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AMON (CD
DA FAMILIA,
DA PROPRIEDADE
PRIVADA
E DO ESTADO
A ORIGEM DA FAMÍLIA,
DA PROPRIEDADE PRIVADA
E DO ESTADO
Ao lançarmos outra edição brasileira deste
livro, deixemos que o próprio Engels apre-
sente sua obra. No prefácio que escreveu
para a quarta edição (Londres, 16 de
junho de 1891), dizia: “Até 1880, não se
poderia sequer pensar em uma história da
família. As ciências históricas ainda se
achavam, nesse domínio, sob a influência
dos Cinco Livros de Moisés. A forma pa-
triarcal da família pintada nesses cinco
livros com maior riqueza de minúcias do
que em qualquer outro lugar, não somente
era admitida, sem reservas, como a mais
antiga, como também se identificava —
descontando a poligamia — com a família
burguesa de hoje, de modo que era como
se a família não tivesse tido evolução al-
guma através da História. No máximo
admitia-se que nos tempos primitivos pu-
desse ter havido um período de promis-
cuidade sexual. É certo que, além da
monogamia, conheciam-se a Poligamia no
Oriente e a poliandria na Ini ia e no
bete; mas estas três formas não podiam
ser dispostas historicamente, em ordem
sucessiva: figuravam juntas, uma ao lado
das outras, sem nenhuma conexão.. Tam-
Friedrich Engels
A Origem da Família,
da Propriedade Privada
e do Estado
Trabalho relacionado com as
investigações de L. H. Morgan
9.8 Edição
Tradução de
L=aNDRO KONDER
civilização
brasileira
Titulo do original alemão:
DER URSPRUNG DER FAMILIE, DES
PRIVATEIGENTAUMS UND DES STAATS
Desenho de capa:
Hétio DUTRA
Diagramação
LéA CAULLIRAUX
Direitos desta edição reservados pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
Rua Muniz Barreto, 715-721
RIO DE JANEIRO — RJ.
1984
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
Prefácio à primeira edição/1884 1
Prefácio à quarta edição/1891 5
A origem da familia,
da propriedade privada e do Estado
1 — Estágios pré-históricos de cultura 21
1 — estado selvagem 22
2-a barbárie 24
JM — À família 28
Ii — A gens iroquesa 91
IV — A gens Grega 109
Y — Gênese do Estado ateniense 120
VI — A gens e o Estado em Roma 133
VII — A gens entre os celtas e entre os germanos 146
VIII — A formação do Estado entre os germanos 163
IX — Barbárie e civilização 177
Índice dos nomes citados 203
Índice das matérias 211
assumido, em face de O Capital de Marx, os economistas
oficiais da Alemanha, que andaram durante muito tempo a
plagiá-lo, com zelo igual ao empenho em manter silêncio sobre
ele. Meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que
o meu falecido amigo não chegou a escrever. Disponho, entre-
tanto, não só dos excertos detalhados que Marx retirou à obra
de Morgan !, comc também de suas anotações críticas, que
reproduzo aqui sempre que cabíveis.
De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo
na história é, em última instância, a produção e a reprodução
da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são
de dois tipos: de um lado, a produção de meios de existência,
de produtos alimentícios, habitação, e instrumentos necessá-
rios para tudo isso; de outro lado, a produção do homem
mesmo, a continuação da espécie? A ordem social em que
vivem os homens de determinada época ou determinado país
está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo
grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, & da fa-
mélia, de outro. Quanto menos desenvolvido é o trabalho,
mais restrita é a quantidade de seus produtos e, por conse-
qiiência, a riqueza da sociedade; com tanto maior força se
manifesta a influência dominante dos laços de parentesco sobre
publicou uma tradução alemã, L. H. Morgan. Die Urgesellsohaft, oder
Untersuchungen Uber den Fortschritt der Menschhelt aus der Wildheit
uber dia Barbarei zur Zivilisation. (N. do A.)
1 Refere-se à súmula do. Ancient Society de Morgan, feita por Marx
e publicada em russo em 1945. Ver Arquivo de Marx e Engels, tomo
1X. (N. da R)
2 Engels incorre aqui numa inexatidão, ao colocar a continuação da
espécio ao lado da produção dos meios de subsistência entre as causas
que io o desenvolvimento da sociedade e das instituições
sociais, Contudo, no préprio texto de A.Origem da Família, da Proprie-
dode Privada e do Estado, Engels demonstra, pela anélise de dados
concretos, que o modo da produção material é o fator principal que
ati o desenvolvimento da sociedade e das instituições sociais.
N. de R.
2
o regime social Contudo, no marco dessa estrutura da socie-
dade baseada nos laços de parentesco, a produtividade do
trabalho aumenta sem cessar, e, com ela, desenvolvem-se a
propriedade privada e as trocas, as diferenças de riqueza, a
possibilidade de empregar força de trabalho alheia, e com isso
a base dos antagonismos de classe: os novos elementos sociais,
que, no transcurso de gerações, procuram adaptar a velha.
estrutura da sociedade às novas condições, até que, por fim,
a incompatibilidade entre estas e aquela leva a uma revolução
completa. A sociedade antiga, baseada nas uniões gentílicas,
vai pelos ares, em consequência do choque das classes sociais
recém-formadas; dá luger a uma nova sociedade organizada
em Estado, cujas unidades inferiores já não são gentílicas e
sim unidades territoriais — uma sociedade em que o regime
familiar está completamente submetido às relações de proprie-
dade e na qual têm livre curso as contradições de classe e
a Inta de classes, que constituem o conteúdo de toda a his-
tória escrita, até nossos dias.
O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e res-
tabelecido em seus traços essenciais esse fundamento pré-histó-
rico da nossa história escrita e o de ter encontrado, nas uniões
gentílicas dos índios norte-americanos, à chave para decifrar
importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história
antiga da Grécia, Roma e Alemanha. Sua obra não foi tra-
balho de um dia. Levou cerca de quarenta anos elaborando
seus dados, até conseguir dominar inteiramente o assunto. E
seu esforço não foi em vão, pois seu livro é um dos poucos
de nossos dias que fazem época. .
No que a seguir vai exposto, o leitor distinguirá, com faci-
lidade, o que é de Morgan e a que acrescentei eu. Nos capí-
tulos de história consagrados à Grécia e Roma, não me limitei
a reproduzir a documentação de Morgan, mas acrescentei
tados os dados de que dispunha. A parte que trata dos celtas
e dos germanos é essencialmente minha, pois os documentos
de Morgan sobre o assunto eram de segunda mão; e, quanto
aos germanos, afora os escritos de Tácito, só conhecia as pés-
8
simas falsificações liberais do senhor Freeman. Tive que re-
fazer toda a argumentação econômica, que, se era suficiente
para os objetivos de Morgan, não bastava, em absoluto, para
os meus, Finalmente, respondo, sem dúvidy, por todas as
conclusões, desde que Morgan não seja expressamente citado.
F. Encers
porâneos, é proibido o casamento dentro de determinados
grupos maiores — naquela época ainda não estudados de perto
—, ocorrendo este fenômeno em todas as partes do mundo;
estes fatos, certamente, eram conhecidos, e a cada dia a eles
se acrescentavam novos exemplos. Mas ninguém sabia como
abordá-los e, inclusive, na obra de E. B. Tylor (1865)! apa-
reciam como “costumes exóticos”, ao lado da proibição, vigente
em algumas tribos selvagens, de tocar na lenha que ardesse
com qualquer instrumento de ferro, e outras futilidades reli-
giosas semelhantes,
O estudo da história da família começa, de fato, em 1861,
com o Direito Materno de Bachofen, Nesse livro, o autor for-
mula as seguintes teses: 1 — primitivamente, os seres humanos
viveram em promiscuidade sexual (impropriamente chamada
de heterismo por Bachofen); 2 — estas relações exclutam toda
possibilidade de estabelecer, com certeza, a patemidade, pelo
que a filiação apenas podia ser contada por linha feminina,
segundo o direito materno, e isso se deu em todos os povos
antigos; 3 — em consegiência desse fato, as mulheres, como
mães, como únicos progenitores conhecidos da jovem geração,
gozavam de grande apreço e respeito, chegando, de acorda
com Bachofen, ao domínio feminino absoluto (ginecocracia);
4-— a passagem para a monogamia, em que a mulher pertence
à um só homem, incidia na transgressão de uma Jei religiosa
muito antiga (isto é, do direito imemorial que os outros ho-
mens tinham sobre aquela mulher), transgressão que devia ser
castigada, ou cuja tolerância se compensava com a posse da
mulher por outros, durante determinadô período.
Bachofen encontrou as provas dessas teses em numerosos
trechos da literatura clássica antiga, por ele reunidos com zelo
singular. À passagem do “heterismo” à monogamia e do di-
1 E. B. Tylor, Rescarches into the Early History of Mankind and the
Development of Civilization, (Pesquisas sobre a História Primitica da
Humanidade e do Desenvolvimento da Civilização), Londres, 1865. (N.
da R)
reito matemo ao paterno, segundo Backmfen, processa-se —
particularmente entre os gregos — em consequência do desen-
volvimento das concepções religiosas, da introdução de novas
divindades, representativas de idéias novas, no grupo dos
deuses tradicionais, que eram a encarnação das velhas idéias;
pouco a pouco os velhos deuses vão sendo relegados ao se-
gundo plano pelos novos. Dessa maneira, pois, para Bachofen,
não foi o desenvolvimento das condições reeis de existência
dos homens, mas o reflexo religioso dessas condições no cé-
rebro deles, o que determinou as transformações históricas na
situação social recíproca do homem e da mulher. Dentro de
seu ponto-de-vista, Bachofen interpreta a Oréstia de Esquilo
como um quadro dramático da luta entro o direito matemo
agonizante e o direito patemo, que nasceu e conseguiu a
vitória sobre o primeiro, na época das epopéias. Levada por
sua paixão por Egisto, seu amante, Clitemnestra mata seu
marido Agamenon, quando este regressava da guerra de Tróia;
mas Orestes, filho dela e de Agamenon, vinga o pai, matando
a mãe. Isso faz com que ele se veja perseguido pelas Erínias,
- seres demoníacos que protegem o direito matemo, de acordo
com o qual o matricídio é o mais grave e imperdoável de todos
os crimes. Apolo, no entanto, que, por intermédio de seu
oráculo, havia incitado Orestes a matar sua mãe, e Palas Atena,
“que intervém como juiz (ambas as divindades representam
aqui o novo direito patemo), protegem Orestes. Atena ouve
ambas as partes. Todo o litígio está resumido na discussão de
Orestes com as Erínias. Orestes diz que Clitemnestra cometeu
um duplo crime ao matar quem era seu marido e pai de seu
filho. Por que as Erínias o perseguiam, por que o visavam,
em especial, se ela, a morta, tinha sido muito mais culpada ?
A resposta é surpreendente:
“Ela não estava unida por vínculos de sangue ao homem
que assassinou”
O assassinato de uma pessoa com a qual não houvesse
vinculação de sangue, mesmo que fosse o marido da assassina,
8
era falta que podia ser expiada — e não concemia, absoluta-
mente, às Erínias. A missão delas era a de punir o homicídio
entre consanguíneos, e o pior e mais imperdoável dos crimes
segundo o direito materno: o matricídio. Nesse ponto, con-
tudo, intervém Apolo, defensor de Orestes, e em seguida Atena
submete o caso ao Areópago — o Tribunal do Júri ateniense;
há a mesmo número de votos pela condenação e pela absol-
vição, Então, Atena, como presidente do Tribmal, vota em
favor de Orestes e o absolve. O direito patemo vence o ma-
temo. Os “deuses da jovem geração”, como os chamam as
próprias Erínias, são mais poderosos que elas, e só lhes resta
resignarem-se e, finalmente, também elas convencidas, pe
rem-se ao serviço do novo estado de coisas.
Essa nova e inteiramente correta interpretação de Oréstia
é uma das melhores e mais belas passagens do livro, mas, ao
mesmo tempo, é a prova de que Bachofen acredita, como
outrora Ésquilo, nas Erínias, em Apolo e Palas Atena, isto é,
crê que foram estas divindades que realizaram, na época he-
róica da Grécia, o milagre de derrubar o direito matemo e
substituí-lo pelo paterno. É evidente que tal concepção, que
considera a religião como a alavanca decisiva na história do
mundo, conduz, afinal de contas, ao mais puro misticismo.
Por isso, estudar a fundo o volumoso livro de Bachofen é
um trabalho árduo e, muitas vezes, pouco proveitoso. Isto, no
entanto, não diminui seus méritos de pioneiro, já que foi o
primeiro a substituir as frases sobre um desconhecido e pri-
mitivo estágio de promiscuidade sexual pela demonstração de
que, na literatura clássica grega, há muitos vestígios de que
entre os gregos e os povos asiáticos existiu realmente, antes da
monogamia, um estado social em que não somente o homem
mantinha relações sexuais com várias mulheres, mas também
a mulher mantinha relações sexuais com diversos homens, sem
que com isso violassem a moral estabelecida. Bachofen provou
que esse costume não desapareceu sem deixar vestígios, sob
a forma de necessidade, para a mulher, de entregar-se, durante
determinado período, a outros homens — entrega que era o
9
sangue pelo lado materno” (Mac Lennan, Estudos de História
Antiga, 1886; “O Matrimônio Primitivo”, ! pág. 124.)
O mérito de Mac Lennan consiste em ter indicado a
difusão geral e a grande importância do que ele chama de
exogamia. Quanto ao fato da existência de grupos exógamos,
não o descobriu e muito menos o compreendeu. Sem falar das
notícias anteriores e isoladas de numerosos observadores —
exatamente as fontes de Mac Lennan — Latham já havia des-
erito, com muita precisão e justeza (Etnologia Descritiva, ?
1859) esse fenômeno entre os magars da Índia, e afirmara que
o fenômeno predominava em peral e se verificava em todas
as partes do mundo. O próprio Mac Lennan cita esta passa-
gem. Além disso, também o nosso Morgan observara e des-
crevera perfeitamente o mesmo fenômeno — e isto em 1847,
em suas cartas sobre os iroqueses (na American Review), e
em 1851 na Liga dos Iroqueses, * ao passo que, como veremos,
a mentalidade de advogado de Mac Lennan causou confusão
ainda maior sobre o assunto do que a causada pela fantasia
mística de Bachofen no terreno do direito matemo. Outro
mérito de Mac Lennan consiste em ter reconhecido como pri-
mária a ordem de descendência bascada no direito materno,
conquanto, também aqui, conforme reconheceu mais tarde,
Bachofen se lhe tenha antecipado. Mas, também neste ponto,
ele não vê claro, pois fala, sem cessar, em “parentesco apenas
por linha feminina” (“kinship through females onh”), empre-
gando continuamente essa expressão, exata para um periodo
anterior, na análise de fases posteriores de desenvolvimento,
em que, se é verdade que a filiação e o direito de herança
continuam a contar-se exclusivamente segundo a linha materna,
1 LF Mac Lennan, Studies in Ancient History, Comprising o Reprint
of Primitive Murriage, Londres, 1886. (N. do E.)
2 RG. Latham, Descriptive Ethnology, vols. I/H, Londres, 1859, (N.
da R.)
3 L.H. Morgm, Lesgue of the Ho-dé-no-sau-neg or Iroquois, Rochester,
1851. (N. da R.)
12
o parentesco por linha paterna também já está reconhecido e
expresso, Observamos aqui a estreiteza de critério do juris-
consulto, que forja um termo jurídico fixo e continua apli-
cando-o, sem modificá-lo, a circunstâncias para as quais já
não serve.
Parece que, apesar de sua plausibilidade, a teoria de Mac
Lennan não deu a seu autor a impressão de estar muito soli-
damente assentada. Pelo menos, chama-lhe a atenção “o fato,
digno de ser notado, de que a forma do rapto (simulado) das
mulheres seja observada mais marcada e nitidamente entre os
povos em que predomina o parentesco masculino (quer dizer:
a descendência por linha paterna)” (pág. 140). E diz, mais
adiante: “E muito estranho que, segundo as notícias que
temos, o infanticídio não se pratique por sistema em lugar
onde coexistem a exogamia e a mais antiga forma de paren-
tesco” (pág. 146). Esses dois fatos contestam, diretamente,
sua maneira de explicar as coisas, e Mac Lennan não lhes pode
opor senão novas hipóteses, ainda mais embrulhadas.
Não obstante, sur teoria foi acolhida na Inglaterra com
grande aprovação e simpatia. Mac Lennan foi considerado por
todos como o fundador da história da família e a primeira
autoridade na matéria. Sua antitese entre as “tribos” exógamas
& endógamas continuou sendo à base reconhecida das opiniões
dominantes, apesar de certas exceções e modificações admi-
tidas, e se transformou nos antolhos que impediam ver livre-
mente todo q terreno explorado e, por conseguinte, tndo pro-
gresso decisivo. Em face do exagero dos méritos de Mac
Lennan, que ficon em voga na Inglaterra e, seguida a moda
inglesa, em toda parte, devemos assinalar que, com sua antá-
tese de “tribos” exúgamas e endógamas, baseada na mais pura
confusão, ele causou um prejuízo maior do que os serviços
prestados com suas pesquisas.
Entretanto, cedo começaram a ser conhecidos fatos e mais
fatos que não cabiam em seu bem arrumado esquema. Mac
Lennan somente conhecia três formas de matrimônio: a poli-
gamia, a poliandria e a monogamia. Logo, porém, que a
atenção foi dirigida para esse ponto, acharam-se provas, cada
13
vez mais numerosas, de que, entre povos não desenvolvidos,
«zistiam outras formas de matrimônio, nas quais vários homens
tinham em comum várias mulheres; e Lubbock (A Origem
da Civilização, 1870) reconheceu como Fato histórico este
matrimônio por grupos (“communal marriage”).
Imediatamente depois, em 1871, apareceu em cena Morgan
com documentos novos e, sob muitos pontos de vista, decisivos.
Convencera-se que o sistema de parentesco próprio dos iro-
queses, e ainda em vigor entre eles, era comum a todos as
aborigines dos Estados Unidos, quer dizer, estava difundido
em todo um continente, ainda quando em contradição formal
com os graus de parentesco que resultam do sistema conjugal
ali imperante. Incitou, então, o governo federal americano a
que recolhesse informes sobre o sistema de parentesco dos
demais povos, de acordo com um formulário e quadros elabo-
rados por ele mesmo. E das respostas deduziu: 1) que o sis-
tema de parentesco indo-americano estava igualmente em vigor
na Ásia e, sob forma ligeiramente modificada, em muitas tribos
da Africa e da Austrália; 2) que esse sistema tinha sua mais
completa explicação numa forma de matrimônio por grhpos,
que se achava em processo de extinção no Havaí e em outras
ilhas australianas; 3) que, nessas mesmas ilhes, ao lado dessa
forma de matrimônio, existia um sistema de parentesco que
só podia ser explicado por uma forma de matrimônio por
grupos, ainda mais primitiva, mas hoje desaparecida.
Morgan publicou os dados coligidos e as conclusões que
deles tirou em seu Sistema de Consangiiinidade e Afinidade da
Familia Humana, ? em 1871, levando, assim, a discussão para
vm campo infinitamente mais amplo. Tomou como ponto de
partida os sistemas de parentesco e, reconstituindo as formas
de família a eles correspondentes, abriu novos caminhos à
2 J. Lubbock, The Origin of Civilization and the Primitive Condition
of Man. Mental end Social Condition cf Sacages, Londres, IBTO. (N.
da R)
2 L.H.Morgan, Systems of Consanguinity and Affinity of the Human
Family, Washington, 1871. (N. da R.)
14
a gens ulterior, baseada no direito paterno, gens como a encon-
tramos entre os povos civilizados da antiguidade, A gens
grega e romana, que tinha sido, até então, um enigma para 0s
historiadores, ficou explicada, tomando-se como ponto de par-
tida a gens indígena; o que deu nova base ao estudo de toda
a história primitiva,
O descobrimento da primitiva gens de direito materno,
como etapa anterior à gens de direito paterno dos povos civi-
lizados, tem, para e história primitiva, a mesma importância
que a teoria da evolução de Darwin para a biologia 6 a teoria
da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política.
Essa descoberta permitiu a Morgan esboçar, pela primeira vez,
uma história da família, onde pelo menos as fases clássicas da
sua evolução, em linhas gerais, são provisoriamente estabele-
cidas, tanto quanto o permitem os dados atuais. Evidente-
mente, iniciou-se uma nova era no estudo da pré-história. Em
torno da gens de direito matemo, gravita, hoje, toda essa
ciência; desde seu descobrimento, sabe-se em que direção enca-
minhar as pesquisas e o que estudar, assim como de que modo
devem ser classificados os resultados. Por isso, fazem-se atual-
mente, nesse terreno, progressos muito mais rápidos que antes
de aparecer o livro de Morgan.
Também na Inglaterra, os estudiosos da pré-história geral.
mente reconhecem agora os descobrimentos de Morgan, ou,
melhor dito, se apoderam desses conhecimentos. Mas quase
nenhum deles reconhece francamente que é a Morgan que
devemos esta revolução do pesamento. Sempre que possível,
silenciam sobre o seu livro, e quanto aó próprio Morgan se
limitam a condescendentes elogios a seus trabalhos anteriores;
esmiúçam com zelo pequenos detalhes de sua exposição, mas
omitem obstinadamente qualquer referência às suas descobertas
realmente importantes,
A primeira edição de Ancient Society está esgotada; na
América, vendem-se mal as publicações desse tipo; na Ingla-
terra, parece que a publicação desse livro foi sabotada siste-
maticamente, e a úmica edição à venda desta obra que faz
época, é a tradução alemã,
1
Por que essa reserva, na qual é difícil não perceber uma
conspiração de silêncio, sobretudo se se levam em conta as
inúmeras citações feitas por simples cortesia e outras provas
de camaradagem, tão frequentes nos trabalhos de nossos reno-
mados pesquisadores da pré-história? Será talvez porque
Morgan é americano e se torna muito duro para os historia-
dores ingleses, apesar do zelo muito meritório com que copiam
documentos, terem de depender de dois estrangeiros geniais,
como Bachofen e Morgan, quanto aos pontos-de-vista gerais
indispensáveis para ordenar e agrupar esses documentos, em
uma palavra, quanto a suas idéias ? O alemão ainda podia ser
tolerado, mas o americano | Em presença de um americano,
acendem-se os brios patrióticos de todo inglês; vi, nos Estados
Unidos, exemplos engraçadíssimos. Acrescente-se a isso que
Mac Lemnan foi, de certo modo, proclamado oficialmente
fundador e chefe da escola pré-histórica inglesa; que, até certo
ponta, se considerava de bom-tom em pré-história não falar
senão com q mais profundo respeito de sua teoria histórica
artificialmente construída, que conduzia desde o infanticídio
até a família de direito materno, passando pela poliandria e
pelo matrimônio por rapto. Era considerado grave sacrilégio
manifestar a menor dúvida acerca da existência de “tribos”
exógamas e endógamas, que se excluíam, absolutamente, umas
às outras; portanto, Morgan, ao dissipar como fumo todos esses
dogmas consagrados, cometeu uma espécie de sacrilégio. Além
disso, destrufa esses dogmas com argumentos cuja simples
exposição obrigava todo mundo a admiti-los como evidentes.
E os admiradores de Mac Lennan, que até então vacilavam,
perplexos, entre a exogamia e a endogamia, sem saber que
caminho tomar, que se viram obrigados a bater na testa e ex-
clamar: “Como pudemos ser tão estúpidos que não desco-
brimos tudo isso nós mesmos há muito tempo *”
E como se tantos crimes ainda não hastassem para que à
escola oficial voltasse friamente as costas a Morgan, este fez
transbordar o copo, não somente criticando, de um modo que
lembra Fourier, à civilização e a sociedade da produção mer-
cantil, forma fundamental da sociedade de nossos dias, como
18
também falando de uma transformação dessa sociedade em
termos que podiam ter saído dos lábios de Karl Marx. Ele
recebeu o merecido, quando Mac Lennan indignadamente o
acusou por ter “uma. profunda antipatia pelo método histórico”,
e quando o professor Giraud-Teulon endossou essa opinião em
Genebra, em 1884. E, no entanto, o mesmo senhor Giraud-
Teulon errava impotentemente em 1874 (Origens da Família)
pelo labirinto da exogamia de Mac Lenman, de onde apenas
Morgan haveria de livrá-lo | Não é necessário detalhar aqui os
demais progressos que a pré-história deve a Morgan; no curso
deste trabalho, encontrar-se-á o que precisa ser dito sobre o
assunto. Os quatorze anos transcorridos desde o aparecimento
de sua obra principal aumentaram bastante o acervo de nossos
dados históricos sobre as sociedades humanas primitivas, Aos
antropólogos, exploradores e pesquisadores profissionais da
pré-história, juntaram-se estudiosos do direito comparado, que
trouxeram novos dados e novos pontos de vista. Com isso,
algumas hipóteses de Morgan sofreram um abalo ou mesmo
eaducaram. Os novos dados, porém, não substituíram em parte
alguma suas idéias principais por outras. A ordem por ele
introduzida na história primitiva subsiste ainda no fundamental.
Pode-se mesmo dizer que essa ordem vai sendo geralmente
reconhecida na mesma medida em que se procura ocultar
quem é o autor desse grande progresso, 1
FrEDRICH ENGELS
Londres, 16 de julho de 1891.
1 Ao regressar de Nova Torque, em setembro de 1988, fiz relações
com um ex-deputado pela circunscrição de Rochester, 6 qual tinha
conhecido Lewis Morgan. Infelizmente, não soube contar-me grande
coisa sobre ele, Morgan vivera como particular em Rochester, ocupado
somente em seus estudos. Um irmão dele tinha sido coronel e ocupara
um posto no Ministério da Guerra em Washington; por intermédio
desse irmão, interessar o govema por suas pesquisas e
fazer publicar várias de suas obras às' expensas do erário público.
Meu interlocutor também o havia ajudado, por diversas vezes, quando
exercia seu mandato no Congresso. (Nota de Engels.)
19
sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que
logrou um domínio quase absoluto da produção de alimentos.
Todas as grandes épocas de progresso da humanidade coin-
cidem, de moda mais ou menos direto, com as épocas em que
se ampliam as fontes de existência”, O desenvolvimento da
família realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão
conclusivos para a delimitação dos períodos,
1 — Estado selvagem
1 FASE INFERIOR. Infância do gênero humano. Os homens
permaneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e
viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores; só isso explica
que continuassem a existir, em meio às grandes feras selvagens.
Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimento; o prin-
cipal progresso desse período é a formação da linguagem arti-
culada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico
estava nessa fase primitiva de evolução. E, embora esse pe-
ríodo tenha durado, provavelmente, muitos milênios, não po-
demos demonstrar sua existência baseando-nos em testemunhos
diretos; mas, se admitimos que o homem procede do reino
animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado tram-
sitório.
2 rAsE MéDrA. Começa com o emprego dos peixes (incluímos
aqui também os crustáceos, moluscos e outros animais aquá-
ticos) na alimentação e com o uso do fogo. Os dois fenô-
menos são complementares, porque o peixe só pode ser plena-
mente empregado como alimento praças ao fogo. Com esta
nova alimentação, porém, os homens fizeram-se independentes
do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas
dos mares, puderam, ainda no estado selvagem, espalhar-se
sôbre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos instru-
mentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra,
az
conhecidos com o nome de paleolíticos, pertencem todos, ou
a maioria deles, a esse período e se encontram espalhados por
todos os continentes, constituindo uma prova dessas migrações.
O povoamento de novos lugares e o incessante afi de novos
descobrimentos, ligados à posse do fogo, que se obtinha pelo
atrito, levaram ao emprego de novos alimentos, como as raizes
e os tubérculos farináceos, cozidos em cinza quente ou em
buracos no chão, e também a caça, que, com a invenção das
primeiras armas — a clava e à lança — chegou a ser um ali-
mento suplementar ocasional. Povos exclusivamente caçadores,
como se afinma nos livros, quer dizer, povos que tenham vivido
apenas da caça, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram
demasiado problemáticos. Como consegúência da incerteza
quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa
época, & antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa
fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda em nossos
dias, os australianos e diversos polinésios,
3 ras superior. Começa com a invenção do arco e da flecha,
graças aos quais os animais caçados vêm a ser um alimento
regular e a caça uma das ocupações normais e costumeiras.
O grco, a corda e a seta já constituíam um instrumento bas-
tante complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência
acumulada e faculdades mentais desenvolvidas, bem como o
conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se
comparamos os povos que conhecem o arco e à Flecha, mas
ignoram a arte da cerâmica (com a qual, segundo Morgan,
começa a passagem à barbárie), encontramos já alguns. indf-
cios de residência fixa em aldeias e certa habilidade na pro-
dução de meios de subsistência, vasos c utensílios de madeira,
o tecido a mão (sem tear) com fibras de cortiça, cestos de
cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida
(neolíticos). Na maioria dos casos, o fogo e o machado de
pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só
tronco de árvore e, em certas regiões, a feitura de pranchas e
vigas necessárias à edificação de casas. Todos esses progressos
28
são encontrados, por exemplo, entre os índios do noroeste da
América, que conheciam o arco e a flecha, mas não a cerá-
mica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que
a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para
a civilização: a arma decisiva.
2— A barbárie
1 rAsE INFERIOR. Inicia-se com a introdução da cerâmica. É
possível demonstrar que, em muitos casos, provavelmente em
todos os lugares, nasceu do costume de cobrir com argila os
cestos ou vasos de madeira, a fim de tomá-los refratários ao
fogo; logo descobriu-se que a argila moldada dava o mesmo
resultado, sem necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvol-
vimento como um fenômeno absolutamente geral, válido em
determinado período para todos os povos, sem distinção de
lugar. Mas, com a barbárie, chegamos a uma época em que
se começa a fazer sentir a diferença de condições naturais
entre os dois grandes continentes. O traço característico do
período da barbárie é a domesticação e criação de animais
e q cultivo de plantas. Pois bem: o contente oriental, o
chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesti-
cáveis e todos os cereais próprios para o cultivo, exceto um;
o continente ocidental, a América, só tinha um mamífero do-
mesticável, a Ihama, — e, mesmo assim, apenas numa parte
do sul — e um só dos cereais cultiváveis, mas o melhor, o
milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a
partir desse momento a população de cada hemisfério se desen-
volve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira
entre as várias fases são diferentes em cada um dos dois casos.
2 rasz MÉDIA. No Leste, começa com a domesticação de
animais; no Oeste, com o cultivo de hortaliças por meio de
24
alfabética e seu emprego para registros literários. Essa fase,
que, como dissemos, só existiu de maneira independente no
hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto
aos progressos da produção. A ela pertencem os gregos da
época heróica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de
Roma, os germanos de Tácito, os normandos do tempo dos
vikings.
Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez,
o arado de ferra puxado por animais, o que toma possível
lavrar a terra em grande escala — q agricultura — e produz,
dentro das condições então existentes, um aumento pratica-
mente quase ilimitado dos meios de existência; em relação com
isso, também observamos a derrubada dos bosques e sua trans-
formação em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível
em grande escala sem a pá e o machado de ferro. Tudo isso
acarretou um rápido aumento da população, que se instala,
densamente, em pequenas áreas. Antes do cultivo dos campos
somente circunstâncias excepcionais teriam podido reunir meio
milhão de homens sob uma direção central — e é de se crer
que isso jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada, encon-
tramos a época mais florescente da fase superior da barbárie.
A principal herança que os gregos levaram da barbárie para
a civilização é constituída dos instrumentos de ferro aperfei-
goados, dos foles de forja, do moinho a mão, da roda de olaria,
da preparação do azeite e o vinho, do trabalho de metais
elevado à categoria de arte, de carretas e carros de guerra, da
construção de barcos com pranchas e vigas, dos princípios de
arquitetura como arte, das cidades amuralhadas com torres e
ameias, das epopéias homéricas e de toda a mitologia. Se
compararmos com isso as descrições feitas por César, e até por
Tácito, dos germanos, que se achavam nos umbrais da fase de
cultura da qual os gregos de Homero se dispunham a passar
para um estágio mais elevado, veremos como foi esplêndido o
desenvolvimento da produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da humanidade através do
estado selvagem e da barbárie, até os começos da civilização
27
— quadro que acabo de esboçar, seguindo Morgan — já é bas-
tante rico em traços característicos novos e, sobretudo, indis-
cutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No
entanto, parecerá obscuro e incompleto se o compararmos com
aquele que se há de descortinar diante de nós, ao fim de nossa
viagem; só então será possível apresentar com toda a clareza
a passagem da barbárie à civilização e o forte contraste entre
as duas. Por ara, podemos peneralizar a classificação de
Morgan da forma seguinte: Estado Selvagem. — Período em
que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos
para ser utilizados; as produções artificiais do homem são,
sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie.
— Período em que aparecem a criação de gado e a agricul.
tura, c se aprende a incrementar a produção da natureza por
meio do trabalho humano. Civilização — Período em que o
homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais,
período da indústria propriamente dita e da arte.
II — A FamíLia
Morgan, que passou a maior parte de sua vida entre os
iroqueses — ainda hoje estabelecidos no Estado de Nova York
— e foi adotado por uma de suas tribos (a dos senekas) en-
contron um sistema de consangiinidade, vigente entre eles,
que entrava em contradição com seus reais vínculos de fa-
amília. Reinava ali aquela espécie de matrimônio facilmente
dissolúvel por ambas as partes, que Morgan chamava “família
sindiásmica”. A descendência de semelhante casal era patente
e reconhecida por todos; nenhuma dúvida podia surgir quanto
às pessoas a quem se aplicavam os nomes de pai, mãe, filho,
filha, irmão ou irmã, Mas, o uso atual desses nomes constituía
uma contradição. O iroquês não somente chama filhos e filhas
aos seus próprios, mas, ainda, aos de seus irmãos, os quais,
por sua vez, o chamam pai. Os filhos de suas irmãs, pelo con-
trário, ele os trata como sobrinhos e sobrinhas, e é chamado
28
de tio por eles. Inversamente, a iroquesa chama filhos e filhas
os de suas irmãs, da mesma forma que os próprios, e aqueles,
como estes, chamam-na mãe. Mas chama sobrinhos e sobri-
nhas os filhos de seus irmãos, os quais a chamam de tia. Do
mesmo modo, os filhos de irmãos tratam-se, entre si, de irmãos
e irmãs, e o mesmo fazem os filhos de irmãs. Os filhos de
uma mulher e os de seu irmão chamam-se reciprocamente
primos e primas. E não são simples nomes, mas a expressão
das idéias que se tem do próximo e do distante, do igual ou
do desigual no parentesco consangúíneo; idéias que servem de
base a um sistema de parentesco inteiramente elaborado e
capaz de expressar muitas centenas de diferentes relações de
parentesco de um único indivíduo. Mais ainda: esse sistema
se acha em vigor não apenas entre todos os índios da América
(até agora não foram encontradas exceções), como também
existe, quase sem nenhuma modificação, entre os aborígines
da Índia, as tribos dravidianas do Dekan e as tribos gauras do
Indostão. As expressões de parentesco dos tamilas do sul da
India e dos senckas-iroqueses do Estado de Nova York ainda
hoje coincidem em mais de duzentas relações de parentesco
diferentes. E, nessas tribos da Índia, como entre os índios da
América, as relações de parentesco resultantes da vigente forma
de família estão em contradição com o sistema de parentesco.
Como explicar esse fenômeno ? Sc tomamos em conside-
ração o papel decisivo da consangiinidade no regime“ social
de todos os povos selvagens e bárbaros, a importância de tão
difundido sistema não pode ser explicada com mero pala-
vreado. Um sistema que prevalece em foda a América, que
existe na Ásia em povos de raças completamente diferentes,
e do qual se encontram formas mais ou menos modificadas por
toda parte na Africa e na Austrália, precisa ser explicado his-
toricamenté — e não com frases ocas, como quis fazer, por
exemplo, Mac Lennan. As designações “pai”, “filho”, “irmão”,
“irmã”, não são simples títulos honoríficos, mas, ao contrário,
implicam em sérios deveres recíprocos, perfeitamente defi-
nidos, e cujo conjunto forma uma parte essencial do regime
social desses povos. E a explicação foi encontrada. Nas ilhas
29
tindo-se que tenha realmente existido, pertence a uma época
tão remota que não podemos esperar encontrar provas diretas
de sua existência, nem mesmo entre os fósseis sociais, nos sel-
vagens mais atrasados. É precisamente de Bachofen o mérito
de ter posto no primeiro plano o estudo dessa questão. 1
Ultimamente, passou a ser moda negar esse período inicial
na vida sexual do homem. Pretendem poupar à humanidade,
essa “vergonha”. E, para isso, apoiam-se não apenas na falta
de provas diretas, nas, principalmente, no exemplo do resto
do reino animal. Neste, Letoumeau (A Evolução do Matri-
mónio e da Família, 2 1888) foi buscar numerosos fatos, de
acordo com os quais a promiscuidade sexual completa só é
própria das espécies mais inferiores. Mas, de todos esses fatos
só posso tirar uma conclusão; não provam coisa alguma quanto
ao homem e suas primitivas condições de existência. A união
por longo tempo entre os vertebrados pode ser explicada, de
modo cabal, por motivos fisiológicos; nas aves, por exemplo,
deve-se à necessidade de proteção à fêmea enquanto esta
choca os ovos; os exemplos de ficl monogamia que se encon-
tram entre as aves nada provam quanto ao homem, pois o
homem não descende da ave. E, se a estrita monogamia é o
âpice da virtude, então a palma deve ser dada à tênia soli-
1 Bachofen prova quão pouco compreendeu o que descobrira, ou antes
adivinhara, no designar tal estado primitivo com o nome de “heterismo”.
Quando os gregos introduziram este palavra em seu idioma, o heterismo
significava para eles: contato cama! de homens solteiros ou monógamos
com mulheres não casadas; o heterismo supunha sempre, portanto, uma
forma definida de matrimônio, fora da qual esse comércio semal so
realiza, e admite a prostituição, pelo menos como possibilidade. Jamais
a palavra foi empregada com sentido diverso: assim a emprego eu,
essim a usou Morgan. Bachofen leva todos os seus importantíssimos
descobrimentos a um plano de inereditável misticismo, pois imagina
que as relações entre homens e mulheres, a se transformarem com &
evolução histórica, sa originam das idéias religiosas da humanidade em
cada época, e não de suas condições reais de existência. (Nota da Engels)
2 Charles Letoumesau, L'fvolution du Mariage et de la Fomille, Paris,
1888. (N. da R.)
32
tária que, em cada um dos seus cingienta a duzentos anéis,
possui um aparelho sexual masculino e feminino completo, e
passa a vida inteira coabitando consigo mesma em cada um
desses anéis reprodutores.
Mas, se nos limitarmos aos mamiferos, neles encontramos
todas as formas de vida sexual: a promiscuidade, a união por
grupos, a poligamia, a monogamia; só falta a poliandria, à
qual apenas os seres humanos podiam chegar. Mesmo nossos
parentes mais próximos, us quadrúmanos, apresentam todas as
variedades possíveis de ligação entre machos e fêmeas; e se
nos restringirmos a limites ainda mais estreitos, considerando
exclusivamente as quatro espécies de macacos antropomorfos,
deles Letourneau só nos pode dizer que vivem ora na mone-
gamia ora na poligamia; ao passo que Saussure, segundo Gi-
raud-Teulon, declara que são monógamos. Ficam longe de
qualquer prova, também, as recentes assertivas de Westermarck
(A História do Matrimônio Humano, 1 1891) sobre a mono-
gamia do macaco antropomorfo. Em resumo, os dados são
de tal ordem que o honrado Letourneau está de acardo em
que “não há nos mamíferos relação alguma entre o grau de
desenvolvimento intelectual e a forma de união sexual”. E,
Espinas (As Sociedades Animais, 2 1877) diz, com franqueza:
“A horda é o mais elevado dos grupos sociais que pudemos
observar nos animais. Parece composta de famílias, mas, já em
sua origem, a família e « horda são antagônicas, desenvol.
vem-se em razão inversa uma da outra.”
Pelo que acabamos de ver, nada de positivo sabemos sobre
a família e outros agrupamentos sociais dos macacos antropo-
morfos; os dados que possuímos contradizem-se frontalmente
e não há por que estranhá-los. Como são contraditórias, e ne-
cessitadas de serem examinadas e comprovadas criticamente,
1 EA. Westermarck, The History of Human Marriage, Londres, 1891.
(N. da Ro)
2 A. Espínas, Des Sociétés Animales. Etude do Psychologie Comparde,
Paris, 1877. (N. da R.),
ss
as notícias que temos das tribos humanas no estado selvagem |
Pois bem, as sociedades dos macacos são muito mais dificeis
de observar que as dos homens. Por isso, enquanto não dis-
pusermos de uma informação ampla, devemos recusar qualquer
conclusão provinda de dados que não inspirem crédito.
Entretanto, o trecho de Espinas que citamos nos dá melhor
ponto de apoio para investigação. À horda e a família, nos
animais superiores, não são complementos recíprocos e sim
fenômenos antagônicos. Espinas descreve bem de que modo
o ciúme dos machos no periodo do cio relaxa ou suprime
momentaneamente os laços sociais da horda. “Onde a família
está intimamente unida, não vemos formarem-se hordas, salvo
raras exceções. Pelo contrário, as hordas constituem-se quase
que naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a poliga-
mia... Para que surja a horda, é necessário que os laços fami-
Jiares se tenham relaxado e o individuo tenha recobrado sua
liberdade. É por isso que só raramente encontramos bandos
organizados entre os pássaros... Por autro lado, é nos mamt-
feros que vamos encontrar sociedades mais ou menos orga-
nizadas, justamente porque o individuo neste caso não é absor-
vido pela família... Assim, pois, & consciência coletiva da
horda não pode ter em sua origem um inimigo maior do que
& consciência coletiva da família. Não hesitamos em dizê-lo:
se se desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi
devido somente ao fato de que a ela se incorporaram famílias
profundamente alteradas, conquanto isso não exclua a possibi-
lidade de que, precisamente por este motivo, aquelas famílias
pudessem mais adiante reconstituir-se sob condições infinita-
mente mais favoráveis.” (Espinas, cap. 1, citado por Giraud-
Teulon em Ortgens do Matrimônio e da Família, 1884,1 págs.
518/520).
Como vemos, as sociedades animais têm certo valor para
tirarmos conclusões concementes às sociedades humanas, mas
1 A. Giraud-Teulon, Les Origines dy Mariage et de la Famille, Genebra,
1884. (N. da R.)
34
invenção e das mais valiosas), o comércio sexual entre pais é
Filhos não podia ser mais repugnante que entre outras pessoas
de gerações diferentes, coisa que ocorre em nossos dias até nos
países mais beatos, sem produzir grande horror. Velhas “don-
zelas” de mais de setenta anos casam-se, se são bastante ricas,
com jovens de uns trinta anos. Mas, se despojarmos as formas
de família mais primitivas que conhecemos das concepções de
incesto que lhes correspondem (concepções completamente
diferentes das nossas e muitas vezes em contradição direta com
elas), chegaremos a uma forma de relações camais que só
pode ser chamada de promiscuidade sexual, no sentido de que
ainda não existiam es restrições impostas mais tarde pelo
costume, Mas disso não se deduz, de modo algum, que nã
prática cotidiana imperasse inevitavelmente a promiscuidade,
Às uniões temporárias por pares não ficam excluídas, em abso-
luto, e ocorrem, na maioria dos casos, mesmo no matrimônio
por grupos. E se Westermarck, o último a negar esse estado
primitivo, dá o nome de matrimônio a todo caso em que os
dois sexos convivem até o nascimento de um pimpolho, pode-se
dizer que tal matrimônio podia muito bem verificar-se nas
condições da promiscuidade sexual sem contradizê-la em nada,
isto é, sem contradizer a inexistência de barreiras impóstas
pelo costume às relações sexuais. É verdade que Westermarck
parte do ponto-de-vista de que “a promiscuidade supõe a su-
pressão des inclinações individuais”, de tal sorte que “sua forma
por excelência é a prostituição”, Parece-me, ao contrário, que
será impossível formar a menor idéia das condições primitivas
enquanto elas forem observadas através da janela de um hy-
panar. Voltaremos a falar desse assunto quando tratarmos do
matrimônio por grupos,
Segundo Morgan, desse estado primitivo de promiscuidade,
provavelmente bem cedo, formaram-se:
1 À rAMíÍLIA CONSANGÚÍNEA, à primeira etapa da família. Nela,
os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs
37
e avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entre si;
o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais é
mães; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro cfr-
culo de cônjuges comuns; e seus filhos, isto é, os bisnetos dos
primeiros, o quarto círculo. Nessa forma de família, os ascen-
dentes e descendentes, os pais e filhos, são os únicos que, reci-
procamente, estão excluídos dos direitos e deveres ( poderiamos
dizer) do matrimônio. Irmãos e irmãs, primos e primas, em
primeiro, segundo e restantes graus, são todos, entre si, irmãos
e irmãs, e por isso mesmo maridos c mulheres uns dos outros.
O vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a
relação carnal mútua, 1
1 Em uma carta escrita ne primavera de 1882, Marx condena, nos mais
ásperos termos, v falscamento dos tempos primitivos nos Nibelungos
de Wagner. “Onde já se viu que o irmão abrace a irmã, como uma
noiva?” A estes “deuses da luxúria” wagnerianos, que, no estilo mo-
demo, tomam mais picantes suas aventuras amorosas com certa dose
de incesto, responde Marx: “Nos tempos primitivos, & irmã era esposa
e isso era moro”. (Nota de Engels)
A quarta edição do presente livro, Engels acrescentou, nesse ponto,
outra nota sobre o assunto. A seguir reproduzimo-la;
— Um amigo meu, francês, grande adorador de Wagner, não está de
acordo com a nota precedente, e adverte que já no Ogisdrecko um dos
antigos Eddas que servin de base a Wagner, Lolá, dirige a Freya esta
recriminação: “Abraçaste teu próprio irmão diante dos deuses.” Do
que parece ser possível inferir-se que, já naquela época, estava proibido
O casamento entre irmão e irmã. O Ogisdrecka, no entanto, é expressão
de uma época em que já estava completamente destruída a fé nos an-
tigos mitos; constitui uma simples sátira, no estilo da de Luciano, contra
os deuses. Se Loki, representendo o papel de Mefistófeles, dirige alt
semelhante recriminação & Frcya, isso constitui antes um argumento
contra Wagner. Alguns versos mais adiante, Loki diz, também, a
Niordhr: “Tal é a filho que procriaste com tua irmã (“Vodh systur
thinni gaztu shikan mozg.”) Pois bem, Niordhr não é um Ase, e sim um
Vane, e na saga dos Inglinga 'está dito que os casamentos entre irmão
é irmã eram praticados no país das Vanes, o que não ocorria entre os
Ases. Isso tenderia a provar que os Vencs eram deuses mais antigos
do que os Ases. Em todo caso, Niordhr vive entre os Ases em pé de
igualdade, c à Ogisdrecka é, assim, uma prova de que, no tempo de
s8
Exemplo típico de tal família seriam descendentes de um
casal, em cada uma de cujas gerações sucessivas todos fossem
entre si irmãos e irmês e, por isso mesmo, maridos e mulheres
uns dos outros,
A família consangiifnea desapareceu. Nem mesmo os povos
mais atrasados de que fala a história apresentam qualquer
exemplo seguro dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que
ela deve ter existido é o sistema de parentesco havaiano, ainda
vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de paren-
tesco consangiiíneo que sé puderam surgir com essa forma de
família; e somos levados à mesma conclusão" por todo o desen-
volvimento ulterior da família, que pressupõe essa forma como
estágio preliminar necessário.
2 A FAMÍLIA PUNALUANA. Se 0 primeiro progresso na organi-
zação da família consistiu em excluir os pais e filhos das re-
lações sexuais recíprocas, o segundo foi a exclusão dos irmãos.
Esse progresso foi infinitamente mais importante que o prt-
meiro é, também, mais difícil, dada a maior igualdade nas
idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a ponco, prova-
velmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos (isto é,
irmãos por parte de mãe), a princípio em casos isolados e
depois, gradativamente, como regra geral (no Havaí ainda
havia exceções no presente século) e acabando pela proibição
do matrimônio até entre irmãos colaterais (quer dizer, segundo
nossos atuais nomes de parentesco, entre primos carnais, primos
em segundo e terceiro graus). Segundo Morgan, esse progresso
constitui “uma magnífica ilustração de como atua 0 princípio
formação das sagas norueguesas, o matrimónio entre irmão é irmã não
produzia horror algum, pelo menos entre os denses. Se se quer deg-
culpar Wagner, em ug de recorrer no Edds talvez fosse melhor invocar
Goethe, que ma b: O Deus e a hailadeira comete falta análoga,
relativamente ao dever religioso da mulher de entregar-se nos templos,
rito que Goethe faz assemelhar-se muito à prostituição modema. (Nota
de Engels à quarta edição)
so
toda a Polinésia se os piedosos missionários, tal como no pas-
sado os frades espanhóis na América, tivessem podido ver
nessas relações anticristãs algo mais que uma simples “abomi-
nação.” ! Quando César nos diz dos bretões — os quais, naquele
tempo, estavam na fase média da harbárie — que “cada dez
ou doze homens têm mulheres comuns, com a particularidade
de, na maioria dos casos, serem irmãos e irmãs, e pais e filhos”,
a melhor explicação que se pode dar para isso é o matrimônio
por grupos. As mães bárbaras não têm dez ou doze filhos em
idade de manter mulheres comuns; mas o sistema americano
de parentesco, que corresponde à família punaluana, dá ensejo
a um grande número de irmãos, posto que todos os primos
carnais ou remotos de um homem são seus irmãos. É possível
que a expressão “pais com seus filhos” seja um equívoco de
César; esse sistema, entretanto, não exclui absolutamente que
se encontrem em um mesmo grupo conjugel pai e filho, mãe
e filha, mas apenas que nele se encontrem pei e filha, mãe e
filho. Essa forma de familia nos fomece, também, a expli-
cação mais simples para as narrações de Heródoto e de outros
escritores antigos sobre a comunidade de mulheres entre oé
povos selvagens e bárbaros, O mesmo se pode dizer do que
Watson e Kaye contam acerca dos tikurs do Audh, ao norte
do Ganges, em seu livro A População da Índia? (1868/1872):
“Cosbitam (quer dizer, fazem vida sexual) quase sem dis-
tinção, em grandes comunidades; e quando dois indivíduos se
consideram marido e mulher, o vínculo que 08 une é pura-
mente nominal”
1 Os vestígios das relações sesuais sem restrições, que Bachofen acredita
“ter descoberto, seu “Sumpfrcugang”, referem-se ao matrimônio
grupos, do qual, hoje, é impossível duvidar. “Se Bachofen acha
licenciosos os matrimônios punaluanos, um homem daquela época consi-
deraria a maior parte dos casamentos atuais entre primos próximos ou,
“distantes, por linha patema ou linha materna, tão incestuosos como os
casamentos entre irmãos eonsangiúíneos” [Marx]. (Nota de Engels)
2 J. F. Watson e J. W. Kaye, The People of India, vols. I/VI, Londres,
1868/1872. (N. da R)
42
Na imensa maioria dos casos, a instituição da gens parece
ter saído diretamente da família punaluana. É certo que o sis-
tema de classes ! australiano também representa um ponto de
partida para a gens; os australianos têm a gens, mas ainda não
têm a família punaluana, e sim uma forma mais primitiva de
grupo conjugal.
Em todas as formas de família por grupos, não se pode
saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se
quem é a mãe. Ainda que ele chame filhos seus a todos as da
familia comum, e tenha deveres maternais para com eles, nem
por isso deixa de distinguir seus próprios filhos entre os demais.
É claro, portanto, que em toda parte onde existe o matrimônio
por grupos a descendência só pode ser estabelecida do lado
materno, e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem
feminina. Encontram-se nesse caso, de fato, todos qs povos sel-
vagens e todos os povos que se acham na fase inferior da bar-
bárie; ter sido o primeiro a fazer essa descoberta foi a segunda
grande façanha de Bachofen. Ele designa o reconhecimento
exclusivo da filiação matema e as relações de herança dele
deduzidas com o nome de direito matemo. Conservo essa ex-
pressão por motivo de brevidade, mas ela é inexata, porque
naquela fase da sociedade ainda não existia direito, no sentido
jurídico da palavra.
Tomemos agora, ne família punaluana, um dos dois grupos
típicos — concretamente, o de uma série de irmãs camais e
colaterais (isto é, descendentes de irmãs carnais em primeiro,
segundo e outros graus), com seus filhos e seus irmãos carnais
ou colaterais por linha matema (os quais, de acordo com nossa
premissa, não são seus maridos), e teremos exatamente p cfr-
culo dos indivíduos que, mais adiante, aparecerão membros de
uma gens, na forma primitiva desta instituição. Todos têm por
tronco comum uma mãe e, em virtude dessa origem, os descen-
dentes femininos formam gerações de irmãs. Porém, os ma-
1 Aqui, como adiante, a palavra classos se refere aos grandes grupos
conjugais dos aborígines da Austrália. (N. da R.)
48
tidos de tais irmãs já não podem ser seus irmãos; logo, não
podem descender daquele tronco matemo e não pertencem a
este grupo consangiíneo, que mais tarde chega à constituir
a gens, embora seus filhos pertençam a tal grupo, pois a des-
cendéncia por linha materna é a única decisiva, por ser a única
certa. Uma vez proibidas as relações sexuais entre todos os
irmãos e irmãs — inclusive os colaterais mais distantes — por
linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa
gens, isto é, constitui-se num círculo fechado de parentes con-
sanguíneos por linha feminina, que não se podem casar uns
com os outros; e, a partir de então, este círculo se consolida
cada vez mais por meio de instituições comuns, de ordem
social e religiosa, que o distingue das outras gens da mesma
tribo. Adiante voltaremos, com maiores detalhes, a essa questão,
Se considerarmos, contudo, que a gens surge da família puna-
luana, não só necessária mas naturalmente, teremos funda-
mento para considerar quase indubitável a existência anterior
dessa forma de família em todos os povos em que podem ser
comprovadas instituições gentílicas, isto é, em quase todos os
povos bárbaros e civilizados.
Quando Morgan escreveu seu livro, nossos conhecimentos
sobre o matrimônio por grupos eram muito limitados. Sabia-se
de alguma coisa do matrimônio por grupos entre os australianos
organizados em classes e, além disso, Morgan já havia publi-
cado em 1871 todos os dados que possuía a respeito da família
punaluana no Havaí. À família punaluana propiciava, por um
lado, a explicação completa do sistema de parentesco vigente
entre os Índios americanos e que tinha sido o ponto de partida
de todas as investigações de Morgan; por outro lado, era a
base para a dedução da gens do direito matemo; e, finalmente,
era um grau de desenvolvimento muito mais alto que o das
classes australianas. Compreende-se, pois, que Morgan a con-
cebesse como estágio de desenvolvimento Imediatamente an-
terior ao matrimônio sindiásmico e lhe atribuísse uma difusão
geral nos tempos primitivos. Desde então, chegamos a co-
nhecer outra sério de formas de matrimônio por grupos, e
agora sabemos que Morgan foi longe demais nesse ponto. No
4a
dispersa, esse matrimônio por grupos, visto de perto, não é tão
monstruoso como o figura a fantasia dos filisteus, acostumados
à sociedade da prostituição. Ao contrário, transcorreram muitos
anos antes de que se viesse a suspeitar de sua existência, a
. qual, na verdade, foi posta de novo em dúvida sé muito recen-
temente. Aos olhos do observador superficial, parece uma
monogamia de vínculos bastante frouxos e, em alguns lugares,
uma poligamia acompanhada de infidelidade ocasional É
necessário consagrar-lhe anos de estudo, como fizeram Fison
e Howitt, para descobrir nessas relações conjugais (que, na
prática, recordam muito bem à generalidade dos europeus os
costumes de suas pátrias) a lei em virtude da qual o negro
australiano, a milhares de quilômetros de seu lar, nem por isso
deixa de encontrar, entre gente cuja linguagem não com-
preende — e amiúde em cada acampamento, em cada tribo —
mulheres que se lhe entregam voluntariamente, sem resistência;
lei por força da qual quem tem várias mulheres cede uma a-
seu hóspede para ele passar a noite. AH, unde o europeu vê
imoralidade e ausência de qualquer lei, reina, de fato, uma ki
rigorosa. As mulheres pertencem à classe conjugal do forasteiro
e são, por conseguinte, suas esposas natas; à mesma lei moral
que destina um a outro, proíbe, sob pena de infâmia, todo
intercurso sexual fora das classes conjugais que se pertencem
reciprocamente, Mesmo nos lugares. onde se pratica o rapto
das mulheres, que ocorre amiúde e em várias regiões é regra
geral, a lei das classes é mantida escrupulosamente.
No rapto das mulheres, encontram-se, já, indícios da pas-
sagem à monogamia, pelo menos na forme de casamento sin
diásmico; quando um jovem, com ajuda de seus amigos, rapta,
à força ou pela sedução, uma jovem, ela é possulda por todos,
um em seguida ao outro, mas depois passa a ser esposa do pro-
motor do rapto. E, inversamente, se a mulher roubada foge
da casa de seu marido e é recolhida por outro, torna-se esposa
deste último, perdendo o primeiro suas prerrogativas. Ao lado
e no seio do matrimônio por grupos, que, em geral, continua
existindo, encontram-se, pois, relações exclusivistas, uniões por
casais, a prazo mais ou menos longo, e também a poligamia;
47
de maneira que também aqui o matrimônio por grupos vai
se extinguindo, ficando o problema reduzido a sabe-se quem,
sob a influência européia, desaparecerá primeiro da cena: o
matrimônio por grupos ou os negros australianos que ainda o
praticam,
O matrimônio por classes inteiras, tal como existe ne Aus-
trália, é, em todo caso, uma forma muito atrasada é muito
primitiva do matrimônio por grupos, ao passo que a família
punaluana constitui, pelo que nos é dado conhecer, o seu grau
superior de desenvolvimento. O primeiro parece ser a forma
correspondente ao estado social dos selvagens errantes; a se-
gunda já pressupõe o estabelecimento fixo de comunidades
comunistas e conduz diretamente ao grau imediatamente supe-
rior de desenvolvimento. Entre essas duas formas de matri-
mônio, encontraremos ainda, sem dúvida, graus intermediários;
este é um terreno para pesquisas que apenas foi descoberto,
e no qual somente se deram os primeiros passos.
3 A FAMÍLIA SINDIÁSMICA. No regime de matrimônio por
grupos, ou talvez antes, já se formavam uniões por pares, de
duração mais ou menos longa; o homem tinha uma mulher
principal (ainda não se pode dizer que fosse uma favorita)
entre suas numerosas esposas, e era para ela 0 esposo principal
entre todos os outros, Esta circunstância contribuiu bastante
para a confusão produzida na mente dos missionários, que
vêem no matrimônio por grupos ora uma comunidade pro-
míscua das mulheres, ora um adultério arbitrário. A medida,
porém, que evoluíam as gens e iam-se fazendo mais numerosas
as classes de “irmãos” e “irmãs”, entre os quais agora era im-
possível o casamento, a união conjugal por pares, baseada no
costume, foi-se consolidando. O impulso dado pela gens à
proibição do matrimônio entre parentes consangiifneos levou
as coisas ainda mais longe. Assim, vemos qué entre os iro-
queses e entre a maior parte dos índios da fase inferior da
barbárie, está proibido o matrimônio entre todos os parentes
48
reconhecidos pelo seu sistema, no qual há algumas centenas
de parentescos diferentes. Com esta crescente complicação das
proibições de casamento, tomaram-se cada vez mais impossíveis
as uniões por grupos, que foram substituídas pela família sin-
diásmica. Neste estágio, um homem vive com uma mulher,
mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional
continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia
seja raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo
tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, en-
quanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas cruel-
mente castigado. O vínculo conjugal, todavia, dissolve-se com
facilidade por wna ou por outra parte, e depois, como antes,
os filhos pertencem exclusivamente à mãe.
Nessa exclusão, cada vez maior, que afeta os parentes con-
sangiiíncos do laço conjugal, a seleção natural continua a produ-
zir seus efeitos. Segundo Morgan, o “matrimônio entre gens não
consangúíneas engendra uma raça mais forte, tanto física como
mentalmente; mesclavam-se duas tribos adiantadas, e os novos
crânios e cérebros cresciam naturalmente até que compreen-
diam as capacidades de ambas as tribos”. As tribos que haviam
adotado o regime das gens estavam chamadas, pois, a predo-
minar sobre as mais atrasadas, ou a arrastá-las com seu exemplo.
A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto,
consiste numa redução constante do cfreulo em cujo seio pre-
valece a comunidade conjugal entre os sexos, circulo que origi-
nariamente abarcava a tribo inteira. A exclusão progressiva,
primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes
e, por fim, até das pessoas vinculadas apenas por aliança, toma
impossível na prática qualquer matrimônio por grupos; como
último capítulo, não fica senão o casal, unido por vínculos ainda
frágeis — essa molécula com cuja dissociação acaba o matri-
mônio em geral. Isso prova quão pouco tem a ver a origem
da monogamia com o amor sexual individual, na atual acepção
da palavra. Prova-o ainda melhor a prática de todos os povos
que se acham nesta fase de seu desenvolvimento, Enquanto
nas anteriores formas de família os homens nunca passavam
49
ua sociedade. Povus nos quais as mulheres se vêem obrigadas
a trabalhar muito mais do que lhes caberia, segundo nossa
maneira de ver, têm fregientemente muito mais consideração
real por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada,
cercada de aparentes homenagens, estranha à todo trabalho
efetivo, tem uma posição social bem inferior à mulher bár-
bara, que trabalha duramente, e, no seio do seu povo, vêse
respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau =
senhora) e o é de fato por sua própria posição.
Novas investigações acerca dos povos do noroeste e so-
bretudo no sul da América, que ainda se acham na fase supe-
rior do estado selvagem, deverão dizer-nos se o matrimônio
sindiásmico substituiu ou não por completo hoje, na América,
o matrimônio por grupos. Quanto aos sul-americanos, são
referidos tão variados exemplos de licença sexual que se toma
difícil admitir o desaparecimento completo do antigo matri-
mônio por grupos. Em todo caso, ainda não desapareceram
todos os seus vestígios. Pelo menos, em quarenta tribos da
América do Norte, o homem que se casa com a moça mais
idosa tem direito a tomar igualmente como mulheres 2 todas
as irmãs da mesma, logo que cheguem à idade própria. Isto é
um vestígio da comunidade de maridos para todo um grupo
de irmãs. Dos habitantes da península da Califómia (fase
superior do estado selvagem), conta Bancroft que têm certas
festividades em que se reúnem várias “tribos” para praticar o
intercurso sexual mais promíscuo. Com toda a evidência são
gens, que, nessas festas, conservam uma vaga remíniscência do
tempo em que as mulheres de uma gens tinham por maridos
comuns todos os homens de outra, e reciprocamente. O mesmo
costume impera ainda na Austrália. Em alguns povos, acon-
tece que os anciãos, os chefes e os feiticeiros sacerdotes pra-
ticam, em proveito próprio, a comunidade de mulheres e mo-
nopolizam a maior parte delas; em compensação, porém,
durante certas festas e grandes assembléias populares, são
obrigados a admitir a entiga posse comum e a permitir que
suas mulheres se divirtam com os homens jovens, Westermarck
52
(págs. 32 e 33) dá uma série de exemplos de saturnais? desse
gênero, nas quais ressurge, por pouco tempo, » antiga liber.
dade de intercurso sexual: cntre os hos, os santalas, os pan-
dchas e os cotaros, na Índia, em alguns povos africanos, eto.,
Westermarck deduz, de maneira assaz estranha, que estes fatos
não constituem restos do matrimônio por grupos — cuja exis-
tência ele nega — e sim restos do período do cio, que os ho-
mens primitivos tiveram em comum com os animais.
Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen:
o da grande difusão da forma de transição do matrimônio por
grupos ao matrimônio sindiásmico. Aquilo que Bachofen Te-
presenta como uma penitência pela transgressão de antigos
mandamentos dos deuses, uma penitência imposta à mulher
para ela comprar sen' direito à castidade, não passa, em re-
sumo, de uma expressão mística do resgate mediante o qual
a mulher se liberta da antiga comunidade de maridos e ad-
quire para si o direito de não se entregar a mais de um
homem. Esse resgate consiste em deixar-se possuir, durante
um determinado período: as mulheres babilônicas estavam
obrigadas a entregar-se uma vez por ano, no templo de Mi.
lita, 2 outros povos da Ásia Menor enviavam suas filhas ao
templo de Anaitis, º onde, durante anos inteiros, elas deveriam
praticar o amor livre com os favoritos que escolhessem, antes
de lhes ser concedida permissão para casarem-se; em quase
todos os povos asiáticos de entre o Mediterrâneo e o Ganges
há práticas análogas, disfarçadas em costumes religiosos.
O sacrifício de expiação, que desempenha o papel do
resgate, toma-se, com o tempo, cada vez mais ligeiro — como
nota Bachofen: “A oferenda, repetida a cada ano, cede lugar
a um sacrifício feito uma única vez; ao heterismo das ma-
1 Satumais: Festas do massa designadas segundo o deus romano Sa
tumo, que se celebravam na antiga Roma em comemoração ao término
da semeadura. Designação geral para farras desbragadas e comércio
sexual promíseuo. (N, da Ro)
2 Milita: Deusa bebilônica do amor, (N. da A.)
3 Anaitis: Deusa do amor da Antiga Tirana. (N, da R)
tronás, segue-se o das jovens solteiras; verifica-se a prática
antes do matrimônio, ao invés de durante o mesmo; e em lugar
de abandonar-se a todos, sém ter o direito de escolher, a
mulher já não se entrega senão a certas pessoas” (Direito Ma-
terno,! pág. xx.)
- Em outros povos não existe esse disfarce religioso; entre
alguns deles — os trácios, os celtas, etc. na antiguidade, em
grande número de aborígines da Índia, nos povos malaios, nos
ilhéus da Oceania e entre muitos índios americanos, hoje —
as jovens gozam de maior liberdade sexual até contraírem ma-
trimônio. Assim acontece, sobretudo, na América do Sul, con-
forme podem atestá-lo quantos hajam penctrado um pouco em
seu interior. De uma rica família de origem índia, refere
Agassiz (Viagem pelo Brasil? Boston, 1886, pág. 226) que,
“tendo conhecido a filha da casa, perguntou-lhe por seu pai,
supondo que seria o marido de sua mãe, oficial do exército
em campanha contra o Paraguai; mas a mãe lhe respondeu,
com um sorriso: “Não tem pai, é filha da fortunas, “As
mulheres índias ou mestiças falem sempre neste tom, sem con-
siderar vergonhoso ou censurável, de seus filhos ilegítimos; e
essa é a regra, ao passo que o contrário parece ser a exceção.
Os filhosf...], amiúde conhecem apenas sua mãe, porque todos
os cuidados e todas as responsabilidades recaem sobre ela; nada
sabem a respeito do pai, nem parece possa ocorrer à mulher
a idéia de que ela ou seus filhos tenham o direito de reclamar
dele alguma coisa” O que aqui parece assombroso ao homem
civilizado é simplesmente a regra no matriarcado e no matri-
mônio por grupos,
Em outros povos, os amigos e parentes do noivo, on os
convidados à celebração das bodas, exercem, durante o casa-
mento mesmo, q direito à noiva, por costume imemorial, e ao
1 J.J, Bachofen, Das Mutterrecht, Stuttgart, 1881. (N. de R.)
2 L. Agassiz, A Journey in Brazil, Boston, 1888. (N. da R)
3 Em português, no original alemão. Engels traduz a seguir. (Nota
da Tradutor)
54
nela tenha existido a monogamia estável, em qualquer tempo
ou lugar, antes do descobrimento e da conquista. O contrário
acemteceu no Velho Mundo.
Aqui, a domesticação de animais e a criação do gado
haviam aberto mananciais de riqueza até então desconhe-
cidos, criando relações sociais inteiramente novas. Até à fase
inferior dá barbárie, a riqueza duradoura limitava-se pouco
mais ou menos à habitação, às vestes, aos adomos primitivos
e aos utensílios necessários para a obtenção e preparação dos
alimentos: o barco, as armas, os objetos caseiros mais simples.
O alimento devia ser conseguido todo dia, novatnente. Agora,
com suas manadas de cavalos, camelos, asnos, bois, cameiros,
cabras e porcos, os povos pastores, que iam ganhando terreno
(os ários, no indiano País dos Cinco Rios e no vale do Ganges,
assim como nas estepes de Oxus é Jaxartes, na ocasião esplen-
didamente irrigadas, e os semitas no Tigre e no Eufrates),
haviam adquirido riquezas que precisavam apenas de vigi-
lância e dos cuidados mais primitivos para reproduzir-se em
proporção cada. vez maior e fornecer abundantíssima alimen-
tação de came e leite, Desde então, foram relegados a segunda
pleno todos os meios anteriormente utilizados; a caça, que em
Outros tempos era uma necessidade, transformou-se em passa-
tempo.
A quem, no entanto, pertenceria essa riqueza nova P Não
há dúvida de que, na sua origem, pertenceu à gens. Mas-bem
cedo deve ter-se desenvolvido a propriedade privada dos re-
banhos. É bem difícil dizer se o autor do chamado primeiro
livro de Moisés considerava o patriarca Abraão proprietário
de seus rebanhos por direito próprio, por ser o chefe de uma
comunidade familiar, ou em virtude de seu caráter de chefe
hereditário de uma gens. Seja como for, o certo é que não
devemos imaginá-lo como proprietário, no sentido modemo
da palavra. É indubitável, também, que, nos umbrais da his-
tória autenticada, já encontramos em toda parte os rebanhos
como propriedade particular dos chefes de família, com o
mesmo título que os produtos artísticos da barbárie, os uten-
57
sílios de metal, os objetos de luxo e, finalmente, o gado hu-
mano; os escravos.
A escravidão já tinha sido inventada. O escravo não tinha
valor algum para os bárbaros da fase inferior. Por isso os
índios americanos relativamente aos seus inimigos vencidos
agiam de maneira bastante diferente da usada na fase supe-
rior, A tribo vencedora matava os homens derrotados, ou ado
tava-os como irmãos; as mulheres eram tomadas como es-
posas, ou, juntamente com seus filhos sobreviventes, adotadas
de qualquer outra forma. Nessa fase, a força de trabalho do
homem ainda não produz excedente apreciável sobre os gastos
de sua mariutenção. Ao introduzirem-se, porém, a criação do
gado, a elaboração dos metais, a arte do tecido e, por fim,
a agricultura, as coisas ganharam outra fisionomia. Princi-
palmente depois que os rebanhos passaram definitivamente à
propriedade da família, deu-se com a força de trabalho o
mesmo que havia sucedido com as mulheres, antes tão fáceis
de obter e que agora já tinham seu valor de troca e eram
compradas. A família não se multiplicava com tanta rapidez
quanto o gado. Agora eram necessárias mais pessoas pars
cuidados com a criação; podia ser utilizado para isso 9 prisic
neiro de guerra que, além do mais, poderia multiplicar-se tal
como o gado,
Convertidas todas essas riquezas em propriedade parti.
cular das famílias, e aumentadas depois rapidamente, asses-
taram um rude golpe na sociedade alicerçada no matrimônio
sindiásmico e na gens baseada no matriareado. O matrimônio
sindiásmico havia introduzido na família um elemento novo.
Junto à verdadeira mãe tinha posto o verdadeiro pai, prova-
velmente mais autêntico que muitos “pais” de nossos dias. De
acordo com a divisão do trabalho na família de então, cabia
ao homem procurar a alimentação e os instrumentos de tra-
balho necessários para isso; consegientemente, era, por direito,
o proprietário dos referidos instrumentos, e em caso de scpa-
ração levava-os consigo, da mesma forma que a mulher con-
servava os seus utensílios domésticos. Assim, segundo os
58
costumes daquela sociedade, o homem era igualmente pro-
prietário do novo manancial de alimentação, o gado, e, mais
adiante, do novo instrumento de trahalho, o escravo. Mas,
consoante o uso daquela mesma sociedade, seus filhos não
podiam herdar dele, pois, quanto a cste ponto, as coisas se
passavam da maneira a seguir exposta:
Com base no direito materno, isto é, enquanto a descen-
dência só se contava por linha feminina, e segundo a primi-
tiva lei de herança imperante na gens, os membros dessa
mesma gens herdavam, no princípio, do seu parente gentílico
falecido, Seus bens deveriam ficar, pois, dentro de gens. De-
vido à sua pouca importância, esses bens passavam, na prá-
tica, desde os tempos mais remotos, aos parentes gentílicos
mais próximos, isto é, aos consangiiíneos por linha materna.
Entretanto, os filhos de um homem falecido não pertenciam
à gens daquele, mas à de sua mãe; no princípio, herdavam
da mãe, como os demais consangiifneos desta; depois, prova-
velmente, foram seus primeiros herdeiros, mas não podiam
sé-lo de seu pai, porque não pertenciam à gens do mesmo, na
qual deveriam ficar os seus bens. Desse modo, pela morte
do proprietário de rebanhos, esses passavam em primeiro
lugar aos seus irmãos e irmãs, e aos filhos destes ou aos des-
cendentes das irmãs de sua mãe; quanto 20s seus próprios
filhos, viam-se eles deserdados.
Dessa forma, pois, as riquezas, à medida que iam aumen-
tando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais im-
portante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam
com que nascesse nele a idéia de valer-se desta vantagem para
modificar, em proveito de seus filhos, a ordem da herança
estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto perma-
necesse vigente a filiação segundo o direito matemo, Esse
direito teria que ser abolido, e o foi E isto não foi tão di-
floil quanto hoje nos parece. Tal revolução — uma das mais
profundas que a humanidade já conheceu — não teve neces-
sidade de tocar em nenhum dos membros vivos da gens.
Todos os membros da gens puderam continuar sendo o que
59
escravidão legal, depois da cisão entre os gregos e latinos
arianos.” E Marx acrescenta: “A família moderna contém,
em germe, não apenas a escravidão (servitus) como também a
servidão, pois, desde o começo, está relacionada com os ser-
viços da agricultura. Encerra, em miniatura, todos os antago-
nismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade e em
seu Estado."
Esta forma de família assinala a passagem do matrimônio
sindiásmico à monogamia. Para assegurar a fidelidade da
mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, aquela é
entregue, sem reservas, ao poder da homem: quando este a
mata, não faz mais do que exercer o seu direito.
Com a família patriarcal, entramos no domínio da His-
tória escrita, onde a ciência do Direito Comparado nos pode
prestar grande auxílio. Efetivamente, essa ciência nos per.
mitiu aqui fazer importantes progressos. A Máxim Kovalévski
(Quadro das Origens e da Evolução da Família e da Proprie-
dade, Estocolmo, 1890, págs. 60/100), devemos a idéia de que
a comunidade familiar patriarcal (patriarchalische Hausgenos-
senchaft), conforme ainda existe entre os sérvios e os búlgaros
com o nome de zádruga (que pode traduzir-se mais ou menos
por confraternidade) ou braistwo (fratemidade) e, sob uma
forma modificada, entre os orientais, constituiu o estágio de
transição entre a família de direito materno — fruto do matri-
mônio por grupos — e a monogamia moderna. Isso parece
provado, pelo menos quanto aos povos civilizados de Mundo
Antigo, os árias e os semitas.
A zádruga dos eslavos do sul constitui o melhor exemplo
ainda existente de uma comunidade familiar dessa espécie.
Abrange muitas gerações de descendentes de um mesmo pai,
os quais vivem juntos, com suas mulheres, sob um mesmo
teto; cultivam suas terras em comum, alimentam-se e vestem-se
de um fundo comum e possuem coletivamente a sobra dos
produtos. A comunidade está sujeita à administração superior
do dono da casa (domácin), que a representa ante o mundo
exterior, tem o direito de alienar as coisas de menor valor,
62
movimenta as finanças, é responsável por elas, tal como pela
boa marcha dos negócios. É eleito, e para isso não precisa
ser o de mais idade, As mulheres e o trabalho das mesmas
estão sob a direção da dona da casa (domácica), que costuma
ser a mulher do domácin. Esta, igualmente, tem voz — e
amiúde decisiva — na escolha de maridos para as jovens sal-
teiras. Porém o poder supremo pertence ao conselho de fa-
mília, à assembléia de todos os adultos da comunidade, ho-
mens e mulheres. Perante esta assembléia, o chefe de família
presta contas, e é ela que resolve as questões importantes,
ministra justiça entre todos os membros da comunidade, de-
cide sobre as compras e vendas mais importantes, sobretudo
as de terras, etc.
Não faz mais de dez anos que se comprovou, na Rússia,
a existência de grandes comunidades familiares desse gênero;
e hoje todo o mundo reconhece que elas têm, nos costumes
populares russos, raízes tão profundas quanto a obschina ou
comunidade rural. Figuram no mais antigo código russo —
a Prauda de Yazoslav — com o mesmo nome (verv) com que
aparecem nas Jeis da Dalmácia; e nes fontes históricas tchecas
e polonesas também podemos encontrar referências a elas.
Igualmente entre os germanos, segundo Heusler (Insti-
tuições do Direito Alemão)! a unidade econômica primitiva
não é a familia isolada, no sentido modemo da palavra, e
sim uma “comunidade familiar” (Hausgenossenschaft) que se
compõe de várias gerações com suas respectivas famílias e
que inclui frequentemente indivíduos não livres. A família
romana refere-se, também, a essa espécie de comunidade, e,
por causa disso, o poder absoluto do pai sobre os demais
membros da famílie, por certo privados inteiramente de di-
reitos quanta a ele, tem sido posto muito em dúvida ultima-
mente. Comunidades familiares assim devem ter existido entre
à AHeuser, Institutionom des deutschen Rechts, Bd. I/IL, Leipeig,
1885/1886, (N. do R.) x
83
os celtas da Irlanda; subsistiram na França, no Nivernais,
com o nome de parçomneries, até a Revolução Francesa — e
ainda não se extinguiram no Franco-Condado. Nos arre-
dores de Louans (Saone e Loire), vêem-se grandes casarões
de camponeses com uma sala comum, central, muito alta,
que chega até a cumeeira do telhado; em tomo se encon-
tram os dormitórios, aos quais se sobe por escadas de seis
a oito degraus; nesses casarões moram diversas gerações da
mesma família,
A comunidade familiar, com: cultivo do solo em comum,
já era mencionada, na Índia, por Nearco, no tempo de Ale-
xandre Magno, e ainda existe no Panjabe e em todo o no-
roeste do pais. O próprio Kovalévski pôde encontrá-la no
Cáucaso, Na Argélia ainda existe, nas Cabilas, Diz-se que
existiu até na América; esforços são feitos para identificá-la
com as “calpullis”"1 no antigo México, descritas por Zurita;
por outro lado, Cunow (Ausland, 1890, números 42/44), de-
monstrou, com bastante clareza, que, na época da conquista,
existia no Peru uma espécie de marca (que, curiosamente,
ak também se chamava marca), tom partilha periódica das
terras cultiváveis e, consegiientemente, cultivo individual,
Em todo caso, a comunidade familiar patriarcal, com
posse e cultivo do solo em comum, adquire agora uma signi-
ficação bem diferente da que tinha antes. Já não podemos
duvidar do grande papel de transição que desempenhou,
entre os civilizados e outros povos na antiguidade, no pe-
ríodo entre a família de direito materno e a família monogá-
mica. Adiante falaremos a respeito de outra conclusão de
Kovalévskt, a saber: que a comúnidade familiar foi igual.
mente o estágio de transição que precedeu a marca ou co-
munidade rural, com cultivo individual do solo e partilha —
a princípio periódica e depois definitiva — dos campos e
pastos.
1 “Calpullis”: Comunidade familiar dos astecas, (N, de R.)
64
mitologia, como assinala Marx, nos fala de um período am-
terior, em que as mulheres ocupavam uma posição mais livre
e de maior consideração, nos tempos heróicos já vemos a
mulher humilhada pelo predomínio do homem e pela con-
corrência das escravas. Leia-se na Odisséia, como Telêmaco
interrompe sua mãe e lhe impõe silêncio. Em Homero, os
vencedores aplacam seus apetites sexuais nas jovens captu-
radas, escolhendo os chefes para si, por tumo e segundo &
sua categoria, as mais formosas; e é sabido que toda a Ilíada
gira em torno de uma disputa mantida entre Aquiles e Aga-
menon por causa de uma escrava. Junto a cada herói, mais
ou menos importante, Homero fala da jovem cativa que vive
em sua tenda e dorme em seu leito. Essas jovens eram,
ainda, conduzidas ao país natal dos heróis, à casa conjugal,
conforme Agamenon fêz com Cassandra em Ésquilo. Os filhos
nascidos dessas escravas recebem uma pequena parte da he-
rança paterna e são considerados homens livres; assim, Teucro,
que é filho natural de Telamon, tem direito de usar o nome
de seu pai.
Quanto à mulher legitima, exige-se dela que tolere tudo
isso e, por sua vez, guarde uma castidade e uma fidelidade
conjugal rigorosas. É certo que a mulher grega da época he-
xróica é mais Tespeitada que a do período civilizado; todavia,
para o homem, não passa, afinal de contas, da mãe de seus
filhos legítimos, seus herdeiros, aquela que governa a casa e
vigia as escravas — escravas que ele pode transformar (e
transforma) em coneubinas, à sua vontade. A existência da
escravidão junto à monogamia, a presença de jovens e belas
cativas que pertencem, de corpo e alma, co homem, é o que
imprime desde a origem um caráter específico à monogamia —
que é monogamia só para a mulher, e não para q homem,
E, na atualidade, conserva-se esse caráter.
Quanto aos gregos de uma época mais recente, devemos
distinguir entre os dóricos e os jônios. Os primeiros, dos
quais Esparta é o exemplo clássico, sob muitos aspectos têm
relações conjugais muito mais primitivas que as pintadas por
87
Homero. Em Esparta existe um matrimônio sindiásmico
modificado pelo Estado conforme as concepções ali domi-
nantes é que conserva inúmeros vestígios do matrimônio por
grupos. As uniões estéreis são rompidas: o rei Anaxândrides
(por volta do ano 650 antes de nossa era) tomou uma se-
gunde mulher, sem deixar a primeira, que era estéril, 6
mantinha dois domicílios conjugais; por essa mesma época,
o rei Ariston, tendo duas mulheres sem filhos, tomou outra,
mas despediu uma das duas primeiras. Além disso, vários
irmãos podiam ter uma mulher comum; o homem que pre-
feria a mulher de seu amigo podia patilhá-la com ele; e
era considerado decente pôr a própria mulher à disposição
de um vigoroso “garanhão” (como diria Bismarck), ainda
que este não fosse um concidadão. De um trecho de Plu-
tarco, em que uma espartana envia a seu marido um amante
que ,a perseguia com suas propostas, pode-se, inclusive, de-
duzir, conforme Schômenn, uma liberdade de costumes ainda
maior. Por esta razão, era coisa inaudita o adultério efetivo,
a infidelidade da mulher às escondidas de seu marido. Por
outro lado, .a escravidão doméstica era desconhecida em
Esparta, pelo menos no seu apogen; os servos ilotas viviam
separados, nas terras de seus senhores, e, por conseguinte,
entra os cidadãos livres espartanos ! era menor a tentação de
se divertirem com as mulheres daqueles. Por todas essas
razões, as mulheres tinham, em Esparta, uma situação de
maior respeito que entre 0s outros gregos. As casadas espar-
tanas e a elite das hetairas atenienses são as únicas mulheres
das quais os antigos falam com consideração e das quais sa
deram ao trabalho de recolher os ditos.
Outra coisa bem diversa se passava entre os jônios, para
os quais é característico o regime de Atenas. As donzelas
1 Espartanos: Classe dos cidadãos que, na antiga Esparta, gozavam
de todos os direitos, em oposição aos ilotas, que não tinham quaisquer
direitos. (N. da R.)
68
aprendiam apenas a fiar, tecer e coser, e quando muito, &
ler e à escrever. Eram praticamente cativas e só lidavam
com outras mulheres. Hebitavam um aposento separado,
situado no alto ou atrás da casa; os homens, sobretudo os
estranhos, não entravam ali com facilidade — e as mulheres
se retiravam quando chegava algum visitante. Não safam, as
mulheres, sem que as acompanhasse uma escrava; dentro de
casa, eram literalmente submetidas à vigilância; Aristófanes
fala de cães molossos para espantar adúlteros e, nas cidades
asiáticas, para vigiar as mulheres, havia eunucos -- os quais,
desde os tempos de Heródoto, eram fabricados em Quios
para serem comerciados, e não serviam apenas aos bárbaros,
a crer-se em Wachsmuth. Em Eurípides, a mulher é desig-
nada como oikurema, isto é, algo destinado a cuidar da casa
(a palavra é neutra) e, além da procriação dos filhos, não
passava de criada principal para o ateniense. O homem tinha
seus exercícios ginásticos e suas discussões públicas, coisas
de que a mulher estava excluída; costumava ter escravas à
sua disposição e dispunha, na época florescente de Atenas,
de uma prostituição bastante extensa e, em todo caso, pro-
tegida pelo Estado. Aliás, foi precisamente com base nessa
prostituição que se desenvolveram aquelas mulheres gregas
que se destacaram do nível geral da mulher do Mundo An-
tigo por seu talento e gosto artístico, da mesma forma que
as espartanas se sobressairam por seu caráter. Más o fato de
que, para se converter realmente em mulher, fosse preciso
antes ser hetaira, constitui a mais severa condenação à fa-
mília atentense.
Com o tempo, essa família ateniense chegou a ser o tipo
pelo qual modelaram suas relações domésticas não apenas o
resto dos jônios como, ainda, todos os gregos da metrópole
e das colônias, Entretanto, apesar: do seguestro e da vigi-
Jância, as gregas achavam muitas e frequentes ocasiões para
enganar os seus maridos. Estes, que se teriam ruborizado
de demonstrar o menor amor às suas mulheres, divertiam-se
com toda espécie de jagos amorosos com hetairas; mas o
69
raptela do português bailadeira), foram as primeiras prosti-
tutas. O sacrifício da entrega, no início, dever de todas as
mulheres, passou a ser excreido, mais tarde, apenas por essas
sacerdotisas, em substituição a todas as demais. Em outros
povos, o heterismo provém da liberdade sexual concedida às
jovens antes do matrimônio; assim, pois, é também um resto
do matrimônio por grupos, mas que chegou até nós por outros
caminhos. Com a diferenciação na. propriedade, isto é, já na
fase superior da barbárie, aparece, esporadicamente, o tra-
balho assalariado junto ao trabalho dos escravos; e, ao mesmo
tempo, como seu correlativo necessário, a prostituição profis-
sional das mulheres livres aparece junto à entrega forçada das
escravas. Desse modo, pois, é dúbia a herança que o matri-
mônio por grupos legou à civilização — e tudo que a civili-
zação produz é também dúbio, ambíguo, equívoco, contradi-
tório: de um lado a monogamia, de outro, o heterismo,
incluída a sua forma extrema, a prostituição, O heterismo é
uma instituição soctal como outra qualquer, e mantém a antiga
liberdade sexual... em proveito dos homens. Embora seja,
de fato, não apenas tolerado, mas praticado livremente sobre-
tudo pelas classes dominantes, ele é condenado em palavras.
E essa reprovação, na realidade, nunca se dirige contra os
homens que o praticam e sim, somente, contra as mulheres,
que são desprezadas e repudiadas, para que se proclame uma
vez mais, como lei fundamental da sociedade, a supremacia
absoluta do homem sobre o sexo feminino.
Mas, na própria monogamia, desenvolve-se uma segunda
contradição. Junto do marido, que amenizava a existência
com o heterismo, acha-se a esposa abandonada, E não pode
haver um termo de uma contradição sem que lhe corresponda
o outro, como não se pode ter nas mãos uma maçã inteira,
depois de se ter comido sua metade. Esta, no entanto, parece
ter sido a opinião dos homens, até que as mulheres lhes pu-
seram outra coisa na cabeça. Com a monogamia, apareceram
duas figuras sociais constantes e características, até então des-
conhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o ma-
72
rido corneado. Os homens haviam conseguido vencer as
mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente,
de coroar os vencedores. O adultério, proibido e punido rigoro-
samente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social
inevitável, junto à monogamia é ao heterismo, No melhor dos
casos, a certeza da paternidade baseava-se agora, como antes,
no convencimento moral, e para resolver a contradição inso-
lúvel o Código de Napoleão dispôs em seu artigo 312: “L'enfant.
conçu pendant le mariage a pour pêre le mar”. (“O filho con-
cebido durante o matrimônio tem por pai o marido.”). É este o
resultado final de três mil anos de monomogia.
Assim, pois, nos casos em que a família monogâmica
reflete fielmente sua origem histórica e manifesta com clareza
o conflito entre o homem e a mulher, originado pelo domínio
exclusivo do primeiro, teremos um quadro em miniatura das
contradições e antagonismos em meio aos quais se move &
sociedade, dividida em classes desde os primórdios da civili-
zação, sem poder resolvê-los nem superá-los. Naturalmente
que só me refiro aqui aos casos de monogamia em que a vida
conjugal transcorre conforme as prescrições do caráter original
desta instituição, mas na qual a mulher se rebela contra o
domínio do homem. Que não é em tudos os casamentos que
assim ocorre, sabe-o melhor do que ninguém o filisteu alemão,
que não sabe mandar nem em sua casa nem no Estado, e cuja
mulher veste com plenos direitos as calças de que não é digno.
Mas, nem por isso, deixa de acreditar-se muito superior ao:
seu companheiro de infortónios da França, a quem sucedem
coisas bem mais desagradáveis, com maior freqiiência do que
a ele mesmo.
Por certo, à família monogâmica não se revestiu, em todos
os lugares e épocas, da forma clássica e rigida que teve entre
os gregos. A mulher era mais livre e mais considerada entre
os romanos, os quais, na qualidade de futuros conquistadores
do mundo, tinham das coisas um conceito mais amplo, apesar
de menos refinado que o dos gregos. O romano acreditava
suficientemente garantida a fidelidade da sua mulher pelo
7a
direito de vida e morte que tinha sobre ela. Além disso, a
mulher, lá, podia romper o vínculo matrimonial à sua von-
tade, tal como o homem. Mas o maior progresso "no desen-
volvimento da monogamia realizou-se, indubitavelmente, com
a entrada dos germanos na história; e assim foi porque, dada
à sua pobreza, parece que, naquele tempo, a monogamia ainda
não se tinha desenvolvido plenamente entre eles, despren-
dendo-se do casamento sindiásmico. Tiramos esta conclusão à
base de três circunstâncias mencionadas por Tácito: em pri
meiro lugar, juntamente com a santidade do matrimônio (“con
tentam-so com uma só mulher, 6 as mulheres vivem cercadas
-por seu pudor") a poligamia existia para os grandes e os
chefes de tribo — situação análoga à dos americanos, entre
os quais existia o matrimônio sindiásmico. Em segundo lugar,
a passagem do direito materno ao direito paterno devia ter-se
realizado recentemente, pois o irmão da mãe (o parente gen-
tílico mais próximo, segundo o matriarcado) quase era tido
coma um parente mais próximo do que o próprio pai — o que
também corresponde ao ponto de vista dos índios americanos,
entre os quais tinha Marx encontrado, como costumava dizer,
a chave para compreender os nossus tempos primitivos. E, em
terceiro lugar, as mulheres, entre os germanos, gozavam da
mais elevada consideração e exerciam grande influência, até
nos assuntos públicos — o que é diametralmente oposto à
supremacia masculina da monogamia. Todos estes são pontos
nos quais os germanos estão quase inteiramente de acordo
com os espartanos, entre os quais, conforme vimos, também
não tinha desaparecido de todo o matrimônio sindiásmioo.
Assim, desse ponto de vista, igualmente, aparecia com os ger-
manos um elemento inteiramente novo, que se impôs em âm-
bito mundial. A nova monogamia que resultou da mistura dos
povos, entre as ruínas do mundo romano, revestiu a supre-
macia masculina de formas mais suaves e deu às mulheres
uma posição muito mais considerada e livre, pelo menos apa-
rentemente, do que as que ela já tivera na idade clássica.
Graças a isso foi possível, a partir da monogamia — em seu
74
para a protestante. Em ambos os casos, o homem “consegue
o seu”; na novela alemã, o jovem consegue a moça; na novela
francesa, o marido ganha um par de comos. Qual dos dois
sai pior recompensado ? Nem sempre é possível dizê-lo. Por
isso, o clima de aborrecimento da novela alemã inspira aos
leitores da burguesia francesa o mesmo horror que a “imora-
lidade” da novela francesa inspira ao filisteu alemão, embora
nesses últimos tempos, desde que “Berlim cstá se tomando
uma grande capital”, a novela alemã começou a tratar um
pouco menos timidamente o heterismo e O adultério, bem
conhecidos ali há já bastante tempo. cs,
— Mas, em ambos os casos, o matrimônio baseia-se na po-
sição social dos contraentes e, portanto, é sempre um matri-
mênio de conveniência. Também nos dois casos, esse ma-
trimônio de conveniência se converte, com frequência, na mais
vil das prostituições, às vezes por parte de ambos ns cônjuges,
porém, muito mais habitualmente, por partc da mulher; esta
só se diferencia da cortesã habitual pelo fato de que não
aluga o seu corpo por hora, como uma assalariada, e sim que
o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava. E à
todos os matrimônios de conveniência cai como uma luva a
frase de Fourier: “Assim como em gramática duas negações
equivalem a uma afirmação, de igual maneira na moral con-
jugal duas prostituições equivalem a uma virtude,” Nas re-
lações com à mulher, o amor sexual só pode ser, de fato, uma
regra entre as classes oprimidas, quer dizer, em nossos dias,
o proletariado, estejam ou não estejam autorizadas oficial.
mente essas relações. Mas, desaparecem também, nesses casos,
todos os fundamentos da monogamia clássica. Faltam aqui,
por completo, os bens de fortuna, para cuja conservação o
transmissão por herança foram instituídos, precisamente, a
monogamia e o domínio do homem; e, por isso, aqui também
falta todo o motivo para estabelecer a supremacia masculina.
Mais ainda, faltam até os meios de conseguilo: o direito
burguês, que protege essa supremacia, só existe para as classes
possuidoras e para regular as relações destas vlasses com Os
7
proletários. Isso custa dinheiro e, por força da pobreza do
operário, não desempenha papel algum na atitude deste para
com sua mulher. Neste caso, o papel decisivo cabe a outras
relações pessoais e sociais. Além disso, sobretudo desde que
a grande indústria arrancou a mulher ao lar para atirá-la ao
mercado de trabalho e à fábrica, converiendo-a, freguen-
temente, em sustentáculo da casa, ficaram desprovidos de
qualquer base os restos da supremacia do homem no lar pro-
Jetário, excetuando-se, talvez, certa brutalidade no trato com
es mulheres, muito arraigada desde o estabelecimento da mo-
nogamia. Assim, pois, a família do proletário já não é mono-
gâmica no sentido estrito da palavra, nem mesmo com o
amor mais apaixonado e a fidelidade mais absoluta dos côn-
juges, e apesar de todas as bênçãos espirituais e temporais
possíveis. Por isso, o heterismo e o adultério, eternos compa-
nheiros da monogamia, desempenham aqui um papel quase
nulo; à mulher reconquistou, na prática, o direito de divórcio
e os esposos preferem se separar quando já não se podem
entender um com o outro. Resumindo: o matrimônio prole. *
tário é monogâmico no sentido etimológico da palavra, mas
de modo algum em seu sentido histórico. —
Certamente os nossos jurisconsultos acham que o pro-
gresso da legislação vai tirando cada vez mais às mulheres
qualquer razão de queixa. Os sistemas legislativos dos paises
civilizados modernos vão reconhecendo, progressivamente, que,
em primeiro lugar, o matrimônio, para ser válido, deve ser
um contrato livremente firmado por ambas as partes, e, em
segundo lugar, que durante a sua vigência as partes devem ter
os mesmos direitos e deveres. Se estas duas condições fossem
realmente postas em prática, as mulheres teriam tudo aquilo
que podem desejar.
Essa argumentação — tipicamente jurídica — é exatamente
a mesma de que se valem os republicanos radicais burgueses
para dissipar os receios dos proletários. Supõe-se que q con-
trato de trabalho seja livromente firmado por ambas as partes.
Mas considera-se livremente firmado desde o momento em que
78
a lei estabelece no papel a igualdade de ambas as partes. A
força que a diferença de situação de classe dá a uma das
partes, a pressão que esta força exerce sobre a outra, a si-
tuação econômica real de ambas; tudo isso não interessa à lei.
Enquanto dura o contrato de trabalho, continua a suposição
de que as duas partes desfrutam de direitos iguais, desde que
uma vu outra não renuncie expressamente a eles. E, se &
situação econômica concreta do operário o obriga a renunciar
até à última aparência de igualdade de direitos, a lei — nova-
mente — nada tem a ver com isso.
Quanto ao matrimônio, mesmo a legislação mais pro-
gressista dá-se por inteiramente satisfeita desde o instante em
que os interessados fizeram inscrever formalmente em ata o
seu livre consentimento. O que se passa fora dos bastidores
do tribunal, na vida real, e como se expressa este consenti-
mento, não são questões que cheguem a inquietar a lei ou
o legislador. Entretanto, a mais simples comparação entre as
legislações de países diversos pode demonstrar ao jurista o
que representa esse livre cunsentimento. Nos países onde a
Jei assegura aos filhos uma parte da herança da fortuna pa-
teme, e onde, por conseguinte, eles não podem ser deserdados
— na Alemanha, nos países que seguem o direito francês,
ete. — os filhos necessitam do consentimento dos pais para
contrair matrimônio. Nos países onde se pratica o direito
inglês, de acordo com o qual o consentimento paterno não é
uma condição legal para o casamento, os pais gozam de ab-
soluta Hberdade de testar, e podem, caso queiram, deserdar
os filhos. Está claro que, apesar disso, e talvez por isso
mesmo, a liberdade para contrair matrimônio, entre as classes
que têm algo a herdar, não é, de fato, nem um pouquinho
maior na Inglaterra e na América do que na França e na
Alemanha.
Não é melhor o estado de coisas quanto à igualdade
jurídica do homem e da mulher no casamento. A desigual
dade legal, que herdamos de condições sociais anteriores, não
é causa e sim efeito da opressão econômica da mulher. No
79
Nessas circunstâncias, é de se advertir que, em noventa
por cento dos casos, o noivado prolongado é uma verdadeira
escola preparatória para a infidelidade conjugal,
Estamos caminhando presentemente para uma revolução
social, em que as atuais bases econômicas da monogamia vão
desaparecer, tão seguramente como vão desaparecer es da
prostituição, complemento daquela. A monogamia nasceu da
concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos -- as de
um homem — e do desejo de transmitir essas riquezas, por
herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qual.
guer outro. Para isso era necessária a monogamia da mulher,
mas não a do homem; tanto assim que a monogamia daquela
não constituiu o menor empecilho à poligamia, oculta ou des-
carada, deste, Mas a revolução social iminente, transformando
pelo menos a imensa maioria das riquezas duradouras heredi-
tárias — os meios de produção — em propriedade social, redu-
zirá ao mínimo todas essas preocupações de transmissão por
wc herança. E agora cabe a pergunta: tendo surgido de causas
econômicas, a monogamia desaparecerá quando desaparecerem
essas causas ?
Poder-se-ia responder, e não sem fundamento: longe de
desaparecer, antes há de sc realizar plenamente a partir desse
momento. Porque com a transformação dos meios de pro-
dução em propriedade social desaparecem o trabalho assala-
riado, o proletariado, e, consequentemente, à nccessidade de
se prostituírem algumas mulheres, em número estatisticamente
calculável. Desaparece a prostituição e, em Jugar de decair,
a monogamia chega enfim a ser uma realidade — também
para os homens.
Em todo caso, modificar-se-á muito a posição dos homens.
Mas, também, há de sofrer profundas transformações a das
mulheres, a de todas elas. Quando os meios de produção pas-
sarem a ser propriedade comum, a família individual deixará
de ser a unidade econômica da sociedade. A economia do-
méstica converter-se-á em indústria social. O trato é a edu-
cação das crianças tomar-se-ão assunto público; a sociedade
82
cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam
legítimos ou naturais. Desaparecerá, assim, o temor das “con-
segiiências”, que é hoje o mais importante motivo social —
tanto do ponto de vista moral como do ponto do vista eco-
nômico — que impede uma jovem solteira de se entregar
livremente ao homem que ama. Não bastará isso para que se
desenvolvam, progressivamente, relações sexuais mais livres, e
também para que a opinião pública se tome menos rigorosa
quanto à honra das virgens e à desonra das mulheres? E
por último: não vimos que, no mundo modemo, a prosti-
tuição e a monogamia, ainda que antagônicas, são insepa-
ráveis, como pólos de uma mesma ordem social? Pode a
prostituição desaparecer sem levar consigo, na queda, a mo-
nogamia ?
É agora que intervém um elemento novo, um elemento
que existia no máximo em embrião, quando nasceu a mono-
gamia: o amor sexual individual. .
Antes da Idade Média, não se pode dizer que existisse
amor sexual individual. É óbvio que a beleza pessoal, a inti-
midade, as afinidades, ete. deviam despertar nos indivíduos
de sexos diferentes o desejo de relações sexuais; que, tanto
para os homens como para as mulheres, não era de todo in-
diferente com quem ter as relações mais íntimas. Mas daí so
amor sexual modemo ainda vai uma grande distância. Em toda
a antiguidade, são os pais que combinam os casamentos, em
vez dos interessados; e estes conformam-se, tranquilamente. O
pouco amor conjugal que a antiguidade conhece não é uma
inclinação subjetiva, e sim, mais concretamente, um dever obje-
tivo; não é a base, e sim o complemento do matrimônio, - O
amor, no sentido moderno da palavra, somente se apresenta
na antiguidade fora da sociedade oficial Os pastores, cujas
alegrias e penas de amor nos são cantadas por Tegerito ou
Moscos, e por Longo no seu Dafne e Cloé, não passam de sim-
ples escravos que não têm participação no Estado, esfera em
que se move o cidadão livre. Mas, excluídos os escravos, não
encontramos relações amorosas senão como um produto da de-
as
composição do mundo antigo, quando este já está em pleno
declínio; e são relações mantidas com mulheres que também
vivem fora da sociedade oficial, hetairas, isto é, estrangeiras
ou libertas: em Atenas, às vésperas de sua queda, é em Roma,
sob os imperadores. Se havia ali relações amorosas entre ci-
dadãos e cidadãs livres, todas eram mero adultério, E o amor
sexual, tal como nós o entendemos, era algo tão pouco impor-
tante para o velho Anacreonte — o cantor clássico do amor na
antiguidade —, que mesmo o sexo da pessoa amada lhe era
completamente indiferente.
Nosso amor sexual difere essencialmente do simples desejo
sexual, do eros dos antigos. Em primeiro lugar, porque supõe
reciprocidade no ser amado, igualando, nesse particular, a mu-
lher e o homem, ao passo que no eros antigo se fica longe de
consultá-la sempre. Em segundo lugar, o amor sexual atinge
um grau de intensidade e de duração que transforma em gran-
de desventura, talvez a maior de todas, para os amantes, a falta
de relações Íntimas ou a separação; para que se possuam não
recuam diante de coisa alguma e arriscam mesmo suas vidas,
O que não acontecia na antiguidade, senão em caso de adul
tério. E, por fim, surge um novo critério moral para julgar as
relações sexuais. Já não se pergunta apenas — “São legítimas
ou ilegítimas ?” — pergunta-se também: “São filhas do amor
e de um afeto recíproco?” É evidente que, na prática feudal
ou burguesa, esse critério não é mais respeitado do que qual-
quer outro critério moral; passa-se por cima dele; equivale'aos
demais, é reconhecido em teoria, no papel. E, por ora, não se
pode pedir mais,
A Idade Média parte do ponto em que se deteve a Anti-
guidade, com seu amor sesual em embrião, isto é, parte do
adultério. Já descrevemos:o amor cavalheiresco, que inspirou
Togelieder. Deste amor, que tende a destmir o matrimônio,
ao amor que lhe há de servir de base, há um longo caminho
que a cavalaria jamais percorren até o fim. Mesmo quando
passamos dos frívolos povos latinos aos virtuosos alemães, ve-
mos, no poema dos Nibelungos, que Krimhilda, embora esteja
secretamente apaixonada por Siegfried e este por ela, quando
84
Mas, para firmar contratos, é necessário que haja pessoas
que possam dispor livremente de si mesmas, de suas ações e
de seus bens, e que se defrontem em igualdade de condições.
Criar essas pessoas “livres” e “ipuais” foi exatamente uma das
principais tarefas da produção capitalista. Apesar de que, no
começo, isto não se fêz senão de uma maneira meio inconscien-
te e, além do mais, sob o disfarce da religião, a partir da Re-
forma luterana e calvinista, ficou firmemente assentado 9 prin-
cípio de que o homem não é completamente responsável por
suas ações senão quando as pratica com pleno livre arbítrio, e
que é um dever ético a oposição a tudo que o constrange à prá-
tica de um ato imoral, Mas como pôr de acordo esse princípio
com as práticas, usuais até então, para contratar o casamento P
Segundo o conceito burguês, o matrimônio era um contrato,
uma questão de Direito, e certamente a mais importante de
todas, pois dispunha do corpo e da elma de dais seres huma-
nos para toda a vida. É verdade que, naquela época, o matrimô-
nio era o acordo formal de duas vontades; sem o “sim” dos in-
teressados, nada se fazia, Sabia-se, contudo, muito bem, como
se obtinha o “sim” e quais eram os verdadeiros autores do ma-
trimônio. Mas, uma vez que para todos os demais contratos
se exigia a liberdade real para decidir, por que não era exibida
a liberdade neste contrato ? Os jovens que deviam ser unidos
não tinham também o direito de dispor livremente deles mes-
mos, de seu corpo e de seus órgãos? Não se havia posto em
moda, graças à cavalaria, o amor sexual? Contra o amor adúl.
tero da cavalaria, não seria o amor conjugal a verdadeira for-
ma burguesa do amor? Mas, se o dever dos esposos era o
amor recíproco, não seria dever dos que se amavam o de não
casarem senão um com o outro, e não com alguma outra pes-
soa qualquer ? E este direito dos que se amavam não seria su-
perior ao direito do pai e da mãe, dos parentes e demais “ca-
sementeiros” tradicionais ? Desde o momento em que o direito
à livre investigação pessoal penetrava na Igreja e na religião,
poderia acaso deter-se ante a intolerável pretensão da velha
geração de dispor do corpo, da alma, dos bens de fortuna, da
ventura e da desventura da geração mais jovem ?
87
Forçosamente essas questões deveriam surgir numa época
em que se afrouxavam todos os antigos vínculos sociais e em
que eram sacudidos os fundamentos de todas as concepções
tradicionais. À Terra havia se tomado rapidamente dez vezes
maior; em lugar de apenas um quadrante do hemisfério, o globo
inteiro se estendia agora ante us olhos dos europeus ocidentais,
que se apressaram a tomar posse dos outros sete quadrantes.
E, ao mesmo tempo que as antigas e estreitas fronteiras do
pais natal, caiam as milenárias barreiras impostas ao pensa-
mento da Idade Média. Um horizonte infinitamente mais ex-
tenso se abria ante os olhos e o espírito do homem. Que im-
portância podiam ter a reputação de honorabilidade e os res-
peitáveis privilégios corporativos, transmitidos de geração em
geração, para o jovem que era atraído pelas riquezas das fn-
dias, pelas minas de ouro e prata do México e do Potosi ?
Aquela foi a época da cavalaria andente da burguesia; porque
também esta teve o seu romantismo e o seu delírio amoroso,
mas numa base burguesa e, em última análise, com objetivos
burgueses.
Assim, sucedeu que a burguesia nascente, sobretudo a dos
países protestantes, onde se sacudiu de uma maneira mais pro-
funda 2 ordem de coisas existente, foi reconhecendo cada vez
mais a Hberdade de contrato para o matrimônio e pôs em prá-
tica a sua teoria, da maneira que descrevemos. O matrimônio
continuou sendo um matrimônio de classe, mas no seio da
classe concedeu-se aos interessados certa liberdade de escolha.
E, no papel, tanto na teoria moral como nas narrações poéticas,
nada ficou tão inquebrantavelmente assentado como a imorali-
dade de todo casamento não baseado num amor sexual reci-
proce e num contrato de cônjuges efetivamente livres. Em
resumo: proclamava-se como um direito do ser humano o
matrimônio por amor; e não só como droit de Thomme, mas
também, e por exceção, como um droit de la femme.
1 Droit de Fhomme: Direito do homem (também direito da humani-
dade). Droit de la femme: Direito da mulher. (N. da R)
88
Mas este direito humano diferia em um ponto de todos os
demais chamados direitos humanos. Ao passo que estes, na
prática, estavam reservados para a classe dominante — a bur-
guesia — e reduziam-se direta ou indiretamente a letra morta
para a classe oprimida — o proletariado —, aqui se confinna
ainda uma vez a ironia da história. A classe dominante con-
tinuou submetida às influências econômicas conhecidas e, so-
mente por exceção, apresenta casos de casamento realizados
verdadeiramente com toda a liberdade; enquanto que esses ca-
samentos, como já vimos, constituem a regra nas classes opri-
midas.
O matrimônio, pois, só se realizará com toda a liberdade
quando, suprimidas a produção capitalista e as condições de
propriedade criadas por ela, forem removidas todas as consi-
derações econômicas acessórias que ainda exercem uma in-
Fluência tão poderosa na escolha dos esposos. Então, o matri-
mônio já não terá ontra causa determinante que não a inclina-
cão recíproca.
.E, desde que o amor sexual é, por sua própria natureza,
exclusivista — embora em nossos dias esse exclusivismo só se
realize plenamente sobre a mulher — o matrimônio baseado no
amor sexual será, por sua própria natureza, monogâmico. Vi-
mos quanta razão tinha Bachofen em considerar o progresso
do matrimônio por grupos ao matrimônio por pares como obra
devida sobretudo à mulher; apenas a passagem do casamento
sindiásmico à monogamia pode ser atribuída ao homem, e his-
toricamente consistiu, na essência, num rebaixamento da posi-
ção das mulheres e numa facilitação da infidelidade dos ho-
mens. Por isso, quando chegarem a desaparecer as considera-
ções econômicas em virtude das quais as mulheres foram abri-
gadas a aceitar essa infidelidade masculina habitual — a preo-
cupação pela própria subsistência e, ainda mais, pelo futuro
dos filhos — a igualdade alcançada pela mulher, a julgar por
toda a nossa experiência anterior, influirá muito mais no sen-
tido de tornar os homens monógamos do que no de tornar as
mulheres poliandras.
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