Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Revista de bioética e ética médica, Notas de estudo de Enfermagem

REVISTA DE BIOÉTICA E ÉTICA MÉDICA

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 25/03/2011

gerson-souza-santos-7
gerson-souza-santos-7 🇧🇷

4.8

(351)

772 documentos

1 / 116

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Revista de bioética e ética médica e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! revista bioetica nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 1 P BIOÉTICA & Ética Médica Volume nº1 - 2006 C= Conselho Federal de Medicina —6— Bioética é uma revista científica idealizada para fomentar a discussão multidisciplinar e plural de temas de bioética e ética médica. Sua linha editorial, bem como a composição e atuação do Conselho Editorial, são completamente independentes do plenário do CFM. Os artigos são de inteira responsabilidade dos autores e não expressam, necessariamente, a posição oficial do Conselho. Bioética Volume 14, número 1 - 2006 Editor – Clóvis Francisco Constantino Editora executiva – Dora Porto Jornalista responsável – Antonio Marcelo - MTB/DF 11747 Copidesque/revisor – Napoleão Marcos de Aquino Traduções – Kenia Alves (espanhol), Ana Maria Tapajós e Átila Regina de Oliveira (inglês) Normalização bibliográfica – Eliane M. Medeiros e Silva - CRB 1ª região/1678 Secretaria – Eliane M. Medeiros e Silva e Sandro Quintino Guedes Editoração eletrônica – Via Brasil - Consultoria & Marketing Ltda Gráfica – Posigraf Tiragem 10.000 exemplares Conselho editorial – Antônio Carlos Mendes, Arnaldo Pineschi de Azeredo Coutinho, Corina Bomtempo Duca de Freitas, Délio José Kipper, Gabriel Oselka, Leocir Pessini, Lucilda Selli, Luiz Salvador de Miranda Sá Junior, Maria Clara Feitosa Albuquerque, Mário Roberto Hirschheimer, Mayana Zatz, Miguel Kfouri Neto, Nelson Grissard, Raquel E. Ferreira Dodge, Reinaldo Ayer de Oliveira, Roberto Luiz D’Avila, Roni Marques, Volnei Garrafa. Conselho Federal de Medicina SGAS 915, Lote 72 - Brasília/DF - CEP 70390-150 Fone: (61)3445 5900 Home-page: http://www.portalmedico.org.br E-mail: revistabioetica@cfm.org.br Ficha Catalográfica Bioética.14, n º 1 -- 2006. Brasília, Conselho Federal de Medicina, 2006. Semestral 1. Bioética. I. Conselho Federal de Medicina ISSN 0104-1401 CDU 614.25(05) Copyright © 2006 Conselho Federal de Medicina revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 2 Sumário Artigos Editorial Simpósio 7 Princípios de direito e de justiça na distribuição de recursos escassos Paulo Gilberto Cogo Leivas 9 Mulheres HIV/Aids: silenciamento, dor moral e saúde coletiva Lucilda Selli & Petronila Libana Cechim 17 Cuidando dos cuidadores Délio José Kipper 27 A presença de cuidadores familiares nas instituições: questão de dignidade humana Délio José Kipper 29 Um olhar reflexivo: os que cuidam dos cuidadores Rosa Maria do Carmo de Melo Wald 41 Desafios para a psicologia no cuidado com o cuidador Maria Estelita Gil & Letícia Domingues Bertuzzi 49 Estratégias do Serviço Social para atenuar o sofrimento e tornar a ajuda ao paciente mais humana Magda Suzana da Silva Ferreira & Laura dos Santos Lunardi 61 Cuidando com musicoterapia: 10 anos de musicoterapia no Hospital São Lucas Maria Elena S. S. Gallicchio 69 Cuidando de cuidadores de idosos Carla H. A. Schwanke & Anamaria G. S. Feijó 83 Grupo de reflexão como espaço para cuidar dos cuidadores Plinio Carlos Baú 93 Cuidando dos cuidadores em um serviço de neonatologia: quem cuida de quem cuida? Ângela Fleck Wirth 97 Programa voluntário de apoio à UTI neonatal Renato Machado Fiori, Eloana Tusi Mann & Zaira Luft 109 Normas para publicação 113 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 5 revista bioetica nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 6 o A bioética é um campo de estudo, reflexão e produção de práticas éticas na área da saúde que vem passando por grandes transformações ao longo dos mais de 40 anos de seu surgimento e progressiva consolidação. Atualmente, constitui terreno de reflexão transdisciplinar e plural, envolvendo o conhecimento de diversas áreas e buscando responder aos imperativos do contexto social no qual se insere. Nas últimas décadas, a bioética vem ampliando seu campo de atuação para fornecer ferramentas teóricas e conceituais voltadas não apenas aos conflitos da prática ou pesquisa clínicas, mas, também, àqueles que decorrem diretamente das estruturas sociais, da desigualdade socioeconômica, pobreza e exclusão; aos problemas gerados por comportamentos e hábitos de vida pouco saudáveis e aos impasses no campo ambiental que ponham em risco a qualidade de vida e a sobrevivência da espécie humana. Dessa forma, a discussão bioética incorpora desde as moralidades que manifestam as assimetrias entre profissionais, pacientes e usuários das instituições na área da saúde e da pesquisa até aquelas que subjazem à dinâmica social. Na qualidade de publicação pioneira no Brasil neste campo, a revista Bioética procura refletir tal evolução trazendo tanto artigos de interesse geral como voltados às especificidades da clínica e da pesquisa. Em todos, o debate apresentado tem como foco a preocupação de incentivar a reflexão sobre os parâmetros éticos que devem orientar a práxis, quer na atuação profissional quer na dimensão social. Alguns dos trabalhos chegam a apontar e debater, explicitamente, as moralidades e os parâmetros éticos que condicionam a prática profissional e social, enquanto outros discutem aspectos normativos, técnicos ou relacionais a elas associados. Em qualquer caso, a revista Bioética vem respondendo ao interesse do Conselho Federal de Medicina em produzir um periódico científico capaz de fomentar no país a discussão de temas de bioética e ética médica, contribuindo, assim, para o aprimoramento da prática profissional, a construção da cidadania plena e o fortalecimento da democracia. Nesse sentido, este número 1 do volume 14 traz contribuições relevantes. Restrito às seções de Artigos e Simpósio, apresenta diversos trabalhos que discorrem sobre aspectos significativos que, direta ou indiretamente, envolvem os processos de saúde e adoecimento. O primeiro artigo, Princípios de direito Editorial Clóvis Francisco Constantino Editor 7 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 7 fundamentação de decisões judiciais que conce- dem benefícios, em geral na área da saúde, sem maiores considerações acerca de suas conse- qüências na esfera das políticas públicas e na realização de outros direitos sociais de outros indivíduos, muitas vezes em ou com maiores necessidades que a do autor da ação judicial – o que causa, neste momento, perplexidade. Essa perplexidade gera três atitudes básicas. A primeira propugna pelo deficit de normativi- dade das normas constitucionais que veiculam direitos sociais, o que produz duas posições: negar qualquer ‘justiciabilidade’ aos direitos sociais1 ou conceder-lhes eficácia restrita às prestações que compõem o chamado mínimo existencial2, 3 – por exemplo, com a garantia de apenas um nível básico de saúde. A segunda não aceita restrições aos direitos sociais, seja por motivos pragmáticos (impossibilidade fáti- ca de verificação dessas restrições no processo judicial ou, no caso do direito à saúde, autori- dade do médico que prescreve o medicamento ou tratamento) ou normativos (não é com- petência do Judiciário avaliar essas possibili- dades). Essa posição prevalece hoje na jurisprudência dos tribunais brasileiros, prin- cipalmente a partir do argumento da autori- dade absoluta do médico que assiste ao autor da ação judicial. A terceira propugna solução de compromisso entre uma posição negatória de eficácia aos direitos sociais e outra que não admite restrições. Nessa terceira opção, na qual me filio4, reconhece-se a ‘justiciabilidade’ plena dos direitos sociais, porém enquanto princípios e como direitos prima facie. Essa posição será aqui apresentada em seus con- tornos gerais. O presente artigo objetiva apresentar a tese da ‘justiciabilidade’ dos direitos fundamentais sociais. Essa tese reconhece que os direitos fun- damentais sociais, em especial o direito à saúde, em geral apresentam normas que podem ser caracterizadas como princípios e como direitos prima facie. Tais direitos podem ser realizados em diferentes graus e estão sujeitos à reserva do possível. Este é o objeto do primeiro tópico. No segundo, serão propostos critérios para decisões acerca da concessão ou não de bens e serviços que satisfaçam os direitos sociais, em especial o direito à saúde. O conjunto de tais critérios e fórmulas forma a chamada proporcionalidade em sentido amplo. O terceiro tópico discutirá critérios adicionais, não jurídicos, que Perel- man denominou como princípios concretos da justiça. Reserva do possível e direitos prima facie Um direito prima facie significa que o fato de um princípio valer para um caso não infere que valha como resultado definitivo. Os princípios apresentam razões que podem ser deslocadas por outras razões opostas5, 6, 7. Desse modo, por exemplo, o direito à saúde previsto na Consti- tuição Federal é entendido como direito prima facie, que vale como razão a favor da realização do seu conteúdo normativo, que pode ser o mais amplo possível, mas que pode ser desloca- da por princípios opostos. Isso significa que esses direitos prima facie exigem realização a mais ampla possível. Entre- tanto, são admitidos graus diferentes de cumprimento. Para a definição dos mesmos 10 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 10 deverão ser avaliadas as possibilidades fáticas e jurídicas. Esse grau pode ser zero (inexistência de direito social definitivo), mediano (por exemplo, conceder medicamentos para algumas situações e negar para outras) ou máximo (o pedido é aceito na íntegra). A exigência da avaliação dessas possibilidades é chamada de reserva do possível. Portanto, somente após a análise da reserva do possível poder-se-á alcançar o grau definitivo da realização dos direitos sociais. O direito definitivo ou não-direito definitivo corres- ponde à decisão no processo judicial ou extra- judicial (administrativo, do Ministério Públi- co etc.). Cumpre verificar, então, que tipos de avaliações são realizados na reserva do possível. A reserva do possível compreende aspectos empíricos e normativos. Os aspectos empíricos estão liga- dos às condições dos recursos/bens existentes e dos recursos/bens pretendidos. Quanto aos recursos disponíveis trata-se, por exemplo, da quantificação dos recursos financeiros previstos no orçamento público, a quantidade de leitos em unidades de terapia intensiva (UTI) e de órgãos disponíveis para transplantes em deter- minado momento. Quanto aos recursos (bens) pleiteados, trata-se de verificação do seu grau de eficácia/efetividade. Os recursos para a realização dos direitos sociais são escassos e sua distribuição, caso se queira justiça, exige critérios normativos. Assim, aspectos normativos compreendem uma avalia- ção da justiça ou da correção no reconheci- mento de um direito definitivo a uma prestação social. Ela pressupõe sempre um conhecimen- to, o mais exato possível, das questões empíri- cas, preferencialmente embasadas nas melhores evidências científicas disponíveis. A Constituição, as leis e as normas infralegais (decretos, portarias, regulamentos) estabele- cem critérios a serem observados obrigatoria- mente pelos órgãos administrativos e judiciais na definição dos bens e serviços a serem presta- dos e seus respectivos beneficiários. Esses critérios podem estar relacionados a priori- dades na distribuição de bens, ou seja, critérios sobre critérios, ou em definições concretas sobre bens, serviços e destinatários. No primeiro caso, a Constituição estabelece prio- ridade absoluta às crianças e aos adolescentes quanto à saúde, educação, alimentação etc., conforme determina o art. 227. Do mesmo modo, a Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) garante prioridade absoluta ao idoso no atendi- mento à saúde, cultura etc. No segundo caso, a Lei 9.908, de 16 de junho de 1993 (Rio Grande do Sul), garante distribuição gratuita de medicamentos excepcionais a pessoas ca- rentes e a Portaria SAS/MS 449, de 8 de julho de 2002, estabelece critérios para a inclusão de pacientes em protocolo clínico para tratamento da doença de Gaucher. Se a legislação estabelecesse normas suficiente- mente claras e não-contraditórias entre si, não se necessitaria recorrer a normas ou critérios não positivados. Uma vez que muitas normas não são suficientemente claras, são por demais genéricas (como a citada garantia do direito à saúde, constante do art. 6º da Constituição), contraditórias umas com as outras ou ainda 11 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 11 omissas, faz-se necessário recorrer aos chama- dos cânones de interpretação e, inclusive, como hodiernamente se reconhece, a argumentos não-jurídicos, como é o caso dos princípios concretos de justiça. Preceito da proporcionalidade: critérios jurídicos para decisão em casos de direitos sociais O direito constitucional contemporâneo desen- volveu uma metodologia de decisão, chamada proporcionalidade em sentido amplo, que pode ser utilizada no processo de judicialização dos direitos sociais e compreende três etapas: ade- quação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Isso ocorre da seguinte forma: parte-se de um direito social prima facie que garante, de modo o mais amplo possível, prestações sociais. No caso do direito à saúde, há direito a um completo bem-estar físico, mental e social. Essa interpretação ampla do direito prima facie exige que sejam consideradas todas as medidas requeridas para alcançar esse estado. Cada uma, consubstanciada em bens e serviços, será avaliada de acordo com sua ade- quação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. No primeiro momento avalia-se a adequação ou efetividade da medida. Por exemplo, verifi- ca-se se o medicamento é adequado ou efetivo para determinado paciente. Uma medida ou prestação não será adequada se não possuir nenhuma eficácia. A questão a ser enfrentada é a de que a avaliação dessa eficácia pressupõe entendimento do fim ou objetivo a ser alcançado enquanto exigência da norma. No caso do direito à saúde, se o termo saúde for entendido como ausência de qualquer enfermidade, uma medida seria considerada adequada se levasse à cura de determinada doença. Se entendido como completo bem- estar físico, mental e social, uma medida seria adequada se conduzisse a tal estado. Além disso, como são admitidos diferentes graus de cumprimento na realização dos direitos soci- ais, uma medida é adequada, no primeiro caso, se contribuir em algum grau para a cura do paciente; e no segundo, se trouxer aumen- to de bem-estar em comparação com o estado anterior ao uso do medicamento. No segundo momento, quando da avaliação da necessidade da medida, as prestações plei- teadas pelo paciente são comparadas com ou- tras prestações não pleiteadas, mas disponíveis. Essa comparação exige a construção de escala de realização da saúde. Dito de outra forma, trata-se da avaliação do grau de eficácia de cada medida em relação ao fim a ser alcança- do. Mas, além disso, exige-se também uma avaliação dos efeitos ou impacto dessa medida nos direitos de outros indivíduos ou bens jurídicos coletivos. Ressalte-se que esse impacto também pode ser estabelecido em escalas, que podem ser triádicas simples (graus leve, médio e forte), duplas (leve-leve, leve- médio [...] grave-grave) etc. Assim, por exemplo, se determinado medica- mento pleiteado produz leve aumento de bem- estar e forte impacto em outros bens jurídicos (implicando considerável impacto no orçamen- to da saúde) e existe outro medicamento disponível que produz forte aumento de bem- 12 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 12 15 Resumen Principios de derechos y de justicia en la distribuición de los recursos escasos El objetivo de este artículo es presentar la tesis de los derechos fundamentales sociales en cuanto que principios y como derechos prima facie. Esta tesis reconoce que los derechos fundamentales sociales, en especial el derecho a la salud, presenta, por lo general, normas que pueden ser caracterizadas, a la vez, como principios y como derechos prima facie. Dichos derechos pueden ser realizados en gra- dos distintos y están sujetos a la reserva de lo posible. Se demostrarán los criterios para las decisiones acerca de las concesiones o no de bienes y servicios que satisfagan los derechos sociales, en especial el derecho a la salud. El conjunto de dichos criterios y fórmulas constituye la llamada proporciona- lidad en amplio sentido. Dichos criterios jurídicos deben de ser complementados por criterios adi- cionales como, por ejemplo, los principios de la justicia. Palabras-clave: Justiciabilidad de los derechos sociales. Derecho a la salud. Derechos prima facie. Cri- terios de decisión. Recursos escasos. Reserva de lo posible. Proporcionalidad. Principios de justicia. Abstract Law and justice principles for distributing scarce resources The present article intends to expose the thesis of social fundamental rights as principles and rights prima facie. This thesis acknowledges that these rights, specially the right to health usually are contained in norms that may be characterized as principles and rights prima facie. These rights may admit many degrees in compliance and are subject to the limits of what is possible. The article will show decision criteria for provision of goods and services that can fulfill social rights, specially the right to health. These legal criteria must be complemented by additional ones as for instance by the principles of justice. Key words: Justiciability of social rights. Right to health. Prima facie rights. Decision criteria. Scarce resources. Limit of the possible. Proportionality. Principles of justice. Referências 1. Atria F. Existem direitos sociais? Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul 2005;56:9-46. 2. Torres RL. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. Revista de Direito Administrativo 1989;177 Jul./Set:29-49. 3. Barcellos AP. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 4. Leivas PGC. Teoria dos direitos fundamentais sociais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. 5. Alexy R. Theorie der grundrechte. Frankfurt Am Main: Suhrkamp, 1996. p. 87. 6. Ross WD. The right and the good. Oxford, 1930 apud Alexy R. Op.cit. 7. Dancy J. An ethic of prima facie duties. In: Singer P. A companion to ethics. Oxford: Blackwell Publishing, 1991. p. 218-29. (Blackwell companion to philosophy). 8. Perelman C. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Contato Paulo Gilberto Cogo Leivas – pgleivas@uol.com.br revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 15 revista bioetica nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 16 o 17 BB iioo éétt iicc aa 22 00 00 66 11 44 (( 11 )):: 11 77 --22 66 Mulheres HIV/Aids: silenciamento, dor moral e saúde coletiva Lucilda Selli Petronila Libana Cechim Resumo: O presente estudo visa conhecer os motivos que levam as mulheres infectadas pelo HIV/Aids ao silenciamento da doença, bem como identificar até que ponto estabelecem relação de significado entre o silêncio e a saúde da coletividade. Estudo exploratório descritivo de natureza qualitativa, focalizou mulheres que buscaram o serviço de atendimento especializado para dia- gnóstico e tratamento do HIV/Aids, da secretaria de Saúde do município de São Leopoldo/RS. A amostra foi intencional e atingiu 98 mulheres entre 21 e 40 anos, portadoras da infecção pelo HIV ou com aids. Os dados foram obtidos por meio de entrevista semi-estruturada e agrupados em temas para posterior análise. A contaminação ocorreu quase exclusivamente por relação heteros- sexual. A crença na “fidelidade” do parceiro influencia sobremaneira a atitude silenciosa das mu- lheres. O medo e seus diferentes significados reforça, nas mulheres, essa atitude. Lucilda Selli Professora-doutora em Bioética do programa de pós-graduação em Saúde Coletiva, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos)/RS Palavras-chave: Mulher. HIV/Aids. Silêncio. Dor moral. Saúde coletiva. A síndrome de imunodeficiência adquirida (aids) cada vez mais constitui sério problema de saúde pública em todo o mundo1. A epidemia, cujos primeiros casos foram notifica- dos na década de 80, é até a presente data ainda um desafio à comunidade científica, profissionais de saúde e população em geral2, 3, 4. A síndrome desafia a revisão dos conceitos de saúde e a busca de estratégias para o controle das taxas de incidência e melhoria da qualidade de vida dos portadores do vírus HIV e doentes de aids, quer individual ou coletiva- mente. Os dados epidemiológicos mundiais mostram que novos casos da infecção atingem 14 mil pessoas diariamente – 50% dos quais em mulheres e crianças –, em sua grande maioria de países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos5. No Brasil, conforme dados do Boletim epidemiológico da aids6, entre 1980 e 2003 foram diagnosticados e notificados 310.310 casos. A epidemia atinge, principalmente, pessoas na fase reprodutiva, com baixa escolaridade. O número de mulheres heterossexuais infectadas, contaminadas por exposição sexual revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 17 portanto, na medida do possível, mantida escondida pelas mulheres, para além da “dor moral”, com seus múltiplos significados e con- seqüências, tanto individuais quanto coletivas: ...tem que calar pra si, tem que agüentar firme, sabe?! ...porque tem muito preconceito. Dos primeiros sintomas ao diagnóstico se inter- põe uma questão crucial para as portadoras do HIV/Aids, relacionada à interpretação social sobre a doença. Essa interposição é cunhada pelos estereótipos que marcam a construção do signo HIV/Aids: o que vão pensar de mim, eu sempre fui muito certinha, sei que não tive culpa de pegar, é uma dor que dói lá dentro, não sei o que vai ser de mim. Como a doença é considerada mortal, incurável e ainda asso- ciada a comportamento sexual promíscuo, estar submetida a tratamento medicamentoso não aplaca a dor moral inerente a todos esses sig- nificados, não respondendo na dimensão sim- bólica à necessidade de fazerem frente ao pro- blema. Se diagnóstico e tratamento compreen- dem uma parcela do processo de representar a doença, a “dor moral” suscitada por suas múlti- plas faces e significados socialmente atribuídos, forçados e reforçados pelo “estigma da imorali- dade”, pertence ao campo existencial. Os significados individuais e coletivos sobre a doença, produzidos e reproduzidos na dimensão simbólica, atingem as mulheres em sua integra- lidade. As entrevistadas sentem pairar dúvida sobre sua moralidade, o que afeta sua auto-repre- sentação como mulher e não apenas como por- tadora do HIV/Aids10. Considerando esse estig- ma social que ainda envolve as representações sobre a doença, o tratamento da imunodeficiên- cia adquirida implica avançar no cuidado, tendo presentes as questões suscitadas pela subjetivi- dade, influenciadas pelas representações, valores/desvalores e crenças construídos/recons- truídos sobre o problema e assimilados pelas pes- soas e pela sociedade11. O silêncio solitário em torno da aids, auto e hetero imposto, subjuga as mulheres: ...sinto vontade de ficar quieta, calar porque são todos muito de julgar as pessoas... Tá contaminado, tem que morrer para os outros. A dor silencia- da exerce sobre as mulheres uma “força maior”, que transcende, por vezes, sua vontade de enfrentamento, coragem, capacidade de fala e defesa de si mesmas com suas próprias razões: ...fiquei sabendo quando fizeram os exames, eu imaginava... Tinha muito medo que fosse ter uma doença... Fui levando... sabe como é, né? Nas mulheres, a assimilação de que a aids é “doença da imoralidade” ofusca suas noções de conhecimento/responsabilidade sobre a doença e implicações acerca do não-tratamento para a sua saúde e a saúde da coletividade. A apropria- ção da saúde e da doença, a partir de cons- truções de sentido, implica um processo de sub- jetivação. Essa construção tem a ver com as representações culturais presentes no contexto social. Os seres humanos interpretam suas experiências pelas referências simbólicas pre- sentes nos significados socialmente aceitos8. Daí a importância de conjugar mulher HIV/Aids/sociedade no processo saúde/doença/ enfrentamento. É evidente a necessidade de “despertar” nas mulheres uma postura menos ingênua com 20 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 20 relação a seus parceiros e suas promessas de fidelidade: eu não queria desconfiar dele, ele não é ‘pulador-de-cerca’ mas no dia que pulou, pegou. Aceitar silenciosamente a contaminação significa aceitar valores e padrões morais e cul- turais que perpetuam as desigualdades sociais, especialmente os relacionados às questões de gênero, nas mais diferentes esferas das experiên- cias cotidianas12. Nessas mulheres, a aquisição de poder e capacidade para o enfrentamento deriva da possibilidade de duvidar e manifestar sua indignação. Esse processo, lento e dinâmico, que deve ser assumido pelas mulheres, possibilita sua construção como sujeitos autônomos, capazes de enfrentar os “medos”, com todos os “significa- dos” implicados nas construções/desconstruções /reconstruções11 que permeiam o processo de subjetivação ao se saberem enganadas e infec- tadas. O problema do contágio/transmissão engano- sos, encetados por meio da omissão ou menti- ra, aponta a necessidade de radical reflexão sobre o respeito ao direito de o outro ter sua saúde preservada e a importância de desen- volver nas pessoas o senso de responsabilidade pela preservação/manutenção da saúde da cole- tividade. As orientações/ações/intervenções profissionais implicam tal abrangência: peguei na relação com meu ex-marido, ele me enganou, não me deixou escolher. Se eu soubesse, poderia decidir se queria pegar a doença ou não. Seria uma escolha minha, e ele não deixou isso acontecer. Se pensar é um atributo humano, refletir é atitude que reporta à individualidade dos seres humanos, processo no qual a pessoa recua da vida social e política para ponderar, no cerne de sua solidão, sobre suas vivências e circunstâncias de vida, perme- ando e contrapondo à cognição intelectual ou racional as sensações e emoções associadas e subjacentes10. Esse núcleo confrontativo mobiliza o interior humano para além da sim- ples sucessão de racionalizações morais e cien- tíficas e avança para uma ética do sujeito responsabilizado com o indivíduo e a coletivi- dade saudável. A atual realidade sanitária divulgada pelo Mi- nistério da Saúde13, que evidencia a progressiva diminuição da razão de novos casos masculi- nos/femininos – hoje em torno de 2:1 em todo o país e de 1:1 em algumas regiões –, requer a realização de pesquisas e ações de intervenção que tratem dos vários aspectos relacionados à feminização do HIV/Aids. O rápido cresci- mento da incidência do vírus no segmento feminino, a partir dos anos 90, tem desen- cadeado novas questões no complexo cenário dessa epidemia, exigindo outras abordagens que incluam como categorias de análise as relações de gênero e a sexualidade. A disseminação da infecção entre as mulheres acontece basicamente pela via sexual, por seus parceiros, sejam ou não usuários de dro- gas: sei que não tive culpa de pegar, foi meu marido que me passou. Estudos qualitativos têm demonstrado que mulheres monogâmi- cas com HIV/Aids contraíram o vírus de seus parceiros14, 15. Apesar das campanhas infor- mativas, programas de educação e métodos de prevenção disponibilizados, além da significa- tiva expressão de liberdade sexual da sociedade atual, o HIV/Aids continua mitifi- cado pelo véu da imoralidade: minha maior 21 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 21 dor foi confiar no meu companheiro. Eu sempre só tive ele. O medo do desvelamento da doença transmiti- da pelo parceiro condiciona o comportamento das mulheres, mantendo-as no silêncio sobre suas dúvidas, aprisionadas em sua dor moral e desinformadas sobre a possibilidade de tornarem-se multiplicadoras do problema pela transmissão a outras pessoas, inclusive a que ocorre verticalmente: eu soube só agora na minha última gravidez, não queria acreditar que ele ‘pulava cerca’. Além do estigma associa- do à doença, tal comportamento parece indicar um esforço reiterado para manterem-se na ilusão da “certeza” sobre o compromisso de fidelidade conjugal estabelecido com o parceiro. Diferente de grande parte das doenças trans- missíveis que acometeram a humanidade, a dis- seminação da epidemia está diretamente rela- cionada a comportamentos individuais e cole- tivos que envolvem a moralidade e, explicita- mente, a moralidade sexual. O silêncio diante da suspeita da doença e a demora na busca da investigação dos sintomas são, em parte, in- fluenciados pelo medo de descobrir a infideli- dade do parceiro. Além do empenho em negar que vive com um “parceiro infiel”, esse com- portamento é também condicionado pela necessidade de ter “coragem reativa” ao se tornar sabedora do diagnóstico: não posso crer, eu tentei apostar em um casamento que não dava... Eu estava em casa e ele me trouxe a doença... Abala toda a estrutura. Essas mu- lheres têm as suas razões para resistir a deter- minados tipos de informação que possam inter- ferir no espaço mais íntimo de suas vidas, tor- nando essa resistência sua medida de força14. Motivos como o medo do “abandono” à própria sorte, o medo do “outro”, o medo da “própria imagem” levam a esconder/silenciar a doença. A disseminação da síndrome caracteriza-se por sua extrema mobilidade, não circunscrita a fronteiras geográficas e sociais2, 16. A falsa idéia, propalada inicialmente, de que a transmissão estaria restrita a determinados grupos de pes- soas, caracterizadas como grupos de risco, criou e fomentou uma perspectiva moral distorcida, que ficou fortemente associada à doença. O aparecimento dos primeiros casos relacionados às mulheres donas-de-casa, parceiras fiéis, esposas de maridos trabalhadores, influenciou no desmascaramento da perspectiva de grupos de riscos e fez vislumbrar a vulnerabilidade fe- minina. As desvantagens sociais que con- tribuem para a vulnerabilidade das mulheres relacionam-se à dependência econômica, além da social e emocional, que se reflete em sua falta de poder para demandar proteção e esta- belecer limites e parâmetros na relação com o parceiro17. As falas das entrevistadas corrobo- ram isso, revelando uma realidade bem dife- rente da tematizada por Guimarães, para quem a mulher “família” de comportamento sexual e social exemplar correria menos risco de ser con- taminada pelo vírus do HIV14. A construção social da “imoralidade” associada à transmissão do HIV/Aids tem para suas víti- mas significados e repercussões tanto indivi- duais quanto coletivas: ...eles perguntam para mim se eu tenho e eu digo que não tenho... Tenho preconceito contra mim, me discrimi- no... Só me sinto mal de não poder falar dos 22 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 22 admitir a ruptura nas representações sociais que moldam os padrões de conjugalidade, associa- das à fidelidade e ao amor romântico. Romper o silêncio e aceitar tal conjunto de perdas impli- ca, ainda, dano à auto-imagem, em defrontar- se com a diminuição do amor próprio (auto- estima) e viver sem as garantias simbólicas que tais representações conferem. Portanto, para aumentar a efetividade na pre- venção do HIV nos programas de saúde para mulheres é fundamental trabalhar tais aspectos subjetivos que emanam das moralidades. Tal abordagem constitui aspecto fundamental tanto para ampliar o acesso e proteção das mu- lheres quanto para maior responsabilidade mas- culina em relação à sexualidade. 25 Resumen Mujeres con VIH/Sida, silencio, dolor moral y salud colectiva El propósito del estudio es dar a conocer las razones que llevan a las mujeres infectadas por el VIH/Sida a guardar silencio acerca de la enfermedad e identificar hasta qué punto ellas establecen una relación de significado entre el silencio y la salud de la colectividad. Se trata de un estudio exploratorio descriptivo de carácter cualitativo. Se enfocó a las mujeres que han buscado el servicio especializado de atención para diagnóstico y tratamiento del VIH/Sida de la Secretaría de Salud del Municipio de São Leopoldo/RS. La muestra fue intencional y trabajó con 98 mujeres entre 21 y 40 años, portadoras del VIH o enfermas de Sida. Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas semi-estructuradas y agrupados por temas para el análisis posterior. La contaminación se dio, en su mayoría, por la relación heterosexual. La creencia en la fidelidad de la pareja sexual influencia sobre- manera la actitud silenciosa de las mujeres. El miedo, y sus distintos significados, refuerza, en las mujeres, esta actitud. Palabras-clave: Mujer. VIH/Sida. Silencio. Dolor moral. Salud colectiva. Abstract Woman with HIV/Aids, silence, moral pain and collective health The study aims at understanding the reasons that make HIV/Aids infected women to be silent about the disease and to find out in which measure they establish a relation between the meaning of silence and collective health. It is an exploratory, descriptive and qualitative work. It focused on women that search specialized diagnostic and treatment service for HIV/Aids at the Municipal Health Secretariat of S. Leopoldo. The cohort has been intentionally defined consisting of 98 women between 21 and 40 years of age infected by HIV or that have already developed Aids. Data has been obtained through semi-structures interviews and divided into thematic cluster for analysis. Contam- ination has been due almost exclusively to heterosexual relation. The belief on the "fidelity" of the partner strongly influences the silent attitude of women. Fear, through its several meanings, rein- forces that attitude in women. Key words: Woman. HIV/Aids. Silence. Moral pain. Collective health. revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 25 Referências 1. Bastos FI, Malta M. As pesquisas sobre HIV/Aids no Brasil hoje: uma análise do triênio 1997- 2000. In: Parker R, Terto Jr V. (Org.). Aprimorando os debates: respostas sociais frente à aids. Rio de Janeiro; Abia; 2002. p. 9-15. 2. Mann J, Tarantola DJM, Netter TW (Org.). A aids no mundo [Traduzido por Parker R, Galvão J, Pedrosa JS]. Rio de Janeiro; Relume-Dumará, Abia, IMS, Uerj; 1993. Coleção História Social da Aids, 1. 3. Bastos FI, Barcellos C. Geografia social da aids no Brasil. Revista de Saúde Pública 1995; 29(1). 4. Bastos FI, Szwarcwald CL. Aids e pauperização: principais conceitos e evidências empíricas. Cadernos de Saúde Pública 2000; 16(01):65-76. 5. Lamptey P et al. De frente a la pandemia del VIH/Sida. Bulletin Population 2002; 57(3). 6. Brasil - Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Boletim Epidemiológico da Aids 2003. 1(12). 7. Cechin PL. Aids em gestantes: possibilidade de reduzir a infecção [Projeto de pesquisa]. São Leopoldo; Unisinos; 2001. 8. Minayo MC. O desafio do conhecimento - pesquisa qualitativa em saúde. 7ª ed. São Paulo; Hucitec/Rio de Janeiro; Abrasco; 2000. 9. Brasil. Resolução CNS nº 196/96. Conselho Nacional de Saúde. Normas de pesquisa envolvendo seres humanos 1996. 10. Bellino F. Fundamentos da bioética. São Paulo; Edusc; 1997. 11. Moscovici S. Representações sociais. Investigações em sociologia social. Petrópolis; Vozes; 2003. 12. Guilhem D. Escravas do risco - Bioética, mulheres e aids [Tese em Ciências da Saúde]. Brasília: Universidade de Brasília; 2001. 13. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Boletim Epidemiológico da Aids 2003. 1(12). Disponível em URL: http://www.aids.gov.br [16 jun 2004]. 14. Guimarães CD. Descobrindo as mulheres: uma antropologia da aids nas camadas populares [Tese de doutorado]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1998. 15. Martin D. Mulheres e aids: uma abordagem antropológica [Dissertação de mestrado]. São Paulo: Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi- dade de São Paulo; 1995. 16. Parker RP. Na contramão da aids: sexualidade, intervenção e política. Rio de Janeiro; Abia/ São Paulo; Ed. 34; 2000. p. 8-11. 17. Heise LL, Elias C. Transforming aids prevention to meet women's need: a focus on developing countries. Social Science and Medicine 1995; 40(7):931-4. 18. Czeresnia D (Org.). Aids:pesquisa social e educação. São Paulo; Rio de Janeiro; Hucitec: Abras- co; 1995. 19. Fernandéz GJ. 10 palabras-clave en bioética. 3ª ed. Navarra: Verbo Divino; 2000. 20. Pessini L, Barchifontaine PC. Problemas atuais de bioética. 4ª ed. São Paulo; Loyola; 1991. 21. Berer M, Ray S. Mulheres e HIV/Aids. São Paulo; Brasiliense; 1997. Contatos Lucilda Selli – lucilda@unisinos.br Petronila Libana Cechim – cechin@unisinos.br 26 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 26 27 Este simpósio, Cuidando dos cuidadores, congrega temas referentes a todos os que, de uma maneira ou outra, estão envolvidos em preparar e cuidar de cuidadores. Em grande parte, os artigos referem-se a vivências e experiências levadas a termo no Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Como organizador do simpósio, a partir de vivências pessoais e motivado por reportagem jornalística, dei-me conta da necessidade de discutir o tema, fundamental ao bom desempenho da prática clínica. Para tanto, com a doutoranda em Medicina Carolina Ribas do Nascimento e a secretária executiva Aline Gonçalves dos Santos, elaboramos o esboço inicial dos temas a serem abordados, convidando vários colaboradores para escrever – os quais, na maioria, aceitaram prontamente o convite. Os trabalhos apresentados foram escritos por professores de Medicina, Enfermagem, Psicologia, Serviço Social, Nutrição, Educação Física e ciências do desporto, estudantes dessas áreas, gestores de hospitais e seus colaboradores administrativos. Devem também ser destacados os trabalhos elaborados por profissionais dos serviços de apoio institucionais, colocados à disposição dos funcionários e pacientes, inclusive casos em que são utilizadas técnicas terapêuticas não convencionais – que têm se revelado excelentes coadjuvantes no processo clínico. São apresentados depoimentos de familiares que têm a tarefa de cuidar, descrevendo suas expectativas e necessidades. E ainda uma análise legal sobre os aspectos jurídico-penais da função de cuidador, especialmente quando exercida pelo médico. Cada presente trabalho levanta um aspecto do tema central, buscando relatar experiências, traduzir vivências e sentimentos relacionados ao desempenho dessas tarefas. É importante ressaltar que alguns artigos foram escritos por especialistas, enquanto outros advieram de depoimentos. Por isso, o leitor perceberá certa ausência de uniformidade, no sentido estritamente acadêmico, a qual, consideramos, será plenamente compensada no que tange à sensibilidade na abordagem dos temas. Simpósio Cuidando dos cuidadores revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 27 Mesmo que as tarefas dos cuidadores familiares sejam realizadas apenas temporariamente, ser responsável por uma pessoa que necessita de ajuda para executar ações tão simples como se alimentar e locomover os expõem, muitas vezes, a um desgaste físico e emocional que pode levar ao adoecimento. A mudança na vida de quem precisa dedicar boa parte do seu tempo ao cuidado de outrem gera cansaço, sentimen- tos contraditórios e uma carga de estresse que precisa, e deve, ser compartilhada com outros membros da família. O autor resume: familia- res devem se dividir no compromisso para não sobrecarregar uma pessoa, o que prejudicaria o tratamento2. Buscando facilitar a identificação do limite de cada um, o caderno Vida trazia uma lista de sinais que podem indicar se o cuidador está se sentindo sobrecarregado: irritação; queixas fre- qüentes; inflexibilidade na hora de tomar decisões ou realizar tarefas que precisam ser feitas; brigas constantes com membros da família ou com a pessoa cuidada; controle excessivo (centraliza tudo e não aceita dividir as tarefas com outros membros da família ou com cuidadores externos); redução do círculo social (sai menos; os amigos se afastam); problemas no trabalho (demissão; brigas com o chefe ou colegas); tristeza; choro freqüente; alterações no apetite; desinteresse em manter atividades das quais gostava. A sobrecarga física e psíquica que pode envolver a realização das tarefas diárias dos cuidadores familiares são tema do artigo E quem cuida dos cuidadores?, de Scliar, que discute o assunto a partir de uma vivência, como médico recém-for- mado. Relata ter certo dia encontrado uma se- nhora tentando amparar seu marido que, sem forças, precisava ir ao banheiro. Angustiada, essa senhora o olhou e disse uma única frase: não agüento mais! O impacto dessa sentença em Scliar parece ter sido profundo, pois o levou à seguinte reflexão: me dei conta da sobre- humana dimensão de sua tarefa. Se ela não agüentava mais, ninguém agüentaria. E é uma situação não raro enfrentada por todos aqueles a quem o destino, em algum momento, coloca na condição de cuidadores3. Para tornar ainda mais clara sua afirmação, o autor pede ao leitor que se coloque no lugar de uma mulher cujo marido tem a doença de Parkinson: é de manhã e ali estamos à volta com vários problemas: o cheiro de suor que impregnou nossa roupa, o vizinho que não aparece para nos substituir por um momento e, pior de tudo, o homem que olha e que, depois de tantos anos, não nos conhece. A respeito, o autor reflete: se é difícil imaginar essa situação, é muito pior vivê-la3. Considerando que assumir a função de cui- dador é uma situação que afeta muitas pessoas, Scliar tece algumas recomendações, resul- tantes, sobretudo, de bom-senso: 1) informe-se sobre a doença ou invalidez da pessoa de quem deve cuidar: médicos, livros, sites e periódicos podem ajudar; 2) descubra onde buscar ajuda – e a peça; 3) junte-se a um grupo de pessoas que partilhem o mesmo problema. Se esse grupo ainda não existe, forme-o; 4) obtenha momen- tos de descanso: você tem direito a eles. Evite ressentimentos em relação à pessoa de quem você cuida. Procure, sim, lembrar os bons 30 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 30 momentos – que, como os maus, também fazem parte da vida. Além desses quatro tópicos, outras providências também podem ser tomadas por aqueles que se propõem a ajudar os cuidadores a suportar o peso de suas tarefas: • cuidadores, em geral, têm dificuldade em solicitar ajuda. Ofereça a sua e cumpra o que foi estabelecido; • se houver abertura, sugira que procure ajuda psicológica; • trate o cuidador com respeito e tente se colo- car no lugar dele; • tente compreender e respeitar as razões do cuidador, mesmo que ache que isso tem um custo muito alto para ele; • evite se limitar a perguntar o que posso fazer por você? Após escutar, faça o que sente ou crê que deva fazer; • mostre interesse pelo cuidador, estimulando- o a compartilhar sentimentos, mas esteja preparado para ouvir; • estimule o cuidador a ter um tempo livre para o lazer. O cuidado ao cuidador familiar deve estender- se à dimensão institucional, englobando pro- cedimentos para atenuar o sofrimento e o estresse das famílias com pacientes internados nas unidades de terapia intensiva (UTI). A esse respeito, Leske enumera aquelas que considera ser as principais necessidades dos cuidadores familiares, que poderiam – e deveriam – ser contempladas pelas instituições e equipes: • permanecerem com seus entes queridos que estão morrendo; • serem úteis para quem está morrendo; • terem informações reais e objetivas sobre a evolução do paciente; • poderem entender o que está sendo feito e o porquê; • terem a segurança do conforto do paciente; • serem confortados; • poderem externar suas emoções; • terem segurança de que suas decisões são corretas; • entenderem as razões para a morte de seus entes queridos; • estarem alimentados e descansados4. O que se pode observar no acompanhamento aos cuidadores familiares é que, às vezes, deta- lhes fazem grande diferença. Por exemplo, o acesso a telefone, a local para fazer lanches, ao banho, podem aumentar sobremaneira a quali- dade de vida dos familiares que acompanham pacientes internados. É necessário considerar, ainda, que a tolerância das famílias a respeito de incertezas ou ambigüi- dades inerentes ao tratamento do paciente tam- bém varia. Por isso, todos os membros da equipe multidisciplinar de saúde devem emitir a mesma e constante mensagem, mesmo que cada um a expresse segundo a perspectiva de sua própria área de atuação. Uma equipe cooperativa e em contínua comunicação tende a transmitir men- sagens consistentes e coerentes, o que auxilia tanto no tratamento adequado ao paciente como na liberação de informações para a família. A família deve saber exatamente quem é o prin- cipal responsável pelo paciente e como está se envolvendo com o mesmo. Não devem ser feitas previsões muito concretas, como, por 31 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 31 exemplo, seu filho vai morrer em alguns dias, porque isso é difícil de prever e um erro pode comprometer a credibilidade. Embora toda a equipe possa participar, de algu- ma maneira, da retirada do suporte vital, nos casos em que tal providência se revela necessária a pessoa principal desse processo deve ser um médico com liderança e respeitabilidade na unidade – haja vista sua situação privilegiada para mostrar que tudo está sendo feito pelo me- lhor interesse do paciente, mesmo no caso de limitação de tratamento. Durante o processo de retirada do suporte vital, todas as distrações devem ser evitadas para que a família possa se devotar totalmente ao paciente. Desse modo, é melhor retirar os cabos e tubos e desligar os monitores. Finalmente, após o óbito, a família deve ter um momento de privacidade com o ente querido. É muito importante que a instituição se preo- cupe em oferecer cuidados para quem cuida. Cuidar bem dos que cuidam reforça a política institucional de bem cuidar. A respeito, Vnicky e colaboradores tecem considerações sobre a formação dos residentes em medicina, fazendo recomendações às faculdades e às instituições de saúde para que promovam uma educação capaz de assegurar aos pacientes a situação de sujeitos e não de objetos das práticas médicas. Dentre essas recomendações, destaca-se a que propõe o estabelecimento de critérios para asse- gurar que os limites dos profissionais estão sendo respeitados: estas instituições devem, sis- tematicamente, se questionar se alunos e resi- dentes não estão sendo pressionados a realizar tarefas para as quais não estão capacitados, não só para protegê-los mas também para ter uma atitude respeitosa e humana com aqueles que estão sendo preparados para serem humanos com seus pacientes5. A seguir, são transcritos trechos de entrevista com cuidadores familiares que evidenciam a importância de alguns dos aspectos anterior- mente discutidos, como a angústia, o medo, o estresse e a sensação de isolamento que se abate sobre as pessoas que vivenciam tal situação. Esses relatos mostram claramente a importân- cia dos cuidadores para os pacientes enfermos, bem como a necessidade de cuidar daqueles que se dedicam a essas tarefas. Os três depoimentos revelam a crescente fragilidade dos cuidadores e seus familiares ao se defrontarem com proces- sos clínicos de longa duração, que requerem acompanhamento e atenção constantes, que tendem a desestabilizar as relações familiares e sociais. Isso contribui, ainda mais, para inten- sificar a vulnerabilidade dos cuidadores familia- res que se dispõem à difícil tarefa de cuidar de seus entes queridos, acometidos por doenças graves ou incuráveis. Depoimentos de cuidadores Depoimento 1 Desde já enaltecemos a importância do tema, visto que atribuímos relevante importância à excelência técnico-profissional dos cuidadores, assim como às qualificações humanas pessoais. É normal pensarmos que, para o bem-estar do paciente, o atendimento por parte do melhor médico do hospital é o suficiente. O médico é 32 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 32 doença; segundo, ficar mais tempo com o doente para lhe dar mais segurança e carinho; terceiro, estar fora do ambiente familiar, obri- gando outras pessoas a mudarem suas rotinas para hospedar-nos. Daí a perspectiva de que nós, os cuidadores familiares, também necessi- tamos de muito carinho, compreensão e de estarmos sempre cientes do andamento dos tratamentos para nos sentirmos, pelo menos, com alguma esperança durante a internação e também na continuação do tratamento e dos cuidados em casa. Depoimento 3 Pais: Nossa filha mais nova, agora com 25 anos, teve até os 18 anos apenas doenças usuais da infância e adolescência, embora algumas situações médicas nunca tenham recebido expli- cações técnicas razoáveis, como eventuais ede- mas nas pernas, alergias inexplicáveis e grande suscetibilidade a infecções. Aos 18 anos apre- sentou a primeira cólica renal, pela presença de cálculos, que, tratada, reverteu. Aproximada- mente um ano depois, voltaram as cólicas renais, cada vez mais freqüentes e que necessi- tavam, inclusive, de internações na emergência ou na internação, algumas muito demoradas, de 70 a 90 dias. Os tratamentos propostos não resultaram em cura, apesar de mais de cem internações realizadas no hospital universitário de nossa capital, em outras cidades do Estado e em outros estados brasileiros, além dos Estados Unidos e Europa. Felizmente, no último ano, após sete anos de intenso sofrimento de nossa filha, nosso e de muitos membros de nossa família, não apresentou cólicas, embora tenha apenas retirado algumas das medicações que vinha usando diariamente. Vamos agora ao que nós, os cuidadores de nossa filha, sentíamos e esperávamos, o que nos ajudou, o que nos decepcionou e o que algumas vezes, embora inconscientemente, desejávamos aos que dela cuidavam, da maneira que não desejávamos: um dia vocês vão sentir esta dor. Então vocês saberão do que ela está falando. Nunca deitáva- mos à noite sem deixar separada a roupa para saídas de emergência. O estado de alerta era constante. Os passeios se restringiam pratica- mente a duas cidades, onde poderíamos contar com bom atendimento médico e onde esperáva- mos que acreditassem nela e em nós. As recomendações de seu médico clínico assistente e do especialista em dor, sempre a acompa- nhavam. Sempre tínhamos medo de sair, espe- cialmente deixando-a em casa. Quando saíamos, sentíamos culpa. Quando não saíamos, ela sentia culpa, porque achava que era por nossas preocupações com ela. Nas salas de emergências, normalmente, ela era bem e rapi- damente atendida, especialmente pelo pessoal das tarefas administrativas e pela enfermagem. Por raros médicos plantonistas, algumas vezes, não. Sensações muito ruins, psicológica, técni- ca e socialmente para nossa filha e para nós, ocorriam quando se aventava a hipótese de que ela estava simulando as dores, que provavel- mente estava dependente de opióides, fato que, inclusive, vazou pelo hospital. As evidências de comportamento simulador eram impossíveis de serem comprovadas, porque os fatos demons- travam [a verdade]. Quando ia urinar, numa peneirinha que trouxera dos Estados Unidos, mostrava sua base repleta de cálculos, muitas vezes mais que 25 por dia. Parecia, muitas vezes, que não acreditavam nela e em nós. Ela 35 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 35 esperava, e nós também, que os profissionais deveriam acreditar mais no que era relatado e muitas vezes demonstrado. Essa situação impôs grande sensação de culpa na paciente, o que nós e a psiquiatra que a acompanhava percebíamos. Imaginávamos que, nesta situação, nós e ela deveríamos ser acompanhados pela psicologia, o que não aconteceu. Com a exceção de dois fami- liares, especialmente uma, além de nós e nossos filhos, esperávamos apoio maior, compreenden- do melhor a situação dela e nossa, nos dando mais apoio e aliviando nossas tarefas. O mesmo pode-se dizer dos colegas e amigos, que com raras e louváveis exceções nos ajudaram e nos apoiaram. Podem ser incluídos, neste contexto, nossos superiores hierárquicos. Alguns eram extremamente atenciosos e prestativos. Outros nem tanto. Outro problema que enfrentamos foram três situações claras de risco de morte. Todas essas situações de grande risco de morte ou seqüelas graves deixaram, a ela e a nós, extremamente inseguros. Ela ficava com pavor de ficar sozinha, especialmente à noite. A partir dessas situações, nunca mais a deixamos nem por um momento sozinha no hospital. O que mais nos consolou foi a força, a determinação, a simpatia, a fé e a crença de nossa filha de que tudo acabaria bem. Nos sentimos muito felizes porque, apesar de suas freqüentes internações e sofrimento, conseguiu fazer a graduação em Belas Artes, na especialidade de Violino, e atual- mente está fazendo mestrado na Bélgica. Temos que reconhecer que nossa empregada, que nos acompanha há nove anos, foi muito dedicada, carinhosa e participativa. Irmão: Uma doença na família sempre é extremamente desgastante. Nunca se espera que alguém próximo, por quem a gente nutre um sentimento profundo, possa passar por um momento de dificuldades. Além disso, em uma família totalmente envolvida com assuntos relacionados à saúde, isso tem um peso ainda maior. A doença, por si só, já seria um grande problema, mas junto com ela existem conse- qüências que muitas vezes são mais desgas- tantes e doloridas. No caso específico de minha irmã, a falta de um diagnóstico preciso, aliado à dificuldade de encontrar uma forma de diminuir seu sofrimento, levaram todos à sua volta a ficarem totalmente desnorteados. Com isso, diversos outros problemas passaram a sur- gir. O desregramento da vida de quem cuida do adoentado gera uma crise em toda a estrutura familiar, à medida que a normalidade passa a dar lugar à excepcionalidade. Os familiares não se encontram mais, em momentos em que antes passavam juntos, e os assuntos nas rodas familiares passam a ter a doença como tema central. O abatimento pelo cansaço e o des- gaste em relação aos cuidados com o paciente ficam evidentes. Associado a isso, no meu caso específico, passei a me questionar com relação à doença, aos médicos responsáveis e até mesmo aos sintomas que minha irmã sentia. Para quem é leigo na área médica, fica muito difícil entender as dificuldades em diagnosticar uma doença e prescrever medicamentos que aliviariam os sintomas. Com essa dificuldade, criei uma barreira, sabendo que se os sintomas dela fossem os mesmos de sempre, bastava esperar que passassem e que ela voltasse para casa. Porém, era muito difícil ver o sofrimento dela e saber que não poderia fazer nada. Prefe- ria não ver, porque aquilo me machucava tam- bém. Principalmente porque sabia que nada 36 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 36 poderia ser feito. Mas o que mais me marcou em tudo isso foi a total falta de esperança na melhora do quadro de saúde dela. Além disso, a ‘normalidade’ ante as idas dela para o hospital sempre me deixava chocado. A notícia era sem- pre esperada e não me surpreendia mais. A certeza de que aquele vai-e-vem iria se perpe- tuar sempre me deixava absolutamente confor- mado, sem forças para tentar qualquer outra coisa que pudesse mudar aquela situação. Quando me dava conta, isso era o que mais me doía, até mais do que presenciar toda a dor que ela sentia. Irmã: Sempre me foi difícil lidar com a doença e convalescença da minha irmã. Nunca ima- ginei tudo o que viria a acontecer nos próxi- mos sete anos. No primeiro ano da doença dela nunca me foi solicitada grande partici- pação em seus cuidados, em função de eu estar grávida e, logo depois, em função de ter um bebê pequeno para cuidar. No ano em que ela teve a primeira internação mais longa, eu esta- va trabalhando no interior e não tinha como participar dos cuidados, mas sempre buscava saber como estava o estado de saúde dela e muitas vezes me vi aflita por não poder fazer nada para ajudar. Também não tinha com quem dividir o meu maior medo – o de perder minha irmã caçula. Sentia-me constrangida por precisar da ajuda de minha mãe nos cuida- dos com meus filhos, mas via o quanto isso fazia bem para ela e também as conversas que tínhamos quando chegava na casa dela para buscar as crianças. Sei que esses foram os esteios dela. Quando minha irmã teve alta hospitalar, novamente não imaginava que esta situação se tornaria tão grave e tão duradoura. Então, comecei a me dar conta de que as coisas nunca melhoravam. Ao contrário, sem- pre ficavam mais complicadas. Comecei a ter um sentimento irracional, mas muito ver- dadeiro e profundo, de culpa, constrangimen- to, piedade. Como podia ela, mais nova que eu, se cuidando muito mais do que eu, que sou fumante e festeira (leia-se: bebidas, noites mal dormidas etc.), estar passando por tudo aquilo e eu continuar com a saúde em perfeita ordem? Será que isso era justo? Acompanhei, da minha maneira, tudo muito de perto, sem- pre telefonando para saber notícias, dividindo minha angústia com meus amigos e tentando não aumentar a dor dos meus pais. Quanto a eles, gostaria de ter sido mais forte para poder apoiá-los mais quando via que estavam demolidos por dentro e, muitas vezes, por fora também. Infelizmente, não tive essa força. Muitas vezes fui consolada por eles e gostaria que tivesse acontecido o oposto. Talvez a mim faltasse maturidade para aceitar as coisas. A eles não. Experimentei todos os sentimentos possíveis com a reação das pessoas que estavam ao meu redor: raiva daqueles que começavam a sugerir que os problemas dela eram psicológi- cos ou de vício nas medicações ou que de- veríamos procurar outros profissionais; con- forto e amor daqueles que participavam muito comigo no turbilhão de más e boas notícias que eu recebia várias vezes por dia quando ela estava hospitalizada; tristeza com a indiferença demonstrada por algumas pessoas e admiração por aquelas que me fizeram sempre acreditar que tudo daria certo no final. Obrigada pelo carinho de todos aqueles que me emprestaram seus ombros para chorar e aqueles que me estimulavam a abstrair a situação e manter 37 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 37 revista bioetica nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 40 o 41 BB iioo éétt iicc aa 22 00 00 66 11 44 (( 11 )):: 44 11 --44 88 Um olhar reflexivo: os que cuidam dos cuidadores Rosa Maria do Carmo de Melo Wald Resumo: Este artigo procura apontar a perspectiva dos doentes e sua família frente a um diagnósti- co recente e desfavorável, analisando suas fragilidades e o sofrimento inerente à situação. O objeti- vo principal é o respeito ao ser humano, sua vida, em toda a amplitude – características essenciais, também, a quem desenvolve atividades na área da saúde. Rosa Maria do Carmo de Melo Wald Pedagoga, habilitada em educação infantil pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), especialista em Educação Inclusiva pela Universidade Castelo Branco e professora de educação infantil do Colégio La Salle Santo Antônio Palavras-chave: Diagnóstico. Doentes e familiares. Escutar. Enxergar. Compartilhar. Descobri que o mais alto grau de paz interior Decorre da prática do amor e da compaixão. Quanto mais nos importamos com a felicidade De nossos semelhantes, maior o nosso próprio bem-estar. Dalai-Lama Cuidados: casos e relatos Quando se fala de vida, vem à mente o nascimento, com sua toda energia e força. Essa força deve permanecer com as pes- soas, manifestando-se durante os momentos desafiadores e, até mesmo, dolorosos da vida. É importante pensar que a história de cada indivíduo inicia-se com a disputa do esper- matozóide para fecundar o óvulo. Na corrida pelo direito de formar a vida1, desde os primeiros instantes em que é gerado, o ser humano passa a ser cuidado e amado por aqueles que irão cercá-lo após o nascimento: pais, avós, tios e amigos. Atrelada a esses sentimentos há uma expectativa de vida plena e feliz. A perfeição toma conta do imaginário; é como se a criança já estivesse ali: linda, perfeita e maravilhosa. Porém, o destino – uma caixinha de surpresas – muitas vezes coloca as pessoas frente à frente com o inesperado; traz notícias jamais pressentidas. No momento em que a realidade esfacela o sonho da perfeição, deve-se estar atento a cada gesto e palavra usados para transmitir os fatos aos familiares e pessoas ligadas ao paciente. revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 41 Passar tranqüilidade, respeito à dor, a convicção de que cada paciente é muito importante e pre- cisa ser amado, fará toda a diferença. Nessa cir- cunstância, os especialistas devem ter a sensibili- dade de transformar a dor em luz, não negando os fatos nem omitindo o diagnóstico, mas trans- mitindo no olhar força, fé e a certeza de que valem a pena todos os esforços na caminhada vindoura. Pois são os gestos carinhosos que fazem a diferença, capazes de confortar e possi- bilitando entender que o tempo inexiste quan- do a dor e a incerteza permeiam nossas vidas. Se a vida é um eterno aprendizado, apren- demos quando entendemos que a dor do outro dilacera. Aprendemos ainda mais no momento em que encontramos as palavras certas, simples e corajosas, para falarmos sobre o valor da vida e do amor, que se abriga no coração de todos os valores humanos. Este artigo considera esses sentimentos, buscando descrever as situações passo-a-passo, sempre cuidando para não expor os cuidadores, mas sim ajudá-los a enfrentar momentos difíceis. Envolvimento dos profissionais versus família Falar de envolvimento é falar de amor, troca, respeito, todos os sentimentos que permitem que os seres humanos sejam muitos e ao mesmo tempo um só: a diversidade e a identi- dade; a pluralidade e a universalidade. Ao falar de sentimentos é preciso ter a compreensão de que, quando se percorre caminhos difíceis, faz- se necessário o apoio de alguém, para dividir os anseios, dúvidas e incertezas que inevitavel- mente surgem ao se lidar com a vida. Às vezes, por circunstância inesperada, o ca- minho torna-se tão obscuro que os familiares de alguém acometido por uma doença sen- tem-se ‘fora de órbita’, por assim dizer. O chão desaparece e, no lugar dele, sensações novas e atemorizantes assomam as pessoas. As famílias que vivenciam tal fato se sentem, muitas vezes, cercadas por culpa e mágoa. É nesse instante que seus olhares clamam por um “colo” e por palavras silenciosas; para sen- tirem-se vivos, amados e amparados. Tanto na saúde como na educação, o envolvimento ocorre na troca do primeiro olhar, o cuidado em saber o nome da pessoa doente à sua frente (seja criança ou adulto), bem como o de seus familiares. A cumplicidade assim estabelecida será o ponto de partida para uma aprendiza- gem harmoniosa e aumento das chances de sucesso da recuperação. Na educação, ao fazer uma avaliação torna-se imprescindível ser competente no parecer, mas, fundamentalmente, ter habilidade ao relatar as dificuldades dos educandos a seus familiares – os quais chegam sem saber porque estão ali, buscam respostas, soluções, mas principalmente ajuda. Para ajudá-los, necessi- tamos primeiro conhecer a família, saber os nomes de seus integrantes e suas histórias, conversar com eles e, de fato, ouvi-los, pois isso desenvolve a confiança. A confiança é a base da sintonia que permite à família não se sentir ameaçada pelo problema que enfrenta, incapaz ou até mesmo fracassada. Esse envolvimento facilitará o crescimento de todos, possibilitando novas formas de apren- dizagem para o educando – fato que, de forma análoga, também ocorre na área da saúde. 42 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 42 toma proporções tão grandes que, muitas vezes, os deixa “fora de si”. Nessas ocasiões, faz-se preciso que os cuidadores tenham a consciência de como é doloroso para os doentes e seus familiares receberem a resposta positiva do exame, um retorno seguido de expli- cações confusas, que parecem fora do contexto, pois para eles, até pouco tempo, tudo estava per- feito, maravilhoso e sob controle. Nesse momen- to o especialista precisa, mais que nunca, tornar- se um especialista no afeto e no amor, para poder transmitir segurança ao doente e seus familiares, tendo sensibilidade para saber como falar e explicar o que está acontecendo. O fato de os pais e familiares sentirem-se cuida- dos e amparados não anula a sensação de impotência, mas os ajuda a diminuir a dor e angústia. Minimiza as sensações em busca de respostas, que muitas vezes não virão mas podem ser transformadas em novos caminhos que certa- mente aliviarão a dor. Pois nem sempre o cami- nho da cura está agregado a respostas rápidas ou exatas, mas sim na perseverança de querer viver. Estratégias de enfrentamento: como ajudar a família A partir do momento em que o doente e/ou seus familiares começam a ter a consciência da situação que estão vivendo, sentem-se desespe- rados, com medo, tomados por uma angústia tão grande que muitas vezes acabam por sepa- rar-se, em vez de permanecerem unidos. No primeiro momento, desejam soluções mágicas para terminar com a dor e a ansiedade, e os sen- timentos tendem a ficar confusos. Precipuamente, a equipe acompanhante deve passar calma, conforto, demonstrar que existe um procedimento traçado para vencer o desafio. A forma de conduzir esse processo será fundamental para que todos entendam que o medo que sentem é natural. A equipe pode aju- dar os familiares mostrando que a dor pode ser minimizada e se tornar estímulo para que lutem com mais garra e determinação. Na educação também estão presentes esses sen- timentos. Quando os educandos não conseguem aprender em uma educação convencional ficam frustrados, ansiosos e a aprendizagem não acon- tece. Nessa circunstância o educador necessita fazer uma reflexão, rever seu papel, remodelar conceitos e criar uma maneira diversificada de construir o conhecimento, respeitando o ritmo de cada pessoa, seus pensamentos e tempo. Cury1 afirma que devemos educar a emoção com inteligência. E o que é educar a emoção? É estimular o aluno a pensar antes de reagir, a não ter medo do medo, a ser líder de si mesmo, autor de sua história, a saber filtrar os estímu- los estressantes e a trabalhar não apenas com fatos lógicos e problemas concretos, mas tam- bém com as contradições da vida. O valor das palavras: fé, sonho, tempo Não existe palavra mais forte em todo o plane- ta do que fé – pequena, simples, mas com uma força capaz de mover montanhas. Quando dizemos que ter fé é ter tudo, não estamos falando provérbios, mas da mais intensa ver- dade. É infinitamente necessário repassar esse 45 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 45 sentimento para os doentes, familiares e amigos dos que estão envoltos em um período de desconforto e incertezas, pois somente ela será capaz de possibilitar o entendimento necessário à clareza da razão. A fé está atrelada a nossos sonhos, esperanças, realizações. Associa-se aos processos de supera- ção, a tudo o que for mágico e infinitamente bom. Quando faltam todas as outras expli- cações, só Deus pode proporcionar respostas, falando à emoção que toma todo o espaço da razão. Se os textos religiosos dizem que a fé é capaz de remover montanhas, também subli- nham a importância de partilhar; a união de várias pessoas reunidas, clamando pelo amor e o verdadeiro valor da vida. A Bíblia Sagrada atribui a Jesus a afirmação: onde dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles4. Essas palavras são mais do que sábias, expressam uma necessidade fundamen- tal dos seres humanos: compartilhar a existên- cia uns com os outros, especialmente nos momentos de dor e sofrimento. É muito difícil para os familiares verem seus entes queridos sofrer, pois não desejamos que as pessoas a quem amamos fiquem presas a uma cama ou a dificuldades. Quando isso ocorre, parece que os sonhos e desejos felizes e saudáveis precisam deixar de existir. Mas justa- mente nesses instantes devem, mais que nunca, estar presentes, pois podem impulsionar ca- minhos de conquistas. Sabendo catalisar e fomentar esse sentimento profundo, os profis- sionais envolvidos com o doente e sua família podem incentivar uma nova história, mais rica e verdadeira. Ao ajudar os que sofrem a va- lorizar cada minuto da vida, estarão con- tribuindo para a transformação do tempo, que deixará de ser longa e torturante espera, tor- nando-se um aliado que guarda a esperança no futuro. Conseguir olhar para o paciente e sua família e perceber o quanto suas vidas são importantes para toda a equipe, é oferecer-lhes novamente a vontade de lutar e acreditar num dia melhor. Sem negar a certeza de que a vida é território momentâneo, que tudo passa, os cuidadores podem alimentar no doente e em sua família a fé nos sonhos e o desejo de ser feliz. Mesmo nos casos em que a recuperação é impossível e o desenlace inevitável, esse desejo pode aplainar o caminho do doente, contribuindo para mini- mizar seu sofrimento. Momento de reação Muitas vezes, os profissionais dizem aos doentes ou familiares a famosa frase: vocês pre- cisam ser fortes. Porém, se efetivamente obser- vassem a reação causada por essas palavras teriam a certeza de que muitos gostariam de ouvir qualquer outra coisa, pois força é algo que, desde o início, tentam achar em si mesmos para enfrentar a complexa situação. Os cuidadores precisam estar sensíveis às neces- sidades da família. Saber que a fragilidade é, até mesmo, uma forma de a pessoa sentir-se ainda viva. Nesses instantes, nos quais a realidade torna-se dura e amarga, as pessoas necessitam das lágrimas, mesmo que para sentir o calor dos próprios corpos. É como se, com as lágrimas, fossem capazes de retirar todo o rancor do 46 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 46 momento e a sensação de perda ante o diagnós- tico sombrio. Em tal situação, as famílias pre- cisam vivenciar essa desestabilização para con- seguir pensar com a razão, traçar um caminho. Agora, mais do que nunca, o “colo” torna-se necessário para que entendam o que está aconte- cendo e quais os passos a seguir. E que deverão ser realmente fortes para lidar com a situação. Para tanto, a ajuda de profissionais experientes é fundamental. Eles podem auxiliar os doentes e seus familiares a entender que todos os seus sentimentos, mesmo os violentos e contra- ditórios, integram o momento, que pode pare- cer-lhes infinito e desesperador. Nesses instantes, cabe acarinhá-los e dizer-lhes: vocês são vencedores. Acreditem em seu caminho e ele os levará à vitória. 47 Resumen Una mirada reflexiva: quienes cuidan de los cuidadores Este artículo intenta exponer la perspectiva de los enfermos y de su familia frente a un diagnóstico reciente y desfavorable, analizando su fragilidad y el sufrimiento inherentes a la situación. Actuando en el área de la educación, la autora tiene como objetivo principal la promoción del respeto al ser humano, y a su vida en toda su amplitud, características esenciales también de quien desarrolla sus actividades en el área de la salud. Palabras-clave: Diagnóstico. Enfermos y familiares. Escuchar. Mirar. Compartir. Abstract A reflective glance: those who care of caretakers This article aims to point out the perspective of sick people and their family in the case of a recent and non-favorable diagnosis, analyzing their fragility and suffering, which is inherent to this kind of situation. The author, who works on education, have as the main objective the respect to human beings, their life in its amplitude, essential characteristics also to those who develop activities in the field of health. Key words: Diagnosis. Sick people and family. Listening. Seeing. Sharing. Referências 1. Cury A. Você é insubstituível. Rio de Janeiro: Sextante, 2002. 2. Peixoto MA. Uma luz de esperança em um mundo especial. Porto Alegre: Editora Aurora, 2006. 3. Meyer DJ. Pais de crianças especiais. São Paulo: M. Books, 2004. 4. Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica Internaciona/Paulus, 1990. Edição Pastoral. Contato Rosa Wald – rosawald@issa.com.br revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 47 Culpa, ansiedade e vergonha são sentimentos que se aproxi- mam da raiva. Todos são socialmente conotados de maneira negativa, estando associados à ausência de qualidades morais do indivíduo. Por isso, existe tendência a ocultar tais emoções em relação a alguém, especialmente aos enfermos. Entretan- to, essas emoções se revelam por outros modos1. Frente a isso, ocorrem as mais diversas reações, dependendo da estrutura de personalidade de cada indivíduo. Quando um familiar neces- sita internação hospitalar, seus cuidadores, caso existam, pas- sam a viver com a mesma intensidade o sofrimento daquele que padece. Muitos aspectos derivados da prática de observân- cia diária da realidade desses cuidadores, imersos no ambiente hospitalar, permitem perceber o modo como lidam com as incertezas da doença, o prognóstico e como reagem ante a possibilidade da morte2. Entendendo as reações do cuidador Muitos cuidadores abdicam de suas próprias necessidades e tarefas para acompanhar o enfermo, caso precise de auxílio ou atenção. Nessas circunstâncias observa-se no enfermo a perda gradual da identidade, da autonomia de “ir e vir”, da iniciativa para realizar ações básicas do cotidiano como, por exemplo, tomar banho, escovar os dentes, entre outras, relacionadas ao trato e à higiene pessoal. Acompanhar essa espécie de confina- mento provoca estresse entre os familiares, favorecendo a eclosão do sofrimento psíquico, que tende a macerar a vitali- dade dos que se dispõem a cuidar. Assim, acompanhar e cuidar de familiares enfermos internados em instituições hospitalares pode causar efeitos iatrogênicos se também não houver o acompanhamento desses cuidadores leigos por um profissional de saúde: o cuidador também precisa ser cuidado. Precisa de alguém que lhe dê suporte, que lhe ofereça proteção e apoio, facilitando seu desempenho, compartilhando, de algum modo, sua tarefa3. O cuidador se depara (e identifica) com as angústias e confli- tos de quem é por ele cuidado. Em decorrência, sente-se, 50 Letícia Domingues Bertuzzi Formanda em Psicologia pela PUCRS e estagiária de Psicologia Clínica do Hospital São Lucas revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 50 freqüentemente e com demasiado rigor, impeli- do a dispensar-lhe a máxima atenção possível, mesmo quando reconhece não possuir os recur- sos necessários e adequados para fazê-lo3. Por conseguinte, isso tende a acrescentar mais angústia às já existentes. Ao se avaliar a situação dos cuidadores, percebe-se sua vulnerabilidade frente ao cuidado durante a hospitalização do enfermo. Esses rompem os laços familiares, cul- pam-se por atitudes ou pensamentos retrógra- dos e se exigem sempre mais. Em virtude disso, profissionais da área de saúde, mais precisa- mente os da psicologia, necessitam analisar os efeitos deletérios dessas ações, apontando novos contornos para tais práticas e sugerindo novos afazeres que possibilitem ao cuidador perceber que a qualidade do cuidado dispensado importa mais ao enfermo que a quantidade. O que leva os indivíduos a serem cuidadores? O cuidador pode exercer seu papel como um ato de amor: dos pais para com os filhos, dos filhos para com os pais, das esposas para com os mari- dos e vice-versa, não desconsiderando relações de parentesco longínquo ou as de amizade. Muitos indivíduos, em função de características idiossin- cráticas de personalidade, têm a necessidade de cuidar como se fosse um imperativo, já que care- cem desse ato para sentirem-se “importantes e úteis”. Outros, em contrapartida, precisam do cuidado para que a cada instante a própria existência seja confirmada, ganhando relevo, sig- nificado e finalidade à medida que recebe o olhar do outro. Há também os que realizam o cuidado por afeto, amor, carinho, culpa e, na pior das hipóteses, por não ter escolha. Winnicott mostra que certas tendências no crescimento da personalidade caracterizam-se pelo fato de nunca chegarem a se completar e de serem verificáveis desde o início da vida4. A manifestação de tais tendências no crescimento da personalidade evidencia a demanda de apoio do indivíduo ao ambiente, em qualquer idade de sua vida: o desejo de que alguém o auxilie a sobreviver, a se desenvolver psicologicamente em um ambiente favorável5. Essas característi- cas são determinantes da qualidade, ou não, do cuidado. Na prática diária das equipes de saúde se pode perceber a extrema importância de identificar esses aspectos nas ações do cuidador, para que melhor se possa auxiliá-lo e orientá-lo. A perda da crítica consciente no cuidador pode gerar reações ambíguas, que oscilam da doação extremada à raiva dissimulada. É importante ressaltar que isso nem sempre chega à cons- ciência, devido aos sentimentos de culpa que levam o cuidador a tecer inúmeras racionaliza- ções, como: se eu não fizer, quem vai fazer? Só eu sei cuidar. Não posso me afastar, pois pode acontecer alguma coisa... Esses enunciados são tão presentes e pontuais que o indivíduo fica refratário à ajuda, esterilizando a possibilidade de “escuta” que pode vir a aliviá-lo dos encargos a que se impõe. É possível observar o movi- mento que vai da gratidão à resignação em relação ao enfermo, evidenciando um ciclo que oscila entre o cansaço físico e o emocional; a perda de liberdade na administração dos próprios horários; a excessiva responsabilidade; os sentimentos de solidão, impotência e tris- teza. Em decorrência de estar exposto a esse conjunto de circunstâncias, o cuidador se sen- tirá internamente como em cárcere privado. Tal 51 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 51 sentimento pode desencadear irritabilidade, agressividade, tensão, isolamento, ansiedade, a sensação de estar “sem saída”, que, dependendo da intensidade, podem levar ao desenvolvimen- to de doenças psicossomáticas. O que leva o cuidador a cuidar Por que cuidamos uns dos outros? Quando uma doença é diagnosticada, familiares descrevem culpa frente à situação: por que não pedi que fosse antes ao médico? Entretanto, esse senti- mento em relação ao acamado tem origem prévia à doença, pois, como anteriormente cita- mos, quem, em algum momento de raiva, não desejou, ainda que inconscientemente, que o outro se desse mal de algum modo? A doença tende a ser interpretada, em certa medida, como reflexo desse desejo reprimido. Segundo Kübler-Ross, quando alguém, em uma família, é acometido de uma enfermidade os demais membros submetem-se a variados estágios de adaptação. Esses períodos, seme- lhantes aos enfrentados pelos próprios pa- cientes, caracterizam-se por sentimentos de raiva, barganha, depressão, aceitação1. Quan- do o enfermo vive o a fase da raiva, os cuidadores informais e parentes próximos enfrentam, também, a mesma reação emo- cional. Geralmente, sentem-se frustrados por não conseguir dar assistência ao doente e não ter o poder de curá-lo. A impotência frente a essa situação, por outro lado, pode gerar sentimentos contratransferen- ciais de repulsa nos cuidadores, manifesto pelo desejo ou efetivação do abandono do enfermo. Logo, torna-se essencial proporcionar “escuta” a essas pessoas, pois essa intervenção lhes per- mite entrar em contato com o conteúdo ver- balizado e, dessa maneira, preparar-se melhor para lidar com um fato não desejado e a frus- tração e sofrimento dele decorrentes. Ademais, se não lhes forem concedidos tais momentos de reflexão, de contato íntimo com os seus pensa- mentos e receios, podem vir a desenvolver patologias, uma vez que renunciam à própria vida, fundindo-a a do paciente. Essa alienação tende a advir do cansaço físico e emocional, bem como do aprisionamento e excessiva carga de responsabilidades demandadas pelo paciente. O cuidado realizado com equilíbrio emocional em relação à pessoa a quem amamos, mesmo que envolva os desajustes a ele inerentes, traz um sentimento maior: a sensação do dever cumprido. Estratégias da psicologia: atividades que visam “cuidar” dos cuidadores Conforme o desejo do cuidador, é importante que a psicologia o apóie, utilizando a escuta dinâmica e a empatia para prestar-lhe um “bom cuidado”. Em consonância com o conceito proposto por Winnicott, Campos afirma: no holding a mãe cuida de seu filho e tãosomente com seu carinho e dedicação alivia suas tensões e mal-estares corporais. Através de sua empatia, coloca-se no lugar do mesmo e procura ‘adivi- nhar suas necessidades’6. Destarte, a equipe deve, dialeticamente, tomar consciência do fato de ser cuidadora, de representar essa mãe que compreende “seu filho” e que, além de entender suas necessidades, muitas vezes se antecipa aos seus desejos. 52 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 52 si, para que novas habilidades venham a somar-se ao repertório de atividades conjun- tas, repercutindo num sentimento recíproco de se sentir útil e produtivo; • Encorajar a visita de madrinhas e padrinhos aos pais-cuidadores para que se sintam apoiados e valorizados no interesse por seus filhos; • Oferecer uma sala, como possibilidade de folga no cuidado, onde os cuidadores possam descansar, conversar e assistir televisão, entre outros afazeres. Exemplos de abordagem psicológica Para tornar mais explícito esse conjunto de práticas relacionadas ao bem-estar dos enfer- mos, seus cuidadores familiares e equipes profissionais, elencadas anteriormente, sele- cionamos, a seguir, dois exemplos nos quais são descritas, na forma de relato, a abordagem ao familiar cuidador em consulta psicoterápica, bem como técnicas destinadas a apoiar à equipe. Abordagem psicológica ao familiar cuidador Paciente com câncer de mama. Após um ano de tratamento e significativa melhora do quadro clínico, apresentou metástase, o que revelou para a família a gravidade do caso. O marido tornou-se o principal cuidador, porque os filhos se dedicavam exclusivamente às ocu- pações profissionais e moravam no interior – mas sempre se mostraram carinhosos e presentes quando podiam dividir o cuidado com o pai. A paciente começou a se mostrar irritadiça e seus traços onipotentes se acentuaram. Negou o avanço da doença, não querendo saber a verdade; no entanto, não se omitiu à realização dos tratamentos propostos. Quan- to mais o marido a cuidava, mais se tornava déspota, exigindo que ele a levasse ao traba- lho. Vale mencionar que, a essa altura dos acontecimentos, a paciente já estava impossi- bilitada de exercer seu ofício. Como resulta- do, o marido solicitou ajuda psicoterápica, alegando que a esposa era “terminal”. Na consulta, a primeira intervenção focalizou o uso da palavra “terminal” pelo cuidador fami- liar, em relação ao que o profissional teceu a seguinte consideração: enquanto existir vida haverá luta, já que somente a morte denota tér- mino. A intervenção tranqüilizou o familiar da enferma, a qual passou a ser examinada acerca do que lhe estava incomodando. Esse tipo de intervenção é muito importante, pois o cuidador, ao mesmo tempo em que teme perder o familiar, inconscientemente deseja o desen- lace para se “livrar” do acontecimento imi- nente, iludindo-se de que, assim, sofrerá menos. Seu relato referia-se a queixas ligadas à sub- missão, porque temia desagradar à esposa doente. A partir desse dado, trabalhamos grada- tivamente a impotência e a raiva subjacentes ao seu discurso. Com dois meses de tratamento, aborrecido, comentou que a esposa reclamava de seu sono agitado. Portanto, com o fito de não incomodá-la, foi dormir no quarto ao lado, sem consultá-la previamente. Na semana seguinte, a paciente, no café-da-manhã, disse 55 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 55 que o café estava fraco, decidindo que, a partir daquele momento, não faria mais aquela refeição com ele. Mediante o exposto, assinalamos que o medo e a raiva latentes de ambos estava causando um afastamento significativo. A atitude de dormir em outro quarto representava um modo ativo/passivo de expressar o descontentamento e a perda. Quando o paciente pôde verbalizar e entender seus sentimentos, percebeu os aspec- tos neles subjacentes e passou a colocar limites à conduta da esposa. Essa atitude propiciou o retorno espontâneo de um diálogo amoroso, há muito preterido, levando, como conseqüência, o marido a voltar partilhar o mesmo quarto com sua mulher. A esposa nunca mais recla- mou do sono do marido, ocorrendo, como indí- cio da harmonização do conflito, a significativa diminuição de sua onipotência e respectiva intransigência. Em suma, enquanto o enfermo e o cuidador se tornam vítimas ou algozes por uma necessidade maior – doença e possibilidade de morte –, sen- timentos muito primitivos, como os encontra- dos na vida fantasmática dos bebês, são desper- tos. Então, o paciente, à semelhança dos recém-nascidos que acham o leite materno insuficiente e mordem o seio que é sua fonte de alimento, tende a agredir ou repudiar os que desejam ajudá-lo. Com efeito, enfermo e cuidador temem a mesma coisa: a patologia e a morte. Os dois receiam ou sentem raiva do abandono imi- nente. Amiúde, o acamado solicita ao cuidador que não o deixe só nem por um segundo, pois sente raiva (e inveja) dos que têm boa saúde e daqueles que continuarão vivendo, ao passo que ele morrerá. Por sua vez, o cuidador se ame- dronta e enraivece porque sente estar, gradati- vamente, perdendo alguém que ama: aquele que o gerou (no caso de um filho) ou que o escolheu (quando se trata do cônjuge, parceiro ou amigos). A recíproca quase sempre é ver- dadeira. Sentimentos inconscientes de caráter narcisista estão presentes, aparecendo por intermédio de sintomas que relatamos ao longo do trabalho: paciente passivo, algoz ou vítima; cuidador ativo, algoz ou vítima. Os pólos são contrastantes e os profissionais da área de psicologia, quando sintonizados nesta atividade, mostram-se mais preparados para realizar essa leitura com a devida profundidade, revelando à equipe cuidadora que dinâmica melhor favorece o enfermo, os familiares e a própria equipe. Abordagem psicológica à equipe cuidadora Paciente feminina, 38 anos, em estágio avançado de câncer pélvico. No último mês em que esteve hospitalizada, permaneceu medicada com morfina, estando consciente. Seu marido era o principal cuidador e o casal tinha quatro filhos: de 5, 7, 11 e 13 anos. Uma estagiária de psicologia mobilizou-se com a situação da paciente, cujo sofrimento era muito acentuado. Além disso, tanto a equipe da oncologia quanto a da psicologia estavam consternadas com o fato de que a paciente deixaria quatro órfãos. 56 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 56 Na fase terminal, a estagiária pediu minha ajuda – uma vez que desempenhava a função de supervisora local do estágio – para a rea- lização de uma entrevista de despedida com os familiares da paciente, incluindo irmão, mãe e filhos. Conduzi, então, a entrevista, estimu- lando que as crianças verbalizassem o quanto estavam cientes do estado de saúde da mãe. Paulatinamente, cada um foi dando voz às suas percepções e, à medida que informáva- mos, fazíamos também a leitura do sofrimen- to expresso por cada membro da família. Após uma uma hora e quinze minutos de entre- vista, verificamos que as crianças já tinham condições de visitar a mãe. Dirigimo-nos à unidade e, antes de entrar no quarto, preparamos a paciente para o contato com os filhos. Ela estava aos prantos e falou que queria ficar bem para que as crianças não se assus- tassem. Ajudamos a equipe da enfermagem no preparo da paciente, solicitando o mínimo de manipulação, pois estava tomando banho e a dor aumentava com qualquer movimento. O preparo foi um timing para mim, para a paciente e para a família, que estava do lado de fora do quarto. Confesso que foi um tempo necessário para todos, porque seria um momen- to muito importante para a vida de cada um. Depois de respirarmos fundo, entramos. Os filhos, espontaneamente, se aproximaram do leito, subiram na “escadinha” e chegaram perto da mãe para conversar e beijá-la. O con- tato com a paciente durou mais ou menos 15 minutos, contudo, permanecerá “eternizado” para esses familiares. As crianças ora pegavam na minha mão e demonstravam querer ficar mais, ora pediam para dar tchau e ir embora do quarto. Após algum tempo a própria paciente aludiu estar “cansada” e querer “dormir”. Saímos para o corredor e a filha mais nova pegou na minha mão, falando bai- xinho: tia, por que o mano está chorando? Expliquei que ele estava triste, que era normal sentir-se assim e chorar. Chamei o pai para perto e nos abraçamos coletivamente, quando a menina, então, também começou a chorar. Comentei que estavam tristes por temer a perda da mãe, mas, em contrapartida, tinham um pai que era “pãe”: pai e mãe. A menina sorriu, achando engraçado e concordou: é, o papai agora é a nossa mamãe. Afastei-me um pouco, deixando que vivessem a intimidade alcançada naquela atmosfera. Posteriormente, a avó e o tio os levaram para a escola, enquan- to o pai seguiu cuidando da esposa, que sobre- viveu por mais dois dias. Naquele abraço ocorreu, de certa forma, um processo de continência mútua em que a espontaneidade serviu de apoio para todos. A morte da paciente coincidiu com um feriadão e a estagiária não telefonou para a equipe para saber como estava a paciente – ficando choca- da ao retornar e deparar-se com a notícia. Em supervisão, foi visto que o fato de a estagiária não ter buscado notícias sobre o estado da paciente tinha relação com a perda recente de uma amiga muito próxima. Ficou claro que esse comportamento refletia a tentativa de defe- sa contra o sofrimento que sabia ser inevitável. Nesse caso, havíamos percebido consciente e inconscientemente que tanto a estagiária 57 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 57 revista bioetica nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 60 o 61 BB iioo éétt iicc aa 22 00 00 66 11 44 (( 11 )):: 66 11 --66 77 Estratégias do Serviço Social para atenuar o sofrimento e tornar a ajuda ao paciente mais humana Magda Suzana da Silva Ferreira Laura dos Santos Lunardi Resumo: Este artigo discorre sobre as atribuições do Serviço Social, contextualizando-as à luz das transformações na dinâmica dos serviços de saúde propostas pela Reforma Sanitária brasileira. Descreve as características de um processo de assistência voltado à integralidade do usuário, enu- merando ainda as diversas atividades destinadas a implementar tal prática, realizadas pelas profis- sionais da área atuantes no Hospital São Lucas, da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS). Magda Suzana da Silva Ferreira Assistente social, especialista em segurança do trabalho, violência doméstica e terapia de família e casal Palavras-chave: Serviço Social. Assistência. Cidadania. Emancipação. Intervenção. A doença, normalmente, causa rupturas na organização familiar. Nos casos graves, que requerem hospitalização, observa-se ser esse um momento difícil tanto para o paciente quanto para seus familiares. A enfermidade altera a realidade, provocando impacto no cotidiano da família e obrigando-a, entre outras coisas, a adaptar-se às regras institucionais. O trabalho com pessoas hospitalizadas e seus familiares torna visível a vulnerabilidade que acomete todos os que passam por essa situação, mostrando a importância da luta pela huma- nização do atendimento. Isso fica ainda mais evidenciado quando se considera que, além de estarem vivendo um momento de fragilidade e ansiedade devido à enfermidade, muitas pessoas têm seu sofrimento agravado por desco- nhecerem seus direitos de cidadania. Segundo Iamamoto, pode-se verificar ser de suma importân- cia para os assistentes sociais, em qualquer âmbito de atuação, captar as novas mediações e requalificar o fazer profissional, atribuindo-lhe particularidades e descobrindo alternativas de ação. A autora afirma que um dos maiores desafios atual- mente enfrentados pelo assistente social é o de desenvolver sua capacidade de decifrar a realidade para construir propostas de trabalho criativas, capazes de preservar e efetivar direitos, a revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 61 62 Laura dos Santos Lunardi Assistente social e terapeuta de família e casal partir da demanda emergente no cotidiano1. Enfim, ser um profissional propositivo e não apenas meramente executivo. Os atributos profissionais do assistente social conferem-lhe competência para propor novas formas de tratar os problemas, negociar seus projetos com as instituições, defender o seu campo de trabalho, qualificações e funções profissionais. Seguindo a proposição acima, o Serviço Social busca trans- formar o contexto da atividade laboral. Para tanto, intervém junto ao usuário no sentido de fortalecer sua autonomia e informar-lhe sobre seus direitos como cidadão, especialmente no que tange aos aspectos relacionados à saúde. O trabalho desses profissionais está voltado à promoção da emancipação do usuário, para que possa ser agente no processo de mudança de sua própria realidade, transformando-se em partícipe ativo no controle social. Cabe ainda ao assistente social estimular a participação do usuário nas comissões de saúde, entre outras ações, capacitando o indivíduo a ser sujeito no processo de transformação da sociedade, partindo da conscientização social, ou seja, uma mudança global e não mais individual. A relação Estado e sociedade vem se modificando progressiva- mente na realidade brasileira; no caso da saúde, em termos de acesso a direitos sociais, há importantes diferenças, antes e após a Constituição Federal de 19882. O direito à assistência estava vinculado à contribuição à Previdência Social, excluindo o aces- so de todos os não inseridos no mercado formal de trabalho. Isso, naturalmente, fragilizava ainda mais as classes populares, já vulneráveis por sua condição econômica e social. Na passagem da década de 70 para a seguinte, foi possível demarcar o estabelecimento de novas relações entre o Estado e a sociedade. As desigualdades no acesso à saúde, a desorga- nização da rede, a centralização do processo decisório e a baixa resolubilidade e produtividade dos recursos existentes, soma- dos à conjuntura de crise econômica, colocaram em cena novos atores sociais que passaram a pressionar o Estado por políticas sociais mais eqüânimes. revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 62 demais profissionais da equipe de saúde. Como parte de suas atribuições, esses profissionais intervêm na realidade social, propondo estraté- gias para uma internação menos traumática, de acordo com as demandas apresentadas, buscan- do também instrumentalizar o paciente e sua família sobre os direitos sociais e cidadania, visando promover melhores condições de vida. Dentre suas atividades, destacam-se: • realizar estudo, diagnóstico e tratamento das dificuldades apresentadas pelos pacientes e familiares, na área social, e que possam estar interferindo no tratamento ou alta hospitalar; • intervir na problemática social de pacientes sem retaguarda familiar; • avaliar e acompanhar famílias de crianças, adolescentes, adultos e idosos, vítimas de negligência, maus tratos, abuso sexual e abandono, conforme determinam o Estatu- to da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso; • agilizar a alta hospitalar de pacientes crônicos; • realizar estudo de caso com equipe multidis- ciplinar e encaminhar laudos técnicos aos órgãos competentes, quando necessário; • coordenar e participar, junto com a equipe multidisciplinar, de grupos de apoio tais como grupo de puérperas do alojamento conjunto, grupo de pais de pacientes da UTI neonatal, grupo de familiares de pacientes da oncologia, orientando e infor- mando de acordo com as necessidades dos participantes; • supervisionar alunas da Faculdade de Serviço Social da PUCRS na realização semanal de seminários e reuniões com as supervisoras pedagógicas; • realizar visita domiciliar. A visita domiciliar é importante instrumental no trabalho do Serviço Social. Segundo Kern: a postura profissional durante a visita pode transparecer as várias faces da identidade do mesmo. A visita, sem dúvida, constitui-se na expressão da linguagem de aproximação ou de controle, de poder ou de submissão, de for- talecimento ou de estigmatização. Que o ele- mento ‘surpresa’ seja substituído pelo reco- nhecimento de que o espaço é privativo da família ou dos sujeitos envolvidos. Na face da aproximação, observar elementos que venham a contribuir no acompanhamento qualificado em processo, no diálogo, abordar assuntos e/ou temáticas que permitam que os visitados pos- sam se expressar na linguagem do seu meio8. Além desse rol de atividades, o Serviço Social realiza estudo semanal dos casos que dão entra- da no Núcleo de Proteção da Criança e do Ado- lescente da Comissão dos Direitos da Criança e Adolescente e Cuidados Hospitalares, na Comissão dos Direitos do Paciente Adulto e na Comissão dos Direitos do Paciente Idoso, todos coordenados por profissionais da área. Também participam de rounds para discussão de casos clínicos e de reuniões quinzenais da Comissão de Humanização, que coordena programa com o mesmo nome – iniciado em 2000 por incen- tivo do Ministério da Saúde. Desde então, o Serviço Social vem participando de reuniões e encontros na secretaria e na coordenadoria de saúde, realizando palestras para divulgar o Pro- grama de Humanização em hospitais de Porto Alegre, na grande Porto Alegre e no interior do Estado. Deve-se ressaltar que o Programa de Humanização é de fundamental importância para uma instituição hospitalar, tanto no que 65 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 65 diz respeito à garantia da qualidade de vida do funcionário – que passa a produzir de melhor forma, trazendo, assim, benefícios para o usuário – quanto para a dos próprios usuários, pacientes internos que usufruem os serviços oferecidos. A aproximação com os familiares, que integra o processo de trabalho do Serviço Social e é enfatizada pelo Programa de Humanização, possibilita que os mesmos resgatem seus coti- dianos diante da necessária reorganização de suas vidas, pois são pessoas que possuem limi- tações próprias, que justificam suas dificuldades e que necessitam de respostas para suas inquie- tações. O processo de naturalização das relações familiares como puras e ingênuas, cal- cadas em sentimentos enaltecidos como o amor materno, paterno e filial, deve ser revisto, entendendo-se que a família não deve ser pen- sada como uma instituição capaz de propiciar somente momentos felizes. Ao contrário, deve ser percebida como um espaço dialético e con- traditório, no qual se vivencia momentos de felicidade ou infelicidade, com limitações e sofrimentos. A teia de relações familiares não é ingênua e despida de conflitos. Portanto, tra- balhar com famílias faz emergir traços rela- cionais já cristalizados, muitas vezes respon- sáveis por sérios agravos à saúde. Entendemos que o assistente social é um profis- sional a serviço da população; que promove arti- culações e mediações nas relações entre o doente hospitalizado, sua família e instituição, para facilitar o convívio e promover a cura. Em decor- rência da complexidade e magnitude de seu tra- balho, não pode ser visto como simples repas- sador à rede. É, antes, um elemento valioso na dinâmica das equipes de saúde. 66 Resumen Estrategias del Trabajo Social para amenizar el sufrimiento y volver más humana la ayuda al paciente Este artículo trata de las atribuciones del Trabajo Social, contextualizándolas a la luz de las transfor- maciones en la dinámica de los servicios de salud propuestos por la Reforma Sanitaria brasileña. Se describen las características del proceso de asistencia orientado hacia la integralidad del usuario, ennumerando aún las diversas actividades destinadas a implementar dicha práctica, realizadas por profesionales del área que actúan en el Hospital São Lucas, de la Pontifícia Universidade Católica, en Rio Grande do Sul (PUCRS). Palabras-clave: Trabajo Social. Asistencia. Ciudadanía. Emancipación. Intervención. revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 66 Abstract Strategies of Social Service to attenuating suffering and giving a more humani- tarian aid to patients This article addresses the tasks of Social Assistance service within the context of changes in health services dynamics as proposed by Brazilian Health Reform. It describes the characteristics of an assis- tance process dedicated to user integrality listing the several activities used to implement this prac- tice as undertaken by professionals who work at the Hospital São Lucas of the Pontifícia Universi- dade Católica, in Rio Grande do Sul (PUCRS). Key words: Social Service. Assistance. Citizenship. Emancipation. Intervention. Referências 1. Iamamoto MV. Renovação e conservadorismo no serviço social: ensaios críticos. 4.ed. São Paulo: Cortez, 1997. 2. Brasil. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Fede- ral, 1988. 3. Simionato I. Caminhos e descaminhos da política de saúde no Brasil. Revista Inscrita 1997;1. 4. Faleiros V. Serviço social: questões presentes para o futuro. Revista Temporalis 2001;3:33. 5. Ribeiro HP. O hospital: história e crise. São Paulo: Cortez, 1993. 6. Angerami VA. E a psicologia entrou no hospital. São Paulo: Pioneira 1987. 7. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Histórico do Hospital São Lucas. Revista dos Hospitais 1998. 8. Kern F. A visita domiciliar: a linguagem de relações [documento eletrônico]. 2000 [acessado em 2000]. p.3. Disponível em: URL: www.uel.br/esquina. Contato Magda Suzana da Silva Ferreira – magdassocial@hotmail.com 67 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 67 necessárias à melhoria do quadro do paciente. Tais transformações dizem respeito à reelabo- ração dos conteúdos internos, às questões sub- jetivas relacionadas ao medo, ao pouco amor próprio, à raiva, culpa, tristeza e outros tantos sentimentos, freqüentemente experimentados pelos pacientes internados. A respeito, Hos- pers, citado por Brandalise, comenta: a tristeza expressa em música é algo muito diferente da tristeza expressa em vida; é somente por analo- gia que usamos a mesma palavra para ambas... a tristeza em música, é despersonalizada; extraída ou abstraída de situações pessoais, como por exemplo, a perda de alguém querido. Em música temos o que se chama de ‘essência’ da tristeza sem as condições causais2. A observação das seções de musicoterapia per- mite afirmar que esse trabalho produz modifi- cações físicas, tais como alterações no batimen- to cardíaco, diminuição da dor, equilíbrio da res- piração e intensidade do rubor das faces. Enfim, tanto o mundo interno do paciente como sua dimensão física são tocados e tratados pela música. Embora constatar tais alterações seja parte do cotidiano terapêutico, muitas vezes parece surpreendente perceber o quanto essas transformações ocorrem vinculadas a um senti- mento de alegria genuína e profunda, gerada pela experiência criativa com a música. Observando o trabalho dos musicoterapeutas Nordoff e Robbins, Queiroz tece a seguinte consideração a respeito: é uma alegria que não está em linha apenas com o ‘prazeroso’, com o ‘divertido’ mas uma alegria em linha com a ‘vida’, com a sensação suprema de ‘estar vivo’ e isso ‘ser bom em si’3. No trabalho em hospital, desenvolvido com crianças muito doentes, a música se faz presente, muitas vezes, com ca- racterística do insólito, do extraordinário, do espantoso – este último atributo definido tam- bém como surpreendente, conforme Didier- Weill4 – por estar acontecendo em ambiente inusitado, comumente considerado pouco ade- quado a esse tipo de manifestação. Refletir sobre a alegria que a criança geralmente manifesta durante as sessões, predispõe a pen- sar também sobre sua condição de paciente: Como está vivenciando o momento e como experimenta a realidade de seu corpo doente? Permite refletir sobre o fato de que a criança está inserida em um contexto que não a deixa esquecer, nunca, a realidade concreta do adoe- cimento, que é diferente de sua realidade psíquica, na qual consegue exprimir desejos e fantasias do inconsciente. A criança hospitalizada em decorrência de patologias graves vive, neste momento, a expe- riência crua do real. Segundo Chemama, é aquilo que, para o sujeito, é expulso da reali- dade pela intervenção do simbólico5. Ela con- fronta-se com a vida e a morte, a dor e a perda, a frustração e a culpa. A culpa se manifesta quase sempre em relação aos pais e outros familiares, pois quando a criança é hospitaliza- da muitas vezes os pais deixam seus outros fi- lhos, interesses, trabalhos e, em alguns casos, até a cidade onde vivem. Geralmente, mani- festam as saudades que sentem por esses afas- tamentos. A criança percebe o que acontece e o seu sentimento de forma consciente ou inconsciente é de indignidade, culpando-se por estar doente. 70 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 70 É nesse contexto que a música se inscreve no ambiente hospitalar, no ato clínico musi- coterápico, promovendo uma erupção súbita desse real, com seu desejo e força. A criança se espanta, se sente invocada e convocada, nor- malmente sem noção do que a está assaltando, mas consciente de que a música a faz reviver uma experiência já vivida. Experiência que reconhece por estar gravada em seu incons- ciente. São sensações e sentimentos de perda e vácuo, prazer e reencontro, incluídas nas expe- riências primárias de seu processo de desen- volvimento. Tais experiências remetem aos primeiros afastamentos e reencontros com o outro – a mãe – e agora se repetem com a músi- ca. Sem saber como defini-las, refere-se, algu- mas vezes, ao que sente como uma saudade de uma coisa boa. O poder evocativo da música é apontado por Zukerkandl, o qual considera que a música acon- tece no movimento, no tempo e no espaço, entre dois mundos, o mundo físico e o mundo psíquico, chegando até nós pela percepção6. O autor complementa essa idéia afirmando que a música não nos leva a um outro mundo, mais puro e melhor, mas sim nos mostra uma outra visão de realidade6. Essa outra visão de realidade, percebida por meio da música, parece enviar a criança doente e hospitalizada, que está com a percepção do seu mundo exterior e também de si mesma extremamente comprometida, a per- cepções representáveis e suportáveis. Assim, pela proposta do ato clínico musicoterápico, pode acontecer uma releitura das suas primeiras per- cepções do mundo. A música e seus elementos essenciais trazem essa visão: a possibilidade de alcançar essa dimensão de outra realidade. A musicoterapia no Hospital São Lucas Iniciado 1996, o trabalho de musicoterapia desenvolvido no Hospital São Lucas (HSL) destina-se a crianças internadas na enfermaria pelo Sistema Único de Saúde (SUS), na Unidade de Tratamento Intensivo da Pediatria (Utip) e àquelas internadas em outras enfer- marias por convênios. Desde o início do traba- lho, elegeu-se como principal clientela a crian- ça de até 15 anos e com neoplasias. Além delas, também são atendidos pacientes com doenças crônicas, os de internação prolongada e aqueles indicados nas reuniões semanais das equipes médicas do Departamento de Pediatria e da Comissão dos Direitos da Criança e do Adoles- cente e Cuidados Hospitalares. Nessas reuniões são repassadas as informações necessárias para organizar os atendimentos, como, por exemplo, quais procedimentos médicos e hospitalares estão previstos para tal dia e semana e como estão reagindo os que já fazem musicoterapia. As crianças são atendidas duas vezes por se- mana, em sessões individuais ou em grupo, na sala de musicoterapia na enfermaria, no quarto de isolamento ou na Utip. As técnicas musi- coterápicas mais freqüentemente utilizadas são: recriação, improvisação, composição, histórias musicadas/cantadas, audição musical e técnicas próprias de acesso ao inconsciente e imaginário. Os principais objetivos da terapia são: • facilitar a comunicação e a interação com a interioridade do paciente, por intermédio do engajamento da relação terapêutica na experiência criativa, permitindo-lhe ser e estar na música; 71 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 71 • propiciar a melhora do estado de ânimo – felicidade em oposição à tristeza –, resultan- do na melhor aceitação do tratamento, bem como um estado físico e psíquico mais saudável, independentemente da enfermi- dade, dor e sofrimentos. O primeiro contato com a criança, muitas vezes antes mesmo da confirmação de seu diag- nóstico, é feito em uma visita a ela e seu responsável. Nesse momento, é explicado o que é a musicoterapia, seus objetivos e como será o atendimento musicoterápico, se aceito e livre- mente desejado pela criança. Uma investigação sobre sua identidade sonora também é iniciada nesse encontro. Segundo Benenzon, a identi- dade sonora pode ser entendida como o con- junto de sons, ou fenômenos sonoros internos, que absorvidos desde a gestação caracterizam e individualizam o sujeito7. Uma das características prioritárias do atendi- mento no HSL é facilitar o engajamento de pessoas em situações de musicing8. Esse fenô- meno caracteriza o fazer musical específico da musicoterapia, que vai além de estar tocando, cantando ou brincando com os sons. O music- ing consiste em uma forma particular da ação humana, que promove deliberadamente a inte- ração entre criança, música e musicoterapeuta, com controle, na busca de objetivos. Segundo Schön, citado por Kenneth Aigen, o musicing implica conhecimento, mas o co- nhecimento implícito, conhecimento ação (knowledge-in-action): o paciente busca trans- formação, engaja-se na música7. Elliot, tam- bém citado por Aigen, afirma que esse fenô- meno consiste em atividades que fortalecem o self e nosso objetivo, como seres humanos, é estarmos engajados em atividades que reflitam esse desejo. Achamos prazerosas e significati- vas atividades que sejam congruentes com nossa motivação fundamental em direção a nosso crescimento7. Pode-se exemplificar como “não-musicing” o relato de uma pessoa que, cantando em coral, considera essa atividade terapêutica. Por certo, estará num “fazer musical”, mas, diferente do que ocorre no musicing em musicoterapia, não poderá apropriar-se da música, alterando-a con- forme suas necessidades. O pré-determinado pelo compositor ou regente deverá ser executa- do. Não terá o musicoterapeuta como facilita- dor; aquele capaz de intervir com e nos elemen- tos da música com sua musicalidade clínica. Não serão perseguidos objetivos que resultarão em sua transformação. Enfim, os benefícios de seu “fazer musical” provavelmente estarão vin- culados a sua pessoa, não se expandindo além do setting a que está restrito. O musicing, ao con- trário, como acontecimento musical facilitado a partir de técnicas precisas, se expande do setting musicoterápico abrangendo também os cuidadores. Quando a seção é coletiva e ocorre na sala de musicoterapia, procura-se organizar os grupos por faixa etária. Os materiais e instrumentos musicais são dispostos para fácil manuseio das crianças. Caso elas estejam impossibilitadas ou indispostas a sair das enfermarias, a sessão é realizada onde se encontram, com dinâmica semelhante. Os instrumentos musicais ficarão à disposição sobre os móveis, camas ou cadeiras. 72 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 72 integrando-se e interagindo musicalmente. Na sessão seguinte, quando entramos junto com a equipe médica na enfermaria, W nos recebeu sorrindo. O médico chefe da equipe da pedia- tria, responsável por W naquela semana, vis- lumbrando seu sorriso perguntou, demonstran- do muita satisfação, se estávamos registrando o fato de ser a primeira vez que este menino sorri aqui no hospital e isso se deve à musicoterapia. Caso 3: M, 9 anos, residente no interior do estado, encontrava-se internado na Utip após cirurgia corretiva do pé. A solicitação de seu atendimento partiu da funcionária encarregada da limpeza do setor. Ao término das seções de musicoterapia das crianças, ela nos procurou falando sobre o sofrimento, dores e depressão de M. Disse que acreditava no bem que a musi- coterapia faz às crianças por vê-las melhorarem durante os atendimentos. Comentou também que acompanha o sofrimento das crianças enquanto faz a limpeza e se sente impotente diante dele: é um alívio quando a senhora chega aqui, com seu carrinho de instrumentos. Gen- tilmente, solicitou se seria possível a senhora também atender M? Ele tem chorado muito. No mesmo dia demos início ao atendimento. A funcionária observava atenta as sessões. Demonstrava pelo sorriso, olhar de confiança e o fato de, muitas vezes, demorar um pouco a mais quando da limpeza do leito de M, o quan- to a melhora do menino, que não mais chorou, foi tocante para ela. Caso 4: J era um bebê de 1 ano, com diagnós- tico de disenteria crônica, anemia crônica e má absorção, internado desde o 14º dia de vida. Ficava constantemente sozinho na enfermaria, sua mãe era pouco presente e em determinadas ocasiões demonstrava certa rispidez tanto para com ele como para com os profissionais que dele cuidavam. Por sugestão do responsável pelo caso, na mesma semana foi iniciado seu atendi- mento, após uma reunião especial com toda a equipe de saúde, inclusive o especialista em gas- trologia e a mãe da criança. Como objetivos do trabalho terapêutico foram estabelecidos: forti- ficar o vínculo entre a mãe e o bebê; desen- volver a linguagem, pouco estimulada, e fomentar o desenvolvimento social. Além disso, buscou-se estimular o desenvolvimento motor do bebê, já que J quase sempre estava deitado, com as mãos imobilizadas por talas, para evitar que arrancasse a sonda gastrintestinal, o que dificultava sua permanência sentado. Sugeriu- se à mãe que o acompanhasse em um dos dois atendimentos semanais. Desde os primeiros encontros foram observados os efeitos da musi- coterapia, tanto pelos musicoterapeutas quanto pelos demais profissionais que cuidavam do bebê. Paulatinamente, a mãe foi desenvolvendo a reciprocidade em relação ao bebê, participan- do das sessões, relatando ter cantado para ele em outros momentos e reconhecendo as modi- ficações ocorridas, acolhendo e sendo acolhida pela música. Caso 5: C., 11 anos, com síndrome de Wis- cott-Aldrich, doença degenerativa dos pulmões transmitida pela mãe aos filhos homens. C pas- sava muitos dias sozinho e não demonstrava sentir falta da mãe. Porém, quando seu caso se agravou pedia desesperadamente por ela. Nas suas últimas improvisações colocou como títu- los Eu amo minha mamãe e Homenagem à minha mãe. Fizemos cópia dessas gravações e 75 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 75 C, já na Utip, entregou-as à mãe, que passou a visitá-lo com mais freqüência, permanecendo a seu lado e sendo sua principal cuidadora nos últimos dias de vida. Esse exemplo mostra como a musicoterapia cumpre o objetivo de contribuir na elaboração e resgate de sentimen- tos – sentimentos que, nesse caso, há muito faziam sofrer mãe e filho. Caso 6: Em 2003 atendemos, por solicitação de uma médica, a menina A, 3 anos, com diag- nóstico de neuroblastoma, em tratamento desde os três meses de vida e já transplantada. A mãe, secretária, abandonou a profissão para tomar conta de A. O pai é empresário. A estava inter- nada por convênio. Como estava muito debilita- da foram gravados alguns dos momentos de suas sessões. Em agosto de 2006, depois de quase três anos do óbito da filha, sua mãe telefonou con- tando ter agora uma outra filha, mas que deseja- va muito possuir uma cópia das gravações de A: ela enquanto cantava estava feliz, fazendo aquilo de que tanto gostava. Nós sempre nos sentíamos melhores nos dias de musicoterapia. Ela alimen- tava-se e dormia melhor naqueles dias. Nem parecia que estávamos no hospital. Eu quero muito ouvi-la novamente. Quero também mostrar a B sua irmã, a voz de A. Oferecemos também a M o desenho de um gato, feito por A, rasgado e colado com fita adesiva durante a sessão de musicoterapia: ele fez curativos. O tema da morte (e da vida) e a musicoterapia Ao trabalhar com crianças hospitalizadas, enfrentando doenças e tratamentos extrema- mente agressivos, inúmeras vezes torna-se inevitável o confronto com a morte. Se, de iní- cio, os objetivos do trabalho direcionam-se a despertar na criança motivações de vida, me- lhora de seu bem-estar físico, emocional, men- tal e social, ao se perceber que seu estado se agrava, encaminhando-se para o terminal, faz- se necessário prepará-la – e a seus cuidadores – para o enfrentamento dessa passagem. Nessas circunstâncias, a sessão de musicoterapia é vivenciada da maneira mais plena possível, nada é deixado para a próxima, pela possibili- dade desta não acontecer. Frente à situação de terminalidade, o trabalho em musicoterapia segue as cinco fases do final da vida, sistematizadas por Kübler-Ross: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação13. Embo- ra nem sempre essas fases sigam essa ordem, todas estão presentes, de forma muito clara no musicing da criança e de seus cuidadores9. O artigo Criança e música versus câncer e morte, que apresenta as fases de Kübler-Ross na musi- coterapia, veiculado no Congresso Mundial de Musicoterapia, em Oxford/Inglaterra, em 2002, e publicado na íntegra na Revista de Medicina da PUCRS14, acrescenta às cinco fases mais uma: a da serenidade, resultante da observação prática diária no HSL. Fase da negação Muitas vezes, percebe-se nesta fase que mesmo sentindo que algo de muito grave está aconte- cendo, tanto a criança quanto seus pais procu- ram defender-se emocionalmente, negando a doença, o diagnóstico e, em alguns casos, o próprio tratamento. Na sessão de musicote- rapia cantam e tocam músicas consideradas por eles como alegres, boas de dançar. Procuram 76 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 76 proteger-se por certa descontração: isso vai pas- sar, viemos só para fazer alguns exames. Fase da raiva Como a criança continua a piorar e, além dos sintomas da doença, sente também os efeitos nocivos do tratamento, ela e seus cuidadores familiares, geralmente, começam a vivenciar a fase da raiva. Essa raiva se manifesta contra a situação, o sofrimento, a equipe médica – que não acertam com esses remédios – e, de forma generalizada, com maior ou menor intensidade, aos demais cuidadores que os rodeiam. Na sessão de musicoterapia, transparece na maneira agressiva como os instrumentos são tocados pela criança, geralmente com sons rápi- dos e fortes. As baquetas seguras fortemente nas mãos fechadas tocam sem pulsação regular, bem ao contrário, de forma bastante desorde- nada. Só no decorrer da sessão, após a música perpassar essa catarse sonora, a criança parece sentir-se mais aliviada desse sentimento. Fase da barganha Muitas vezes, essa fase vem próxima à da raiva. Já que ficar com raiva não ajudou no resta- belecimento, talvez uma negociação alcance melhores resultados. Percebe-se a barganha, por exemplo, quando a criança passa de sons fortes e agressivos para sons suaves, embora esse não seja o indicador definitivo. Deverá vir acom- panhado de outras demonstrações, tão sutis que se deve estar muito atento para notá-las: surgem nas entrelinhas musicais, nos sons que se transformam em dinâmica. Consideram-se também como indicadores dessa fase os olhares rápidos que a criança dá à sua volta enquanto toca fazendo essa mudança de intensidade. É como se testasse o efeito que causa, como uma delas verbalizou: vou ser boazinha, não vou quebrar nada e então vou poder sair daqui. Essa fase pode também ser associada ao cunho reli- gioso das canções: nunca mais vou brigar e Jesus vai me curar. Parece-nos que essa letra reflete a expectativa de a criança ser recompen- sada por bom comportamento e, assim, melho- rar sua situação clínica. Fase da depressão Com crianças com câncer ou outras doenças que requerem freqüentes internações, a depressão é quase constante. Além da doença, sofrem a cada internação por abandonar sua casa, familiares, atividades, brinquedos e, muitas vezes, sua cidade: enfim, seu mundo. Geralmente, quando se percebe que a criança está muito deprimida, recusando-se freqüente- mente a participar da sessão, lhe é oferecida uma audição musical, na qual não precisa fazer nada, só ouvir. Nessa audição são utilizadas as músicas classificadas anteriormente por ela ou por outras crianças como tristes. A partir daí, se passa ou não para outras técnicas, buscando a melhora do emocional do paciente. Fase da aceitação Percebe-se que a criança, muitas vezes com muita clareza, sente quando sua vida aproxima- se do final. Quase sempre antes disso, viven- ciou momentos em que sentia muito medo. Assim como ocorre com os adultos, sente medo de estar sozinha, medo da noite, medo de dormir. Parece que, para poder entrar na fase da aceitação, mesmo muito debilitada, necessita colocar em ordem questões emocionais ainda não resolvidas. 77 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 77 Resumen Cuidando con la musicoterapia: diez años de musicoterapia en el Hospital São Lucas Este artículo introduce nociones sobre la musicoterapia, a partir de los diez años de experiencia en la atención musicoterápica a niños y niñas en el Departamento de Pediatría del Hospital São Lucas/HSL de la Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Se describen algunos casos clínicos observados en este periodo, tejiendo consideraciones sobre la amplitud y el efecto de esta técnica, que actúa también sobre los padres, familiares, auxiliares de enfermería, enfermeros, médicos y otros tantos cuidadores que, atentos a los niños y niñas, sienten, en ellos y con ellos, los cambios y las transformaciones ocurridas. Palabras-clave: Musicoterapia. Musicing. Setting. Niños. Cuidadores. Abstract Care with music therapy: 10 years of music therapy at Hospital São Lucas The article discusses some notions of music therapy based on 10 years experience with its use with children within the Department of Pediatrics of the Hospital São Lucas-HSL of the Pontifícia Univer- sidade Católica of Rio Grande do Sul (PUCRS). It describes some clinical cases observed during these years presenting comments about the scope and effect of the technique that influences also, par- ents, family members, nursing assistants, nurses, physicians and other caretakers who follow with and through the child the results achieved. Key words: Music therapy. Musicing. Setting. Children. Caretakers. Referências 1. Revista Brasileira de Musicoterapia 1996;1(2). 2. Brandalise A. Musicoterapia músico-centrada. São Paulo: Apontamentos, 2001. 3. Queiroz GJ. Aspectos da musicalidade e da música de Paul Nordoff e suas implicações na práti- ca clínica musicoterapêutica. São Paulo: Apontamentos, 2003. 4. Didier-Weill A. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1998. 5. Chemama R. Dicionário de psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2002. 6. Zukerkandl V. Sound and symbol: music and external wolrd. Princeton: Princeton University Press, 1973. 7. Benenzon R.Teoria da musicoterapia. São Paulo: Summus, 1988. 8. Aigen K. Music-centered music therapy. Gilsum NH: Barcelona Publisher, 2005. 9. Kipper DJ. Exame da validade de instrumentos de avaliação de dor em crianças [Tese]. Porto Ale- gre: Faculdade de Medicina da PUCRS, 1996. 10. Loewy JV. Music therapy and pediatric pain. Cherry Hill, NJ: Jeffrey Books, 1997. p. 1. 11. Gallicchio MESS. Pedro e o lobo: musicoterapia com crianças em quimioterapia. Revista Brasileira de Musicoterapia 2001;6(5):81-93. 80 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 80 12. Spitz,R.A. O primeiro ano de vida. Porto Alegre: Martins Fontes, 1987. 13. Kübler-Ross E. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 14. Gallicchio MESS. Criança e música versus câncer e morte. Revista de Medicina da PUCRS 2002; 12(4):356 15. Organização das Nações Unidas. Constituição da Organização Mundial da Saúde OMS/WHO. [documento eletrônico]. [acessado em 16 Jul 2007]. Disponível em:URL: : http://www.dire- itoshumanos.usp.br/counter/Oms/OMS.html Contato Maria Elena S. S. Gallicchio – mgallicchio@cpovo.net 81 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 81 revista bioetica nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 82 o O processo de envelhecimento Envelhecimento e senescência (senectude) são termos técnicos cujas definições precisas variam de autor para autor, não existindo consenso6. Contudo, a maioria aceita que o envelhecimento é um processo complexo, multifatorial e indivi- dual, envolvendo modificações do nível molecu- lar em nível morfofisiológico, que ocorrem em cascata, principalmente após o período pós- reprodutivo. Segundo revisão realizada por Troen7 sobre a biologia do envelhecimento, essas modificações são caracterizadas por mudança na composição bioquímica dos tecidos; diminuição progressiva na capacidade fisiológica – a qual, em geral, ocorre a partir dos 30 anos, com declínio linear na capacidade de reserva dos órgãos8; redução na capacidade de adaptação aos estímu- los; aumento na suscetibilidade e vulnerabilidade às doenças; aumento da mortalidade. Segundo Kirkland, o envelhecimento é um processo progressivo, universal e intrínseco e suas alterações ocorrem em diferentes taxas entre os vários órgãos de um indivíduo, caracterizando envelhecimento segmentar9. Finch considera o envelhecimento humano como intermediário, pois as modificações ocorrem de modo lento e não uniforme nos sistemas corporais10. Nos seres humanos, o envelhecimento está muito ligado ao aparecimento de disfunções e doenças. Entretanto, tal associação não é obri- gatória. Por tal motivo, Troen classifica o enve- lhecimento como normal e usual7. O envelhe- cimento normal seria aquele em que somente as próprias modificações associadas ao enve- lhecimento estariam presentes. Já no envelhe- cimento usual, além das modificações asso- ciadas ao envelhecimento, ocorreriam doenças e disfunções. Este autor chama o primeiro de normal, porque é o esperado, ainda que seja um tipo de envelhecimento pouco freqüente nas populações humanas. Pelo mesmo motivo, chama o envelhecimento associado a doenças de usual, uma vez que esta é a situação mais freqüente nos dias de hoje. Hayflick salienta que as alterações do envelhe- cimento podem ser distinguidas de doença – ou alteração patológica – por, pelo menos, quatro razões importantes: a) alterações relacionadas à idade ocorrem em todos os indivíduos; b) vir- tualmente ultrapassam a barreira de todas as espécies; c) nenhuma doença afeta todos os membros de uma espécie somente depois da idade reprodutiva; d) o envelhecimento ocorre em todos os animais protegidos pelo homem, mesmo nas espécies que provavelmente não o experimentariam11. Contudo, identificar essa diferenciação pode ser tarefa difícil. Apesar do envelhecimento normal estar associado com um risco aumentado de desenvolvimento de doenças, per se, não é considerado doença 12 . O indivíduo idoso Segundo o Viena International Plan of Action on Ageing, endossado pela primeira Assembléia Mundial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre envelhecimento da população, que veio a originar a Resolução 39/12513, indivíduos com 60 anos ou mais são considerados idosos, principalmente em países em desenvolvimento – como é o caso do Brasil –, ainda que entre 60 a 65 anos de 85 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 85 idade os indivíduos possam ser economica- mente ativos, principalmente em países desen- volvidos14. Mas quem é e como se pode caracterizar o indi- víduo idoso? Geralmente, o principal marcador utilizado para caracterizar a velhice é a idade. Entretanto, quando se fala em idade, é impor- tante salientar que há vários tipos de idade, ou seja, a idade cronológica, biológica, funcional, psicológica, social, entre outras15. A dependência em indivíduos idosos Muitas são as causas de dependência entre indi- víduos idosos, podendo-se destacar: restrição dos movimentos corporais (por seqüela de aci- dente vascular encefálico, artrose/artrite), declínio cognitivo (demência de Alzheimer), depressão e questões socioeconômicas (perda do poder econômico a partir da aposentadoria). Como aponta a Sociedade Internacional de Con- tinência, no âmbito físico uma condição fre- qüente associada à idade é a incontinência urinária – considerada como a perda involuntária de urina em quantidade e freqüência suficientes para causar um problema social ou higiênico, objetivamente demonstrável16. A continência, em qualquer idade, depende não só da integridade anatômica do trato urinário inferior e dos meca- nismos fisiológicos envolvidos no armazenamen- to e na eliminação da urina, como também da capacidade cognitiva, da mobilidade, da destreza manual e da motivação para ir ao banheiro17. A incontinência urinária figura entre as 15 condições mais prevalentes entre pessoas com 65 anos ou mais em países desenvolvidos – caso dos Estados Unidos da América (EUA)16. Na geriatria, a incontinência urinária é considera- da problema médico comum18 e faz parte dos “gigantes da geriatria”, expressão cunhada por Bernard Isaacs para as formas de apresentação diferenciada das doenças na velhice, junto com a imobilidade, a instabilidade postural, a insufi- ciência cerebral e a iatrogenia. Qualquer enfer- midade ou efeitos adversos de vários medica- mentos pode se manifestar na forma de um ou mais desses problemas19. A incontinência urinária é de grande importân- cia, pois predispõe a infecções perineais, genitais, do trato urinário e urossepse (sepse com origem no sistema urinário). Pode provocar maceração e rutura da pele, facilitando a formação de escaras, interromper o sono e predispor a quedas. Adi- cionalmente, causa constrangimento, induz ao isolamento social, à depressão e ao risco de inter- nação em asilos (institucionalização). A preva- lência de incontinência urinária aumenta com a idade, sendo maior entre as mulheres. Até 30% dos idosos da comunidade são acometidos por incontinência urinária, sendo que a prevalência aumenta para 50% se forem considerados os idosos institucionalizados17. Estudos têm sugeri- do que a incontinência pode ser considerada o fator mais importante de decisão familiar quan- to à institucionalização do idoso e a causa pre- cipitante da admissão de enfermagem domiciliar em 89% das famílias16. O cuidador de idosos e o cuidado Neri, em capítulo de revisão sobre o cuidador, traz a informação de que a literatura gerontológica 86 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 86 Tipo de apoio Atividades relacionadas consagrou a distinção entre cuidado formal e informal com base no critério da natureza do vín- culo entre idosos e cuidadores20. O cuidado for- mal é aquele oferecido por profissionais e o infor- mal, por não-profissionais. Entre os não-profis- sionais, geralmente pessoas da família, podem ser incluídos amigos e vizinhos. Nessa circunstância, faz-se distinção entre os cuidadores primários, secundários e terciários. Os cuidadores primários são os principais responsáveis pelo idoso e pelo cuidado e são os que realizam a maior parte das tarefas; os cuidadores secundários podem até realizar as mesmas tarefas, mas o que os distingue dos primários é o fato de não terem o mesmo nível de responsabilidade e decisão, atuando quase sempre de forma pontual em algumas tarefas de cuidados básicos – deslocamentos e transferên- cias, ajuda doméstica –, revezando com o cuidador primário; os cuidadores terciários são coadjuvantes e não têm responsabilidade pelo cuidado, substituindo o cuidador primário por curtos períodos e, geralmente, realizando tarefas especializadas como compras, pagar contas e rece- ber a pensão. No quadro a seguir, são apresentados difer- entes tipos de apoio aos idosos, sendo que a maioria deles demanda diferentes combi- nações de apoio, especialmente aqueles muito incapacitados20. Material Instrumental Socioemocional Cognitivo-informativo Atividades básicas de autocuidado que ocorrem dentro de casa (colaboram com a saúde do idoso) Atividades básicas de autocuidado que ocorrem fora de casa (contribuem para o funcionamento do idoso) Apoio instrumental para a realização das atividades de manejo de vida prática den- tro de casa Atividade de lazer (dentro e fora de casa) Prover dinheiro e outros recursos objetivos que mantêm, aprimoram as condições ou facilitam a vida dos idosos Realizar ajuda direta nas atividades de vida diária (AVD) e nas atividades instrumentais de vida diária (AIVD) Fazer companhia, visitar, conversar, ouvir, confirmar, aconselhar, consolar Explicar, ajudar a tomar decisões, decidir por Alimentação, toalete, banho, vestir-se, arru- mar-se, tomar remédio, fazer exercícios, fazer fisioterapia Ir ao médico e a laboratórios para coleta de exames, ir à igreja Cozinhar, lavar/passar roupa, arrumar a casa Levar para passear, fazer visitas Neri AL, Carvalho VAM. O bem-estar do cuidador: aspectos psicossociais. In: Freitas EV et al. Op. cit. 2002. p.778-90. 87 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 87 oferecidos e as percepções do cuidador com relação aos seus limites – além, evidente- mente, do suporte familiar e da equipe de atendimento domiciliar. Outros estudos apontaram maior risco de morte entre os cuidadores, especialmente os que assistiam seus (suas) esposos(as) depen- dentes e se sentiam sobrecarregados pelos cuidados administrativos. Em alguns países existe preocupação com a questão da sobre- carga financeira da família do paciente com doença avançada, como nos EUA, onde o cuidador é remunerado pelo governo ou pode receber licença de três meses sem ônus no trabalho – o que também ocorre na França. Em seu artigo de revisão, Karsch levanta um aspecto importante: cuidar do idoso em casa é uma situação que deve ser preservada e estimulada, porém cuidar de um indivíduo idoso e incapacitado durante 24 horas sem pausa não é tarefa para uma mulher sozinha, geralmente com mais de 50 anos, sem apoios nem serviços que possam atender às suas necessidades e sem uma política de proteção para o desempenho desse papel27. A autora informa que nos países onde o envelhecimento populacional ocorreu mais lentamente do que no Brasil, os cuidados e os cuidadores familiares são objeto de políticas e programas de saúde pública. Mostra exemplos de programas como “comida sobre rodas” (que produz e distribui as refeições progra- madas para os idosos, poupando o cuidador da tarefa de cozinhar todos os dias) e o serviço de substituição por um profissional que alterne os cuidados. Nesse contexto, emerge uma importante questão que deve ser equacionada: a de falta ou pouco preparo para realizar a tarefa de cuidar de idosos20. Assim, a ajuda de profissionais especializados, nos diferentes níveis de atenção, é importante. Para tanto, a capacitação das equipes dos pos- tos de saúde, dos Programas de Saúde da Família do Sistema Único de Saúde (PSF- SUS), dos profissionais dos hospitais e a criação de grupos de apoio a cuidadores vem a contribuir. Considerações finais O debate sobre os cuidadores de idosos, seu papel na manutenção da saúde e qualidade de vida do idoso dependente, bem como os pro- blemas advindos dessa tarefa, é fundamental para a valorização, pela família e sociedade, dessas pessoas que, muitas vezes, quase ano- nimamente, trabalham de forma incansável para que idosos, apesar de dependentes, man- tenham a qualidade de vida. Pesquisas com os cuidadores de idosos pre- cisam ser estimuladas a fim de que, a partir da realidade social, os governos tenham sub- sídios para implementar políticas públicas específicas. Assim, o tema deve ser uma preo- cupação e cuidar do cuidador de idosos deve ser ação de todos, extrapolando os limites da área social e da saúde, devendo ser foco de atenção multidisciplinar. 90 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 90 Resumen Cuidando de los cuidadores de los ancianos El artículo presenta un panorama del envejecimiento poblacional, señalando la relación entre esta situación y el surgimiento de patologías crónico-degenerativas y de la pérdida de autonomía que genera la dependencia. Enfatiza el papel de los cuidadores de los ancianos, definiendo los diferentes tipos de cuidadores y las principales necesidades de aquellos que responden por el desempeño de estas tareas. Presenta una revisión bibliográfica que subraya la necesidad de profundización de los estudios sobre el tema y del desarrollo de políticas públicas para el apoyo a dichos cuidadores. Palabras-clave: Ancianos. Envejecimiento. Dependencia. Cuidadores. Calidad de vida. Abstract Taking care of aging people caretakers This article presents the panorama of the population aging process, pointing out the relation between this situation and the appearance of chronic degenerative diseases and the loss of auton- omy, which generates dependency. It enforces the role of age people caretakers, defining different types of caretakers and their main needs. It also presents a bibliographical revision on this issue, underlining the need of deepening the knowledge on this theme and developing public policies to support these caretakers. Key words: Aged people. Aging. Dependency. Caretakers. Quality of life. Referências 1. Chaimowicz F. A saúde dos idosos brasileiros às vésperas do século XXI: problemas, projeções e alternativas. Rev Saúde Pública 1997;31(2):184-200. 2. Ramos LR. Epidemiologia do envelhecimento. In: Freitas EV, Py L, Neri AL, Cançado FAXC, Gor- zoni ML, Doll J. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2002. p.72-8. 3. Organización Mundial de la Salud. Epidemiología y prevención de las enfermedades cardiovas- culares en los ancianos. Ginebra: OMS, 1995. p.1-12. (Informes técnicos; 853). 4. Veras RP. O Brasil envelhecido e o preconceito social. In: ____, organizador. Terceira idade: alter- nativas para uma sociedade em transição. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; 1999. p.35-50. 5. Mehr DR, Tatum III PE. Primary prevention of diseases of old age. Clin Geriatr Med 2002;18(3):407-30. 6. Wilmoth JR, Horiuchi S. Do the oldest old grow old more slowly? In: Robine JM, Forette B,Franceschi C, Allard M, editors, The paradoxes of longevity. Heidelberg: Springer-Verlag, 1999. p. 35-60. 7. Troen BR. The biology of aging. The Mount Sinai Journal of Medicine 2003;70(1):3-22. 8. Fries JF. Successful aging: an emerging paradigm of gerontology. Clin Geriatr Med 2002;8(3):371-82. 9. Kirkland JL. The biology of senescence: potential for prevention of disease. Clin Geriatr Med 2002;18(3):383-405. 91 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 91 10. Finch CE. Longevity without aging: possible examples. In: Robine JM, Forette B, Franceschi C, Allard M, editors. Op.cit. p. 3-9. 11. Hayflick L. Como e porque envelhecemos. São Paulo: Campus; 1996. 366p. 12. Sandhu SK, Barlow HM. Strategies for successfull aging. Clin Geriatr Med 2002; 18(3):643-8. 13. Organização das Nações Unidas. Resolução 39/125. Assembléia Mundial sobre Envelhecimento; 1982; Viena. 14. Rio Grande do Sul. Secretaria do Trabalho, Cidadania e Ação Social e Unidades Associadas. Con- selho Estadual do Idoso. Os idosos do Rio Grande do Sul: estudo multidimensional de suas condições de vida: relatório de pesquisa. Porto Alegre: CEI, 1997. 123p. 15. Papaléo Netto M. O estudo da velhice no século XX: histórico, definição do campo e termos bási- cos. In: Freitas EV, Py L, Neri AL, Cançado FAXC, Gorzoni ML, Doll J. Op.cit. 2002. p.2-12. 16. Noronha JAP. Perfil de saúde de idosos com incontinência urinária atendidos em um ambulatório geriátrico [Dissertação de mestrado]. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 1999. 17. Maciel AC. Incontinência urinária. In: Freitas EV, Py L, Neri AL, Cançado FAXC, Gorzoni ML, Doll J. Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan: 2002. p. 635-44. 18. Bogardus Jr ST, Richardson E, Maciejewski PK, Gahbauer E, Inouye SK. Evaluation of a guided protocol for quality improvement in identifying common geriatric problems. J Am Geriatrics Soc 2002;50:328-35. 19. Cunha UGV, Alves VXF, Scoralick FM, Silva SA. Avaliação clínica do paciente idoso. J Bras Med 2002;82(3):72-8. 20. Neri AL, Carvalho VAM. O bem-estar do cuidador: aspectos psicossociais. In: Freitas EV, Py L, Neri AL, Cançado FAX, Doll J, Gorzoni ML. Op.cit. 2002 .p.778-90. 21. Garrido R, Menezes PR. Impacto em cuidadores de idosos com demência atendidos em um serviço psicogeriátrico. Rev Saúde Pública 2004;38(6):835-41. 22. Ricci NA, Kubota MT, Cordeiro RC. Concordância de observações sobre a capacidade funcional de idosos em assistência domiciliar. Rev Saúde Pública 2005;39(4):655-62. 23. Pena SB, Diogo MJD. Fatores que favorecem a participação do acompanhante no cuidado do idoso hospitalizado. Rev Latino-am Enfermagem 2005;13(5):663-9. 24. Giacomin KC, Uchoa E, Lima-Costa MF. Projeto Bambuí: a experiência do cuidado domiciliário por esposas de idosos dependentes. Cad Saúde Pública 2005;21(5):1509-18. 25. Silveira TM, Caldas CP, Carneiro TF. Cuidando de idosos altamente dependentes na comunidade: um estudo sobre cuidadores familiares principais. Cad Saúde Pública 2006;22(8):1629-38. 26. Floriani CA, Schramm FR. Cuidador do idoso com câncer avançado: um ator vulnerável. Cad Saúde Pública 2006;22(3):527-34. 27. Karsch UM. Idosos dependentes: famílias e cuidadores. Cad Saúde Pública 2003;19(3):861-6. Contato Anamaria G. S. Feijó – agsfeijo@pucrs.br 92 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 92 da confiança, emoção básica para o desenvolvi- mento das demais. Há um “elemento facilita- dor” que emana da reunião mensal e per- manece ao longo dos dias, qualificando e faci- litando a ação de cada um. Há também um forte sentimento de pertencência, como quali- fica Zimmerman, que significa que cada indi- víduo sente que, de fato, faz parte do grupo e é reconhecido pelos demais, mesmo após o tér- mino das reuniões. Finalmente, a meu ver, os cuidadores têm no grupo de reflexão a possibilidade de adquirir e desenvolver uma série de capacidades, como percepção menos distorcida dos fatos que ocor- rem ao seu redor, maior aproximação a respeito do que seria o ideal e o que é real, reconhecimento de suas capacidades e limi- tações e, ainda, conhecimento acumulado para perceber as diferenças de cada um em relação aos demais. O desenvolvimento de tais capaci- dades e habilidades propicia uma comunicação mais fácil, que flui entre os integrantes do grupo, reduzindo substancialmente o sério problema dos “mal-entendidos”. Finalmente, pode-se perceber que cada um deles sente ga- nhar, por intermédio das reuniões do grupo, um amplo espaço de liberdade, criação e con- testação. É preciso salientar que, apesar de todos esses benefícios constatados por observação e sentidos pelos participantes, a manutenção de um grupo de reflexão em atividade é tarefa que exige tra- balho e esforço constantes. No presente artigo, os resultados descritos validam aquilo que apon- ta a teoria sobre o assunto: a efetividade dos processos de troca de experiências como forma de cuidar do cuidador. Portanto, para concluir, é preciso enfatizar que essa experiência pode, e até mesmo deve, ser reproduzida em outras institui- ções, que por intermédio dos grupos de reflexão têm a possibilidade de alcançar, ainda que par- cialmente devido ao contexto institucional par- ticular, a melhoria nas práticas e processos labo- rais, para os indivíduos e o grupo, melhorando sua ação diária e contribuindo para que todos se tornem mais felizes. Resumen Grupo de reflexión como espacio para el cuidado de los cuidadores Este artículo presenta algunas reflexiones acerca de los resultados del Grupo de Reflexión implanta- do en el Hospital São Lucas de la Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), desde hace quince años, por el profesor dr. Antônio Spolidoro. Se describen las dimensiones individual y colectiva, los resul- tados más significativos de la aplicación de esta técnica observados durante todo el periodo, enseñando que tal puede ser un importante instrumento de análisis del contenido emocional de las prácticas laborales de aquellos que trabajan como cuidadores. Palabras-clave: Grupos de reflexión. Cuidadores. Reflexión. Emoción. 95 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 95 Abstract Reflection groups like a space to care the caretakers The article presents comment on the results obtained by the Group of Reflection established at the Hospital São Lucas of the Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) 15 years ago by prof. dr. Antônio Spolidoro. It describes the more significant results of the application of that technique individual and collectively that have been observed during this period, showing that it can be used as an important analysis tool regarding the emotional content of working practices of health care personnel. Key words: Reflection groups. Caretakers. Reflection. Emotion. Referências 1. Dellarossa A. Grupos de reflexión: entrenamiento institucional de coordinadores y terapeutas de grupos. Buenos Aires: Paidós, 1972. 2. Zimmerman DE. Fundamentos básicos das grupoterapias. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. 3. Ferreira ABH. Novo dicionário da língua portuguesa. Curitiba: Nova Didática, 2006. 4. Oliveira Júnior JK. Grupos de reflexão no Brasil: grupos e educação. São Paulo: Cabral Editora e Livraria Universitária, 2002. Homenagem Este artigo é uma homenagem ao prof. dr. Antônio Spolidoro, criador do grupo de reflexão do Hos- pital São Lucas/PUCRS. Contato Plinio Carlos Baú – pliniobau@via-rs.net 96 revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 96 97 BB iioo éétt iicc aa 22 00 00 66 11 44 (( 11 )):: 99 77 --11 00 88 Cuidando dos cuidadores em um serviço de neonatologia: quem cuida de quem cuida? Ângela Fleck Wirth Resumo: O presente artigo é fruto do trabalho desenvolvido no acompanhamento da equipe da unidade de terapia intensiva neonatal (UTI) do Hospital São Rafael, em Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, com base na compreensão psicanalítica e aplicação dos princípios técnicos do méto- do de observação da relação mãe-bebê. A tríade bebês, pais e equipe é discutida, salientando-se a importância de estabelecer um espaço de reflexão no qual as diferentes formas de ver a situação possam convergir para a criação de novo sentido que ordene e transforme a visão desses atores, pro- porcionando o entendimento e melhoria das relações. As observações são exemplificadas por vi- nhetas de material clínico. Ângela Fleck Wirth Psiquiatra, psicanalista, associada da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) Palavras-chave: Cuidados. Mortalidade neonatal. Reflexão. Relação mãe-bebê. O trabalho desenvolvido pela autora no acompanhamento da equipe da UTI neonatal do Hospital São Rafael decorre, em grande parte, da compreensão psicanalítica e aplicação dos princípios técnicos do método de observação da relação mãe- bebê (ORMB), desenvolvido por Esther Bick1. Seus princípios básicos são abstrair-se de criticar, julgar ou encaixar os fenômenos observados em alguma teoria – atri- butos essenciais aos profissionais da área de saúde mental que desejam desenvolver trabalho preventivo em UTI neonatal. O método consiste em observar um bebê em seu meio familiar, sua relação com a mãe e demais cuidadores, desde o nasci- mento até o segundo ano de vida. O observador escolhe uma família, explicando-lhe que observará o desenvolvimento da criança. No primeiro ano, as visitas são semanais; no segun- do, quinzenais. Após a visita, o observador faz minucioso rela- to, a ser lido e discutido em um grupo de supervisão semanal, coordenado por um supervisor psicanalista, com experiência no método. Em decorrência do conhecimento acumulado sobre as capaci- dades do bebê dentro do útero e as do recém-nascido, atual- revista bioetica_nova.qxd 6/9/2007 11:42 Page 97
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved