ironia é o tropo da diferença e da negação e, por consequência, aquele que leva a linguagem ao ponto mais extremo de si mesma, precipitando-a na dificuldade de tornar o sentido próprio na figura negativa de si mesmo. Deste modo, a ironia é o jogo do subentendido, do sub-inteligido, do que só é visível a contra-luz, o que fomenta mal entendidos que obscurantizam o seu reconhecimento. O jogo de inteligibilidade que a ironia suscita torna-se ainda mais apurado pelo facto dela poder ser exercida por um mero desvio decimal no discurso, quase imperceptível, uma pequena torção, inflexão capaz de perturbar e sub- verter profundamente; uma infiltração pelo mínimo, capaz de fissurar toda a coesão argumentacional, provocando perplexidade, contradição, controvérsia, paradoxalidade e até mesmo aporia. É esta reduplicação mínima de sentido e de inteligibilidade que faz da ironia um jogo de negação do referente, pois com ela o que é dito, o que é EXPLÍCITO não é mais do que uma pequena "dobra"redobrada do que é IMPLÍCITO. Toda a ironia é uma mini-dialéctica entre o implícito e o explícito, o dito e o contra-dito, o texto e o contexto, o enunciado e o referente. Numa sequência de análises, e desembocando no problema pretendido, a ironia introduz-nos na contradição, na interrogatividade que aceleram e projectam a inteligibilidade da linguagem. Mais do que um movimento retráctil, uma espécie de cãibra acerada, a ironia é antes a projecção do interrogativo e do problemático e, naturalmente, um tropo que ultrapassa a "leitura"meramente figurativa, para nos instalar no próprio conflito da linguagem e, nesse sentido, como estilo Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 27 Em consequência disto, e no horizonte de uma análise retórica e argu- mentativa da linguagem, há que substituir a relação lógica instituída pela im- plicação, pela relação argumentacional da implicitação (58). Acresce a isto que o processo irónico da implicitação não sucumbe a uma relação de mero antecedente e consequente, mas desdobra e diverge a relação num sentido de probabilidades, onde se jogam simultaneamente identidades e diferenças, numa graduação de interpretações e validades, cujo sentido só é possível pelo contexto, circunstancial e situacional. No limite, a implicitação amplia a possibilidade relacional de inteligibi- lidade e acresce o grau de probabilidade argumentativa, sugestionante e con- vincente, abrangendo formas de argumentação que ultrapassam e excedem as fronteiras determinadas e militarizadas de uma validade formal e lógica. O critério que sustenta a sua aceitação já não é lógico-demonstrativo, mas retó- rico, ou seja, gerador de anuências que são, por si próprias, manifestações de uma inteligibilidade e racionalidade que se reconhecem implicitamente nos problemas. Ao invés de uma evidenciação ou de uma demonstração, a impli- citação lida, como toda a retórica, com o verosímil (59), numa cadeia de ar- gumentos, cuja textura é indeterminável, o que garante inferências múltiplas e abertas. Na linha disso, implicitar não significa, liminar e estranguladamente, uma inferência particular, uma relação linear logicamente verificável, mas é a abertura a uma complexidade inteligível de relações e associações possíveis e que permanecem virtualmente determináveis, nos múltiplos factores presen- tes na linguagem, que não é só o organigrama ou o circuito integrado de uma máquina, mas também a abertura diversa às heterogéneas perspectivas dos problemas. Globalmente, o que diferencia profundamente a implicação lógica da im- plicitação retórica é que a primeira é exaurível, nas suas determinações do possível, enquanto a segunda é inesgotável nas relações que estabelece e, por isso, comporta uma potencialidade superior do racional e do retórico, uma dimensão alastrante e expansiva, que vai à revelia do sentido redutor e verifi- cador, inerente à lógica. O que se exprime de implícito e, por conseguinte, na relação de implicita- ção proporcionada por uma metáfora ou uma ironia, mesmo as mais simples, é de uma densidade de combinações possíveis que aumentam excruciantemente o poder argumentativo e de verosimilhança das mesmas, lidando com relações www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 28 José Manuel Vasconcelos Esteves e associações que não se esgotam numa estrutura lógica, mas só têm foros de cidadania numa perspectiva argumentacional. (60) Partindo desta base, pode-se afirmar que toda a linguagem é um processo crescente de implicitação, do qual quer os tropos quer os conceitos são nítidos exemplos. A ironia, enquanto argumentativa, é uma forma peculiar e parti- cular de implicitação, visto que é o implicitar o seu contrário, a sua negação, numa cadeia de associações e relações, cuja verosimilhança ou inverosimi- lhança é determinante. Inelutavelmente, a ironia, como tropo, lida muitas vezes não com o ve- rosímil, mas com o inverosímil, ou seja, com a incompatibilidade contextual e circunstancial do que é dito. Nos meandros disto, há que reconhecer que esta incompatibilidade é, naturalmente, a base do problema irónico, que se nucleariza na contradição e a sustenta. Desta forma, a ironia distorce o sen- tido até a um limite insuportável, que causa inverosimilhança, que é o meio de determinar o verosímil que lhe é implícito. (61) No novelo destas questões, ressalta claramente a pertinência de uma con- cepção irrestrita do processo de implicitação, que modele a diversidade e a contingência do racional, numa multiplicação das possibilidades do pensável e argumentável. O implícito não é desta forma a sombra e o correlato do explí- cito, mas é a pluralidade de associações a estabelecer e que medem o próprio explícito, que ganha tão mais sentido plural quanto o que nele se implicita é também a antífona de graus heterogéneos de sentido, cujo desvendamento é determinado pelo efeito retórico no auditório. Toda a linguagem tem efeitos retóricos, não no sentido de um artificialismo rebuscado e enviesado, numa espécie de show off das palavras e dos argumentos, como efeitos especiais, imagem peregrina de uma retórica de salão de beleza (62), cuja futilidade é venial e capitalmente condenável, mas no sentido que nela algo se excede e um novo grau de inteligibilidade e racionalidade se atinge. É neste ponto, neste cruzamento que a ironia, perplexidade entre o vero- símil e o inverosímil, intersecção nítida entre o sentido e o absurdo, entre a certeza e a dúvida, activa todos os processos conducentes à constante proble- matização filosófica, sem a qual a filosofia cede à nodização de si própria, na contemplação beatífica de um ponto de fuga perdido num horizonte nulo. Por adveniência, a ironia é o que torna incompleto todo o pensável e que desfoca a tentação de uma concepção holística do pensamento. Determinada por aquilo que nega e indeterminada por aquilo que afirma, a argumentação irónica é Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 29 a que mais nos aproxima da dialéctica, quer dizer, da pluralização dos pro- blemas e da sua perspectivação numa comunidade de interesses ou relações. A dialéctica irónica exprime-se não como uma técnica ou metodologia, mas como uma relação problemática que dá conta, adequada ou inadequadamente, das dificuldades da linguagem, do homem e do mundo. A polemicidade (63) é o espírito fulgurante da ironia, a manifestação constante de uma argumenta- tividade que lhe é co-natural. Em consequência disto, poder-se-á falar de uma ruptura problematológica provocada pela ironia, o que se subentende na noção de que a ironia causa dois efeitos fundamentais : por um lado, institui uma nova dimensão e perspectiva sobre o tema, que resulta directamente da tensão e da oposição; por outro lado, prepara a reordenação global do problema, no sentido em que figurando a contradição imprime uma nova inteligibilidade do problema, que advém da abertura a uma nova possibilidade de argumentação e pensabilidade que só é concretizável após a ironização. Na linhagem destas questões, a ironização (64) é o método, instável e as- sistemático, de simulação de todos os possíveis, na formulação do hipotético, que é percorrido na contingência implícita à hipótese, que não é mais do que uma simulação do possível (65), o que nos aproxima fortemente da análise do verosímil, como uma possibilidade e hipótese de validade e veracidade. Deste modo, a linguagem, e aqui deve residir a perspectiva retórica da mesma, é uma formulação do hipotético, sendo este a convergência entre o possível e a simulação. Esta convergência não nos empurra cegamente para uma teoria da representação, como de imediato e com excessiva pressa se poderia ilacionar a partir da ideia de simulação, que está conotada com uma mediação e represen- tação, com um desdobramento entre real e aparente, entre mundo e linguagem mas, bem pelo contrário, provoca-nos e convoca-nos a uma unidade inteligível entre mundo, homem e linguagem, como simulação permanente do possível, através do qual se alarga a compreensão de um e de outro que é, afinal, a mesma. Radicar-se a linguagem, e todas as formas de racionalidade, na simulação fará, com certeza, despoletar todo um coro trágico de vozes, esgrimindo o pro- blema da autenticidade face à inautenticidade, no brilho divino e na sombra demoníaca de uma consciência juíza de si mesma. No entanto, este coro açu- lado de protestos só tem actuação pela ideia de um dualismo fatal, que faz da linguagem uma forma secundária da presença do homem perante si mesmo e www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 32 José Manuel Vasconcelos Esteves Livros LabCom i i i i i i i i Capítulo 3 Ironia e Negação: – Se non è vero è bene trovato The protoplasm of philosophy has to be in a liquid state in order that the operations of metabolism may go on. Charles Peirce Na inteligibilidade significativa e na racionalidade díspar que a ironia, po- rosa e multiplamente, estabelece, não é de admirar a associação que se fez entre Proteu e a ironia (67). Proteu, para além do dom da profecia, era conhe- cido pela capacidade ilimitada de metamorfose, de adaptação e perfuração de todos os estados, num bailado interminável de formas. Também a ironia é o exercício de uma racionalidade multiforme, que se multiplica em associações e relações, em que a inteligibilidade é precaria- mente determinante e determinada dum contexto, embora inaugurando uma pesquisa permanente e inquieta dessas associações e relações, cuja textura interna é problemática, quando não polémica. Daí se poder dizer que a iro- nia, pelas características já apontadas, nos mergulha no próprio movimento interno à argumentação: toda a argumentação é já e sempre uma contra- argumentação, quer dizer, a ironia é o exercício ambulante de uma constante virtualidade, que se manifesta numa cadeia de associações e relações, onde o hipotético prevalece e cuja intensidade argumentacional depende da maior ou menor solidez relacional e contextual. 33 i i i i i i i i 34 José Manuel Vasconcelos Esteves Se a retórica clássica foi vista, na suspeição anatemizante lan-çada pela filosofia, como um expressionismo da linguagem, uma espécie de gesticu- lação, excessiva e furiosa, foi porque se pretendeu elidir a inteligibilidade contrastada que toda a linguagem determina e da qual a ironia é paladina e protoplasmática. É esta inteligibilidade contrastada, determinante de níveis e de perspectivas, que a ironia, enquanto lídima representante de um pensar argumentacional, desenvolve e explana de modo claro. Assim, mais do que um jogo metafísico, como aplopecticamente foi exal- tado pela ironia romântica, nesse jogo abissal entre nada ser e ser nada (68), num brilho de estrela cadente, capaz de alucinar o sentido do que se diz até à exaustão, a ironia é a refracção de uma inteligibilidade, nos seus contrastes internos e externos. Enquanto argumentativa, quer na modalidade de tropo da pala-vra quer, primacialmente, de pensamento, a ironia é a verduga que conduz a Razão hipostasiada e substancializada aos seus limites, aos seus muros e a expatria da verdade demonstrada e certificada intra-muros, o que leva a gerar uma racionalidade de conflitos, de contradições e de multi-incertezas, que pode ser auto-fágica, no sentido em que toda a linguagem só noutra linguagem é linguagem (69). Toda a linguagem irónica é um alastrar voraz de perspectivas e uma crescente ramificação das possibilidades de inteligir problemas, que criam um novo grau de perplexidade e de problematização racionais. Por estas razões, a ironia, e parafraseando Nietzsche, "despotencia o in- telecto do adversário"(70), obrigando-o a uma recontextualização que pode ser, metaforicamente, um problema de táctica, mediante uma capacidade de réplica à própria ironia. Daqui decorre que a ironia introduz um efeito sur- presa e ensaia uma táctica de contra-ataque que coloca o adversário contra a parede, numa situação aporética, que imprime e impele a uma redefinição de posições, condição imperiosa à reavaliação crítica e aberta dos argumentos. A ironia, no subtil e quase etílico movimento argumentacional que exerce, desembainha o mordaz e acutilante estilete da negação implícita, como forma de sugestionar novas e diferentes perspectivas sobre o problema, fazendo in- cidir nele a reverberação intensa de uma pensabilidade expansiva, extensiva e ostensiva, mas qualitativamente diferenciada e gradativamente explorada. No confronto ou escaramuça que a ironia comporta e transporta, o que está em causa é sempre uma racionalidade que não se apazigua na indiferencia- ção unívoca de si mesma; propondo-se, em alternativa, uma racionalidade de Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 37 seus usos teórico e prático. A ironia, só por si, não é um estado determinado do raciocínio e muito menos o seu enquistamento e apoplexia, mas o proteiforme material da sua formação, pois é nela que o conceito atinge a sua inversão, a reviravolta de contexto e sentido, que abala a sua estrutura e introduz uma dimensão paroxística da sua interpretação. Mais do que servir para uma salvação, para uma escatologia do conceito, como era a metodologia socrática, o raciocínio irónico e desconceptualizante é o que potencia o problema, numa perspectiva de divergências que garante a sua inteligibilidade e a sua pensabilidade. Ao contrário da suposição dialógica socrática, que procurava o repouso, a parousia do conceito, a ironia deve ser sempre entendida como o que articula perspectivas complexas e inesgotáveis do problema e que viabiliza uma multi-pensabilidade do problema. É entra- nhado nisto que se encontra a desconceptualização irónica, como uma forma de semear contradições, dúvidas, hipóteses, numa partida fantástica de lances cujas consequências são indetermináveis, mas que garantem uma prospecção suficiente no acréscimo introduzido e nas alterações provocadas, fazendo e refazendo novas formas de conceptualização e problematização. No fundo, a ironia é ,a cada momento, uma prospecção no indeterminado de cada problema, introduzindo o efeito surpresa e fazendo aceder o inespe- rado à ordem do inteligível. No entanto, se, para algumas filosofias, a razia e o saque eram brutais, era porque viam na filosofia a lucidez do eterno, da qual os conceitos eram lídimos representantes e demonizavam a ironia como uma espécie de Anti-Filosofia, numa dicotomia quase maniqueísta. Pelo contrário, e como já foi várias vezes reafirmado, a ironia é a fotossíntese entre luz e som- bra, crescimento e decrescimento, identidade e diferença, conceptualização e desconceptualização, metáfora e ironia, em que se radica toda a precária in- venção e construção da inteligibilidade dos problemas filosóficos. E em cada problema estamos tão mais problematicamente quanto mais o pensamos iro- nicamente, o que nos garante a diversidade conceptual de o abordarmos, de o resolvermos, de o perspectivarmos, mas sempre integrado num contexto de soluções e perspectivas cujo uso é condicional e, sucessivamente, interrogado, no enquadramento de relações e regras sempre marcadamente instáveis. Assentando nisto, decorre a condição prospectiva da ironia, o que nos con- duz à interrogatividade como prospectividade. A prospectiva irónica emerge da referenciação negativa e do contexto, o que demarca o problema filosó- fico, não só pelo conjunto de dimensões que lhe são inerentes, -a perspectiva-, www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 38 José Manuel Vasconcelos Esteves mas, e num tour de force, sugere propostas, arriscando perder-se naquilo que é prematuro, ou seja, a renovação do problema no pensamento e na linguagem. Toda a filosofia vê-se assim mergulhada num dilema irónico que a faz, en- quanto abertura ao problemático, balancear entre a concepção perspectivística e a prospectivística. A ironia é a que introduz e cauciona o acréscimo pros- pectivo ao perspectivismo, preparando a génese e o metabolismo necessários à mutação de perspectiva de valores e de conceitos, mostrando a inevitável inter- conceptualidade entre todos os problemas filosóficos, não para os equivaler, igualizar ou consolidar numa perspectiva fora de contexto, parente pobre do perene, mas para os integrar na diversidade e heterogeneidade de contextos, mutantes e mutáveis. Na derivação destes aspectos, a ironia, forma apurada de problematiza- ção e interrogatividade, é a que prospectiva os conceitos e os problemas que lhe estão integrados, remetendo-os a um novo contexto e a uma nova possibili- dade de pensabilidade, e preserva, ao mesmo tempo, o carácter marcadamente prospectivo da filosofia, ou seja, a capacidade de antecipar, de anteriorizar o inteligível, o que converge, mais uma vez, com a ideia da linguagem como um imenso laboratório do possível e da simulação. Desta forma, toda a linguagem é prospectiva, visto que ela antecipa sempre algo que só nela se pode revelar e, por tal, como antecipação, joga no imprevisível e arrisca uma inteligibilidade, que não está toda dada nem esgotada nela. O acesso natural a essa imprevisibilidade faz-se pela problematização, que sobrevive constantemente na figura da ironia que, ao invés das outras figuras, onde a problematização se pode anestesiar ou até esvanecer-se, mantém viva a chama agónica, combatente dos problemas, que são manifestação de dificul- dades e de conflitos. O prospectivismo irónico acaba por ser o movimento basilar de descon- ceptualização, mediante a negação e inversão irónicas, que desenham os con- tornos de uma probabilidade e verosimilhança, cernes da retórica e da figu- ração da linguagem. E todo o conceito, enquanto presença de expectativas, alude não ao inteligido mas ao por inteligir e prepara a possibilidade de uma nova perspectiva conceptual e valorativa, direccionando-a para um contexto próprio, que se constitui ou não como um grau de inteligibilidade dos concei- tos e dos problemas. Na borda destas magras e esqueléticas questões está a afirmação, ela de si tão alusiva, de Deleuze e Guattari, "A filosofia como gigantesca alusão"(74). Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 39 Também a ironia é um jogo de alusões que se exprime por meio de relações de problemas e conceitos e que são só formas alusivas a algo que permanece profundamente indirecto. Na outra margem da questão, acena com um pequeno lenço branco o pro- blema do tempo, ao qual Deleuze e Guattari atribuem uma presença incon- tornável na abordagem da virtualidade conceptual e da relação inteligível que ela marca (75). De algum modo, também o tempo é contínua alusão, en- quanto sugestão metaforizante ou ironizante, conforme o ponto de vista, que pros-pectiva uma possibilidade de inteligibilidade. Se, na concepção clássica e epistémica da filosofia, ela aparecia como uma reflexão posteriorizada de uma Erlebnis, forma entardecida de tempo, e abrigue-se aqui a célebre coruja de Minerva, emblema da filosofia de Hegel; e se todo o pensamento filosófico era algo sempre tardio, desdobramento e duplo de um original inatingível, já na concepção retórica da filosofia, esta tem que ser encarada como o que an- tecede, antecipa e previbiliza, o que lhe garante automaticamente um carácter de jogo e de risco que a perspectiva reflexionista/reflexiva escamoteava, na segurança de quem fala como espectador, mais ou menos atento ao naufrágio. (76) Retoricamente, toda a filosofia se enquadra numa ética do risco e do con- tingente, ou seja, é sempre uma proposta problemática de inteligibilidade, cuja aceitação é apelativa a uma relação de sujeitos, na pluralidade manifesta e transitiva de pressupostos, sempre instáveis. Não é de admirar então que todo o esforço oratório e retórico da filosofia seja um lance inevitável de um jogo cruzado de possibilidades, que só tem sentido no prospectivismo do auditório a que se dirige, não no sentido de um teleologismo determinista, mas numa polarização de possibilidades e de relações inteligíveis. Por isso, a ironia é uma inteligibilidade arriscada e o maior risco de todo o pensamento e, conse- quentemente, o mais contingente. Se a desconceptualização constitui o primeiro aspecto estruturante do ra- ciocínio irónico, capaz de propiciar uma rarefacção do pensamento, levando-o à sua regeneração, não é, no entanto, o único, pois há um outro trabalho de base operado pela ironia, que poderia ser designado por contradução. (77) Para entender esta proposta é necessário recorrer à nova concepção de in- ferência problematológica, tal como a defende Michel Meyer (78) e, por outro lado, equacionar o problema que reside na interconceptualidade existente en- tre dedução, indução e abdução, referindo-se nesta o olhar privilegiado que www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 42 José Manuel Vasconcelos Esteves Esmiuçando mais em pormenor as linhas cruzadas do tema em análise, é fácil constatar, perante qualquer ironia, que ela constitui um desafio: a quê, é a questão! Numa análise mais superficial, parece que o que determinou a valorização ou desvalorização da ironia, empreendidas nos mais diversos momentos da história do pensamento, foi que ela era tão mais eficiente quanto mais silenciasse a possibilidade de resposta; que ela era tão mais brilhante e suprema quanto raio cáustico fosse, como manifestação de uma inteligência perfeita. Ora esta visão idolatrada ou amaldiçoada da ironia cegou sempre uma sua análise mais consequente, que procurasse desentranhar a sua efectiva função. Efectivamente, a ironia só tem sentido como um convite, um desafio, uma sugestão, uma sedução ao diálogo conivente, convivente, cúmplice, num partida inter pares de debate de argumentos. Nenhuma ironia, mesmo a mais literária, o é sem o mínimo quanto baste de diálogo, de sugestão de cumplicidade, de aproximação dentro de um de- safio, na paradoxalidade que a modula e que compele à procura do que, em abono da verdade, é a ideia central do problema que se está só ainda a aflorar: a réplica. (84) Entre os exemplos avulsos já citados (85), é possível colher alguns de réplicas, tais como o "Noel Coward, escritor e actor inglês, encontrou uma novelista americana, Edna Farber, que usava um fato masculino: "Você quase parece um homem!", disse-lhe ele. "Você também", respondeu-lhe ela."; ou acrescentar a célebre troca de "galhardetes"entre Bernard Shaw e Churchill. Shaw, ao convidar Churchill para a estreia de uma das suas peças, enviou dois bilhetes, dizendo: "Um para V. Ex. a e outro para um amigo...se tiver algum!". Churchill disse não poder estar presente, mas perguntou se podia ter bilhetes para o dia seguinte, "no caso de haver segunda representação!". Verifica-se, nestes exemplos, que a simples concepção lógica da contradição, enquanto oposição entre verdadeiro e falso, universal e particular ou outras modalida- des, não é suficiente, visto que estamos perante dois enunciados que, for- malmente similares, se inferem contradutivamente, problematicamente, não sendo nenhum deles mais verdadeiro que o outro, relacionando-se por uma negação irónica que, como réplica, produz uma inferência de conversão de sentidos e inteligibilidades, numa aparente sequência linear formal. Se a réplica e a replicação é a operação que determina a resposta à ironia e se é através dela que, ironicamente, toda e qualquer ironia é argumentada, há então que explicar mais detalhadamente o que se entende por réplica. Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 43 Implicar e replicar são duas palavras que têm uma etimologia de afinidade e cuja sugestão etimológica é já bastante aliciadora. De facto, implicar pro- vém do verbo latino implicare, que significa enlaçar, entrelaçar, ligar, unir; e, por sua vez, replicar deriva do verbo replicare, que significa dobrar para trás, curvar em sentido contrário; tendo ambos como étimo o verbo plico, plicavis ou plicui, plicatum ou plicitum- dobrar, enroscar. Vê-se, assim, que na própria inocência da etimologia, corre já a seiva de algo que se afigura fundamental na destrinça a estabelecer entre implicação e replicação: a primeira desenvolve um raciocínio de ligações que se entrela- çam, numa cadeia lógico-argumentativa, embora sedimentando uma coesão e uma unidade, o que se afasta da noção de dobra ínsita à ideia de réplica, ou de curvar em sentido contrário. (86) Numa geometria simbólica, a réplica é a resposta, a inferência do contrá- rio, mas num sentido formal e problematologicamente circular, de um retorno ao ponto de partida, não como um eterno retorno que descobre o original, mas como reactualização da questão e reabertura incisiva do seu insolúvel. Deste modo, replicar não é constranger-se a uma fórmula canonizada, através de re- gras que disponham da sua sintaxe, mas é submeter-se a uma trajectória de assíndota, em que a uma ironia se converge divergindo numa nova ironia que procura naquela o ponto de partida e que a repete, quase a parafraseia, mas ampliando-a e retorquindo-lhe. Este mesmo efeito, quase aerodinâmico de boomerang, é bem perscrutável nos exemplos anteriormente referenciados, onde num jogo de subentendidos e de negações das negações, implícitas e explícitas, o que sucede é que a réplica reabre, como um círculo, o que na outra já parecia encerrado. Mais minucio- samente, no primeiro exemplo, a ideia de homem, no seu contexto social e de valores, é ricocheteada por entre a negação que lhe subjaz, numa sugestão do contrário, o que também se verifica no segundo exemplo, ainda mais flagrante do que se pretende enunciar como réplica, pois facilmente se constata que a resposta de Churchill se limita a copiar a fórmula de Shaw, introduzindo-lhe uma alteração do conteúdo explícito, mas garantindo o contexto implícito. Impressivamente, mas ainda de uma forma difusa, o que se apresenta nesta modesta análise é que a intensidade prolemática da ironia não se compagina com regras pré-determinadas de inferência, dado que não há regras específicas de inferir a partir de uma ironia uma outra, pois, e desde logo, a ironia é já www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 44 José Manuel Vasconcelos Esteves uma inferência implícita, que só é inteligível enquanto tal quando inferida como ironia. Perante esta situação, e admitindo que uma ironia se mede pela sua eficá- cia, há que procurar uma nova forma de entender o raciocínio irónico, onde operações como dedução, indução, abdução e critérios de contradição se re- velam escassos para reter e promover correctamente a inferência irónica e dar–lhe a consistência adequada à sua sobrevivência para além do delgado e ressequido papel de uma figura de estilo. Esta nova abordagem conceptual subsume-se no que já foi designado por contradução, e é no quadro contras- tante com as operações anteriores que se pretende, a partir de agora, moldar e asseverar que toda a perspectiva retórica e argumentativa da linguagem, no seu esforço de construção de tropos e conceitos e das relações problemáti- cas entre eles, requer uma reapreciação dos diversos modos de inferência até agora, lógica e filosoficamente, explanados. A primeira ideia a reter é que a ironia não é uma simples contradição, o que já foi delineado anteriormente. Efectivamente, a inversão operada pela ironia implica logo uma negação interna entre o conteúdo explícito e o con- texto implícito, o que gera um enunciado bivalente e aflorando a paradoxali- dade. No entanto, imediatamente perante esta inferência sugestionada de um enunciado que se revela irónico se coloca o problema de que ela não pode ser nem dedutiva, nem indutiva, dado que opera através de uma ambiguidade, que extravasa qualquer relação meramente formal. (87) Por consequência, não sendo uma simples contradição, pois a ironia in- troduz uma contingência de sentido, que escapa ao despotismo iluminado e iluminista de uma função de verdade por contradição; quer dizer então que a ironia lida com o verosímil e acede a si mesma por uma probabilidade de inter- pretação, que só um auditório pode determinar (88). A ironia é, deste modo, um jogo com a própria negação e contradição, compaginando-as, tornando-as permissíveis, procurando através delas revelar e fazer adivinhar algo que deve ser um laço de perplexidade e de acréscimo excessivo de sentido. Donde que ela seja quase como uma adivinha, na qual o sentido literal das palavras se me- taforiza e se ironiza, o que obriga o leitor ou o auditor a perceber a contradição e a aceitá-la como um acréscimo de sentido e de oportunidade. Assim justificada, a contradição irónica não é uma incoerência ou uma impossibilidade lógica e formal, mas uma forma de sublinhar o que se diz, acrescentando-lhe novas dimensões e intensificando o efeito retórico que se Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 47 texto, correlativos entre si. Mais estulto seria considerar que uma qualquer ironia tenha o condão de atingir o que seria uma eventual ironia universal e que, por tal, haja um modelo certificante da ironia, a partir do qual se possam estabelecer parâmetros adequados da sua análise. Como o próprio exemplo analisado ilustraria , nem em todos os contextos e usos ele seria considerado como uma ironia e encaixado nalgumas perspectivas mais restritas, ou seja, contextos muito consistentes, pela redução formal de princípios, que geram uma ambição teórica de coerência, como uma teoria moral ou feminista, ele seria visto como uma piada de mau gosto ou a manifestação de um machismo serôdio. E, no entanto, são mesmo estas classificações que lhe granjeiam al- guma eficácia, porque indiciam, que mesmo não sendo entendido como uma ironia, é entendido como um problema e algo polémico, o que preserva o carácter argumentativo. No fundo, mesmo uma ironia falhada ou não aceite mantém sempre presente o carácter problemático. Baseada nesta visão, na ironia a analogia e o contraste intersec-tam-se, contradizem-se, criando relações e associações complexas, on-de se interli- gam determinações de sentido retórico, cujo espectro de aplicação é bastante amplo, tão amplo como o exercício da linguagem, o que nos conduz mais uma vez à necessidade de tentar procurar uma forma diferente de entender a relação retórico-argumentativa presente na ironia, como algo mais que uma simples negação ou contradição. Procurando precisar e alvejar cada vez mais o problema que a ironia sus- cita, numa análise do que será uma inferência problematológica, há que pro- curar avizinharmo-nos do que poderá constituir a diferença real entre o argu- mento lógico e o argumento retórico, no seu modo irónico. Nesta distinção, não se pretende criar uma antagonização valorativa, mas tão só assinalar uma tensão que seja reflectora do problema. Assim, o raciocínio lógico privile- giou, na sua arquitectura inferencial, a indução e a dedução, cuja conjugação esteve por detrás de múltiplas concepções epistémicas, das quais os êxitos ou os fracassos constituíram muitos dos momentos altos do pensamento filosó- fico. (92) Para além destas duas modalidades e integrado nos pressupostos já expla- nados, parece claramente oportuno procurar se residirá na abdução qualquer proveito a uma melhor compreensão do que poderá ser a contradução irónica. É sobejamente conhecida a ressureição imprimida por Peirce ao conceito de abdução de Aristóteles, e o desenvolvimento que lhe vai conferir. O que a www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 48 José Manuel Vasconcelos Esteves abdução garante é a inferência conjectural de hipóteses, processo que leva à descoberta e construção de uma conjectura ou hipótese (93). De imediato res- salta que Peirce procura uma "lógica da descoberta", fazendo dela a âncora fundamental de uma análise da ciência e condensando o problema na lógica inventiva que deve vivificar a ciência e à qual ela não pode fugir. A importância da inventabilidade abdutiva da ciência parece, sem forçar a nota, fazer-nos já aproximar da inventabilidade retó-rica e tentar-nos a pro- curar se há ou não aqui um terreno comum de problemas e de analogias, que consolide uma visão específica sobre o tema. (94) Não é por acaso que Peirce relaciona abdução com o que ele chama "being in futuro"(95). Este ser no futuro, projectivo, inventivo e argumentativo, só tem sentido através de uma iconografia da analogia (96), mas que só per se nada garante de positivo, ao contrário da indução. (97) Visualizam-se já, desta forma, algumas das características integrantes da concepção da abdução, as quais, de algum modo, nos fazem inclinar abduti- vamente para a hipótese de elas poderem trazer um contributo para o esclare- cimento do que se pretende designar por contradução irónica. Inquestionavelmente, a ironia como inferência só é inteligível pelo carác- ter de inventabilidade hipotética que a abdução contempla na lógica da des- coberta que anima a ciência, só que na ironia através de uma negação interna e na lógica da inventabilidade do problemático que determina a retórica e a teoria da argumentação. Transitivamente, a ironia projecta uma possibilidade de negação que só pode ser negada ironicamente, como hipóteses que problematizam permanen- temente as conclusões, o que nos torna a remeter à réplica, como capacidade inventiva de argumentar. A invenção de argumentos não pode ser, do mesmo modo que Peirce perspectiva a abdução, um processo psicológico, determi- nado por regras imprecisas ou aleatórias, codificadas numa escatologia de inspiração, mas uma relação com o problemático, que o irónico ou o meta- fórico exprimem, através do contraste e da analogia. É desta maneira que tem de se entender a contradução, como uma iconografia da diferença, isto é, a possibilidade de um argumento ser negado não logicamente, mas meta- forica ou ironicamente, numa relação de imagens e figuras que se estruturam associativa e dissociativamente. O que uma ironia, ou até uma metáfora, indicia sempre é uma hipoteca no que nela se relaciona ou diferencia. Tomando este aspecto como base, a Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 49 ironia, enquanto negação e contradição lógicas, é mera aparência, pois ela é a conjugação diferencial de contrastes internos do que nela se enuncia. Pode- se, de uma forma paradoxal, dizer que ela não é uma inferência mas uma di-ferência, uma diversificação contrastada de sentidos, que não são mais do que possibilidades, suposições e hipóteses, que exigem a formulação inven- tiva de uma conjectura. Assim, a ironia não contradiz, não dicotomiza, não binariza hipóteses, mas provoca graus de diferenciação, que não são mais ver- dadeiros ou falsos, nem mais demonstráveis ou indemonstráveis, mas que se exprimem verosimilmente, numa co-probabilidade argumentativa. A ironia é a introdução e a inferência de diferenças que não são só lógicas, mas que se endividam a perspectivas, argumentos , associações, relações, que se expri- mem multiplamente nos mais diversos mecanismos da linguagem, desde os mais elementares até aos mais complexos. Portanto, a ironia explora virtuali- dades e mostra que a negação é um processo bem mais amplo que o faz crer o modo lógico da negação, evidenciando, por acréscimo e suplemento, que as inferências, imediatas ou mediatas que nela se manifestam, socorrem-se de negações e oposições bem mais latas, que podem ser sumariadas na ideia já invocada da contradução. Não admira portanto, que a ironia só seja argumentável contradutiva- mente, como se só se completasse e concluísse noutra ironia. A contradução amplia a ironia noutra ironia, replica, cloniza a ironia noutra ironia, explo- rando a virtualidade hipotética que a primeira já contemplava e aprestando a conclusão inferida pela ironia inicial, esmerando a sua inteligibilidade, o que faz da réplica irónica uma das inferências mais complexas e a qual se torna no exemplo mais portentoso de um processo de oposição e negação que nada tem a ver com a lógica, e é inquestionavelmente contradutivo. Qualquer réplica irónica aproveita o que na ironia, ou mesmo no argu- mento não irónico, é ironizável, destacando uma nova hipótese de argumen- tação, que é contradutiva, porque esta também é a negação de hipóteses retó- ricas e argumentativas; que é inferida e concluída por uma relação complexa de associações, explícitas e implícitas, o que gera um maior risco de inteligi- bilidade, mas que, em compensação, torna mais contrastado e diferenciado o argumento inicial, irónico ou não. Em síntese, a ironia é uma forma de po- tenciação do argumento, ao submetê-lo à lógica dos contrastes, que inclui o próprio contraste lógico da negação. www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 52 José Manuel Vasconcelos Esteves Os que não percebem uma ironia como tal são os que não conseguem captar esta tensão contradutiva e, por essa razão, são incapazes de realizar a inferência mínima, subtilmente complexa que a ironia desenvolve. Para além deste aspecto básico, toda a ironia, na rede de associações e problemas que invoca e provoca, imprime, numa correria louca, a necessidade de sucessivas negações contradutivas, como no exemplo anteriormente mencionado, onde à inversão da fórmula convencional, se sucedem hipóteses múltiplas de inteli- gibilidade da ironia, na demarcação de contextos que, por sua vez, engrenam contrastes e conflitos não linearmente resolúveis. O que a ironia oferece, em definitivo, é uma lógica da descoberta e da in- venção, em que numa relação do plausível e do implausível, surgem hipóteses argumentativas, que tornam ou não mais inteligível, quer dizer, mais proble- mático o que é dito. Não é de admirar então que a ironia surja na surpresa inesgotável de toda a linguagem, já que ela é o rosto e rasto da surpresa e do surpreender-se infin- damente: o ironista é tão só o que nos surpreende a surpreendermo-nos, por entre as frinchas que a linguagem abre e nas quais despontam inteligibilidades mínimas, ranhuras de sentido que se organizam em perspectivas. Através da ironia, a linguagem torna-se um campo minado de problemas, onde nem todos os detectores nos salvam em absoluto de uma explosão im- previsível, que acaba por fragmentar a perspectiva inicial e nos obrigar, como Ísis, a procurar os pedaços decepados de Osíris. Livros LabCom i i i i i i i i Capítulo 4 Do celibato à poligamia: ironia e interracionalidade All things seem mention of themselves and the names which stem from them branch out to other referents. John Ashbery No itinerário até agora feito em torno da questão da ironia e da sua ampli- ação para uma racionalidade argumentativa parece configurar-se, nos diversos momentos já analisados e numa metá-tese de concepção, que o que a ironia provoca é a necessidade de encarar, de um modo diferente, o que desde sem- pre se apelidou como racionalidade. O que a ironia nos propõe, no seu exer- cício retórico e argumentativo, é um novo enquadramento da racionalidade, vista à luz de uma perspectiva que a determina num contexto de problemas filosóficos, que já não se compadecem com a concepção geral e habitual de racionalidade. É claro, e meramente como precaução e preceito operatório, que dizer a racionalidade, nessa singularidade insular e unificada é, desde logo, colocar um problema que já teve diversas e heterogéneas formulações e cujo percurso se confunde, maioritariamente, com alguns dos mais determi- nantes pensamentos filosóficos. Face a isto, seria fastidioso cumprir o calvário de percorrer o que cada um deles encerra e abre, no entreabrir que é sempre uma nova proposta argumentativa e filosófica, para a partir daí procurar uma intencionalidade universalizante, apta a solidificar uma síntese. 53 i i i i i i i i 54 José Manuel Vasconcelos Esteves Ao invés, bem mais importante, numa perspectiva pragmática, é procurar, a partir de uma noção vaga, difusa de racionalidade, argumentar em prol de uma nova concepção, que atente aos problemas suscitados por uma compre- ensão retórica e argumentativa da linguagem e da filosofia. É devido a estas razões e no alinhavado de argumentos já aduzidos, que a ironia é a expressão clara da concepção de uma nova racionalidade argumen- tativa. Tradicionalmente, ela foi vista precisamente como actividade suspeita e subversiva de uma razão parousiada e em estado de asseidade, encontrando em si o seu próprio auto-fundamento e sendo fundamento, se não mesmo es- sência, de tudo; sendo, cumulativamente, os filósofos ironistas vistos como filósofos menores. Baseado neste conflito entre razão e ironia, o que se pre- tende aqui iluminar é que a ironia é o testemunho mais forte da eventualidade de uma nova racionalidade, que substitua a visão de uma razão inclusiva, as- sente numa ontologia da pertença, ou seja, uma razão sem contexto, que ex- cede e transcende todas as circunstâncias e contingências e que se auto-tutele como fundamento ímpar de si própria. Na árvore genealógica dos racionalismos, se há um tronco comum, seja a razão considerada essência universal do real, fundamento ontológico e antro- pológico ou simples faculdade, o que desde logo se destaca é a categorização da razão como quase monodológica, um absoluto que se exerce numa relação de inclusão permanente e que tende a dissolver todas as diferenças, contras- tes, num processo de homogeneização e pasteurização abafador de uma lógica argumentativa contextualizada. A esta racionalidade contextualizada arriscaria chamar Interrazão, ten- tando, com este neologismo, indiciar essa racionalidade que, no caso da ironia, só tem sentido na relação com um contexto e auditórios. Marcadamente, esta interracionalidade seria a manifestação de uma racionalidade relacional, cuja marca incisiva constituiria a necessidade de conceber qualquer argumentação sempre integrada num conjunto de referências, do qual a sua inteligibilidade é iniludível para perspectivação racional e argumentativa. Deste modo, nenhum argumento tem sentido fora de um contexto, a não ser que o fora de contexto se torne o contexto, o que impede a concepção grátis de uma razão de geração espontânea, habilitada a atingir uma universalidade que lhe fosse ínsita e natural. A exaltação de uma razão universal ou de uma universalidade racional torna longínquo e estranho o mundo do particular, do contingente, do sensível e passional e produz um dualismo, que se torna numa Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 57 monia pré-estabelecida", seja ela lógica, ontológica ou mesmo metafísica. Por conseguinte, a razão é uma cadeia de razões, que exerce uma simultaneidade argumentativa, que explicita e implicita contextos (101), que lhe dão forma e conteúdo, numa espécie de gestaltismo argumentativo, onde o fundo e a forma se inter-determinam e estabelecem um espaço de reconhecimento. E se atendermos a alguns dos aspectos ligados, na actualidade, às redes múltiplas de informação, que se expandem para além de um mero miradouro informativo, associadas às novas tecnologias de informação, mais verosímil se torna procurar uma nova discursividade racional e o que seria uma retórica informática, exemplificada na Internet, onde o auditório universal de Perel- man parece mega-virtualmente realizar-se (102). Até esta dimensão, desde sempre potencialmente inscrita na retórica, vem configurar cada vez mais a racionalidade como uma interracionalidade, relação de saberes e de opiniões dinamicamente instáveis, mas mais enriquecidos, e na qual o que é decisivo é a rede de relações e de circunstâncias inteligíveis que nela se inscrevem. A raci- onalidade e argumentação já não são a realização de uma essência ou natureza racionais, mas a presença de uma simultaneidade de problemas, que conden- sam numa cadeia interracional e exigem uma perspectivação e prospectivação permanentes, capazes de os enquadrar num sentido de pensabilidade e de lhes granjear probabilidades diversas de verosimilhança. Postulando todos estes aspectos, a interracionalidade é a expressão de uma racionalidade circunstancial e circunstanciada, no âmbito da qual a teoria ar- gumentativa só tem sentido quando ela se insere numa rede de argumentos e contextos, em que a validade é conseguida pela própria capacidade de am- pliar essa rede, mediante contextos associativos, o que leva a que cada ar- gumento seja tão mais eficaz quanto ele gere, em espiral, argumentação e contra-argumentação; quanto ele arrisque o esforço retórico de persuadir, não só como expressão de uma adesão mas igualmente, e sem qualquer cabotinice, de recusa. De modo basilar, a interracionalidade é assim a determinante de uma con- cepção retórica, argumentativa e, sem sacrilégio, pragmática da filosofia. In- timamente associado a isto, a interracionalidade apresenta-se como a única forma de perspectivar uma dimensão consistente da linguagem, pela sua rea- lidade reticular, que afirma e confirma a linguagem como interracional, ao ser uma rede de inteligibilidades e possibilidades de argumentação, pelas quais www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 58 José Manuel Vasconcelos Esteves passam todo os seus exercícios opinativo, conversacional, dialogante, lógico e filosófico. Em definitivo, não é possível conceber a linguagem, enquanto rede (103), a não ser numa relação permanente e amplificada de cruzamentos de razões, na particularidade de cada relação, onde conflui e se expressa não só uma dimensão binária de alternativa, mas confluências polinárias de sentidos e hi- póteses. Na verdade, em cada momento, na linguagem incorpora-se o ilimi- tado, propondo-se um processo de interpretabilidade que se prolonga de modo incansável. Argumentar filosoficamente é tão só privilegiar um momento e conferir-lhe a expressão máxima de razões possíveis, numa conjugação en- tre hipótese e verosimilhança, na inventabilidade de modos conceptuais, en- quanto simbioses de todos os modos retóricos de expressão, que reflictam, de modo pujante e até pungente, a rede de relações suscitadas pelo problema. Tem-se aqui uma perspectiva da interracionalidade como uma rede inte- ligível de possíveis, equivalente à rede da linguagem, numa unidade que é a junção entre o potencial e o actual, onde a inteligibilidade é o enredar-se cada vez mais na rede, passe o pleonasmo, de analogias/dilogias, identida- des/diferenças expressas em cada perspectiva e problema, o que explica o per- petuum mobile e o movimento parodoxal da linguagem e que cada argumento reinicia : a pluralidade inquietante e laboriosa das consequências que dele são extraídas, como das areias tumultuosas dos rios as pepitas de ouro. É neste quadro de interracionalidade que devem ser entendidas e integra- das algumas das concepções filosóficas gravitantes em torno do problema da retórica e da teoria da argumentação e cuja elucidação parece enraizar naquilo que se indicia através deste neologismo conceptualizante. De facto, a retórica e a teoria da argumentação são expoentes inquestionáveis da interracionali- dade, cujas propriedades se exprimem logo, na intensa e eriçada de problemas concepção de auditório que lhes é correlativa (104). A argumentação, en- quanto aposta no provável e no verosímil e na qualidade de probabilização de opiniões traz, no seu seio, uma necessidade de adesão intersubjectiva, prepa- rada para despoletar um nexo racional, no qual estamos todos integrados e, portanto, interracional. É neste contexto, que a nova retórica e a teoria da argumentação relançam, definitivamente, uma nova concepção do sujeito e uma nova intersubjectivi- dade, que poderá ter a sua matriz longínqua na conexão entre logos, pathos e ethos, apresentada por Aristó-teles e configurada por Perelman (105), para Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 59 quem o logos é sempre problemático e se mantém na esfera do particular, ordenado numa redescrição sensível e individual (106), e, por isso, gerando uma ética do contigentemente interrelacional. Na perspectiva da interracio- nalidade, todos os argumentos são expressão de uma relação, cujo sentido se revela no alcance particular que eles produzem, na eficácia que provocam face à capacidade de suscitarem uma adesão problematizante. É na amplitude máxima desta concepção, que a retórica, desde a sua fun- dação, implica uma visão centrada sobre as relações inter-humanas e explana o racional como presença de uma inteligibilidade partilhada. A retórica é, desta forma, o exercício de uma abertura ao outro e ao que no outro se apresenta como inteligível, na tríplice dimensão lógica, passional e ética, e de modo al- gum um fechamento sobre o outro, no seu real particular, como recriminava a filosofia platónica, que via na retórica uma manipulação objectivante do ou- tro. A teoria da argumentação desenvolve e endossa a uma inteligibilidade aberta e permeável à presença do outro como pólo de interracionalidade, ou seja, de uma discursividade que só tem eficiência num círculo retórico e ar- gumentativo (107), que está contido na interracionalidade, como factor da sua estruturação. Com efeito, nenhuma argumentação, nenhum discurso escapa à interacção conatural à linguagem e pode-se até dizer que a potencializa até ao limite crítico da sua inteligibilidade. A argumentação medeia um processo de relações racionais, numa negoci- ação contínua de possibilidades de entendimento, cujas validade e aceitabili- dade decorrem e emanam da força intrínseca dos argumentos e da superação das conclusões que eles sustentam. Apesar de a noção de auditório ter aqui cabimento, ela não esgota o sentido interracional mesmo, no tour de force pro- posto por Perelman, com a noção de auditório universal (108), que pretende atribuir ao filosófico a expressão duma universalidade racional, embora num grau fraco e condicionado pelos juízos dos auditórios particulares, que espe- lham nas suas circunstâncias uma possibilidade ou não de universalização. Pelo contrário, a ideia de Perelman de que "(...) les auditoires ne sont point indépendants; que ce sont des auditoires concrets particuliers qui peuvent faire valoir une conception de l’auditoire universel non défini qui est invoqué pour juger de la conception de l’auditoire universel propre à tel auditoire concret, pour examiner, à la fois, la manière dont il a été composé, quels sont les in- dividus qui, suivant le critère adopté, en font partie et quelle est la légitimité de ce critère (...)"(109), e que é, no fundo, uma proposta de uma interdepen- www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 62 José Manuel Vasconcelos Esteves siologia, etc.), mas que resvalam para sistemas sociais da linguagem, que são a própria comunidade enquanto mundo vivo. Emparedado nestes considerandos (118), sente-se que Habermas pretende salvar a face a uma filosofia da racionalidade, que se transfigurou multipla- mente, ao desejar garantir intacta uma possibilidade legítima de reconstrução "do conceito hegeliano da totalidade do contexto ético da vida"(119), como aproximação a uma experiência do ser e do viver, que se hipnotiza na sua própria mediação (120), numa dialéctica cada vez mais precária, apesar de restaurante de uma coordenação de acções, cujo reconhecimento é o de um interagir racional. A retórica seria, neste âmbito, quase indiscernível de uma práxis, da qual o último arrebatamento seria ético. É nesta tese que algum do pensamento de Habermas se refugia, trincheira de recurso para a preservação de uma racionalidade, ainda como uma unidade de contextos e sentidos, cuja configuração é resolúvel em sistemas de vida, ainda que socialmente determi- nados. Em abono da questão, o que Habermas sublima, e nesse sentido exorciza, é o fantasma da retórica como proliferação do possível e do que se apresenta contingente, nas relações que nela se constituem, e enquanto probabilidade de sugestão, persuasão e convicção, conceitos de algum modo inauditos ou até malditos para uma certa racionalidade, enfeudada ainda a uma perseverante e quase obstinada fundamentação de si própria. Apesar disto tudo, não é que, na plêiade e constelação de problemas que a filosofia de Habermas dissemina, não haja convites a uma inteligibilidade partilhada ou, mais adequadamente, "comunicada", o que, aliás, parece perpassar, de modo bem notório, pelo des- taque dado à "razão comunicacional", ainda que enredada no falibilismo que já de algum modo tocou e parece ter apodrecido a filosofia. (121) Assim, e resignadamente, a uma crítica forte da razão (iluminismo) sucedem- se críticas fracas da razão, inseridas na sua própria fabilidade, na construção de inteligibilidades contingentes, como o são todas, constituindo momentos adequados da construção de um campo de possíveis. A uma filosofia vigilante da razão (122), nessa vigília da atenção de quem desperta e fica de olhar hirto, quase alucinado, na força e no voluntarismo de se manter acordado, vigília encomendada por uma filosofia que, ainda que na penúria, quer recuperar e salvar a face perante "a ameaça de declínio"(123) que a assombra, abando- nado que está, definitivamente, o dilema exaltante entre epopeia e tragédia, entusiasmo e decepção, abdicando-se da visão messiânica da filosofia, ideia Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 63 que, tortuosamente, a leva à sua própria desvirtuação, já que a filosofia não pretende converter, mas sugerir pensabilidades, cuja exiquibilidade resulta da confrontação com o problemático, quer dizer, o permanente exercício do pro- vável e do que se afigura potenciador de contextos de inteligibilidade e que, por conseguinte, se exprime interracionalmente; portanto, a esta filosofia, vi- gilante da razão, sucede uma filosofia que abandonou a sua missão, de guardiã de um tesouro jamais encontrado, e se expõe à humilde tarefa de se dedicar à pesquisa artesanal de pequenos e esquecidos objectos. No entanto, e na filigrana precária da perspectiva que aqui se entalha, não se recorre à magia dissolvente dos neologismos que, pela sua novidade, res- gatariam imediatamente problemas antigos: um neologismo só tem sentido quando torna mais problemático o que através dele se pretende designar! Por- tanto, a interracionalidade não é o santo e a senha capaz de abrir e desbravar soluções mais ou menos miraculosas. Ela é tão só a proposta para uma com- plexidade que se interliga directamente à análise do poder argumentativo da ironia e a criação deste neologismo reflecte ainda a imprecisão inteligível que o torna intenção conceptualizante e conjectura retórica. A interracionalidade garante-nos, por um lado, que a ironia é a expressão duma arte de conjecturar, forma determinante do raciocínio e da expressão retóricos (124) e, por outro lado, da arte de construção de conceitos, derivada de um conjunto argumentacional que procura esgotar a probabilidade infe- rencial de cada um deles, num jogo de suposições e alusões, que têm ou não incidência no contexto e no conjunto elaborados. Com efeito, solicitar, num recurso de última instância, a presença de um neologismo, para reforçar argumentativamente um problema, não é conside- rar a falência retórica ou argumentativa dos conceitos anteriores, mas tão só dar conta da ligeira torção e desvio argumentativos que todas as perspectivas inauguram. Verdadeiramente, o recurso à interracionalidade decorre da exi- guidade de inteligibilidade que a relação entre ironia e teoria de argumentação evidenciava, num primeiro momento. E, por consequência, a ironia desdobra- nos, perante a sua análise e o seu uso múltiplo (literário, filosófico, etc.), um conjunto de questões que impelem à elaboração de conjecturas e desenvolvem um campo argumentacional. (125) Representando cabalmente estas questões, respingue-se mais um exemplo colhido nesse pomar inesgotável que é o livro Le comique du Discours, de www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 64 José Manuel Vasconcelos Esteves Lucie Olbrechts-Tyteca: "Dans un restaurant de second ordre, le patron vient demander à un client s’il est satisfait du repas. - Notre cuisinier, précise-t-il, était autrefois au service du roi de Suède. Quant à notre sommelier, il fut longtemps le dégustateur exclusif du roi Fa- rouk. - Hum... - Quel joli chien vous avez là!, poursuivit le patron déçu par le manque d’interêt que le client prête à sa conversation. C’est un basset, n’est-ce-pas? - Non, c’est un ancien saint-bernard." Nesta réplica primorosa se vê mais uma vez o que se pretende dizer por interracionalidade: a argumentação que percorre a estrutura da réplica é inte- grável num quadro de suposições e alusões conjecturais que demarcam pro- babilidades de entendimento da ironia. Numa lógica de multiplicação de pos- sibilidades que a ironia gera, a conclusão demonstrativa, que corresponde à tirada final do cliente e que do inverosímil ou do absurdo sugere um enca- deamento de conjecturas, que vão desde a definição de um ethos do cliente, -pessoa pouco sociável, etc.-, até à suposição de um descontentamento com a atitude lustrosa do patrão ou com a comida, ao arrepio da exaltação laudatória e propagandista do dono do restaurante. Deste modo, a interracionalidade é, bem visivelmente, um defrontar-se com razões interligadas e não com a Razão e, complementarmente, um cru- zamento de razões múltiplas que geram um efeito em cadeia, que só é deslin- dável na pluralização argumentativa, que é transformação de pontos de vista em argumentos, numa relação a outros argumentos, fomentando, por esta via, relações inteligíveis que são interracionais. É na linha máxima deste horizonte, que se organiza a necessidade de con- ceber a ironia como amostra acabada do interracional, enquanto convocação de uma relação inevitável de argumentos, numa correlação de perspectivas que se afrontam ironicamente. A ironia, ao instalar um grau de ridículo e exalar o vapor inebriante de algum humor, propõe um excesso, uma tensão hiperbolizante,-e alguma da ironia mais mecânica e infrutífera é exercida atra- vés de uma hipérbole, para melhor realçar o inverosímil-, que desdobra a ar- gumentação inicial em múltiplas hipóteses, na visualização de contrastes e diferenças de razões, que só têm sentido nas suas relações. A ironia, no meridiano do que se tem vindo a desenvolver, exprime uma sobre-dosagem argumentativa, que decorre do facto de todos os argumentos Livros LabCom i i i i i i i i Capítulo 5 Sujeito e ironia: – philosophia certa in re incerta cernitur Ut a dubitatione philosophia sic ab ironia uita digna, quae humana uocatur, incipit. Kierkegaard A interracionalidade, como matriz da realização de uma multiplicidade de relações argumentativas e inteligíveis, na qual a ironia se inscreve, aponta-nos, desde logo, para uma pesquisa do retórico como uma relação entre sujeitos, em todas as suas manifestações. De certo modo, a lição imediata a extrair de tudo o que foi visto até aqui é que uma concepção retórica e argumentativa da ironia não se enquadra numa filosofia do sujeito, tal como ela foi expla- nada por diversas filosofias modernas, nem numa filosofia do Hiper-Sujeito, cultivado e apregoado por algum idealismo romântico, mas numa filosofia dos sujeitos, que introduz no seu seio problemas plurais, na forma de conceber as relações inteligíveis entre sujeitos, quer no exercício de uma argumentativi- dade quer de uma discursividade e de uma passionalidade. O triângulo logos, pathos e ethos exprime logo, na Retórica de Aristóteles, um problema fundamental com que se depara toda a análise desenvolvida da retórica, a saber, o sujeito retórico não é uma natureza, substância, essência ou consciência, prévia e fundamental, mas a expressão de modos problemáticos 67 i i i i i i i i 68 José Manuel Vasconcelos Esteves de ser, por onde irrompe aquilo que poderia ser designado como o sujeito pro- blemático, enquanto sujeito de logoi, pathoi e ethoi (126), que colocam o su- jeito no âmago de uma relação problemática do neces-sário e do contingente, do universal e do particular e do verdadeiro e do provável, cuja elucidação é dada nas relações inter-humanas que determinam a retórica. Na sequência directa disto, o discurso retórico é o que "trai o sujeito"(127) numa relação com os outros e o expõe a uma relação múltipla, nos planos lógico-racional, passional e moral. A retórica não é só um exercício argumen- tativo, dialecticamente provável e verosímil, que garanta uma inteligibilidade partilhável, mas a presença de uma relação inter-humana, que habita subjecti- vamente, numa dimensão de carácter e passional, o orador e os ouvintes. Revelar-se por inteiro, expor-se à contingência de si mesmo, numa rea- lidade cruzada de inteligibilidades é, por excelência, a manifestação de uma forma precária de estar perante os outros e de neles procurar a convergência de todos os possíveis, como experiência inacabada e múltipla de nós próprios. A retórica, ao convocar o sujeito no seu todo, evita o reducio-nismo de algumas concepções do sujeito, valorizadoras ora da dimensão espiritual, ra- cional, passional, corporal, etc., ao mesmo tempo que o revela na sua multipli- cidade, por vezes esfacelada, não ficando refém de nenhuma delas e evitando a escassez do individual, acusação, várias vezes e de modo soberbo, lançada sobre o opinativo (doxístico), que a retórica encobriria e promoveria; criando, de modo oposto, uma abundância do sujeito, que assenta na ideia básica de que o discurso retórico e argumentativo implica o sujeito na sua totalidade, em todas as suas dimensões, não só como um indivíduo, que não é mais do que uma dessas dimensões do sujeito, mas como ser relacional, onde conver- gem relações sociais, passionais, morais, políticas, etc., num leque inumerável de cambiantes e ângulos. A retórica, tal qual como ela foi configurada por Aristóteles, é a reserva natural de existência de um sujeito, que não se expressa por uma unidade ob- tida a ferro e fogo algures, mas por uma multiplicidade de si próprio, já que ele só existe na permeabilidade aos outros, nos sentidos ramificados de uma ar- gumentação interracional, em que as razões se cruzam e se constituem como apelos aos outros, como sugestões de inteligibilidade que tornem os outros visíveis. Toda a retórica e teoria de argumentação são uma forma de tornar o outro visível, de facializar o outro (128), como presença de uma relação racional e argumentativa, geradora de probabilidades cada vez mais comple- Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 69 xas de interpretação e indutora de efeitos vários de inteligibilidade não só da discursividade mas também da passionalidade e eticidade que enriquecem e adensam, de modo tremendo, os sentidos do que se argumenta. Demonstração lídima destes mesmos pressupostos é o exemplo do argu- mento irónico. O argumento irónico injecta paixão ao lógico, recria subjec- tividades e expõe o ético. Nenhuma ironia, aliás como todas as figuras de estilo, na sua intencionalidade argumentativa, escapa à manifestação do pas- sional e do ético, enquanto reveladora da presença de sujeitos e da sua relação consigo próprios, com os outros e com o mundano. Por excesso, e enquanto negação, a negação irónica é também negação de sujeitos, de paixões e modos éticos de viver o que, por isso mesmo, vem mais uma vez justificar o facto de a contradição irónica ser muito mais ampla que uma contradição lógica e de nos forçar a encará-la como uma relação de negações, em múltiplos planos, cuja elucidação requer uma nova designação, como ela foi ensaiada, ainda que talvez de um modo fruste, como contradução. Nenhuma ironia, como nenhuma argumentação, pode apagar os vestígios do passional que a anima, e a retórica é a expressão vívida de uma argumen- tação geradora de formas vivas, oposto, de alguma maneira, ao amorfismo ló- gico. A retórica, enquanto ensaio vivo de pluralidades, reabilita as paixões e o ético, não como prólogo do absoluto ou de uma intimidade directa e imediata com o real, a vida ou uma consciência, mas como determinação de relações e presença de contingências, que se apuram numa perspectiva interracional dos sujeitos, detentores de discursos, paixões e atitudes. A paixão e a ética não são o que divide a razão (129), no sentido de conflitos de faculdades ou de actividades, mas o que exprime retorica e pletoricamente a diversidade do argumentativo, como relação de sentidos e inteligibilidades múltiplos. O argumento invadido de passionalidade e eticidade é um argumento re- tórico, ou seja, despoletador de um relação interracional, em que se cruzam formas e contextos que só são apreensíveis na transversalidade dos problemas que animam, num dado momento, um determinado conjunto de sujeitos que se interrelacionam. Deste modo, a retórica propõe-nos sempre a ideia de su- jeitos explícitos e de sujeitos implícitos, o que faz com que a inteligibilidade retórica se organize às custas dessa relação inter- e intra-subjectiva, que con- diciona, explicita e implicitamente, a discursividade retórica, na qual, não o podemos ignorar, se pretende também a exortação à acção, como renovação www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 72 José Manuel Vasconcelos Esteves probabilização de si própria, uma negação positiva, em que, simulando-se, se pode expor a novas possibilidades de pensamento, que não são estritamente racionais, e fomentar uma irradiação de problemas, num encadeamento de dúvidas e interrogações que têm, assim, um estatuto fundamental na própria lógica interna da racionalidade argumentativa. Deslumbrar-se com este poder simulante e interrogativo da razão é o tri- buto que a figura socrática exigiu, no risco consanguíneo entre a sua capaci- dade simulante e um uso dissimulante capaz de, num teatro de sombras, trair a própria confiança na figura e no pensamento socráticos. Numa esfera dife- rente, bem pelo contrário, a ironia, enquanto simulação, limita-se a exprimir um campo de hipóteses, que não são mais do que simulações do possível, como já foi visto, enquanto como dissimulação exclui hipóteses, reduz o es- pectro da probabilidade argumentativa e prepara uma situação de contradição incompatível e insuperável, que impede a partilha inteligível de perspectivas por pensar. De certa maneira, a dissimulação, entendida num sentido estrito, abre, se não mesmo escancara, a porta ao problema moral, perspectiva da qual comungaram muitas das grandes filosofias e à qual não permaneceu imune o próprio Aristóteles. No fundo, analisar a ironia como dissimulação é não percebê-la e colocá-la no cárcere da hipocrisia, tornando-a definitivamente ininteligível. Apesar de tudo isto, a ironia socrática coteja já, ainda que de uma forma não clara, o problema da interracionalidade, no sentido em que ela se revela como uma estrutura dialógica, numa tensão hetero- e auto-interrogatividade, isto é, numa expressão de relações de sujeitos, permeáveis a uma multiplici- dade de problemas, que só no seu exercício se revelam, no esplendor de todas as suas consequências. Se a ironia socrática é a procura e o levantamento topográfico de uma racionalidade que se auto-supere nas suas contradições opinativas e que permita gerar o vazio criativo de uma pesquisa, é porque ela assenta numa ideia de uma racionalidade partilhada, duvidando e sugerindo onde a certeza campeia, preparando através das negações e da dúvida, lucida e ludicamente expressadas, a abertura a uma inteligibilidade inovada de si pró- prio e dos outros (134). Assim, ao sublinhar o dialógico e o dialéctico, a ironia socrática evidencia a dimensão incontornável de uma relação entre sujeitos, determinável discursivamente, não exclusivamente enquanto consciências ou entidades autónomas e auto-suficientes racionais, mas como co-presença de conflitos e consensos racionais, passionais e éticos. Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 73 Habitada por esta perspectiva, a ironia socrática é uma arte de simular possibilidades, enquanto mobilidade de argumentos, não como expressão sa- bática de uma irrisão, mas como equalização diferenciada de perspectivas, na circularidade de argumentos que se cruzam e, assim, constituem uma inteli- gibilidade argumentativa. O diálogo, na sua dupla tensão dialéctica e conver- sacional, sublinha a presença de sujeitos que, nas mutações inferenciais dos seus diversos momentos, podem até trocar de papéis e, ironia das ironias, con- cluirem pelo contrário do que começaram, quase atingindo a suprema farsa, como é o caso do Protágoras (135). Se, a dado momento, Protágoras acaba "socrático"e Sócrates "protagoriano"é porque entre eles, e na oposição que os afasta, se intercala a ironia, como possibilidade interracional de procurar, nesse substituto de última hora, melhor providenciar para o desenlace final de uma conclusão que, ainda assim, está contida no sorriso quase imperceptível de Sócrates, na linha do jogo com o imperceptível que o ironista pratica. Legitimamente, poder-nos-íamos interrogar se Sócrates é o que persuade ou o que se persuade, já que a ironia, como arte da alusão, é também a re- velação de uma nova possibilidade de nós próprios, pois o ironista, mesmo quando aplica "a estocada final", é o que se torna cúmplice de si próprio, no sentido em que ele se vê como ironia também de si próprio. Neste prisma, Sócrates é o pseudónimo irónico de um Sócrates que tomou a nuvem por Juno, na versão de Aristófanes, ou Juno pela nuvem, na versão de Platão. Ao fazê-lo, num e noutro caso, a ironia socrática perdeu-se incipiente no estado nebuloso donde veio, alienando uma potencialidade que, decerto, por a assemelhar ao poder corrosivo-crítico dos sofistas, alardeando fulgores de sofismas que lembravam, desagradavelmente, numa certa óptica, o mala- barismo retórico dos sofistas, pelo que era forçoso amordaçá-la e açaimá-la, desvitalizando-a e retirando-lhe a dimensão ímpar e sobressaída que Sócrates lhe conferira. É perante esta virtualidade, logo atrofiada, de a ironia socrática propor a descoberta de uma racionalidade simulante, que constitui o seu ex-libris, a qual, no seu alastrar, acaba por se confundir com a própria racionalidade, numa identificação que desvela também o poder dialéctico-argumentativo da razão, que Aristóteles, na sua ambição de estabelecer sistematicamente um mapa-múndi dos saberes, o qual vai servir de paradigma quase per omnia saecula, vai separar a Lógica, a Dialéctica e a Retórica, em estado siamês em Sócrates, ordenando e hierarquizando os diversos saberes e desterrando a www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 74 José Manuel Vasconcelos Esteves ironia para o seio da retórica, embora com um pé na poética, reduzindo-a a uma dimensão anã, ora como quase figura de estilo, ora mero figurino retórico. (136) Aristóteles acabará por ficar sempre hesitante na apreciação que faz da ironia, quer na Poética quer na Retórica, remetendo o ironista para um meio termo entre o inculto, inimigo de gracejos (agroikos- terreno não cultivado) e o bobo (bomolochos), que procura ter graça a todo o transe. O ironizador é o gracejador de bom gosto ou espirituoso (eutrapelos) e, por isso, mais virtuoso, pois é o meio termo (mesotes) entre ambos. Por outro lado, a ironia assenta na huponoia, na alusão indirecta, numa contenção de linguagem que faz da ironia uma insolência não bárbara, mas civilizada, aferindo-se a civilização por esta capacidade de exprimir o humor ironicamente (137). No extremo, a ironia cataliza esse poder da linguagem que se substancializa na capacidade de dizer alusivamente, forma educada de dizer. O ironista é o sugestor, o que sugere e seduz, numa referenciação indirecta do que diz e, num lance espirituoso, capaz de criar conivências, cumplicidades. Assestando baterias para uma determinação humorística da ironia, em- bora não a restringindo a isso, Aristóteles despotencializa a ironia socrática, confinando-a a um exercício de civilização e de sociabilidade. De facto, se a ironia socrática, na sua febre extrema, se poderia apresentar como insociável, ao gerar rupturas e agudizar conflitos, Aristóteles, de modo oposto, explora um dos aspectos que marcam a ironia como forma de organização de uma comunidade e destaca nela a superior característica da civilidade. O ironista, ilusionista e alusionista, confere à sua atitude uma intenção de relações que se exprimem numa cumplicidade, que assenta numa inteligibilidade partilhada, já vista como uma das dimensões fortes da interracionalidade, numa sugestão de problematicidade, mas sem lesar a simpatia básica de quem conversa, o pathos difuso que predispõe a uma conversação ou a um diálogo. Abrangendo tudo isto, a ironia passa a ser o factor de coesão entre os sujeitos, sem abdicar de citar as diferenças, e de fortalecimento das relações entre os sujeitos, ao permitir-lhes identificações e diferenciações, sem expor chagas virulentas, nesses ligeiros golpes da arte do florete, fomentando o diá- logo e a perspectivação dialéctica, como xadrez de hipóteses, como formas de construção de sociabilidades. Na verdade, a ironia é, para Aristóteles, e à boa maneira dos gregos, a manifestação de uma relação entre sujeitos, não como indivíduos, mas como Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 77 de prováveis, a descoberta literária do retórico, mediante a negação irónica e anti-romanesca do D.Quijote. Sob um certo olhar, depois dele, todos os romances já são anti-romances, propondo-se inventar permanentemente o ro- mance e pretendendo fazer o romance dos romances, como acaba por ser o D. Quijote. É este estado de sítio, inaugurado pelo "cavaleiro da triste figura", que se constitui na presença da ironia que o atravessa, na simulação em que se toma o real por ficção e a ficção por real, ironia que aparece não só como uma técnica literária ou, de modo esparso, nalgumas figuras de estilo, mas como logos, pathos e ethos de todo o romance. Desta forma, e em consequência disto, a formação do sujeito moderno decorre claramente da tensão irónica que todos nós, simulantes e simulações de quixotes, apreendemos e que nos faz ser, a partir dela, o que há de mais diverso e problemático em nós. Pensar e viver ironicamente é tornar-se personagem imaginário de si próprio, potencializar as hipóteses de ser; contrabandear realidade, fingindo-a, e legalizar ficções, realizando-as. O homem moderno é, por isso, o que já não pode coincidir consigo e com a realidade e, doravante, já não tem um destino esperado ou anunciado, como na tragédia clássica, mas todos seus destinos são desconhe- cidos e imprevisíveis : a ironia é fingir que se os conhece e inventá-los, na multiplicidade de os tornar inteligíveis na retórica do real que é o romance. Assim, o longo percurso e processo de redução da retórica às figuras de es- tilo e dentro destas a hiper-valorização da metáfora em detrimento da ironia, acabou por produzir o efeito contrário, ao tornar a ironia num capital exce- lente para a entrada na modernidade, no sentido em que a sua relegação para um plano secundário e, de algum modo, quase anti-social, acabou por lhe im- primir uma potencialidade acrescida de ser utilizada e concebida como uma forma e atitude provocatórias de novos modos de pensar, de ser e de dizer e de através deles induzir e introduzir novas relações entre sujeitos, numa pers- pectiva que confirma a interracionalidade de que se tem vindo a falar. Mesmo quando desvalorizada e escorraçada, mesmo quando vista como um jogo de salão (144), cultivada através de uma inteligência mundana e frívola, que se manifesta em aforismos contraditórios, apotegmáticos, de sentença breve, ou epigramáticos, pequenos poemas satíricos ou gracejos mordazes, assim como trocadilhos de sentido e de som, num jogo de cabra-cega entre o sério e o lúdico; mesmo então a ironia, pelo seu espírito de dúvida, de contradição, de suspeição, de instabilidade e pelo multiplicar de sentidos das relações entre www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 78 José Manuel Vasconcelos Esteves sujeitos, nunca deixou de ser o sinal possível e intenso de uma interraciona- lidade, desenhando e recortando relações variadas de inteligibilidade e defla- grando, por via da dúvida e da interrogatividade, novos modos de recriar e perspectivar problemas. Embora na constituição da modernidade, e enquadrando esta na "desco- berta"do literário, a ironia acabe por ser, sobretudo, uma ironia da e na litera- tura, convém lembrar que não se restringe a uma simples perspectiva literária. Em autores tão díspares e referidos de modo aleatório, Swift, Lichtemberg, Wilde, Gogol, Camilo, etc., a ironia e o humor são métodos plenos de reestru- turação de ideias e manifestações polémicas de uma argumentação, quer por via do romanceável quer pelo ironizável. E se, nesta prospecção apressada, lembrarmos a visão irónica com que Voltaire brinda o optimismo leibniziano, desmontando-o com a precisão e a cirurgia típicas da ironia, assim como, por arrasto, a inocência natural rousse- auniana (145), vemos que a ironia não foi por certo uma mera figura de estilo ou um malabarismo de salão, mas continuou a ser o crisol argumentativo de uma racionalidade aberta, precária, plural e, acima de tudo, uma racionalidade de relações de pessoas e de argumentos. Relacionado com isto mesmo e apoi- ado nessa figura magna de uma ironia militante, cuja fama alastrou por toda a Europa, poder-se-ia até dizer que a ironia de Voltaire é um modus operandi do iluminismo e que, em alguma dimensão, o iluminismo e o racionalismo crítico se produziram através de uma negação que foi, pela sua aproximação ao incongruente e ao absurdo e pelo lado lúdico, irónica. (146) Ironizar é, destarte, uma estranha forma de iluminar-se, de arrancar más- caras, dogmas, crenças e preparar uma tolerância, que brota directamente de uma libertação, como já vira Sócrates, proporcionada pela ironia. Toda a iro- nia é uma forma de libertação e uma das formas mais acabadas de liberdade de pensamento e de linguagem. Donde a sua estreita ligação ao iluminismo e o seu inesgotável papel de transformação dos modos de relacionamento entre os seres humanos. A ironia revela ser assim uma forma de tolerância do outro, no sentido em que, dando conta das diferenças e dos conflitos, não os absolutiza ou fanatiza, mas implica e implicita os outros, mesmo os ironizados, dando-lhes uma inte- ligibilidade negativa. O conflito irónico, pela sua contingência, é o do diálogo e o que civiliza, como vimos em Aristóteles, o que integra numa pluralidade de opiniões, de argumentos, de atitudes e emoções. Ao contrário do humor, Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 79 que cria uma unanimidade e do sarcasmo, que fanatiza e torna o outro "ví- tima", a ironia, mantendo as diferenças, convoca a inteligência do outro, do ironizado e mesmo daqueles que comungam da ironia e do ironista, criando uma inteligibilidade partilhada. No fundo, a adesão ou a réplica a uma ironia impõem uma subtileza de inteligibilidade, que não se compadece com o pseudo-unanimismo que o hu- mor pode provocar, nessa sociabilidade imediata e efusiva de algo que não é questionante e problemático e do qual a anedota é exemplo ímpar, nem com a virulência do sarcasmo, cujo despotismo e violência é excluidor do outro e das suas razões. A ironia é o que, na preservação das diferenças e dos pro- blemas, aproxima os que se opõem, reconhecendo no outro um diferente inter pares, alguém que participa na abertura a novos níveis de pensar e argumentar; alguém que é convidado a participar na inteligibilidade irónica do problema. Gerindo conflitos, demarcando perspectivas, o ironista não encerra o opositor num gueto, mas sugere-lhe possibilidades de réplica; fomenta, na inteligibi- lidade precária que enuncia, uma multitude de réplicas possíveis, já que toda a ironia ficaria incompleta se se auto-esgotasse em si própria e servisse unica e exclusivamente para a concretização de uma subjectividade absoluta, de um hiper-sujeito, de um hiper-eu, que ensaiasse na ironia o absurdo de todo o mundo e o infinito de si próprio, como o fez a ironia romântica. Neste processo de delinear e caracterizar, nalguns momentos e concepções mais relevantes da ironia, o que se poderia designar por uma matriz de inter- racionalidade, cuja dimensão é múltipla e engloba relações entre sujeitos, em todos os aspectos, lógicos, passionais e éticos, deparamo-nos com uma sub- jectividade relacional implícita à ironia, que a tornou marca decisiva e notória nas diversas concepções de sujeito, que se reivindicaram, como vimos, da dis- tância que a ironia interpõe em todos os olhares que incidam sobre a realidade, distanciamento e estranhamento propícios à simulação do negativo, criador de uma liberdade e libertação que exaltariam uma consciência fulgurante de si. É sob o jugo desta perspectiva, que a ironia romântica é o corolário ine- vitável da concepção moderna do sujeito, que se apresenta impregnado abso- lutamente de si mesmo, e que se afirma nas constantes negações, fornecidas pela ironia, num nihilismo militante como raiz de uma absoluta liberdade cri- adora, pois só o nada e os nadas exibem a possibilidade de uma plenitude criadora. Na ironia romântica, a concepção de sujeito extremiza-se, violen- tando a perspectiva retórica da linguagem, distorcendo a ironia, concebida www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 82 José Manuel Vasconcelos Esteves estrutura de interracionalidade. Todavia, se a ironia coloca a tónica sobre o indivíduo versus o sistema, sobre a existência versus a ideia, então ela já não é a sobredeterminação de todas as condições, enquanto negações relativas, de um absoluto em realização dialéctica, mas a exploração de possibilidades que se imprimam numa realidade e numa existência (157) e que sobressaiam como modos irónicos, isto é, distâncias cruzadas de pensar e vivenciar o que acontece. A subjectividade irónica kierkegaardiana, ainda que caminhe em pontas no palco fascinante da ironia romântica, despede-se já desta, preparando uma abertura a um sujeito existencial, cujo destino inapelável é aproximar-se de forma contingente da realidade, não encarada como uma essência fenomenica e dialecticamente explanada, mas como o atrever-se à singularidade e à pre- sença do indivíduo, na diferenciação de instantes e estádios. Na linha disto, Kierkegaard amanha alguns dos terrenos importantes da filosofia posterior, apesar de, e ao contrário da sua inquestionável presença no existencialismo, a sua concepção de ironia acabe por se tornar difusa, reconhecendo-se, porém, que algum existencialismo se proteja na sombra de um certo espírito irónico, no sentido em que ele foi, ao longo dos tempos, a ruptura com o sistemático e com um racionalismo proposicionalista, fundamentalizador e verificacionista e, por estes motivos, desse ensejo e cobertura a uma concepção mais rica e plural do racional e do sujeito, retendo, nos seus pulmões, o ar inicial de um sujeito que não é só logos, mas por igual medida pathos e ethos. Interligado com os aspectos anteriores, é claro que a integração do passio- nal, o que mais fora excluído no sujeito cartesiano, no racional e a reabertura desta relação passam, ainda que numa perspectiva generalizante, pelo contri- buto de Kierkegaard, enquanto reperspectivação do indivíduo, nesse extremo de paixão ou de paixão ao contrário que é a solidão. Se a ironia não é solidão, embora influa distâncias, não mais também a solidão é a absoluta ironia de um sujeito arrebatado pelo nada, na ascensão de furacão que é a ironia romântica. A solidão kierkegaardiana, cujo avatar e figura é o Isolado, seja ele D. Juan ou Abraão, extremos e limites de uma ironia que se transfigura e desfigura no absurdo, desenha–se e decalca-se fortemente na prioridade do indivíduo, como teatro do existir e como inteligibilidade permanente de si próprio, cuja determinação provável é ainda razão da ironia e ironia da razão. A ironia, pro- posta de absurdo, aparece assim como a reductio ad absurdum do indivíduo Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 83 que, mostrando a impossibilidade de se fundamentar, se expõe nas negações em que tange no que há de mais absurdo e incomum. O indivíduo kierkegaardiano é, por esta via, cisão, perturbação do Abso- luto, rasto cadente de uma visão que já não suporta a luz violenta e desabri- gada do que pensa ou sente, mas que redime num único instante, estético, ético ou religioso a probabilidade díspar de existir-se. Por consequência, o ironista, para Kierkegaard, vive numa volaticidade e fragilidade, pois está e existe sempre de modo hipotético e conjuntivo, na redescrição intensa e ful- gurante de si mesmo. A subjectividade kierkegaardiana já não é um processo cognitivo de uma consciência, em franca assunção de si, mas é a debilidade intrínseca de um modo de vida que se aproxima da realidade pelo lado mais perigoso, mais incerto e que, por tal, começa a viver quando se descobre in- fectado de ironia e se consegue determinar apurando hipóteses de ser. A ideia de que a ironia não é a verdade mas o método, embora enraizada na apologé- tica socrática, parece, por um lado, libertar-se definitivamente do engodo e da fascinação especulativa da ironia, que o romantismo apregoou sabaticamente e na qual Solger foi voz pontificada (158); e, por outro lado, parece destacar uma função de mediação e de preparação para uma inteligibilidade a desco- brir ou, ainda de uma subjectividade que é um espelho imenso de instantes, não porque a sua vida seja uma mera fileira de sucessos fragmentários, mas porque nela se exprime uma inteligibilidade sucessivamente redescrita e, por essa razão, sucessivamente mais inteligível. A ironia é, deste jeito, uma forma de apropriação do mundo e de si mesmo, suscitando desafios ou problemas, alternativas, numa policroma escolha de possíveis, onde o modo conjuntivo prevalece sobre o modo indicativo, inseminando-se um no outro, no sentido em que a ironia é uma forma de liberdade imprescindível ao sujeito. É na linhagem desta concepção que, aparentemente em contra-mão, se vem instalar e projectar o olhar invocador de Rorty, ao recentrar alguma da perplexidade filosófica actual na figura do ironista liberal, que surge como co- rolário deste processo de entronização de uma subjectividade que, mais do que um esgar ou um olhar vesgo sobre o real, se apresenta como uma rede de re- lações inteligíveis, dadas em campo aberto e contingente, condição eminente do "ironista". (159) No entanto, e sem forçar a nota, é notório que a figura do ironista liberal parece relevar ainda da própria visão que Kierkegaard vai desenvolvendo da ironia como "vida autocriada e autónoma"de um sujeito, nas palavras de Rorty www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 84 José Manuel Vasconcelos Esteves sobre Kierkegaard (160). O problema, alheio a Kierkegaard, e que Rorty pre- tende esclarecer, é a ligação entre o privado e o público; o individual e o social; a ironia e a solidariedade, garantindo por este meio, uma distensão entre a ironia, exponenciação do indivíduo, e o liberal, expoente do social e do solidário. Desta conjugação, e dos seus riscos e consequências, se ilu- minam as ideias centrais do livro Ironia, Contingência e Solidariedade, que regressa a uma concepção de ironia que, inevitável é dizê-lo, se invoca de um socratismo-light, assente na ideia de que a ironia é um problema da relação com as suas próprias crenças e saberes e, por outro lado, é um problema de relação com os outros, sendo assim público, social e ético-político. No fundo, Rorty encerra o ciclo da ironia socrática ao agendar a ironia como uma forma de liberalismo, no sentido em que este conceito, apesar de estranho a Sócrates, impende como proposta de organização e relação do privado com o público e, por isso, retém, e torna-se talvez refém, do problema socrático de uma aretê, como expressão do individual no público. Na verdade, a primeira ideia base, e que resulta da inusitada adjectivação proposta por Rorty, é que só há verdadeiramente um tipo de liberalismo, o da ironia, que é sempre liberal. A ironia e o liberalismo são assim, estreita- mente, a contingência de todas as perspectivas, na medida em que cada uma delas não exprime "uma outra realidade", pelo que o nome de cada coisa é a própria coisa, na perspectiva em que a linguagem não é a roupagem indevida de uma qualquer essência colocada metafisicamente alhures, utopica ou ató- picamente, na mesma forma que a história não é o percurso ou o calvário de um absoluto. Este nominalismo não se restringe a um flatus voci, o que seria reduzir a linguagem a uma materialidade mínima, mas contém uma inteligibi- lidade expansiva, que se multiplica e probabiliza nos diversos contextos e nos seus heterogéneos usos. O nome não é uma entidade ou uma película aderente, mas um possível, uma hipótese de inteligibilidade, determinada numa rede de razões e perspectivas que desencadeiam a interracionalidade, incorporada em horizontes amplos de relações entre indivíduos, co-presentes e contemporâ- neos de um conjunto de sociedades, crenças, costumes e perspectivas, sempre encaráveis de uma forma hipotética e conjuntiva, o que constitui a possibi- lidade permanente de redescrição dos fenómenos e da sua inteligibilidade, indiscerníveis entre si. Se a redescrição é, por excelência, o método do ironista é porque ela é uma porta aberta para o inteligível (161) que se apresenta num contexto de Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 87 No entanto, o que afasta incomensuravelmente a ironia kierke-gaardiana da rortiana é que a primeira desemboca na figura do isolado, vendo a contin- gência como insularidade entranhada de solidão, enquanto a segunda pretende assentá-la na solidariedade, perspectivando uma contingência do relacional. A este propósito basta citar a frase de Kierkegaard, "Mas há tão pouca unidade comunitária num conjunto de irónicos quanta honestidade num Estado de la- drões."(166), para imediatamente percebermos que a filosofia kierkegaardiana da ironia vê nesta um problema metafísico do indivíduo, o que não se concilia com "o nominalismo e historicismo"advogados por Rorty. Apesar desta divergência de fundo, há uma linha chave comum a eles, apoiada na definição de Rorty do método do ironista, isto é, a redescrição, linha que resulta do facto de ambos verem a ironia, para além da metáfora, como uma forma importante e talvez a única redescrição possível, para um, da subjectividade, para o outro, da contingência. Em síntese, o ironista não pode ter, como diz Kierkegaard, nenhum an sich, o que nos coloca num er- rático existir e pensar, que nenhum vocabulário terá o condão de finalizar ou solidificar. Assim, a redescrição, metafórica ou irónica, produtora de uma auto-criação, como o sublinha Rorty, é uma estranha transumância de sentidos e contrastes que facilmente perfuram a solidarieda-de se "o que liga as sociedades são vo- cabulários comuns e esperanças comuns."(167) Perante isto a pergunta que mais carece de resposta é a seguinte: entre o público e o privado, como é que se faz o comum? Se é este o problema que anima as linhas várias da argumentação rortiana, ele é também o que permanece, ainda assim, mais incomum, na periclitante e contingente argumentação apresentada. Facilmente encantatória, a ligação entre a ironia e liberalismo procura exaltar uma utopia liberal, como forma contingente de relação entre o público e o privado, numa ética do precário, em que o humano surgiria, não como Atena da cabeça de Zeus, mas como fruto de um experiência de si próprio, engrossada pela contingência múltipla e plural dos possíveis de si mesmo. A ironia será então o aproximar-se ao que há de mais humano, como "uma rede de pequenas contingências que se interanimam"(168) e que, "no pequeno de si próprios", encontram a escala de grandeza necessária à presença fértil e viva de uma comunidade. O que Rorty pretende dizer é que nunca o meta- físico ou o teórico se ocuparam com o pormenor e criaram uma ciência do www.livroslabcom.ubi.pt i i i i i i i i 88 José Manuel Vasconcelos Esteves pormenor, como pretendia Flaubert; que nunca falam ou falaram do indiví- duo, -Fulano, Sicrano-, ao invés do romance, o que faz com que a ironia só se consuma definitivamente quando ela exprime "o pequeno romance"de um indivíduo, sendo assim condição de todos indivíduos, enquanto personagens de uma realidade, que não é mais do que uma teia de pequenas contingências e coincidências. Submeter-se a esta perspectiva, e invocar o "território poético" do romance como derradeira forma de inventar soluções, é desviar-se de uma ironia argumentativa para uma ironia existencial, que releva directamente de um problema de existência e que invoca uma solução irracional onde pretende racionalizar. A ironia não é a escatologia de um qualquer desespero ou ame- açante paralisação, mas continua a ser tão só uma das formas de procurar descrever problemas, não garantindo um conhecimento ou vida extras, nem trazendo, por si própria, a garantia de estar mais próxima de uma solução ou de uma posição certa, como um brinde e um bónus finais. A ironia expõe modos e possibilidades de argumentar e não nos prepara para a beatitude de uma utopia da contingência, ideal de convergência de todas as possibilidades de ser e de pensar, generosamente equivalentes, profeticamente equidistantes. O equívoco central de Rorty é o de focar a figura do liberal ironista como interessado na perfeição (169), correspondente a um trabalho de auto-criação de uma subjectividade, o que restringe, em diversos aspectos, a ideia de in- terracionalidade subjacente à teoria da argumentação e à ironia que, embora fonte de uma longa concepção do sujeito, só aparece nitidamente como ar- gumentação, quando se insere numa perspectiva inter-racionalista, em que a racionalidade é a rede fina de argumentos que se imbrincam uns nos outros, não só através da malha estreita das inferências lógicas, mas também, e so- bretudo, das inferências retóricas e das suas múltiplas e contraditórias formas. O homem é, por consequência, um ser de relações e o humano a expressão sublinhada de uma vaga e maré de situações de inteligibilidade, em aberto e problematicamente, partilhável. Não é de admirar que do "eu"ao "nós"a ironia seja um caminho eriçado de armadilhas, onde alguns acabam por perecer, pois a ironia não fornece energia e munição suficientes a uma qualquer autonomia do sujeito e do eu, embora já saibamos o poder que ela teve na elaboração e reelaboração das concepções do sujeito, prenunciadoras do seu próprio esgotamento, porque incapazes de abrir os pulmões na sua totalidade à noção de um sujeito relacional e interracional, Livros LabCom i i i i i i i i Ironia e Argumentação 89 O ironista é, por fim, o que multiplica a possibilidade de ser "nós"e o que nos mostra que temos de partir dos vários sítios onde estamos, pois onde estamos é uma pátria enorme de múltiplos e diferentes estares, inteligivel e argumentavelmente, partilháveis. E como para um peixe o mar não é mar e a terra é o mar, o ironista é o que baralha essa inteligibilidade para voltar a compreender e jogar. Nesta cartada, considerar-se a ironia bluff ou batota é ter mau perder e violentar a generosidade e a abundância do possível, esse piscar de olho e convite à realidade que nos espera impacientemente. www.livroslabcom.ubi.pt
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