Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O caso dos exploradores de cavernas, Notas de estudo de Administração Empresarial

- - - - - - -

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 31/08/2008

luiz-gabri-7
luiz-gabri-7 🇧🇷

1 documento

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O caso dos exploradores de cavernas e outras Notas de estudo em PDF para Administração Empresarial, somente na Docsity! LON L. FULLER Professor de “Jurisprudence” da Harvard Law School O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNAS Tradução do original inglês e introdução por PLAUTO FARACO DE AZEVEDO Professor adjunto e pesquisador da Faculdade de Direito da UFRGS; doutor em direito pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica Sergio Antonio Fabris Editor Porto Alegre, 1976. Reimpresso: 1993. 2 Copyright, O. by HARVARD LAW REVIEW Título do original "THE CASE OF THE SPELUNCEAN EXPLORERS" FICHA CATALOGRÁFICA (Elaborada pela equipe da Biblioteca do Tribunal de Justiça do RS.) O caso dos exploradores de cavernas. Tradu- ção do original inglês e introdução por Plauto Faraco de Azevedo. Porto Alegre, Fabris, 1976. 77 p. 16cm. 1. Filosofia do direito. 2. Introdução à ci- ência do direito. I. Azevedo, Plauto Faraco de, trad. II. Título. CDU 340.12 340.11 Fuller, Lon L Índice para catálogo sistemático: 1. Introdução à ciência do direito 340.11 Filo- sofia do direito 340.12 Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa. Sergio Antonio Fabris Editor R. Miguel Couto, 745 - Telefone (051) 233-2681 90850-050 Porto Alegre, RS - Brasil ou Caixa Postal 4001 90631-970 Porto Alegre, RS - Brasil 5 nos primórdios do curso jurídico, é que poderão solver tais dificuldades, não confundindo o Direito com a Lei, e nem esta com a Justiça. Resta externar à Harvard Law Review o devido reconhecimento por ha- ver permitido esta tradução, cujos frutos, confiamos, hão de ser os mais profí- cuos. Plauto Faraco de Azevedo 6 O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNA O Caso dos Exploradores de Cavernas Suprema Corte de Newgarth - Ano de 4300 Processados e condenados à morte pela forca, os acusados recorreram da decisão do Tribunal do Condado de Stowfield à Suprema Corte de Newgarth. Os fatos em que se louvou a sentença condenatória são os que a seguir enuncia o Presidente desse alto Tri- bunal em seu voto. Presidente Truepenny, C. J. Os quatro acusados são membros da Sociedade Espeleológica - uma organização amadorística de exploração de cavernas. Em princípios de maio do ano de 4299, pene- traram eles, em companhia de Roger Whetmore, à época também membro da Socieda- de, no interior de uma caverna de rocha calcária do tipo que se encontra no Planalto Central desta Commonwealth. Já bem distantes da entrada da caverna, ocorreu um des- moronamento de terra: pesados blocos de pedra foram projetados de maneira a bloquear completamente a sua única abertura. Quando os homens aperceberam-se da situação difícil em que se achavam, concentraram-se próximo à entrada obstruída, na esperança de que uma equipe de socorro removesse o entulho que os impedia de deixar a prisão subterrânea. Não voltando Whetmore e os acusados às suas casas, o secretário da Socie- dade foi notificado pelas famílias dos acusados. Os exploradores haviam deixado indi- cações, na'sede da Sociedade, concernentes à localização da caverna que se propunham visitar. A equipe de socorro foi prontamente enviada ao focal. A tarefa revelou-se extremamente difícil. Foi necessário suplementar as forças de resgate originais mediante repetidos acréscimos de homens e máquinas, que tinham de ser transportados à remota e isolada região, o que demandava elevados gastos. Um enorme campo temporário de trabalhadores, engenheiros, geólogos e outros técnicos, foi instalado. O trabalho de desobstrução foi muitas vezes frustrado por novos deslizamen- tos de terra. Em um destes, dez operários contratados morreram. Os fundos da Socieda- de Espeleológica exauriram-se rapidamente e a soma de oitocentos mil frelares, obtida em parte por subscrição popular e em parte por subvenção legislativa, foi gasta antes que os homens pudessem ser libertados, o que só se conseguiu no trigésimo segundo dia após a sua entrada na caverna. Desde que se soube que os exploradores tinham levado consigo apenas escassas provisões e se ficou também sabendo que não havia substância animal ou vegetal na caverna que lhes permitisse subsistir, temeu-se que eles morressem de inanição antes que o acesso até o ponto em que se achavam se tornasse possível. No vigésimo dia a partir da ocorrência da avalancha soube-se que os exploradores tinham levado consigo para a caverna um rádio transistorizado capaz de receber e enviar mensagens. Instalou- se prontamente um aparelho semelhante no acampamento, estabelecendo-se deste modo a comunicação com os desafortunados homens no interior da montanha. Pediram estes que lhes informassem quanto tempo seria necessário para liberá-los. Os engenheiros 7 responsáveis pela operação de salvamento responderam que precisavam de pelo menos dez dias, à condição que não ocorressem novos deslizamentos. Os exploradores pergun- taram então se havia algum médico no acampamento, tendo sido postos em comunica- ção com a comissão destes, à qual descreveram sua condição e as rações de que dispu- nham, solicitando uma opinião acerca da probabilidade de subsistirem sem alimento por mais dez dias. O presidente da comissão respondeu-lhes que havia escassa possibilidade de sobrevivência por tal lapso de tempo. O rádio dentro da caverna silenciou a partir daí durante oito horas. Quando a comunicação foi restabelecida os homens pediram para falar novamente com os médicos, o que conseguido, Whetmore, falando em seu próprio nome e em representação dos demais, indagou se eles seriam capazes de sobreviver por mais dez dias se se alimentassem da carne de um dentre eles. O presidente da comissão respondeu, a contragosto, em sentido afirmativo. Whetmore inquiriu se seria aconselhá- vel que tirassem a sorte para determinar qual dentre eles deveria ser sacrificado. Ne- nhum dos médicos se atreveu a enfrentar a questão. Whetmore quis saber então se havia um juiz ou outra autoridade governamental que se dispusesse a responder à pergunta. Nenhuma das pessoas integrantes da missão de salvamento mostrou-se disposta a assu- mir o papel de conselheiro neste assunto. Whetmore insistiu se algum sacerdote poderia responder àquela interrogação, mas não se encontrou nenhum que quisesse faze-lo. De- pois disto não se receberam mais mensagens de dentro da caverna, supondo-se (errone- amente como depois se evidenciou) que as pilhas do rádio dos exploradores tinham -se descarregado. Quando os homens foram finalmente libertados soube-se que, no trigési- mo terceiro dia após sua entrada na caverna, Whetmore tinha sido morto e servido de alimento a seus companheiros. Das declarações dos acusados, aceitas pelo júri, evidencia-se que Whetmore foi o primeiro a propor que buscassem alimento na carne de um dentre eles, sem o que a sobrevivência seria impossível. Foi também Whetmore quem primeiro propôs a forma de tirar. a sorte, chamando a atenção dos acusados para um par de dados que casualmen- te trazia consigo. Os acusados inicialmente hesitaram adotar um comportamento tão desatinado, mas, após o diálogo acima relatado, concordaram com o plano proposto. E depois de muita discussão com respeito aos problemas matemáticos que o caso suscita- va, chegaram por fim a um acordo sobre o método a ser empregado para a solução do problema: os dados. Entretanto, antes que estes fossem lançados, Whetmore declarou que desistia do acordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar um expedi- ente tão terrível e odioso. Os outros o acusaram de violação do acordo e procederam ao lançamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dos acusados atirou-os em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantar quaisquer objeções quanto à correção do lanço. Ele declarou que não tinha objeções a fazer. Tendo-lhe sido adversa a sorte, foi então morto. Após o resgate dos acusados e depois de terem permanecido algum tempo em um hospital onde foram submetidos a um tratamento para desnutrição e choque emocio- nal, foram denunciados pelo homicídio de Roger Whetmore. No julgamento, depois de ter sido concluída a prova, o porta-voz dos jurados (de profissão advogado) perguntou ao juiz se os jurados podiam emitir um veredicto especial, deixando ao juiz dizer se, em conformidade com os fatos provados, havia culpabilidade ou não dos réus. Depois de alguma discussão, tanto o representante do Ministério Público quanto o advogado de- fensor dos réus, manifestaram sua concordância com tal procedimento, o qual foi aceito 10 removida depois dos maiores dispêndios de tempo e de esforço. Concluo, portanto, que no momento em que Roger Whetmore foi morto pelos réus, eles se encontravam não em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado natural", como se diria na singular linguagem dos autores do século XIX. A conseqüên- cia disto é que a lei que lhes é aplicável não é a nossa, tal como foi sancionada e estabe- lecida, mas aquela apropriada a sua condição. Não hesito em dizer que segundo este princípio eles não são culpados de qualquer crime. O que estes homens fizeram realizou-se em cumprimento de um contrato aceito por todos e proposto em primeiro lugar pela própria vítima. Desde o momento em que se evidenciou que a situação extraordinariamente difícil em que se achavam tornava inaplicável os princípios_ usuais à regulação das relações entre os homens, tornou-se necessário para eleselaborar, por assim dizer, uma nova constituição apropriada a sua peculiar situação. Tem sido reconhecido desde a antigüidade que o princípio fundamental do direi- to ou governo deve ser encontrado na noção de contrato ou convênio. Pensadores anti- gos, especialmente durante o período que medeia entre 1600 e 1900, tinham por hábito estabelecer as bases do próprio governo em um suposto contrato social. Os céticos res- saltaram que esta teoria contradizia os - fatos históricos conhecidos e que não havia ne- nhuma evidência científica capaz de apoiar a noção de que qualquer governo em qual- quer tempo tivesse sido estabelecido em conformidade com esta teoria. Os moralistas replicaram que, se o contrato era -uma ficção do ponto de vista histórico, esta noção fornecia a única justificação ética sobre que os poderes do governo, inclusive aquele de privar da vida, podia ser fundado. Os poderes do governo só podem ser justificados mo- ralmente tendo como razão de ser a circunstância de que homens razoáveis por-se-iam de acordo e os aceitariam se se vissem frente à necessidade de construir novamente al- guma ordem capaz de tornar possível a vida em comum. Felizmente, porém, as perplexidades que assediavam os antigos não atingem nosso país. É fato historicamente comprovado que nosso governo foi fundado mediante um contrato livremente assentido. A prova arqueológica é conclusiva no sentido de que no período subseqüente à Grande Espiral os sobreviventes da hecatombe voluntariamen- te reuniram-se e redigiram uma carta política. Escritores sofistas tem questionado o po- der desses remotos contratantes de obrigar futuras gerações, mas permanece o fato de que nosso governo remonta em uma linha ininterrupta àquela constituição original. Se portanto nossos verdugos têm o poder de pôr fim à vida dos homens, se nos- sos oficiais de justiça tem o poder de determinar o despejo dos locatários em mora, se nossa polícia tem o poder de encarcerar o pândego embriagado, estes poderes encon- tram sua justificação moral naquele contrato originário celebrado pelos nossos antepas- sados. Se nós não podemos encontrar fonte mais elevada para nossa ordem jurídica, que outra mais alta deveríamos esperar que estes infortunados famintos estabelecessem para o ordenamento que adotaram para si próprios? Acredito que a linha de argumentação que termino de expor não admite nenhu- ma contestação racional. Dou-me conta que ela será provavelmente recebida com uma certa inquietação por muitos que venham a lê-la, os quais inclinar-se-ão a suspeitar que algum sofisma oculto deve encontrar-se à base de uma demonstração que conduz a tan- 11 tas conclusões tão pouco comuns. A fonte desta intranqüilidade é, no entanto, fácil de identificar. As condições usuais da existência nos inclinam a considerar a vida humana um valor absoluto, que não pode ser sacrificado em nenhuma circunstância. Há muito de ilusório nesta concepção, mesmo quando aplicada às relações normais ocorrentes na vida social. Tivemos um exemplo desta verdade no próprio caso que ora examinamos. Dez trabalhadores morreram' no trabalho de remoção das rochas à entrada da caverna. Não sabiam os engenheiros e os funcionários públicos que dirigiam a operação de sal- vamento que os esforços que estavam empreendendo eram perigosos e envolviam um sério risco para as vidas dos trabalhadores que os estavam executando? Se é justo que estas dez vidas tenham sido sacrificadas para salvar as dos cinco exploradores, a que título diremos ter sido injusto que estes exploradores executassem um acordo para sal- var quatro vidas em detrimento de uma? Qualquer rodovia, túnel ou edifício que nos projetamos envolve um risco à vida humana. Tomando estes projetos em conjunto podemos calcular com certa precisão quantas mortes a sua construção irá demandar; os estatísticos podem dizer o custo mé- dio em vidas humanas de mil milhas de uma rodovia de concreto de quatro pistas. En- tretanto, deliberada e conscientemente incorremos neste risco e pagamos este custo na suposição de que os valores resultantes para aqueles que sobrevivem sobrepujam a per- da. Se estas coisas podem ser ditas em uma sociedade desenvolvendo-se normalmente sobre a superfície da terra, o que se deverá dizer do suposto valor absoluto da vida hu- mana na situação de desespero em que os réus e seu companheiro Whetmore foram co- lhidos? Com isto dou por concluído o primeiro fundamento do meu voto. O segundo vai mais além, rejeitando hipoteticamente todas as premissas que formulei até o momento. Concedo, para fins de argumentação, que eu esteja errado dizendo que a situação destes homens os subtrai à incidência do nosso direito positivo, e suponho que nossas Leis Consolidadas tenham o poder de penetrar quinhentos pés de rocha e impor-se sobre es- tes homens famintos e amontoados em sua prisão subterrânea. Nestas condições é per- feitamente claro que estes homens praticaram um ato que viola a expressão literal da lei que declara que aquele que intencionalmente mata a outrem é um assassino. Mas um dos mais antigos aforismas da sabedoria jurídica ensina que um homem pode infringir a letra da lei sem violar a própria lei. Toda proposição dedireito positivo, quer contida em uma lei ou em um precedente, deve ser interpretada de modo racional, segundo seu pro- pósito evidente. Isto é uma verdade tão elementar que é, a rigor, desnecessário alongar- me a este respeito. Os exemplos de sua aplicação são inumeráveis e se encontram em todos os setores do ordenamento jurídico. No caso Commonwealth v. Staymore o acusa- do foi condenado tendo em vista uma lei que considera delituoso estacionar os auto- móveis, em certas áreas, por um período superior a duas horas. O réu tinha tentado reti- rar o seu carro, mas foi impedido de faze-lo porque as ruas encontravam-se obstruídas por uma demonstração política na qual ele não tomara parte, nem pudera prever. Este Tribunal reformou a sentença, rejeitando a condenação, embora o caso se enquadrasse perfeitamente dentro do enunciado literal da lei. Também no caso de Fehler v. Neegas esteve perante este Tribunal, para ser interpretado, um dispositivo legal em que a pala- vra "não" fora evidentemente transposta da posição em que devia estar. Esta transposi- ção encontrava-se em todas as redações sucessivas do dispositivo legal, não tendo, apa- rentemente, sido notada pelos elaboradores ou pelos demais responsáveis pela legisla- ção. Embora ninguém fosse capaz de explicar como o erro ocorrera, era manifesto que, tendo em conta as disposições da lei em seu conjunto, um erro tinha sido cometido, uma 12 vez que a leitura literal de sua parte final tornava-a incompatível com tudo o que a pre- cedia e com o, objetivo deste texto tal como enunciado em seu preâmbulo. Este Tribunal recusou-se a aceitar a interpretação literal da lei, e, de fato, retificou sua linguagem, transpondo a palavra "não" para o seu lugar exato. O dispositivo legal cuja interpretação devemos realizar nunca foi aplicado lite- ralmente. Há séculos estabeleceu-se que matar em legitima defesa é escusável. Não há nada no texto legal que sugira esta exceção. Várias tentativas tem sido feitas para conci- liar a aceitação jurisprudencial da legítima defesa com o texto da lei, embora em minha opinião não constituam senão engenhosos sofismas. A verdade é que a exceção em fa- vor da legitima defesa não é conciliável com as palavras da lei, mas somente com seu propósito. A verdadeira conciliação da excludente da culpabilidade em razão da legitima defesa com o dispositivo legal segundo o qual constitui crime matar a outrem deve ser encontrada na seguinte linha de raciocínio. Um dos principais objetivos subjacentes a qualquer legislação penal é o de dissuadir os homens da prática do crime. Ora, é eviden- te que se a lei tivesse declarado que o assassinato em legitima defesa constitui crime, tal regra não poderia atuar de maneira preventiva. Um homem cuja vida é ameaçada repeli- rá seu agressor não importa o que diga a lei. Atentando, pois, para os objetivos princi- pais da legislação penal, podemos seguramente declarar que esta lei não se destinava a ser aplicada nos casos de legítima defesa. Quando o fundamento lógico da excludente da legítima defesa é assim explica- do, torna-se evidente que, precisamente, a mesma razão é aplicável ao caso sub judice. Se no futuro qualquer grupo de homens venha a encontrar-se na trágica situação dos acusados, nós podemos estar certos de que sua decisão de viver ou morrer não será re- freada pelas normas do Código Penal. Portanto, se nós lermos este texto legal inteligen- temente, é manifesta a sua inadequação a este caso. A subtração desta situação da inci- dência da lei justifica-se precisamente pelas mesmas considerações que foram apresen- tadas pelos nossos colegas, séculos atrás, ao caso da legítima defesa. Há os que protestam em altas vozes, dizendo tratar-se de usurpação judicial, sem- pre que um tribunal, depois de analisar o propósito de uma lei, dá às suas palavras um significado não imediatamente perceptível pelo leitor apressado, desatento aos objetivos que ele busca atingir. Seja-me permitido dizer enfaticamente que eu aceito sem reserva a proposição segundo a qual esta Corte deve obediência às leis do país e que ela exerce seus poderes em subordinação à vontade devidamente expressa pela Câmara de Repre- sentantes. A linha de raciocínio de que me utilizei acima não põe a questão de fidelidade às disposições legais, embora possa talvez colocar a questão da distinção entre fidelida- de inteligente e fidelidade não inteligente. Ninguém deseja um empregado incapaz de ler nas entrelinhas. A mais estúpida doméstica sabe que quando lhe é ordenado "descas- car a sopa e tirar a escuma dos tomates", sua patroa não quer significar o que está di- zendo. Ela também sabe que quando seu patrão lhe diz para "soltar tudo e vir correndo", ele não tem em mente a possibilidade de que, neste momento, ela esteja salvando uma criança prestes a afogar-se. Certamente nós temos o direito de esperar a mesma pequena porção de inteligência de parte do Poder Judiciário. A correção de óbvios erros ou equí- vocos legislativos não importa em suplantar a vontade do poder legislativo, mas em faze-la mais efetiva. Nestas condições concluo que, sob qualquer aspecto que este caso possa ser considerado, os réus são inocentes do crime de homicídio contra Roger 15 descarga ordenada à instintiva necessidade de retribuição: Commonwealth v. Scape. Também se afirma,que o seu escopo é a reabilitação do delinqüente: Commonwealth v. Makeover. E outras teorias têm sido propostas. Supondo-se que nós devamos interpretar uma lei à luz de seu propósito, o que deveremos fazer quando tiver vários propósitos ou quando estes forem questionados? Uma dificuldade similar é apresentada pela circunstância de que, embora haja fundamento jurisprudencial para a interpretação dada por meu colega à excludente da legitima defesa, também há outro critério jurisprudencial conferindo a esta excludente um fundamento lógico diverso. Na verdade, ate ter tomado conhecimento da decisão no caso de Commonwealth v. Parry eu nunca tinha ouvido a explicação dada por meu co- lega. A doutrina ensinada em nossas escolas, memorizada por gerações de estudantes de direito, diz o seguinte: a lei referente ao homicídio requer um ato "intencional". O ho- mem que atua para repelir uma ameaça agressiva a sua própria vida não age "intencio- nalmente", mas em resposta a um impulso profundamente enraizado na natureza huma- na. Suponho que dificilmente exista um jurista neste país que não esteja familiarizado com esta linha de raciocínio, especialmente porque este é um dos pontos preferidos nos exames visando o exercício da advocacia. Mas a explicação familiar para a excludente da legítima defesa que terminei de expor obviamente não pode ser aplicada por analogia aos fatos deste caso. Estes algum auxílio inesperado talvez pudesse ter chegado. Dou-me conta de que esta observação apenas reduz a distinção a uma questão de grau, sem que a destrua completamente. É certamente verdade que o elemento de prevenção seria menor neste caso do que aquele que normalmente decorre da aplicação da lei penal. Ainda há uma outra dificuldade na proposta de meu colega Foster de estabelecer uma exceção na lei em favor deste caso, embora novamente nenhuma dúvida transpare- ça em seu voto. Qual será o alcance da exceção? No caso, os homens tiraram a sorte e a própria vítima no início concordou com o que foi contratado. O que decidiríamos se Whetmore tivesse recusado desde o começo a participar do plano? Permitir-se-ia que uma maioria decidisse contra a sua vontade? Ou suponha-se que nenhum plano fosse adotado e que' os outros simplesmente conspirassem para causar a morte de Whetmore, e à guisa de justificativa dissessem que ele estava em condição física mais débil. Ou, ainda, que um plano de seleção, baseado numa justificação diferente daquela aqui ado- tada, fosse seguido, como por exemplo se os outros fossem ateus e insistissem que Whetmore deveria morrer porque era o único que acreditava na vida além da morte. Estes exemplos poderiam ser multiplicados, mas já se sugeriu o suficiente para revelar as inúmeras dificuldades ocultas contidas no raciocínio de meu colega. É claro que, refletindo, me dou conta de que estou lidando com um problema que nunca mais ocorrerá, pois é improvável que outro grupo de homens seja levado a cometer novamente a terrível ação que ora julgamos. De qualquer forma, continuando a reflexão, mesmo se nós estamos certos de que um caso similar não ocorrerá novamente, não é claro que os exemplos que dei demonstram a falta de qualquer princípio coerente e racional na decisão que meu colega propõe? Não se deve aferir a correção de um prin- cípio pelas conclusões que ele acarreta, sem que se faça referencia a eventuais proble- mas decorrentes de um litígio futuro? Entretanto, se assim é, porque nós juízes deste Tribunal, discutimos tão amiúde se é provável que tenhamos que aplicar no futuro um princípio que a solução do caso que ora julgamos reclama? É esta uma situação em que 16 uma linha de raciocínio, originariamente inadequada, chegou a sancionar-se por via de um precedente, de modo que daí por diante estejamos obrigados a aplicá-la? Quanto mais examino este caso e penso sobre ele, mais profundamente envolvi- do emocionalmente me sinto. Minha mente fica enredada nas malhas das redes que eu próprio arremesso para salvar-me. Creio que quase toda consideração que interesse à solução do presente caso é contrabalançada por outra oposta, conduzindo em uma dire- ção também oposta. Meu colega Foster não me propiciou, nem eu pude descobrir por mim próprio, nenhuma fórmula capaz de resolver as dúvidas que por todos os lados me acossam. Dei a este caso a maior atenção de que sou capaz. Tenho dormido muito pouco desde que nos foi apresentado à decisão. Quando me sinto inclinado a aceitar o ponto de vista de meu colega Foster, detém-me a impressão de que seus argumentos são intelec- tualmente infundados e completamente abstratos. De outro lado, quando me inclino no sentido de manter a condenação, choca-me o absurdo de condenar estes homens à morte quando a salvação de suas vidas custou as de dez heróicos operários. Lamento que ao Representante do Ministério Público tenha parecido adequado acusá-los de homicídio. Se tivéssemos um dispositivo legal capitulando como crime o fato de comer carne hu- mana, esta teria sido uma acusação mais apropriada. Se nenhuma outra acusação ade- quada aos fatos deste caso podia ser formulada contra os acusados, teria sido preferível, penso, não tê-los pronunciado. Infelizmente, entretanto, estes homens foram processa- dos e julgados e, em decorrência disto, nós nos vemos envolvidos por este infeliz litígio. Uma vez que me revelei completamente incapaz de afastar as dúvidas que me assediam, lamento anunciar algo que creio não tenha precedentes na história deste Tri- bunal. Recuso-me a participar da decisão deste caso. Keen, J. Eu gostaria de começar deixando de lado duas questões que não são da compe- tência deste Tribunal. A primeira delas consiste em saber-se se a clemência executiva deveria ser con- cedida aos réus caso a condenação seja confirmada. Esta é, porém, segundo o nosso sistema constitucional, uma questão da competência do chefe do Poder Executivo e não nossa. Desaprovo, portanto, aquela passagem do voto do presidente deste Tribunal em que ele efetivamente dá instruções ao chefe do Poder Executivo acerca do que deveria fazer neste caso e sugere alguns inconvenientes que adviriam se tais instruções não fos- sem atendidas. Isto é uma confusão de funções governamentais - uma confusão em que o judiciário deveria ser o último a incorrer. Desejo esclarecer que se eu fosse o chefe do Poder Executivo, iria mais longe no sentido da clemência do que aquilo que lhe foi soli- citado. Eu concederia a estes homens perdão total, pois creio que eles já sofreram o su- ficiente para pagar por qualquer delito que possam ter cometido. Quero que seja enten- dido que esta observação é feita na minha condição privada, como cidadão que, em ra- zão de seu oficio, adquiriu um íntimo conhecimento dos fatos deste caso. No cumpri- 17 mento dos meus deveres como juiz não me incumbe dirigir instruções ao chefe do Poder Executivo, nem tomar em consideração o que ele possa ou não fazer, a fim de chegar à minha própria decisão que deverá ser inteiramente guiada pela lei desta Commonwealth. ' A segunda questão que desejo deixar de lado diz respeito a decidir se o que estes homens fizeram foi "justo" ou "injusto", "mau" ou "bom". Esta é outra questão irrele- vante ao cumprimento de minha função, pois, como juiz, jurei aplicar não minhas con- cepções de moralidade, mas o direito deste país. Pondo esta questão de lado penso que posso também excluir sem comentário a primeira e mais poética porção do voto do meu colega Foster. O elemento de fantasia contido nos argumentos por ele desenvolvidos revelou-se de maneira flagrante na tentativa um tanto solene do meu colega Tatting de encará-los seriamente. A única questão que se nos apresenta para ser decidida consiste em saber se os réus, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) § 12-A, privaram intencionalmente da vida a Roger Whetmore. O texto exato da lei é o seguinte: "Quem quer que intencio- nalmente prive a outrem da vida será punido com a morte". Devo supor que qualquer observador imparcial, que queira extrair destas palavras o seu significado natural, con- cederá imediatamente que os réus privaram "intencionalmente da vida a Roger Whet- more". De onde, pois, surgem as dificuldades do caso e a necessidade de tantas páginas de discussão a respeito do que deveria ser tão óbvio? As dificuldades, qualquer que seja a forma angustiada por que se apresentem, todas convergem a uma única fonte, consis- tente na indistinção dos aspectos legais e dos morais do presente litígio. Para dize-lo claramente, meus colegas não apreciam o fato de exigir a lei escrita a condenação dos acusados. Também a mim isto não causa prazer, mas, à diferença de meus colegas, eu respeito as obrigações de um cargo que requer que se deixem as predileções pessoais de lado, ao interpretar e aplicar a lei deste país. Todavia, naturalmente, meu colega Foster não admite que ele seja motivado por uma aversão pessoal à lei escrita. Ao contrário, ele desenvolve uma linha de argumento familiar, de acordo com a qual o Tribunal pode desrespeitar o enunciado de uma lei, quando algo nela não contido, denominado seu "propósito" , pode ser empregado para justificar o resultado que o Tribunal considera adequado. Tendo em vista que se trata de uma longa controvérsia que há muito entrete- mos, meu colega e eu, gostaria, antes de discutir a aplicação particular deste ponto de vista aos fatos do presente litígio, de dizer algo acerca do fundo histórico deste contro- vertido tema, bem como de suas aplicações relativamente ao direito e ao governo em geral. Tempo houve_ neste país, em que os juízes efetivamente legislaram livremente e todos nós sabemos que durante esse período algumas de nossas leis foram praticamente reelaboradas pelo Poder Judiciário. Isto ocorreu em um momento em que os princípios aceitos pela ciência política não designavam de maneira segura a hierarquia e a função dos vários poderes do Estado. Todos conhecemos a trágica conseqüência desta indistin- ção através da breve guerra civil que resultou do conflito entre o Poder Judiciário, de um lado, e os Poderes Executivo e Legislativo, de outro. Não há necessidade de enume- rar novamente aqui os fatores que contribuíram para esta malsinada luta pelo poder, embora seja sabido que entre eles se incluíam o caráter pouco representativo da Câmara, resultante de uma divisão do país em distritos eleitorais que não mais correspondiam à 20 completo fracasso no desempenho da função judicial. É de todo impossível ao juiz apli- car uma lei tal como está redigida e, simultaneamente, refazê-la em consonância com seus desejos pessoais. Bem sei que a linha de raciocínio que terminei de expor neste voto não será acei- tável por aqueles que cogitam tãosomente dos efeitos imediatos de uma decisão e igno- ram as implicações que poderão advir no futuro em conseqüência de assumir o judiciá- rio o poder de criar exceções à aplicação da lei. Uma decisão rigorosa nunca é popular. Juízes tem sido exaltados na literatura por seus ardilosos subterfúgios destinados a pri- var um litigante de seus direitos nos casos em que a opinião pública julgava errado faze- los prevalecer. Mas eu acredito que a exceção ao cumprimento das leis, levada a efeito pelo Poder Judiciário, faz mais mal a longo prazo do que as decisões rigorosas. As sen- tenças severas podem ate mesmo ter um certo valor moral, fazendo com que o povo sinta a responsabilidade em face da lei, que, em última análise, é sua própria criação, bem como relembrandolhe que não há nenhum princípio de perdão pessoal que possa mitigar os erros de seus representantes. Na verdade, irei mais longe e direi que os princípios por mim expostos são os melhores para as nossas condições atuais; e, mais, que nós teríamos herdado um melhor sistema jurídico dos nossos antepassados se estes princípios tivessem sido observados desde o início. Por exemplo, com respeito à excludente da legítima defesa, se nossos tribunais tivessem permanecido firmes na letra da lei, o resultado teria sido, sem dúvida alguma, a sua revisão legislativa. Tal revisão teria suscitado a colaboração de cientistas e psicólogos, e a regulamentação da matéria, daí resultante, teria tido um fundamento compreensível e racional, ao invés da miscelânea de verbalismos e distinções metafísi- cas que emergiram de seu tratamento judicial e acadêmico. Essas conclusões finais estão, por certo, além dos deveres que devo cumprir relativamente a este caso, mas as enuncio porque sinto de modo profundo que meus colegas estão muito pouco conscientes dos perigos implícitos nas concepções sobre a magistratura defendidas pelo meu colega Foster. Minha conclusão é de que se deve confirmar a sentença condenatória. Handy, J. Ouvi com estupefação os angustiados raciocínios que este caso trouxe à tona. Nunca deixo de admirar a habilidade com que meus colegas lançam uma obscura corti- na de legalismos sobre qualquer problema que lhes seja apresentado para decidir. Nesta tarde ouvimos arrazoados sobre as distinções entre direito positivo e direito natural, a letra e o propósito da lei, funções judiciais e executivas, legislação oriunda do judiciário e do legislativo. Minha única decepção foi que ninguém levantou a questão da natureza jurídica do contrato celebrado na caverna - se era unilateral ou bilateral, e se não se po- deria considerar que Whetmore revogou a sua anuência antes que se tivesse atuado com fundamento nela. O que é que todas essas coisas tem a ver com o caso? O problema que temos que 21 decidir é o que nós, como funcionários públicos, devemos fazer com esses acusados. Esta é uma questão de sabedoria prática a ser exercida em um contexto, não de teoria abstrata, mas de realidades humanas. Quando o caso é examinado sob essa luz, torna-se, segundo me parece, um dos mais fáceis de decidir dentre os que já foram argüidos pe- rante este Tribunal. Antes de enunciar minhas próprias conclusões acerca do mérito, eu gostaria de discutir brevemente alguns dos problemas essenciais que o litígio traz à tona - questões sobre as quais meus colegas e eu temos estado divididos desde que me tornei juiz. Nunca fui capaz de convencê-los de que o governo é um assunto humano, e que os homens são governados não por palavras sobre o papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens. Eles são bem governados quando seus governantes compreendem os sentimentos e concepções do povo. E são mal governados quando não existe esta com- preensão. De todos os ramos do governo, é o Judiciário o que tem maiores possibilidades de perder o contato com o homem comum. As razões para isto são, naturalmente, bas- tante óbvias. Ao passo que as massas reagem diante de uma situação conforme ela se apresenta em seus traços mais salientes, nós juízes dividimos em pequenos fragmentos cada situação que nos é apresentada. Juristas são contratados pelos antagonistas a fim de analisar e dissecar. Juízes e advogados rivalizam em ver quem é capaz de descobrir o maior número de dificuldades e distinções em um só conjunto de fatos. Cada litigante tenta encontrar casos reais ou imaginários, _que irão causar embaraço às demonstrações do lado oposto. Para escapar a esta dificuldade, ainda outras distinções são inventadas e introduzidas na situação. Quando um conjunto de fatos é exposto a tal espécie de trata- mento por um tempo suficiente, toda sua vida e essência tê-lo-á abandonado, dele não restando senão um punhado de poeira. Percebo que, sem dúvida alguma, sempre que haja regras e princípios abstratos, os juristas poderão fazer distinções. Até certo ponto esta espécie de coisas que estou descrevendo é um mal necessário, ligado a qualquer regulação formal dos negócios humanos. Todavia, penso que a área que realmente ne- cessita de tal regulação é grandemente superestimada. Há, naturalmente, algumas regras de jogo fundamentais que devem ser aceitas como condição de existência do próprio jogo. Eu incluiria entre elas aquelas relativas à regulação das eleições, à nomeação de funcionários públicos e ao tempo de exercício nos respectivos cargos. Nestas matérias, eu concedo que seja essencial certa restrição na discrição e na possibilidade de excep- cionar, certa adesão à forma, um certo escrúpulo quanto ao que cai e o que não cai na esfera de incidência da norma. Mas, fora destes domínios, acredito que todos os funcionários públicos, inclusi- ve os juízes, cumpririam melhor seus deveres se considerassem as formalidades e os conceitos abstratos como instrumentos. Penso que deveríamos tomar como nosso mode- lo o bom administrador, que adapta os métodos e princípios ao caso concreto, selecio- nando dentre os meios de que dispõe os mais adequados à obtenção do resultado coli- mado. A mais óbvia vantagem deste método de governo é que ele nos permite cumprir nossas tarefas diárias com eficiência e senso comum. Minha adesão a esta filosofia tem, entretanto, raízes mais profundas. Creio que apenas com o discernimento que ela propi- cia podemos preservar a flexibilidade essencial se quisermos manter nossas ações em 22 uma conformidade razoável com os sentimentos daqueles que se acham submetidos à nossa autoridade. Mais governos soçobraram e mais miséria humana foi causada pela ausência deste acordo entre governantes e governados do que por qualquer outro fator que se possa discernir na história. Desde o momento em que se introduz uma cunha en- tre a massa do povo e aqueles que dirigem sua vida jurídica, política e econômica, a sociedade é destruída. Então nem a lei da natureza de Foster, nem a fidelidade à lei es- crita de Keen, não servirão de mais nada. Aplicando estas concepções ao caso sub judice, sua decisão se torna, conforme referi, bastante fácil. A fim de demonstrar isso terei que divulgar certas realidades que meus colegas, como pudico decoro, julgaram adequado omitir, ainda que delas tenham tanta consciência quanto eu próprio. A primeira delas é que este caso despertou um enorme interesse público tanto no país quanto no exterior. Quase todos os jornais e revistas publicaram artigos a seu res- peito; colunistas partilharam com seus leitores informações confidenciais referentes ao próximo passo do Poder Executivo; centenas de cartas aos editores foram publicadas. Uma das grandes cadeias de jornais fez uma sondagem de opinião pública acerca da questão - "que pensa você que a Suprema Corte deveria fazer com os exploradores de cavernas?" Cerca de noventa por cento expressaram a opinião de que os acusados deve- riam ser perdoados ou deixados em liberdade, com uma espécie de pena simbólica. Por- tanto, é perfeitamente claro o sentimento da opinião pública frente ao caso. Alias, pode- ríamos tê-lo sabido sem a sondagem, com base no senso comum ou mesmo observando que neste Tribunal há manifestamente quatro homens e meio, ou seja noventa por cento, que partilham da opinião comum. Isto torna óbvio não somente o que deveríamos, mas o que devemos fazer, se de- sejamos preservar entre nós e a opinião pública uma harmonia razoável e decente. O fato de declararmos estes homens inocentes não nos envolve em nenhum subterfúgio ou ardil pouco digno. Tampouco é necessário qualquer principio de interpretação legal que não esteja de acordo com o modo de proceder deste Tribunal. Certamente nenhuma pes- soa leiga pensaria que, absolvendo estes homens, nós tivéssemos desvirtuado a lei mais do que nossos predecessores o fizeram quando criaram a excludente da legítima defesa. Se uma demonstração mais detalhada do método seguido para harmonizar nossa decisão com o dispositivo legal fosse julgada necessária, contertar-me-ia em fixar-me nos argu- mentos desenvolvidos na segunda e menos fantasiosa parte do voto do meu colega Fos- ter. Estou convicto de que meus colegas se horrorizarão por eu ter sugerido que este Tribunal leve em conta a opinião pública. Eles dirão que a opinião pública é emocional e caprichosa, que se baseia em meias verdades e que ouve testemunhas que não estão sujeitas a novo interrogatório. Eles dirão ainda que a lei cerca o julgamento de um caso como este de cuidadosas garantias, destinadas a assegurar que a verdade será conhecida e que qualquer consideração racional referente às possíveis soluções do caso será toma- da em consideração. Advertirão que todas estas garantias de nada servem se for permiti- do que a opinião pública, formada fora deste quadro, tenha qualquer influência na deci- são. Mas detenhamo-nos imparcialmente em algumas das realidades da aplicação da nossa lei penal. Quando um homem é acusado de ter cometido um crime há, de maneira 25 farce; o sacerdote declarou em seu testemunho que tinha entrado normalmente como um membro do culto. De qualquer forma, quando os discursos começaram, ele os interrom- peu aludindo a certas questões respeitantes aos negócios do culto e fez algumas declara- ções em defesa de seus próprios pontos de vista. Foi atacado por participantes da reuni- ão que lhe deram uma enorme surra, do que lhe resultou, dentre outros ferimentos, uma fratura na mandíbula. O sacerdote intentou uma ação de indenização contra a associação patrocinadora da reunião e dez indivíduos que alegava terem sido seus agressores. Quando chegamos à fase de julgamento, o caso pareceu-me, a princípio, muito complicado. Os advogados levantaram múltiplos problemas legais. Havia difíceis ques- tões concernentes à admissão da prova e relativamente à demanda contra a Associação, alguns problemas girando em torno da questão de saber-se se o sacerdote havia se insi- nuado ilicitamente na reunião ou se havia recebido autorização para dela participar. Como noviço na magistratura, sentia-me impaciente por aplicar meus conhecimentos adquiridos na Faculdade, e logo comecei a estudar estas questões atentamente, lendo todas as fontes mais autorizadas e preparando considerandos bem fundamentados. À medida que estudava o caso envolvia-me progressivamente mais em suas perplexidades jurídicas, tendo chegado a aproximar-me de um estado semelhante àquele de meu cole- ga Tatting neste caso. Subitamente, porém, apercebi-me claramente de que todas estas intrincadas questões realmente nada tinham a ver com a questão, e comecei a examiná- la à luz do senso comum. Imediatamente o litígio ganhou uma nova perspectiva e dei- me conta de que a única coisa que me incumbia fazer era absolver os acusados por falta de provas. Cheguei a esta conclusão pelas seguintes considerações. O conflito em que o au- tor fora ferido tinha sido muito confuso, com algumas pessoas tentando chegar ao centro do tumulto, enquanto outras procuravam afastar-se dele; algumas golpeando o sacerdo- te, ao passo que outras aparentemente tentando protege-lo. Teriam sido necessárias al- gumas semanas para apurar a verdade. Decidi então que nenhuma mandíbula fraturada era tão importante para a Commonwealth (os ferimentos do sacerdote, seja dito de pas- sagem, tinham se curado neste meio tempo, sem que o desfigurassem e sem qualquer diminuição de suas faculdades normais). Ademais, convenci-me profundamente de que o autor tinha, em larga medida, dado causa ao conflito. Ele sabia quão inflamadas esta- vam as paixões e podia facilmente ter encontrado outro lugar para exprimir seus pontos de vista. Minha decisão foi amplamente aprovada pela imprensa e pela opinião pública, as quais não podiam tolerar as concepções e práticas que o sacerdote expulso tentava defender. Agora, depois de trinta anos, graças a um ambicioso Representante do Ministério público e a um porta-voz do júri legalista, encontro-me diante de um caso que suscita problemas que, no fundo, são muito semelhantes àqueles contidos no litígio que termi- nei de expor. O mundo não parece mudar muito, mas desta vez não se trata de um jul- gamento por quinhentos ou seiscentos frelares e sim da vida ou morte de quatro homens que já sofreram mais tormento e humilhação do que a maioria de nós suportaria em mil anos. Concluo que os réus são inocentes da prática do crime que constitui objeto da acu- sação e que a sentença deve ser reformada que acabam de ser enunciados, eu desejaria reexaminar a posição que assumi anteriormente. Quero expressar que depois de ouvi-los sinto-me bastante fortalecido em minha convicção de que não devo participar do julga- mento. 26 Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal de primeira instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse lugar às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300, ocasião em que o verdugo público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na forca. Tatting, J. O presidente do Tribunal perguntou-me se, depois dos dois votos que acabam de ser enunciados, eu desejaria reexaminar a posição que assumi anteriormente. Quero expressar que depois de ouvi-los sinto-me bastante fortalecido em minha convicção de que não devo participar do julgamento. Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal de pri- meira instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse lugar às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300, ocasião em que o verdu- go público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na forca. POST SCRIPTUM Tendo o Tribunal pronunciado seu julgamento, o leitor intrigado pela escolha da data pode desejar ser relembrado que os séculos que nos separam do ano 4300 são apro- ximadamente os mesmos que se passaram desde a Época de Péricles. Não há provavel- mente nenhuma necessidade de observar que o Caso dos Exploradores de Cavernas não pretende ser nem um trabalho de sátira, nem uma profecia em qualquer sentido comum do termo. No que concerne aos juízes que compõem o Tribunal do Presidente True- penny, eles são naturalmente tão fictícios quanto os fatos e precedentes com os quais lidam. O leitor, que se recusar a aceitar este ponto de vista e que procurar descobrir se- melhanças contemporâneas onde nada disso foi buscado ou considerado, deveria ser advertido de que se mete numa aventura sob sua própria responsabilidade, a qual pode levá-lo a desviar-se das verdades enunciadas nos votos emitidos pela Corte Suprema de Newgarth. O caso foi imaginado com o único propósito de focalizar certas posturas filo- sóficas divergentes a respeito do direito e do governo. Posturas estas que são hoje ainda as mesmas que se agitavam nos dias de Platão e Aristóteles. E talvez elas continuem a apresentar-se mesmo depois que a nossa era tenha pronunciado a propósito a sua última palavra. Se há alguma espécie de predição no caso, não vai além da sugestão de que as questões nele versadas encontram-se entre os problemas permanentes da raça humana.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved