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Guias e Dicas
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Vol 11 Cinco licoes de psicanalise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos, Trabalhos de Psicologia

liçoes de psicanálise a partir de uma visao interdisciplinar

Tipologia: Trabalhos

2011

Compartilhado em 25/02/2011

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Baixe Vol 11 Cinco licoes de psicanalise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos e outras Trabalhos em PDF para Psicologia, somente na Docsity! Cinco lições de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos VOLUME XI (1910[1909]) PREFÁCIO ESPECIAL PARA A EDIÇÃO BRASILEIRA DE ANNA FREUD Produzir e editar em português uma Edição Standard das obras de Freud constitui ingente tarefa, na qual aqueles que participaram são dignos de louvores. Quando, como na Psicanálise, o pioneiro de uma nova disciplina formulou novos conceitos revolucionários e empregou novos termos, seus tradutores precisam não somente de conhecimentos e habilidade, como também de uma inventividade criadora no ampliar os vocábulos existentes que ultrapassam de muito as fronteiras do comum. Esta nova edição em português substitui uma anterior, malograda, que saiu de circulação. Sobre esta, apresenta a imensa vantagem de ser não apenas completa, mas uma tradução direta do texto original em alemão, sem que se utilizasse qualquer tradução intermediária. Não tenho nenhuma dúvida em meu espírito de que o próprio autor a acolheria com todo o entusiasmo. Anna Freud Londres, fevereiro de 1970 facilidade e clareza de estilo e do irrestrito sentido de forma que tornou Freud um conferencista tão notável quanto à exposição. Consideráveis trechos da tradução anterior (1910) deste trabalho foram incluídos na General Selection from the Works of Sigmund Freud (Seleção Geral dos Trabalhos de Sigmund Freud), de Rickman (1937, 3-43). NOTA DO EDITOR BRASILEIRO A presente tradução brasileira, diretamente do alemão, é da autoria de Durval Marcondes (Professor de Psicologia Clínica da Universidade de S. Paulo e Presidente da Associação Brasileira de Psicanálise) e de J. Barbosa Corrêa (Professor de Clínica Médica da Escola Paulista de Medicina). Feita para a Companhia Editora Nacional, data de 1931. Foi ligeiramente modificada por Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro). Carta enviada por Sigmund Freud ao Professor Durval Marcondes agradecendo a primeira tradução brasileira de um de seus livros. CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE Pronunciadas por Ocasião das Comemorações do Vigésimo Aniversário da Fundação da CLARK UNIVERSITY, WORCESTER MASSACHUSETTS Setembro de 1909 Ao DR. G. STANLEY HALL, Ph. D., LL. D. Presidente da Clark University Professor de Psicologia e Pedagogia Este Trabalho é Penhoradamente Dedicado PREFÁCIO PARA AS CINCO LIÇÕES DE PSICANÁLISE DE DURVAL MARCONDES As lições que se seguem foram pronunciadas em língua alemã por Freud, em 1909, na “Clark University” em Worcester (Estados Unidos), por ocasião do vigésimo aniversário dessa instituição, e a convite de seu presidente, o eminente psicólogo Stanley Hall. Elas constituem a primeira exposição sistemática que Freud fez de sua teoria e, embora não envolvam as aquisições mais recentes da psicanálise, são, a meu ver, a leitura mais apropriada para quem aborda pela primeira vez a obra do mestre. A psicanálise estava longe de ter, naquela época, a importância e o renome que hoje desfruta. Se é exato que já em 1907 ela era estudada e utilizada pelo notável psiquiatra Bleuler e por seus assistentes, na clínica de Zurique; e que já em 1908 se reunia em Salisburgo o primeiro congresso psicanalítico internacional, nem por isso as novas idéias eram bem recebidas nas rodas científicas oficiais, onde as afirmações sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses esbarravam quase sempre com os preconceitos de uma falsa moral. Daí a alta significação para a jovem doutrina teve a sua consagração na cátedra de Worcester. “Na Europa, escreveu Freud, eu me sentia como um proscrito; ali me via acolhido pelos melhores como um igual. A psicanálise não era mais, portanto, uma concepção delirante, mas se tornara uma parte preciosa da realidade.” Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia, tendo passado aos quatro anos para Viena, onde fez seus estudos. Formou-se em Medicina em 1881. Ainda estudante, entrou, em 1876, a trabalhar no laboratório de fisiologia de Ernst Brücke, sob cuja direção efetuou pesquisas de histologia nervosa. Depois de formado, ingressou no serviço do grande psiquiatra Theodor Meynert, tendo-se dedicado, por essa época, a estudos de neuroanatomia. Antes de entregar-se definitivamente à investigação psicanalítica, publicou vários trabalhos sobre afecções orgânicas do sistema nervoso, tais como as afasias e as encefalopatias infantis. Entre 1885 e 1886 foi discípulo de Charcot, em Paris, e acompanhou, em 1889, em Nancy, as experiências de Bernheim sobre o hipnotismo. A influência de ambos nas concepções iniciais da teoria psicanalítica poderá ser bem avaliada nestas “Cinco Lições”. Essas concepções tiveram sua primeira expressão na nota prévia que Freud publicou em 1893 com o Dr. Breuer, intitulada “Sobre o Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”, a que se seguiu, em 1895, o livro, também em colaboração, “Estudos Sobre a Histeria.” * * * A vida de Freud tem sido toda ela uma luta incessante pela verdade. Exposto, pela sua coragem de afirmar, ao anátema das escolas psiquiátricas dominantes, preferiu suportar por muito tempo a dureza de um verdadeiro exílio intelectual a ceder naquilo que era o honesto resultado de sua investigação. Desde o começo de sua carreira profissional, o amor à certeza científica fê-lo prejudicar deliberadamente a clínica em início pela tenacidade em pesquisar em seus doentes o exato determinismo dos sintomas. Sua obra fundamenta-se na mais demorada e paciente observação dos fatos. Há cerca de quarenta anos que ele se dedica diariamente a oito, nove, dez, às vezes mesmo onze análises de uma hora cada uma, podendo-se, portanto, dizer que passou toda uma existência debruçado sobre a alma dos neuróticos. O impiedoso rigor para com as próprias convicções chegou, às vezes, ao ponto de fazê-lo adiar por vários anos a publicação de seus trabalhos até que a experiência ulterior proporcionasse a confirmação de suas descobertas. “Minha A Interpretação de Sonhos”, diz ele, “e meu Fragmento de uma Análise de um Caso de Histeria (o caso de Dora) foram retidos por mim - se não pelos nove anos aconselhados por Horácio - em todo caso por quatro ou cinco anos antes que me decidisse a publicá-los.” Compreende-se, portanto, que quem adquiriu uma visão nova dos fatos à custa de tão penosos sacrifícios, se tenha recusado a mudar de idéia ante a pressão de uma crítica partidária, que se não baseia na verificação objetiva. Essa justificada intransigência de Freud foi, não obstante, tachada de dogmatismo, o que não impede, porém, que novos dados da observação direta e imparcial confirmem e completem cada vez mais as suas conclusões. “Os homens são fortes enquanto representam uma idéia forte.” Em sua aureolada velhice, Freud assiste presentemente ao triunfo gradual e seguro de seus princípios, cujo enunciado já não constitui uma blasfêmia. Eles conquistam paulatinamente o lugar que lhes cabe na ciência dos fenômenos espirituais e se vão tornando aceitos pelos mais legítimos representantes da psiquiatria moderna. Existe, na verdade, quem insista em rejeitar as conseqüências teóricas da psicanálise sem lhe conhecer sequer os métodos. Mas aos poucos irão chegando os últimos retardatários. “Quem sabe esperar não necessita fazer concessões.” São Paulo, novembro de 1931. Durval Marcondes. PRIMEIRA LIÇÃO SENHORAS E SENHORES, - Constitui para mim sensação nova e embaraçosa apresentar-me como conferencista ante um auditório de estudiosos do Novo Mundo. Considerando que devo esta honra tão somente ao fato de estar meu nome ligado ao tema da psicanálise, será esse, por conseqüência, o assunto de que lhes falarei, tentando proporcionar- paciente entrou, assim, a reproduzir diante do médico as criações psíquicas que a tinham dominado nos estados de `absence‘ e que se haviam traído naquelas palavras isoladas. Eram fantasias profundamente tristes, muitas vezes de poética beleza - devaneios, como podiam ser chamadas - que tomavam habitualmente como ponto de partida a situação de uma jovem à cabeceira do pai doente. Depois de relatar certo número dessas fantasias, sentia-se ela como que aliviada e reconduzida à vida normal. Esse bem-estar durava muitas horas e desaparecia no dia seguinte para dar lugar a nova `absence‘, que cessava do mesmo modo pela revelação das fantasias novamente formadas. É forçoso reconhecer que a alteração psíquica manifestada durante as `absences‘ era conseqüência da excitação proveniente dessas fantasias intensamente afetivas. A própria paciente, que nesse período da moléstia só falava e entendia inglês, deu a esse novo gênero de tratamento o nome de `talking cure’ (cura de conversação) qualificando-o também, por gracejo, de `chimney sweeping’ (limpeza da chaminé). Verificou-se logo, como por acaso, que, limpando-se a mente por esse modo, era possível conseguir alguma coisa mais que o afastamento passageiro das repetidas perturbações psíquicas. Pode-se também fazer desaparecer sintomas quando, na hipnose, a doente recordava, com exteriorização afetiva, a ocasião e o motivo do aparecimento desses sintomas pela primeira vez. `Tinha havido, no verão, uma época de calor intenso e a paciente sofria de sede horrível, pois, sem que pudesse explicar a causa, viu-se, de repente, impossibilitada de beber. Tomava na mão o cobiçado copo de água, mas assim que o tocava com os lábios, repelia-o como hidrófoba. Nesses poucos segundos, ela se achava evidentemente em estado de absence. Para mitigar a sede que a martirizava, vivia somente de frutas, melões etc. Quando isso já durava perto de seis semanas, falou, certa vez, durante a hipnose, a respeito de sua “dama de companhia” inglesa, de quem não gostava, e contou então com demonstrações da maior repugnância que, tendo ido ao quarto dessa senhora, viu, bebendo num copo, o seu cãozinho, um animal nojento. Nada disse, por polidez. Depois de exteriorizar energicamente a cólera retida, pediu de beber, bebeu sem embaraço grande quantidade de água e despertou da hipnose com o copo nos lábios. A perturbação desapareceu definitivamente. Permitam-me que os detenha alguns momentos ante esta experiência. Ninguém, até então, havia removido por tal meio um sintoma histérico nem penetrado tão profundamente na compreensão da sua causa. O descobrimento desses fatos devia ser de ricas conseqüências, se se confirmasse a esperança de que outros sintomas da doente - e talvez a maioria - se houvessem originado do mesmo modo e do mesmo modo pudessem ser suprimidos. Para verificá-los, Breuer não mediu esforços e pesquisou sistematicamente a patogenia de outros sintomas mais graves. E realmente era assim. Quase todos se haviam formado desse modo, como resíduos - como `precipitados’, se quiserem - de experiências emocionais que, por essa razão, foram denominadas posteriormente `traumas psíquicos’; e o caráter particular a cada um desses sintomas se explicava pela relação com a cena traumática que o causara. Eram, segundo a expressão técnica, determinados pelas cenas cujas lembranças representavam resíduos, não havendo já necessidade de considerá-los como produtos arbitrários ou enigmáticos da neurose. Registremos apenas uma complicação que não fora prevista: nem sempre era um único acontecimento que deixava atrás de si os sintomas; para produzir tal efeito uniam-se na maioria dos casos numerosos traumas, às vezes análogos e repetidos. Toda essa cadeia de recordações patogênicas tinha então de ser reproduzida em ordem cronológica e precisamente inversa - as últimas em primeiro lugar e as primeiras por último - sendo completamente impossível chegar ao primeiro trauma, muitas vezes o mais ativo, saltando-se sobre os que ocorreram posteriormente. Os senhores desejam, por certo, que lhes apresente outros exemplos de produção de sintomas histéricos, além do da hidrofobia originada pela repugnância diante do cão que bebia no copo. Para manter-me, porém, no meu programa, devo limitar-me a poucas ilustrações. Assim, relata Breuer que as perturbações visuais da doente remontavam a situações como aquelas em que `estando a paciente com os olhos marejados de lágrimas, junto ao leito do enfermo, perguntou-lhe este, de repente, que horas eram, e, não podendo ela ver distintamente, forçou a vista, aproximando dos olhos o relógio, cujo mostrador lhe pareceu então muito grande - devido à macropsia e ao estrabismo convergente. Ou se esforçou em reprimir as lágrimas para que o enfermo não as visse.’ Todas as impressões patogênicas provinham, aliás, do tempo em que ela se dedicava ao pai doente. `Uma noite velava muito angustiada junto ao doente febricitante e estava em grande ansiedade porque se esperava de Viena um cirurgião para operá-lo. Sua mãe ausentara-se por algum tempo e Anna, sentada à cabeceira do doente, pôs o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Caiu em estado de semi-sonho e viu, como se viesse da parede, uma cobra negra que se aproximava do enfermo para mordê-lo. (É muito provável que no campo situado atrás da casa algumas cobras tivessem de fato aparecido, assustando anteriormente a moça e fornecendo agora o material de alucinação.) Ela quis afastar o ofídio, mas estava como que paralisada; o braço direito, que pendia no espaldar, achava-se “adormecido”, insensível e parético, e, quando ela o contemplou, transformaram-se os dedos em cobrinhas cujas cabeças eram caveiras (as unhas). Provavelmente procurou afugentar a cobra com a mão direita paralisada e por isso a anestesia e a paralisia da mesma se associaram com a alucinação da serpente. Quando esta desapareceu, aterrorizada, quis rezar, mas não achou palavras em idioma algum, até que, lembrando-se duma poesia infantil em inglês, pode pensar e rezar nessa língua. Com a reconstituição dessa cena durante a hipnose foi removida a paralisia espástica do braço direito, que existia desde o começo da moléstia, e teve fim o tratamento. Quando, alguns anos mais tarde, comecei a empregar nos meus próprios doentes o método semiótico e terapêutico de Breuer, fiz experiências que concordam com as dele. Numa senhora de cerca de quarenta anos existia um tic (tique) sob a forma de um especial estalar da língua, que se produzia quando a paciente se achava excitada e mesmo sem causa perceptível. Originara-se esse tique em duas ocasiões nas quais, sendo desígnio dela não fazer nenhum rumor, o silêncio foi rompido contra sua vontade justamente por esse estalido. Uma vez, foi quando com grande trabalho conseguira finalmente fazer adormecer seu filhinho doente, e desejava, no íntimo, ficar quieta para o não despertar; outra vez, quando numa viagem de carro com os dois filhos, por ocasião de uma tempestade, assustaram-se os cavalos e ela cuidadosamente quisera evitar qualquer ruído para que os animais não se espantassem ainda mais. Dou esse esse exemplo dentre muitos outros que se acham consignados nos Studies on Hysteria (Estudos Sobre a Histeria). Senhoras e Senhores. Se me permitem uma generalização - inevitável numa exposição tão breve - podemos sintetizar os conhecimentos até agora adquiridos na seguinte fórmula: os histéricos sofrem de reminiscências. Seus sintomas são resíduos e símbolos mnêmicos de experiências especiais (traumáticas). Uma comparação com outros símbolos mnêmicos de gênero diferente talvez nos permita compreender melhor esse simbolismo. Os monumentos com que ornamos nossas cidades são também símbolos dessa ordem. Passeando em Londres, verão, diante de uma das maiores estações da cidade, uma coluna gótica ricamente ornamentada - a Charing Cross. No século XIII, um dos velhos reis plantagenetas, que fez transportar para Westminster os restos mortais de sua querida esposa e rainha Eleanor, erigiu cruzes góticas nos pontos em que havia pousado o esquife. Charing Cross é o último desses monumentos destinados a perpetuar a memória do cortejo fúnebre. Em outro ponto da cidade, não muito distante da London Bridge, verão uma coluna moderna e muito alta, chamada simplesmente `The Monument’, cujo fim é lembrar o grande incêndio que em 1666 irrompeu ali perto e destruiu boa parte da cidade. Tanto quanto se justifique a comparação, esses monumentos são também símbolos mnêmicos como os sintomas histéricos. Mas que diriam do londrino que ainda hoje se detivesse compungido ante o monumento erigido em memória do enterro da rainha Eleanor, em vez de tratar de seus negócios com a pressa exigida pelas modernas condições de trabalho, ou de pensar satisfeito na jovem rainha de seu coração? Ou de outro que, em face do `Monument’ chorasse a incineração da cidade querida, reconstruída depois com tanto brilho? Como esses londrinos pouco práticos, procedem, entretanto, os histéricos e neuróticos: não só recordam acontecimentos dolorosos que se deram há muito tempo, como ainda se prendem a eles emocionalmente; não se desembaraçam do passado e alheiam-se por isso da realidade e do presente. Essa fixação da vida psíquica aos traumas patogênicos é um dos caracteres mais importantes da neurose e dos que têm maior significação prática. Desde já aceito a objeção que provavelmente os senhores formularam refletindo sobre a história da paciente de Breuer. Todos os traumas que influíram na moça datavam do tempo em que ela cuidava do pai doente, e os sintomas que apresentava podem ser considerados como simples sinais mnêmicos da doença e da morte dele. Correspondem, portanto, a uma manifestação de luto, e a fixação à memória do finado, tão pouco tempo depois do traspasse, nada representa de patológico; corresponde antes a um processo emocional normal. Reconheço SENHORAS E SENHORES, - Quase ao mesmo tempo em que Breuer praticava a talking cure (cura de conversação) com sua paciente, começava o grande Charcot, em Paris, com as doentes histéricas da Salpêtrière, as investigações de onde havia de surgir nova concepção da enfermidade. Estes resultados não podiam, naquela ocasião, ser conhecidos em Viena. Quando, porém, cerca de dez anos mais tarde, Breuer e eu publicávamos nossa `Preliminary Communication‘ (Comunicação Preliminar) sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos, relacionada com o tratamento catártico da primeira doente de Breuer [1893a], já nos achávamos de todo sob a influência das pesquisas de Charcot. A nosso ver, os acontecimentos patogênicos de nossos doentes, isto é, os traumas psíquicos, eram equivalentes dos traumas físicos cuja influência nas paralisias histéricas fora precisada por Charcot; e a hipótese dos estados hipnóides de Breuer nada mais é que o reflexo da reprodução artificial daquelas paralisias traumáticas, que Charcot obtivera durante a hipnose. O grande observador francês, de quem fui discípulo em 1885 e 1886, não era propenso às concepções psicológicas. Foi seu discípulo Pierre Janet que tentou penetrar mais intimamente os processos psíquicos particulares da histeria, e nós seguimos-lhes o exemplo, tomando a divisão da mente e a dissociação da personalidade como ponto central de nossa teoria. Segundo a de Janet, que leva em grande conta as idéias dominantes na França sobre o papel da hereditariedade e da degeneração, a histeria é uma forma de alteração degenarativa do sistema nervoso, que se manifesta pela fraqueza congênita do poder de síntese psíquica. Os pacientes histéricos seriam, desde o princípio, incapazes de manter como um todo a multiplicidade dos processos mentais, e daí a dissociação psíquica. Se me for permitida uma comparação trivial mais precisa, direi que o paciente histérico de Janet lembra uma pobre mulher que saiu a fazer compras e volta carregada de pacotes. Não podendo só com dois braços e dez dedos conter toda a pilha, cai-lhe primeiro um embrulho; ao inclinar-se para levantá-lo, cai-lhe outro, e assim sucessivamente. Contrariando, porém, esta suposta fraqueza mental dos pacientes histéricos, podem observar-se neles, além dos fenômenos de capacidade diminuída, outros, por assim dizer compensadores, de exaltação parcial da eficiência. Durante o tempo em que a doente de Breuer esquecera a língua materna e outros idiomas exceto o inglês, era tal a facilidade com que falava este último, que chegava a ponto de ser capaz, diante de um livro alemão, de traduzi-lo à primeira vista, perfeita e corretamente. Quando eu, mais tarde, prosseguia sozinho as pesquisas iniciadas por Breuer, fui levado a outro ponto de vista a respeito da dissociação histérica (a divisão da consciência). Era fatal essa divergência, aliás decisiva para o resultado futuro, visto que eu não partia, como Janet, de experiências de laboratório e sim do trabalho terapêutico. O que sobretudo me impelia era a necessidade prática. O procedimento catártico, como Breuer o praticava, exigia previamente a hipnose profunda do doente, pois só no estado hipnótico é que tinha este o conhecimento das ligações patogênicas que em condições normais lhe escapavam. Tornou-se-me logo enfadonho o hipnotismo, como recurso incerto e algo místico; e quando verifiquei que apesar de todos os esforços não conseguia hipnotizar senão parte de meus doentes, decidi abandoná-lo, tornando o procedimento catártico independente dele. Como não podia modificar à vontade o estado psíquico dos doentes, procurei agir mantendo-os em estado normal. Parecia isto a princípio empresa insensata e sem probabilidade de êxito. Tratava- se de fazer o doente contar aquilo que ninguém, nem ele mesmo, sabia. Como esperar consegui-lo? O auxílio me veio da recordação de uma experiência de Bernheim, singularíssima e instrutiva, a que eu assistira em Nancy [em 1889]. Bernheim nos havia então mostrado que as pessoas por ele submetidas ao sonambulismo hipnótico e que nesse estado tinham executado atos diversos, só aparentemente perdiam a lembrança dos fatos ocorridos, sendo possível despertar nelas tal lembrança, mesmo no estado normal. Quando interrogadas a propósito do que havia acontecido durante o sonambulismo, afirmavam de começo nada saber; mas se ele não cedia, insistindo com elas e assegurando-lhes que era possível lembrar, a recordação vinha sempre de novo à consciência. Procedi do mesmo modo com os meus doentes. Quando chegávamos a um ponto em que nos afirmavam nada mais saber, assegurava-lhes que sabiam, que só precisavam dizer, e ia mesmo até afirmar que a recordação exata seria a que lhes apontasse no momento em que lhes pusesse a mão sobre a fronte. Dessa maneira pude, prescindindo do hipnotismo, conseguir que os doentes revelassem tudo quanto fosse preciso para estabelecer os liames existentes entre as cenas patogênicas olvidadas e os seus resíduos - os sintomas. Esse processo era, porém, ao cabo de algum tempo, extenuante, inadequado para uma técnica definitiva. Não o abandonei, contudo, sem tirar, das observações feitas, conclusões decisivas. Vi confirmado, assim, que as recordações esquecidas não se haviam perdido. Jaziam em poder do doente e prontas a ressurgir em associação com os fatos ainda sabidos, mas alguma força as detinha, obrigando-as a permanecer inconscientes. A existência desta força pode ser seguramente admitida, pois sentia-se-lhe a potência quando, em oposição a ela, se intentava trazer à consciência do doente as lembranças inconscientes. A força que mantinha o estado mórbido fazia-se sentir como resistência do enfermo. Nesta idéia de resistência alicercei então minha concepção acerca dos processos psíquicos na histeria. Para o restabelecimento do doente mostrou-se indispensável suprimir estas resistências. Partindo do mecanismo da cura, podia-se formar idéia muito precisa da gênese da doença. As mesmas forças que hoje, como resistência, se opõem a que o esquecido volte à consciência deveriam ser as que antes tinham agido, expulsando da consciência os acidentes patogênicos correspondentes. A esse processo, por mim formulado, dei o nome de `repressão‘ e julguei-o demonstrado pela presença inegável da resistência. Podia-se ainda perguntar, sem dúvida, que força era essa e quais as condições da repressão, em que reconhecemos agora o mecanismo patogênico da histeria. Um exame comparativo das situações patogênicas, conhecidas graças ao tratamento catártico, permitia dar a conveniente resposta. Tratava-se em todos os casos do aparecimento de um desejo violento mas em contraste com os demais desejos do indivíduo e incompatível com as aspirações morais e estéticas da própria personalidade. Produzia-se um rápido conflito e o desfecho desta luta interna era sucumbir à repressão a idéia que aparecia na consciência trazendo em si o desejo inconciliável, sendo a mesma expulsa da consciência e esquecida, juntamente com as respectivas lembranças. Era, portanto, a incompatibilidade entre a idéia e o ego do doente, o motivo da repressão; as aspirações individuais, éticas e outras, eram as forças repressivas. A aceitação do impulso desejoso incompatível ou o prolongamento do conflito teriam despertado intenso desprazer; a repressão evitava o desprazer, revelando-se desse modo um meio de proteção da personalidade psíquica. Dos muitos casos por mim observados quero relatar-lhes um apenas, no qual são patentes os aspectos determinantes e a vantagem da repressão. Para não me afastar do meu propósito, sou forçado a resumir esta história clínica, deixando de lado importantes hipóteses. A paciente era uma jovem que perdera recentemente o pai, depois de tomar parte, carinhosamente, nos cuidados ao enfermo - situação análoga à da doente de Breuer. Nascera, quando a irmã mais velha se casou, uma simpatia particular para o novo cunhado, que se mascarava por disfarce de ternura familiar. Esta irmã adoeceu logo depois e veio a falecer durante a ausência da minha doente e de sua mãe. Estas foram chamadas urgentemente, sem notícia completa do doloroso acontecimento. Quando a moça chegou ao leito da morta, correu- lhe na mente, por um rápido instante, uma idéia mais ou menos assim: `ele agora está livre, pode desposar-me.’ É-nos lícito admitir como certo que esta idéia, denunciando-lhe à consciência o intenso amor que sem o saber tinha ao cunhado, foi logo entregue à repressão pelos próprios sentimentos revoltados. A jovem adoeceu com graves sintomas histéricos e quando comecei a tratá-la tinha esquecido não só aquela cena junto ao leito da irmã, como também o concomitante sofrimento indigno e egoísta. Mas recordou-se de tudo durante o tratamento, reproduziu o incidente patogênico com sinais de intensa emoção, e curou-se. Talvez possa ilustrar o processo de repressão e a necessária relação deste com a resistência, mediante uma comparação grosseira, tirada de nossa própria situação neste recinto. Imaginem que nesta sala e neste auditório, cujo silêncio e cuja atenção eu não saberia louvar suficientemente, se acha no entanto um indivíduo comportando-se de modo inconveniente, perturbando-nos com risotas, conversas e batidas de pé, desviando-me a atenção de minha incumbência. Declaro não poder continuar assim a exposição; diante disso alguns homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e após ligeira luta põem o indivíduo fora da porta. Ele está agora `reprimido’ e posso continuar minha exposição. Para que, porém, se não repita o incômodo se o elemento perturbador tentar penetrar novamente na sala, os cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta e, consumada a repressão, se postam como `resistências’. Se traduzirmos agora os dois lugares, sala e é certo; foi por amor à concisão que o apresentei com essa singeleza. Na realidade, só nas primeiras vezes aconteceu que pela simples pressão de minha parte exatamente o esquecido que buscávamos se apresentasse. Continuando a empregar o método, vinham pensamentos despropositados, que não poderiam ser o procurado e que os próprios doentes repeliam como inexatos. Já não adiantava insistência e poder-se-ia de novo lamentar o abandono do hipnotismo. Neste estado de perplexidade vali-me de um pressuposto cuja exatidão científica foi anos depois demonstrada pelo meu amigo C. G. Jung, de Zurique, e seus discípulos. Devo afirmar que às vezes é muito útil ter um pressuposto. Eu tinha em alto conceito o rigor do determinismo dos processos mentais e não podia crer que uma idéia concebida pelo doente com atenção concentrada fosse inteiramente espontânea, sem nenhuma relação com a representação mental esquecida e por nós procurada. Que não fosse idêntica a esta, explicava- se satisfatoriamente pela situação psicológica suposta. Duas forças antagônicas atuavam no doente; de um lado, o esforço refletido para trazer à consciência o que jazia deslembrado no inconsciente; de outro lado a resistência, já nossa conhecida, impedindo a passagem para o consciente do elemento reprimido ou dos derivados deste. Se fosse igual a zero ou insignificante a resistência, o olvidado se tornaria consciente sem deformação. Podemos admitir que seja tanto maior a deformação do elemento procurado quanto mais forte a resistência que o detiver. O pensamento que no doente vinha em lugar do desejado, tinha origem idêntica à de um sintoma; era uma nova substituição artificial e efêmera do reprimido e tanto menos semelhante a ele quanto maior a deformação que tivesse de sofrer sob a influência da resistência. Ele devia mostrar, porém, certa parecença com o procurado, em virtude da sua natureza de sintoma; e desde que a resistência não fosse muito intensa, seria possível, partindo da idéia, lobrigar o oculto que se buscava. O pensamento devia comportar-se em relação ao elemento reprimido com uma alusão, como uma representação do mesmo por meio de palavras indiretas. Conhecemos, no domínio da vida psíquica normal, exemplos em que situações análogas às que admitimos produzem resultados semelhantes. É o caso do chiste. O problema da técnica psicanalítica forçou-me a estudar o mecanismo da formação das pilhérias. Quero expor-lhes apenas um desses exemplos, aliás uma anedota da língua inglesa. Diz a anedota: Por uma série de empresas duvidosas, dois comerciantes tinham conseguido reunir grandes cabedais e esforçavam-se para penetrar na boa sociedade. Entre outros, pareceu-lhes um meio conveniente fazerem-se retratar pelo pintor mais notável e mais careiro da cidade, cujo quadro fosse um acontecimento. Numa grande reunião foram inaugurados os custosíssimos quadros, um ao lado do outro, e os dois proprietários conduziram até a parede o mais influente crítico de arte a fim de obterem o valioso julgamento. O crítico examinou longamente o quadro, sacudiu a cabeça como se achasse falta de alguma coisa e perguntou apenas, indicando o espaço entre os dois quadros: `But where’s the Saviour? (`Mas onde está o Redentor?’) Vejo que todos se riem da boa pilhéria; penetramos-lhes agora a significação. Os presentes compreendem que o crítico queria dizer: vocês são dois patifes como aqueles que ladearam o Cristo crucificado. Mas não o disse; em lugar disso exprimiu coisa que à primeira vista parece extraordinariamente abstrusa e fora de propósito, mas que logo depois reconhecemos como uma alusão à injúria que lhe estava no íntimo, e que vale perfeitamente como substituto dela. Não podemos esperar que numa anedota sejam encontradas todas as circunstâncias que pressupomos na gênese das idéias associadas dos nossos doentes; queremos todavia realçar a identidade de motivação para a anedota e para a idéia. Por que é que o nosso crítico não lhes falou claramente? Porque nele outras razões contrárias também atuavam ao lado do ímpeto de dizê-lo francamente, face a face. Não deixa de ser perigoso desfeitear pessoas de que somos hóspedes e que dispõem de criadagem numerosa, de pulsos vigorosos. A sorte poderia ser a mesma que na conferência anterior serviu de exemplo para a repressão. Por tal razão o crítico atirou indiretamente a ofensa que estava ruminando, transfigurando-a numa `alusão com desabafo’. É, a nosso ver, devido à mesma constelação que o paciente produz uma idéia de substituição, mais ou menos distorcida, em lugar do elemento esquecido que procuramos. Senhoras e Senhores. Aceitando a proposta da Escola de Zurique (Bleuler, Jung e outros), convém dar o nome de `complexo’ a um grupo de elementos ideacionais interdependentes, catexizados de energia afetiva. Vemos assim que partindo da última recordação que o doente ainda possui, em busca de um complexo reprimido, temos toda a probabilidade de desvendá-lo, desde que o doente nos proporcione um número suficiente de associações livres . Mandamos o doente dizer o que quiser, cônscios de que nada lhe ocorrerá à mente senão aquilo que indiretamente dependa do complexo procurado. Talvez lhes pareça muito fastidioso este processo de descobrir os elementos reprimidos, mas, asseguro-lhes, é o único praticável. No emprego desta técnica o que ainda nos perturba é que com freqüência o doente se detém, afirmando não saber dizer mais nada, que nada mais lhe vem à idéia. Se assim fosse, se o doente tivesse razão, o método ter-se-ia revelado impraticável. Uma observação atenta mostra, contudo, que as idéias livres nunca deixam de aparecer. É que o doente, influenciado pela resistência disfarçada em juízos críticos sobre o valor da idéia, retém-na ou de novo a afasta. Para evitá-la põe-se previamente o doente a par do que pode ocorrer, pedindo-lhe renuncie a qualquer crítica; sem nenhuma seleção deverá expor tudo que lhe vier ao pensamento, mesmo que lhe pareça errôneo, despropositado ou absurdo e, especialmente, se lhe for desagradável a vinda dessas idéias à mente. Pela observância dessa regra garantimo- nos o material que nos conduz ao roteiro do complexo reprimido. Esse material associativo que o doente rejeita como insignificante, quando em vez de estar sob a influência do médico está sob a da resistência, representa para o psicanalista o minério de onde com simples artifício de interpretação há de extrair o metal precioso. Se diante de um doente quiserem os presentes ter um conhecimento rápido e provisório dos complexos reprimidos, sem lhes penetrar na ordem e nas relações, podem dispor da `experiência da associação’, cuja técnica foi aperfeiçoada por Jung (1906) e seus discípulos. Para o psicanalista este método é tão precioso quanto para o químico a análise qualitativa; prescindível na terapêutica dos neuróticos, é indispensável para a demonstração objetiva dos complexos e para o estudo das psicoses, com tanto êxito empreendido pela Escola de Zurique. Não é o estudo das divagações, quando o doente se sujeita à regras psicanalíticas, o único recurso técnico para sondagem do inconsciente. Ao mesmo escopo servem dois outros processos: a interpretação de sonhos e o estudo dos lapsos e atos casuais. Confesso-lhes, prezados ouvintes, que estive longo tempo indeciso sobre se, em lugar desta rápida vista geral sobre todo o domínio da psicanálise, não seria preferível expor-lhes minuciosamente a interpretação de sonhos. Motivo puramente subjetivo e aparentemente secundário me deteve. Pareceu-me quase escandaloso apresentar-me neste país de orientação prática, como `onirócrita’, antes de mostrar-lhes qual a importância a que pode aspirar esta velha e ridicularizada arte. A interpretação de sonhos é na realidade a estrada real para o conhecimento do inconsciente, a base mais segura da psicanálise. É campo onde cada trabalhador pode por si mesmo chegar a adquirir convicção própria, como atingir maiores aperfeiçoamentos. Quando me perguntam como pode uma pessoa fazer-se psicanalista, respondo que é pelo estudo dos próprios sonhos. Os adversários da psicanálise, com muita habilidade, têm até agora evitado estudar de perto A Interpretação de Sonhos, ou têm oposto ao de longe objeções superficialíssimas. Se não repugna aos presentes, ao contrário, aceitar as soluções dos problemas da vida onírica, já não apresentam aos ouvintes dificuldade alguma as novidades trazidas pela psicanálise. Não se esqueçam de que se nossas elaborações oníricas noturnas mostram de um lado a maior semelhança externa e o mais íntimo parentesco com as criações da alienação mental, são, de outro lado, compatíveis com a mais perfeita saúde na vida desperta. Não é nenhum paradoxo afirmar que quem fica admirado ante essas alucinações, delírios ou mudanças de caráter que podemos chamar `normais’, sem procurar explicá-los, não tem a menor probabilidade de compreender, senão como qualquer leigo, as formações anormais dos estados psíquicos patológicos. E entre esses leigos os ouvintes podem contar atualmente, sem receio, quase todos os psiquiatras. Acompanhem-me agora numa rápida excursão pelo campo dos problemas do sonho. Quando acordados, costumamos tratar os sonhos com o mesmo desdém com que os doentes rejeitam as idéias soltas despertadas pelo psicanalista. Desprezamo-los, olvidando-os em geral rápida e completamente. O nosso descaso funda-se no caráter exótico apresentado mesmo pelos sonhos que possuem clareza e nexo, e sobre a evidente absurdez e insensatez dos Como vêem, o estudo dos sonhos já estaria em si justificado, pelo fato de que proporciona conclusões sobre coisas de que por outros meios dificilmente chegaríamos a ter noção. Foi todavia no decorrer do tratamento psicanalítico dos neuróticos que chegamos até ele. Pelo que até agora dissemos podem compreender facilmente que a interpretação de sonhos, quando não a estorvam em excesso as resistências do doente, leva ao conhecimento dos desejos ocultos e reprimidos, bem como dos exemplos entretidos por este. Posso agora tratar do terceiro grupo de fenômenos psíquicos cujo estudo se tornou recurso técnico da psicanálise. Os fenômenos em questão são as pequenas falhas comuns aos indivíduos normais e aos neuróticos, fatos aos quais não costumamos ligar importância - o esquecimento de coisas que deviam saber e que às vezes sabem realmente (por exemplo a fuga temporária dos nomes próprios), os lapsos de linguagem, tão freqüentes até mesmo conosco, na escrita ou na leitura em voz alta; atrapalhações no executar qualquer coisa, perda ou quebra de objetos etc., bagatelas de cujo determinismo psicológico de ordinário não se cuida, que passam sem reparo como casualidades, como resultado de distrações, desatenções e outras condições semelhantes. Juntam-se ainda os atos e gestos que as pessoas executam sem perceber e, sobretudo, sem lhes atribuir importância mental, como sejam trautear melodias, brincar com objetos, com partes da roupa ou do próprio corpo etc. Essas coisinhas, os atos falhos, como os sintomáticos e fortuitos, não são assim tão destituídas de valor como por uma espécie de acordo tácito e hábito admitir. São extraordinariamente significativas e quase sempre de interpretação fácil e segura, tendo-se em vista a situação em que ocorrem; verifica-se que mais uma vez exprimem impulsos e intenções que devem ficar ocultos à própria consciência, ou emanam justamente dos desejos reprimidos e dos complexos que, como já sabemos, são criadores dos sintomas e formadores dos sonhos. Fazem jus à mesma consideração que os sintomas, e o seu exame, tanto quanto o dos sonhos, pode levar ao descobrimento da parte oculta da mente. Por elas o homem trai, em regra, os mais íntimos segredos. Se se produzem com grande facilidade e freqüência, até em indivíduos normais, cujos desejos inconscientes estão reprimidos de modo eficaz, isso se explica pela futilidade e inverossimilhança das mesmas. São porém do mais alto valor teórico: testemunham a existência da repressão e da substituição mesmo na saúde perfeita. Notarão desde logo que o psicanalista se distingue pela rigorosa fé no determinismo da vida mental. Para ele não existe nada insignificante, arbitrário ou casual nas manifestações psíquicas. Antevê um motivo suficiente em toda parte onde habitualmente ninguém pensa nisso; está até disposto a aceitar causas múltiplas para o mesmo efeito, enquanto nossa necessidade causal, que supomos inata, se satisfaz plenamente com uma única causa psíquica. Se os ouvintes reunirem os meios que estão ao nosso alcance para descobrimento do que na vida mental jaz escondido, deslembrado e reprimido - o estudo das idéias livremente associadas pelos pacientes, seus sonhos, falhas e ações sintomáticas; se ainda juntarem a tudo isso o exame de outros fenômenos surgidos no decurso do tratamento psicanalítico e a respeito dos quais farei algumas observações quando tratar da `transferência’ - chegarão comigo à conclusão de que a nossa técnica já é suficientemente capaz de realizar aquilo que se propôs: conduzir à consciência o material psíquico patogênico, dando fim desse modo aos padecimentos ocasionados pela produção dos sintomas de substituição. O fato de enriquecermos e aprofundarmos durante o tratamento os nossos conhecimentos sobre a vida mental, dos sãos e dos doentes, deve ser considerado apenas como estímulo especial a este trabalho e uma de suas vantagens. Não sei se ficaram com a impressão de que a técnica, através de cujo arsenal os conduzi, apresenta dificuldades especiais. Para mim, ela amolda-se perfeitamente aos seus fins. Mas não é menos certo também que não constitui prenda inata; tem de ser aprendida, como a histológica ou a cirúrgica. Talvez se espantem em saber que na Europa ouvi uma série de juízos relativos à psicanálise expendidos por pessoas jejunas a respeito desta técnica, que elas não exercitam, as quais pessoas ainda por ironia nos exigem lhes demonstremos a exatidão de nossos resultados. No meio de tais opositores encontram-se sem dúvida homens familiarizados com o raciocínio científico em outras matérias, incapazes de contestar, por exemplo, o resultado dum exame microscópico, só porque não o podem confirmar pela inspeção do preparado anatômico com a vista desarmada, e que não emitiriam parecer algum antes de minuciosa observação ao microscópio. Mas no tocante à psicanálise as circunstâncias são realmente desfavoráveis a um imediato assentimento. Quer a psicanálise tornar conscientemente reconhecido aquilo que está reprimido na vida mental, e todo aquele que a julga é homem com as mesmas repressões, mantidas talvez à custa de penosos sacrifícios. Neles devem levantar- se, pois, as mesmas resistências, como nos doentes, e estas se revestem facilmente das roupagens da impugnação intelectual, suscitando argumentos semelhantes aos que desfazemos nos doentes com a regra psicanalítica fundamental. Como nos doentes, podemos reconhecer em nossos adversários notável influxo afetivo na faculdade de julgamento, com prejuízo desta. O orgulho da consciência que chega por exemplo a desprezar os sonhos pertence ao forte aparelhamento disposto em nós de modo geral contra a invasão dos complexos inconscientes. Esta é a razão por que tão dificultoso é como vencer os homens da realidade do inconsciente e dar-lhes a conhecer qualquer novidade em contradição com seu conhecimento consciente. QUARTA LIÇÃO SENHORAS E SENHORES, - Desejam os ouvintes saber agora o que, com auxílio dos meios técnicos descritos, logramos averiguar a respeito dos complexos patogênicos e dos desejos reprimidos dos neuróticos. Mas, antes de tudo, uma coisa: o exame psicanalítico relaciona com uma regularidade verdadeiramente surpreendente os sintomas mórbidos a impressões da vida erótica do doente; mostra-nos que os desejos patogênicos são da natureza dos componentes instintivos eróticos: e obriga-nos a admitir que as perturbações do erotismo têm a maior importância entre as influências que levam à moléstia, tanto num como noutro sexo. Bem sei que não se acredita de boa mente nesta minha afirmação. Mesmo os investigadores que me seguem solícitos os trabalhos psicológicos são inclinados a julgar que eu exagero a participação etiológica do fator sexual, e vêm a mim perguntando por que outras excitações mentais não hão de dar também motivo aos fenômenos da repressão e formação de substitutivos. Por ora só lhes posso responder: não sei. Mas a experiência mostra que elas não têm a mesma importância. Quando muito, reforçam a ação do elemento sexual, mas nunca podem substituí-lo. Esta ordem de coisas não a determinei mais ou menos teoricamente. Quando, em 1895, publiquei com o Dr. J. Breuer os Estudos sobre a Histeria, ainda não tinha esta opinião; vi-me forçado a adotá-la quando as minhas experiências se tornaram mais numerosas e penetraram mais intimamente o problema. Senhores! Acham-se entre os presentes alguns de meus adeptos e amigos mais chegados, que viajaram comigo até Worcester. Se os interrogarem, ouvirão que todos eles a princípio recebiam com a maior descrença a afirmação da importância decisiva da etiologia sexual, até que pelo exercício analítico pessoal foram obrigados a aceitar como sua própria aquela afirmação. O modo de proceder dos doentes em nada facilita o reconhecimento da justeza da tese a que estamos aludindo. Em vez de nos fornecerem prontamente informações sobre a sua vida sexual, procuram por todos os meios ocultá-la. Em matéria sexual os homens são em geral insinceros. Não expõem a sua sexualidade francamente; saem recobertos de espesso manto, tecido de mentiras, para se resguardarem, como se reinasse um temporal terrível no mundo da sexualidade. E não deixam de ter razão; o sol e o ar em nosso mundo civilizado não são realmente favoráveis à atividade sexual. Com efeito, nenhum de nós pode manifestar o seu erotismo francamente à turba. Quando porém seus pacientes tiverem percebido que durante o tratamento devem estar à vontade, se despojarão daquele manto de mentira, e só então estarão os presentes em condições de formar juízo a respeito deste problema. Infelizmente, os médicos não desfrutam nenhum privilégio especial sobre os demais homens no tocante ao comportamento na esfera da vida sexual, e muitos deles estão dominados por aquela mescla de lubricidade e afetado recato, que é o que governa a maioria dos `povos civilizados’ nas coisas da sexualidade. Deixem-me prosseguir no relato das nossas contestações. Em outra série de casos o exame psicanalítico vem sem dúvida ligar os sintomas não a fatos sexuais senão a acontecimentos traumáticos comuns. Mas, por outra circunstância, esta diferenciação perde todo valor. O trabalho de análise necessário para o esclarecimento completo e cura definitiva de um caso mórbido não se detém nos episódios contemporâneos da doença; retrocede sempre, em qualquer hipótese, até a puberdade e a mais remota infância do doente, para só aí topar as impressões e acontecimentos determinantes da doença ulterior. Só os fatos da infância explicam instinto de conservação. Mas a diferença de sexo ainda não tem neste período infantil papel decisivo; pode-se, pois, atribuir a toda criança, sem injustiça, uma parcial disposição homossexual. Esta vida sexual infantil desordenada, rica mas dissociada, em que cada impulso isolado se entrega à conquista do gozo independentemente dos demais, experimenta uma condensação e organização em duas principais direções, de tal modo que ao fim da puberdade o caráter sexual definitivo está completamente formado. De um lado subordinam-se todos os impulsos ao domínio da zona genital, por meio da qual a vida sexual se coloca em toda a plenitude ao serviço da propagação da espécie, passando a satisfação daqueles impulsos a só ter importância como preparo e estímulo do verdadeiro ato sexual. De outro lado a escolha de objeto repele o auto-erotismo, de maneira que na vida erótica os componentes do instinto sexual só querem satisfazer-se na pessoa amada. Mas nem todos os componentes instintivos originários são admitidos a tomar parte nesta fixação definitiva da vida sexual. Já antes da puberdade, sob o influxo de educação, certos impulsos são submetidos a repressões extremamente enérgicas, ao mesmo passo que surgem forças mentais - o pejo, a repugnância, a moral - que como sentinelas mantêm as aludidas repressões. Chegando na puberdade a maré das necessidades sexuais, encontra nas mencionadas reações psíquicas diques de resistência que lhe conduzem a corrente pelos caminhos chamados normais e lhe impedem reviver os impulsos reprimidos. Os mais profundamente atingidos pela repressão são primeiramente, e sobretudo, os prazeres infantis coprófilos, isto é, os que se relacionam com os excrementos, e, em segundo lugar, os da fixação às pessoas da primitiva escolha de objeto. Senhores. Um princípio de patologia geral afirma que todo processo evolutivo traz em si os germes de uma disposição patológica e pode ser inibido ou retardado ou desenvolver-se incompletamente. Isto vale para o tão complicado desenvolvimento da função sexual que nem em todos os indivíduos se desenrola sem incidentes que deixem após si ou anormalidade ou disposições a doenças futuras por meio de uma regressão. Pode suceder que nem todos os impulsos parciais se sujeitem à soberania da zona genital; o que ficou independente estabelece o que chamamos perversão e pode substituir a finalidade sexual normal pela sua própria. Segundo já foi dito, acontece freqüentemente que o auto-erotismo não seja completamente superado, como testemunham as multiformes perturbações aparecidas depois. A equivalência primitiva dos sexos como objeto sexual pode conservar-se, e disso se originará no adulto uma tendência homossexual, capaz de chegar em certas circunstâncias até a da homossexualidade exclusiva. Esta série de distúrbios corresponde a entraves diretos no desenvolvimento da função sexual: abrange as perversões e o nada raro infantilismo geral da vida sexual. A propensão à neurose deve provir por outra maneira de uma perturbação do desenvolvimento sexual. As neuroses são para as perversões o que o negativo é para o positivo. Como nas perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes instintivos que mantêm os complexos e são os formadores de sintomas; mas aqui eles agem do inconsciente, onde puderam firmar-se apesar da repressão sofrida. A psicanálise nos mostra que a manifestação excessivamente intensa e prematura desses impulsos conduz a uma espécie de fixação parcial - ponto fraco na estrutura da função sexual. Se o exercício da capacidade genética normal encontra no adulto um obstáculo, rompe-se a repressão da fase do desenvolvimento justamente naquele ponto em que se deu a fixação infantil. É muito possível que me contestem dizendo que nada disto é sexualidade e que emprego a palavra num sentido mais extenso do que estão habituados a entender. Concordo. Mas pode-se perguntar se não têm antes utilizado os presentes o vocábulo em sentido nímio restrito, quando o limitam ao terreno da procriação. Sacrificam assim a compreensão das perversões, do enlaçamento que existe entre estas, a neurose e a vida sexual normal, e os senhores se colocam em situação de não reconhecer, em seu verdadeiro significado, os primórdios, facilmente observáveis, da vida erótica somática e psíquica das crianças. Qualquer que seja a opinião dos presentes sobre o emprego do termo, devem ter sempre em conta que o psicanalista considera a sexualidade naquele sentido amplo a que o conduziu a apreciação da sexualidade infantil. Volvamos ainda uma vez à evolução sexual da criança. Temos aqui ainda muito que rever, porque nossa atenção foi dirigida mais para as manifestações somáticas da vida sexual do que às psíquicas. A primitiva escolha de objeto feita pela criança e dependente de sua necessidade de amparo exige-nos ainda toda a atenção. Essa escolha dirige-se primeiro a todas as pessoas que lidam com a criança e logo depois especialmente aos genitores. A relação entre criança e pais não é, como a observação direta do menino e posteriormente o exame psicanalítico do adulto concordemente demonstram, absolutamente livre de elementos de excitação sexual. A criança toma ambos os genitores, e particularmente um deles, como objeto de seus desejos eróticos. Em geral o incitamento vem dos próprios pais, cuja ternura possui o mais nítido caráter de atividade sexual, embora inibido em suas finalidades. O pai em regra tem preferência pela filha, a mãe pelo filho: a criança reage desejando o lugar do pai se é menino, o da mãe se se trata da filha. Os sentimentos nascidos destas relações entre pais e filhos e entre um irmão e outros, não são somente de natureza positiva, de ternura, mas também negativos, de hostilidade. O complexo assim formado é destinado a pronta repressão, porém continua a agir do inconsciente com intensidade e persistência. Devemos declarar que suspeitamos represente ele, com seus derivados, o complexo nuclear de cada neurose, e nos predispusemos a encontrá-lo não menos ativo em outros campos da vida mental. O mito do rei Édipo que, tendo matado o pai, tomou a mãe por mulher, é uma manifestação pouco modificada do desejo infantil, contra o qual se levantam mais tarde, como repulsa, as barreiras do incesto. O Hamlet de Shakespeare assenta sobre a mesma base, embora mais velada, do complexo do incesto. No tempo em que é dominada pelo complexo central ainda não reprimido, a criança dedica aos interesses sexuais notável parte da atividade intelectual. Começa a indagar de onde vêm as criancinhas, e com os dados a seu alcance adivinha das circunstâncias reais mais do que os adultos podem suspeitar. Comumente o que lhe desperta a curiosidade é a ameaça material do aparecimento de um novo irmãozinho, no qual a princípio só vê um competidor. Sob a influência dos impulsos parciais que nela agem, forma até numerosas `teorias sexuais infantis’. Chega a pensar que ambos os sexos possuem órgãos genitais masculinos; que comendo é que se geram crianças; que estas vêm ao mundo pela extremidade dos intestinos; que a cópula é um ato de hostilidade, uma espécie de subjugação. Mas justamente a falta de acabamento de sua constituição sexual e a deficiência de conhecimentos, especialmente no que se refere ao tubo genital feminino, forçam o pequeno investigador a suspender o improfícuo trabalho. O próprio fato dessa investigação e as conseqüentes teorias sexuais infantis são de importância determinante para a formação do caráter da criança e do conteúdo da neurose futura. É absolutamente normal e inevitável que a criança faça dos pais o objeto da primeira escolha amorosa. Porém a libido não permanece fixa neste primeiro objeto: posteriormente o tomará apenas como modelo, passando dele para pessoas estranhas, na ocasião da escolha definitiva. Desprender dos pais a criança torna-se portanto uma obrigação inelutável, sob pena de graves ameaças para a função social do jovem. Durante o tempo em que a repressão promove a seleção entre os impulsos parciais de ordem sexual, e, mais tarde, quando a influência dos pais, principal fator da repressão, deve abrandar, cabem no trabalho educativo importantes deveres que atualmente, por certo, nem sempre são preenchidos de modo inteligente e livre de críticas. Senhoras e senhores. Não julguem que com esta dissertação acerca da vida sexual infantil e do desenvolvimento psicossexual da criança nos tenhamos afastado da psicanálise e da terapêutica das perturbações nervosas. Se quiserem, podem definir o tratamento psicanalítico como simples aperfeiçoamento educativo destinado a vencer os resíduos infantis. QUINTA LIÇÃO SENHORAS E SENHORES, - Com o descobrimento da sexualidade infantil e atribuindo aos componentes eróticos instintivos os sintomas das neuroses, chegamos a algumas fórmulas inesperadas sobre a natureza e tendência destas últimas. Vemos que os indivíduos adoecem quando, por obstáculos exteriores ou ausência de adaptação interna lhes falta na realidade a satisfação das necessidades sexuais. Observamos que então se refugiam na moléstia, para com o auxílio dela encontrar uma satisfação substitutiva. Reconhecemos que os sintomas mórbidos contêm certa parcela da atividade sexual do indivíduo ou sua vida sexual inteira. No distanciar da realidade reconhecemos também a tendência principal e ao mesmo tempo o dano capital do estado patológico. Conjecturamos que a resistência oposta pelos doentes à cura não seja simples, mas composta de vários elementos. Não somente o ego do doente se recusa a desfazer a repressão por meio da qual se esquivou de suas disposições originárias, como também pode o instinto sexual não renunciar à satisfação vicariante enquanto houver dúvida de que a realidade lhe ofereça algo melhor. psíquica, mas receia-se tocar nelas, para não aumentar os sofrimentos. Podemos aceitar esta analogia. Não devemos com efeito tocar em pontos doentes quando estamos certos de que com isso só provocamos dor e nada mais. Todos sabem, porém, que o cirurgião não deixa de examinar, palpando o foco da moléstia, quando tem em vista realizar uma operação que há de proporcionar a cura completa. Ninguém pensa já em incriminá-lo pelos inevitáveis incômodos do exame nem pelos fenômenos pós-operatórios, desde que a operação tenha bom êxito e que, mediante a agravação passageira do mal, o doente alcance a definitiva supressão do estado mórbido. Em relação à psicanálise, as condições são semelhantes; pode ela reivindicar os mesmos direitos que a cirurgia; a exasperação dos incômodos que impõe ao doente durante o tratamento é, uma vez observada a boa técnica, incomparavelmente menor que a infligida pelo cirurgião, e em geral nem deve ser tomada em consideração diante da gravidade da moléstia principal. A destruição do caráter civilizado pelos impulsos instintivos libertados da repressão é um desfecho temido mas absolutamente impossível. É que este temor não leva em conta o que a nossa experiência nos ensinou com toda segurança: que o poder mental e somático de um desejo, desde que se baldou a respectiva repressão, se manifesta com muito mais força quando inconsciente do que quando consciente; indo para a consciência, só se pode enfraquecer. O desejo inconsciente escapa a qualquer influência, é independente das tendências contrárias, ao passo que o consciente é atalhado por tudo quando, igualmente consciente, se lhe opuser. O tratamento psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da repressão fracassada, justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização. Que acontece geralmente com os desejos inconscientes libertados pela psicanálise, e quais os meios por cujo intermédio pretendemos torná-los inofensivos à vida do indivíduo? Desses meios há vários. O resultado mais freqüente é que os mesmos desejos, já durante o tratamento, são anulados pela ação mental, bem conduzida, dos melhores sentimentos contrários. A repressão é substituída pelo julgamento de condenação efetuado com recursos superiores. Isso é possível porque quase sempre temos de remover tão-somente conseqüências de estados evolutivos anteriores do ego. Como o indivíduo na época se achava ainda incompletamente organizado, não pôde senão reprimir o instinto inutilizável; mas na força e madureza de hoje, pode talvez dominar perfeitamente aquilo que lhe é hostil. Outro desfecho do tratamento psicanalítico é que os impulsos inconscientes, ora descobertos, passam a ter a utilização conveniente que deviam ter encontrado antes, se a evolução não tivesse sido perturbada. A extirpação radical dos desejos infantis não é absolutamente o fim ideal. Por causa das repressões, o neurótico perdeu muitas fontes de energia mental que lhe teriam sido de grande valor na formação do caráter e na luta pela vida. Conhecemos uma solução muito mais conveniente, a chamada `sublimação‘, pela qual a energia dos desejos infantis não se anula mas ao contrário permanece utilizável, substituindo-se o alvo de algumas tendências por outro mais elevado, quiçá não mais de ordem sexual. Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeito aquele, está novamente livre o caminho para a sublimação. Não devemos deixar de contemplar também o terceiro dos possíveis desenlaces do tratamento psicanalítico. Certa parte dos desejos libidinais reprimidos faz jus à satisfação direta e deve alcançá-la na vida. As exigências da sociedade tornam o viver dificílimo para a maioria das criaturas humanas, forçando-as com isso a se afastarem da realidade e dando origem às neuroses, sem que o excesso de coerção sexual traga maiores benefícios à coletividade. Não devemos ensoberbecer-nos tanto, a ponto de perder completamente de vista nossa natureza animal, nem esquecer tampouco que a felicidade individual não deve ser negada pela civilização. A plasticidade dos componentes sexuais, manifesta na capacidade de sublimarem-se, pode ser uma grande tentação a conquistarmos maiores frutos para a sociedade por intermédio da sublimação contínua e cada vez mais intensa. Mas assim como não contamos transformar em trabalho senão parte do calor empregado em nossas máquinas, de igual modo não devemos esforçar-nos em desviar a totalidade da energia do instinto sexual da sua finalidade própria. Nem o conseguiríamos. E se o cerceamento da sexualidade for exagerado, trará consigo todos os danos duma exploração abusiva. Não sei se da parte dos senhores considerarão como presunção minha a admoestação com que concluo. Atrevo-me apenas a representar indiretamente a convicção que tenho, narrando-lhes uma anedota já antiga, cuja moralidade os senhores mesmo apreciarão. A literatura alemã conhece um vilarejo chamado Schilda, de cujos habitantes se contam todas as espertezas possíveis. Dizem que possuíam eles um cavalo com cuja força e trabalho estavam satisfeitíssimos. Uma só coisa lamentavam: consumia aveia demais e esta era cara. Resolveram tirá-lo pouco a pouco desse mau costume, diminuindo a ração de alguns grãos diarimente, até acostumá-lo à abstinência completa. Durante certo tempo tudo correu magnificamente; o cavalo já estava comendo apenas um grãozinho e no dia seguinte devia finalmente trabalhar sem alimento algum. No outro dia amanheceu morto o pérfido animal; e os cidadãos de Schilda não sabiam explicar por que. Nós nos inclinaremos a crer que o cavalo morreu de fome e que sem certa ração de aveia não podemos esperar em geral trabalho de animal algum. Pelo convite e pela atenção com que me honraram, os meus agradecimentos. LEONARDO DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DA SUA INFÂNCIA (1910) NOTA DO EDITOR INGLÊS (JAMES STRACHEY) EINE KINDHEITSERINNERUNG DES LEONARDO DA VINCI (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1910 Leipzig e Viena: Deuticke. P. 71. (Schriften zur angewandten Seelenkunde, Heft 7) 1919 2ª ed. Mesmos editores, P. 76. 1923 2ª ed. Mesmos editores. P. 78. 1925 G.S., 9, 371-454. 1943 G.W., 8, 128-211. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: Leonardo da Vinci 1916 Nova Iorque: Moffat, Yard. P. 130. (Trad. A. A. Brill.) 1922 Londres: Kegan Paul. P. v + 130. (Mesmo tradutor, com prefácio de Ernest Jones.) 1932 Nova Iorque: Dodd Mead. P. 139. (Reedição da tradução acima.) A tradução atual inglesa, com o título modificado para `Leonardo da Vinci and a Memory of his Childhood’, é inteiramente nova, feita por Alan Tyson. O interesse de Freud por Leonardo datava de longe, conforme o prova uma frase sua, em carta endereçada a Fliess, em 9 de outubro de 1898 (Freud, 1950 a, Carta 98) na qual comentava que `Leonardo, que talvez fosse o mais famoso canhoto da história, jamais tivera um caso de amor’. Este interesse não foi tampouco um interesse passageiro, pois nas respostas de Freud a um `questionário’ sobre seus livros prediletos (1907d) vamos encontrar uma referência a um estudo de Merezhkovsky sobre Leonardo. Mas o verdadeiro estímulo para que escrevesse o presente trabalho parece ter surgido no outono de 1909, na figura de um de seus pacientes, o qual, conforme seu comentário em carta a Jung, em 17 de outubro, parecia ter a mesma constituição de Leonardo sem, no entanto, possuir o seu gênio. Dizia, ainda, que estava esperando receber da Itália um livro sobre a juventude de Leonardo. Este livro era a monografia, por Scognamiglio, mencionada em [1]. Após ler este e outros livros sobre Leonardo, Freud LEONARDO DA VINCI E UMA LEMBRANÇA DE SUA INFÂNCIA I QUANDO a pesquisa psiquiátrica, que geralmente se contenta em usar pessoas comuns como material de estudo, se aproxima de alguém que figura entre os expoentes da raça humana, não o faz pelos motivos que tão freqüentemente lhe atribuem os leigos. O seu objetivo não é `denegrir os brilhantes e arrastar na lama os sublimes’, Und das Ernabene in den Staub zu ziehn. (O mundo gosta de denegrir o brilhante e arrastar na lama o sublime.)De um poema de Schiller, `Das Mädchen von Orleans’, inserido como um prólogo extra na edição de 1801 de sua peça Die Jungfrau von Orleans. O poema foi considerado como sendo um ataque ao La Pucelle, de Voltaire.] e não lhe traz satisfação alguma encurtar a distância que separa a perfeição dos grandes da deficiência daqueles que geralmente constituem o objeto de seus estudos. Mas a psiquiatria não pode deixar de considerar como digno de ser compreendido tudo que possa vir a encontrar nesses modelos ilustres e acredita que não existe ninguém tão grande que venha a ser desonrado simplesmente por estar sujeito às leis que regem, igualmente, as atividades normais e as patológicas. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi admirado, até mesmo pelos seus contemporâneos, como um dos maiores homens da renascença italiana. No entanto, já nessa época começara a parecer um enigma, tal como nos parece hoje em dia. Era um gênio universal `cujos traços se podia apenas esboçar mas nunca definir’. Durante sua época, sua influência decisiva foi sobre a pintura, cabendo a nós reconhecer a grandeza do homem de ciências naturais (e engenheiro) que se combinava nele com o artista. Embora tivesse deixado obras-primas de pintura, enquanto suas descobertas científicas permaneciam inéditas e sem uso, o pesquisador que nele existia nunca libertou totalmente o artista durante todo o curso de seu desenvolvimento, limitando-o muitas vezes e talvez, mesmo, chegando a eliminá-lo. Nos últimos momentos de sua vida, segundo palavras que lhe atribui Vasari, acusou-se de haver ofendido Deus e os homens, não cumprindo o seu dever para com sua arte. E ainda que esta história de Vasari não passe de lenda, lenda esta que mesmo antes de sua morte começou a crescer em torno do Mestre misterioso, servirá sempre de testemunho valioso do que pensavam dele os homens de seu tempo. O que impediu que a personalidade de Leonardo fosse compreendida pelos seus contemporâneos? O motivo, certamente, não terá sido a versatilidade de seus talentos nem a extensão do seu saber, que lhe permitiu apresentar-se na corte do Duque de Milão, Ludovido Sforza, apelidado Il Moro, como um virtuoso numa espécie de alaúde de sua própria invenção, ou escrever a notável carta, ao mesmo duque, na qual se gabava de suas realizações como arquiteto e como engenheiro militar. Na época do renascimento a combinação de tão amplas e diversas habilidades em um mesmo indivíduo eram comuns, embora tenhamos de reconhecer que Leonardo foi um dos exemplos mais brilhantes. Tampouco pertencia ele à classe dos gênios fisicamente mal dotados pela natureza e que por isso mesmo desprezam as formas exteriores da vida e, numa atitude de penosa melancolia, fogem a qualquer contato com seus semelhantes. Ao contrário, era alto e bem proporcionado; suas feições eram belas e invulgar a sua força física; era encantador em suas maneiras e de fácil eloqüência, alegre e amável para com todos. Adorava o belo em tudo o que cercava; apreciava as roupagens suntuosas e valorizava todos os requintes da vida. Num trecho de seu tratado sobre a pintura, que bem revela sua tendência para as diversões, compara a pintura às artes irmãs e descreve os reveses que aguardam o escultor: `Pois seu rosto fica empoeirado pelo mármore, de modo que mais parece um padeiro; fica também todo salpicado de flocos de mármore que fazem com que pareça ter estado na neve - sua casa é cheia de poeira e de lascas de pedra. Quanto ao pintor, seu caso é bem diferente… pois o pintor senta-se em frente ao seu trabalho, cercado de todo o conforto. Veste-se bem e utiliza pincéis delicados e leves, que mergulha em cores lindas. Usa roupas que lhe agradam e sua casa é imaculada e repleta de belos quadros. Muitas vezes trabalha ao som de música ou, então, cercado de homens que lhe lêem trechos de obras lindas e variadas que pode ouvir prazerosamente sem o barulho do martelo e outros ruídos.’ Na verdade, é muito possível que a imagem de um Leonardo extremamente feliz e amante de todos os prazeres não seja verdadeira senão no primeiro período, e o mais longo também, da vida do artista. Mais tarde, quando a queda de Ludovico Moro fê-lo deixar Milão, a cidade que era o centro de suas atividades e onde tinha uma situação assegurada, forçando-o a uma vida instável e de poucos sucessos externos, até encontrar seu último refúgio na França, a centelha de seu gênio poderá ter-se esmaecido e alguma faceta estranha de sua natureza poderá ter vindo à tona. De mais a mais, a transferência de seu interesse pelas artes para sua dedicação à ciência, que se foi acentuando com o decorrer do tempo, deve ter influído para aumentar a distância que o separava de seus contemporâneos. Todos os seus esforços representavam, na opinião deles, o desperdício de um tempo que poderia ser usado para pintar encomendas e fazer fortuna (como fez, por exemplo, o seu condiscípulo Perugino). Pareciam- lhes mero diletantismo e até mesmo tornavam-no suspeito de estar a serviço da `magia negra’. Nós, hoje, podemos compreendê-lo melhor pois através de seus apontamentos sabemos quais eram as artes a que se dedicava. Em uma época em que se começava a substituir a autoridade da Igreja pela da antiguidade e em que não se haviam ainda acostumado com nenhuma forma de pesquisa que não fosse baseada em pressuposições, Leonardo - o precursor e rival de Bacon e de Copérnico, igualando-se a eles em valor - foi por isso, forçosamente, um solitário entre seus contemporâneos. Ao dissecar cadáveres de cavalos e de homens, ao construir máquinas voadoras e ao estudar a nutrição das plantas e suas reações e venenos, certamente distanciou-se enormemente dos comentadores de Aristóteles, aproximando-se muito mais dos alquimistas desprezados, em cujos laboratórios a pesquisa experimental encontrara algum refúgio, pelo menos durante aqueles tempos adversos. O efeito disso tudo sobre suas pinturas foi o de fazê-lo usar com menos entusiasmo o pincel, pintar cada vez menos, deixando a maioria do que começara inacabado, e não se preocupar com o destino final de suas obras. E foi disso que o acusaram seus contemporâneos. Para eles, sua atitude em face da sua arte foi sempre incompreensível. Posteriormente, muitos dos admiradores de Leonardo tentaram defendê-lo dessa acusação de inconstância. Em sua defesa eles alegavam ser esta, justamente, uma característica dos grandes artistas; até mesmo Miguel Angelo, que era inteiramente dedicado a seu trabalho, deixou muitas de suas obras inacabadas e disso teve tanta culpa quanto Leonardo, em circunstâncias iguais. Alegam, além do mais, que, com referência a alguns quadros de Leonardo, não se trata somente de estarem inacabados, mas sim de os ter ele dado por findos. O que ao leigo pode parecer uma obra-prima nunca chega a representar para o criador uma obra de arte completa mas, apenas, a concretização insatisfatória daquilo que tencionava realizar; ele possui uma tênue visão da perfeição, que tenta sempre reproduzir sem nunca conseguir satisfazer-se. Sobretudo, alegam eles, é um direito do artista ser responsável pelo destino final de suas obras. Por mais válidas que possam ser essas desculpas, elas não conseguem livrar Leonardo de toda a responsabilidade. A mesma luta penosa frente a um trabalho, a fuga final e a indiferença quanto ao seu destino futuro, tudo isso pode acontecer a muitos outros artistas, mas não há dúvida de que esse comportamento ocorre em Leonardo em grau muito mais elevado. Solmi (1910, 12) menciona a observação de um de seus alunos: `Pareva che ad ogni ora tremasse, quando si poneva a dipingere, e però non diede mai fine ad alcuna cosa cominciata, considerando la grandezza dell’arte, tal que che egli scorgeva errori in quelle cose, che ad altri parevano miracoli.’ Seus últimos quadros, continua ele, a Leda, a Madonna di Sant’Onofrio, Baco e São João Batista moço, ficaram inacabados `come quasi intervenne di tutte le cose sue…’ Lomazzo, que fez uma cópia da Última Ceia, comenta em um soneto a notória incapacidade de Leonardo para ultimar seus trabalhos: Protogen che il pennel di sue pitture Non levava, agguaglio in Vinci Divo Di cui opra non è finita pure. A vagareza do trabalho de Leonardo era proverbial. Depois de meticulosos estudos preparatórios, levou três anos inteiros para pintar a Última Ceia para o Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão. Um de seus contemporâneos, o contista Matteo Bandelli, que na época era um jovem frade naquele convento, conta que Leonardo costumava muitas vezes subir nos andaimes pela manhã cedo e lá permanecer até o cair da tarde sem nem uma vez descansar o pincel e nem se lembrar de comer ou de beber. Depois, passava dias sem tornar a tocar no trabalho. Muitas vezes passava horas diante de sua obra, somente analisando-a mentalmente. Algumas vezes vinha para o convento diretamente do pátio do castelo de Milão, onde estava É duvidoso que Leonardo tenha jamais abraçado uma mulher com paixão; ou tenha tido alguma amizade intelectual íntima com uma mulher, como a de Miguel Ângelo com Vittoria Colonna. Quando ainda aprendiz e vivendo em casa de seu mestre Verrocchio, foi-lhe feita e a alguns outros jovens uma acusação de práticas homossexuais proibidas, que terminou em absolvição. Parece que a origem desta acusação foi o fato de ter usado um menino de má fama como modelo. Quando veio a tornar-se mestre, cercou-se de belos rapazes e meninos que tomava como alunos. O último desses alunos, Francesco Melzi, acompanhou-o à França, ficou a seu lado até a sua morte e foi por ele nomeado seu herdeiro. Sem compartilhar a certeza de seus biógrafos modernos, que naturalmente rejeitam a possibilidade da existência de relações sexuais entre ele e seus alunos, considerando-a um insulto grosseiro ao grande homem, achamos muito mais provável que as relações afetuosas de Leonardo para com os jovens que - como era costume entre aprendizes da época - compartilhavam sua vida, não chegassem até relação sexuais. E ainda mais, uma grande atividade sexual não condizia muito com ele. Existe uma única maneira de compreender a peculiaridade dessa vida sexual e emocional com relação à dupla natureza de Leonardo como artista e como pesquisador científico. Entre os seus biógrafos, muitas vezes alheios a qualquer enfoque psicológico, existe, a meu entender, apenas um, Edmondo Solmi, que se aproximou da solução do problema; mas um escritor que escolheu Leonardo como o personagem de uma longa novela histórica, Dmitry Sergeyevich Merezhkovsky, interpretou do mesmo modo esse homem incomum ao retratá-lo e exprimiu claramente o seu ponto de vista, não com palavras simples porém (segundo o estilo dos autores imaginativos) em termos plásticos. A opinião de Solmi sobre Leonardo é a seguinte (1908, 46): `O seu insaciável desejo de tudo compreender em seu redor e de pesquisar com atitude de fria superioridade o segredo mais profundo de toda a perfeição condenou sua obra a permanecer para sempre inacabada.’ Em um ensaio publicado na Conferenze Fiorentine faz-se menção à seguinte frase de Leonardo, que bem representa sua confissão de fé e fornece a chave para a compreensão de sua natureza: `Nessuma cosa si può amare nè odiare, se prima non si ha congnition di quella.’ Isto é: Não se tem o direito de amar ou odiar qualquer coisa da qual não se tenha conhecimento profundo. Leonardo se repete em um trecho do tratado sobre pintura, onde parece estar-se defendendo contra a acusação de ateísmo: `Mas esses críticos desagradáveis melhor fariam se ficassem quietos. Pois é esse o caminho que conduz ao conhecimento do Criador de tantas coisas maravilhosas, e o melhor processo para se vir a amar um Inventor tão grandioso. Pois, na verdade, o grande amor surge do conhecimento profundo do objeto amado e, se este for pouco conhecido, o seu amor por ele será pouco ou nenhum…’ O valor nesses comentários de Leonardo não está em olhá-los como reveladores de fatos psicológicos importantes pois o que eles afirmam é, obviamente, falso e Leonardo era tão sabedor disto quanto nós. Não é verdade que os seres humanos protelam o amor ou o ódio até adquirirem conhecimento mais profundo e maior familiaridade com o objeto desses sentimentos. Ao contrário, amam impulsivamente, movidos por emoções que nada têm a ver com conhecimento e cuja ação, muito ao contrário, poderá ser amortecida pela reflexão e pela observação. Leonardo, portanto, poderia, no máximo, querer dizer que o amor praticado por seres humanos não seria tão desejável e irrepreensível: dever-se-ia amar controlando o sentimento, sujeitando-o à reflexão e somente permitir sua existência quando capaz de resistir à prova do pensamento. Percebemos, assim, que procurou mostrar-nos como ele próprio procedia e demonstrar que todos deveriam tratar o amor e o ódio como ele o fazia. No seu caso parece que foi isso o que realmente sucedeu. Seus afetos eram controlados e submetidos ao instinto da pesquisa; ele não amava nem odiava, porém se perguntava acerca da origem e do significado daquilo que deveria amar ou odiar. Parecia, assim, forçosamente, indiferente ao bem e ao mal, ao belo e ao horrível. Durante esse trabalho de pesquisa, o amor e o ódio se despiam de suas formas positivas ou negativas e ambos se transformavam apenas em objeto de interesse intelectual. Na verdade, Leonardo não era insensível à paixão; não carecia da centelha sagrada que é direta ou indiretamente a força motora - il primo motore - de qualquer atividade humana. Apenas convertera sua paixão em sede de conhecimento; entregava-se, então, à investigação com a persistência, constância e penetração que derivam da paixão e, ao atingir ao auge de seu trabalho intelectual, isto é, a aquisição do conhecimento, permitia que o afeto há muito reprimido viesse à tona e transbordasse livremente, como se deixa correr a água represada de um rio, após ter sido utilizada. Quando, ao chegar ao clímax de uma descoberta, podia vislumbrar uma vasta porção de todo o conjunto, ele se deixava dominar pela emoção e, em linguagem exaltada, louvava o esplendor da parte da natureza que estudara ou, em sentido religioso, a grandeza do seu Criador. Esse processo de transformação em Leonardo foi bem compreendido por Solmi. Depois de citar uma passagem desse gênero em que Leonardo exalta a sublime lei da natureza (`O mirabile necessità…’), escreveu (1910, 11): `Tale trasfigurazione della scienza della natura in emozione, quasi direi, religiosa, è uno dei tratti caratteristici de’ manoscritti viancini, e si trova cento e cento volte expressa…’ Devido à sua sede insaciável e incansável de conhecimento, Leonardo tem sido chamado o Fausto italiano. Embora longe de discutir a possível transformação do instinto de investigação em prazer de viver - transformação que devemos considerar como fundamental na tragédia de Fausto - cremos poder arriscar a afirmativa de que a evolução de Leonardo se aproxima do pensamento de Spinoza. A transformação da força psíquica instintiva em várias formas de atividade, da mesma maneira que a transformação das forças físicas, não poderia ser realizada sem prejuízo. O exemplo de Leonardo mostra-nos quantas outras coisas precisam ser consideradas com relação a estes processos. O adiamento do amor até o seu pleno conhecimento constitui um processo artificial que se transforma em uma substituição. De um homem que consegue chegar até o conhecimento não se poderá dizer que ama ou odeia; situa-se além do amor e do ódio. Terá pesquisado em vez de amar. E será, talvez, este o motivo pelo qual a vida de Leonardo foi tão mais pobre de amor do que a de outros grandes homens, e de outros artistas. As tormentosas paixões de uma natureza, que inspiram e que esgotam, paixões que foram, para outros, fonte das experiências mais plenas, parecem não o haver atingido. Existem ainda outras conseqüências. A investigação substituiu a ação e também a criação. Um homem que começou a vislumbrar a grandeza do universo com todas as suas complexidades e suas leis, esquece facilmente sua própria insignificância. Perdido de admiração e cheio de verdadeira humildade, facilmente esquece ser, ele próprio, uma parte dessas forças ativas e que, de acordo com a medida de sua própria força, terá um caminho aberto diante de si para tentar alterar uma pequena parcela do curso preestabelecido para o mundo - um mundo em que as menores coisas são tão importantes e extraordinárias quanto o são as coisas grandiosas. As pesquisas de Leonardo visavam, originalmente, como acredita Solmi, o interesse de sua arte; dedicou seus esforços a estudar as particularidades e as leis da luz, das cores, das sombras e da perspectiva, a fim de tornar-se exímio em suas imitações da natureza e transmitir aos outros os seus conhecimentos. É provável que nesse tempo ele já superestimava o valor, para o artista, desses ramos do conhecimento. Sempre seguindo o rumo determinado pelas solicitações de sua pintura, foi levado a estudar os modelos do pintor, animais e plantas, e as proporções do corpo humano; e, depois do conhecimento de sua forma exterior, continuou ainda a estudar-lhe a estrutura interna e as suas funções vitais, coisa que, na verdade, influi também na aparência externa e merece ser considerada nos trabalhos artísticos. E, finalmente, o instinto, que se tornara dominante, carregou-o mais longe ainda fazendo-o ultrapassar as limitações da demanda de sua arte e descobrir as leis gerais da mecânica e adivinhar a história da estratificação e fossilização no vale do Arno, até chegar ao ponto de poder escrever em seu livro, com letras enormes, a sua descoberta: Il sole non si move. Suas investigações estenderam-se praticamente a quase todos os ramos da ciência natural e em cada um ele foi um descobridor ou, pelo menos, um profeta e pioneiro. No entanto, sua ânsia de conhecimento foi Este é o tipo caracterizado por uma inibição neurótica. Bem sabemos que o enfraquecimento intelectual adquirido nesse processo representa um fator efetivo na irrupção de uma enfermidade neurótica. Num segundo tipo, o desenvolvimento intelectual é suficientemente forte para resistir à repressão sexual que o domina. Algum tempo após o término das pesquisas sexuais infantis, a inteligência, tendo se tornado mais forte, recorda a antiga associação e ajuda a evitar a repressão sexual, e as suprimidas atividades sexuais de pesquisa emergem do inconsciente sob a forma de uma preocupação pesquisadora compulsiva, naturalmente sob uma forma distorcida e não-livre, mas suficientemente forte para sexualizar o próprio pensamento e colorir as operações intelectuais, com o prazer e a ansiedade característicos dos processos sexuais. Neste caso, a pesquisa torna-se uma atividade sexual, muitas vezes a única, e o sentimento que advém da intelectualização e explicação das coisas substitui a satisfação sexual; mas o caráter interminável das pesquisas infantis é também repetido no fato de que tal preocupação nunca termina e que o sentimento intelectual, tão desejado, de alcançar uma solução, torna-se cada vez mais distante. Devido a uma predisposição especial, o terceiro tipo, que é o mais raro e mais perfeito, escapa tanto à inibição do pensamento quanto ao pensamento neurótico compulsivo. É verdade que nele também existe a repressão sexual, mas ela não consegue relegar para o inconsciente nenhum componente instintivo do desejo sexual. Em vez disso, a libido escapa ao destino da repressão sendo sublimada desde o começo em curiosidade e ligando-se ao poderoso instinto de pesquisa como forma de se fortalecer. Também nesse caso a pesquisa torna-se, até certo ponto, compulsiva e funciona como substitutivo para a atividade sexual; mas, devido à total diferença nos processos psicológicos subjacentes (sublimação ao invés de um retorno do inconsciente), a qualidade neurótica está ausente; não há ligação com os complexos originais da pesquisa sexual infantil e o instinto pode agir livremente a serviço do interesse intelectual. A repressão sexual, que tornou o instinto tão forte ao acrescentar-lhe libido sublimada, ainda influencia o instinto, no sentido de fazê-lo evitar qualquer preocupação com temas sexuais. Se refletirmos acerca da ocorrência, em Leonardo, desse poderoso instinto de pesquisa e a atrofia de sua vida sexual (restrita ao que poderíamos chamar de homossexualidade ideal [sublimada]), sentir-nos-emos inclinados a proclamá-lo um modelo ideal do nosso terceiro tipo. A essência e o segredo de sua natureza parecem derivar do fato que, depois de sua curiosidade ter sido ativada, na infância, a serviço de interesses sexuais, conseguiu sublimar a maior parte da sua libido em sua ânsia pela pesquisa. Mas, por certo, não será fácil provar a verdade dessa hipótese. Para fazê-lo, necessitaríamos conhecer alguns pormenores sobre seu desenvolvimento mental durante os primeiros anos de sua infância, e parece absurdo desejar dados dessa natureza quando os pormenores sobre sua vida são tão escassos e tão inseguros, e ainda mais por tratarem de informações sobre circunstâncias que ainda hoje escapam à atenção dos observadores, mesmo em se tratando de pessoas de nossa geração. Sobre a juventude de Leonardo sabemos muito pouco. Nasceu em 1452 na cidadezinha de Vinci, entre Florença e Empoli; era filho ilegítimo, o que naqueles dias certamente não constituía estima social muito grave; seu pai era Ser Piero da Vinci, um tabelião que descendia de uma família de tabeliães e de fazendeiros que tiraram seu sobrenome da localidade de Vinci; sua mãe foi uma tal Caterina, provavelmente uma camponesa, que mais tarde se casou com outro compatrício de Vinci. Esta mãe não volta a aparecer na história da vida de Leonardo e somente Merezhkovsky, o escritor, acreditou ter encontrado vestígios seus. O único fragmento de informação precisa sobre a infância de Leonardo aparece num documento oficial do ano de 1457; trata-se de um registro de terras, em Florença, para taxação de impostos e que, entre os componentes da família Vinci, menciona Leonardo, de cinco anos de idade e filho ilegítimo de Ser Piero. Do casamento de Ser Piero com uma tal Donna Albiera não houve filhos, o que tornou possível educar o pequeno Leonardo na casa de seu pai. Permaneceu nesta casa até entrar para o estúdio de Andrea del Verrocchio, como aprendiz, não sabemos com que idade. No ano de 1472, o nome de Leonardo já se encontrava na lista dos membros da `Compagnia dei Pittori‘. E isso é tudo. II Ao que eu saiba, existe apenas um trecho nos apontamentos científicos de Leonardo em que ele insere um fragmento de informação sobre sua infância. Numa passagem acerca do vôo dos abutres ele se interrompe subitamente para descrever uma recordação de sua tenra infância, que lhe veio à memória: `Parece que já era meu destino preocupar-me tão profundamente com abutres; pois guardo como uma das minhas primeiras recordações que, estando em meu berço, um abutre desceu sobre mim, abriu-me a boca com sua cauda e com ela fustigou-me repetidas vezes os lábios.’ O que encontramos aqui é, portanto, uma recordação de infância, e sem dúvida de natureza bem estranha. Não só estranha pelo que conta como pela idade a que se refere. Que uma pessoa possa lembrar-se de alguma coisa da época de sua amamentação talvez não seja impossível, porém essa recordação não poderá, certamente, ser considerada real. No entanto, o que a memória de Leonardo afirma - que um abutre abriu a boca da criança com sua cauda - parece tão pouco provável e tão fabuloso, que uma outra hipótese seria talvez mais cabível e poria um fim às duas dificuldades antes mencionadas. Nessa outra versão, a cena do abutre não seria uma recordação de Leonardo, porém uma fantasia que ele criou mais tarde transpondo-a para sua infância. É deste modo que muitas vezes se originam as lembranças da infância. Muito diferentes das lembranças conscientes da idade adulta, elas não se fixam no momento da experiência para mais tarde serem repetidas; somente surgem muito mais tarde, quando a infância já acabou; nesse processo, sofrem alterações e falsificações de acordo com os interesses de tendências ulteriores, de maneira que, de um modo geral, não poderão ser claramente diferençadas de fantasias. Talvez se possa melhor explica-lhes a natureza comparando-as com o começo da crônica histórica entre os povos da antiguidade. Enquanto as nações eram pequenas e fracas, não cuidavam de escrever a sua história. Os homens lavravam suas terras, lutavam com seus vizinhos defendendo sua sobrevivência e procuravam conquistar mais território e riquezas. Foi uma época de heróis e não de historiadores. Seguiu-se outra época - a da reflexão; os homens sentiram-se ricos e poderosos e agora sentiam uma necessidade de saber de onde tinham vindo e como haviam evoluído. Os relatos históricos, que começaram por anotar os sucesso do presente, voltam-se então para o passado recolhendo lendas e tradições, interpretando os vestígios da antiguidade que subsistiam ainda em costumes e usos, e dessa maneira criou-se uma história do passado. Era inevitável que essa história primitiva fosse a expressão das crenças e desejos do presente, e não a imagem verdadeira do passado; muitas coisas já haviam sido esquecidas enquanto outras haviam sido destorcidas e alguns remanescentes do passado eram interpretados erradamente, de modo a corresponderem às idéias contemporâneas. Além do mais, o motivo que levava as pessoas a escreverem história não era uma curiosidade objetiva mas sim o desejo de influenciar seus contemporâneos, de animá-los e inspirá-los, ou mostrar- lhes um exemplo onde mirar-se. A memória consciente do homem com relação aos acontecimentos do seu período de madureza pode bem ser comparada ao tipo primitivo de relatos da história [uma crônica dos acontecimentos da época]; enquanto as lembranças que ele tem de sua infância correspondem, quanto às suas origens e credibilidade, à história das origens de uma nação compilada mais tarde e sob influências tendenciosas. Portanto, se a história de Leonardo a respeito do abutre que o visitou no berço houver sido apenas uma fantasia de uma época posterior, poderíamos concluir não valer a pena dedicar-lhe tanto tempo. Poderíamos satisfazer-nos em explicá-la a partir da tendência, que ele próprio não esconde, de considerar a sua preocupação com o vôo dos pássaros como sendo uma fatalidade de seu destino. No entanto, menosprezando essa história cometeríamos uma injustiça tão grande como faríamos se desprezássemos o conjunto de lendas, tradições e interpretações encontradas na história primitiva de uma nação. A despeito de todas as distorções e mal-entendidos elas ainda representam a realidade do passado: representam aquilo que um povo constrói com a experiência de seus tempos primitivos e sob a influência de motivos que, poderosos em épocas passadas, ainda se fazem sentir na atualidade; e, se fosse possível, através do conhecimento de todas as forças atuantes, desfazer essas distorções, não haveria dificuldade em desvendar a verdade histórica que se esconde atrás do acervo lendário. Isto se aplica também às lembranças da infância ou às fantasias do indivíduo. O que alguém crê lembrar da infância não pode ser considerado com indiferença; como regra geral, os restos de recordações - que ele próprio não compreende - encobrem valiosos testemunhos dos traços eram de autores bastante conhecidos, tais como Estrabão, Plutarco e Amiano Marcelino; ao passo que outros são de autores pouco conhecidos e duvidosos quanto às suas origens e datas de composição, tal como a Hieroglyphica de Horapollo Nilous e o livro da sabedoria sacerdotal oriental, que chegou até nós sob o nome do deus Hermes Trismegistos. Por essas fontes ficamos sabendo que o abutre era considerado um símbolo da maternidade, pois acreditavam que somente havia abutres do sexo feminino; não havia, pensavam eles, machos nessa espécie. Uma contraparte dessa limitação a um único sexo existia também na história natural da antiguidade: neste caso, referia-se ao escaravelho, que os egípcios adoravam como divino e do qual julgavam existir somente machos. Portanto, como poderiam os abutres ser fertilizados se não existiam senão fêmeas? Isto se encontra claramente explicado num trecho de Horapollo. Em certa época essas aves se detêm em meio ao vôo, abrem a sua vagina e são fecundados pelo vento. Chegamos agora, inesperadamente, a um ponto em que podemos considerar assaz provável aquilo que pouco antes tínhamos de recusar como absurdo. É bem possível que Leonardo conhecesse a fábula científica responsável por ser a figura do abutre usada pelos egípcios para representar a idéia de mãe. Ele lia muito e o seu interesse estendia-se a todos os ramos da literatura e do saber. No Codex Atlanticus encontramos um catálogo de todos os livros que possuía em determinada data e, além disso, conhecemos muitas anotações suas em livros emprestados por amigos; e, se considerarmos o extrato de seus apontamentos feitos por Richter [1883], veremos que a extensão de suas leituras dificilmente será superestimada. Obras antigas sobre história natural figuram em grande número ao lado de livros contemporâneos; e, já naquela época, todos eles tinham sido impressos. Na verdade, Milão era a cidade italiana líder na nova arte de imprimir. Mais adiante chegamos a uma fone de informação que poderá transformar em certeza a hipótese de ter Leonardo conhecimento da lenda do abutre. O culto editor e comentador de Horapollo escreveu a seguinte nota no texto já mencionado acima [Leemans, 1835, 172]: `Caeterum hanc fabulam de vulturibus cupide amplexi sunt Patres Ecclesiastici, ut ita argumento ex rerum natura petito refutarent eos, qui Virginis partum negabant; itaque apud omnes fere hujus rei mentio occurrit.’ Assim, portanto, a fábula sobre o sexo único dos abutres e sobre seu modo de fecundação estava longe de ser apenas uma anedota, como o caso análogo do escaravelho; tinha sido adotada pelos Padres da Igreja a fim de ser usada como um exemplo tirano da história natural e servir de prova para os que pusessem em dúvida a história sagrada. Se os abutres, segundo os melhores testemunhos da antiguidade, dependiam do vento para serem fertilizados, por que não teria, alguma vez, acontecido a mesma coisa com uma mulher? Já que a fábula do abutre podia ser usada para este fim, `quase todos’ os Padres da Igreja passaram a narrá-la e, portanto, será quase impossível duvidar que Leonardo também a conhecesse, considerando-se o fato de a sua divulgação ter sido feita por meio de tão amplo patrocínio. Podemos, assim, reconstituir a origem da fantasia de Leonardo com o abutre. Ele provavelmente teria lido em algum compêndio de história natural ou num livro de algum Padre a afirmação de que todos os abutres eram fêmeas e podiam reproduzir-se sem ajuda de qualquer macho; nessa altura ocorreu-lhe uma lembrança que se transformou na fantasia que estamos analisando mas que, na verdade, significava que ele também havia sido uma tal cria de abutre - tinha mãe mas não tinha pai. E essa lembrança se associava - na única maneira que impressões de idade tão distante se podem manifestar - com a reminiscência que podia subsistir do prazer que teria sentido sugando o seio de sua mãe. A insinuação feita pelos Padres da Igreja relativamente à Virgem Sagrada e seu filho - idéia essa cara a todos os artistas - deve ter influído para valorizar sua fantasia e torná-la ainda mais importante. Deste modo podia identificar-se, ele próprio, com o Menino Jesus, o salvador e consolador de todos, e não de uma única mulher. O nosso objetivo ao analisar uma fantasia da infância é o de separar o elemento mnênico real que ela contém dos motivos posteriores que o modificam e distorcem. No caso de Leonardo, acreditamos conhecer agora o significado real da fantasia: a substituição de sua mãe pelo abutre indica que a criança tinha conhecimento da ausência do pai e se sentia solitário junto à sua mãe. O nascimento ilegítimo de Leonardo concorda com a sua fantasia sobre o abutre; somente debaixo desse aspecto poderia comparar-se a um filhote de abutre. Depois disso, o que de verdadeiro sabemos de sua infância é que, aos cinco anos, ele tinha sido recebido já em casa de seu pai. Não temos, no entanto, a menor indicação de quando isto aconteceu - se foi poucos meses após seu nascimento ou poucas semanas antes de ser feito o levantamento para o registro territorial [ver em [1]]. É nesse ponto que a interpretação da fantasia do abutre interfere: ela parece querer contar-nos que Leonardo passou os primeiros e decisivos anos de sua vida, não ao lado do pai ou da madrasta, mas sim com a sua verdadeira mãe, pobre e abandonada, e assim teve tempo de sentir a ausência de seu pai. Embora ousada, esta conclusão parece ser por demais insignificante para ser apresentada como resultado de nossos estudos psicanalíticos, porém a sua importância aumentará à medida que continuarmos a nossa investigação. A sua veracidade é confirmada quando consideramos as circunstâncias que de fato rodearam a infância de Leonardo. No mesmo ano em que Leonardo nasceu, segundo as fontes oficiais, seu pai, Ser Piero da Vinci, casou-se com Donna Albiera, senhora de boa origem. Foi devido à esterilidade desse casamento que o menino foi recebido em casa de seu pai (ou melhor, em casa de seu avô) - coisa que havia acontecido quando ele se encontrava pelos cinco anos, segundo atesta o documento. Ora, não é comum logo no princípio de um casamento trazer um filho ilegítimo para ser cuidado pela jovem esposa, que ainda espera ser afortunada com o nascimento de seus próprios filhos. Muitos anos de frustração terão certamente decorrido antes da decisão de adoção do filho ilegítimo - que provavelmente já se havia tornado um garoto interessante - para compensar a ausência dos filhos legítimos desejados. A interpretação da fantasia do abutre tornar-se-ia mais fácil se houvessem decorrido uns três anos da vida de Leonardo, talvez mesmo cinco, antes que ele pudesse trocar a figura solitária de sua mãe por uma parelha parental. Já era tarde, no entanto. Nos primeiros três ou quatro anos da vida certas impressões tornam-se fixadas e as formas de reação para com o mundo exterior ficam estabelecidas, e nunca mais perderão a sua importância por meio de outras experiências posteriores. Se é verdade que as lembranças ininteligíveis da infância de uma pessoa, as fantasias que delas resultam, invariavelmente gravam os elementos mais importantes do desenvolvimento mental, segue-se, então, que o fato confirmado pela fantasia do abutre, isto é, que Leonardo passou os primeiros anos de sua vida sozinho com sua mãe, terá exercido influência decisiva na formação de sua vida interior. Uma conseqüência inevitável dessa situação foi que a criança - que em sua tenra infância enfrentou um problema a mais do que as outras crianças - começou a pensar nesse enigma com uma intensidade toda especial, e, assim, numa tenra idade tornou-se um pesquisador atormentado pela grande pergunta - saber de onde vêm os bebês e o que tem a ver o pai com sua origem. Foi uma vaga suspeita de que suas pesquisas e a história de sua infância estivessem assim ligadas que o fez mais tarde, declarar que tinha sido destinado, desde o começo de sua vida, a investigar o problema do vôo das aves, já que havia sido visitado por um abutre, quando em seu berço. Mais tarde, não será difícil mostrar que sua curiosidade acerca do vôo das aves deriva das pesquisas sexuais da sua infância. III Na fantasia infantil de Leonardo tomamos o elemento abutre como representante do conteúdo real de sua lembrança, ao passo que o contexto em que o próprio Leonardo coloca sua fantasia esclarece muito a importância que teve esse conteúdo para sua vida posterior. Continuando com o nosso trabalho de interpretação, chegamos agora ao estranho problema de saber por que motivo esse conteúdo foi transformado em uma situação homossexual. A mãe que amamenta a criança, isto é, em cujo seio a criança mama, foi transformada num abutre que põe a sua cauda dentro da boca da criança. Já tivemos ocasião de mostrar [ver em [1]] que, de acordo com as freqüentes substituições de que se serve a linguagem, a `cauda‘ do abutre deve, com toda certeza, significar o genital masculino, um pênis. Mas não podemos compreender como a atividade imaginativa pode ter atribuído justamente a esse pássaro, que representa a mãe, as características da masculinidade; diante desse absurdo ficamos sem saber como reduzir esta criação da fantasia de Leonardo a qualquer significado racional. No entanto não devemos perder a esperança, sobretudo quando nos lembramos do número enorme de sonhos, aparentemente absurdos, cujo significado já conseguimos desvendar. Existe alguma razão para que uma lembrança da infância nos ofereça maiores dificuldades do que um sonho? Recordando que não convém analisar uma característica peculiar isoladamente, apressamo-nos em trazer uma outra que nos parece ainda mais estranha. nos dias de hoje obedecem à lei de propagar a espécie; sentem-se, nesse processo, diminuídos em sua dignidade humana. Entre nós, somente a classe menos culta de nossa sociedade difere desse ponto de vista sobre a vida sexual. Para a classe mais alta e refinada, ela constitui uma coisa que se oculta, desde que é considerada culturalmente inferior, e quando se permitem dar- lhe vazão, fazem-no contra a sua consciência. Nos tempos primitivos da raça humana, a concepção era diferente. Dados trabalhosamente compilados por estudiosos da civilização apresentam testemunho irrefutável de que primitivamente os genitais eram o orgulho e a esperança dos seres humanos; eram adorados como deuses e transmitiam a essência divina de suas funções a todas as novas atividades humanas. Como resultado da sublimação de sua natureza básica criaram-se inúmeras divindades: e quando a conexão entre a religião oficial e a atividade sexual se tornou oculta da consciência geral, cultos secretos se dedicavam a conservá-la viva entre um certo número de iniciados. Durante o decurso do desenvolvimento cultural tanta coisa divina e sagrada foi, em última essência, extraída da sexualidade, que o remanescente, quase esgotado, foi desprezado. Mas, dado o caráter indelével de todos os processos mentais, não é de admirar que mesmo as formas mais primitivas do culto genital existissem até bem pouco tempo e que a linguagem, os costumes e as superstições da humanidade de hoje contenham ainda remanescentes de todas as fases deste processo de desenvolvimento. Notáveis analogias biológicas levam-nos a descobrir que o desenvolvimento mental do indivíduo repete, de modo abreviado, o processo do desenvolvimento humano; e as conclusões a que chegaram as pesquisas psicanalíticas acerca da mente infantil, referentes à importância concedida aos genitais na infância, não são tão inverossímeis. A hipótese infantil de que sua mãe tem um pênis será, portanto, a origem comum de que derivam tanto a mãe-deusa andrógina como a Mut egípcia, e a `coda‘ do abutre na fantasia infantil de Leonardo. Na verdade, ao classificar de hermafroditas, no sentido médico, essas representações de deuses, cometemos realmente uma impropriedade. Em nenhuma delas existe realmente a combinação dos genitais dos dois sexos - uma combinação que se observa em algumas malformações e que constituem uma deformação repulsiva; a única coisa que acontecia era que o órgão masculino era acrescentado as seios, que são a característica da mãe, como se dá também na representação infantil do corpo materno. Esta forma do corpo materno, criação reverenciada da fantasia primitiva, foi conservada fielmente pela mitologia. Podemos apresentar agora a seguinte interpretação da ênfase dada à cauda do abutre na fantasia de Leonardo: `Isso foi numa época em que a minha curiosidade afetuosa era toda dirigida à minha mãe, e que eu pensava ter ela um órgão genital igual ao meu.’ Constitui mais uma evidência das precoces pesquisas sexuais de Leonardo que, em nossa opinião, tiveram influência decisiva sobre toda a sua vida futura. Neste ponto, um pouco de reflexão mostrará que não nos satisfaz ainda o modo pelo qual foi explicada a cauda do abutre na fantasia infantil de Leonardo. Parece haver nela alguma coisa mais que não conseguimos ainda compreender. A mais notável de todas elas foi ter sido transformado o ato de mamar no seio materno em ser amamentado, isto é, em passividade, portanto, numa situação cuja natureza é indubitavelmente homossexual. Quando nos lembramos da probabilidade histórica de Leonardo ter-se comportado em sua vida como uma pessoa emocionalmente homossexual, ocorre-nos perguntar se esta fantasia não indicaria a existência de uma relação causal entre as relações infantis de Leonardo com a mãe e sua posterior homossexualidade manifesta, ainda que ideal [sublimada]. Não nos atreveríamos a inferir qualquer conexão dessa natureza da reminiscência confusa de Leonardo se não soubéssemos, pelos estudos psicanalíticos de pacientes homossexuais, que tal ligação existe de fato e é, na verdade, condição intrínseca e necessária. Os homossexuais, que em nossos dias se têm defendido energicamente das restrições impostas por lei às suas atividades sexuais, gostam de ser apresentados, por intermédio de seus teóricos defensores, como pertencendo a uma espécie diferente, como um estágio sexual intermediário ou como um `terceiro sexo.’ Eles se declaram homens inatamente compelidos, por disposições orgânicas, a achar prazer com outros homens, o que não conseguem com mulheres. Por maior que seja a nossa vontade, por motivos humanitários, de acatar suas declarações, devemos analisar as suas teorias com reservas, pois foram feitas sem levar em conta a gênese psíquica da homossexualidade. A psicanálise oferece meios para preencher essa lacuna e para testar as afirmativas dos homossexuais. Embora só tenha conseguido colher dados de um número reduzido de pessoas, todas as investigações empreendidas até agora produziram o mesmo resultado surpreendente. Em todos os nossos casos de homossexuais masculinos, os indivíduos haviam tido uma ligação erótica muito intensa com uma mulher, geralmente sua mãe, durante o primeiro período de sua infância, esquecendo depois esse fato; essa ligação havia sido despertada ou encorajada por demasiada ternura por parte da própria mãe, e reforçada posteriormente pelo papel secundário desempenhado pelo pai durante sua infância. Sadger chama atenção para o fato de as mães dos seus pacientes homossexuais serem muitas vezes masculinizadas, mulheres com enérgicos traços de caráter e capazes de deslocar o pai do lugar que lhe corresponde. Observei ocasionalmente a mesma coisa, porém me impressionei mais com os casos em que o pai estava ausente desde o começo, ou abandonara a cena muito cedo, deixando o menino inteiramente sob a influência feminina. Na verdade, parece que a presença de um pai forte asseguraria, no filho, a escolha correta de objeto, ou seja, uma pessoa do sexo oposto. Depois desse estágio preliminar, estabelece-se uma transformação cujo mecanismo conhecemos mas cujas forças determinantes ainda não compreendemos. O amor da criança por sua mãe não pode mais continuar a se desenvolver conscientemente - ele sucumbe à repressão. O menino reprime seu amor pela mãe; coloca-se em seu lugar, identifica-se com ela, e toma a si próprio como um modelo a que devem assemelhar-se os novos objetos de seu amor. Desse modo ele transformou-se num homossexual. O que de fato aconteceu foi um retorno ao auto- erotismo, pois os meninos que ele agora ama à medida que cresce, são, apenas, figuras substitutivas e lembranças de si próprio durante sua infância - meninos que ele ama da maneira que sua mãe o amava quando era ele uma criança. Encontram seus objetos de amor segundo o modelo do narcisismo, pois Narciso, segundo a lenda grega, era um jovem que preferia sua própria imagem a qualquer outra, e foi assim transformado na bela flor do mesmo nome. Considerações psicológicas mais profundas justificam a afirmativa de que um homem que assim se torna homossexual, permanece inconscientemente fixado à imagem mnêmica de sua mãe. Reprimindo seu amor à sua mãe, conserva-o em seu inconsciente e daí por diante permanece-lhe fiel. Quando parece perseguir outros rapazes e tornar-se seu amante, na realidade está fugindo das outras mulheres que o possam levar à infidelidade. Em casos individuais, a observação direta tem-nos permitido demonstrar que o homem que dá a impressão de ser sensível somente aos encantos de outros homens sente-se, na verdade, atraído pelas mulheres, como qualquer homem normal; mas em cada ocasião procura transferir imediatamente a excitação provocada pela mulher para um objeto masculino e, desse modo, repete incessantemente o mecanismo pelo qual adquiriu sua homossexualidade. Estamos longe de querer exagerar a importância dessas explicações sobre a gênese psíquica da homossexualidade. É óbvio que elas discordam completamente das teorias adotadas pelos defensores dos homossexuais, mas sabemos também que não são bastante claras para chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema. Aquilo que, por motivos práticos, é geralmente chamado de homossexualidade poderá ser o resultante de uma variedade enorme de processos inibitórios psicossexuais; o processo particular que destacamos é, talvez, apenas um entre muitos outros e talvez corresponda a um único tipo de `homossexualidade’. Devemos também admitir que o número de casos de homossexualismo deste tipo, em que podemos reconhecer as causas determinantes assinaladas por nós, é bem maior do que aqueles em que ele de fato se concretiza. Portanto, nós também não podemos negar a influência exercida por fatores constitucionais desconhecidos, aos quais geralmente se atribui toda a homossexualidade. Não teríamos tido motivo algum para entrar na gênese psíquica da forma de homossexualidade que estudamos se não houvesse um forte pressentimento de que Leonardo, cuja fantasia sobre o abutre foi o nosso ponto de partida, fosse, na verdade, um homossexual exatamente desse tipo. Conhecem-se poucos detalhes sobre o comportamento sexual do grande artista e cientista, mas devemos crer na possibilidade de as afirmativas de seus contemporâneos não terem sido totalmente erradas. À luz de tais afirmativas, portanto, ele nos parece ter sido um homem cujas necessidades e atividades sexuais eram excepcionalmente reduzidas, como se uma aspiração mais elevada o houvesse colocado acima das necessidades animais comuns da humanidade. Haverá sempre uma dúvida quando se trata de saber se ele terá alguma vez procurado a satisfação sexual direta e, se o fez, de que maneira; ou teria ele prescindido completamente de qualquer ato dessa natureza? Achamos justo, no entanto, procurar nele O escritor Merezhkovsky é o único que nos diz quem foi essa Caterina. Baseado em duas breves notas ele concluiu que a mãe de Leonardo a pobre camponesa de Vinci, foi a Milão em 1493 para visitar seu filho, que tinha, então, 41 anos; que lá adoeceu e Leonardo a internou num hospital, e quando morreu foi homenageada por ele com esse custoso enterro. Esta interpretação feita pelo escritos psicólogo não pode ser provada mas é tão verossímil e está tão de acordo com tudo o que conhecemos da atividade emocional de Leonardo, que não posso deixar de aceitá-la como correta. Ele conseguira sujeitar seus sentimentos ao domínio da pesquisa e reprimir a sua livre expressão; mas para si mesmo havia ocasiões em que o que suprimira forçava um meio de expressão. A morte da mãe, a quem tanto amara em certa época, foi uma delas. O que temos diante de nós nesses apontamentos sobre as despesas do enterro é a expressão, sob um disfarce quase irreconhecível, de sua tristeza pela morte da mãe. Ficamos pensando o porquê desse disfarce, e na verdade não o podemos entender se o consideramos um processo mental normal. Porém, processos semelhantes são por nós bem conhecidos nas condições anômalas da neurose, sobretudo na que é conhecida como `neurose obsessiva’. Nestes casos podemos observar como a expressão de sentimentos intensos, que se haviam tornado inconscientes graças à repressão, é deslocada para ações triviais e às vezes mesmo tolas. A expressão desses sentimentos reprimidos foi de tal modo enfraquecida pelas forças que a eles se opõem, que seríamos levados a considerá-los insignificantes; mas a compulsão imperativa que leva a executar esse ato trivial revela a verdadeira força dos impulsos - força que se origina no inconsciente e que a consciência gostaria de negar. Somente comparando esta situação com a que ocorre na neurose obsessiva é que poderemos explicar as anotações de Leonardo relativas às despesas com o enterro de sua mãe. Em seu inconsciente, ele ainda se achava ligado a ela por sentimentos de matiz erótico, como acontecera em sua infância. A oposição que se originou na subseqüente repressão deste amor infantil não lhe permitiu reverenciar sua mãe em seu diário, de modo diferente e melhor. Mas o que emergiu como um compromisso desse conflito neurótico tinha de ser externado; e foi assim que esta anotação veio a fazer parte de seu diário e chegou ao conhecimento da posteridade como coisa ininteligível. Não nos parece muito ousado aplicar às notas sobre as despesas com os alunos aquilo que descobrimos nas notas sobre o enterro. Seriam elas, portanto, outro testemunho dos esparsos remanescentes dos impulsos libidinais de Leonardo, que encontravam assim expressão, de maneira compulsiva e sob forma distorcida. Sob esse ponto de vista, sua mãe e seus alunos, que representavam a imagem de sua própria beleza infantil, haviam sido seus objetos sexuais - tanto quanto a repressão sexual que dominava sua natureza nos permite reconhecê-los - e a compulsão a anotar detalhadamente os seus gastos com eles revelava, desse modo estranho, seus conflitos rudimentares. Assim, pareceria que a vida erótica de Leonardo pertencia realmente ao tipo de homossexualidade cujo desenvolvimento psíquico conseguimos desvendar, e a emergência da situação homossexual em sua fantasia do abutre tornar-se-ia inteligível para nós; porque seu significado era exatamente o que já havíamos afirmado relativamente a esse tipo. Teríamos de traduzi-lo assim: `Foi através dessa relação erótica com minha mãe que me tornei um homossexual.’ IV Ainda não demos por terminada a análise da fantasia do abutre de Leonardo. Com palavras que tão claramente sugerem a descrição de um ato sexual (`e fustigou muitas vezes sua cauda contra meus lábios’), Leonardo acentua a intensidade das relações eróticas entre mãe e filho. Da ligação desta atividade de sua mãe (o abutre) com a dominância da zona bucal, não será difícil adivinhar que a fantasia contém uma outra lembrança. Podemos traduzi-la assim: `Minha mãe beijou-me apaixonada e repetidamente na boca.’ A fantasia surge da lembrança de ser alimentado no seio e de ser beijado pela mãe. A natureza generosa deu ao artista a capacidade de exprimir seus impulsos mais secretos, desconhecidos até por ele próprio, por meio dos trabalhos que cria; e estas obras impressionam enormemente outras pessoas estranhas ao artista e que desconhecem, elas também, a origem da emoção que sentem. Será que nada existe na obra de Leonardo para testemunhar aquilo que sua memória conservou como uma das impressões mais fortes de sua infância? Deveríamos certamente poder encontrar alguma coisa. Porém, se considerarmos a transformação enorme que terá de sofrer qualquer impressão vivida por um artista antes que ela venha a ser transformada em uma contribuição para uma obra de arte, teremos de observar um grande comedimento ao proclamarmos a nossa certeza quanto aos resultados a que chagamos em nossas pesquisas; sobretudo com referência a Leonardo. Qualquer pessoa que pense nas pinturas de Leonardo recordar-se-á de um sorriso notável, ao mesmo tempo fascinante e misterioso, que ele punha os lábios de seus modelos femininos. É um sorriso imutável, desenhado em lábios longos e curvos; tornou-se uma característica do seu estilo e o termo `Leonardiano’ tem sido usado para defini-lo. Este sorriso no rosto estranhamente lindo da florentina Mona Lisa del Giocondo tem causado, em todos que o contemplam, os efeitos mais fortes e controvertidos. [Ver Lâmina II.] Este sorriso requer uma interpretação e de fato tem merecido as mais variadas explicações sem que nenhuma ainda tenha conseguido satisfazer. `Voilà quatre siècles bientôt que Monna Lisa fait perdre la tête a tous ceux qui parlent d’elle, après l’avoir longtemps regardée.’ Muther (1909, 1, 314) escreveu: `O que sobretudo enfeitiça o espectador é a magia demoníaca desse sorriso. Centenas de poetas e escritores já escreveram sobre essa mulher que ora parece sorrir-nos tão sedutoramente, ora parece fitar o espaço, friamente e sem alma. E ninguém jamais decifrou o enigma de seu sorriso nem leu o significado de seus pensamentos. Tudo, até mesmo a paisagem, assemelha-se a um sonho e parece sofrer a influência opressiva da sensualidade.’ A idéia de que dois elementos diferentes estejam combinados no sorriso de Mona Lisa já foi suscitada por diversos de seus críticos. Muitos deles vêem na expressão da linda florentina a mais perfeita representação dos contrastes que dominam a vida erótica das mulheres; o contraste entre a reserva e a sedução, e entre a ternura mais delicada e uma sensualidade implacavelmente exigente, destruindo os homens como se fossem seres estranhos. Este é o ponto de vista de Müntz (1899, 417): `On sait quelle énigme indéchiffrable et passionnante Monna Lisa Gioconda ne cesse depuis bientôt quatre siècles de proposer aux admirateurs pressés devante elle. Jamais artiste (j’emprunte la plume du délicat écrivain qui se cache sous le pseudonyme de Pierre de Corlay) “a-t-il traduit ainsi l’essence même de la féminité: tendresse et coquetterie, pudeur et sourde volupté, tout le mystère d’un coeur qui se réserve, d’un cerveau qui réflechit, d’une personnalité que se garde et ne livre d’elle-même que son rayonnement…” O escritor italiano Angelo Conti (1910, 93) descreve que viu no Louvre o retrato iluminado por um raio de sol. `La donna sorrideva in una calma regale: i suoi istinti di conquista, di ferocia, tutta l’eredità della specie, la volontà della seduzionne e dell’agguato, la grazia del inganno, la bontà che cela un proposito crudele, tutto ciò appariva alternativamente e scompariva dietro il velo ridente e si fondeva nel poeme del suo sorriso… Buona e malvagia, crudele e compassionevole, graziosa e felina, ella rideva…’ Leonardo passou quatro anos pintando esse retrato, talvez de 1503 até 1507, durante a sua segunda permanência em Florença, época em que tinha mais de cinqüenta anos. Segundo Vasari, durante o trabalho Leonardo empregou todos os meios ao seu alcance para divertir essa senhora e conservar-lhe no semblante o sorriso famoso. No seu estado atual, o quadro conserva pouco de todos os detalhes delicados que seu pincel, na época, reproduziu sobre a tela; enquanto foi pintado, foi proclamado como sendo o mais elevado que a arte poderia realizar, porém é sabido que o próprio Leonardo não se satisfez com o resultado; declarando que estava incompleto não o entregou à pessoa que o encomendara, levou-o consigo para a França, onde o seu patrono, Francisco I, o adquiriu para o Louvre. Deixando sem solução a enigmática expressão no rosto de Mona Lisa, vamos anotar o fato inegável de que o seu sorriso, que tanto fascina todos os que têm contemplado durante esses quatro séculos, exerceu também poderoso fascínio sobre Leonardo. Dessa data em diante, o sorriso cativante reaparece em todos os seus quadros assim como nos de seus alunos. Sendo a Mona Lisa de Leonardo um retrato, não cremos que lhe tivesse imprimido, por sua própria inspiração, característica tão expressiva à sua face - característica que não lhe pertence realmente. Torna-se, portanto, inegável concluir que ele encontrou esse sorriso em seu modelo e ficou por ele tão enfeitiçado que daí por diante reproduziu-o em todas as criações livres de sua fantasia. Esta interpretação, que não poderá ser considerada forçada, é defendida, por exemplo, por Konstantinowa (1907, 44): `Durante o longo período em que o artista trabalhou no retrato de Mona Lisa del Giocondo, estudou tão apaixonadamente os detalhes mais sutis e delicados deste rosto que Leonardo, Maria está sentada no colo de sua mãe e se debruça, com os braços estendidos para o Menino que brinca com um cordeirinho, talvez o tratando com pouca delicadeza. A avó apóia na cintura o braço visível e contempla o par com um sorriso de felicidade. A composição, na verdade, não aparenta muita naturalidade. O sorriso que paira nos lábios de ambas as mulheres, embora seja inegavelmente o mesmo da Mona Lisa, perdeu seu caráter estranho e misterioso; o que ele exprime aqui é sentimento íntimo e serena felicidade. Depois de estudarmos o quadro por algum tempo, ocorre-nos subitamente a idéia de que somente Leonardo o poderia ter pintado assim como somente ele poderia ter criado a fantasia do abutre. O quadro contém a síntese da história de sua infância: os seus detalhes devem ser explicados relembrando as impressões mais pessoais da vida de Leonardo. Na casa de seu pai, ele encontrou não somente a sua boa madrasta Donna Albiera mas também a sua avó, mãe de seu pai, Monna Lucia, que - assim o supomos - foi para ele tão carinhosa quanto geralmente o são os avós. Essas circunstâncias podem muito bem ter influído para que representasse num quadro a imagem da criança vigiada pela mãe e pela avó. Outra característica evidente desse quadro é ainda mais significativa. Sant’Ana, a mãe de Maria e a avó do Menino, que deveria ser uma matrona, é representada como um pouco mais madura e mais séria do que a Virgem Maria, porém ainda uma mulher jovem e de inalterável beleza. Na verdade, Leonardo deu ao Menino duas mães; uma que lhe estende os braços e outra no segundo plano; ambas deixando transparecer o sorriso bem-aventurado da alegria maternal. Essa característica do retrato sempre chamou a atenção daqueles que o descrevera. Muther, por exemplo, é de opinião que Leonardo nunca procurava pintar a velhice, com suas marcas e rugas, e por esse motivo pintou Ana também como uma mulher de radiante beleza. Mas será que nos poderemos satisfazer com esta explicação? Outros tem negado haver qualquer similaridade de idade entre mãe e filha. Mas a explicação dada por Muther mostra bem que a impressão que se tem de que Sant’Ana foi pintada mais jovem provém mesmo do quadro e não constitui nenhuma invenção para justificar objetivo posterior. A infância de Leonardo teve característica igual à que o quadro reproduz. Teve duas mães: primeiro, sua verdadeira mãe Caterina, de quem o separaram quando tinha entre três e cinco anos; e depois uma madrasta moça e carinhosa, Donna Albiera, esposa de seu pai. Pela combinação dessa situação de sua infância com a outra que mencionamos acima (a presença da mãe e da avó) e pela composição que fez reunindo os três personagens numa unidade, o desenho de `Sant’Ana com Dois Outros’ veio a concretizar-se para ele. A figura maternal mais afastada do Menino - a avó - corresponde à primeira e verdadeira mãe, Caterina, tanto em sua aparência quanto em sua relação especial com o menino. O artista parece ter usado o sorriso bem-aventurado da Sant’Ana para negar e encobrir a inveja que sentiu a pobre mulher quando foi obrigada a entregar o filho à sua rival nascida em berço mais nobre, assim como já lhe havia outrora entregado o pai. Encontramos também uma confirmação, em outro trabalho de Leonardo, de nossa suspeita de que o sorriso de Mona Lisa del Giocondo havia despertado nele, já homem feito, a lembrança da mãe que tivera em sua Fig. 2. primeira infância. Dessa época em diante, as madonas e as senhoras aristocráticas dos quadros italianos passaram a ser pintadas com a humilde inclinação da cabeça e sorrindo o estranho e bem-aventurado sorriso de Caterina, Fig. 3. a pobre camponesa que dera à luz o magnífico filho cujo destino seria pintar, pesquisar e sofrer. Se Leonardo teve sucesso ao reproduzir nas feições de Mona Lisa a dupla significação contida naquele sorriso, a promessa de ternura infinita e ao mesmo tempo a sinistra ameaça (segundo a frase de Pater [ver em [1]]), manteve-se também fiel ao conteúdo de sua lembrança mais distante. Porque a ternura de sua mãe foi-lhe fatal; determinou o seu destino e as privações que o mundo lhe reservava. A violência das carícias evidentes em sua fantasia sobre o abutre eram muito naturais. No seu amor pelo filho, a pobre mãe abandonada procurava dar expansão à lembrança de todas as carícias recebidas e à sua ânsia por outras mais. Tinha necessidade de fazê-lo, não só para consolar-se de não ter marido mas também para compensar junto ao filho a ausência de um pai para acarinhá-lo. Assim, como todas as mães frustradas, substitui o marido pelo filho pequeno, e pelo precoce amadurecimento de seu erotismo privou-o de uma parte de sua masculinidade. O amor da mãe pela criança que ela mesma amamenta e cuida é muito mais profundo que o que sente, mais tarde, pela criança em seu período de crescimento. Sua natureza é a de uma relação amorosa plenamente satisfatória, que não somente gratifica todos os desejos mentais mas também todas as necessidades físicas; e se isto representa uma das formas possíveis da felicidade humana, em parte será devido à possibilidade que oferece de satisfazer, sem reprovação, desejos impulsivos há muito reprimidos e que podem ser considerados como perversos. Nos casais jovens e mais felizes, o pai se dá conta de que o bebê, sobretudo se for um menino, transforma-se em seu rival, o que vem a constituir o ponto de partida de um antagonismo para com o favorito, que está profundamente arraigado no inconsciente. Quando em pleno vigor de sua mocidade, Leonardo reencontrou o sorriso de beatitude e enlevo que vira pairar nos lábios de sua mãe quando o acariciava, ele já tinha estado tempo demais sob o domínio da inibição para que pudesse voltar a desejar tais carícias dos lábios de outras mulheres. Ele porém se tornara pintor e, portanto, lutou para reproduzir com seu pincel o sorriso famoso em todos os seus quadros (tanto nos que ele próprio pintou como nos que incumbia seus alunos de fazer sob sua orientação) - assim foi com a Leda, com o João Batista e com o Baco. Os dois últimos são variantes do mesmo tipo. `Leonardo transformou o comedor de gafanhotos da Bíblia’, disse Muther (1909, 1, 314), `num Baco, ou melhor, num jovem Apolo, que, com um sorriso misterioso nos lábios e com suas pernas macias cruzadas, fita-nos com olhos que nos perturbam os sentidos.’ Esses quadros transmitem um misticismo cujo segredo ninguém ousa desvendar; o máximo que poderíamos tentar seria determinar a sua relação com as criações anteriores de Leonardo. As figuras ainda são andróginas mas não mais no sentido da fantasia do abutre. São jovens lindos, de uma delicadeza feminina e de formas afeminadas; já não abaixam os olhos mas contemplam-nos com uma expressão de misterioso triunfo como se conhecessem uma grande felicidade cujo segredo devessem calar. O sorriso fascinante e familiar leva-nos a crer tratar-se de um segredo de amor. É possível que nestas figuras Leonardo tenha negado a infelicidade de sua vida erótica e que tenha triunfado sobre ela em sua arte, proclamando os desejos do menino apaixonado pela sua mãe, com um sentimento de realização nessa união bem-aventurada das naturezas masculina e feminina. V acusação que a posterioridade lhe viria fazer. Era como se quisesse fazer de alguém que pertencesse à categoria paternal, responsável por ter deixado suas obras inacabadas. Na verdade, não errou no que afirmou acerca do duque. Se sua imitação do pai o prejudicou como artista, sua rebeldia contra ele foi a determinante infantil do que foi talvez uma realização igualmente sublime no campo da pesquisa científica. Segundo a comparação admirável de Merezhkovsky (1903, 348), era como um homem que despertara cedo demais, na escuridão, enquanto os outros ainda dormiam. Ele teve a coragem de fazer a declaração que contém a justificação de toda pesquisa independente: `Aquele que apela para a autoridade quando existe diferença de opinião, está fazendo mais uso da memória do que da razão.’ Foi assim que se tornou o primeiro cientista natural moderno e uma abundância de descobertas e de idéias sugestivas recompensaram sua coragem de ter sido o primeiro homem, desde o tempo dos gregos, a indagar os segredos da natureza baseando-se unicamente na observação e em seu próprio julgamento. Mas quando ensinava que a autoridade deveria ser desprezada e que a imitação dos `antigos’ deveria ser repudiada, e ao afirmar constantemente que o estudo da natureza era a fonte de toda verdade, não fazia senão repetir - na mais alta sublimação que o homem pode atingir - o ponto de vista resoluto que já se impusera ao menino, quando fitava atônito o mundo em redor. Se transformarmos novamente a abstração científica em experiência individual concreta, veremos que os `antigos’ e a autoridade correspondem simplesmente a seu pai, e a natureza vem a ser novamente a mãe gentil e carinhosa que o amamentou. Na maioria dos seres humanos - tanto hoje como nos tempos primitivos - a necessidade de se apoiar numa autoridade de qualquer espécie é tão imperativa que o seu mundo se desmorona se essa autoridade é ameaçada. No entanto, Leonardo pôde dispensar esse apoio; não teria podido fazê-lo se nos primeiros anos de sua vida não tivesse aprendido a viver sem o pai. Sua ulterior investigação científica, caracterizada por sua ousadia e independência, pressupõe a existência de pesquisas sexuais infantis não inibidas pelo pai e representa uma prolongação das mesmas com a exclusão do elemento sexual. Quando alguém, como aconteceu com Leonardo, escapa à intimidação pelo pai durante a primeira infância e rompe as amarras da autoridade em suas pesquisas, muito nos admiraríamos se continuasse sendo um crente, incapaz de se desfazer dos dogmas religiosos. A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo do pai e a crença em Deus. Fez-nos ver que um Deus pessoal nada mais é, psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade paterna se desmorona. Verificamos, assim, que as raízes da necessidade de religião se encontram no complexo parental. O Deus todo-poderoso e justo e a Natureza bondosa aparecem-nos como magnas sublimações do pai e da mãe, ou melhor, como reminiscência e restaurações das idéias infantis sobre os mesmos. Biologicamente falando, o sentimento religioso origina-se na longa dependência e necessidade de ajuda da criança; e, mais tarde, quando percebe como é realmente frágil e desprotegida diante das grandes forças da vida, volta a sentir-se como na infância e procura então negar a sua própria dependência, por meio de uma regressiva renovação das forças que a protegiam na infância. A proteção contra doenças neuróticas, que a religião concede a seus crentes, é facilmente explicável: ela afasta o complexo paternal, do qual depende o sentimento de culpa, quer no indivíduo quer na totalidade da raça humana, resolvendo-o para ele, enquanto o incrédulo tem de resolver sozinho o seu problema. O caso de Leonardo não parece desmentir este ponto de vista relativo à religião. Enquanto vivo, foram-lhe feitas acusações de heresia e de apostasia contra o Cristianismo (o que, na época, significava a mesma coisa) que foram claramente descritas na primeira biografia que Vasari [1550] escreveu sobre ele. (Müntz, 1889, 292ss.) Na segunda edição (1568) de sua Vite, Vasari suprimiu estas observações. Devido à suceptibilidade enorme de sua época no tocante a questões religiosas, bem podemos compreender por que Leonardo, até mesmo em seus cadernos evitou qualquer comentário direto à sua posição face ao Cristianismo. Em suas pesquisas, jamais se deixou induzir em erro por influência dos relatos sobre a Criação, contidos nas Sagradas Escrituras; pôs em dúvida, por exemplo, a possibilidade de um dilúvio universal, e em geologia fez cálculos em termos de centenas de milhares de anos sem hesitação maior do que a dos homens dos tempos modernos. Entre as suas `profecias’ existem algumas que certamente teriam ofendido a sensibilidade de um crente cristão. Assim, por exemplo, em `Sobre o hábito de rezar defronte às imagens de santos’: `Os homens falarão com homens que nada percebem, que têm os olhos abertos mas que nada vêem; falarão com eles e não terão resposta; implorarão as graças daqueles que têm orelhas mas nada ouvem; acenderão luzes para quem é cego.’ (Segundo Herzfeld, 1906, 292.) Ou, então, `Sobre o luto na Sexta-feira Santa’: `Em toda a Europa, inumeráveis povos chorarão a morte de um único homem que morreu no Oriente.’ (ibid., 297.) Sobre a arte de Leonardo, já foi dito que ele despiu as sagradas figuras de todos os vestígios de sua ligação com a Igreja, tornando-as humanas, para nelas representar grandes e belas emoções humanas. Muther o elogia por libertar-se do ambiente de decadência que prevalecia na época e por restituir ao homem o seu direito à sensualidade e à alegria de viver. Nas anotações que nos mostram Leonardo, entregue à sondagem dos grandes mistérios da natureza, há um número enorme de passagens onde ele manifesta a sua admiração pelo Criador, última causa de todos esses nobres segredos; mas nada existe que possa indicar que desejou manter relações pessoais com esse divino poder. As reflexões que encerram a profunda sabedoria dos últimos anos de sua vida exalam a conformação do homem que se entrega ao F 0 4 1F 0 6 EF 0 6 1F 0 6 7F 0 6 BF 0 6 8, às leis da natureza, e que nenhuma misericórdia espera da bondade ou da graça de Deus. Parece não haver dúvida de que Leonardo superou tanto a religião dogmática quanto a pessoal, e que afastou-se muito da concepção cristã do mundo, através do seu trabalho de pesquisa. As descobertas, anteriormente mencionadas [ver a partir de [1]], que fizemos sobre o desenvolvimento da vida mental infantil, levam-nos a crer que no caso de Leonardo também as suas primeiras pesquisas na infância se orientaram para os problemas da sexualidade. Ele próprio se denuncia, sob disfarce transparente, ao relacionar sua ânsia de pesquisa à fantasia do abutre e ao destacar o problema do vôo das aves como assunto para o qual se sentia fatalmente impelido por uma série de circunstâncias. Um trecho sobremodo obscuro de suas anotações referentes ao vôo das aves, e que se assemelha a uma profecia, demonstra muito bem o grau de interesse afetivo que o fazia fixar-se na idéia de poder um dia imitar, ele próprio, esse vôo: `O grande pássaro alçará o seu primeiro vôo partindo do dorso de seu Grande Cisne; fará o mundo ficar maravilhado, será por todos descrito e será a glória eterna do ninho onde nasceu.’ Provavelmente esperava que ele próprio chegaria a voar um dia e conhecemos, pelos sonhos realizadores de desejos, que felicidade se aguarda da realização dessa esperança. Mas por que será que tantas pessoas sonham sentindo-se capazes de voar? A resposta que nos dá a psicanálise é que voar, ou ser um pássaro, é somente um disfarce para outro desejo, e que mais de uma conexão, seja por meio de palavras ou de coisas, leva-nos a reconhecer esse desejo. Quando consideramos que às crianças perguntadoras dizemos que os bebês são trazidos por um grande pássaro, tal como a cegonha; quando nos lembramos de que os antigos povos representavam o falo como possuindo asas; que a expressão mais comum, em alemão, para a atividade sexual masculina é `vögeln‘ [`passarear’: `Vogel‘ é a palavra alemã para `pássaro’; que o órgão masculino é chamado de `l’uccello‘ [`o pássaro’] em italiano - vemos que todos esses dados constituem apenas uma pequena fração de um conjunto de idéias correlatas que nos mostram que, nos sonhos, o desejo de voar representa verdadeiramente a ânsia de ser capaz de realizar o ato sexual. Este é um desejo que surge nos primeiros anos da infância. Quando o adulto relembra sua infância, esta parece-lhe como tendo sido uma época feliz, na qual se gozava o momento e se encarava o futuro sem nenhum desejo; é por essa razão que ele inveja as crianças. No entanto, se as próprias crianças nos pudessem contar a sua história nessa época, elas provavelmente o fariam de modo diferente. Parece que a infância não é bem esse idílio bem-aventurado que retrospectivamente destorcemos; ao contrário, as crianças durante toda a sua infância sentem-se fustigadas pelo desejo de crescer e de fazer o que fazem os grandes. Este desejo reflete-se em todas as brincadeiras. Sempre que as crianças sentem, no curso de suas explorações sexuais, que, nesse terreno tão misterioso e tão importante para elas, existe alguma coisa maravilhosa permitida aos adultos, mas que elas estão proibidas de conhecer e de fazer, sentem um desejo violento de ser capazes de fazê-lo e sonham-no sob a forma de voar, ou preparam este disfarce de seu desejo para ser usado mais descobri-los se nos lembrarmos de que os biógrafos se fixam em seus livros de uma maneira toda especial. Muitas vezes escolhem o herói como assunto de seu estudo porque - segundo razões de sua vida emocional pessoal - desde o começo sentiram por ele uma afeição especial. Dedicam suas energias a um trabalho de idealização, destinado a incluir o grande homem na série de seus modelos infantis - revivendo neles, talvez, a idéia infantil que faziam de seu pai. Para satisfazer este desejo, eliminam até as características fisionômicas de sua personagem; apagam as marcas das lutas de sua vida, com resistências internas e externas, e nela não toleram nenhum vestígio de fraqueza ou imperfeições humanas. Apresentam-nos, assim, uma figura ideal, fria, estranha, em vez de uma pessoa humana com a qual nos pudéssemos sentir remotamente relacionados. Isto é lastimável, pois assim sacrificam a verdade em benefício de uma ilusão, e por causa de suas fantasias infantis abandonam a oportunidade de penetrar nos mais fascinantes segredos da natureza humana. O próprio Leonardo, com seu amor à verdade e sua sede de conhecimento, não desencorajaria qualquer tentativa de descobrir o que determinava seu desenvolvimento mental e intelectual, tomando como ponto de partida as peculiaridades triviais e os enigmas de sua natureza. Nós o homenageamos quando dele aprendemos algo. Em nada ficará diminuída sua grandeza ao fazermos um estudo dos sacrifícios que lhe custou o desenvolvimento a partir de sua infância, e se juntarmos os fatores que o marcaram com o estigma trágico do fracasso. Devemos assinalar insistentemente que nunca classificamos Leonardo como um neurótico ou um `doente dos nervos’, conforme a denominação usual imprópria. Qualquer um que proteste contra o fato de ousarmos examiná-lo sob a luz dos conhecimentos adquiridos no campo da patologia ainda se estará apegando aos preconceito que nós já abandonamos. Não mais consideramos que a saúde e a doença, ou que os normais e os neuróticos se diferenciem tanto uns dos outros e que traços neuróticos devem necessariamente ser tomados como sendo prova de uma inferioridade geral. Hoje em dia, sabemos que os sintomas neuróticos são estruturas que funcionam como substitutos para algumas conseqüências de repressão, à qual devemos submeter-nos no curso de nosso desenvolvimento, desde a criança ao ser humano civilizado. Sabemos, também, que todos nós produzimos essas estruturas substitutivas e que somente o seu número, intensidade e distribuição nos poderá justificar na utilização do conceito prático de doença e inferir a presença de uma inferioridade constitucional. Partindo das indicações escassas que temos sobre a personalidade de Leonardo, estamos inclinados a classificá-lo como próximo ao tipo de neurótico que descrevemos como `obsessivo’; e poderíamos comparar suas pesquisas à `meditação obsessiva’ dos neuróticos e suas inibições como aquilo que chamamos de `abulias’. O objetivo de nosso trabalho foi explicar as inibições na vida sexual e na atividade artística de Leonardo. Tendo isso em vista, podemos resumir o que conseguimos descobrir sobre o curso de seu desenvolvimento psíquico. Não podemos conhecer direito as circunstâncias de sua hereditariedade; verificamos, por outro lado, que as circunstâncias acidentais de sua infância tiveram sobre ele um efeito profundo e perturbador. A sua origem ilegítima privou-o da influência do pai, talvez até os cinco anos, e deixou-o entregue à carinhosa sedução de uma mãe para quem ele talvez fosse o único consolo. Depois que os seus beijos lhe despertaram precocemente a madureza sexual, deve ter provavelmente atravessado uma fase de atividade sexual infantil da qual uma única manifestação foi definitivamente comprovada - a intensidade de suas pesquisas sexuais infantis. O instinto de ver e o de saber foram os mais fortemente excitados pelas impressões mais remotas de sua infância; à zona erógena da boca foi dava uma ênfase da qual nunca mais se libertou. Por sua conduta posterior, em direção oposta, assim como sua simpatia exagerada pelos animais podemos concluir pela existência de fortes indícios de traços sádicos naquele período de sua infância. Uma poderosa onda de repressão pôs fim a esse excesso infantil e determinou as disposições que se deveriam manifestar nos anos da puberdade. O resultado mais evidente da transformação foi o afastamento de toda atividade sexual grosseira. Leonardo estava capacitado para viver em abstinência e dar a impressão de ser uma criatura assexuada. Quando ondas de excitações da puberdade chegaram ao adolescente, elas não o molestaram forçando-o a procurar formações substitutivas custosas e prejudiciais. Devido à sua tendência muito precoce para a curiosidade sexual, a maior parte das necessidades de seu instinto sexual puderam ser sublimadas numa ânsia geral de saber, escapando assim à repressão. Uma parte muito menor de sua libido continuou orientada para fins sexuais e representa a atrofiada vida sexual do adulto. Porque o amor que tinha pela mãe foi reprimido, esta parte foi levada a tomar uma atitude homossexual e manifestou-se no amor ideal por rapazes. A fixação em sua mãe e nas felizes lembranças de suas relações com ela continuou preservada no inconsciente, permanecendo, porém, inativa por algum tempo. Desse modo, a repressão, a fixação e a sublimação desempenharam sua parte absorvendo as contribuições do instinto sexual para a vida mental de Leonardo. Leonardo surge da obscuridade de sua infância como artista, pintor e escultor devido a um talento específico que foi reforçado, provavelmente, nos primeiros anos de sua infância pelo precoce despertar do seu instinto escoptofílico. Gostaríamos enormemente de descrever o modo pelo qual a atividade artística se origina nos instintos primitivos da mente, se não fosse aqui, justamente, que falham nossas capacidades. Devemos contentar-nos em enfatizar o fato de que dificilmente se pode duvidar - de que a criação do artista proporciona, também, uma válvula de escape para seu desejo sexual; e no caso de Leonardo podemos ver, segundo a informação de Vasari [ver em [1]] que cabeças de mulheres sorridentes e de lindos rapazes - em outras palavras, a representação de seus objetos sexuais - eram freqüentes em suas primeiras tentativas artísticas. No verdor de sua mocidade, Leonardo parece trabalhar sem inibição. Assim como tomava seu pai como modelo para a conduta exterior de sua vida, também atravessou um período de masculina força criadora e produção artística quando um destino feliz o fez encontrar, em Milão, um pai substituto na figura do duque Ludovico Moro. Mas logo encontramos a confirmação de nossa experiência, isto é, que a repressão quase total de uma vida sexual real não oferece as condições mais favoráveis para o exercício das tendências sexuais sublimadas. O padrão imposto pela vida sexual termina por se impor. Sua atividade e sua capacidade de tomar rápidas decisões começam a falhar; sua tendência à indecisão e à protelação se fazem sentir como elemento perturbador na `Última Ceia’ e, influenciando sua técnica, tiveram um efeito decisivo no destino daquela grande obra. Lentamente desenvolveu-se nele um processo somente comparável às regressões nos neuróticos. O desenvolvimento que o levou a tornar-se um artista ao atingir a puberdade cedeu lugar ao processo que o tornou pesquisador e que tem suas determinantes na primeira infância. A segunda sublimação do seu instinto erótico cedeu lugar à sublimação original, cuja forma tinha sido preparada por ocasião da primeira repressão. Tornou-se um pesquisador, a princípio a serviço de sua arte, porém, mais tarde, independentemente dela e mesmo dela se afastando. Com a perda de seu patrono, substituto de seu pai, e com as sombras que, progressivamente, lhe marcavam a vida, esta substituição regressiva assumiu proporções cada vez maiores. Tornou-se `impacientissimo al pennelo‘ conforme nos conta um correspondente da condessa Isabella d’Este, que desejava ardentemente possuir um quado seu. Seu passado infantil passou a dominá-lo. Mas a pesquisa, que toma agora o lugar da criação artística, parece ter contido alguns traços que caracterizam a atividade de impulsos inconscientes; insaciabilidade, rigidez de comportamento e falta de capacidade para adaptar-se às circunstâncias reais. Ao atingir o ápice de sua vida, quando ingressava na casa dos cinqüenta - época em que as características sexuais das mulheres já sofreram a involução, enquanto nos homens a libido, com freqüência, apresenta um enérgico surto - sofreu ele uma nova transformação. Camadas ainda mais profundas de seu conteúdo anímico tornaram-se mais uma vez ativas; mas esta nova regressão veio beneficiar a sua arte que se encontrava num processo de atrofiamento. Encontrou a mulher que lhe despertou a lembrança do sorriso feliz e sensual de sua mãe; e, influenciado por eta lembrança reaguçada, voltou a encontrar o estímulo que o guiava no princípio de suas tentativas artísticas, na época em que retratou mulheres sorridentes. Pintou a Mona Lisa, a `Sant’Ana com Dois Outros’ e a série de retratos misteriosos caracterizados pelo sorriso enigmático. Com a ajuda do mais antigo de todos os seus impulsos eróticos goza o triunfo de, uma vez mais, dominar a inibição na sua arte. Este último desenvolvimento vai-se tornando impreciso para nós, com as sombras da velhice que se aproxima. Antes disso, seu intelecto se elevara até o mais alto grau de realização formulando uma concepção do mundo que de muito ultrapassou a sua época. Nos capítulos anteriores, já mostrei o que pode justificar este retrato do curso do desenvolvimento de Leonardo - propondo estas subdivisões de sua vida e explicando, dessa forma, sua vacilação entre a arte e a ciência. Se as afirmativas que fiz provocaram críticas, de nossa infância pode ser ainda incerta em seus detalhes; mas não será mais possível duvidar precisamente da importância dos primeiros anos de nossa infância. Nós todos ainda sentimos muito pouco respeito pela natureza, que (nas palavras obscuras de Leonardo, que lembram o Hamlet) `está cheia de inúmeras razões [`ragioni’] que nunca penetram a experiência.’ Cada um de nós, seres humanos, corresponde a uma dessas inúmeras experimentações por meio das quais as `ragioni’ da natureza são compelidas a compartilhar a experiência. AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA (1910) DIE ZÜKNFTIGEN CHANCEN DER PSYCHOANALYTISCHEN THERAPIE (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1910 Zbl. Psychoan., 1 (1-2), 1-9. 1913 S.K.S.N., 3, 288-298. (2ª ed. 1921.) 1924 Technik und Metapsychol., 25-36. 1925 G.S., 6, 25-36. 1943 G.W., 8, 104-115. (b) TRADUÇÕES INGLESAS: `The Future Chances of Psychoanalytic Therapy’ 1912 S.P.H. (2ª ed.), 207-215. (Trad. A. A. Brill.) (3ª ed. 1920.) `The Future Prospects of Psycho-Analytic Therapy’ 1924 C.P., 2, 285-296. (Trad. Joan Riviere.) A presente tradução inglesa baseia-se na publicada em 1924. Este trabalho foi proferido em forma de comunicação para a abertura do Segundo Congresso de Psicanálise, realizado em Nurembergue, em 30 e 31 de março de 1910. Como uma visão geral da posição contemporânea da psicanálise, pode-se compará-lo com uma conferência similar `Lines of Advance in Psycho-Analytic Therapy’ (Linhas de Desenvolvimento da Terapêutica Psicanalítica) (1919a) proferida por Freud oito anos depois no Congresso de Budapeste. Em especial, a segunda parte do presente trabalho, que trata da técnica, prefigura a terapia `ativa’ que constituiu o tema principal do último trabalho. NOTA DO EDITOR BRASILEIRO A presente tradução brasileira é de autoria de David Mussa. Revisão geral e técnica de Jayme Salomão (Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro). AS PERSPECTIVAS FUTURAS DA TERAPÊUTICA PSICANALÍTICA SENHORES, - De vez que os objetivos para os quais nos reunimos aqui, hoje, são eminentemente práticos, escolherei para minha conferência introdutória um tema clínico e solicito-lhes o interesse, não científico, mas médico. Posso imaginar seus prováveis pontos de vista sobre o resultado de nossa terapia e presumo que a maioria dos senhores já passou pelos dois estágios que atravessam todos os principiantes, o do entusiasmo pelo aumento inesperado de nossas façanhas terapêuticas e o da depressão pela magnitude das dificuldades que impedem nossos esforços. Qualquer que seja, no entanto, o grau de desenvolvimento em que cada um dos senhores possa encontrar-se, é minha intenção, hoje, mostrar-lhes que, de nenhuma maneira, chegamos ao final de nossos recursos no combate às neuroses e que podemos esperar, em pouco tempo, melhoria substancial nas nossas perspectivas terapêuticas. Penso que este reforço virá de três direções: (1) do processo interno, (2) do aumento da autoridade; e (3) da eficiência geral de nosso trabalho. (1) Sob `progresso interno’ quero dizer os avanços: (a) em nosso conhecimento analítico, (b) em nossa técnica. (a) Avanços em nosso conhecimento. Na verdade, estamos ainda muito longe de saber tudo o que se requer para o conhecimento dos inconsciente de nossos doentes. É evidente que cada avanço em nosso conhecimento significa um acréscimo de nosso poder terapêutico. Na medida em que nada compreendemos, nada realizamos; quanto mais compreendermos, mais alcançaremos. No início, o tratamento analítico era inexorável e exaustivo. O doente tinha de dizer tudo de si e a atividade do médico consistia em pressioná-lo, incessantemente. As coisas, hoje, possuem atmosfera mais cordial. O tratamento compõe-se de duas partes - o que o médico infere e diz ao doente, e o que o doente elabora de quanto ouviu. O mecanismo de nosso auxílio é fácil de entender; damos ao doente a idéia antecipadora consciente [a idéia do que ele espera encontrar] e, então, ele acha a idéia inconsciente reprimida, em si mesmo, no fundamento de sua similaridade com a idéia antecipadora. É esta a ajuda intelectual que lhe torna mais fácil superar as resistências entre consciente e inconsciente. A propósito, devo salientar que este não é o único mecanismo de que se faz uso no tratamento analítico; os senhores todos conhecem aquele bem mais poderoso que repousa no emprego da `transferência’. E em minha intenção, em futuro próximo, tratar desses diversos fatores, que são tão importantes para a compreensão do tratamento, em uma Allgemeine Methodik der Psychoanalyse. E, além disso, ao falar-lhes, não preciso refutar a objeção de que o valor indicativo que sustenta a correção de nossas hipóteses se obscureça, em nosso tratamento, tal como hoje o praticamos; os senhores não devem esquecer-se de que se pode encontrar essa evidência em outro lugar e de que se pode realizar um procedimento terapêutico da mesma forma que uma investigação teórica. Permitam-me, agora, tocar em um ou dois setores em que novas coisas temos para aprender e em que, de fato, novas coisas devemos descobrir, a cada dia. Há, acima de tudo, o setor do simbolismo nos sonhos e no inconsciente - tema ardentemente contestado, como os senhores sabem. Não é pequeno o mérito de nosso colega, Wilhelm Stekel, que, imperturbado por todas as objeções levantadas por nossos opositores, empreendeu um estudo dos símbolos tratamento, certa satisfação dos instintos que o paciente está combatendo e que diferença faz se esses impulsos são ativos (sádicos) ou passivos (masoquistas), em sua natureza. Espero que os senhores tenham formado a impressão de que quando soubermos tudo quanto, só agora, suspeitamos e realizarmos todas as melhorias na técnica, a que nos conduz uma observação mais profunda dos pacientes, o nosso procedimento clínico alcançará grau de precisão e certeza de sucesso que se hão de encontrar em todo campo especializado da medicina. (2) Disse que muito se tinha de esperar do aumento em autoridade, que nos adviria, na medida em que passa o tempo. Não necessito dizer-lhes muito sobre a importância da autoridade. Poucas pessoas civilizadas, apenas, são capazes de existir sem confiar em outras ou, até mesmo, de vir a ter uma opinião independente. Os senhores não podem exagerar a intensidade de carência interior de decisão das pessoas e de exigência de autoridade. O aumento extraordinário das neuroses desde que decaiu o poder das religiões pode dar-lhes uma medida disso. O empobrecimento do ego devido ao grande dispêndio de energia, na repressão, exigido de cada indivíduo pela civilização, pode ser uma das principais causas desse estado de coisas. Até o momento, essa autoridade, com seu enorme peso de sugestão, ficou contra nós. Todos os nossos sucessos terapêuticos foram alcançados em face dessa sugestão: é surpreendente que se tenham conseguido quaisquer sucessos em tais circunstâncias. Não devo deixar que me levem a descrever minhas experiências satisfatórias durante o período em que, sozinho, representava a psicanálise. Posso dizer, apenas, que, quando assegurava a meus pacientes que sabia como aliviar-lhes, permanentemente, os sofrimentos, olhavam em torno da minha modesta sala, que refletia a ausência de fama e de título, e me consideravam como possuidor de um sistema infalível numa casa de jogo, de quem as pessoas dizem que, se pudesse fazer o que professa, pareceria bem diferente do que é. Nem realmente era agradável realizar uma operação psíquica enquanto os colegas, cujo dever seria o de assistir, se deliciassem, particularmente, em cuspir no campo operatório, quando aos primeiros sinais de sangue, ou de agitação do paciente, os seus parentes começassem por ameaçar o cirurgião. Uma operação, por certo, se destina a produzir reações; em cirurgia, estamos acostumados a isso, há muito tempo. As pessoas simplesmente não acreditavam em mim, como, até mesmo, hoje em dia, não crêem muito em qualquer de nós. Sob tais condições, não poucas tentativas destinavam-se ao fracasso. Para avaliar o aumento de nossas perspectivas terapêuticas, quando recebermos o reconhecimento geral, os senhores devem pensar na posição de um ginecologista, na Turquia e no Ocidente. Na Turquia, tudo o que ele pode fazer é sentir o pulso de um braço, que se lhe estende, através de um buraco na parede: e os alcances clínicos estão em proporção com a inacessibilidade de seu objeto. Nossos adversários, no Ocidente, querem permitir-nos mais ou menos o mesmo grau de acesso às mentes de nossos pacientes. Mas, agora que a força da sugestão social impele as mulheres doentes ao ginecologista, transformou-se ele no seu assistente e salvador. Confio em que não dirão que o fato de a autoridade de sociedade, vindo em nossa ajuda e aumentando tanto nossos êxitos, nada faria por provar a validez de nossas hipóteses - argumentando do mesmo modo que os senhores, visto que se supõe que a sugestão logre fazer qualquer coisa, os vossos sucessos seriam, então, êxitos de sugestão e não de psicanálise. A sugestão social é favorável, no presente, a tratar os pacientes nervosos pela hidropatia, dieta e eletroterapia, mas isso não capacita que tais recursos possam vencer as neuroses. O tempo há de mostrar se o tratamento psicanalítico pode realizar mais. Agora, no entanto, devo, mais uma vez, arrefecer as expectativas dos senhores. A sociedade não terá pressa em conferir-nos autoridade. Está determinada a oferecer-nos resistência, porque adotamos em relação a ela uma atitude crítica; assinalamos-lhe que ela própria desempenha papel importante em causar neuroses. Da mesma maneira que fazemos de um indivíduo nosso inimigo pela descoberta do que nele está reprimido, do mesmo modo a sociedade não pode responder com simpatia a uma implacável exposição dos seus efeitos danosos e deficientes. Porque destruímos ilusões, somo acusados de comprometer os ideais. Poderia parecer, portanto, como se a condição de que espero tão grandes vantagens, para as nossas perspectivas terapêuticas, jamais se preencherá. E, todavia, a situação não é, no momento, tão desesperançosa quanto se poderia pensar. Embora sejam poderosos os próprios interesses e emoções dos homens, não obstante o intelecto também é um poder - um poder que se faz sentir não imediatamente, é verdade, mas, sobretudo, seguramente, no fim. As mais ásperas verdades, finalmente, são ouvidas e reconhecidas, depois que os interesses que se feriram e as emoções que se instigaram tiveram exaurido a própria fúria. Tem sido sempre assim, e as verdades indesejáveis, que nós, psicanalistas, temos de dizer ao mundo, contarão com o mesmo destino. Apenas não acontecerá muito depressa; devemos ser capazes de esperar. (3) Finalmente, tenho de explicar-lhes o que quero dizer com a `eficiência geral’ de nosso trabalho e como chego a nele ter esperanças. O que temos, aqui, é uma constelação terapêutica bastante fora do comum, cuja semelhança talvez não se encontre em qualquer outra parte, e que pode parecer-lhes estranha, a princípio, até que os senhores reconheçam nela algo que a longo tempo lhes tenha sido familiar. Naturalmente, os senhores sabem que as psiconeuroses são satisfações substitutivas de algum instinto, cuja presença o indivíduo é obrigado a negar a si e aos outras. Sua capacidade de existir depende dessa distorção e da falta de reconhecimento. Quando o enigma que elas apresentam é resolvido e a solução é aceita pelos pacientes, essas doenças cessam em ser capazes de existir. Em medicina, quase nada há igual a isso, embora, em contos de fadas, os senhores ouçam falar de espíritos maus, cujo poder se rompe, tão logo possam dizer-lhes o próprio nome - o nome que eles guardaram em segredo. Em lugar de uma simples pessoa enferma, ponhamos a sociedade - padecendo como um todo de neuroses, embora composta de membros doentes e sadios; e, em lugar da aceitação individual, naquele caso, coloquemos, nesse, o reconhecimento geral. Uma pequena reflexão lhes revelará, então, que tal substituição não pode alterar, de modo algum, o resultado. O sucesso que o tratamento pode ter com o indivíduo, deve ocorrer, igualmente, com a comunidade. As pessoas doentes não serão capazes de deixar que as suas diversas neuroses se tornem conhecidas - a sua ansiosa superternura que tem em mira ocultar-lhe o ódio, a sua agorafobia que se relaciona com a ambição frustrada, as suas atitudes obsessivas que representam auto-censuras por más intenções e precauções contra as mesmas - se todos os seus parentes e cada estranho, dos quais desejam ocultar os seus processos mentais, conheceram o significado geral de tais sintomas, e se eles próprios souberem que, nas manifestações de sua doença, nada estão produzindo que outra pessoa, imediatamente, não possa interpretar. O efeito, no entanto, não se limitará ao encobrimento dos sintomas - o que, incidentalmente, é amiúde impossível de conseguir porque essa necessidade de encobrimento destrói a vantagem de ser doente. A revelação do segredo terá atacado, em seu ponto mais sensível, a `equação etiológica’, da qual surgem as neuroses - terá tornado ilusória a vantagem da doença; e, em conseqüência, o resultado final da situação modificada, provocada pela indiscrição do médico, só pode ser o de que a produção da doença será detida. Se essa esperança parece, aos senhores, utópica, lembrem-se de que os fenômenos neuróticos já têm sido, de fato, dissipados, por esses meios, embora apenas em exemplos bem isolados. Pensem sobre quão comuns costumavam ser, antigamente, as alucinações da Virgem Maria entre as camponesas. Uma vez que tal fenômeno trouxesse uma multidão de crentes e pudesse levar a que se construísse uma capela, no lugar santo, o estado visionário dessas moças era inacessível a influência. Hoje em dia, nosso próprio clero modificou sua atitude com relação a tais coisas; permite que polícia e médicos examinem a visionária, e, agora, apenas muito raramente, existem em aparições da Virgem. Ou, permitam-me examina esses desenvolvimentos, que tenho descrito como se tivessem lugar no futuro, numa situação análoga que existe em escala menor e, conseqüentemente, mais fácil de reconhecer. Suponhamos que certo número de senhoras e cavalheiros, de bom convício social, tenham planejado fazer um piquenique, em certo dia, numa hospedaria no campo. As senhoras combinaram, entre si, que se uma delas desejasse satisfazer suas necessidades fisiológicas, diria que iria colher flores. No entanto, uma pessoa maliciosa soube do segredo e mandou imprimir no programa, que se fez circular por todo o grupo: `Pede- se às senhoras que desejam retirar-se à toilette, que anunciem que vão colher flores.’ Depois disso, por certo, nenhuma mulher pensará em aproveitar-se desse pretexto florido, e, do mesmo modo, outras fórmulas similares que pudessem estabelecer ficariam seriamente comprometidas. Qual será o resultado? As senhoras admitirão, sem pejo, as suas necessidades fisiológicas e nenhum dos homens objetará. Retornemos ao nosso caso mais sério. Certo número de pessoas, ao defrontar-se, em suas vidas, com conflitos que constataram muito difíceis de resolver, fogem para a neurose e, desse modo, retiram da doença vantagem inequívoca, embora, com o tempo, acarrete bastante EM MINHA The Interpretation of Dreams (A Interpretação de Sonhos) fiz uma afirmação acerca de uma das descobertas de meu trabalho analítico, que eu, naquela época, não entendi. Repito-a aqui à guisa de prefácio a esta crítica: `O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é bastante singular. Eles simplesmente a ignoram. O “não” parece não existir, no que se refere aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os contrários numa unidade ou para representá-los como uma e mesma coisa. Os sonhos tomam, além disso, a liberdade de representar qualquer elemento, por seu contrário de desejo; não há, assim, maneira de decidir, num primeiro relance, se determinado elemento que se apresenta por seu contrário está presente nos pensamentos do sonho como positivo ou negativo.’ Os intérpretes de sonhos da antiguidade parecem ter feito uso mais extenso da noção de que uma coisa num sonho pode significar seu oposto. Esta possibilidade também tem sido de vez em quando reconhecida pelos modernos estudiosos de sonhos, na medida em que admitem que os sonhos têm uma significação e podem ser interpretados. Não acho que serei contraditado ao pressupor que todos aqueles que me acompanharam no interpretar sonhos em bases científicas tenham encontrado uma confirmação da assertiva acima citada. Eu não conseguia entender a tendência singular do trabalho do sonho para desconhecer a negação e empregar os mesmos meios de representação para expressar os contrários até que me aconteceu, por acaso, ler um trabalho do filólogo Karl Abel, publicado em 1884, em panfleto separado e, no ano seguinte, incluído nos Sprachwissenschaftliche Abhbandlungen [Ensaios Filológicos] do autor. O assunto é de interesse suficiente para justificar que eu cite aqui o texto completo das passagens cruciais do artigo de Abel (omitida, no entanto, a maioria dos exemplos). Delas obtemos a informação surpreendente que o comportamento do trabalho do sonho que acabei de descrever é idêntico a uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos. Depois de acentuar a antiguidade da língua egípcia que deve ter-se desenvolvido muito tempo antes das primeiras inscrições hieroglíficas, Abel continua (1884,4): `Atualmente na língua egípcia, esta relíquia única de um mundo primitivo, há um bom número de palavras com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra. Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente de absurdo, que em alemão a palavra “forte” signifique ao mesmo tempo “forte” e “fraco”; que em Berlim o substantivo “luz” se use para significar ao mesmo tempo “luz” e “escuridão”; que um cidadão de Munique chame cerveja de “cerveja”, enquanto outro use a mesma palavra para falar de água: nisto é que importaria o surpreendente costume usado regularmente pelos antigos egípcios em sua linguagem. Como incriminar-se alguém que, incrédulo, abane a cabeça?…’ (Omitem-se os exemplos.) (Ibid., 7): `Em vista destes e de muitos casos similares de significação antitética (veja-se o Apêndice) está fora de dúvida que numa língua, pelo menos, havia um grande número de palavras que designavam, ao mesmo tempo, uma coisa e seu oposto. Por surpreendente que seja, estamos diante do fato e temos de reconhecê-lo.’ O autor prossegue, rejeitando uma explicação destas circunstâncias que sugere podem acontecer, por acaso, que duas palavras tenham o mesmo som, e repudiando, com igual firmeza, a tentativa de referi-la ao baixo nível de desenvolvimento mental do Egito: (Ibid., 9): `Mas o Egito não tinha nada de terra do absurdo. Pelo contrário, foi um dos berços do desenvolvimento da razão humana… Ele reconheceu uma moral pura e digna e formulou uma grande parte dos Dez Mandamentos numa época em que os povos em cujas mãos a civilização hoje repousa tinham o hábito de imolar vítimas humanas em sacrifício a ídolos sedentos de sangue. Um povo que acendeu a tocha da justiça e da cultura numa era tão sombria não pode por certo ter sido completamente estúpido na linguagem e no pensamento de cada dia … Homens que foram capazes de fazer o vidro e erguer e movimentar, por máquinas, blocos imensos devem, pelo menos, ter possuído senso suficiente para não considerar uma coisa como sendo simultaneamente ela e seu oposto. Como iremos então conciliar isso com o fato de que os egípcios se permitiam uma linguagem tão estranhamente contraditória?… que eles usassem dar um e mesmo veículo fonético aos pensamentos mais reciprocamente desavindos, e usassem ligar numa espécie de união indissolúvel coisas que estavam na mais forte oposição uma com a outra? Antes de tentar qualquer explicação, deve-se também mencionar um estágio ulterior desse comportamento ininteligível da língua egípcia. `De todas as excentricidades do vocabulário egípcio, talvez a característica mais extraordinária seja que, excetuando inteiramente as palavras que aliam significações antitéticas, ele possui outras palavras compostas em que dois vocábulos de significações antitéticas se unem de modo a formar um composto que tem a significação de um apenas de seus dois componentes. Assim, nesta extraordinária língua há não só palavras significando igualmente “forte” ou “fraco”, e “comandar” ou “obedecer”; mas há também compostos com “velho-jovem”, “longe-perto”, “ligar-cortar”, “fora-dentro”… que, apesar de combinarem os extremos de diferença, significam somente “jovem”, “perto”, “ligar” e “dentro” respectivamente… Desse modo, nessas palavras compostas, conceitos contraditórios se combinaram de modo inteiramente intencional, não de maneira a produzirem um terceiro conceito, como às vezes acontece no chinês, mas apenas de modo a usar o composto para exprimir a significação de uma de suas partes contraditórias - uma parte que teria tido a mesma significação só por si…’ O enigma é, no entanto, mais fácil de solucionar do que parece. Nossos conceitos devem sua existência a comparações. `Se sempre houvesse luz, não seríamos capazes de distinguir a luz da escuridão, e conseqüentemente não seríamos capazes de ter nem o conceito de luz nem a palavra para ele…’ `É claro que tudo neste planeta é relativo e tem uma existência independente apenas na medida em que se diferencia quanto a suas relações com as outras coisas…’ `De vez que todo conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ele ser de início pensado e como poderia ele ser comunicado a outras pessoas que tentavam concebê-lo, senão pela medida do seu contrário…? (Ibid., 15): `De vez que o conceito de força não se podia formar exceto com um contrário de fraqueza, a palavra designando “forte” continha uma lembrança simultânea de “fraco”, como coisa por meio da qual ele, de início, ganhou existência. Na realidade, esta palavra não designava nem “forte” nem “fraco”, mas a relação e a diferença entre os dois, que criou a ambos igualmente…’ `O homem não foi, de fato, capaz de adquirir seus conceitos mais antigos e mais simples a não ser como os contrários dos contrários, e só gradativamente aprendeu a separar os dois lados de uma antítese e a pensar em um deles sem a comparação consciente com os outros. De vez que a linguagem serve não só para expressar os próprios pensamentos, mas, essencialmente, para comunicá-los a outrem, pode-se levantar a questão de como foi que o `egípcio primitivo’ fez seu próximo entender `que pólo do conceito geminado ele significava numa ocasião particular qualquer.’ Na linguagem escrita, isso se fazia com o auxílio dos chamados sinais “determinativos” que, colocados depois dos sinais alfabéticos, lhes atribuíam sua significação e não eram para ser pronunciados. (Ibid., 18): `Se a palavra egípcia “ken” devia significar “forte”, seu som, que fosse alfabeticamente escrito, seguia-se da figura de um homem em pé, armado; se a mesma palavra tinha de expressar “fraco”, as letras que representavam o som se seguiam de figura de um corcunda, coxo. A maioria das outras palavras com duas significações similarmente e acompanhavam de figuras explicativas.’ Abel acha que, no falar, a significação desejada da palavra dita se indicava pelo gesto. Segundo Abel, é nas `raízes mais antigas’ que se vê ocorrerem as significações duplas antitéticas. No curso subseqüente do desenvolvimento da linguagem, esta ambigüidade desapareceu e, no Antigo Egito, pelo menos, todos os estágios intermediários se podem acompanhar, até a não-ambigüidade dos vocabulários modernos. `Uma palavra que originariamente comportava duas significações separa-se, na linguagem ulterior, em duas palavras com significações individuais, num processo pelo qual cada uma das duas significações opostas sofre uma “redução” (modificação) fonética particular da raiz original.’ Assim, por exemplo, nos hieróglifos, a palavra “ken”, “forte-fraco”, já se divide em “ken, “forte” e “kan”, “fraco”. Em outras palavras, conceitos a que só se poderia chegar por meio de uma antítese tornaram-se, no curso do tempo, suficientemente familiares às mentes dos homens, possibilitando uma existência independente, para cada uma de suas duas partes, e, em conseqüência, permitindo a formação de um representante fonético separado para cada parte.’ Uma prova da existência de significações primitivas contraditórias, que facilmente se estabelece em egípcio, estende-se segundo Abel, também às línguas semita e indo-européia. `Até que ponto isto pode acontecer em outros grupos lingüísticos está por ver; pois, embora a antítese deva ter estado presente, de início, nas mentes pensantes de cada raça, não precisou
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