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Guias e Dicas
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Vol 14 A historia do movimento psicanalitico, artigo sobre metapsicologia e outros trabalhos, Manuais, Projetos, Pesquisas de Psicologia

história da doutrina de freud

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2011

Compartilhado em 28/02/2011

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Baixe Vol 14 A historia do movimento psicanalitico, artigo sobre metapsicologia e outros trabalhos e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Psicologia, somente na Docsity! A história do movimento psicanalítico, artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos VOLUME XIV (1914-1916) Dr. Sigmund Freud A HISTÓRIA DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO (1914) NOTA DO EDITOR INGLÊS ZUR GESCHICHTE DER PSYCHOANALYTUSCHEN BEWEGUNG (a)EDIÇÕES ALEMÃS: 1914 Jb. Psychoan., 6, 207-260. 1918 S.K.S.N., 4, 1-77. (1922, 2ª ed.) 1924 G.S., 4, 411-480. 1924 Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. Pág. 72. 1946 G.W., 10, 44-113. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: “The History of the Psychoanalytic Movement” 1916 Psychoan. Rev., 3, 406-454. (Trad. A. A. Brill.) 1917 Nova Iorque: Nervous & Mental Disease Publishing Co. (Série de Monografias Nº 25). Pág. 58. (Mesmo tradutor.) 1938 Em The Basic Writings of Sigmund Freud. Nova Iorque: Modern Librar. Págs. 933-977. (Mesmo tradutor.) considerada como tendo início com o método catártico ou com a modificação que nele introduzi; menciono esse detalhe pouco interessante simplesmente porque certos adversários de psicanálise têm o hábito de lembrar vez por outra que, afinal de contas, a arte da psicanálise não foi invenção minha e sim de Breuer. Isto só acontece, naturalmente, quando seus pontos de vista permitem que eles vejam na psicanálise algo merecedor de atenção, pois, quando há uma rejeição absoluta, nem se discute que a psicanálise é obra somente minha. Que eu saiba, a grande participação que teve Breuer na criação da psicanálise jamais fez cair sobre ele o equivalente em críticas e injúrias. Como há muito já reconheci que provocar oposição e despertar rancor é o destino inevitável da psicanálise, cheguei à conclusão de que devo ser eu o verdadeiro criador do que lhe é mais característico. Alegra-me poder acrescentar que nenhuma dessas tentativas de minimizar meu papel na criação desta tão difamada psicanálise jamais partiu de Breuer, nem contou sequer com seu apoio. As descobertas de Breuer já foram descritas tantas vezes que posso dispensar um exame detalhado das mesmas aqui. O fundamental delas era o fato de que os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão mas foram esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, que consistia em fazê-los lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse); e o fragmento de teoria disto inferido, segundo o qual esses sintomas representavam um emprego anormal de doses de excitação que não haviam sido descarregadas (conversão). Sempre que Breuer, em sua contribuição teórica aos Estudos Sobre a Histeria (1895), referia-se a esse processo de conversão, acrescentava meu nome entre parênteses, como se coubesse a mim a prioridade desta primeira tentativa de avaliação teórica. Creio que, na realidade, esta distinção só se aplica ao termo, e que a concepção nos ocorreu simultaneamente e em conjunto. É sabido também que depois de Breuer ter feito sua primeira descoberta do método catártico deixou-o de lado durante anos e só veio a retomá-lo por instigação minha, quando de volta dos meus estudos com Charcot. Breuer tinha uma grande clientela que exigia muito dele; quanto a mim, apenas assumira a contragosto a profissão médica, mas tinha naquela época um forte motivo para ajudar as pessoas que sofriam de afecções nervosas ou pelo menos para desejar compreender algo sobre o estado delas. Adotei a fisioterapia, e me senti completamente desanimado com os resultados desapontadores do meu estudo da Elektrotherapie de Erb [1882], que apresentava tantas indicações e recomendações. Se na época não cheguei por conta própria à conclusão que Moebius estabeleceu depois - de que os êxitos do tratamento elétrico em doentes nervosos são efeito de sugestão -, foi, sem dúvida alguma, apenas por causa da total ausência desses prometidos êxitos. O tratamento pela sugestão durante a hipnose profunda, que aprendi através das impressionantes demonstrações de Liébeault e Bernheim, pareciam então oferecer um substituto satisfatório para o malogrado tratamento elétrico. Mas a prática de investigar pacientes em estado hipnótico, com a qual me familiarizou Breuer - prática que combinava um modo de agir automático com a satisfação da curiosidade científica - era, sem dúvida, incomparavelmente mais atraente do que as proibições monótonas e forçadas usadas no tratamento pela sugestão, proibições que criavam um obstáculo a qualquer pesquisa. Há pouco tempo nos foi dada uma sugestão - que se propunha representar um dos mais recentes desenvolvimentos da psicanálise -, no sentido de que o conflito do momento e o fator desencadeante da doença devem ser trazidos para o primeiro plano na análise. Ora, isto era exatamente o que Breuer e eu fazíamos quando começamos a trabalhar com o método catártico. Conduzíamos a atenção do paciente diretamente para a cena traumática na qual o sintoma surgira e nos esforçávamos por descobrir o conflito mental envolvido naquela cena, e por liberar a emoção nela reprimida. Ao longo deste trabalho, descobrimos o processo mental, característico das neuroses, que chamei depois de “regressão”. As associações do paciente retrocediam, a partir da cena que tentávamos elucidar, até as experiências mais antigas, e compeliam a análise, que tencionava corrigir o presente, a ocupar-se do passado. Esta regressão nos foi conduzindo cada vez mais para trás; a princípio parecia nos levar regularmente até a puberdade; em seguida, fracassos e pontos que continuavam inexplicáveis levaram o trabalho analítico ainda mais para trás, até os anos da infância que até então permaneciam inacessíveis a qualquer espécie de exploração. Essa direção regressiva tornou-se uma característica importante da análise. Era como se a psicanálise não pudesse explicar nenhum aspecto do presente sem se referir a algo do passado; mais ainda, que toda experiência patogênica implicava uma experiência prévia que, embora não patogênica em si, havia, não obstante, dotado esta última de sua qualidade patogênica. Entretanto, a tentação de limitar a atenção ao fator desencadeante conhecido, do momento, era tão forte que, mesmo em análises posteriores, cedi a ela. Na análise da paciente a quem dei o nome de “Dora” [1905e], realizada em 1899, tive conhecimento da cena que ocasionou a irrupção da doença daquele momento. Tentei inúmeras vezes submeter essa experiência à análise, mas nem mesmo exigências diretas conseguiram da paciente mais que a mesma descrição pobre e incompleta. Só depois de ter sido feito um longo desvio, que a levou de volta à mais tenra infância, surgiu um sonho que, ao ser analisado, lhe trouxe à mente detalhes daquela cena, até então esquecidos, e assim uma compreensão e solução do conflito do momento tornaram-se possíveis. Este único exemplo mostra quanto desacerto havia na sugestão acima referida e que grau de regressão científica representaria o abandono, por ela proposto, da regressão na técnica analítica. Minha primeira divergência com Breuer surgiu de uma questão relativa ao mecanismo psíquico mais apurado da histeria. Ele dava preferência a uma teoria que, se poderia dizer, ainda era até certo ponto fisiológica; tentava explicar a divisão mental nos pacientes histéricos pela ausência de comunicação entre vários estados mentais (“estados de consciência”, como os chamávamos naquela época), e construiu então a teoria dos “estados hipnóides” cujos produtos se supunham penetrar na “consciência desperta” como corpos estranhos não assimilados. Eu via a questão de forma menos científica; parecia discernir por toda parte tendências e motivos análogos aos da vida cotidiana, e encarava a própria divisão psíquica como o efeito de um processo de repulsão que naquela época denominei de “defesa”, e depois de “repressão”. Fiz uma tentativa efêmera de permitir que os dois mecanismos existissem lado a lado separados um do outro, mas como a observação me mostrava sempre uma única e mesma coisa, dentro de pouco tempo minha teoria da “defesa” passou a se opor à teoria “hipnóide” de Breuer. Estou bem certo, contudo, de que esta oposição entre os nossos pontos de vista nada teve que ver com o rompimento de nossas relações que se seguiu pouco depois. Este teve causas mais profundas, mas ocorreu de forma tal que de início não o compreendi; só depois é que, através de claras indicações, pude interpretá-lo. Como se sabe, Breuer disse de sua primeira e famosa paciente que o elemento de sexualidade estava surpreendentemente não desenvolvido nela e que em nada contribuíra para o riquíssimo quadro clínico do caso. Sempre fiquei a imaginar por que os críticos não citam com mais freqüência esta afirmação de Breuer como argumento contra minha alegação referente à etiologia sexual das neuroses, e até hoje não sei se devo considerar a omissão como prova de tato ou de descuido da parte deles. Quem quer que leia agora a história do caso de Breuer à luz dos conhecimentos adquiridos nos últimos vinte anos, perceberá, de imediato, o simbolismo nele existente - as cobras, o enrijecimento, a paralisia do braço - e, levando em conta a situação da jovem à cabeceira do pai enfermo, facilmente chegará à verdadeira interpretação dos sintomas; a opinião do leitor sobre o papel desempenhado pela sexualidade na vida mental da paciente será, portanto, bem diferente daquela do seu médico. No tratamento desse caso, Breuer usou, para com a paciente, de um rapport sugestivo muito intenso, que nos poderá servir como um perfeito protótipo do que chamamos hoje de “transferência”. Tenho agora fortes razões para suspeitar que, depois de ter aliviado todos os sintomas de sua cliente, Breuer deve ter descoberto por outros indícios a motivação sexual dessa transferência, mas que a natureza universal deste fenômeno inesperado lhe escapou, resultando daí que, como se tivesse sido surpreendido por um “fato inconveniente”, ele tenha interrompido qualquer investigação subseqüente. Breuer nunca me falou isso assim, mas me disse o bastante em diferentes ocasiões para justificar esta minha reconstituição do acontecido. Quando depois comecei, cada vez com mais persistência, a chamar a atenção para a significação da sexualidade na etiologia das neuroses, ele foi o primeiro a manifestar a reação de desagrado e repúdio que posteriormente iria tornar-se tão familiar a mim, mas que naquela ocasião eu não tinha ainda aprendido a reconhecer como meu destino inexorável. O surgimento da transferência sob forma francamente sexual - seja de afeição ou de hostilidade -, no tratamento das neuroses, apesar de não ser desejado ou induzido pelo médico nem pelo paciente, sempre me pareceu a prova mais irrefutável de que a origem das forças impulsionadoras da neurose está na vida sexual. A este argumento nunca foi dado o grau de atenção que ele merece, pois se isso tivesse acontecido, as pesquisas neste campo não deixariam nenhuma outra conclusão em aberto. No que me diz respeito, este argumento explicação da loucura. O que ele diz sobre a luta contra a aceitação da parte dolorosa da realidade coincide tão exatamente com o meu conceito de repressão que, mais uma vez, devo a chance de fazer uma descoberta ao fato de não ser uma pessoa muito lida. Entretanto, outros leram o trecho e passaram por ele sem fazer essa descoberta e talvez o mesmo tivesse acontecido a mim se na juventude tivesse tido mais gosto pela leitura de obras filosóficas. Em anos posteriores, neguei a mim mesmo o enorme prazer da leitura das obras de Nietzsche, com o propósito deliberado de não prejudicar, com qualquer espécie de idéias antecipatórias, a elaboração das impressões recebidas na psicanálise. Tive, portanto, de me preparar - e com satisfação - para renunciar a qualquer pretensão de prioridade nos muitos casos em que a investigação psicanalítica laboriosa pode apenas confirmar as verdades que o filósofo reconheceu por intuição. A teoria da repressão é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer a hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho da análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose. A consideração teórica, decorrente da coincidência dessa resistência com uma amnésia, conduz inevitavelmente ao princípio da atividade mental inconsciente, peculiar à psicanálise, e que também a distingue muito nitidamente das especulações filosóficas em torno do inconsciente. Assim talvez se possa dizer que a teoria da psicanálise é uma tentativa de explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tenta remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes no passado: a transferência e a resistência. Qualquer linha de investigação que reconheça esses dois fatos e os tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamar-se psicanálise, mesmo que chegue a resultados diferentes dos meus. Mas quem quer que aborde outros aspectos do problema, evitando essas duas hipóteses, dificilmente poderá escapar à acusação de apropriação indébita por tentativa de imitação, se insistir em chamar-se a si próprio de psicanalista. Eu me oporia com maior ênfase a quem procurasse colocar a teoria da repressão e da resistência entre as premissas da psicanálise em vez de colocá-las entre as suas descobertas. Essas premissas, de natureza psicológica e biológica geral, na verdade existem e seria útil considerá-las em outra ocasião; mas a teoria da repressão é um produto do trabalho psicanalítico, uma inferência teórica legitimamente extraída de inúmeras observações. Outro produto dessa espécie foi a hipótese da sexualidade infantil. Isto, porém, foi feito numa data muito ulterior. Nos primeiros dias da investigação experimental pela análise, não se pensou em tal coisa. De início, observou-se apenas que os efeitos das experiências presentes tinham de ser remontados a algo no passado. Mas os investigadores geralmente encontram mais do que procuram. Fomos puxados cada vez mais para o passado; esperávamos poder parar na puberdade, período ao qual se atribui tradicionalmente o despertar dos impulsos sexuais. Mas em vão; as pistas conduziam ainda mais para trás, à infância e aos seus primeiros anos. No caminho, tivemos de superar uma idéia errada que poderia ter sido quase fatal para a nova ciência. Influenciados pelo ponto de vista de Charcot quanto à origem traumática da histeria, estávamos de pronto inclinados a aceitar como verdadeiras e etiologicamente importantes as declarações dos pacientes em que atribuíam seus sintomas a experiências sexuais passivas nos primeiros anos da infância - em outras palavras, à sedução. Quando essa etiologia se desmoronou sob o peso de sua própria improbabilidade e contradição em circunstâncias definitivamente verificáveis, ficamos, de início, desnorteados. A análise nos tinha levado até esses traumas sexuais infantis pelo caminho certo e, no entanto, eles não eram verdadeiros. Deixamos de pisar em terra firme. Nessa época, estive a ponto de desistir por completo do trabalho, exatamente como meu estimado antecessor, Joseph Breuer, quando fez sua descoberta indesejável. Talvez tenha perseverado apenas porque já não tinha outra escolha e não podia então começar uma outra coisa. Por fim, veio a reflexão de que, afinal de contas, não se tem o direito de desesperar por não ver confirmadas as próprias expectativas; deve-se fazer uma revisão dessas expectativas. Se os pacientes histéricos remontam seus sintomas e traumas que são fictícios, então o fato novo que surge é precisamente que eles criam tais cenas na fantasia, e essa realidade psíquica precisa ser levada em conta ao lado da realidade prática. Essa reflexão foi logo seguida pela descoberta de que essas fantasias destinavam-se a encobrir a atividade auto-erótica dos primeiros anos de infância, embelezá-la e elevá-la a um plano mais alto. E agora, de detrás das fantasias, toda a gama da vida sexual da criança vinha à luz. Com a atividade sexual dos primeiros anos de infância também foi reconhecida a constituição herdada do indivíduo. A disposição e a experiência estão aqui ligadas numa unidade etiológica indissolúvel, pois a disposição exagera impressões - que de outra forma teriam sido inteiramente comuns e não teriam nenhum efeito -, de modo a transformá-las em traumas que dão margem a estímulos e fixações; por outro lado, as experiências despertam fatores na disposição que, sem elas, poderiam ter ficado adormecidos por muito tempo e talvez nunca se desenvolvessem. Abraham (1907) deu a última palavra sobre a questão da etiologia traumática quando ressaltou que a constituição sexual peculiar às crianças é calculada precisamente para provocar experiências sexuais de uma natureza particular, ou seja, traumas. No começo, minhas declarações sobre a sexualidade infantil basearam-se quase exclusivamente nos achados, da análise de adultos, que remontavam ao passado. Não tive nenhuma oportunidade de fazer observações diretas em crianças. Foi, portanto, uma grande vitória quando, anos depois, tornou-se possível confirmar quase todas as minhas deduções através da observação direta e da análise de crianças muito pequenas - vitória que foi perdendo a sua magnitude à medida que pouco a pouco compreendíamos que a natureza da descoberta era tal que na realidade deveríamos envergonhar-nos de ter tido de fazê-la. Quanto mais se levassem adiante as observações em crianças, mais evidentes os fatos se tornavam; porém o mais surpreendente de tudo era constatar que tivesse havido tanta preocupação em menosprezá-los. Essa convicção da existência e da importância da sexualidade infantil, entretanto, só pode ser obtida, pelo método da análise, partindo-se dos sintomas e peculiaridades dos neuróticos e acompanhando-os até suas fontes últimas, cuja descoberta então explica o que há nelas de explicável e permite que se modifique o que há de modificável. Compreendo que se possa chegar a resultados diferentes se, como fez recentemente C. G. Jung, se forma primeiro uma concepção teórica da natureza do instinto sexual e procura-se então explicar a vida das crianças a partir dessa base. Uma concepção dessa natureza será forçosamente uma escolha arbitrária ou dependente de considerações irrelevantes, e corre o risco de evidenciar-se inadequada ao campo a que se está procurando aplicá-la. É verdade que também o método analítico leva a certas dificuldades e obscuridades finais no tocante à sexualidade e à sua relação com a vida total do indivíduo. Mas esses problemas não podem ser eliminados pela especulação; devem aguardar solução através de outras observações ou mediante observações em outros campos. Pouco preciso dizer sobre a interpretação de sonhos. Surgiu como os prenúncios da inovação técnica que eu adotara quando, após um vago pressentimento, resolvi substituir a hipnose pela livre associação. Minha busca de conhecimentos não se dirigira, de início, para a compreensão dos sonhos. Não sei de nenhuma influência externa que tivesse atraído meu interesse para esse assunto ou que me tivesse inspirado qualquer expectativa valiosa. Antes de Breuer e eu nos separarmos, apenas tinha tido tempo de comunicar-lhe, e numa única frase, que eu, àquela altura, estava sabendo como traduzir os sonhos. Visto ter sido assim a descoberta, conclui-se que o simbolismo na linguagem dos sonhos foi quase a última coisa a tornar-se acessível a mim, pois as associações da pessoa que sonha nos ajudam muito pouco a compreender símbolos. Como tenho o hábito de estudar sempre as próprias coisas antes de procurar informações sobre elas em livros, pude chegar eu mesmo ao simbolismo dos sonhos antes de ser a ele levado pela obra de Scherner sobre o assunto [1861]. Só depois é que vim a apreciar em sua plena extensão essa modalidade de expressão dos sonhos. Isso ocorreu em parte por influência das obras de Stekel, cujos primeiros trabalhos têm muito mérito, mas que depois se desencaminhou totalmente. A estreita ligação entre a interpretação psicanalítica dos sonhos e a arte de interpretá-los segundo a prática tida em tão alta conta na antigüidade, só tornou-se clara para mim muito depois. Mais tarde, descobri a característica essencial e a parte mais importante da minha teoria dos sonhos, ou seja, que a distorção dos sonhos é conseqüência de um conflito interno, uma espécie de desonestidade interna - num autor que embora ignorando a medicina, não ignorava a filosofia, o famoso engenheiro J. Popper, que publicou sua Phantasien einer Realisten [1899] sob o nome de Lynkeys. A interpretação de sonhos foi para mim um alívio e um apoio naqueles árduos primeiros anos da análise, quando tive de dominar a técnica, os fenômenos clínicos e a terapêutica das Minha suscetibilidade pessoal tornou-se embotada, durante esses anos, para vantagem minha. Só não me tornei uma pessoa amargurada por uma circunstância que nem sempre está presente para ajudar os descobridores solitários. Eles são, em geral, atormentados pela necessidade de explicar a falta de simpatia ou a aversão de seus contemporâneos e sentem essa atitude como uma contradição angustiante à segurança de suas próprias convicções. Eu não precisava me sentir assim, pois a teoria psicanalítica me capacitava a compreender a atitude de meus contemporâneos e vê-la como uma conseqüência natural das premissas analíticas fundamentais. Se era verdade que o conjunto de fatos que eu descobri foram mantidos fora do conhecimento dos próprios pacientes por resistências internas de natureza emocional, então essas resistências forçosamente apareceriam também em pessoas sadias logo que alguma fonte externa as levasse a um confronto com o que fora reprimido. Não era de surpreender que fossem capazes de justificar essa rejeição de minhas idéias com razões intelectuais, embora a razão fosse, de fato, de origem emocional. A mesma coisa aconteceu seguidamente com pacientes; os argumentos que apresentavam eram os mesmos e não muito brilhantes. Nas palavras de Falstaff, os argumentos são “tão abundantes quanto as amoras silvestres.” A única diferença era que com pacientes estávamos em condições de pressioná-los a fim de induzi-los a perceber (insight) suas resistências e superá-las, ao passo que lidando com pessoas pretensamente sadias não contávamos com essa vantagem. Como compelir essas pessoas sadias a examinarem o assunto com espírito frio e cientificamente objetivo constituía um problema insolúvel que era melhor deixar que o tempo elucidasse. Na história da ciência, podemos ver claramente que, com freqüência, proposições que de início só provocam contradição, posteriormente vêm a ser aceitas, embora não tenham sido apresentadas novas provas das mesmas. Entretanto, ninguém poderia esperar que, durante os anos em que eu sozinho representava a psicanálise, pudesse ter desenvolvido um respeito especial pela opinião do mundo ou qualquer tendência à acomodação intelectual. II A partir do ano de 1902, certo número de jovens médicos reuniu-se em torno de mim com a intenção expressa de aprender, praticar e difundir o conhecimento da psicanálise. O estímulo proveio de um colega que experimentara, ele próprio, os efeitos benéficos da terapêutica analítica. Reuniões regulares realizavam-se à noite em minha casa, travavam-se debates de acordo com certas normas, e os participantes se esforçavam por encontrar sua orientação nesse novo e estranho campo de pesquisa, e de despertar em outros o interesse por ele. Um belo dia um jovem que fora aprovado numa escola de ensino técnico apresentou-se com um manuscrito que indicava compreensão fora do comum. Persuadimo-lo a cursar o Gymnasium [escola secundária] e a Universidade e a dedicar-se ao aspecto não-médico da psicanálise. A pequena sociedade adquiriu nele um secretário zeloso e digno de confiança e eu ganhei em Otto Rank um auxiliar e colaborador dos mais fiéis. O pequeno círculo logo se ampliou e no transcorrer dos cinco anos seguintes muitas vezes mudou de composição. De um modo geral, podia dizer a mim mesmo que quase não era inferior, em riqueza e variedade de talento, à equipe de qualquer professor de clínica. Incluía, desde o início, os que mais tarde viriam a desempenhar papel considerável, embora nem sempre aceitável, na história do movimento psicanalítico. Naquela época, entretanto, não se poderia ainda prever esses desenvolvimentos. Eu tinha todos os motivos para estar satisfeito, e penso que fiz o possível para transmitir meu conhecimento e experiência aos outros. Houve apenas duas circunstâncias inauspiciosas que terminaram por me afastar internamente do grupo. Não consegui estabelecer entre os seus membros as relações amistosas que devem prevalecer entre homens que se acham empenhados no mesmo trabalho difícil, nem consegui evitar a competição pela prioridade a que dá margem, com tanta freqüência, esse tipo de trabalho em equipe. As dificuldades particularmente grandes ligadas ao ensino da prática da psicanálise - responsáveis por grande parte das dissenções havidas - eram patentes nessa Sociedade Psicanalítica de Viena, de caráter particular. Eu mesmo não me aventurei a expor uma técnica e teoria ainda inacabadas e em formação, com a autoridade que provavelmente teria capacitado os outros a evitar certos desvios e suas conseqüências desastrosas. A autoconfiança de trabalhadores intelectuais, sua independência prematura do mestre, é sempre gratificante de um ponto de vista psicológico, mas só traz vantagens para a ciência se esses trabalhadores preencherem certas condições pessoais que não são, de maneira nenhuma, comuns. Para a psicanálise, em particular, uma longa e severa disciplina, além de treinamento na autodisciplina, teria sido necessária. Em vista da coragem revelada pela devoção a um assunto olhado com tanta reserva, e tão pobre de perspectivas, estava disposto a tolerar dos membros do grupo muita coisa que não devia tolerar numa situação diferente. Além de médicos, o círculo incluía outras pessoas - homens instruídos que haviam reconhecido algo importante na psicanálise; escritores, pintores etc. Minha Interpretação de Sonhos e meu livro sobre chistes, entre outros, mostraram desde o início que as teorias da psicanálise não podem ficar restritas ao campo médico, mas são passíveis de aplicação a várias outras ciências mentais. Em 1907, contra todas as expectativas, a situação mudou de repente. Parecia que a psicanálise havia discretamente despertado interesse e angariado adeptos e que havia até mesmo alguns cientistas que estavam prontos a reconhecê-la. Uma comunicação de Bleuler me informara antes disso que minhas obras tinham sido estudadas e aplicadas no Burghölzli. Em janeiro de 1907, pela primeira vez veio a Viena um membro da clínica de Zurique - o Dr. Eitingon. Outras visitas se seguiram, que levaram a uma animada troca de idéias. Finalmente, a convite de C.G.Jung, naquela época ainda médico assistente de Burghölzli, realizou-se uma primeira reunião em Salzburg na primavera de 1908, que congregou adeptos da psicanálise de Viena, Zurique e outros lugares. Um dos primeiros resultados desse primeiro Congresso Psicanalítico foi a fundação de um periódico intitulado Jahrbuch für psychoanalytische und psycho- pathologische Forschungen sob a direção de Bleuler e Freud e editado por Jung, que apareceu pela primeira vez em 1909. Essa publicação expressava a estreita cooperação entre Viena e Zurique. Repetidas vezes reconheci com gratidão os grandes serviços prestados pela Escola de Psiquiatria de Zurique na difusão da psicanálise, em particular por Bleuler e Jung, e não hesito em fazê-lo ainda hoje, quando as circunstâncias mudaram tanto. Na verdade, não foi o apoio da Escola de Zurique que fez despertar a atenção do mundo científico para a psicanálise naquela época. O que acontecera foi que o período de latência tinha terminado e por toda parte a psicanálise se tornava objeto de interesse cada vez maior. Mas em todos os outros lugares, esse aumento de interesse de início não produziu senão um vivo repúdio, quase sempre apaixonado, ao passo que em Zurique, pelo contrário, um acordo em linhas gerais foi a nota dominante. Além disso, em nenhum outro lugar havia um grupo tão coeso de partidários, nem uma clínica pública posta a serviço das pesquisas psicanalíticas, nem um professor de clínica que incluísse as teorias psicanalíticas como parte integrante de seu curso de psiquiatria. O grupo de Zurique tornou-se assim o núcleo de pequena associação que lutava pelo reconhecimento da análise. A única oportunidade de aprender a nova arte e de nela trabalhar estava ali. A maior parte dos meus seguidores e colaboradores de hoje chegou a mim via Zurique, mesmo aqueles que se encontravam geograficamente muito mais perto de Viena do que da Suíça. Em relação à Europa ocidental, onde estão os grandes centros de nossa cultura, Viena ocupa uma posição marginal; e seu prestígio tem sido afetado, há muitos anos, por fortes preconceitos. Os representantes das nações mais importantes se reúnem na Suíça, onde a atividade intelectual é tão vívida; um foco de infecção ali estava destinado a ser de grande importância para a difusão da “epidemia psíquica”, como Hoche de Freiburg a denominou. Segundo o testemunho de um colega que presenciou acontecimentos no Burghölzli, parece que a psicanálise despertou interesse ali muito cedo. Na obra de Jung sobre fenômenos ocultos, publicada em 1902, já havia alusão ao meu livro sobre a interpretação de sonhos. A partir de 1903 ou 1904, a psicanálise ocupava o primeiro plano de interesse. Depois de estabelecidas relações pessoais entre Viena e Zurique, uma sociedade informal foi também iniciada, em meados de 1907, no Burghölzli, onde os problemas da psicanálise eram debatidos em reuniões regulares. Na aliança entre as escolas de Viena e Zurique, os suíços não eram de modo algum meros recipientes. Já haviam produzido trabalhos científicos de grande mérito, cujos resultados foram úteis à psicanálise. As experiências de associação iniciadas pela Escola de Wundt tinham sido interpretadas por eles num sentido psicanalítico e revelaram possibilidades de aplicação inesperadas. Através delas, tornara-se possível chegar a uma rápida confirmação experimental das observações psicanalíticas e a demonstrar diretamente a estudantes conexões a respeito das quais um analista poderia apenas falhar-lhes. A primeira ponte ligando a psicologia experimental à psicanálise fora levantada. ponto de vista desfavorável à psicanálise, mas tendo naquela ocasião se reconciliado rapidamente com ela passou a recomendá-la aos seus compatriotas e colegas numa série de conferências que eram tão ricas de conteúdo quanto brilhantes na forma. O prestígio que tinha em toda a América graças ao seu elevado caráter moral e inflexível amor à verdade, foi de grande valia para a psicanálise e a protegeu das denúncias, que muito provavelmente a teriam de outra forma aniquilado. Mais tarde, entregando-se demais à acentuada inclinação ética e filosófica de sua natureza, Putnam fez o que se me afigura uma exigência impossível - esperava que a psicanálise se colocasse a serviço de uma concepção filosófico-moral particular do Universo - mas continua a ser a coluna mestra da psicanálise em sua terra natal. A difusão posterior do movimento deve muito a Brill e a Jones: em suas publicações chamaram a atenção de seus compatriotas, com incansável persistência, para os fatos fundamentais facilmente observáveis da vida cotidiana, dos sonhos e da neurose. Brill reforçou essa contribuição com sua atividade médica e com as traduções de minhas obras, e Jones com suas conferências instrutivas e seu talento para o debate nos congressos dos Estados Unidos. A ausência de uma tradição científica profundamente enraizada e a menor rigidez da autoridade oficial nos Estados Unidos foram uma vantagem decisiva para o impulso dado por Stanley Hall. Aquele país caracterizou-se, desde o início, pelo fato de diretores e superintendentes de hospitais de doentes mentais demonstrarem tanto interesse pela análise quanto os clínicos independentes. Mas, por isso mesmo, é evidente que teria de ser nos velhos centros de cultura, onde maior resistência foi revelada, que se iria travar a luta decisiva em favor da psicanálise. Entre os países europeus, a França se tem mostrado até agora o menos receptivo à psicanálise, embora um trabalho de mérito em francês, de autoria de A. Maeder de Zurique, tenha facilitado o acesso às teorias psicanalíticas. Os primeiros sinais de simpatia partiram das províncias: Morichau-Beauchant (Pointers) foi o primeiro francês a aderir publicamente à psicanálise. Régis e Hesnard (Bordéus) recentemente [1914] tentaram diluir os preconceitos dos seus compatriotas contra as novas idéias com uma minuciosa exposição, a qual, entretanto, nem sempre denota compreensão, sobretudo no tocante ao simbolismo. Na própria Paris, ainda parece reinar a convicção (à qual o próprio Janet deu eloqüente expressão no Congresso de Londres em 1913) de que tudo de bom na psicanálise é repetição dos pontos de vista de Janet com insignificantes modificações, e o mais não presta. Nesse Congresso, na verdade, Janet teve de submeter-se a uma série de retificações feitas por Ernest Jones, que pôde assim fazê-lo ver seu conhecimento insuficiente do assunto . Mesmo discordando de suas pretensões, não podemos, entretanto, esquecer o valor de sua contribuição na psicologia das neuroses. Na Itália, depois de inícios promissores, não surgiu nenhum interesse real. Quanto à Holanda, a análise logo teve ali o acesso facilitado pelas ligações pessoais com: Van Emden, Van Ophuijsen, Van Renterghem (Freud en zijn School) [1913] e os dois Stärckes que lá trabalham ativamente, ocupados tanto com a prática como com a teoria. Nos círculos científicos da Inglaterra o interesse pela psicanálise vem-se desenvolvendo muito lentamente, mas tudo leva a crer que o sentido prático dos ingleses e seu grande amor à justiça lhe assegurarão (à psicanálise) um brilhante futuro. Na Suécia, P. Bjerre, sucessor da clínica de Wetterstrand, abandonou a sugestão hipnótica, pelo menos por algum tempo, em favor do tratamento analítico. R. Vogt (Cristânia) já havia demonstrado simpatia pela psicanálise em seu Psykiatriens grundtraek, publicado em 1907, de modo que o primeiro livro didático de psiquiatria a fazer referência à psicanálise foi escrito na Noruega. Na Rússia, a psicanálise tornou-se bastante conhecida e amplamente difundida; quase todas as minhas obras, assim como as de outros adeptos da análise, foram traduzidas para o russo. Mas uma compreensão verdadeiramente profunda das teorias analíticas ainda não se revelou na Rússia, de modo que as contribuicões de médicos russos até o momento não são muito importantes. O único médico com formação analítica naquele país é M. Wulff, que exerce a clínica em Odessa. A introdução da psicanálise nos círculos científicos e literários poloneses deve-se, sobretudo, a L. Jekels. Da Hungria, geograficamente tão perto da Áustria, e cientificamente tão distante, surgiu um único colaborador, S. Ferenczi, mas que, em compensação, vale por uma sociedade inteira. Da posição da psicanálise na Alemanha, o que se pode dizer é que ela ocupa o ponto central dos debates científicos e provoca as mais enfáticas expressões de discordância tanto entre médicos como entre leigos; essas discussões ainda não terminaram, ao contrário, estão constantemente irrompendo de novo, por vezes, com intensidade ainda maior. Lá nenhuma instituição educacional reconheceu até agora a psicanálise. Clínicos bem-sucedidos que a empregam são poucos; só algumas instituições, como as de Binswanger em Kreuzlingen (solo suíço) e a de Marcinowski, no Holstein, lhe abriram as portas. Um dos mais ilustres representantes da análise, Karl Abraham, ex-assistente de Bleuler, afirma-se na atmosfera crítica de Berlim. Pode parecer estranho que esse estado de coisas continue inalterado por tantos anos se não se levar em conta que o relato aqui apresentado só representa os aspectos exteriores. Não se deve atribuir demasiada importância à rejeição dos representantes oficiais da ciência, e dos chefes de instituições e suas equipes de colaboradores. É natural que os adversários da psicanálise manifestem com veemência seus pontos de vista, enquanto seus adeptos intimidados mantêm silêncio. Alguns desses últimos, cujas primeiras contribuições à análise criaram expectativas favoráveis, ultimamente se retiraram do movimento sob a pressão das circunstâncias. O próprio movimento avança com segurança, embora em silêncio; vem constantemente ganhando novos adeptos entre psiquiatras e leigos, atrai um número cada vez maior de novos leitores para a literatura psicanalítica e, exatamente por esse motivo, obriga os adversários a esforços defensivos cada vez mais violentos. Pelo menos uma dúzia de vezes durante os últimos anos li em relatórios de congressos e de órgãos científicos, ou em resenhas críticas de certas publicações, que agora a psicanálise está morta, derrotada e eliminada de uma vez por todas. A melhor resposta a isso seria nos termos do telegrama de Mark Twain ao jornalista que publicou a notícia falsa de sua morte: “Informação sobre minha morte muito exagerada”. Depois de cada um desses obituários a psicanálise ganhava novos adeptos e colaboradores ou adquiria novos canais de publicidade. Afinal de contas, ser declarado morto é melhor do que ser enterrado em silêncio. Passo a passo com a expansão da psicanálise no espaço processou-se uma expansão no seu conteúdo; estendeu-se do campo das neuroses e da psiquiatria a outros campos do conhecimento. Não vou entrar em detalhes sobre esse aspecto de seu desenvolvimento visto que isso já foi muito bem feito por Rank e Sachs [1913] num volume (um dos Grenzfragen de Löwenfeld) que aborda, em minúcias, precisamente esse aspecto da pesquisa analítica. Além do mais, esse desenvolvimento está ainda na infância; pouco trabalho foi feito e ele consiste, em sua maior parte, em experiências apenas iniciadas e, de resto, em nada mais que planos. Nenhuma pessoa sensata verá nisso motivo de censura. Uma enorme massa de trabalho se apresenta a um pequeno número de trabalhadores, a maioria dos quais tem como ocupação principal outro tipo de atividade e só pode apresentar as qualificações de um amador em relação aos problemas técnicos dessas áreas da ciência, que desconhecem. Esses trabalhadores, procedentes da psicanálise, não fazem nenhum segredo de ser amadorismo. Sua finalidade é aenas servir de sinaleiros e de substitutos provisórios dos especialistas e pôr à disposição deles a técnica e os princípios analíticos até a época em que possam, os próprios especialistas, tomar a si o trabalho. Que os resultados alcançados não tenham deixado, apesar de tudo, de ser consideráveis, deve-se em parte à fertilidade do método analítico e, em parte, à circunstância de que já existem alguns pesquisadores não-médicos que fizeram da aplicação da psicanálise às ciências mentais sua profissão na vida. A maior parte dessas aplicações da análise remonta, sem dúvida, a uma sugestão feita em minhas primeiras obras analíticas. O exame analítico de pessoas neuróticas e os sintomas neuróticos de pessoas normais me levaram a supor a existência de condições psicológicas que haveriam de ultrapassar a área do conhecimento na qual tinham sido descobertos. Sendo assim, a análise nos proporcionou não somente a explicação de manifestações patológicas, como revelou sua conexão com a vida mental normal e desvendou relações insuspeitadas entre a psiquiatria e as demais ciências que lidam com as atividades da mente. Certos sonhos típicos, por exemplo, ofereceram a explicação de alguns mitos e contos de fada. Riklin [1908] e Abraham [1909] seguiram essa pista e iniciaram as pesquisas dos mitos, que foram completadas de forma a atender às exigências, mesmo de padrões técnicos, nas obras de Rank sobre mitologia [p. ex. 1909, 1911b]. Investigações posteriores sobre o simbolismo dos sonhos levaram ao âmago dos problemas da mitologia, do folclore (Jones [p. ex. 1910 e 1912] e Storfer [1914]) e às abstrações da religião. Causou profunda impressão à audiência de um dos Congressos psicanalíticos a demonstração feita por um discípulo de Jung, da correspondência entre as fantasias esquizofrênicas e as cosmogonias dos tempos e raças primitivos. O material mitológico recebeu depois ulterior elaboração (que, embora discutível, não deixou de ser muito interessante) por Sob certos aspectos talvez tivesse sido melhor que eu houvesse dado livre curso a minhas próprias paixões e às dos que me cercavam. Todos já ouvimos falar da interessante tentativa de explicar a psicanálise como um produto do ambiente de Viena. Janet não se acanhou de utilizar esse argumento, já agora em 1913, embora ele próprio com certeza se orgulhe de ser parisiense, e Paris não possa ser considerada uma cidade de moral mais rigorosa que Viena. Segundo essa teoria, a psicanálise, e em particular a idéia de que as neuroses decorrem de perturbações da vida sexual, só poderia ter surgido numa cidade como Viena - de uma atmosfera de sensualidade e imoralidades estranhas a outras cidades - não passando de um reflexo, uma projeção teórica por assim dizer, dessas condições peculiares a Viena. Ora, não sou nenhum bairrista; mas essa teoria, me parece de um absurdo fora do comum - tão absurda mesmo, que às vezes me sinto inclinado a supor que me acusarem de ser vienense é apenas um substitutivo eufemístico de outra acusação que ninguém ousa fazer abertamente. Se as premissas nas quais se baseia o argumento fossem o oposto do que são, então talvez valesse a pena dar-lhes ouvido. Se houvesse uma cidade na qual os habitantes se impusessem restrições excepcionais no tocante à satisfação sexual, e ao mesmo tempo revelassem acentuada tendência a graves perturbações neuróticas, essa cidade poderia por certo dar margem, na mente de um observador, à idéia de que as duas circunstâncias tinham alguma relação entre si, e que uma dependia da outra. Mas nenhuma dessas duas circunstâncias se aplica a Viena. Os vienenses não são mais abstinentes nem mais neuróticos do que os habitantes de qualquer outra capital. Existe um pouco menos de constrangimento - menos pudicícia - em relação a sexo do que nas cidades do oeste e do norte que tanto se orgulham de sua castidade. Essas características peculiares de Viena serviriam mais provavelmente para desorientar o observador do que para esclarecê-lo quanto à acusação das neuroses. No entanto, Viena tem feito o possível para negar sua participação na gênese da psicanálise. Em nenhum outro lugar, a indiferença hostil da parte erudita e educada da população para com o analista é tão evidente como em Viena. Pode ser que minha política de evitar ampla publicidade seja, em parte, responsável por isso. Se eu tivesse incentivado ou permitido tempestuosos debates com as sociedades médicas de Viena sobre a psicanálise, talvez eles tivessem servido para descarregar todas as paixões e para dar livre curso a todas as injúrias e ofensas que estavam na língua ou no coração dos nossos adversários - daí, talvez, o anátema contra a psicanálise tivesse sido superado e ela agora não fosse mais uma estranha em sua cidade natal. Aliás, o poeta deve estar com a razão quando faz Wallestein dizer: Doch das vergeben mir die Wiener nicht, dass ich um ein Spektakel sie betrog. A tarefa que estava acima da minha capacidade de fazer ver os adversários da psicanálise suaviter in modo sua injustiça e arbitrariedade - foi realizada com grande habilidade por Bleuler num artigo escrito em 1910, “A Psicanálise de Freud: Uma Defesa e Algumas Observações Críticas”. Seria mais do que natural meu elogio a esse trabalho (que faz críticas a ambos os lados); por isso apresso-me em apontar nele as coisas das quais discordo. Acho que ainda é parcial, ou seja, complacente demais com os defeitos dos inimigos da psicanálise e muito rigoroso com as falhas de seus partidários. Essa característica do artigo talvez explique por que o parecer público de um psiquiatra de tamanha reputação, de capacidade e independência tão indiscutíveis, não teve uma influência maior sobre seus colegas. Não deveria surpreender ao autor de Affectivit (Afetividade) (1906) que a influência de uma obra seja determinada não pelo peso dos argumentos, mas pelo tom emocional da obra. Outra parte de sua influência - esta sobre os seguidores da psicanálise - foi destruída posteriormente pelo próprio Bleuler, quando em 1913 mostrou o lado oposto de sua atitude para com a psicanálise no seu “Criticism of the Freudian Theory” (“Crítica da Teoria Freudiana”). Nesse artigo, ele abala tanto a estrutura da teoria psicanalítica que nossos adversários devem ter ficado satisfeitos com a ajuda que lhes foi dada por esse defensor da psicanálise. Esses julgamentos contrários de Bleuler, entretanto, não se baseiam em novos argumentos ou melhores observações e sim na insuficiência de seus próprios conhecimentos, a qual ele não mais admite, como o fez em suas primeiras obras. Parecia, portanto, que uma perda quase irreparável ameaçava a psicanálise. Mas em sua última publicação, “Criticisms of my Schizophrenia” (“Críticas ao meu livro Esquizofrenia”) (1914), Bleuler reúne suas forças em face dos ataques feitos contra ele por haver introduzido a psicanálise em seu livro sobre esquizofrenia, e faz o que ele próprio denomina de uma “afirmação pretensiosa”. “Mas agora farei uma afirmação pretensiosa: considero que até o momento as várias escolas de psicologia contribuíram muito pouco para a explicação da natureza das doenças e sintomas psicogênicos, mas que a psicologia profunda tem algo a oferecer a uma psicologia ainda por nascer, da qual precisam os médicos para poderem compreender seus pacientes e curá-los racionalmente; e creio mesmo que em minha Schizophrenia dei um passo, ainda que muito pequeno, no sentido dessa compreensão. As duas primeiras afirmações por certo são corretas; a última talvez esteja errada.” Visto que por “psicologia profunda” ele não quer dizer outra coisa senão psicanálise, podemos por enquanto contentar-nos com esse reconhecimento. lII Mach es kurz! Am Jüngsten Tag ist’s nur ein Furz! GOETHE Dois anos depois do primeiro Congresso privado de psicanálise, realizou-se o segundo, dessa vez em Nuremberg, em março de 1910. No intervalo entre os dois, influenciado em parte pela boa receptividade obtida nos Estados Unidos, pela hostilidade cada vez maior nos países de língua alemã e pelo inesperado apoio da escola de Zurique, fiz um projeto que, com a ajuda de meu amigo Ferenczi, realizei nesse segundo Congresso. O que tinha em mente era organizar o movimento psicanalítico, transferir o seu centro para Zurique e dotá-lo de um chefe que cuidasse de seu futuro. Como esse esquema encontrou muita oposição entre os partidários da psicanálise, apresentarei, em detalhes, os motivos que me levaram a formulá-lo. Espero que esses motivos me justifiquem, muito embora reconheça que o que fiz não foi, na verdade, muito prudente. Achava que a localização do novo movimento em Viena longe de servir-lhe de recomendação, muito pelo contrário, o comprometia. Um lugar como Zurique, no coração da Europa, onde um professor universitário havia aberto as portas de sua instituição à psicanálise, parecia-me muito mais promissor. Via também uma segunda desvantagem em minha própria pessoa, sobre a qual era difícil formar uma opinião por causa das manifestações de admiração e de ódio provenientes das diferentes facções: ou era um comparado a Colombo Darwin e Kepler ou taxado de PGP (paralisia geral progressiva). Desejei, portanto, retirar para o segundo plano tanto a mim como à cidade onde nasceu a psicanálise. Além disso, eu já não era jovem; vi que havia uma longa estrada à frente, e me oprimia a idéia de que o dever de ser um líder tivesse recaído em mim tão tarde na vida. Sentia, porém, que deveria haver alguém na liderança. Conhecia muito bem as armadilhas que aguardam quem quer que comece a exercer a psicanálise e esperava poder evitá-las delegando poderes a uma autoridade que estivesse preparada para aconselhar e orientar. Essa posição, que fora de início ocupada por mim, dado o meu acerto de quinze anos de experiências, devia ser agora transferida para um homem mais jovem, que então, naturalmente, ocuparia meu lugar após a minha morte. Esse homem só poderia ser C. G. Jung, uma vez que Bleuler era de minha própria geração; tinha a seu favor dotes excepcionais, as contribuições que já prestara à psicanálise, sua posição independente e a impressão de firme energia que sua personalidade transmitia. Além disso, parecia estar disposto a entrar num bom relacionamento pessoal comigo e, em consideração a mim, a abrir mão de certos preconceitos raciais que alimentara anteriormente. Eu não tinha, na ocasião, a menor idéia de que apesar de todas essas vantagens a escolha era a mais infeliz possível, que eu havia escolhido uma pessoa incapaz de tolerar a autoridade de outra, mais incapaz ainda de exercê-la ele próprio, e cujas energias se voltavam inteiramente para a promoção de seus próprios interesses. Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos a que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular. Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: “Todas essas tolices nada têm que ver com a análise; isto não é psicanálise”. Nas sessões dos grupos locais (que reunidos constituíram a associação internacional) seria ensinada a prática da psicanálise e seriam preparados médicos, cujas atividades recebiam assim uma espécie de garantia. Além disso, visto que a ciência oficial lançara um anátema solene contra a psicanálise e tinha declarado um boicote contra médicos e instituições que a praticassem, achei que seria conveniente os partidários da psicanálise se reunirem para uma troca de idéias amistosa, e para apoio mútuo. für psychoanalytische und psychopathologische Forschungen [Anuário de Pesquisas Psicanalíticas e Psicopatológicas], o qual veio a lume durante cinco anos sob a diretoria de Jung e que agora ressurgiu, com dois novos redatores e com ligeira alteração no título - passou a chamar-se Jahrbuch der Psyuchoanalyse [Anuário da Psicanálise.] Não mais se destina a ser, como o foi em anos recentes, um simples repositório para publicação de obras autônomas. Em vez disso, seus editores se empenharão em cumprir a finalidade de registrar todos os trabalhos realizados e todos os progressos alcançados no campo da psicanálise. A Zentrablatt für Psychoanalyse, que, como já disse, foi lançada por Adler e Stekel após a fundação da Associação Psicanalítica Internacional em Nuremberg, 1910, teve uma existência breve e tumultuada. Já no décimo número do primeiro volume [julho de 1911] apareceu um aviso na página de frontispício comunicando que, por motivo de divergências científicas de opinião com o diretor, o Dr. Alfred Adler resolvera afastar-se voluntariamente da editoria. Depois disso, o Dr. Stekel continuou o único redator (a partir do verão de 1911). No Congresso de Weimar [setembro de 1911] a Zentralblatt foi elevada à posição de órgão oficial da Associação Internacional e passou a ser remetida a todos os sócios mediante um aumento da contribuição anual. A partir do terceiro número do segundo volume (inverno [dezembro], 1912), Stekel tornou-se o único responsável pelo seu conteúdo. Seu comportamento, do qual é impossível publicar um relato, me obrigou a exonerar-me de sua direção e a criar, às pressas, um novo órgão para a psicanálise - a Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse [Revista International de Psicanálise Médica]. Os esforços conjuntos de quase todos os nossos colaboradores e de Hugo Heller, o novo editor, resultaram no surgimento do primeiro número, em janeiro de 1913, havendo logo tomado o lugar da Zentralblatt como órgão oficial da Associação Psicanalítica Internacional. Enquanto isso, no início de 1912, um novo periódico, Imago (publicado por Heller), destinado exclusivamente à aplicação da psicanálise às ciências mentais, foi fundado pelo Dr. Hanns Sachs e pelo Dr. Otto Rank. Imago encontra-se agora na metade de seu terceiro volume, sendo lida com interesse por um número sempre crescente de assinantes, alguns deles com pouca ligação com a análise médica. Afora essas quatro publicações periódicas (Schriften zur angewandten Seelenkunde, Jahrbuch, Zeitschrift e Imago), outros periódicos alemães e estrangeiros publicam trabalhos que merecem um lugar na literatura psicanalítica. The Journal of Abnormal Psychology, dirigido por Morton Prince, costuma publicar tantas e tão boas contribuições analíticas que deve ser considerado como o principal representante da literatura analítica nos Estados Unidos. No inverno de 1913, White e Jellife em Nova Iorque lançaram um novo periódico (The Psychoanalytic Review) dedicado exclusivamente à psicanálise, sem dúvida levando em conta o fato de que para a maioria dos médicos americanos interessados na psicanálise, a língua alemã é um obstáculo. Devo agora mencionar duas deserções que houve entre os partidários da psicanálise; a primeira ocorreu entre a fundação da Associação em 1910 e o Congresso de Weimar em 1911; a segunda verificou-se após esse Congresso e evidenciou-se em Munique em 1913. O desapontamento que me causaram talvez tivesse sido evitado se eu tivesse prestado mais atenção às reações de pacientes sob tratamento analítico. Sabia muito bem, naturalmente, que qualquer pessoa, ao primeiro contato com as realidades desagradáveis da análise, pode reagir fugindo; eu próprio sempre havia sustentado que na compreensão da análise, cada indivíduo é limitado por suas próprias repressões (ou antes, pelas resistências que as sustentam) de modo que não pode ir além de um certo ponto em sua relação com a análise. Mas eu não esperava que alguém que houvesse alcançado certa profundidade na compreensão da análise pudesse renunciar a essa compreensão e perdê-la. E, no entanto, a experiência cotidiana com pacientes havia demonstrado que a rejeição total do conhecimento analítico pode ocorrer sempre que surge uma resistência especialmente forte em qualquer profundidade da mente. Às vezes conseguimos, depois de muito trabalho, fazer com que um paciente aprenda algumas partes do conhecimento analítico e possa lidar com elas como posses suas, e mesmo assim podemos vê- lo, sob o domínio da própria resistência seguinte, lançar tudo o que aprendeu às urtigas e ficar na defensiva como o fez nos dias em que era um principiante despreocupado. Tive de aprender que a mesmíssima coisa pode acontecer tanto com psicanalistas como com pacientes em análise. Não constitui tarefa fácil nem invejável escrever a história dessas duas deserções, em parte porque estou desprovido de qualquer motivo pessoal forte para fazê-lo - não esperava gratidão nem sou particularmente vingativo - e em parte porque sei que agindo assim ficarei ao sabor das ofensas de meus adversários, nada escrupulosos, e vou oferecer aos inimigos da psicanálise o espetáculo que eles tão ardentemente desejam - “os psicanalistas se degladiando entre si”. Depois de tanto autodomínio para não entrar em choque com adversários fora da análise, vejo-me agora forçado a pegar em armas contra os seus ex-seguidores ou pessoas que ainda denominam a si próprias de seguidores. Não tenho escolha, porém: se ficasse calado seria por indolência ou covardia, e o silêncio seria mais prejudicial à psicanálise do que uma exposição franca dos danos já causados. Quem quer que tenha acompanhado o desenvolvimento de outros movimentos científicos sabe que as mesmas convulsões e divergências ocorrem neles com freqüência. Pode ser que se tenham preocupado mais em ocultá-los; mas a psicanálise, que repudia tantas idéias convencionais, também nessa questão é mais honesta. Outro problema muito sério é que não posso abster-me inteiramente de utilizar os conhecimentos psicanalíticos no exame desses dois movimentos de oposição. A análise, entretanto, não se presta a uso polêmico; pressupõe o consentimento da pessoa que está sendo analisada e uma situação na qual existam um superior e um subordinado. Daí, quem quer que empreenda uma análise com fins polêmicos pode esperar que a pessoa analisada utilize, por sua vez, a análise contra ela, de modo que a discussão atingirá um ponto que exclui inteiramente a possibilidade de convencer qualquer outra pessoa imparcial. Restringirei, portanto, a um mínimo o uso do conhecimento analítico, e, com ele, a indiscrição e a agressividade contra meus adversários; devo também ressaltar que não estou me baseando nesse terreno para nenhuma crítica de caráter científico. Não estou interessado na verdade que possa estar contida nas teorias que venho rejeitando, nem tentarei refutá-las. Deixarei essa tarefa a outros trabalhadores qualificados no campo da psicanálise, tendo sido ela, na verdade, já em parte realizada. Desejo apenas mostrar que essas teorias contrariam os princípios fundamentais da psicanálise (e em que pontos os contrariam) e que por essa razão não devem ser conhecidas pelo nome de psicanálise. Assim vou-me valer da psicanálise apenas para explicar como essas divergências dela podem surgir entre os analistas. Entretanto, quando toco os pontos nos quais as divergências ocorreram, não posso deixar de defender os justos direitos da psicanálise com algumas observações de natureza puramente crítica. A primeira tarefa com que se defrontou a psicanálise foi a de explicar as neuroses; utilizou a resistência e a transferência como pontos de partida e, levando em consideração a amnésia, explicou os três fatos com as teorias da repressão, das forças sexuais motivadoras da neurose e do inconsciente. A psicanálise jamais pretendeu oferecer uma teoria completa da atividade mental humana em geral, mas esperava apenas que o que ela oferecia pudesse ser aplicado para suplementar e corrigir o conhecimento adquirido por outros meios. A teoria de Adler, entretanto, vai muito além disso, procurando de um só golpe explicar o comportamento e o caráter dos seres humanos bem como de suas doenças neuróticas e psicóticas. Na realidade, presta-se mais a qualquer outro campo do que ao da neurose, embora por motivos ligados à história do seu desenvolvimento ainda situe isso no primeiro plano. Por muitos anos, tive oportunidade de estudar o Dr. Adler e jamais me recusei a reconhecer sua rara capacidade, associada a uma inclinação particularmente especulativa. Como exemplo da “perseguição” a que, ele afirma, eu o submeti, posso lembrar do fato de ter-lhe passado a liderança do grupo de Viena após a fundação da Associação. Só depois de insistentes reclamações feitas por todos os membros da sociedade é que me deixei persuadir a ocupar novamente a presidência nas suas reuniões científicas. Quando percebi quão pouco dotado era Adler para o julgamento de material inconsciente, mudei minha opinião para uma esperança de que ele conseguisse descobrir as ligações da psicanálise com a psicologia e com os fundamentos biológicos dos processos instintivos - esperança justificada, em certo sentido, pelo seu valioso trabalho sobre “a inferioridade dos órgãos”. E ele, na verdade, realizou algo nesse gênero, mas seu trabalho transmite uma impressão “como se” - para empregar seu próprio “jargão” - destinada a provar que a psicanálise estava errada em tudo e que atribuíra tanta importância às forças sexuais motivadoras, por causa de sua facilidade em acreditar nas afirmações dos neuróticos. Posso até mesmo falar publicamente da motivação de ordem pessoal do seu trabalho, desde que ele próprio a anunciou na presença de um pequeno círculo de membros do grupo de Viena: - “O Senhor pensa que é um grande prazer para mim ficar a vida inteira à sua sombra?” Naturalmente, não acho nada condenável que um homem mais jovem admita francamente sua sistema de Adler é que o propósito de auto-afirmação do indivíduo, sua “vontade de poder”, é o que, sob a forma de um “protesto masculino”, desempenha papel dominante na sua conduta, na formação do caráter e na neurose. Entretanto, esse “protesto masculino”, a força motivadora adleriana, nada mais é senão a repressão desligada do seu mecanismo psicológico e, além do mais, sexualizada - o que está bem pouco de acordo com a tão apregoada expulsão da sexualidade do seu lugar na vida mental. O “protesto masculino” sem dúvida existe, mas se for transformado na [única] força motivadora da vida mental estamos menosprezando os fatos observados como se abandonássemos um trampolim depois de o havermos utilizado para o salto. Consideremos uma das situações fundamentais em que se sente desejo na infância: a de uma criança que observa o ato sexual entre adultos. A análise demonstra, no caso de pessoas cuja vida o médico estudará depois, que, nesses momentos, dois impulsos se apoderam do espectador imaturo. Nos meninos, um é o impulso de colocar-se no lugar do homem ativo, e o outro, a contracorrente, é o impulso de identificar-se com a mulher passiva. O conflito entre esses dois impulsos esgota as possibilidades de prazer da situação. Somente o primeiro pode ser classificado como protesto masculino, se quisermos dar um sentido a esse conceito. O segundo, entretanto, cujo curso ulterior Adler não leva na devida consideração ou desconhece inteiramente, é o que se tornará mais importante na neurose subseqüente. Adler foi absorvido de tal forma pela estreiteza ciumenta do ego que leva em conta apenas os impulsos instintivos agradáveis ao ego e por ele estimulados; a situação neurótica, na qual os impulsos se opõem ao ego, é precisamente aquela que fica além do horizonte de Adler. É em relação à tentativa - que a psicanálise tornou necessária - de correlacionar o princípio fundamental de sua teoria com a vida mental das crianças, que Adler apresenta os desvios mais sérios da observação real e a confusão mais fundamental de seus conceitos. Os significados biológico, social e psicológico de “masculino” e “feminino” estão aqui irremediavelmente confundidos. É impossível, e negado pela observação, que uma criança, quer do sexo masculino, quer feminino, baseie seu plano de vida numa depreciação original do sexo feminino e faça do desejo de ser um homem verdadeiro sua “diretriz”. Para começar, as crianças não fazem nenhuma idéia da importância da distinção entre os sexos; pelo contrário, partem da suposição de que ambos possuem o mesmo órgão genital (o masculino); não iniciam suas pesquisas sexuais com o problema da distinção entre os sexos, e a depreciação social das mulheres lhes é completamente estranha. Há mulheres em cuja neurose o desejo de ser homem não desempenhou nenhum papel. O que houve de protesto masculino pode-se facilmente remontar a uma perturbação do narcisismo primário devido a ameaças de castração ou às primeiras coerções das atividades sexuais. Todas as controvérsias sobre a psicogênese das neuroses terminarão sempre por ser resolvidas no campo das neuroses da infância. A dissecção cuidadosa de uma neurose na mais tenra infância põe termo a todos os equívocos sobre a etiologia das neuroses e a todas as dúvidas sobre o papel que os instintos sexuais nela desempenham. Eis por que, em sua crítica ao trabalho de Jung, “Conflitos na Mente da Criança” [1910c], Adler [1911a] foi obrigado a recorrer ao argumento de que os fatos do caso haviam sido ordenados unilateralmente, “sem dúvida pelo pai” [da criança]. Não me estenderei mais sobre o aspecto biológico da teoria adleriana nem discutirei se é a “inferioridade do órgão” real [ver em [1]] ou o sentimento subjetivo do mesmo - não se sabe qual - que pode, na verdade, servir de fundamento ao sistema de Adler. Limitar-me-ei a comentar de passagem que, se fosse assim, a neurose seria um subproduto de toda espécie de decrepitude física, ao passo que a observação mostra que uma grande maioria de pessoas feias, deformadas, aleijadas e infelizes deixam de reagir a seus defeitos através da neurose. Tampouco abordarei a interessante afirmação segundo a qual a inferioridade deve ser remontada ao sentimento de ser um criança, que revela o disfarce sob o qual o fator do infantilismo, a que a psicanálise deu tanta ênfase, reaparece na “Psicologia Individual”. Por outro lado, devo frisar como todas as aquisições psicológicas da psicanálise foram jogadas fora por Adler. Em seu livro Über den nervösen Charakter [1912] o inconsciente ainda aparece como uma peculiaridade psicológica, sem, entretanto, qualquer relação com seu sistema. Posteriormente, ele declarou repetidas vezes que é uma questão indiferente para ele se uma idéia é consciente ou inconsciente. Para começar, Adler nunca deu o menor sinal de ter compreendido o que é a repressão. No resumo de um trabalho lido por ele na Sociedade de Viena (fevereiro de 1911) escreveu que se deve ressaltar que, num caso específico, ficou demonstrado que o paciente nunca havia reprimido sua libido, mas vinha continuamente “reassegurando-se” dela. Pouco depois, num debate na Sociedade de Viena, disse: “Se perguntarmos de onde vem a repressão, nos respondem, ‘da civilização’, mas se perguntarmos depois de onde vem a civilização, nos dizem, ‘da repressão’. Como vêem, é simplesmente um jogo de palavras.” Uma parte mínima da agudeza e engenhosidade que Adler usou para desmascarar os dispositivos defensivos do “caráter nervoso” teria sido suficiente para indicar-lhe a saída desse argumento capcioso. O que se quer dizer é simplesmente que a civilização se baseia nas repressões efetuadas por gerações anteriores, e que se exige de cada nova geração que mantenha essa civilização efetuando as mesmas repressões. Certa vez ouvi falar de uma criança que julgava que as pessoas zombavam dela, e começou a chorar, porque quando perguntou de onde vêm os ovos disseram-lhe que “das galinhas”, e quando perguntou novamente de onde vinham as galinhas responderam-lhe “dos ovos”. Mas não estavam fazendo um jogo de palavras; pelo contrário, estavam dizendo-lhe a verdade. Tudo que Adler tem a dizer sobre sonhos, a pedra de toque da psicanálise, é igualmente vazio e destituído de sentido. Inicialmente, ele considerava os sonhos como um desvio da linha feminina para a masculina - o que é simplesmente uma tradução da teoria da realização de desejos dos sonhos para a linguagem do “protesto masculino”. Depois descobriu que a essência dos sonhos está em permitir que os homens realizem inconscientemente o que lhes é negado conscientemente. Cabe também a Adler [1911b, 215n.] o mérito da prioridade no confundir sonhos com pensamentos oníricos latentes - confusão na qual se baseia a descoberta de sua “tendência prospectiva”. Maeder [1912] seguiu-lhe o exemplo em relação a isso posteriormente. Aqui se menospreza totalmente o fato de que toda interpretação de um sonho que é incompreensível em sua forma manifesta se baseia precisamente no próprio método de interpretação de sonhos cujas premissas e conclusões são objeto de controvérsia. No tocante à resistência, Adler nos informa que ela serve à finalidade de pôr um vigor a oposição do paciente ao médico. Isso por certo é verdade; vale tanto quanto dizer que ela serve à finalidade da resistência. De onde provém, contudo, ou como acontece que suas manifestações fiquem à disposição do paciente, não é objeto de ulterior indagação, como sendo de nenhum interesse para o ego. O mecanismo pormenorizado dos sintomas e manifestações de doenças, a explicação da múltipla variedade dessas doenças e suas formas de expressão, são negligenciados in toto; pois tudo é igualmente posto a serviço do protesto masculino, da auto- afirmação e do enaltecimento da personalidade. O sistema está completo; produzi-lo custou enorme volume de trabalho de reformulação de interpretação, ao passo que ele próprio não forneceu uma única observação nova. Creio ter deixado claro que ele nada tem que ver com a psicanálise. A visão da vida refletida no sistema adleriano fundamenta-se exclusivamente no instinto agressivo; nele não há lugar para o amor. Talvez nos surpreenda que essa Weltanschauung tão melancólica tenha merecido alguma atenção, mas não devemos esquecer que os seres humanos, vergados sob o fardo de suas necessidades sexuais, estão prontos a aceitar qualquer coisa se pelo menos a “superação da sexualidade” lhes for oferecida como isca. A deserção de Adler ocorreu antes do Congresso de Weimar em 1911; depois dessa data teve início a dos suíços. Os primeiros sinais dela, o que é bastante curioso, foram certas observações de Riklin em uns artigos populares aparecidos em publicações suíças, de modo que o grande público soube, antes do que aqueles mais intimamente ligados ao assunto, que a psicanálise havia superado alguns erros lamentáveis que anteriormente a haviam desacreditado. Em 1912, Jung vangloriou-se, numa carta procedente dos Estados Unidos, de que suas modificações da psicanálise haviam vencido as resistências de muitas pessoas que até então não queriam nada com ela. Repliquei que aquilo não constituía nenhum motivo de vanglória, e que quanto mais ele sacrificasse as verdades da psicanálise conquistadas arduamente, mais veria as resistências desaparecendo. Essa modificação, da qual os suíços tanto se orgulharam, mais uma vez nada mais era do que impelir para o segundo plano o fator sexual na teoria psicanalítica. Confesso que desde o começo considerei esse “avanço” como um ajustamento muito exagerado às exigências da realidade. Esses dois movimentos de afastamento da psicanálise, que eu agora devo comparar um com o outro, assinalam outro ponto em comum: ambos cortejam uma opinião favorável mediante a formulação de certas idéias elevadas, que encaram as coisas, por assim dizer, sub specie aeternitatis. Em Adler, esse papel é desempenhado pela relatividade de todo conhecimento e pelo direito da personalidade de basear uma interpretação artificial nos dados de conhecimento A pré-história teológica de tantos suíços não explica sua atitude para com a psicanálise mais do que a pré-história socialista de Adler explica o desenvolvimento de sua psicologia. Isso nos faz lembrar a famosa história de Mark Twain sobre as coisas que aconteceram a seu relógio, e suas palavras conclusivas: “E ele ficava imaginando que fim tinham levado os funileiros, e armeiros, e sapateiros, e ferreiros fracassados; mas ninguém sabia dizer.” Suponhamos - para fazer uma comparação - que num determinado grupo social vive um parvenu (aventureiro) que se vangloria de ser descendente de uma família nobre que reside em outro lugar. Um dia se descobre que seus pais moram na vizinhança, e são pessoas muito modestas. Só há uma maneira de contornar essa dificuldade e ele se agarra a ela. Já não pode repudiar os pais, mas insiste em que são de linhagem nobre e que simplesmente perderam sua posição social no mundo; e consegue uma árvore genealógica de alguma fonte oficial complacente. Parece-me que os suíços foram obrigados a se comportar da mesma maneira. Se não se permitiu que a ética e a religião fossem sexualizadas porque tinham de ser algo de origem mais “elevada” e se, não obstante, as idéias nelas contidas pareciam ter-se, inegavelmente, originado do complexo de Édipo e do complexo familiar, só podia haver uma saída; que esses complexos não tenham o sentido que aparentam, mas contenham um elevado sentido “anagógico” (como Silberer o denomina) que tenha tornado possível o seu emprego nas abstratas seqüências de pensamento da ética e do misticismo religioso. Não será surpresa para mim ouvir dizer novamente que não compreendi a substância e objetivo da teoria neozuriquiana; mas o que me interessa é protestar antecipadamente contra pontos de vista contrários às minhas teorias que possam ser encontrados nas publicações daquela escola sendo atribuídos a mim e não a eles. Não vejo outro meio de tornar inteligível a mim próprio o conjunto de inovações de Jung, e de apreender todas as suas implicações. As modificações que Jung propôs que se fizessem na psicanálise decorrem todas de sua intenção de eliminar o lado reprovável dos complexos familiares para não voltar a encontrá-lo na religião e na ética. A libido sexual foi substituída por um conceito abstrato, sobre o qual se pode dizer com segurança que continua tão enigmático e incompreensível para os entendidos quanto para os leigos. O complexo de Édipo tem um significado meramente “simbólico”: a mãe, nele, representa o inacessível, a que se tem de renunciar no interesse da civilização; o pai que é assassinado no mito de Édipo é o pai “interior”, de quem nos devemos libertar a fim de nos tornarmos independentes. Outras partes do material das idéias sexuais serão, por certo, submetidas a reinterpretações semelhantes no decorrer do tempo. Em lugar de um conflito entre as tendências eróticas ego-distônicas e as autopreservadoras, surge um conflito entre as “tarefas da vida” e a “inércia psíquica”; o sentimento de culpa do neurótico corresponde a sua auto- recriminação por não cumprir adequadamente seu “trabalho de viver”. Dessa forma, criou-se um novo sistema ético-religioso, que, tal qual o sistema adleriano, estava destinado a reinterpretar, distorcer ou alijar os achados efetivos da análise. A verdade é que essas pessoas detectaram algumas nuanças culturais da sinfonia da vida e mais uma vez não deram ouvidos à poderosa e primordial melodia dos instintos. A fim de preservar intacto esse sistema, foi necessário afastar-se inteiramente da observação e da técnica da psicanálise. Vez por outra, o entusiasmo pela causa deu margem até mesmo à inobservância da lógica científica - quando Jung acha, por exemplo, que o complexo de Édipo não é bastante “específico” para a etiologia das neuroses, e passa a atribuir essa qualidade específica à inércia, a característica mais universal de toda matéria, animada e inanimada! Deve-se notar, a propósito, que o “complexo de Édipo” representa apenas um tópico com o qual as forças mentais do indivíduo têm de lidar, e não é, em si próprio, uma força, como a “inércia psíquica”. O estudo dos indivíduos tinha demonstrado (e sempre demonstrará) que os complexos sexuais em seu sentido original estão vivos neles. Em conseqüência disso, a investigação de indivíduos foi relegada a segundo plano [nas novas teorias] e substituída por conclusões baseadas em provas oriundas da pesquisa antropológica. O maior risco de defrontar-se com o sentido original e sem disfarces desses complexos reinterpretados seria na tenra infância de cada indivíduo; em conseqüência, na terapia estabeleceu-se a injunção de que essa história passada deve ser resolvida o mínimo possível e a ênfase principal posta no conflito do presente, no qual, além do mais, a coisa essencial de modo algum deveria ser o que era acidental e pessoal, mas o que era geral - de fato, a não-realização das tarefas da vida. Como sabemos, no entanto, o conflito de um neurótico torna-se compreensível e admite solução somente quando é remontado à sua pré-história, quando uma pessoa volta atrás ao longo do caminho que sua libido seguiu quando ela adoeceu. A forma assumida pela terapêutica neozuriquiana sob essas influências pode ser expressa nas palavras de um paciente que vivenciou isso pessoalmente: “Dessa vez nenhum vestígio de atenção foi dado ao passado ou à transferência. Onde quer que eu pensava haver apreendido esta última, diziam-me tratar-se de um puro símbolo libidinal. Os ensinamentos morais eram muito bonitos e eu os seguia fielmente, mas não avancei um passo. Isso era, naturalmente, muito mais incômodo para mim do que para ele, mas como poderia evitá-lo?… Em vez de libertar-me pela análise, cada dia fazia-me novas e tremendas exigências, que tinham de ser cumpridas se se quisesse que a neurose fosse dominada - por exemplo: concentração interior através da introversão, meditação religiosa, nova vida em comum com uma mulher com amor e dedicação etc. Isso estava quase além das forças de qualquer um; visava a uma radical transformação de toda a minha natureza interna. Deixei a análise como um pobre pecador, com intensos sentimentos de arrependimento e as melhores intenções, mas ao mesmo tempo totalmente desanimado. Qualquer sacerdote teria aconselhado o que ele recomendava, mas onde iria eu encontrar forças para isso?” O paciente chegou mesmo a lembrar ter ouvido falar que a análise do passado e da transferência deveria ser compreendida primeiramente, mas lhe haviam dito que disso ele já tivera o bastante. Desde que essa primeira espécie de análise não o havia ajudado mais, parece-me justificada a conclusão de que o paciente não tivera dela o bastante. Por certo, o tratamento subseqüente, que já não podia pretender chamar-se de psicanálise, não melhorou as coisas. É impressionante que os membros da escola de Zurique tivessem de fazer uma volta tão longa e passar por Viena para chegar à vizinha cidade de Berna, onde Dubois cura as neuroses por meio de incentivos morais, de uma maneira mais sensata. A incompatibilidade total desse novo movimento com a psicanálise também se revela na maneira de Jung encarar a repressão, que quase já não é mencionada em suas obras, na má compreensão dos sonhos - como Adler [ver em [1]], Jung confunde sonhos com pensamentos oníricos latentes, sem levar em consideração a psicologia dos sonhos - e na perda de toda a compreensão do inconsciente; em suma, em todos os pontos que devo considerar como a essência da psicanálise. Quando Jung nos diz que o complexo de incesto é meramente “simbólico”, que apesar de tudo não possui existência “real”, que afinal de contas um selvagem não sente nenhum desejo por uma mulher velha, prefere uma jovem e bonita, somos tentados a concluir que “simbólico” e “sem existência real” simplesmente significam algo que, em virtude de suas manifestações e efeitos patogênicos, é descrito pela psicanálise como “existindo inconscientemente” - descrição que elimina a contradição aparente. Se se tiver em mente que os sonhos são algo diferente dos pensamentos oníricos latentes que eles elaboram, não há nada de surpreendente em que os pacientes sonhem com coisas com as quais suas mentes tenham estado repletas durante o tratamento, sejam elas as “tarefas da vida”, “ficar por cima” ou “por baixo”. Não há a menor dúvidade que os sonhos de pessoas em análise podem ser dirigidos, da mesma maneira que o são por estímulos produzidos com fins experimentais. Pode-se determinar uma parte do material que aparece num sonho; nada da essência ou do mecanismo dos sonhos é alterado por isso. Também não acredito que os sonhos “biográficos”, como são chamados, ocorram fora da análise. Se, por outro lado, se analisam sonhos tidos antes do tratamento, ou se se consideram os próprios acréscimos do sonhador ao que lhe tem sido sugerido no tratamento, ou se se evita atribuir-lhe qualquer tarefa dessa natureza, então é fácil convencer-se como está longe da finalidade de um sonho produzir tentativas de solução para as tarefas da vida. Os sonhos são apenas uma forma de pensar; jamais se pode alcançar uma compreensão dessa forma tomando como ponto de referência o conteúdo dos pensamentos; somente uma apreciação do trabalho dos sonhos nos levará a essa compreensão. Não é difícil refutar com argumentos concretos as concepções errôneas de Jung sobre a psicanálise e os desvios dela. Toda análise conduzida de maneira adequada, e em particular toda análise de criança, fortalece as convicções sobre as quais se fundamenta a teoria da psicanálise, negando as reinterpretações feitas tanto pelos sistemas de Jung como de Adler. Nos dias que antecederam sua iluminação, o próprio Jung [1910b, v. pág. 40] levou a efeito e publicou uma análise dessa espécie, de uma criança; resta ver se ele empreenderá uma nova interpretação dos resultados dessa análise com a ajuda de um diferente “arranjo unilateral dos fatos”, para utilizar a expressão empregada por Adler nesse sentido (ver em [1] e [2]). A tradução mais literal do título deste artigo seria ‘Sobre a Introdução do Conceito de Narcisismo’. Freud já vinha empregando o termo há muitos anos. Sabemos por Ernest Jones (1955, 388) que numa reunião da Sociedade Psicanalítica de Viena, a 10 de novembro de 1909, Freud havia declarado que o narcisismo era uma fase intermediária necessária entre o auto- erotismo e o amor objetal. Mais ou menos na mesma época, ele preparava a segunda edição dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905d) para o prelo (o prefácio traz a data de ‘dezembro de 1909’), e parece provável que a primeira menção pública do novo termo se encontra numa nota de rodapé acrescentada àquela edição (Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 144-5 n, IMAGO Editora, 1972), presumindo-se, vale dizer, que a nova edição tenha aparecido no início de 1910, pois no fim de maio do mesmo ano apareceu o livro de Freud sobre Leonardo (1910c), no qual se faz referência consideravelmente mais extensa ao narcisismo (Edição Standard Brasileira, Vol. XI, pág. 92, IMAGO Editora, 1970). Um artigo de Rank sobre o assunto, mencionado por Freud no início do presente estudo, foi publicado em 1911, e outras referências do próprio Freud logo se seguiram: por exemplo, na Seção III da análise de Schreber (1911c) e em Totem e Tabu (1912-13), Edição Standard Brasileira, Vol. XIII, págs. 111-13, IMAGO Editora, 1974. A idéia de escrever o presente artigo surgiu nas cartas de Freud pela primeira vez em junho de 1913, tendo ele concluído uma primeira minuta do mesmo no correr de umas férias que passara em Roma na terceira semana de setembro do mesmo ano. Somente no fim de fevereiro de 1914 é que foi começada a versão final, concluída um mês depois. Trata-se de um dos mais importantes trabalhos de Freud, podendo ser considerado como um dos fatores centrais na evolução de seus conceitos. Resume suas primeiras discussões sobre o tema do narcisismo e considera o lugar ocupado pelo narcisismo no desenvolvimento sexual, indo, porém, além disso, pois penetra nos problemas mais profundos das relações entre o ego e os objetos externos, traçando a nova distinção entre ‘libido do ego’ e ‘libido objetal’. Outrossim - e talvez seja este o ponto mais importante -, introduz os conceitos do ‘ideal do ego’ e do agente auto-observador a ele relacionado, que constituíram a base do que, finalmente, veio a ser descrito como o ‘superego’ em The Ego and the Id (1923b). E, além disso tudo, em duas passagens do artigo - no final da primeira seção e no início da terceira - aborda as controvérsias com Adler e Jung, que foram o principal tema da ‘História do Movimento Psicanalítico’, escrita mais ou menos simultaneamente ao presente trabalho durante os primeiros meses de 1914. Na realidade, um dos motivos de Freud para escrever esse artigo foi, sem dúvida, demonstrar que o conceito de narcisismo oferece uma alternativa à ‘libido’ não-sexual de Jung e ao ‘protesto masculino’ de Adler. Estes estão longe de ser os únicos tópicos levantados no artigo, e por isso mesmo não causa surpresa sua aparência inusitada de ser supercondensado - sua estrutura prestes a estourar pela quantidade de material que contém. O próprio Freud parece ter sentido algo semelhante. Conta-nos Ernest Jones (1955-340) que ‘ele ficou muito insatisfeito com o resultado’ e escreveu a Abraham: ‘O “Narcisismo” teve um parto difícil e traz todas as marcas de uma deformação correspondente’. Por mais que isso possa ser assim, o artigo exige e recompensa um estudo prolongado, tendo sido o ponto de partida de muitas linhas de raciocínio ulteriores. Algumas destas, por exemplo, foram desenvolvidas em ‘Luto e Melancolia’ (1917e [1915]), pág. 249 mais adiante, e nos Capítulos VIII e XI de Group Psychology (1921c). O tema do narcisismo, pode-se acrescentar, ocupa a maior parte da Conferência XXVI das Introductory Lectures (1916-17). O ulterior desenvolvimento dos novos conceitos sobre a estrutura da mente, que já começam a se tornar evidentes no presente artigo, levou Freud a reavaliar algumas das afirmações feitas aqui, mormente no tocante ao funcionamento do ego. Nesse sentido, deve-se ressaltar que o significado que Freud atribuiu a ‘das Ich ‘ (quase invariavelmente traduzido por o ‘ego’ nesta edição) passou por gradativas modificações. De início, ele empregou a expressão sem grande precisão, tal como poderíamos falar de ‘o eu’; mas em seus últimos escritos deu-lhe um significado muito mais definido e restrito. O presente artigo ocupa um ponto de transição nesse desenvolvimento. O tópico, em sua totalidade, é examinado mais amplamente na Introdução do Editor Inglês a The Ego and the Id (1923b). Trechos da tradução desse artigo publicados em 1925 foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 118-41). SOBRE O NARCISISMO: UMA INTRODUÇÃO I O termo narcisismo deriva da descrição clínica e foi escolhido por Paul Näcke em 1899 para denotar a atitude de uma pessoa que trata seu próprio corpo da mesma forma pela qual o c.orpo de um objeto sexual é comumente tratado - que o contempla, vale dizer, o afaga e o acaricia até obter satisfação completa através dessas atividades. Desenvolvido até esse grau, o narcisismo passa a significar uma perversão que absorveu a totalidade da vida sexual do indivíduo, exibindo, conseqüentemente, as características que esperamos encontrar no estudo de todas as perversões. Observadores psicanalíticos foram subseqüentemente surpreendidos pelo fato de que aspectos individuais da atitude narcisista são encontrados em muitas pessoas que sofrem de outras perturbações - por exemplo, conforme Sadger ressaltou, em homossexuais -, e finalmente afigurou-se provável que uma localização da libido que merecesse ser descrita como narcisismo talvez estivesse presente em muito maior extensão, podendo mesmo reivindicar um lugar no curso regular do desenvolvimento sexual humano. Dificuldades do trabalho psicanalítico em neuróticos conduziram à mesma suposição, pois parecia que, neles, essa espécie de atitude narcisista constituía um dos limites à sua susceptibilidade à influência. O narcisismo nesse sentido não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva. Um motivo premente para nos ocuparmos com a concepção de um narcisismo primário e normal surgiu quando se fez a tentativa de incluir o que conhecemos da demência precoce (Kraepelin) ou da esquizofrenia (Bleuler) na hipótese da teoria da libido. Esse tipo de pacientes, que eu propus fossem denominados de parafrênicos, exibem duas características fundamentais: megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo - de pessoas e coisas. Em conseqüência da segunda modificação, tornam-se inacessíveis à influência da psicanálise e não podem ser curados por nossos esforços. Mas o afastamento do parafrênico do mundo externo necessita ser mais precisamente caracterizado. Um paciente que sofre de histeria ou de neurose obsessiva, enquanto sua doença persiste, também desiste de sua relação com a realidade. Mas a análise demonstra que ele de modo algum corta suas relações eróticas com as pessoas e as coisas. Ainda as retém na fantasia, isto é, ele substitui, por um lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos reais, ou mistura os primeiros com os segundos, e, por outro, renuncia à iniciação das atividades motoras para a obtenção de seus objetivos relacionados àqueles objetos. Essa é a única condição da libido a que podemos legitimamente aplicar o termo ‘introversão’ da libido, empregado por Jung indiscriminadamente. Com o parafrênico a situação é diferente. Ele parece realmente ter retirado sua libido de pessoas e coisas do mundo externo, sem substituí-las por outras na fantasia. Quando realmente as substitui, o processo parece ser secundário e constituir parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a libido de volta a objetos. Surge a questão: Que acontece à libido que foi afastada dos objetos externos na esquizofrenia? A megalomania característica desses estados aponta o caminho. Essa megalomania, sem dúvida, surge a expensas da libido objetal. A libido afastada do mundo externo é dirigida para o ego e assim dá margem a uma atitude que pode ser denominada de narcisismo. Mas a própria megalomania não constitui uma criação nova; pelo contrário, é, como sabemos, ampliação e manifestação mais clara de uma condição que já existia previamente. Isso nos leva a considerar o narcisismo que surge através da indução de catexias objetais como sendo secundário, superposto a um narcisismo primário que é obscurecido por diversas influências diferentes. Desejo ressaltar que não me proponho aqui explicar ou penetrar ainda mais no problema da esquizofrenia, limitando-me meramente a reunir o que já foi dito em outras ocasiões, a fim de justificar a introdução do conceito de narcisismo. separação dos instintos sexuais dos instintos do ego simplesmente refletiria essa função dúplice do indivíduo. Em terceiro lugar, devemos recordar que todas as nossas idéias provisórias em psicologia presumivelmente algum dia se basearão numa subestrutura orgânica. Isso torna provável que as substâncias especiais e os processos químicos sejam os responsáveis pela realização das operações da sexualidade, garantindo a extensão da vida individual na da espécie. Estamos levando essa probabilidade em conta ao substituirmos as substâncias químicas especiais por forças psíquicas especiais. Tento em geral manter a psicologia isenta de tudo que lhe seja diferente em natureza, inclusive das linhas biológicas de pensamento. Por essa mesma razão, gostaria, nessa altura, de admitir expressamente que a hipótese de instintos do ego e instintos sexuais separados (isto é, a teoria da libido) está longe de repousar, inteiramente, numa base psicológica, extraindo seu principal apoio da biologia. Mas serei suficientemente coerente [com minha norma geral] para abandonar essa hipótese, se o próprio trabalho psicanalítico vier a produzir alguma outra hipótese mais útil sobre os instintos. Até agora, isso não aconteceu. Pode ocorrer que, com mais fundamento e numa visão de maior alcance, a energia sexual - a libido - seja apenas o produto de uma diferenciação na energia que atua generalizadamente na mente. Mas tal assertiva não tem qualquer relevância. Relaciona-se com assuntos que se acham tão afastados dos problemas de nossa observação, e a respeito dos quais conhecemos tão pouco, que é igualmente ocioso contestá-la ou afirmá-la; essa identidade primordial talvez tenha tão pouco que ver com nossos interesses analíticos quanto o parentesco primordial de todas as raças da humanidade tem que ver com a prova de parentesco exigida a fim de se estabelecer um direito legal de herança. Todas essas especulações não nos levam a parte alguma. Visto não podermos esperar que outra ciência nos apresente as conclusões finais sobre a teoria dos instintos, é muito mais objetivo tentar ver que luz pode ser lançada sobre esse problema básico da biologia por uma síntese dos fenômenos psicológicos. Enfrentemos a possibilidade de erro, mas não nos deixemos dissuadir de buscar as implicações lógicas da hipótese, que em primeiro lugar adotamos, de uma antítese entre os instintos do ego e os instintos sexuais (hipótese à qual fomos forçosamente conduzidos pela análise das neuroses de transferência), e de verificar se ela se mostra destituída de contradições e se é profícua, e se pode ser aplicada também a outras perturbações, como a esquizofrenia. Seria, naturalmente, uma questão diferente se se provasse que a teoria da libido já fracassou na tentativa de explicar essa segunda doença. Isso foi asseverado por C. G. Jung (1912) e é por causa disso que me vi obrigado a entrar nessa última discussão, da qual gostaria de ter sido poupado. Teria preferido seguir até o fim o caminho trilhado na análise do caso Schreber sem qualquer discussão de suas premissas. Mas a asserção de Jung é, para dizer o mínimo, prematura. Os fundamentos que apresenta para ela são deficientes. Em primeiro lugar, recorre a uma confissão, que eu teria feito, de que fora obrigado, devido às dificuldades da análise de Schreber, a estender o conceito de libido (isto é, a desistir de seu conteúdo sexual) e a identificar a libido com o interesse psíquico em geral. Ferenczi (1913b), numa crítica exaustiva à obra de Jung, já disse tudo o que é necessário a título de correção dessa interpretação errônea. Posso apenas corroborar sua crítica e repetir que jamais fiz tal retratação no tocante à teoria da libido. Outro argumento de Jung, a saber, que não podemos supor que a retirada da libido seja em si mesma suficiente para acarretar a perda da função normal da realidade, não é um argumento, mas um ditame. ‘Incorre em petição de princípio’ e poupa discussão, pois se e como isso é possível era precisamente o ponto que devia estar sob investigação. Em sua grande obra seguinte, Jung (1913 [339-40]) simplesmente falha na solução que eu havia indicado: ‘Ao mesmo tempo’, escreve, ‘ainda há o seguinte a ser levado em consideração (um ponto ao qual, incidentalmente, Freud se refere em sua obra sobre o caso Schreber [1911c]) - que a introversão da libido sexualis conduz a uma catexia do “ego”, e que possivelmente é isso que produz o resultado de uma perda da realidade. É realmente uma possibilidade tentadora explicar a psicologia da perda da realidade dessa maneira’. Mas Jung não vai muito além no exame dessa possibilidade. Algumas linhas adiante ele a põe de lado com a observação de que essa determinante ‘resultaria na psicologia de um anacoreta ascético, não em demência precoce’. Quão pouco essa analogia inadequada pode ajudar-nos a resolver a questão fica claro pela consideração de que um anacoreta dessa espécie, que ‘tenta erradicar todos os traços de interesse sexual’ (mas só no sentido popular da palavra ‘sexual’), nem sequer necessariamente exibe qualquer localização patogênica da libido. Ele pode ter desviado inteiramente seu interesse sexual dos seres humanos; contudo, pode tê-lo sublimado num interesse elevado pelo divino, pela natureza, ou pelo reino animal, sem que sua libido tenha sofrido introversão até suas fantasias ou retorno a seu ego. Essa analogia pareceria excluir por antecipação a possibilidade de se estabelecer uma diferenciação entre o interesse que emana de fontes eróticas e os outros. Recordemos, além disso, que as pesquisas da escola suíça, por mais valiosas que sejam, elucidaram apenas duas facetas do quadro da demência precoce - a presença nele de complexos que conhecemos tanto em indivíduos saudáveis como em neuróticos e a similaridade das fantasias que nele ocorrem com mitos populares -, mas não puderam lançar mais luz alguma sobre o mecanismo da doença. Podemos, então, repudiar a asserção de Jung, segundo a qual a teoria da libido não só malogrou na tentativa de explicar a demência precoce, como também, portanto, é eliminada em relação às outras neuroses. II Parece-me que certas dificuldades especiais perturbam o estudo direto do narcisismo. Nosso principal meio de acesso a ele continuará a ser provavelmente a análise das parafrenias. Assim como as neuroses de transferência nos permitiram traçar os impulsos instintuais libidinais, também a demência precoce e a paranóia nos fornecerão uma compreensão interna (insight) da psicologia do ego. Mais uma vez, a fim de chegar à compreensão do que parece tão simples em fenômenos normais, teremos de recorrer ao campo da patologia com suas distorções e exageros. Ao mesmo tempo, outros meios de abordagem nos permanecem acessíveis, e através deles podemos obter um conhecimento melhor do narcisismo. Passarei a examiná-los agora, na seguinte ordem: o estudo da doença orgânica, da hipocondria e da vida erótica dos sexos. Ao avaliar a influência da doença orgânica sobre a distribuição da libido, sigo uma sugestão que me foi feita verbalmente por Sándor Ferenczi. É do conhecimento de todos, e eu o aceito como coisa natural, que uma pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a seu sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina que ela também retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa de amar. A banalidade desse fato não justifica que deixemos de traduzi-lo nos termos da teoria da libido. Devemos então dizer: o homem enfermo retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio ego, e as põe para fora novamente quando se recupera. ‘Concentrada está a sua alma’, diz Wilhelm Busch a respeito do poeta que sofre de dor de dentes, ‘no estreito orifício do molar’. Aqui a libido e o interesse do ego partilham do mesmo destino e são mais uma vez indistiguíveis entre si. O egoísmo familiar do enfermo abrange os dois. Achamos isso tão natural porque estamos certos de que, na mesma situação, nosso comportamento seria idêntico. A maneira pela qual os sentimentos de quem ama, por mais fortes que sejam, são banidos pelos males corpóreos, e de súbito substituídos por uma indiferença completa, constitui um tema que tem sido consideravelmente explorado por escritores humorísticos. A condição do sono também se assemelha à doença, por acarretar uma retirada narcisista das posições da libido até o próprio eu do indivíduo, ou, mais precisamente, até o desejo único de dormir. O egoísmo dos sonhos ajusta-se muito bem nesse contexto. [ver em [1]]. Em ambos os estados temos, pelo menos, exemplos de alterações na distribuição da libido que são resultantes de uma modificação no ego. A hipocondria, da mesma forma que a doença orgânica, manifesta-se em sensações corpóreas aflitivas e penosas, tendo sobre a distribuição da libido o mesmo efeito que a doença orgânica. O hipocondríaco retira tanto o interesse quanto a libido - a segunda de forma especialmente acentuada - dos objetos do mundo externo, concentrando ambos no órgão que lhe prende a atenção. Torna-se agora evidente uma diferença entre a hipocondria e a doença orgânica: na segunda, as sensações aflitivas baseiam-se em mudanças demonstráveis [orgânicas]; na primeira, isso não ocorre. Mas estaria inteiramente de acordo com nossa concepção geral dos processos de neurose, se resolvêssemos dizer que a hipocondria deve estar certa: deve-se supor que as modificações orgânicas também estão presentes nela. Mas o que seriam essas mudanças? Deixar-nos-emos guiar, nessa altura, por nossa experiência, a qual mostra que as sensações corpóreas de natureza desagradável, comparáveis às da hipocondria, ocorrem também nas outras neuroses. Já tive ocasião de dizer que me inclino (afastamento da libido dos seus objetos e, além disso, megalomania, hipocondria, perturbações afetivas e todo tipo de regressão); (3) os que representam a restauração, nos quais a libido é mais uma vez ligada a objetos, como uma histeria (na demência precoce ou na parafrenia propriamente dita), ou como numa neurose obsessiva (na paranóia). Essa nova catexia libidinal difere da primária por partir de outro nível e sob outras condições. A diferença entre as neuroses de transferência que ocorrem no caso de nova espécie de catexia libidinal e as formações correspondentes onde o ego é normal devem ser capazes de nos proporcionar a compreensão interna (insight) mais profunda da estrutura de nosso aparelho mental. Uma terceira maneira pela qual podemos abordar o estudo do narcisismo é através da observação da vida erótica dos seres humanos, com suas várias espécies de diferenciação no homem e na mulher. Assim como a libido objetal inicialmente ocultava de nossa observação a libido do ego, também em relação à escolha de objeto nas crianças de tenra idade (e nas crianças em crescimento) o que primeiro notamos foi que elas derivavam seus objetos sexuais de suas experiências de satisfação. As primeiras satisfações sexuais auto-eróticas são experimentadas em relação com funções vitais que servem à finalidade de autopreservação. Os instintos sexuais estão, de início, ligados à satisfação dos instintos do ego; somente depois é que eles se tornam independentes destes, e mesmo então encontramos uma indicação dessa vinculação original no fato de que os primeiros objetos sexuais de uma criança são as pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção: isto é, no primeiro caso, sua mãe ou quem quer que a substitua. Lado a lado, contudo, com esse tipo e fonte de escolha objetal, que pode ser denominado o tipo ‘anaclítico’, ou de ‘ligação’, a pesquisa da psicanálise revelou um segundo tipo, que não estávamos preparados para encontrar. Descobrimos, de modo especialmente claro, em pessoas cujo desenvolvimento libidinal sofreu alguma perturbação, tais como pervertidos e homossexuais, que em sua escolha ulterior dos objetos amorosos elas adotaram como modelo não sua mãe mas seus próprios eus. Procuram inequivocamente a si mesmas como um objeto amoroso, e exibem um tipo de escolha objetal que deve ser denominado ‘narcisista’. Nessa observação, temos o mais forte dos motivos que nos levaram a adotar a hipótese do narcisismo. Não concluímos, contudo, que os seres humanos se acham divididos em dois grupos acentuadamente diferenciados, conforme sua escolha objetal se coadune com o tipo anaclítico ou o narcisista; pelo contrário, presumimos que ambos os tipos de escolha objetal estão abertos a cada indivíduo, embora ele possa mostrar preferência por um ou por outro. Dizemos que um ser humano tem originalmente dois objetos sexuais - ele próprio e a mulher que cuida dele - e ao fazê-lo estamos postulando a existência de um narcisismo primário em todos, o qual, em alguns casos, pode manifestar-se de forma dominante em sua escolha objetal. Uma comparação entre os sexos masculino e feminino indica então que existem diferenças fundamentais entre eles no tocante a seu tipo de escolha objetal, embora essas diferenças naturalmente não sejam universais. O amor objetal completo do tipo de ligação é, propriamente falando, característico do indivíduo do sexo masculino. Ele exibe a acentuada supervalorização sexual que se origina, sem dúvida, do narcisismo original da criança, correspondendo assim a uma transferência desse narcisismo para o objeto sexual. Essa supervalorização sexual é a origem do estado peculiar de uma pessoa apaixonada, um estado que sugere uma compulsão neurótica, cuja origem pode, portanto, ser encontrada num empobrecimento do ego em relação à libido em favor do objeto amoroso. Já com o tipo feminino mais freqüentemente encontrado, provavelmente o mais puro e o mais verdadeiro, o mesmo não ocorre. Com o começo da puberdade, o amadurecimento dos órgãos sexuais femininos, até então em estado de latência, parece ocasionar a intensificação do narcisismo original, e isso é desfavorável para o desenvolvimento de uma verdadeira escolha objetal com a concomitante supervalorização sexual. As mulheres, especialmente se forem belas ao crescerem, desenvolvem certo autocontentamento que as compensa pelas restrições sociais que lhes são impostas em sua escolha objetal. Rigorosamente falando, tais mulheres amam apenas a si mesmas, com uma intensidade comparável à do amor do homem por elas. Sua necessidade não se acha na direção de amar, mas de serem amadas; e o homem que preencher essa condição cairá em suas boas graças. A importância desse tipo de mulher para a vida erótica da humanidade deve ser levada em grande consideração. Tais mulheres exercem o maior fascínio sobre os homens, não apenas por motivos estéticos, visto que em geral são as mais belas, mas também por uma combinação de interessantes fatores psicológicos, pois parece muito evidente que o narcisismo de outra pessoa exerce grande atração sobre aqueles que renunciaram a uma parte de seu próprio narcisismo e estão em busca do amor objetal. O encanto de uma criança reside em grande medida em seu narcisismo, seu autocontentamento e inacessibilidade, assim como também o encanto de certos animais que parecem não se preocupar conosco, tais como os gatos e os grandes animais carniceiros. Realmente, mesmo os grandes criminosos e os humoristas, conforme representados na literatura, atraem nosso interesse pela coerência narcisista com que conseguem afastar do ego qualquer coisa que o diminua. É como se os invejássemos por manterem um bem-aventurado estado de espírito - uma posição libidinal inatacável que nós próprios já abandonamos. O grande encanto das mulheres narcisistas tem, contudo, o seu reverso; grande parte da insatisfação daquele que ama, de suas dúvidas quanto ao amor da mulher, de suas queixas quanto à natureza enigmática da mulher, tem suas raízes nessa incongruência entre os tipos de escolha de objeto. Talvez não seja fora de propósito apresentar aqui a certeza de que essa descrição da forma feminina de vida erótica não se deve a qualquer desejo tendencioso de minha parte no sentido de depreciar as mulheres. Afora o fato de essa tendenciosidade ser inteiramente estranha a mim, sei que essas diferentes linhas de desenvolvimento correspondem à diferenciação de funções num todo biológico altamente complicado; além disso, estou pronto a admitir que existe um número bem grande de mulheres que amam de acordo com os moldes do tipo masculino e que também desenvolvem a supervalorização sexual própria àquele tipo. Mesmo para as mulheres narcisistas, cuja atitude para com os homens permanece fria, há um caminho que eleva ao amor objetal completo. Na criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as confronta como um objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo, podem então dar um amor objetal completo. Existem ainda outras mulheres que não têm de esperar por um filho a fim de darem um passo no desenvolvimento do narcisismo (secundário) para o amor objetal. Antes da puberdade, sentem-se masculinas e se desenvolvem de alguma forma ao longo de linhas masculinas; depois de essa tendência ter sido interrompida de repente ao alcançarem a maturidade feminina, ainda retêm a capacidade de anseio por um ideal masculino - ideal que é de fato uma sobrevivência da natureza de menino que outrora possuíram. O que eu disse até agora à guisa de indicação pode ser concluído por um breve sumário dos caminhos que levam à escolha de um objeto. Uma pessoa pode amar: (1)Em conformidade com o tipo narcisista: (a) o que ela própria é (isto é, ela mesma), (b) o que ela própria foi, (c) o que ela própria gostaria de ser, (d) alguém que foi uma vez parte dela mesma. (2)Em conformidade com o tipo anaclítico (de ligação): (a) a mulher que a alimenta, (b) o homem que a protege, e a sucessão de substitutos que tomam o seu lugar. A inclusão do caso (c) do primeiro tipo não pode ser justificada até uma etapa posterior deste exame. [ver em [1]] A significância da escolha objetal narcisista para a homossexualidade nos homens deve ser considerada em relação a outra coisa. O narcisismo primário das crianças por nós pressuposto e que forma um dos postulados de nossas teorias da libido é menos fácil de apreender pela observação direta do que de confirmar por alguma outra inferência. Se prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram. O indicador digno de confiança constituído pela supervalorização, que já reconhecemos como um estigma narcisista no caso da escolha objetal, domina, como todos nós sabemos, sua atitude emocional. Assim eles se acham sob a compulsão de atribuir todas as perfeições ao filho - o que uma observação sóbria não permitiria - e de ocultar e esquecer todas as deficiências dele. (Incidentalmente, a negação da sexualidade nas crianças está relacionada a isso.) Além disso, sentem-se inclinados a suspender, em favor da criança, o funcionamento de todas as aquisições culturais que seu próprio narcisismo foi forçado a respeitar, e a renovar em nome dela as reivindicações aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados. A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará instinto, e a idealização, algo que tem que ver com o objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro. A formação de um ideal do ego é muitas vezes confundida com a sublimação do instinto, em detrimento de nossa compreensão dos fatos. Um homem que tenha trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado do ego, nem por isso foi necessariamente bem-sucedido em sublimar seus instintos libidinais. É verdade que o ideal do ego exige tal sublimação, mas não pode fortalecê-la; a sublimação continua a ser um processo especial que pode ser estimulado pelo ideal, mas cuja execução é inteiramente independente de tal estímulo. É precisamente nos neuróticos que encontramos as mais acentuadas diferenças de potencial entre o desenvolvimento de seu ideal do ego e a dose de sublimação de seus instintos libidinais primitivos; e em geral é muito mais difícil convencer um idealista a respeito da localização inconveniente de sua libido do que um homem simples, cujas pretensões permaneceram mais moderadas. Além disso, a formação de um ideal do ego e a sublimação se acham relacionadas, de forma bem diferente, à causação da neurose. Como vimos, a formação de um ideal aumenta as exigências do ego, constituindo o fator mais poderoso a favor da repressão; a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão. Não nos surpreenderíamos se encontrássemos um agente psíquico especial que realizasse a tarefa de assegurar a satisfação narcisista proveniente do ideal do ego, e que, com essa finalidade em vista, observasse constantemente o ego real, medindo-o por aquele ideal. Admitindo-se que esse agente de fato exista, de forma alguma seria possível chegar a ele como se fosse uma descoberta - podemos tão-somente reconhecê-lo, pois podemos supor que aquilo que chamamos de nossa ‘consciência’ possui as características exigidas. O reconhecimento desse agente nos permite compreender os chamados ‘delírios de sermos notados’ ou, mais corretamente, de sermos vigiados, que constituem sintomas tão marcantes nas doenças paranóides, podendo também ocorrer como uma forma isolada de doença, ou intercalados numa neurose de transferência. Pacientes desse tipo queixam-se de que todos os seus pensamentos são conhecidos e suas ações vigiadas e supervisionadas; eles são informados sobre o funcionamento desse agente por vozes que caracteristicamente lhes falam na terceira pessoa (‘Agora ela está pensando nisso de novo’, ‘Agora ele está saindo’). Essa queixa é justificada; ela descreve a verdade. Um poder dessa espécie, que vigia, que descobre e que critica todas as nossas intenções, existe realmente. Na realidade, existe em cada um de nós em nossa vida normal. Os delírios de estar sendo vigiado apresentam esse poder numa forma regressiva, revelando assim sua gênese e a razão por que o paciente fica revoltado contra ele, pois o que induziu o indivíduo a formar um ideal do ego, em nome do qual sua consciência atua como vigia, surgiu da influência crítica de seus pais (transmitida a ele por intermédio da voz), aos quais vieram juntar-se, à medida que o tempo passou, aqueles que o educaram e lhe ensinaram, a inumerável e indefinível coorte de todas as outras pessoas de seu ambiente - seus semelhantes - e a opinião pública. Dessa forma, grandes quantidades de libido de natureza essencialmente homossexual são introduzidas na formação do ideal do ego narcisista, encontrando assim um escoadouro e satisfação em conservá-lo. A instituição da consciência foi, no fundo, uma personificação, primeiro da crítica dos pais, e, subseqüentemente, da sociedade - processo que se repete quando uma tendência à repressão se desenvolve de uma proibição ou obstáculo que proveio, no primeiro caso, de fora. As vozes, bem como a multidão indefinida, são reconduzidas ao primeiro plano pela doença, e assim a evolução da consciência se reproduz de forma regressiva. Mas a revolta contra esse ‘agente de censura’ brota não só do desejo, por parte do indivíduo (de acordo com o caráter fundamental de sua doença), de libertar-se de todas essas influências, a começar pela dos pais, mas também do fato de retirar sua libido homossexual delas. A consciência do paciente então se confronta com ele de maneira regressiva, como sendo uma influência hostil vinda de fora. As queixas feitas pelos paranóicos também revelam que, no fundo, a autocrítica da consciência coincide com a auto-observação na qual ela se baseia. Assim, a atividade da mente que assumiu a função da consciência também se coloca a serviço da pesquisa interna, que proporciona à filosofia o material para as suas operações intelectuais. Isso pode ter certa relação com a tendência, característica dos paranóicos, de formar sistemas especulativos. Por certo será de grande importância para nós encontrar provas da atividade desse agente criticamente observador - que se torna elevada na consciência e na introspecção filosófica - também em outros campos. Mencionarei aqui o que Herbert Silberer denominou de ‘fenômeno funcional’, um dos poucos acréscimos indiscutivelmente valiosos à teoria dos sonhos. Silberer, como sabemos, demonstrou que em estados entre o sono e a vigília podemos observar diretamente a tradução dos pensamentos em imagens visuais, mas que, nessas circunstâncias, com freqüência temos a representação, não de um conteúdo do pensamento, mas do estado real (disposição, fadiga etc.) da pessoa que luta contra o sono. De forma semelhante, revelou que as conclusões de alguns sonhos ou de algumas divisões de seu conteúdo significam meramente a própria percepção, por parte daquele que sonha, do seu estado de sono ou de vigília. Silberer demonstrou assim o papel desempenhado pela observação - no sentido dos delírios do paranóico quanto a estar sendo vigiado - na formação dos sonhos. Esse papel não é constante. Provavelmente, desprezei-o por não desempenhar um papel relevante em meus próprios sonhos; nas pessoas filosoficamente dotadas e habituadas à introspecção ele pode tornar-se bastante evidente. Lembremo-nos aqui de já termos verificado que a formação de sonhos ocorre sob o domínio de uma censura que força a distorção dos pensamentos oníricos. Não figuramos, contudo, essa censura como tendo um poder especial, mas escolhemos o termo para designar uma faceta das tendências repressivas que regem o ego, a saber, a faceta que está voltada para os pensamentos oníricos. Se penetrarmos ainda mais na estrutura do ego, também poderemos reconhecer, no ideal do ego e nas expressões orais dinâmicas da consciência, o censor dos sonhos. Se esse censor estiver, até certo ponto, alerta, mesmo durante o sono, poderemos compreender como sua atividade sugerida de auto-observação e de autocrítica - com pensamentos tais como ‘agora ele está com muito sono para pensar’, ‘agora ele está despertando’ - presta uma contribuição ao conteúdo do sonho. Nessa altura, podemos tentar um exame da atitude de auto-estima nas pessoas normais e nos neuróticos. Em primeiro lugar, parece-nos que a auto-estima expressa o tamanho do ego; os vários elementos que irão determinar esse tamanho são aqui irrelevantes. Tudo o que uma pessoa possui ou realiza, todo remanescente do sentimento primitivo de onipotência que sua experiência tenha confirmado, ajuda-a a aumentar sua auto-estima. Aplicando nossa distinção entre os instintos sexuais e os do ego, devemos reconhecer que a auto-estima depende intimamente da libido narcisista. Aqui somos apoiados por dois fatos fundamentais: o de que, nos parafrênicos, a auto-estima aumenta, enquanto que nas neuroses de transferência ela se reduz; e o de que, nas relações amorosas, o fato de não ser amado reduz os sentimentos de auto-estima, enquanto que o de ser amado os aumenta. Como já tivemos ocasião de assinalar, a finalid-ade e satisfação em uma escolha objetal narcisista consiste em ser amado. Além disso, é fácil observar que a catexia objetal libidinal não eleva a auto-estima. A dependência ao objeto amado tem como efeito a redução daquele sentimento: uma pessoa apaixonada é humilde. Um indivíduo que ama priva-se, por assim dizer, de uma parte de seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa por ele. Sob todos esses aspectos, a auto-estima parece ficar relacionada com o elemento narcisista do amor. A compreensão da impotência, da própria incapacidade de amar, em conseqüência de perturbação física ou mental, exerce um efeito extremamente diminuidor sobre a auto-estima. Aqui, em minha opinião, devemos procurar uma das fontes dos sentimentos de inferioridade experimentados por pacientes que sofrem de neuroses de transferência, sentimentos que esses pacientes estão prontos a relatar. A principal fonte desses sentimentos é, contudo, o empobrecimento do ego, por causa das enormes catexias libidinais dele retiradas - por causa, vale dizer, do dano sofrido pelo ego em função de tendências sexuais que já não estão sujeitas a controle. Adler [1907] tem razão quando sustenta que, quando uma pessoa dotada de vida mental ativa reconhece uma inferioridade em um de seus órgãos, isso age como estímulo, provocando nessa pessoa um nível mais elevado de realização mediante supercompensação. Mas, definitivamente, incorreríamos em exagero se, seguindo o exemplo de Adler, procurássemos atribuir toda realização bem-sucedida a essa inferioridade original de um órgão. Nem todos os pintores são desfavorecidos por uma visão deficiente, e nem todos os oradores foram um número indefinido de pessoas. A freqüente causação da paranóia por um dano ao ego, por uma frustração da satisfação dentro da esfera do ideal do ego, é tornada assim mais inteligível, bem como a convergência da formação do ideal e da sublimação no ideal do ego, e ainda a involução das sublimações e a possível transformação de ideais em perturbações parafrênicas. ARTIGOS SOBRE METAPSICOLOGIA INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS Freud publicou o primeiro relato ampliado de seus conceitos sobre teoria psicológica no sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos (1900a) (Edição Standard Brasileira, Vols. IV-V, IMAGO Editora, 1972), que incorpora, de forma transmudada, parte da substância de seu ‘Projeto’ anterior e inédito (1950a [1895]). Afora breves apreciações ocasionais, como a do Capítulo VI de seu livro sobre chistes (1905c), dez anos se passaram antes que ele tornasse a penetrar profundamente nos problemas teóricos. A um artigo exploratório sobre ‘The Two Principles of Mental Functioning’ (1911b) seguiram-se outras abordagens mais ou menos experimentais - na Parte III de sua análise de Schreber (1911c), em seu artigo em inglês sobre o inconsciente (1912g), e na longa discussão sobre o narcisismo (1914c). Finalmente, na primavera e no verão de 1915, ele mais uma vez empreendeu uma exposição completa e sistemática de suas teorias psicológicas. Os cinco artigos que se seguem formam uma série interligada. Conforme sabemos por uma nota de rodapé ao quarto desses artigos (ver em [1]), fazem parte de uma coletânea que Freud havia originalmente planejado publicar em forma de livro sob o título Zur Verbereitung einer Metapsychologie (Preliminares a uma Metapsicologia). Ele acrescenta que a intenção da série era proporcionar um fundamento teórico estável à psicanálise. Embora os três primeiros desses artigos tivessem sido publicados em 1915 e os dois últimos em 1917, sabemos pelo Dr. Ernest Jones (1955, 208) que de fato todos foram escritos num período de cerca de sete semanas entre 15 de março e 4 de maio de 1915. Também sabemos pelo Dr. Jones (ibid., 209) que mais sete artigos foram acrescentados à série durante os três meses seguintes, tendo sido toda a coletânea de doze concluída em 9 de agosto. Esses outros sete artigos, contudo, nunca foram publicados por Freud, parecendo provável que numa data posterior ele os tenha destruído, uma vez que não se encontrou vestígio algum dos mesmos. Na realidade, sua própria existência permaneceu desconhecida ou esquecida até que o Dr. Jones veio a examinar as cartas de Freud. Na época em que escrevia, em 1915, manteve seus correspondentes (Abraham, Ferenczi e Jones) informados do seu andamento, mas parece existir apenas uma única referência aos mesmos depois, numa carta a Abraham, em novembro de 1917. Esta deve ter sido escrita mais ou menos na mesma época da publicação dos dois últimos artigos vindo a lume, e parece dar a entender que os sete outros ainda existiam e que ele ainda pretendia publicá-los, embora sentisse que o momento oportuno não havia chegado. Temos conhecimento dos assuntos tratados por cinco dos últimos sete artigos: Consciência, Ansiedade, Histeria de Conversão, Neurose Obsessiva e as Neuroses de Transferência em Geral, e podemos descobrir possíveis referências aos mesmos nos artigos remanescentes. Podemos até mesmo adivinhar os assuntos que talvez tenham sido abordados pelos dois artigos não especificados - a saber, Sublimação e Projeção (ou Paranóia) -, pois há alusões mais ou menos claras a eles. A coletânea dos doze artigos teria sido assim abrangente, tratando dos processos subjacentes na maioria das principais neuroses e psicoses (histeria de conversão, histeria de angústia, neurose obsessiva, insanidade maníaco-depressiva e paranóia) bem como nos sonhos, com os mecanismos mentais de repressão, sublimação, introjeção e projeção, e com os dois sistemas mentais da consciência e o inconsciente. É difícil exagerar o que perdemos com o desaparecimento desses artigos. Havia uma conjunção sui generis de fatores favoráveis na época em que Freud os escreveu. Seu principal trabalho teórico (o sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos) fora escrito quinze anos antes, numa etapa relativamente inicial de seus estudos psicológicos. Agora, contudo, ele contava com cerca de vinte e cinco anos de experiência psicanalítica em que basear suas construções teóricas, estando no ápice de sua capacidade intelectual. E foi nessa época que a circunstância acidental da redução de sua clínica, devida à irrupção da Primeira Guerra Mundial, lhe deu o necessário lazer durante cinco meses, nos quais pôde levar a cabo seu projeto. Uma tentativa de consolo reside, sem dúvida, na reflexão de que grande parte do conteúdo dos artigos desaparecidos deve ter chegado aos escritos ulteriores de Freud. Mas muito daríamos para possuir apreciações conexas sobre assuntos tais como consciência ou sublimação, em lugar das alusões dispersas e relativamente escassas com as quais temos, de fato, de nos contentar. Em vista da importância especial dessa série de artigos, a fidelidade de seu raciocínio e a ocasional obscuridade dos tópicos de que tratam, foram enviados esforços extraordinários para exprimi-los com exatidão. A tradução em todos os seus pormenores (e especialmente onde há trechos duvidosos) acompanhou tão de perto o texto alemão quanto possível, mesmo correndo o risco de tornar árida a sua leitura. (Termos não-ingleses como, por exemplo, ‘o reprimido’ e ‘o mental’ foram empregados com o máximo de liberdade.) Embora a versão publicada em 1925 tenha servido de base, a que se segue é uma tradução inteiramente nova. Também se afigurou razoável incluir mais do que a quantidade comum de material introdutório, anotar o texto com o máximo de liberdade e, em particular, apresentar amplas referências a outras partes dos escritos de Freud que possam lançar luz sobre quaisquer obscuridades. Uma relação dos seus trabalhos teóricos mais importantes será encontrada num apêndice, no fim da série (ver em [1]). Trechos das traduções publicadas em 1925 de ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’, ‘Repressão’ e ‘Luto e Melancolia’ foram incluídos em A General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 79-98, 99-110 e 142-161). OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES (1915) NOTA DO EDITOR INGLÊS TRIEBE UND TRIEBSCHICKSALE termo ‘instinto’ quase não é encontrado nas obras do período de Breuer, ou na correspondência com Fliess, ou mesmo em A Interpretação de Sonhos (1900a). Só a partir dos Três Ensaios (1905d) é que o ‘instinto sexual’ é livremente mencionado como tal; os ‘impulsos instintuais’, que iriam tornar-se um dos termos mais comuns de Freud, parecem não ter aparecido antes do artigo sobre ‘Obsessive Actions and Religions Practices’ (1907b). Mas isso é primordialmente apenas um aspecto verbal: os instintos apareciam, naturalmente, sob outro nome. Empregavam- se amplamente em seu lugar expressões como ‘excitações’, ‘idéias afetivas’, ‘impulsos anelantes’, ‘estímulos endógenos’, e assim por diante. Por exemplo, traça-se adiante (ver em [1]) uma distinção entre um ‘estímulo’, que atua como uma força geradora de um impacto isolado, e um ‘instinto’, que sempre atua como constante. Essa distinção precisa fora traçada por Freud vinte anos antes com palavras quase idênticas, salvo que, em vez de ‘estímulo’ e ‘instinto’, ele se referiu a excitações ‘endógenas’ e ‘exógenas’. De forma semelhante, Freud ressalta adiante (ver em [1]) que o organismo primitivo não pode atuar de forma evasiva contra as necessidades instintuais como o faz contra estímulos externos. Também nesse caso ele previra a idéia vinte anos antes, embora mais uma vez a expressão empregada fosse ‘estímulos endógenos’. Esse segundo trecho, na Seção 1da Parte I do ‘Projeto’ (1950a [1895]), continua dizendo que esses estímulos endógenos ‘têm sua origem nas células do corpo e dão lugar às necessidades principais: fome, respiração e sexualidade’, mas em nenhuma parte aparece o termo ‘instinto’. O conflito subjacente às psiconeuroses foi, nesse período inicial, às vezes descrito como situado entre ‘o ego’ e a ‘sexualidade’, e embora o termo ‘libido’ fosse com freqüência empregado, o conceito era o de uma manifestação de ‘tensão sexual somática’, que por sua vez era considerada como um evento químico. Somente nos Três Ensaios foi a libido explicitamente estabelecida como sendo uma expressão de instinto sexual. O outro elemento do conflito, ‘o ego’, permaneceu indefinido por muito tempo. Foi examinado principalmente em relação a suas funções - em particular a ‘repressão’, a ‘resistência’, e o ‘teste da realidade’ -, mas (à parte uma tentativa muito antiga na Seção 14 da Parte I do ‘Projeto’) pouco se disse quer da sua estrutura, quer da sua dinâmica. Quase nunca fez referência aos instintos ‘autopreservativos’, salvo indiretamente em relação à teoria de que a libido se ligara a eles nas fases iniciais de seu desenvolvimento; e parecia não haver razão óbvia para estabelecer uma conexão entre eles e o papel desempenhado pelo ego enquanto agente repressivo em conflitos neuróticos. Então, de modo aparentemente repentino, num breve artigo sobre perturbações psicogênicas da visão (1910i), Freud introduziu a expressão ‘instintos do ego’, identificando-os, por um lado, com os instintos autopreservativos, e, por outro, com a função repressiva. A partir dessa época, o conflito foi regularmente representado como estando entre dois conjuntos de instintos - os instintos da libido e os instintos do ego. A introdução do conceito de ‘narcisismo’, contudo, originou uma complicação. Em seu artigo sobre aquela teoria (1914c), Freud apresentou a idéia da ‘libido do ego’ (ou ‘libido narcisista’) que catexiza o ego, em contraste com a ‘libido objetal’ que catexiza objetos (ver em [1] acima). Um trecho desse artigo (loc. cit.), bem como uma observação no presente artigo (ver em [1]), já revelam uma inquietação de sua parte quanto à possibilidade de sua classificação ‘dualista’ dos instintos perdurar. É verdade que na análise de Schreber (1911c) ele insistia na diferença entre ‘catexias do ego’ e ‘libido’, e entre ‘interesse que emana de fontes eróticas’ e ‘interesse em geral’ - distinção que reaparece na réplica a Jung no artigo sobre narcisismo (págs. 87-8) acima. O termo ‘interesse’ é empregado novamente no presente artigo (pág. 140); e na Conferência XXVI das Introductory Lectures (1916-17) ‘interesse do ego’ ou simplesmente ‘interesse’ é em geral posto em contraste com ‘libido’. Não obstante, a natureza exata desses instintos não libidinais era obscura. O ponto crucial da classificação dos instintos feita por Freud foi alcançado em Beyond the Pleasure Principle (1920g). No Capítulo VI daquela obra ele reconheceu francamente a dificuldade da posição que fora alcançada, declarando explicitamente que a ‘libido narcisista era, sem dúvida, uma manifestação da força do instinto sexual’ e que ‘tinha de ser identificada com os “instintos autopreservativos.”’ (Standard Ed., 18, pág. 50 e segs.) Ainda sustentava, contudo, que havia instintos do ego e instintos objetais que não eram libidinais; e foi aqui que, ainda vinculado a um ponto de vista dualista, introduziu sua hipótese do instinto de morte. Um relato do desenvolvimento de seus conceitos sobre a classificação dos instintos até aquele ponto foi apresentado na longa nota de rodapé no final do Capítulo VI de Beyond the Pleasure Principle, Standard Ed., 18, 60-1, e uma ulterior discussão do assunto, à luz de seu quadro recém-concluído da estrutura da mente, ocupou o Capítulo IV de The Ego and the Id (1923b). Percorreu todo o terreno mais uma vez com grandes detalhes no Capítulo VI de O Mal-Estar na Civilização (1930a) (Edição Standard Brasileira, Vol. XXI, IMAGO Editora, 1974), dispensando ali, pela primeira vez, especial consideração aos instintos agressivos e destrutivos. Antes prestara pouca atenção a eles, exceto onde (como no sadismo e no masoquismo) se achavam fundidos com elementos libidinais, mas agora os examinava em sua forma pura e os explicava como derivados do instinto de morte. Uma revisão ainda ulterior do assunto será encontrada na segunda metade da Conferência XXXII das New Introductory Lectures (1933a) e num resumo final, no Capítulo II, da obra póstuma Esboço de Psicanálise (1940a [1938]) (Edição Standard Brasileira, Vol. XXIII, IMAGO Editora, 1974.) OS INSTINTOS E SUAS VICISSITUDES Ouvimos com freqüência a afirmação de que as ciências devem ser estruturadas em conceitos básicos claros e bem definidos. De fato, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da atividade científica consiste antes na descrição dos fenômenos, passando então a seu agrupamento, sua classificação e sua correlação. Mesmo na fase de descrição não é possível evitar que se apliquem certas idéias abstratas ao material manipulado, idéias provenientes daqui e dali, mas por certo não apenas das novas observações. Tais idéias - que depois se tornarão os conceitos básicos da ciência - são ainda mais indispensáveis à medida que o material se torna mais elaborado. Devem, de início, possuir necessariamente certo grau de indefinição; não pode haver dúvida quanto a qualquer delimitação nítida de seu conteúdo. Enquanto permanecem nessa condição, chegamos a uma compreensão acerca de seu significado por meio de repetidas referências ao material de observação do qual parecem ter provindo, mas ao qual, de fato, foram impostas. Assim, rigorosamente falando, elas são da natureza das convenções - embora tudo dependa de não serem arbitrariamente escolhidas mas determinadas por terem relações significativas com o material empírico, relações que parecemos sentir antes de podermos reconhecê-las e determiná- las claramente. Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação, somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes numa vasta área. Então, na realidade, talvez tenha chegado o momento de confiná-los em definições. O avanço do conhecimento, contudo, não tolera qualquer rigidez, inclusive em se tratando de definições. A física proporciona excelente ilustração da forma pela qual mesmo ‘conceitos básicos’, que tenham sido estabelecidos sob a forma de definições, estão sendo constantemente alterados em seu conteúdo. Um conceito básico convencional dessa espécie, que no momento ainda é algo obscuro, mas que nos é indispensável na psicologia, é o de um ‘instinto’. Tentemos dar-lhe um conteúdo, abordando-o de diferentes ângulos. Em primeiro lugar, do ângulo da fisiologia. Isso nos forneceu o conceito de um ‘estímulo’ e o modelo do arco reflexo, segundo o qual um estímulo aplicado ao tecido vivo (substância nervosa) a partir de fora é descarregado por ação para fora. Essa ação é conveniente na medida em que, afastando a substância estimulada da influência do estímulo, remove-a de seu raio de atuação. Qual a relação do ‘instinto’ com o ‘estímulo’? Nada existe que nos impeça de subordinar o conceito de ‘instinto’ ao de ‘estímulo’ e de afirmar que um instinto é um estímulo aplicado à mente. Mas de imediato ficamos prevenidos contra igualar instinto e estímulo mental. Existem evidentemente outros estímulos à mente, além daqueles de natureza instintual, estímulos que se comportam muito mais como fisiológicos. Por exemplo, a luz forte que incide sobre a vista não é um estímulo instintual; já a secura da membrana mucosa da faringe ou a irritação da membrana mucosa do estômago o são. Obtivemos agora o material necessário para traçarmos uma distinção entre os estímulos instintuais e outros estímulos (fisiológicos) que atuam na mente. Em primeiro lugar, um estímulo instintual não surge do mundo exterior, mas de dentro do próprio organismo. Por esse motivo ele atua diferentemente sobre a mente, e diferentes ações se tornam necessárias para removê-lo. Além disso, tudo que é essencial num estímulo fica encoberto, se presumimos que ele atua com um impacto único, podendo ser removido por uma única ação conveniente. Um exemplo típico disso é a fuga motora proveniente da fonte de estimulação. Esses impactos podem, como é O objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou através da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que o instinto sofre durante sua existência, sendo que esse deslocamento do instinto desempenha papéis altamente importantes. Pode acontecer que o mesmo objeto sirva para a satisfação de vários instintos simultaneamente, um fenômeno que Adler [1908] denominou de ‘confluência’ de instintos [Triebverschränkung]. Uma ligação particularmente estreita do instinto com seu objeto se distingue pelo termo ‘fixação’. Isso freqüentemente ocorre em períodos muito iniciais do desenvolvimento de um instinto, pondo fim à sua modalidade por meio de sua intensa oposição ao desligamento. Por fonte [Quelle] de um instinto entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por um instinto. Não sabemos se esse processo é invariavelmente de natureza química ou se pode também corresponder à liberação de outras forças, por exemplo, forças mecânicas. O estudo das fontes dos instintos está fora do âmbito da psicologia. Embora os instintos sejam inteiramente determinados por sua origem numa fonte somática, na vida mental nós os conhecemos apenas por suas finalidades. O conhecimento exato das fontes de um instinto não é invariavelmente necessário para fins de investigação psicológica; por vezes sua fonte pode ser inferida de sua finalidade. Devemos supor que os diferentes instintos que se originam no corpo e atuam na mente são também distinguidos por qualidades diferentes, e que por isso se comportam de formas qualitativamente diferentes na vida mental? Essa suposição não parece ser justificada; é muito mais provável que achemos suficiente a suposição mais simples - a de que todos os instintos são qualitativamente semelhantes e devem o efeito que causam somente à quantidade de excitação que trazem em si, ou talvez, além disso, a certas funções dessa quantidade. O que distingue uns dos outros os efeitos mentais produzidos pelos vários instintos, pode ser encontrado a partir da diferença em suas fontes. Seja como for, só numa relação ulterior seremos capazes de esclarecer o que significa o problema da qualidade dos instintos. Que instintos devemos supor que existem, e quantos? É óbvio que isso dá ampla margem a escolhas arbitrárias. Não se pode objetar a que qualquer pessoa empregue o conceito de um instinto lúdico ou de destruição ou de estado gregário, quando o assunto o exige e as limitações da análise psicológica o permitem. Não obstante, não devemos deixar de nos perguntar se motivos instintuais como esses, tão altamente especializados, por um lado, não permitem ulterior dissecação de acordo com as fontes do instinto, de modo que somente os instintos primordiais - os que não podem ser ulteriormente dissecados - podem reivindicar importância. Propus que se distingam dois grupos de tais instintos primordiais: os instintos do ego, ou autopreservativos, e os instintos sexuais. Mas essa suposição não tem status de postulado necessário, como tem, por exemplo, nossa suposição sobre a finalidade biológica do aparelho mental (ver em [1] e [2]); ela não passa de uma hipótese de trabalho, a ser conservada apenas enquanto se mostrar útil, e pouca diferença fará aos resultados do nosso trabalho de descrição e classificação se for substituída por outra. A ocasião para essa hipótese surgiu no decurso da evolução da psicanálise, que foi empregada pela primeira vez nas psiconeuroses, ou, mais precisamente, no grupo descrito como ‘neuroses de transferência’ (histeria e neurose obsessiva); estas revelaram que, na raiz de todas as afecções desse tipo, se encontra um conflito entre as exigências da sexualidade e as do ego. É sempre possível que um estudo exaustivo das outras afecções neuróticas (em especial das psiconeuroses narcisistas, das esquizofrenias) possa obrigar-nos a alterar essa fórmula e proceder a uma diferente classificação dos instintos primordiais. Mas, por enquanto, não conhecemos essa fórmula, nem encontramos qualquer argumento desfavorável para traçar esse contraste entre os instintos sexuais e os do ego. Tenho as maiores dúvidas de que se possa chegar a indicadores decisivos para a diferenciação e classificação dos instintos a partir da elaboração do material psicológico. Essa própria elaboração parece exigir, até certo ponto, a aplicação de suposições definidas, concernentes à vida instintual, àquele material, e seria desejável que essas suposições pudessem ser extraídas de algum outro ramo de conhecimento e levadas para a psicologia. Aqui, a contribuição da biologia por certo não vai de encontro à distinção entre os instintos sexuais e os do ego. A biologia ensina que a sexualidade não deve ser colocada em pé de igualdade com outras funções do indivíduo, pois suas finalidades ultrapassam o indivíduo e têm como seu conteúdo a produção de novos indivíduos - isto é, a preservação da espécie. Ela mostra, ainda, que dois conceitos, ao que tudo indica igualmente bem fundamentados, podem ser adotados quanto à relação entre o ego e a sexualidade. De um ponto de vista, o indivíduo é a coisa principal, sendo a sexualidade uma das suas atividades e a satisfação sexual uma de suas necessidades; ao passo que, de outro ponto de vista, o indivíduo é um apêndice temporário e passageiro do idioplasma quase imortal, que é confiado a ele pelo processo de geração. A hipótese de que a função sexual difere de outros processos corpóreos em virtude de uma química especial também é, creio eu, um postulado da escola de pesquisa biológica de Ehrlich. Visto que um estudo da vida instintual a partir da direção da consciência apresenta dificuldades quase insuperáveis, a principal fonte de nossos conhecimentos continua a ser a investigação psicanalítica das perturbações mentais. A psicanálise, contudo, em conseqüência do curso tomado pelo seu desenvolvimento, até agora só tem sido capaz de nos proporcionar informações de natureza razoavelmente satisfatória acerca dos instintos sexuais, pois este é precisamente o único grupo que pode ser observado isoladamente, por assim dizer, nas psiconeuroses. Com a extensão da psicanálise às outras afecções neuróticas, sem dúvida, encontraremos também uma base para o nosso conhecimento dos instintos do ego, embora seja temerário esperar condições de observação igualmente favoráveis nesse outro campo de pesquisa. Isso é tudo que pode ser dito à guisa de uma caracterização geral dos instintos sexuais. São numerosos, emanam de grande variedade de fontes orgânicas, atuam em princípio independentemente um do outro e só alcançam uma síntese mais ou menos completa numa etapa posterior. A finalidade pela qual cada um deles luta é a consecução do ‘prazer do órgão’, somente quando a síntese é alcançada é que eles entram a serviço da função reprodutora, tornando-se então identificáveis, de modo geral, como instintos sexuais. Logo que surgem, estão ligados aos instintos da autopreservação, dos quais só gradativamente se separam; também na sua escolha objetal, seguem os caminhos indicados pelos instintos do ego. Parte deles permanece associada aos instintos do ego pela vida inteira, fornecendo-lhes componentes libidinais, que, no funcionamento normal, escapam à observação com facilidade, só sendo revelados de maneira clara no início da doença. Distinguem-se por possuírem em ampla medida a capacidade de agir vicariamente uns pelos outros, e por serem capazes de mudar prontamente de objetos. Em conseqüência dessas últimas propriedades, são capazes de funções que se acham muito distantes de suas ações intencionais originais - isto é, capazes de ‘sublimação’. Nossa investigação sobre as várias vicissitudes pelas quais passam os instintos no processo de desenvolvimento e no decorrer da vida deve ficar confinada aos instintos sexuais, que nos são mais familiares. A observação nos mostra que um instinto pode passar pelas seguintes vicissitudes: Reversão a seu oposto. Retorno em direção ao próprio eu (self) do indivíduo. Repressão. Sublimação. Visto que não pretendo tratar aqui da sublimação e que a repressão exige um capítulo especial [cf. o artigo seguinte,ver em [1]], resta-nos apenas descrever e examinar os dois primeiros pontos. Tendo em mente a existência de forças motoras que impedem que um instinto seja elevado até o fim de forma não modificada, também podemos considerar essas vicissitudes como modalidades de defesa contra os instintos. A reversão de um instinto a seu oposto transforma-se, mediante um exame mais detido, em dois processos diferentes: uma mudança da atividade para a passividade e uma reversão de seu conteúdo. Os dois processos, sendo diferentes em sua natureza, devem ser tratados separadamente. Encontram-se exemplos do primeiro processo nos dois pares de opostos: sadismo- masoquismo e escopofilia-exibicionismo. A reversão afeta apenas as finalidades dos instintos. A finalidade ativa (torturar, olhar), é substituída pela finalidade passiva (ser torturado, ser olhado). A reversão do conteúdo encontra-se no exemplo isolado da transformação do amor em ódio. () Um objeto que é alguém ou parte de alguém sendo olhado por uma pessoa estranha (exibicionismo) Esse tipo de fase preliminar se acha ausente no sadismo, que desde o começo é dirigido para um objeto estranho, embora talvez não fosse inteiramente absurdo compor tal fase a partir dos esforços da criança para obter controle sobre seus próprios membros. No tocante a ambos os instintos que acabamos de tomar como exemplos, deve-se observar que sua transformação por uma reversão da atividade para a passividade e por um retorno em direção ao sujeito nunca implica, de fato, toda a quota do impulso instintual. A direção ativa anterior do instinto persiste, em certa medida, lado a lado com sua direção passiva ulterior, mesmo quando o processo de sua transformação tenha sido muito extenso. A única afirmação correta a fazer sobre o instinto escopofílico seria a de que todas as fases de seu desenvolvimento, tanto sua fase preliminar auto-erótica quanto sua forma ativa ou passiva final, coexistem lado a lado; e a verdade disso se tornará evidente se basearmos nossa opinião, não nas ações às quais o instinto conduz, mas no mecanismo de sua satisfação. Talvez, contudo, seja admissível encarar o assunto e representá-lo ainda de outra forma. Podemos dividir a vida de cada instinto numa série de ondas sucessivas isoladas, cada uma delas homogênea durante o período de tempo que possa vir a durar, qualquer que seja ele, e cuja relação de umas com as outras é comparável à de sucessivas erupções de lava. Podemos então talvez figurar a primeira erupção original do instinto como se processando de forma inalterada, sem experimentar qualquer desenvolvimento. A onda seguinte seria modificada desde o início - sendo transformada, por exemplo, de ativa em passiva -, e seria então, com essa nova característica, acrescentada à onda anterior, e assim por diante. Se fôssemos então proceder a um levantamento do impulso instintual desde seu começo até um determinado ponto, a sucessão de ondas que descrevemos inevitavelmente apresentaria o quadro de um desenvolvimento definido do instinto. O fato de que, nesse período ulterior de desenvolvimento de um impulso instintual, seu oposto (passivo) possa ser observado ao lado dele merece ser assinalado pelo termo bem adequado introduzido por Bleuler - ‘ambivalência’. Essa referência à história do desenvolvimento dos instintos e a permanência de suas fases intermediárias deve tornar o desenvolvimento dos instintos razoavelmente inteligível para nós. A experiência mostra que a quantidade de ambivalência demonstrável varia muito entre indivíduos, grupos e raças. A acentuada ambivalência instintual num ser humano que vive nos dias atuais pode ser considerada como uma herança arcaica, pois temos motivos para supor que o papel desempenhado na vida instintual pelos impulsos ativos em sua forma inalterada foi maior nos tempos primevos do que é em média hoje em dia. Ficamos habituados a denominar a fase inicial do desenvolvimento do ego, durante a qual seus instintos sexuais encontram satisfação auto-erótica, de ‘narcisismo’, sem de imediato travarmos um debate sobre a relação entre o auto-erotismo e o narcisismo. Segue-se que a fase preliminar do instinto escopofílico, na qual o próprio corpo do sujeito é o objeto da escopofilia, deve ser classificada sob o narcisismo, e que devemos descrevê-la como uma formação narcisista. O instinto escopofílico ativo desenvolve-se a partir daí, deixando o narcisismo para trás. O instinto escopofílico passivo, pelo contrário, aferra-se ao objeto narcisista. De maneira semelhante, a transformação do sadismo em masoquismo acarreta um retorno ao objeto narcisista. E em ambos esses casos [isto é, na escopofilia passiva e no masoquismo] o sujeito narcisista é, através da identificação, substituído por outro ego, estranho. Se levarmos em conta a fase do sadismo preliminar e narcisista que construímos, estaremos aproximando-nos de uma compreensão mais geral - a saber, que as vicissitudes instintuais, que consistem no fato de o instinto retornar em direção ao próprio ego do sujeito e sofrer reversão da atividade para a passividade, se acham na dependência da organização narcisista do ego e trazem o cunho dessa fase. Correspondem talvez às tentativas de defesa que, em fases mais elevadas do desenvolvimento do ego, são efetuadas por outros meios. [Ver acima, em [1] e [2].] Nesse ponto podemos recordar que até agora consideramos apenas dois pares de instintos opostos: sadismo-masoquismo e escopofilia-exibicionismo. Estes são os instintos sexuais mais conhecidos que aparecem de maneira ambivalente. Os outros componentes da função sexual ulterior não são ainda suficientemente acessíveis à análise para que possamos examiná-los de maneira semelhante. Em geral, podemos assegurar, em relação a eles, que suas atividades são auto-eróticas; isto é, seu objeto é insignificante em comparação com o órgão que lhes serve de fonte, via de regra coincidindo com esse órgão. O objeto do instinto escopofílico, contudo, embora também a princípio seja parte do próprio corpo do sujeito, não é o olho em si; e no sadismo a fonte orgânica, que é provavelmente o aparelho muscular com sua capacidade para a ação, aponta inequivocamente para outro objeto que não ele próprio, muito embora esse objeto seja parte do próprio corpo do sujeito. Nos instintos auto-eróticos, o papel desempenhado pela fonte orgânica é tão decisivo que, de acordo com uma sugestão plausível de Federn (1913) e Jekels (1913), a forma e a função do órgão determinam a atividade ou a passividade da finalidade instintual. A mudança do conteúdo [ver em [1]] de um instinto em seu oposto só é observada num exemplo isolado - a transformação do amor em ódio. Visto ser particularmente comum encontrar ambos dirigidos simultaneamente para o mesmo objeto, sua coexistência oferece o exemplo mais importante de ambivalência de sentimento. [Ver em [1]] O caso de amor e ódio adquire especial interesse pela circunstância de que se recusa a ajustar-se a nosso esquema dos instintos. É impossível duvidar de que exista a mais íntima das relações entre esses dois sentimentos opostos e a vida sexual, mas naturalmente relutamos em pensar no amor como sendo uma espécie de instinto componente específico da sexualidade, da mesma forma que os outros que vimos examinando. Preferiríamos considerar o amor como sendo a expressão de toda a corrente sexual de sentimento, mas essa idéia não elucida nossas dificuldades e não podemos ver que significado poderia ser atribuído a um conteúdo oposto dessa corrente. O amor não admite apenas um, mas três opostos. Além da antítese ‘amar-odiar’, existe a outra de ‘amar-ser amado’; além destas, o amar e o odiar considerados em conjunto são o oposto da condição de desinteresse ou indiferença. A segunda dessas três antíteses, amar-ser amado, corresponde exatamente à transformação da atividade em passividade e pode remontar a uma situação subjacente, da mesma forma que no caso do instinto escopofílico. Essa situação é a de amar-se a si próprio, que consideramos como sendo o traço característico do narcisismo. Então, conforme o objeto ou o sujeito seja substituído por um estranho, o que resulta é a finalidade ativa de amar ou a passiva de ser amado - ficando a segunda perto do narcisismo. Talvez cheguemos a uma melhor compreensão dos vários opostos do amar, se refletirmos que nossa vida mental como um todo se rege por três polaridades, as antíteses Sujeito (ego) - Objeto (mundo externo), Prazer - Desprazer, e Ativo - Passivo. A antítese ego-não-ego (externo), isto é, sujeito-objeto, é, como já tivemos oportunidade de dizer [ver em [1]], lançada sobre o organismo individual numa fase inicial, pela experiência de que pode silenciar os estímulos externos por meio de ação muscular, mas é inerme contra estímulos instintuais. Essa antítese permanece, acima de tudo, soberana em nossa atividade intelectual e cria para a pesquisa a situação básica que esforço algum pode alterar. A polaridade do prazer-desprazer está ligada a uma escala de sentimentos, cuja importância suprema na determinação de nossas ações (nossa vontade) já foi ressaltada [ver em [1] e [2]]. A antítese ativo-passivo não deve ser confundida com a antítese sujeito do ego-objeto do mundo externo. A relação do ego com o mundo externo é passiva na medida em que o primeiro recebe estímulos do segundo, e ativa quando reage a eles. Ela é forçada por seus instintos a um grau bem especial de atividade para com o mundo externo, de modo que talvez pudéssemos ressaltar o ponto essencial se disséssemos que o sujeito do ego é passivo no tocante aos estímulos externos, mas ativo através de seus próprios instintos. A antítese ativo-passivo funde-se depois com a antítese masculino-feminino, a qual, até que isso tenha ocorrido, não possui qualquer significado psicológico. A junção da atividade com a masculinidade e da passividade com a feminilidade nos defronta, na realidade, com um fato biológico, mas não é de forma alguma tão invariavelmente completa e exclusiva como tendemos a presumir. As três polaridades da mente estão ligadas umas às outras de várias maneiras altamente significativas. Existe uma situação psíquica primordial na qual duas delas coincidem. Originalmente, no próprio começo da vida mental, o ego é catexizado com os instintos, sendo, até certo ponto, capaz de satisfazê-los em si mesmo. Denominamos essa condição de ‘narcisismo’, e essa forma de obter satisfação, de ‘auto-erótica’. Nessa ocasião, o mundo externo não é catexizado com interesse (num sentido geral), sendo indiferente aos propósitos de Resta-nos agora reunir o que sabemos da gênese do amor e do ódio. O amor deriva da capacidade do ego de satisfazer auto-eroticamente alguns dos seus impulsos instintuais pela obtenção do prazer do órgão. É originalmente narcisista, passando então para objetos, que foram incorporados ao ego ampliado, e expressando os esforços motores do ego em direção a esses objetos como fontes de prazer. Tornar-se intimamente vinculado à atividade dos instintos sexuais ulteriores e, quando estes são inteiramente sintetizados, coincide com o impulso sexual como um todo. As fases preliminares do amor surgem como finalidades sexuais provisórias enquanto os instintos sexuais passam por seu complicado desenvolvimento. Reconhecemos a fase de incorporação ou devoramento como sendo a primeira dessas finalidades - um tipo de amor que é compatível com a abolição da existência separada do objeto e que, portanto, pode ser descrito como ambivalente. Na fase mais elevada da organização sádico-anal pré-genital, a luta pelo objeto aparece sob a forma de uma ânsia (urge) de dominar, para a qual o dano ou o aniquilamento do objeto é indiferente. O amor nessa forma e nessa fase preliminar quase não se distingue do ódio em sua atitude para com o objeto. Só depois de estabelecida a organização genital é que o amor se torna o oposto do ódio. O ódio, enquanto relação com objetos, é mais antigo que o amor. Provém do repúdio primordial do ego narcisista ao mundo externo com seu extravasamento de estímulos. Enquanto expressão da reação do desprazer evocado por objetos, sempre permanece numa relação íntima com os instintos autopreservativos, de modo que os instintos sexuais e os do ego possam prontamente desenvolver uma antítese que repete a do amor e do ódio. Quando os instintos do ego dominam a função sexual, como é o caso na fase da organização anal-sádica, eles transmitem as qualidades de ódio também à finalidade instintual. A história das origens e relações do amor nos permite compreender como é que o amor com tanta freqüência se manifesta como ‘ambivalente’ - isto é, acompanhado de impulsos de ódio contra o mesmo objeto. O ódio que se mescla ao amor provém em parte das fases preliminares do amar não inteiramente superadas; baseia-se também em parte nas reações de repúdio aos instintos do ego, os quais, em vista dos freqüentes conflitos entre os interesses do ego e os do amor, podem encontrar fundamentos em motivos reais e contemporâneos. Em ambos os casos, portanto, o ódio mesclado tem como sua fonte os instintos auto-preservativos. Se uma relação de amor com um dado objeto for rompida, freqüentemente o ódio surgirá em seu lugar, de modo que temos a impressão de uma transformação do amor em ódio. Esse relato do que acontece leva ao conceito de que o ódio, que tem seus motivos reais, é aqui reforçado por uma regressão do amor à fase preliminar sádica, de modo que o ódio adquire um caráter erótico, ficando assegurada a continuidade de uma relação de amor. A terceira antítese do amar, a transformação do amar em ser amado, corresponde à atuação da polaridade da atividade e da passividade, devendo ser julgada da mesma maneira que os casos de escopofilia e sadismo. Podemos resumir dizendo que o traço essencial das vicissitudes sofridas pelos instintos está na sujeição dos impulsos instintuais às influências das três grandes polaridades que dominam a vida mental. Dessas três polaridades podemos descrever a da atividade-passividade como a biológica, a do ego-mundo externo como a real, e finalmente a do prazer-desprazer como a polaridade econômica. A vicissitude instintual da repressão constituirá assunto de uma indagação que se segue [no artigo seguinte]. REPRESSÃO (1915) NOTA DO EDITOR INGLÊS DIE VERDRÏNGUNG (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (3), 129-38. 1918 S.K.S.N., 4, 279-93. (1922, 2ª ed.) 1924 G.S., 5, 466-79. 1924 Techinik und Metapsychol., 188-201. 1931 Theoretische Schriften, 83-97. 1946 G.W., 10, 248-61. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘Repression’ 1925 C.P., 4, 84-97. (Trad. C. M. Baines.) A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita. Em sua ‘História do Movimento Psicanalítico’ (1914d), Freud declarou que ‘a teoria da repressão é pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise’ (ver em [1] acima); e no presente ensaio, juntamente com a Seção IV do artigo sobre ‘O Inconsciente’ que a ela se segue (ver em [1] e segs.), oferece-nos sua formulação mais elaborada dessa teoria. O conceito de repressão remonta historicamente aos primórdios da psicanálise. A primeira referência a ele que foi publicada, consta da ‘Comunicação Preliminar’ de Breuer e Freud (Edição Standard Brasileira, Vol. II, pág. 51, IMAGO Editora, 1974). O termo ‘Verdrängung‘ fora empregado pelo psicólogo Herbart, no início do século XIX, e possivelmente chegou ao conhecimento de Freud através de seu mestre Meynert, que tinha sido admirador de Herbart. Mas, como o próprio Freud insistiu no trecho da ‘História’ já citado (pág. acima), ‘a teoria da repressão, sem dúvida alguma, ocorreu-me independentemente de qualquer outra fonte’. ‘Foi uma novidade’, escreveu em seu Autobiographical Study (1925d), ‘e nada semelhante havia sido reconhecido anteriormente na vida mental.’ Existem, nos escritos de Freud, vários relatos de como ocorreu a descoberta: por exemplo, nos Estudos sobre a Histeria (1895d), Edição Standard Brasileira, Vol. II, págs. 324-6, IMAGO Editora, 1974, e novamente na ‘História’, pág. 36 acima. Todos esses relatos são unânimes em ressaltar o fato de que o conceito de repressão foi inevitavelmente sugerido pelo fenômeno clínico da resistência, que por sua vez foi trazido à luz por uma inovação técnica - a saber, o abandono da hipnose no tratamento catártico da histeria. Notar-se-á que no relato feito nos Estudos o termo realmente empregado para descrever o processo não é ‘repressão’ mas ‘defesa’. Nesse período inicial, os dois termos foram utilizados por Freud indiretamente, quase como equivalentes, embora ‘defesa’ fosse talvez o mais comum. Logo, contudo, como observou em seu artigo sobre a sexualidade nas neuroses (1960a), Edição Standard Brasileira, Vol. VII, pág. 288, anamnese do ‘Homem dos Ratos’ (1909d) Freud examinou o mecanismo de ‘repressão’ na neurose obsessiva - isto é, o deslocamento da catexia emocional da idéia objetável, em contraste com a expulsão completa da idéia da consciência, na histeria - e referiu-se a ‘duas espécies de repressão’ (Standard Ed., 10, 196). De fato, é nesse sentido mais amplo que o termo é utilizado no presente artigo, como fica demonstrado pela discussão, que aparece quase no final, sobre os diferentes mecanismos de repressão nas várias formas da psiconeurose. Parece bastante claro, todavia, que a forma da repressão que Freud tinha em mente, aqui, era sobretudo a que ocorre na histeria; e muito mais adiante, no Capítulo XI, Seção A (c), de Inhibitions, Symptons and Anxiety (1926d), ele propôs restringir o termo ‘repressão’ a esse único mecanismo particular, e reviver ‘defesa’ como ‘uma designação geral para todas as técnicas empregadas pelo ego em conflitos que possam levar a uma neurose’. A importância de estabelecer essa distinção foi depois ilustrada por ele na Seção V de ‘Analysis Terminable and Interminable’ (1937c). O problema especial da natureza da força motora, que permite à repressão operar, constitui uma fonte constante de preocupação para Freud, embora quase não seja abordado no presente artigo. Em particular, havia a questão da relação entre a repressão e o sexo, em relação à qual Freud, inicialmente, não tinha uma posição definida, como se pode ver em muitos sofrem o mesmo destino daquilo que foi primevamente reprimido. Na realidade, portanto, a repressão propriamente dita é uma pressão posterior Além disso, é errado dar ênfase apenas à repulsão que atua a partir da direção do consciente sobre o que deve ser reprimido; igualmente importante é a atração exercida por aquilo que foi primevamente repelido sobre tudo aquilo com que ele possa estabelecer uma ligação. Provavelmente, a tendência no sentido da repressão falharia em seu propósito, caso essas duas forças não cooperassem, caso não existisse algo previamente reprimido pronto para receber aquilo que é repelido pelo consciente. Sob a influência do estudo das psiconeuroses, que coloca diante de nós os importantes efeitos da repressão, inclinamo-nos a supervalorizar sua dimensão psicológica e a esquecer, demasiado depressa, o fato de que a repressão não impede que o representante instintual continue a existir no inconsciente, se organize ainda mais, dê origem a derivados, e estabeleça ligações. Na verdade, a repressão só interfere na relação do representante instintual com um único sistema psíquico, a saber, o do consciente. A psicanálise também é capaz de nos revelar outras coisas importantes para a compreensão dos efeitos da repressão nas psiconeuroses. Mostra-nos, por exemplo, que o representante instintual se desenvolverá com menos interferência e mais profusamente, se for retirado da influência consciente pela expressão. Ele prolifera no escuro, por assim dizer, e assume formas extremas de expressão, que uma vez traduzidas e apresentadas ao neurótico irão não só lhe parecer estranhas mas também assustá-lo, mostrando-lhe o quadro de uma extraordinária e perigosa força do instinto. Essa força falaz do instinto resulta de um desenvolvimento desinibido da fantasia e do represamento ocasionado pela satisfação frustrada. O fato de esse último resultado estar vinculado à repressão indica a direção em que a verdadeira importância da repressão deve ser procurada. Voltando, porém, mais uma vez ao aspecto oposto da repressão, deixemos claro que tampouco é correto supor que a repressão retira do consciente todos os derivados daquilo que foi primevamente reprimido. Se esses derivados se tornarem suficientemente afastados do representante reprimido - quer devido à adoção de distorções, quer por causa do grande número de elos intermediários inseridos -, eles terão livre acesso ao consciente. Tudo se passa como se a resistência do consciente contra eles constituísse uma função da distância existente entre eles e aquilo que foi originalmente reprimido. Ao executarmos a técnica da psicanálise, continuamos exigindo que o paciente produza, de tal forma, derivados do reprimido, que, em conseqüência de sua distância no tempo, ou de sua distorção, eles possam passar pela censura do consciente. Na realidade, as associações que exigimos que o paciente faça sem sofrer a influência de qualquer idéia intencional consciente ou de qualquer crítica, e a partir das quais reconstituímos uma tradução consciente do representante reprimido - essas associações nada mais são do que derivados remotos e distorcidos desse tipo. No correr desse processo, observamos que o paciente pode continuar a desfiar sua meada de associações, até ser levado de encontro a um pensamento, cuja relação com o reprimido fique tão óbvia, que o force a repetir sua tentativa de repressão. Também os sintomas neuróticos devem satisfazer a essa mesma condição, já que são derivados do reprimido, o qual, por intermédio deles, finalmente teve acesso à consciência, acesso este que anteriormente lhe era negado. Não podemos formular uma regra geral sobre o grau de distorção e de distância no tempo necessário para a eliminação da resistência por parte do consciente. Ocorre aqui um delicado equilíbrio, cujo jogo não nos é revelado; no entanto, sua modalidade de atuação nos permite inferir que se trata de pôr um paradeiro à catexia do inconsciente quando esta alcança certa intensidade - intensidade além da qual o inconsciente venceria as resistências, chegando à satisfação. A repressão atua, portanto, de uma forma altamente individual. Cada derivado isolado do reprimido pode ter sua própria vicissitude especial; um pouco mais ou um pouco menos de distorção altera totalmente o resultado. Nesse sentido, podemos compreender a razão por que os objetos mais preferidos pelos homens, isto é, seus ideais, procedem das mesmas percepções e experiências que os objetos mais abominados por eles, e porque, originalmente, eles só se distinguiam um dos outros através de ligeiras modificações. [ver em [1]] Realmente, tal como verificamos ao remontarmos à origem do fetiche, o representante instintual original pode ser dividido em duas partes: uma que sofre repressão, ao passo que a restante, precisamente por causa dessa ligação íntima, passa pela idealização. O mesmo resultado oriundo de um aumento ou de uma diminuição do grau de distorção também pode ser alcançado na outra extremidade do aparelho, por assim dizer, por uma modificação da condição de produção de prazer e desprazer. Desenvolveram-se técnicas especiais, com o propósito de provocar tais mudanças no jogo das forças mentais, que aquilo que de outra forma daria lugar ao desprazer, pudesse, nessa ocasião, resultar em prazer; e, sempre que um dispositivo técnico desse tipo entra em funcionamento, elimina-se a repressão de um representante instintual que, de outro modo, seria repudiado. Até agora, apenas no que se refere aos chistes, essas técnicas foram estudadas com algum detalhe. Via de regra, a repressão só é removida temporariamente, reinstalando-se imediatamente. Observações como esta, contudo, permitem-nos notar outras características da repressão. Ela é não só individual em seu funcionamento, conforme acabamos de assinalar, como também é extremamente móbil. O processo de repressão não deve ser encarado como um fato que acontece uma vez, produzindo resultados permanentes, tal como, por exemplo, se mata um ser vivo que, a partir de então, está morto; a repressão exige um dispêndio persistente de força, e se esta viesse a cessar, o êxito da repressão correria perigo, tornando necessário um novo ato de repressão. Podemos supor que o reprimido exerce uma pressão contínua em direção ao consciente, de forma que essa pressão pode ser equilibrada por uma contrapressão incessante. Assim, a manutenção de uma repressão acarreta ininterrupto dispêndio de força, ao passo que sua eliminação, encarada de um ponto de vista econômico, resulta numa poupança. Incidentalmente, a mobilidade da repressão também encontra expressão nas características psíquicas do estado do sono, o único a tornar possível a formação de sonhos. Com o retorno à vida de vigília, as catexias repressivas absorvidas são mais uma vez expulsas. Finalmente, não nos devemos esquecer de que, na verdade, ao se estabelecer que um impulso instintual é reprimido, muito pouco se disse a respeito dele. Tal impulso pode ocorrer em estados amplamente diferentes, sem prejuízo para sua repressão. Pode ser inativo, isto é, só muito levemente catexizado com energia mental; ou pode ser catexizado em graus variáveis, permitindo-se-lhe, assim, que seja ativo. É verdade que sua ativação não resultará numa eliminação direta da repressão, mas porá em movimento todos os processos que terminam na penetração do impulso na consciência por caminhos indiretos. Com derivados não reprimidos do inconsciente, o destino de uma idéia específica é, com freqüência, decidido pelo grau de sua atividade ou catexia. Enquanto esse derivado representa apenas uma pequena quantidade de energia, quase sempre permanece não reprimido, embora pudesse calcular que seu conteúdo entrasse em conflito com o que é dominante na consciência. O fator quantitativo torna-se decisivo para esse conflito: tão logo a idéia basicamente detestável ultrapassa certo grau de força, o conflito se torna real, e é precisamente essa ativação que leva à repressão. Assim, no tocante à repressão, um aumento da catexia energética atua no mesmo sentido que uma abordagem ao inconsciente, ao passo que uma diminuição dessa catexia atua no mesmo sentido que o caráter remoto do inconsciente ou da distorção. Vemos que as tendências repressivas podem encontrar um substituto para a repressão num enfraquecimento do que é detestável. Até esse momento, em nosso exame, tratamos da repressão de um representante instintual, entendendo por este último uma idéia, ou grupo de idéias, catexizadas com uma quota definida de energia psíquica (libido ou interesse) proveniente de um instinto. Agora, a observação clínica nos obriga a dividir aquilo que até o presente consideramos como sendo uma entidade única, de uma vez que essa observação nos indica que, além da idéia, outro elemento representativo do instinto tem de ser levado em consideração, e que esse outro elemento passa por vicissitudes de repressão que podem ser bem diferentes das experimentadas pela idéia. Geralmente, a expressão quota de afeto tem sido adotada para designar esse outro elemento do representante psíquico. Corresponde ao instinto na medida em que este se afasta da idéia e encontra expressão, proporcional à sua quantidade, em processos que são sentidos como afetos. A partir desse ponto, ao descrevermos um caso de repressão, teremos de acompanhar separadamente aquilo que acontece à idéia como resultado da repressão e aquilo que acontece à energia instintual vinculada a ela. Gostaríamos de fazer algumas afirmações genéricas a respeito das vicissitudes de ambos, coisa que, depois de nos situarmos, será efetivamente possível. A idéia que representa o instinto passa por uma vicissitude geral que consiste em desaparecer do consciente, caso fosse previamente consciente, ou em ser afastada da consciência, caso estivesse prestes a se tornar consciente. Essa diferença não é importante, correspondendo à mesma coisa que a diferença entre ordenar a um hóspede indesejável que saia da minha sala de visitas (ou do meu condensação, atrai toda a catexia para si própria. Evidentemente, essas observações não trazem à luz o mecanismo completo de uma histeria de conversão; o fator regressão, em especial, a ser considerado em outra conexão, também tem de ser levado em conta. Na medida em que a repressão na histeria [de conversão] só se torna possível pela extensa formação de substitutos, ela pode ser julgada inteiramente destituída de êxito; contudo, ao lidar com a quota de afeto - a verdadeira tarefa da repressão -, ela geralmente significa um êxito total. Na histeria de conversão, o processo de repressão é completado pela formação do sintoma, e não precisa, como na histeria de ansiedade, continuar até uma segunda fase - ou antes, rigorosamente falando, continuar interminavelmente. Um quadro totalmente diferente da repressão se revela, mais uma vez, na terceira perturbação, que consideraremos para os propósitos de nossa ilustração - na neurose obsessiva. Aqui ficamos inicialmente em dúvida quanto ao que devemos considerar como sendo o representante instintual sujeito à repressão - se se trata de uma tendência libidinal ou hostil. Essa incerteza surge porque a neurose obsessiva tem por base uma regressão devido à qual uma tendência sádica foi substituída por uma afetiva. É esse impulso hostil contra alguém que é amado, que se acha sujeito à repressão. O efeito, numa fase inicial, do trabalho da repressão é bem diferente do que se verifica numa posterior. De início, a repressão é inteiramente cercada de êxito; o conteúdo ideacional é rejeitado, fazendo com que o afeto desapareça. Como formação substitutiva, surge no ego uma alteração sob a forma de maior consciência, quase não se podendo dar a isso o nome de sintoma. Aqui, substituto e sintoma não coincidem. Com isso, aprendemos também alguma coisa sobre o mecanismo da repressão. Nesse exemplo, como em todos os outros, a repressão ocasionou um afastamento da libido; aqui, porém, ela fez uso da formação da reação para atingir esse propósito, intensificando um oposto. Assim, nesse caso, a formação de um substituto tem o mesmo mecanismo que a repressão e, no fundo, coincide com ela, ao passo que cronologicamente, tanto quanto conceptualmente, é diferente da formação de um sintoma. É bastante provável que todo esse processo se torne possível pela relação ambivalente na qual o impulso sádico a ser reprimido é introduzido. No entanto, a repressão, que foi de início bem-sucedida, não se firma; no decorrer dos acontecimentos, seu fracasso se torna cada vez mais acentuado. A ambivalência que permitiu que a repressão ocorresse através da formação de reação, constitui também o ponto em que o reprimido consegue retornar. A emoção desaparecida retorna, em sua forma transformada, como ansiedade social, ansiedade moral e autocensura ilimitadas; a idéia rejeitada é substituída por um substituto por deslocamento, freqüentemente um deslocamento para algo muito pequeno ou indiferente. Uma tendência no sentido de um restabelecimento completo da idéia reprimida acha-se, em geral, inegavelmente presente. O fracasso na repressão do fator quantitativo afetivo põe em jogo o mesmo mecanismo de fuga, por meio de evitação e proibições, tal como vimos em funcionamento na formação de fobias histéricas. A rejeição da idéia oriunda do consciente é, contudo, obstinadamente mantida, porque provoca a abstenção oriunda da ação, um aprisionamento motor do impulso. Assim, na neurose obsessiva, o trabalho da repressão se prolonga numa luta estéril e interminável. A curta série de comparações apresentada aqui pode facilmente convencer-nos de que se fazem necessárias pesquisas mais abrangentes, antes que possamos esperar compreender inteiramente os processos ligados à repressão e à formação de sintomas neuróticos. A extraordinária complexidade de todos os fatores a serem levados em consideração nos permite apenas uma maneira de apresentá-los. Devemos selecionar primeiro um e, depois, outro ponto de vista, e acompanhá-lo através do material enquanto sua aplicação pareça proporcionar resultados. Cada abordagem isolada do assunto será incompleta em si mesma, não podendo deixar de haver obscuridades sempre que ela se defrontar com material ainda não examinado; no entanto, podemos esperar que uma síntese final conduza a uma compreensão adequada. O INCONSCIENTE (1915) NOTA DO EDITOR INGLÊS DAS UNBEWUSSTE (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1915 Int. Z. Psychoanal., 3 (4), 189-203 e (5), 257-69 1918 S.K.S.N., 4, 294-338. (1922, 2ª ed.) 1924 G.S., 5, 480-519. 1924 Techinik und Metapsychol., 202-41. 1931 Theoretische Schriften, 98-140. 1946 G.W., 10, 264-303. (b) TRADUÇÃO INGLESA: ‘The Unconscious’ 1925 C.P., 4, 98-136. (Trad. C.M. Baines.) A presente tradução inglesa, embora baseada na de 1925, foi amplamente reescrita. Parece que o presente artigo levou menos de três semanas para ser escrito - de 4 a 23 de abril de 1915. Posteriormente, no mesmo ano, foi publicado no Internationale Zeitschrift em duas partes, a primeira contendo as Seções I-IV e a segunda, as Seções V-VII. Nas edições anteriores a 1924, o artigo não foi dividido em seções, mas o que agora constitui os títulos foi impresso como subtítulos na margem. A única exceção a isso é que a expressão ‘O Ponto de Vista Topográfico’, que agora faz parte do título da Seção II, se encontra originalmente na margem, no início do segundo parágrafo da seção, à altura das palavras ‘Passando agora…’ (ver em [1]). Algumas pequenas alterações também foram feitas no texto da edição de 1924. Se a série ‘Artigos Sobre Metapsicologia’ talvez seja considerada como o mais importante de todos os escritos teóricos de Freud, não há dúvida alguma de que este ensaio sobre ‘O Inconsciente’ constitui seu ponto culminante. O conceito segundo o qual existem processos mentais inconscientes, é, naturalmente, fundamental para a teoria psicanalítica. Freud nunca se cansou de insistir nos argumentos que o apóiam e de combater as objeções levantadas contra ele. Na realidade, até mesmo a última parte não concluída de seus escritos teóricos, o fragmento escrito por ele em 1938, a que deu o título, em inglês, de ‘Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis’ (1940b), constitui uma nova justificação daquele conceito. Contudo, deve-se esclarecer de imediato que o interesse de Freud por essa suposição jamais foi de natureza filosófica - embora, sem dúvida, problemas filosóficos se encontrassem inevitavelmente próximos. Seu interesse era prático. Ele achava que, sem fazer essa suposição, era incapaz de explicar ou mesmo de descrever a grande variedade de fenômenos com que se defrontava. Por outro lado, procedendo assim, encontrou o caminho aberto para uma região imensamente fértil em novos conhecimentos. Desde o início, e em seu ambiente mais próximo, não pode ter havido grande resistência a essa idéia. Seus professores diretos - Meynert, por exemplo -, na medida em que se interessavam pela psicologia, orientavam-se principalmente pelos conceitos de J. F. Herbart (1776-1841), e parece que um livro de texto contendo os princípios herbartianos era usado na escola secundária freqüentada por Freud (Jones, 1953, 409 e segs.). O reconhecimento da
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