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Guias e Dicas
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Lévi-Strauss, Claude - As estruturas elementares do parentesco, Notas de estudo de História

Claude Levi Strauss

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 24/05/2012

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carlos-eduardo-pawlowski-slawa-4 🇧🇷

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Baixe Lévi-Strauss, Claude - As estruturas elementares do parentesco e outras Notas de estudo em PDF para História, somente na Docsity! CLAUDE LÉVI-STRAUSS SER elementares [DE iq Lise AS ESTRUTURAS ELEMENTARES DO PARENTESCO t I I L Entre os que desejarem dar-se ao trabalho de compreender os princípios gerais da religião primitiva, serão bem poucos, sem dúvida, os que voltarão algum dia a acreditar que se trata nesse' assunto de fatos ridículos, cujo conhecimento não pode. trazer nenhum proveito para o resto da humanidade. Longe dessas crenças e práticas se reduzirem a um acúmulo de resíduos, vestígios de alguma loucura coletiva, são tão coerentes e lógicas que, logo assim que começamos {li classificá-las, mesmo grosseiramente, podemos aprender os princípios que regeram seu desenvolvimento. Vi-se, então, que esses principias são essencialmente racionais, f!mbora atuem sob o véu de uma profunda e inveterada ignordncia ... A ciência moderna tende cada vez mais a concluir que, se em algum lugar hd leis, estas devem existir em toda parte. E. B. TVLOR, Primitive Culture, Londres, 1871, p. 20-22. Pre/delo da Primeira Edição Pre!dcio da Segunda Edição INTRODUÇAO CAP!TULO I. NATUREZA E CULTURA / Estado de natureza e estado de sociedade. O problema da passagem de um ao outro. As "crianças selvagens". As fermas superiores / L da vida animal. O critério da universalidade. A proibição do incesto como regra universal CAP!TULO n. O PROBLEMA DO INCESTO Teorias racionalistas: Maine, Morgan; conclusões da genética. Teorias psicológicas: Westermarck, Havelock Ellis. Teorias sociológicas, I: McLennan. Spencer, Averbury. Teorias sociológicas, lI: Durkheim. As antinomias do problema do incesto. PRIMEIRA PARTE A TROCA RESTRITA I. Os fundamentos da troca CAP!TULO III. o UNIVERSO DAS REGRAS Consangüinidade e aliança. A SUMARIO 19 24 41 50 69 proibição do incesto, "regra como regra", O regime do produto escasso: regras de distribuição alimentar. Passagem às regras matrimoniais: casamento e celibato. CAP!TULO IV. ENDOGAMIA E EXOGAMIA 82 A poligamia. forma especial de reciprocidade. Endogamia verdadeira e endogamia funcional. Os limites do grupo social. O caso dos Apinagé. Exogamia e proibição do incesto. CAP!TULO V. O PRINCIPIO DE RECIPROCIDADE O Essai SUT le Don. A troca nas sociedades primitivas e nas sociedades contemporâneas. Extensão às leis do casamento. A noção de arcaismo e suas implicações. Da troca dos bens à troca das mulheres. CAP!TULO VI. A ORGANIZAÇAO DUALISTA Caracteres gerais das organizações dualistas. Distribuição. Natureza: clãs e classes. A organização dualista como instituição e como principio. Discussão de três exemplos: Nova Guiné, Assam, Califórnia. Conclusão: a organizac}ão 92 108 dualista reduz-se a um método para a solução de certos problemas da vida social. CAPíTULO VII. A ILUSAO ARCAICA Origem da noção de reciprocidade. Dados da psicologia infantil. Sua interpretação. A criança e o primitivo segundo Freud e segundo· Piaget. Critica de S. Isaacs. O pensamento da criança representa uma experiência mais geral que a do adulto. O principio de reCiprocidade no pensamento infantil. A ampliação da experiência psicológica e social. CAPíTULO VIII. 123 A ALIANÇA E A FILIAÇAO 137 Retorno à organização dualista. Relações entre a organização dualista e o casamento dos primos cruzados. Os postuladOS filosóficos das interpretações clássicas: a noção de relação. Sistemas de classes e sistemas de relações. Passagem à filiação: o problema da filiação bilateral. Os ashantis e os todas. A noção de dicotomia e suas analogias genéticas: o problema das gerações alternadas. O indígena e o teórico. Aplicação a alguns sistemas africanos e australianos. Filiação patrilinear e filiação matrilinear. O primadO do principio patrilinear. CAPíTULO IX. o CASAMENTO DOS PRIMOS 159 Casamento dos primos cruzados e sistema classificatório. A união preferencial e a noção de estrutura. Proximidade biológica e proximidade social. Valor teórico do casamento dos primos cruzados. Sua origem: teses de Swanton, Gifford. Lowie. Discussão: o sistema de parentesco deve ser concebido como uma estrutura global. O casamento dos primos cruzados como estrutura elementar da troca. CAPíTULO X. A TROCA MATRIMONIAL Exposição da concepção de Frazer e de seus limites: primos cruzados e primos paralelos; troca e mercado; papel da organização dualista. Diferenças com relação à concepção proposta. lI. A Austrália CAPíTULO XI. OS SISTEMAS CLÁSSICOS Importância dos fatos australianos: o problema da troca das irmãs. Classificação dos sistemas australianos; suas dificuldades. Dicotomia patrilinear e dicotomia matrilinear. Teses de Radcliffe- Brown. Lawrence. Kroeber. O exemplo dos rnarinbatas, ou a gênese de um sistema. Descrição do sistema Kariera. Descrição do sistema Aranda. Estes dois sistemas fornecem uma base insuficiente para uma classificação geral. CAPíTULO XII. O SISTEMA MURNGIN Descrição. Caracteres anormais do sistema. Impossibilidade de toda redução a um sistema Aranda. Classes e graus. Hipótese sobre a natureza do sistema Murngin. Conseqüências teóricas. Definição da troca restrita. Definição da troca generalizada. Aplicação à nomenclatura Murngin; discussão da interpretação psicológica de Lloyd Warner. A estrutura do sistema Murngin; confirmação tirada do sistema Wikmunkan. 173 187 209 .. I' L o casamento bilateral; sua raridade. O sistema Munda. O problema do tio materno; seu papel nos sistemas de casamento matrilateral. O privilégio avuncular. CAP1TUW XXVII, OS CICLOS DE RECIPROCIDADE 481 Problemas teóricos do casamento dos primos cruzados; soluções propostas; discussão. Casamento matrilateral e casamento patrnateral ~ ciclos curtos e ciclos longos. Interpretação definitiva da troca generalizada. CONCLUSÃO CAP1TUW XXVIII. PASSAGEM AS ESTRUTURAS COMPLEXAS SOl A área das estruturas elementares. O eixo birmano-siberiano; limites da troca generalizada; difusão e limites da troca restrita. Relações definitivas entre troca restrita e troca generalizada. Considerações rápidas sobre a área Beeano- americana; por que faz parte do estudo das estruturas complexas. Considerações rápidas sobre a Mrica; o casamento por compra como forma complexa da troca generalizada. Considerações rápidas sobre o mundo indo·europeu; das formas simples da troca generalizada às formas complexas; e casamento moderno. CAP1TUW XXIX. OS PRINC!PIOS DO PARENTESCO 519 A troca, base universal das proibições do casamento. Naturem da exogarnia. O mundo do parentesco. Fraternidade e compadrio. A teoria de Malinowski e sua refutação; o incesto e o casamento. Sintese histórica e análise estrutural; o exemplo da psicanálise e o da lingUistica. O Universo da comunicação. Indice das Figuras 1, Retalhadura cerimonial de um búfalo na Birmânia 74 2. Distribuição da carne entre parentes 75 3. Trocas matrimoniais na Polinésia 104 4. Trocas cerimoniais nas ilhas Salomão 106 5. Diagrama traçado pelos indfgenas de Ambrym para explicar seu sistema de parentesco 166 6. O casamento dos primos cruzados 171 7. A noção de cruzamento 184 8. Regras do casamento Murimbata 195 9. Regras do casamento Kariera 197 10. Sistema Kariera 200 11. Ilustração do sistema Kariera 202 12. Filiação e residência no sistema Kariera 203 13. Regras do casamento Arenda. 204 14. Ilustração do sistema Aranda 205 15. Sistema Aranda 206 16. Casamento entre primos descendentes de cruzados 206 17. Estrutura do sistema Murngin 211 18. Regras do casamento Murngin, segundo Warner 212 19. Regras do casamento Murngin 212 20. Sistema Murngin e sistema Aranda 212 21. Regra do casamento Murngin em sistema normal 213 22. Regra do casamento Murngin em sistema optativo 213 23. Combinação do sistema narmal com o sistema optativo 216 24·25. Esquema da troca generalizada 220 26. Casais. ciclos e pares 221 27. Casamento matrilateral 221 28. Trocas generalizadas entre quatro classes 222 29. Nomenclatura do parentesco Murngin 224 30. Expressão do sistema Murngin em termos de troca generalizada 227 31. Filiação e residência na troca generalizada 228 32. Diagrama definitivo do sistema Murngin 229 33. Ciclo com quatro classes 231 34. Projeção plana de um sistema cíclico 232 35. Sistema Karadjen 237 36. Sistema Mara, segundo Warner 239 37. Sistema Aluridja 242 38. Sistema Southern Cross 243 39. Sistema Dieri, segundo Elkin 244/245 40. Expressão simplificada do sistema Dieri 247 41. Evolução do sistema Dieri 248 42. Sistema Wikmunkan, segunda U. MeConne1 250/251 43. Sistema Mandchu e sistema Wlkmunkan 254/255 44. Classificação dos principais tipos de sistema de parentesco 258 45. Sistema Katchin 282 46. Ciclo feudal do casamento entre os Katchins 294 47. Ciclos do casamento e.ntre os Chirus, Chawtes e Taraus 314 48. Sistema Lakher (modelo reduzido) 318 49. Sistema Rengna Naga 321 50. Sistema Lhota Naga (modelO redUZido) 322 51. OUtro aspecto do sistema Lhola Naga 323 52. Sistema Sema Naga (modelo reduzido) 325 53. Sistema Ao Naga (modelo reduzido) 329 54. Sistema Gilyak 341 55. Troca generalizada com três clãs 342 r 56. Troca generalizada com quatro clãs 343 57. Sistema Chinês, segundo Granet 366 58. Outro aspecto da hipótese de Granet 370 59. Quadro simplificado dos graus de luto 377 60. Representação diagramática do sistema de parentesco Chinês 378 61. A ordem teMo mau 382 62. O templo ancestral. segundo Hsu 384 63. premutação dos antepassados na ordem tchao mau 385 64. Fileiras e colunas 386 65. Sistema das posições na ordem tchao mau 387 66. Regras do casamento Murngin comparadas com as regras chinesas, segundo Granet 388 67. Sistema Miwok (modelo reduzido) 407 68. Sistema Mlwok: correlações entre as genealogias e o modelo reduzido 411 69. Sistemas Tibetano e Kuki 417 70. Regras do casamento Tunguse 421 71. Regras do casamento Mao Naga 422 72. Aspecto do sistema Mandchu 428 73. Comparação entre os sistemas Mandchu e Ao Naga 431 74. Distribuição das formas elementares da troca no Extremo Oriente 433 75. Aspecto do sistema Gond 440 76. Sistema hindu, segundo Held 450 77. Proibições do casamento entre os Bais 459 78. Os sete MuI 460 79. Graus proibidos no norte da índia 461 80. Sistema Munda 471 81. Casamento Munda transcrito em termos do sistema Araruta 471 82. Irmã do pai e irmão da mãe 474 83. O privilégio avuncular 476 84. Filha do irmão da mãe e filha da irmã do pai 486 85. Os ciclos de reciprocidade 495 86. Contorno aproximado da área considerada o eixo da troca generalizada 503 87. Sistema das oposições entre as formas elementares do casamento 507 I L preenchidas como consequencia dos co~entários daqueles especialistas e em resposta a suas objeções. então, sem dúvida, teremos tido razões para estabelecer um período de pausa em nossa pesquisa e propor seus primeiros resultados antes de procurar extrair suas mais longínquas implicações. Atualmente. um estudo de sociologia comparada esbarra em duas dificuldades principais. a escolha das fontes e a utílízação dos fatos. Nos dois casos o problema deriva. sobretudo. da abundância dos materiais e da imperiosa necessidade de estabelecer um limite. No que se refere ao primeiro ponto, não quisemos esconder que, tendo sido escrito nos Estados Unidos. pelo contato diário com nossos colegas norte·americanos. 'este livro estava exposto a ter de usar predominantemente fontes de lín· gua inglesa. Se procurássemos ocultar esta orientação, incorreríamos na culpa de ingratidão com relação ao país que nos ofereceu generoso aco· lhimento e excepcionais possibílídades de trabalho; e em relação a nossos colegas franceses. interessados sobretudo nos recentes progressos de sua ciência no estrangeiro, teríamos malogrado na missão de informação que nos tinham tacitamente confiado. Ao mesmo tempo. e sem nos negarmos a apelar para as fontes antigas todas as vezes que nos eram absoluta· mente necessárias, procuramos renovar a base tradicional dos problemas do parentesco e do casamento. evitando limitar·nos a uma nova tritura· ção de exemplos já fatigados pelas discussões anteriores de Frazer. Briffault. Crawley e Westermarck. A bibliografia de nosso trabalho revela- rá. de maneira não fortuita. uma elevada porcentagem de artigos e tra- balhos,_ publicados durante os últimos trinta anos. Esperamos assim que nos perdoem um empreendimento teórico, talvez em vão, devido ao aces- so mais fácil. preparado por este livro. a fontes às vezes raras e sempre dispersas. O segundo ponto constituía um problema mais delicado. Ao empre- gar seus materiais o estudioso da sociologia comparada está constante- mente exposto a duas censuras, a saber. ou que, acumulando exemplos, desencarna-os e os faz perder toda substância e significação. porque os isola arbitrariamente da totalidade da qual cada um deles é um ele- mento, ou que, ao contrário, para conservar o caráter concreto dos fa- tos e manter vivo o elo que os une a todos os outros aspectos da cultura da qual foram tomados. o sociólogo seja levado a só considerar um pequeno número de fatos. sendo-lhe negado. por motivo desta base de- masiado frágil. o direito de generalizar. Associa-se habitualmente o nome de Westermarck ao primeiro defeito. e o nome de Durkheim ao segundo. Mas. seguindo o caminho tão rigorosamente traçado por Mareei Mauss. é possível. segundo nos parece. evitar esses dois perigos. Neste livro concebemos os dois métodos não como procedimentos mutuamente ex- clusivos. e sim correspondendo a dois momentos diferentes da demons- tração. Nas primeiras etapas da sintese defrontamo-nos com verdades tão gerais que a função da pesquisa consiste em suscitar a hipótese. guiar a intuição e ilustrar os princípios mais do que verificar a de- monstração. Enquanto os fenômenos considerados são ao mesmo tempo tão Simples e tão universais que a experiência vivida basta para fun- damentá-los com relação a cada observador. é sem dúvida legítimo - uma vez que, não se exige ainda que exerçam nenhuma função demons- trativa - acumular os exemplos, sem se preocupar demasiadamente com 21 I I I l o contexto que dá a cada um sua significação particular. Porque, nessa fase, a significação, com poucas diferenças, é a mesma para todos, e o confronto com a experiência própria do sujeito, por sua vez membro de um grupo social, basta quase sempre para reconstitui·la. Os exem· pios isolados e tomados de culturas muito diversas recebem mesmo, com este uso, um valor suplementar, o de atestarem, com uma força tirada do número e da surpresa, a presença do semelhante que se acha por debaixo do diferente. Seu papel é sobretudo alimentar a impressão e definir mepos as próprias verdades do que a atmosfera e a cor que as impregnam' no momento em que surgem nas crenças, nos temores e de- sejos dos 'homens. Mas, à medida que a sintese progride e que se pretende atingir re- lações mais complexas, este primeiro método deixa de ser legitimo. É preciso limitar o número dos exemplos para aprofundar o sentido parti· cular de cada um. Neste momento da demonstração, todo seu peso re- pousa sobre um número muito pequeno de exemplos cuidadosamente escolhidos. A generalização que se seguir permanecerá válida com a con· dição dos exemplos serem típicos, isto é, de cada um deles permitir realizar uma experiência que corresponda a todas as condições do pro- blema, segundo a marcha do raciocínio permitir que sejam determina- das. Assim é que o progresso de nossa argumentação, em todo este tra- balho, é acompanhado por uma mudança de método. Partindo de uma exposição sistemática, na qual exemplos ecléticos, escolhidos com a úni- ca preocupação de seu valor evocativo, têm por função principal ilustrar o raciocínio e levar o leitor a reviver em sua própria experiência situa- ções do mesmo tipo, restringimos pouco a pouco nosso horizonte para permitir aprofundar a pesquisa, de tal modo que nossa segunda parte - excetuada a conclusão - apresenta·se quase como um grupo de três monografias, dedicadas respectivamente à organização matrimonial do sul da Ásia, da China e da índia. Estas explicações preliminares eram, sem dúvida, necessárias para justificar o procedimento. Este livro não poderia ter sido publicado sem o auxílio recebido, por diversas formas, de pessoas e instituições. Primeiramente, a Fundação Rockefeller, que nos deu os meios morais e materiais de empreendê·lo, em seguida, a New School for Social Research, que nos permítiu escla- recer e formular, graças à prática do ensino, algumas de nossas idéias, e enfim todos os nossos mestres e colegas com os quais pudemos, em contato pessoal ou por correspondência, verificar fatos e precisar hipó- teses, ou que nos dispensaram encorajamentos. Contamos entre estes os senhores Robert H. Lowie, A. L. Kroeber e Ralph Linton, o Dr. Paul Rivet, Georges Davy, Maurice Leenhardt, Gabriel Le Bras, Alexandre Koyré, Raymond de Saussure, Alfred Métraux e André Weil, que teve a genti- leza de acrescentar um apêndice matemático à primeira parte. Agrade- cemos a todos eles e muito particularmente a Roman Jakobson, cuja insistência amiga constrangeu·nos quase a levar a termo um esforço cuja inspiração teórica fica a dever-lhe ainda muito mais. Ao dedicar nosso trabalho à memória de Lewis H. Morgan, fomos guiados por um tríplice objetivo: prestar homenagem ao grande inicia- dor de U\lla ordem de pesqUisas em que, seguindo suas pegadas, modes- tamente nos empenhamos; inclinar-nos, através dele, diante dessa escola antropológica norte-americana que fundou e que durante quatro anos nos 22 associou tão fraternalmente a seus trabalhos e debates; e também talvez tentar devolver-lhe em pequena extensão o serviço que lhe devemos, lem- brando que essa extensão foi sobretudo grande numa época em que o escrúpulo científico e a exatidão da observação não lhe pareciam incom- patíveis com um pensamento que não se envergonhava de se confessar teórico, e com um gosto filosófico audacioso. Porque a sociologia não progredirá de maneira diferente de suas predecessoras, e convém tanto menos esquecer esta observação no momento em que começamos a en- trever, "como através de uma nuvem", o terreno no qual se realizará o encontro. Depois de ter citado Eddington: "a física torna-se o estudo das organizações", Kohler escrevia quase há vinte anos: "Neste cami- nho. .. ela encontrará a biologia e a psicologia".· Este trabalho terá atingido seu Objetivo se, depois de tê-lo terminado, o leitor sentir-se in- clinado a acrescentar: e a sociologia. Nova Iorque, 23 de fevereiro de 1947 . • W. Kõhler. La perception humaine. Journal de Psychologfe. voI. 27, 1930, _p. 30. 23 r L Uma apreciação mais justa da taxa muito elevada das mutações e da proporção das que são nocivas levaria a afirmações mais atenuadas, mes- mo se as conseqüências deletérias das uniões consangüíneas não tiveram papel na origem ou na persistência das regras da exogamia. A respeito da causalidade biológica, limitar-me-ei agora a dizer, repetindo uma fór- mula célebre, que, para explicar as proibições do casamento, a etnologia não tem necessidade dessa hipótese. No que diz respeito à oposição entre natureza e cultura, o estado atual dos conhecimentos e o da minha própria reflexão (um, aliás, se- guindo-se ao outro) oferecem em vários sentidos um aspecto paradoxal. Propunha traçar a linha de demarcação entre as duas ordens guiando·me pela presença ou ausência da linguagem articulada, e poder-se·ia pensar que o progresso dos estudos de anatomia e fisiologia cerebrais conferem a este critério um fundamento absoluto, porque certas estruturas do siso tema nervoso central, próprias exclusivamente do homem, parecem gover· nar a capacidade de denominar os objetos. Mas, por outro lado, apareceram diversos fenômenos que tornam a linha de demarcação, senão menos real, em todo caso mais tênue e tor- tuosa do que se poderia imaginar há vinte anos. Processos complexos de comunicação, pondo em ação às vezes verdadeiros símbolos, foram descobertos nos insetos, peixes, aves e mamíferos. Sabe-se, também, que algumas aves e mamíferos, principalmente os Chimpanzés no estado sel- vagem, sabem confeccionar e utilizar instrumentos. Nessa época cada vez mais recuada, quando teria começado o que convém chamar sempre o paleolítico inferior, espéCies e mesmo gêneros diferentes de hominídeos, talhadores de pedras e de ossos, parecem ter coabitado nos mesmos lugares. Somos assim levados a perguntar qual é o verdadeiro alcance da oposição entre a cultura e a natureza. Sua simplicidade seria ilusória se, em grande parte, tivesse sido obra de uma espécie do gênero H orno chamada por antífrase sapiens, que se esforçava ferozmente em eliminar formas ambíglias, julgadas próximas do animal, porque teria sido ins- pirada, há centenas de milhares de anos, pelO mesmo espírito obtuso e destruidor que a impele hoje em dia a aniquilar outras formas vi· vas, depois de tantas sociedades humanas falsamente repelidas para o lado da natureza, porque não a repudiavam (NaturvOlkern). É como se ela tivesse primeiramente pretendido ser a única a personificar a cul· tura em face da natureza, e permanecer agora, exceto em casos nos quais pOde submetê·la totalmente, a exclusiva encarnação da vida em face da matéria inanimada. Nesta hipótese, a oposição entre cultura e natureza não seria nem um dado primitivo nem um aspecto objetivo da ordem do mundo. Se· ria preciso ver nela uma criação artificial da cultura, uma obra defen· siva que esta última teria cavado em redor de si porque não se sentia capaz de afirmar sua existência e originalidade a não ser cortando to· das as passagens adequadas a demonstrar sua conivência originária com as outras manifestações da vida. Para compreender a essência da cul· tura seria preciso, portanto, remontar até à fonte e contrariar-lhe o ím· peto, reatar todos os fios rompidos, procurando a extremidade livre de- les em outras famílias animais e mesmo vegetais. Finalmente, poder-se-á talvez descobrir que a articulação da natureza com a cultura não se 26 l reveste da aparência interessada de um reino hierarquicamente super- posto a outro, sendo irredutivel a este, mas tem antes a aparência de uma repetição sintética, permitida pela emergência de certas estruturas cerebrais, dependentes da natureza, de mecanismos já montados mas só ilustrados pela vida animal em forma desconexa e que concede em or- dem espalhada. Entre os desenvolvimentos a que este livro deu lugar, o mais ines- perado para mim foi sem dúvida aquele que acarretou a distinção, que se tornou quase clássica na Inglaterra, entre as noções de "casamento prescritivo" e "casamento preferencial", Tenho certo embaraço em dis- cuti-la, tão grande é a divida de gratidão que contraí com o autor dela, Rodney Needham, que soube, com muita penetração e vigor, tornar-se meu intérprete (e às vezes também meu crítico) junto do público an- glo-saxão em um livro, Structure and Sentiment (Chicago 1962), com o qual preferiria não exprimir um desacordo, mesmo se, como é o caso, este se refira a um problema limitado. Contudo, a solução proposta por Needham acarreta uma alteração tão completa do ponto de vista em que me tinha colocado que parece indispensável retomar aqui alguns temas que, por deferência para com meus colegas britãnicos, tinha pre- ferido apresentar primeiramente em sua lingua e em seu pais, porque foram eles que me ofereceram a ocasião de fazê-lo, ao me confiarem a Huxley Memorial Lecture para o ano de 1965. Desde muito se sabe, e as simulações realizadas em computadores empreendidas por Kumdstadter e sua equipe' acabaram de demonstrá-lo, que as sociedades que preconizam o casamento entre certos tipos de parentes não conseguem submeter-se à norma senão em um pequeno número de casos. As taxas de fecundidade e de reprodução, o equilíbrio demográfiCO dos sexos, a pirâmide das idades nunca oferecem a bela harmonia e a regularidade exigida para que, no grau prescrito, cada individuo esteja seguro de encontrar no momento do casamento um côn- juge apropriado, inesmo se a nomenclatura do parentesco é suficiente- mente extensa para confundir graus do mesmo tipo, mas desigualmente afastados, o que freqüentemente acontece a ponto da noção de descen- dência comum tornar-se totalmente teórica. Daí a idéia de dar a estes sistemas a qualificação de "preferenciais". Acabamos de ver que esta qualificação traduz a realidade. Mas existem sistemas que confundem vários graus em categorias ma- trimoniais prescritas, nas quais não é mesmo inconcebível que figurem pessoas que não são parentes. É o caso das sociedades australianas de tipo clássico, e de outras, mais freqüentemente encontradas no sudeste da Ásia, onde o casamento se trava entre grupos que são chamados, e eles próprios assim se chamam, "tomadores" ou "doadores" de mulheres. A regra é que um grupo qualquer só pode receber mulheres de seus "doadores", dando-as a seus "tomadores". Como o número desses grupos parece sempre multo elevado, existe uma certa liberdade de escolha para qualquer indivíduo, e nada obriga, de uma geração à outra, e mesmo para os casamentos contraidos por vários homens da mesma geração, a recorrer sempre ao mesmo "doador". De modo que as mulheres ca· 1. P. Kundstadler, R. Bulúer, F. F. Slephan, Ch. F. Westoff, "Demography and Preferential Marriage Patterns", American Journal 01 Physical Anthropology, 1963. 27 sadas com dois homens que pertençam a gerações consecutivas (por exemplo, o pai e o filho) podem, se descenderem de grupos "doadores" diferentes, não ter entre si nenhum laço de parentesco. A regra é pois muito maleável e as sociedades que a adotam não encontram dificuldade séria em observá-Ia. Exceto casos excepcionais, fazem o que dizem dever ser feito. Tal é a razão pela qual foi proposto chamar "prescritivo" este sistema de casamento. Em continuação a Needham, vários autores afirmam hoje que meu livro só se ocupa dos sistemas prescritivos, ou mais exatamente (porque basta percorrê-lo para se ter a certeza do contráriO), que tal deveria ter sido minha intenção se não tivesse confundido as duas formas. Mas co- mo, segundo os adeptos desta distinção, os sistemas prescritivos são pou- co numerosos, o resultado, se tivessem razão, seria uma curiosa conse- qüência: eu teria escrito um livro muito grosso que, desde 1952 (data da publicação do trabalho de J. P. B. de Josselin de Jong, Lévi-Strauss's Theory on Kinship and Marriage, Leiden 1952), despertou todo tipo de comentários e discussões, quando se referia a fatos tão raros e se apli- caria a um domínio tão limitado que de modo algum se compreende o interesse que poderia oferecer para uma teoria geral do parentesco. No entanto, a participação que Needham teve a amabilidade de exer- cer na edição inglesa deste livro, e que cria um titulo a mais em minha gratidão para com ele, mostra que não perdeu a seus olhos todo o interesse teórico. Como isso teria sido possível se apenas discutisse ca- sos isolados? Seria preciso então dar razão a Leach, quandO disse: Since the "elementary structures" which he discusses are decidedly unusual they seem to provide a rather flimsy base for a general theory, [Desde que as "estruturas elementares" são decididamente raras parecem oferecer uma base muito inconsistente para uma teoria geral: N. do A.] e quando fala de splendid failure ["esplêndido malogro"] a este respeito. "Claude Lévi- Strauss - Anthropologist and Philosopher", New Left Review, 34, 1965, p. 20). Mas ao mesmo tempo fica-se perplexo diante dos motivos que levaram os editores a republicarem, um em francês, outro em inglês, uma obra que teria se encerrado com o insucesso, mesmo esplêndido, cerca de vinte anos depois de seu primeiro aparecimento. Ora, se empreguei indiferentemente as noções de preferência e de obrigação, associando-as mesmo às vezes, conforme me foi objetado, na mesma frase, é porque no meu modo de entender não denotam realidades sociais diferentes, mas correspondem mais a maneiras pouco diferentes que os homens adotam para pensar a mesma realidade. Definindo os sistemas chamados prescritivos da maneira como acabamos de fazer, a exemplo de seus inventores, a conclusão que se impõe é que por este lado tais sistemas não prescreveriam grande coisa. Aqueles que os pra- ticam sabem bem que o espírito desses sistemas não se reduz à propo- sição tautológica segundo a qual cada grupo obtém suas mulheres de "doadores" e dá suas filhas a "tomadores". Têm também consciência de que o casamento com a prima cruzada matrilateral (filha do irmão da mãe) oferece a mais simples ilustração da regra, a fórmula mais apro- priada para garantir-lhe a perpetuação, ao passo que o casamento com a prima cruzada patrilateral (filha dà irmã do pai) violaria a regra sem apelo. Porque o sistema falaria em termOs de grau de parentesco, se estivesse no caso ideal em que o númerO dos grupos que fazem trocas, 28 1 fere a uma inclinação subjetiva, que levaria os individuos a procurar o casamento com um certo tipo de parente. A "preferência" traduz uma situação objetiva. Se tivesse o poder de fixar a terminologia, chamaria "preferencial" todo sistema no qual, na falta de uma prescrição clara· mente formulada, a proporção dos casamentos entre um certo tipo de parentes reais ou classificatórios (tomando esta palavra no sentido mais vago que o definido por Morgan), quer os membros do grupo o saibam ou ignorem, é mais elevada do que resultaria se fosse devida ao acaso. Esta proporção objetiva reflete certas propriedades estruturais do siso tema. Se chegássemos a apreendê·las, estas propriedades se revelariam isomórficas das que nos são diretamente cognoscíveis em sociedades que ostentam a mesma "preferência", mas dando·lhe o aspecto de uma preso crição, e admitindo na prática obter exatamente o mesmo resultado, a saber, na hipótese do casamento com a prima cruzada matrilateral, assim como com mulheres provenientes de grupos exclusivamente "doadores", de um lado redes de aliança que tendem idealmente a se fecharem (em- bora não o façam necessariamente), de outro lado e sobretudo, redes relativamente longas em comparação com as que se poderia observar ou imaginar em sociedades onde o casamento fosse preferencial com a filha da irmã do pai, acarretando (mesmo na ausência de regra pres- critiva) um encurtamento correlativo dos ciclos.' Em outras palavras, não contesto que entre as formas prescritiva ou preferencial de um tipo qualquer de casamento não se possa fazer uma distinção de ordem ideológica. Mas os termos extremos sempre admitem uma série contínua de aplicações intermediárias. Faço o postu- lado de que esta série constitui um grupo e que a teoria geral do sistema só é possível no nível do grupo e não no nível de tal ou qual aplicação. Não se deve dissolver o sistema, reduzi-lo pela análise às diversas ma- neiras pelas quais, aqui ou ali, os homens preferem representá-lo. Sua natureza decorre objetivamente do tipo de distância criada entre a for- ma que se impõe à rede de aliança de uma sociedade e a que se ob- servaria nessa sociedade se as uniões fossem feitas ao acaso. No fundo, a única diferença entre o matrimônio prescritivo e o preferencial si- tua·se no plano do modelo. Corresponde à diferença que antigamente propus traçar entre o que chamava "modelo mecânico" e Umodelo esta- tístico" (Anthropologie Structurale, p. 311-317), isto é, em um caso um modelo cujos elementos encontram·se na mesma escala que as coisas 3. l!: verdade que, acompanhando Josselin de Jong, que já tinha feito uma obser- vação do mesmo tipo há muito tempo (l. c.), Maybury-Lewis ("Prescriptive Marriage Systems" Southwestern JO'Urnal 01 Anthropology, 21, 3, 1965) acredita poder afirmar que o modelo teórico de um sistema patrilateral contém ciclos tão longos quanto o modelo matrilateral. A única düerença seria que os ciclos se invertem regular- mente no primeiro caso, ao passo que conservam a mesma orientação no segundo_ Mas, ao ler desse modo o diagrama, somos simplesmente vítimas de uma ilusão de ótica. Que os ciclos curtos, exprimindo o desejo do retorno tão rápidO quanto possivel da mulher dada em troca da mulher cedida à geração anterior (filha da irmã pela irmã do pai), constituem o traço caracterfstico do sistema patrilateral. é fato amplamente comprovado pela filosofia não somente daqueles que o aprovam mas também daqueles, em número muito maior, que o condenam. E vale mais concordar com o julgamento universal dos interessados do que contradizer ao mesmo tempo os fatos e a si mesmo, afirmando simultaneamente que um sistema patrila- teral forma ciclos longos porque os percebemos no diagrama, mas que sua natureza é tal que não consegue fechar mesmo os ciclos mais curtos. Raciocinando dessa maneira, confunde-se a realidade empfrica não mais somente com o modelo, mas com o diagrama. 31 cujas relações são por ele definidas, classes, linhagens, graus. No outro caso, é preciso abstrair o modelo partindo de fatores significativos, dis- simulados por trás das distribuições na aparência regidas pelo jogo das probabilidades. Esta procura de uma estrutura significativa das trocas matrimoniais sobre as quais a sociedade considerada nada diz, quer diretamente por intermédio de regras, quer indiretamente graças às inferências que é pos- slvel tirar da terminologia do parentesco ou por qualquer outro meio, é posslvel quando se trata de um grupo pouco numeroso e relativamente fechado. Faz-se então as genealogias falarem. Mas, quando crescem a di- mensão e a fluidez do grupo e até seus limites se tomam imprecisos, o problema complica-se singularmente. O grupo continua a dizer o que não faz, ao menos em nome somente da proibição do incesto. Mas como saber se, sem perceber, faz alguma coisa a mais (ou a menos) do que seria o caso se seus membros escolhessem o cõnjuge em função de sua história pessoal, ambições e gostos? É nestes termos, segundo me parece, que se levanta o problema da passagem das estruturas elemen- tares às estruturas complexas, ou, se preferirmos, da extensão da teoria etnológica do parentesco às sociedades contemporâneas. Na ocasião em que escrevia meu livro o método a seguir parecia- me simples. Dever-se-ia decidir primeiramente reduzir as sociedades con· temporâneas aos casos privilegiados do ponto de vista da pesquisa, que constituem os isolados demográficos com forte coeficiente de endogamia, nos quais é possível esperar obter cadeias genealógicas e redes de aliança que se entrecruzam várias vezes. Na medida em que uma determinável proporção de casamentos se produziria entre parentes, seria possível sa· ber se estes ciclos são orientados ao acaso ou se uma proporção signifi· cativa depende mais de uma forma que da outra. Por exemplO, os côn- juges aparentados (freqüentemente sem saberem) são tais em linha pa- terna ou em linha materna, e, em cada caso, descendem de uma relação entre primos cruzada ou paralela? Supondo-se que apareça uma orien- tação, seria possível então classificá-la em um tipo ao lado das estrutu- ras análogas, porém melhor definidas, que os etnólogos já estudaram nas pequenas sociedades. Entretanto, a distância entre sistemas indeterministas, que julgam ou desejam ser tais, e os sistemas bem determinados que designei com o nome de estruturas elementares, é demasiado grande para que a apro- ximação seja decisiva. Felizmente (pelo menos acreditava poder dizê-lo), a etnografia fornece um tipo intermédio, com sistemas que apenas procla- mam impedimentos ao casamento, mas estendendo-os tão longe por efeito das coações inerentes à sua nomenclatura de parentesco, que por motivo do número relativamente fraco da população, não excedendo em geral alguns milhares de indivíduos, é possível esperar obter o inverso, a sa- ber, um sistema de prescrições inconscientes que reprOduziria exatamen- te, mas em cheio, os contornos do molde oco formado pelo sistema das proibições conscientes. Se esta operação fosse possível, teríamos à nossa disposição um método aplicável a casos nos quais a margem de liberda- de torna-se maior entre o que é proibido fazer e o que se faz, tomando aleatória a obtenção do positivo de acordo com o negativo, que é o único a ser dado. 32 r l Os sistemas que acabamos de mencionar são conhecidos em etnogra- fia pelo nome de sistemas Crow-Omaha, porque é nessas duas tribos da América do Norte que foram pela primeira vez identificadas suas va- riantes, respectivamente matrilinear e patrilinear_ É por eles que em 1947-1948 propunha-me a abordar o estudo das estruturas de parentesco complexas, em um segundO volume, ao qual várias vezes faço alusão e que sem dúvida nunca escreverei. Convém, portanto, explicar por que abandonei este projeto_ Embora convencido de que não se pode genera- lizar a teoria do parentesco sem passar pelos sistemas Crow-Omaha, fui progressivamente verificando que a análise deles levanta imensas dificul- dades, que não são da alçada dos etnólogos mas dos matemáticos_ As pessoas com quem ocasionalmente discuti o problema, há dez anos, estão convencidas disso_ Algumas declararam que o problema tinha solução, e outras não, por uma razão de ordem lógica que indicarei adiante_ Em todo caso ninguém sentiu desejo de ocupar o tempo que seria neces- sário para esclarecer a questão_ Radcliffe Brown e Eggan ensinaram-nos muitas coisas a respeito des- ses problemas, mostrando que um dos caracteres essenciais deles consis- te em fazer passar a situação de pertencer a uma linhagem à frente da relação de pertencer à geração_ Mas, ao que parece, houve demasiada pressa em classificar os sistemas Crow-Omaha juntamente com outros, que também designam por um único termo vários representantes, masculi- nos ou femininos, de uma linhagem, embora relacionem-se com gerações consecutivas, e que, como os sistemas Crow-Omaha fazem subir ou descer de uma ou de duas gerações certos membros de duas linhagens, dispos- tas simetricamente de um e de outro lado de uma terceira linhagem, na qual o observador decide colocar-se_ Com efeito, são numerosos os au- tores que classificam em conjunto as nomenclaturas Crow-Omaha e a das sociedades chamadas de casamento assimétrico, isto é, prescrltivo ou pre- ferencial com a prima cruzada matrilateraL Como a teoria desses sis- temas não levanta nenhum problema, o mesmo aconteceria com os outros. No entanto, uma curiosa anomalia deve chamar a atenção_ É fácil desenhar o diagrama de um sistema assimétrico_ Tem o aspecto de uma cadeia de ligações sucessivas, cUja orientação permanece a mesma em cada nível de geração, formando assim ciclos fechados superpostos que é possível traçar na superfície de um cilindro e projetar sobre um plano_ Por outro lado, ninguém conseguiu ainda dar uma representação gráfica satisfatória de um sistema Crow-Omaha em um espaço de duas ou mes- mo de três dimensões_ A medida que as gerações se sucedem, surgem novas linhagens, cuja representação exige outros tantos planos mantidos de reserva_ Na falta de informações genealÓgicas que completem as que são explicitamente fornecidas pelo sistema, só temos o direito, durante o lapso de três ou quatro gerações, de fazer uma única vez estes planos se recortarem_ Como a regra vale para os dois sexos e uma linhagem inclui pelo menos um homem e uma mulher em cada geração (senão o modelo não estaria em equilíbrio), o resultado é que mesmo um dia- grama limitado a algumas gerações exige muito mais dimensões espa- ciais do que é possível projetar no papel. acrescentando-se a elas uma dimensão temporal que não é levada em conta no modelo de um sistema assimétrico_ Radcllffe Brown e Eggan contornaram a dificuldade, mas 33 tura consecutiva a proibições maciças não parece poder evitar que um certo parentesco apareça entre os cônjuges, desde que o sistema tenha regularmente funcionado durante o lapso de várias gerações. Será isso verdade, e, caso afirmativo, que forma tem este vestígio e qual é o afas· tamento médio do grau? Eis aí um certo número de questões de grande interesse teórico, mas difíceis de responder por motivos que devemos agora determinar com exatidão. Quando se estudam os sistemas de classes matrimoniais (sem dar sentido demasiado técnico a esta noção), é sempre possível e geralmente fácil definir tipos de casamento. Cada tipo será representado pela união de um homem de uma classe determinada com uma mulher de uma classe igualmente determinada. Se convencionarmos designar cada classe por um indice (letra, número ou combinação de ambas), haverá, por· tanto, tantos tipos de casamento permitidos quantos pares de indices, com a condição de excluir previamente todos os que correspondem a alianças proibidas. No caso das estruturas elementares, a operação é consideravelmente simplificada pelo fato de existir uma regra positiva que enumera ou permite deduzir os tipos. Com os sistemas Crow-Omaha as coisas com· plicam-se duplamente. Em primeiro lugar, o número das classes (se, por conveniência, decidirmos designar assim as unidades exógamas) eleva-se de maneira apreciável, pOdendo às vezes chegar a várias dezenas. Sobre- tudo, o sistema não prescreve (ou s6 prescreve rara e parcialmente), mas proíbe dois ou três tipos e autoriza todos os outros, sem nada nos Informar quanto à sua forma e número. É possível, entretanto, pedir aos matemáticos que traduzam, por assim dizer, os sistemas Crow·Omaha em termos de estruturas elementa· res. Convencionaríamos representar cada indivíduo por um vetor contando tantos indices quantas as relações pelas quais o indivíduo pertença a clãs, e que se tornam pertinentes devido às proibições do sistema. To- dos os pares de vetores que não apresentam duas vezes o mesmo índice constituirão então a lista dos tipos de casamento permitido, os quais de- terminarão os tipos que se tornarão lícitos ou ilícitos para as crianças nascidas das uniões precedentes e para seus próprios filhos. Bernard Jaulin, chefe do Centro de Cálculo da Casa das Ciências do Homem, teve a amabilidade de tratar do problema, pelo que muito lhe agradeço. Com a ressalva das incertezas exclusivamente atribuíveis à maneira vaga e ca- nhestra como um etnólogo apresenta seus dados, veriflca·se que um sis- tema Crow-Omaha que promulgasse somente duas proibições, atingindo o clã da mãe e o do pai, autorizaria com isso 23.436 tipos de casamento diferentes, se o número dos clãs é igual a sete; 3.766.140 tipos se este número é igual a quinze; e 297.423.855 tipos se é igual a trinta. Com três proibições clânicas as coações seriam mais fortes, mas o número dos tipos permaneceria na mesma ordem de grandeza, 20.181, 3.516.345 e 287.521.515, respectivamente.' Estes números elevados dão motivo a várias reflexões. Primeiramente, é claro que com os sistemas Crow-Ohama estamos diante de mecanis· mos muito diferentes dos que Ilustram as sociedades de classes matri- 5. Esta última série de números foi também calculada. por J. P. Schellhorn, a quem igualmente agradeço. 36 moniais, onde o número dos tipos de casamento não tem medida comum com os que acabam de ser citados. A primeira vista estes parecem ter mais relação com a situação que é possível esperar encontrar em certos setores das sociedades contemporâneas, caracterizadas por forte coeficien· te de endogamia. Se as pesquisas nesse sentido confirmarem a aproxi· mação, do ponto de vista exclusivamente numérico, os sistemas Crow- Omaha formariam, conforme supusemos, uma ponte entre as estruturas de parentesco elementares e as estruturas complexas. Por sua extensão os recursos combinatórios dos sistemas Crow-Omaha lembram também os jogos complicados como os de cartas, o de damas e o xadrez, nos quais o número das possíveis combinações, teoricamente finito, é tão elevado que, para todos os fins úteis e colocando-se na es- cala humana, tudo se passa como se fosse ilimitado. Em princípio, estes jogos são indiferentes à história, porque as mesmas configurações sin- crônicas (nas distribuições) ou diacrônicas (no desenrolar das partidas), pOderiam reaparecer, mesmo que fosse depois de milhares ou milhões de milênios, desde que os jogadores imaginários se dedicassem a eles p'or um tempo suficientemente longo. Entretanto, tais jogos permanecem praticamente imersos no devenir, conforme se vê pelo fato de se escre- verem obras sobre a história da estratégia do xadrez. Embora virtual- mente presente a todo instante, o conjunto das possíveis combinações é demasiado grande para poder atualizar-se, a não ser graças a um tem- po prolongado e somente por fragmentos. Da mesma maneira, os siste- mas Crow-Omaha servem de ilustração do compromisso entre a periodi- cidade das estruturas elementares e seu próprio determinismo, que depen- de da probabilidade. Os recursos combinatórios são tão vastos que as escolhas individuais conservam sempre, inerente à estrutura, uma certa margem. O uso consciente ou inconsciente que dela é feito poderia mes- mo desviar a estrutura, se revelasse, conforme sugerem algumas indica- ções, que esta margem de liberdade varia de acordo com a composição dos vetores que definem o lugar de cada indivíduo no sistema. Seria preciso dizer então que, com os sistemas Crow-Omaha, a história penetra nas estruturas elementares, embora tudo se passe como se a missão de- les fosse anular seus efeitos. Infelizmente, não se sabe como proceder para medir esta margem de liberdade e os limiares entre os quais é capaz de oscilar. Em razão do número muito elevado das combinações, deveríamos recorrer a si- mulações em máquinas. Mas para isso seria necessário determinar um estado inicial, a fim de começar as operações. Ora, arriscamo-nos a cair prisioneiros de um círculo, porque, no sistema Crow-Omaha, o estado dos casamentos possíveis ou proibidos é a todo instante função dos casa- mentos realizados durante as gerações precedentes. Para determinar um estado inicial que tivesse a certeza de não violar nenhuma regra do sis- tema, não haveria outra saída senão o regresso ao infinito. A menos que se fizesse a convenção de que, apesar da aparência aleatória, o sistema Crow-Omaha produz retornos periódicos, de modo que, partindo de um estado inicial qualquer, após algumas gerações uma estrutura de deter- minado tipo deveria necessariamente predominar. Porém, mesmo na hipótese dos dados empíricos permitirem verificar a posteriori que as coisas se passam dessa maneira, o problema não estaria resolvido. Com efeito, é preciso levar em conta uma dificuldade 37 de ordem numérica. Quase todas as sociedades dotadas de um sistema Crow-Omaha foram pouco numerosas. Os exemplos norte-americanos, me- lhor estudados, correspondem a população de menos de 5.000 individuos. Por conseguinte, em cada geração os tipos de casamento efetivamente celebrados não podiam representar senão uma proporção irrisória dos tipos possiveis. O resultado é que num sistema Crow-Omaha os tipos de casamentos não se realizam somente de maneira aleatória, levando em conta apenas as linhagens proibidas. Entra em ação um acaso à segunda potência, que escolhe, entre todos os tipos de casamentos virtualmente possíveis, o pequeno número daqueles que se tornarão atuais e que de- finirão, para as gerações que deles nasceram, um outro conjunto de es- colhas possíveis, condenadas a ficarem virtuais por sua vez em larga maioria. Afinal de contas, uma nomenclatura muito rigida e regras ne- gativas que operam mecanicamente combinam-se com dois tipos de acaso, um distributivo e outro seletivo, para criar uma rede de alianças cujas propriedades ignoramos. Esta rede de alianças provavelmente não é di- ferente daquela que é gerada pelas nomenclaturas do tipo chamado "Ha- vaiano", que contudo dá prioridade aos níveis de geração sobre as li- nhagens, e que definem os impedimentos ao casamento levando em consideração mais os graus individuais de parentesco do que estabele- cendo proibições para classes interinas. A diferença em relação aos sis- temas Crow-Omaha provém de que os "sistemas havaianos" justapõem três técnicas heterogêneas, caracterizadas pelo emprego de uma nomen- clatura restrita, cuja fluidez é corrigida por uma determinação mais exa- ta dos graus proibidos, e por uma distribuição aleatória das alianças garantida por impedimentos que se estendem até o quarto grau cola- teral, e às vezes mesmo além, ao passo que os sistemas Crow-Omaha, que recorrem às mesmas técnicas. sabem dar-lhes uma expressão mais sistemática, integrando-as em um corpo de regras solidárias, que deveriam permitir melhor fazer a teoria desses jogos. Até que nasça essa teoria com a ajuda dos matemáticos, sem os quais nada é possível, os estu- dos do parentesco marcarão passo, apesar das engenhosas tentativas sur- gidas nos últimos dez anos, às quais porém, repelidas para a análise empírica ou para o formalismo, ignoram igualmente que a nomenclatura do parentesco e as regras do casamento são os aspectos complementares de um sistema de trocas, por meio do qual se estabelece a reciprocidade, que é mantida entre as unidades constitutivas do grupo. Paris, 23 de fevereiro de 1966 38 de seu comportamento. Assim, é o que se verifica na atitude da mãe com relação ao filho ou nas emoções complexas do espectador de uma parada militar. :É que a cultura não pode ser considerada nem simples· mente justaposta nem simplesmente superposta à vida. Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para rea- lizar uma sintese de nova ordem. Se é relativamente fácil estabelecer a distinção de princípio, a di- ficuldade começa quando se quer realizar a análise. Esta dificuldade é dupla, de um lado pOdendo tentar-se definir, para cada atitude, uma causa de ordem biológica ou social, e de outro lado, procurando por que mecanismo atitudes de origem cultural podem enxertar-se em compor- tamentos que são de natureza biológica, e conseguir integrá-los a si. N e- gar ou subestimar a oposição é privar-se de toda compreensão dos fe- nômenos sociais, e ao lhe darmos seu inteiro alcance metodológico cor- remos o risco de converter em mistério insolúvel o prOblema da passagem entre as duas ordens. Onde acaba a natureza? Onde começa a cultura? :É possível conceber vários meios de responder a esta dupla questão. Mas todos mostraram-se até agora singularmente decepcionantes. O método mais simples consistiria em isolar uma criança recém-nas- cida e observar suas reações a diferentes excitações durante as primeiras horas ou os primeiros dias depois do nascimento. Poder-se-ia então su- por que as respostas fornecidas nessas condições são de origem psi- cobiológicas, e não dependem de sínteses culturais ulteriores. A psicolO- gia contemporânea 'obteve por este método resultados cujo interesse não deve levar a esquecer seu caráter fragmentário e limitado. Em primeiro lugar. as únicas observações válidas devem ser precoces, porque podem surgir condicionamentos ao cabo de poucas semanas, talvez mesmo de dias. Assim, somente tipos de reação muito elementares, como certas expressões emocionais, podem na prática ser estudados. Por outro lado, as experiências negativas apresentam sempre caráter equívoco. Porque per- manece sempre aberta a questão de saber se a reação estudada está ausente por causa de sua origem cultural ou porque os mecanismos fi- Siológicos que condicionam seu aparecimento não se acham ainda mon- tados, devido à precocidade da observação. O fato de uma criancinha não andar não poderia levar à conclusão da necessidade da aprendizagem, porque se sabe, ao contrário, que a criança anda espontaneamente desde que organicamente for capaz de fazê· lo. ' Uma situação análoga pode apre- sentar-se em outros terrenos. O único meio de eliminar estas incertezas seria prolongar a observação além de alguns meses, ou mesmo de al- guns anos. Mas nesse caso ficamos às voltas com dificuldades insolúveis, porque o meio que satisfizesse as condições rigorosas de isolamento exi- gido pela experiência não é menos artificial do que o meio cultural ao qual se pretende substituí-lo. Por exemplo, os cuidados da mãe durante os primeiros anos da vida humana constituem condição natural do de- senvolvimento do indivíduo. O experimentador acha-se portanto encerra- do em um círculo vicioso. :É verdade que o acaso parece ter conseguido às vezes aquilo que o artifício é incapaz de fazer. A imaginação dos homens do século XVIII 3. M. B. McGraw, The Neuromu8cular Maturation Df the Humen In/ant, Nova . 1rque 1944. 42 r foi fortemente abalada pelo caso dessas "crianças selvagens", perdidas no campo desde seus primeiros anos, as quais, por um excepcional con- curso de probabilidades, tiveram a possibilidade de subsistir e desenvol- ver-se fora de toda influência do meio sociaL Mas, conforme se nota muito claramente pelos antigos relatos, a maioria dessas crianças foram anormais congênitos, -sendo preciso procurar na imbecilidade de que pa- recem, quase unanimemente, ter dado prova, a causa inicial de seu aban- dono, e não, como às vezes se pretenderia, ter sido o resultado. 4 Observações recentes confirmam esta maneira de ver. Os pretensos "meninos-lobos" encontrados na índia nunca chegaram a alcançar o nível normaL Um deles - Sanichar - jamais pôde falar, mesmo adulto_ Kellog relata que, de duas crianças descobertas juntas, há cerca de vinte anos, o mais moço permaneceu incapaz de falar e o mais velho viveu até os seis anos, mas com o nível mental de uma criança de dois anos e meio e um vocabulário de cem palavras apenas_' Um relatório de 1939 con- sidera como idiota congênito uma "criança-babuíno" da África do Sul, descoberta em 1903 com a idade provável de doze a quatorze anos_' Na maioria das vezes, aliás, as circunstâncias da descoberta são duvidosas. Além disso, estes exemplos devem ser afastados por uma razão de princípio, que nos coloca imediatamente no coração dos problemas cuja discussão é o objeto desta Introdução_ Desde 1811 Blumenbach, em um estudo dedicado a uma dessas crianças, o Selvagem Peter, observava que nada se poderia esperar de fenômenos desta ordem_ Porque, dizia ele com profundidade, se o homem é um animal doméstico é o único que se domesticou a si próprio. 7 Assim, é possível esperar ver um animal doméstico, por exemplo, um gato, um cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isolado, voltar ao comportamento natural que era o da espécie antes da intervenção exterior da domesticação_ Mas nada de semelhante pode se produzir com o homem, porque no caso deste último não existe comportamento natural da espécie ao qual o indivíduo isolado possa voltar mediante regressão. Conforme dizia Voltaire, mais ou menos nestes termos, uma abelha extraviada longe de sua colmeia e incapaz de encontrá~la é urna abelha perdida, mas nem por isso se tor~ nou urna abelha mais selvagem. As "crianças selvagens", quer sejam pro~ duto do acaso quer da experimentação, podem ser monstruosidades cul- turais, mas em nenhum caso testemunhas fiéis de um estado anterior_ É impossível, portanto, esperar no homem a ilustração de tipos de comportamento de caráter pré-culturaL Será possível então tentar um caminho inverso e procurar atingir, nos níveis superiores da vida animal, atitudes e manifestações nas quais se possam reconhecer o esboço, os sinais precursores da cultura? Na aparência, é a 'oposição entre comporta- 4. J. M. G. Itard, Rapports et mémories sur le sauvage de Z'AveyrDn, etc., Pa· ris 1894. A. von Feuerbach, Caspar Hauser, Trad. ingI. Londres 1833, 2 vols. 5. G. C. Ferfi,s, Sanichar, the Wolf·boy 01 India, Nova Iorque 1902. P. Squires, "Wolf-children" of India. American Journal of Psychology, voI. 38, 1927, p. 313. W. N. Kellog, More about the "Wolf-children" of India. Ibid., voI. 43, 1931, p. 508-509; A Further Note on the "Wolf-children" Df India. Ibid., voI. 46, 1934, p. 149. - Ver também, sobre esta polêmica, J. A. L. Singh e -R. M. Zingg, Woll-children and FeraZ Men, Nova Iorque 1942, e A. Gesell, Woll-child and Human Child, Nova Iorque 194!. 6. J. P .. Foley, Jr., The "Baboon-boy" of South Afriea. American Journal 01 Psycho- logy, vol. 53, 1940. R. M. Zingg, More about the "Baboon·boy" of South Afriea, lbid. 7. J. F. Blumenbaeh, Beitriige zur Naturgeschichte, Gt>ttingen 1811, em Anthropolo- gical Treatises 01 J. F. Blumenbach, Londres 1865, p. 339. 43 r mento humano e o comportamento animal que fornece a mais notável ilustração da antinomia entre a cultura e a natureza. A passagem - se existe - não poderia pois ser procurada na etapa das supostas socie- dades animais, tais como são encontradas entre alguns insetos. Porque em nenhum lugar melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos os atributos, impossíveis de ignorar, da natureza, a saber, o instinto, o equipamento anatõmico, único que pode permitir o exercício do instinto, e a transmissão hereditária das condutas essenciais à sobrevivência do individuo e da espécie. Não há nessas estruturas coletivas nenhum lugar mesmo para um esboço do que se pUdesse chamar o modelo cultural universal, isto é, linguagem, instrumentos, instituições sociais e sistema de valores estéticos, morais ou religiosos. É à outra extremidade da es- calá animal que devemos nos dirigir, se quisermos descobrir o esboço desses comportamentos humanos. Será com relação aos mamiferos su- periores, mais especialmente os macacos antropóides. c Ora, as pesquisas realizadas há mais de trinta anos com os grandes macacos são particularmente' desencorajantes a este respeito. Não que os componentes fundamentais do modelo cultural universal estejam ri- gorosamente ausentes, pois é possível, à custa de infinitos cuidados, con· duzir certos sujeitos a articularem alguns monossílabos ou dissílabos, aos quais aliás não ligam nunca qualquer sentido. Dentro de certos li· mites, o chimpanzé pOde utilizar instrumentos elementares e eventual· mente improvisá-los.' Relações temporárias de solidariedade ou de SUo bordinação podem aparecer e desfazer-se no interior de um determinado grupo. Finalmente, é possível que alguém se divirta em reconhecer em algumas atitudes singulares o esboço de formas desinteressadas de ativi· dade ou de contemplação. Um fato notável é que são sobretudo os senti· mentos que associamos de preferência à p~rte mais nobre de nossa na· tureza, cuja expressão parece poder ser mais facilmente identificada nos antropóides, como o terror religioso e a ambigüidade do sagrado.' Mas se todos estes fenômenos advogam favoravelmente por sua presença, são ainda mais eloqüentes - e em sentido completamente diferente - por sua pobreza. Ficamos menos impressionados por seu esboço elementar do q',e pelo fato - confirmado por todos os especialistas - da impos· sibilid de, ao que parece radical, de levar esses esboços além de sua expressão mais primitiva. Assim, o fosso que se poderia esperar preencher por mil observações engenhosas na realidade é apenas deslocado, para aparecer ainda mais intransponível. Quando se demonstrou que nenhum obstáculo anatõmico impede o macaco de articular os sons da linguagem, e mesmo conjuntos silábicos, só podemos nos sentir ainda mais admi· rados pela irremediável ausência da linguagem e pela total incapacida· de de atribuir aos sons emitidos ou ouvidos o caráter de sinais. A mes- ma verificação impõe-se nos outros terrenos. Explica a conclusão pes- simista de um atento observador que se resigna, após anos de estudo e de experimentação, a ver no chimpanzé "um ser empedernido no es- treito círculo de suas imperfeições inatas, um ser 'regressivo' quando 8. P. Guillaume e I. Meyerson, Quelques recherches sur l'intelligence des singes (communication préliminaire), e: Recherches sur l'usage de l'instrument chez les singes. Journal de Psychologie, voI. 27, 1930; vol. 28, 1931; vaI. 31, 1934; voI. 34, 1938. 9. W. Kohler, The Mentality 01 Apes, apêndice à segunda edição. 44 ,; 1, I Por conseguinte, nenhuma análise real permite apreender o ponto de passagem entre os fatos da natureza e os fatos da cultura, além do mecanismo da articulação deles. Mas a discussão precedente não nos ofereceu apenas este resultado negativo. Forneceu, COm a presença ou a ausência da regra nos comportamentos não sujeitos às determinações instintivas, o critério mais válido das atitudes sociais. Em toda parte onde se manifesta uma regra podemos ter certeza de estar numa etapa da cultura. Simetricamente, é fácil reconhecer no universal o critério da natureza. Porque aquilo que é constante em todos os homens escapa necessariamente ao domínio dos costumes, das técnicas e das instituições pelas quais seus grupos se diferenciam e se opõem. Na falta de análise real, os dois critérios, o da norma e o da universalidade, oferecem o princípio de uma análise ideal, que pode permitir - ao menos em certos casos e em certos limites - isolar os elementos naturais dos elementos culturais que intervêm nas sínteses de ordem mais complexa. Estabele- çamos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto está ligado a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do reUüivo e do particular. Encontramo-nos assim em face de um fato, OUb antes de um conjunto de fatos, que não está longe, à luz das definições precedentes, de aparecer como um escândalo, a saber, este conjunto com- plexo de crenças, costumes, estipulações e instituições que designamos sumariamente pelo nome de proibição do incesto. Porque a proibição do incesto apresenta, sem o menor equivoco e indissoluvelmente reunidos, os dois caracteres nos quais reconhecemos os atributos contraditórios de duas ordens exclusivas, isto é, constituem uma regra, mas uma re- gra que, única entre todas as regras sociais, possui ao mesmo tempo caráter de universalidade. '" Não há praticamente necessidade de demons- trar que a proibição do incesto constitui uma regra. Bastará ·lembrar que a proibição do casamento entre parentes próximos pode ter um campo de aplicação variável, de acordo com o modo como cada grupo define o que entende por parente próximo. Mas esta proibição, sancio- nada por penalidades sem dúvida variáveis, podendo ir da imediata exe- cução dos culpados até a reprovação difusa, e às vezes somente até a zombaria, está sempre presente em qualquer grupo social. Com efeito, não se poderia invocar neste assunto as famosas exce- ções com que a sociologia tradicional se satisfaz freqüentemente, ao mos- trar como são poucas. Porque toda sociedade faz exceção à proibição do incesto quando a consideramos do ponto de vista de outra sociedade, cuja regra é mais rigorosa que a sua. Treme-se ao pensar no número de exceções que um índio paviotso deveria registrar a este respeito. Quando nos referimos às três exceções clássicas, o Egito, o Peru, o Havaí, a que aliás é preciso acrescentar algumas outras (Azande, Madagáscar, Birmânia, etc.), não se deve perder de vista que estes sistemas são exce- ções relativamente ao nosso próprio, na medida em que a proibição abrange aí um domínio mais restrito do que entre nós. Mas a noção 20. "Se pedíssemos a dez etnólogos contemporâneos para indicar uma institui· ção humana. universal, é provável que nove escolhessem a proibição do incesto. Vá- rios deles já a designaram formalmente como a única instituição universal". Cf. A. L. Kroeber, Totem end Taboo in Retrospect. American Journal of Sociology, vaI. 45, n. 3, 1939, p. 448. 47 de exceção é inteiramente relativa, e sua extensão seria muito diferente para um australiano, um tonga ou um esquimó. A questão não consiste portanto em saber se existem grupos que permitem casamentos que são excluidos em outros, mas, em vez disso, em saber se há grupos nos quais nenhum tipo de casamento é proibido. A resposta deve ser então absolutamente negativa, e por dois motivos. Primeiramente, porque o casamento nunca é autorizado entre todos os parentes próximos, mas somente entre algumas categorias (mela·irmã com exclusão da irmã, irmã com exclusão da mãe, etc.)'. Em segundo lugar, porque estas uniões consangüineas ou têm caráter temporário e ritual ou caráter oficial e permanente, mas neste último caso são privilégio de uma categoria social muito restrita. Assim é que em Madagáscar a mãe, a irmã e às vezes também a prima são cõnjuges prOibidos para as pessoas comuns, ao passo que para os grandes chefes e os reis so- mente a mãe - mas assim mesmo a mãe - é fady, "proibida". Mas há tão poucas "exceções" à proibição do incesto que esta é objeto de ex· trema susceptibilidade por parte da consciência indlgena. QuandO um matrimônio é estéril, postula·se uma relação incestuosa embora ignorada, e as cerimônias expiatórias prescritas são automaticamente celebradas." O caso do Egito antigo é mais perturbador, porque descobertas re- centes" sugerem que os casamentos consangüineos - particularmente entre irmã e irmão - representaram talvez um costume espalhado entre os pequenos funcionários e artesãos, e não limitado, conforme se acre- ditava outrora", à casta reinante e às mais tardlas dlnastias. Mas em matéria de incesto não poderia haver exceção absoluta. Nosso eminente colega Ralph Linton observou·nos um dla que na genealogia de uma fa- mília nobre de Samoa, estudada por ele, em oito casamentos consecuti- vos entre irmão e irmã somente se refere a uma irmã mais moça, e que a opinião indlgena tinha condenado como imoral. O casamento entre o ir- mão e a irmã mais velha aparece poiS como uma concessão ao direito de primogenitura, e não exclui a proibição do incesto, porque, além da mãe e da filha, a irmã mais moça continua sendo um cônjuge proibido, ou pelo menos desaprovado. Ora, um dos raros textos que possuimos sobre a organização social do antigo Egito indlca uma interpretação aná- loga. Trata-se do papiro de Boulaq n. 5, que relata a história da filha de um rei que quer casar-se com seu irmão mais velho. A mãe pon- dera: "Se não tiver filhos depois desses dois, não é obrigatório casá- los um com outro?"" Também aqui parece tratar-se de uma fórmula de prOibição que autoriza o casamento com a irmã mais velha, mas repro- va-a com a mais moça. Veremos adiante que os antigos textos japoneses descrevem o incesto como união com a irmã mais moça, sendo excluída a mais velha, alargando assim o campo de nossa interpretação. Mesmo nesses casos, que poderíamos ser tentados a considerar como limites, a 21. H. M. Dubols, S.J., Monographie des Betsiléo, Travam: et Mémoires de l'Institut d'Ethnologie, Paris, vaI. 34, 1938, p. 876-879. 22. M. A. Murray, Marriage in Ancient Egypt, em Congres international des Sciences anthropologiques, Camptes rendus, Londres 1934, p. 282. 23. E. Amelineau, Essai SUT l'évoZution historique et philosophique des idées mo.. rales dans l'Egypte ancienne, Bibliotheque de l'Ecole Pratique des Hautes Etudes. Sciences religieuses. vaI. 6, 1895, p. 72-73. - W. M. Flinders-Petrie, Social Life in Ancient Egypt, Londres 1923, p. 11055. 24. G. Maspero, Contes populaires de ['Egypte ancienne, Paris 1889, p. 171. 48 regra da universalidade não é menos aparente do que o caráter norma· tivo da instituição. Eis aqui, pois, um fenômeno que apresenta simultaneamente o ca- ráter distintivo dos fatos da natureza e o caráter distintivo - teorica· mente contraditório do precedente - dos fatos da cultura. A proibição do incesto possui ao mesmo tempo a universalidade das tendências e dos instintos e o caráter coercitivo das leis e das instituições. De onde provém então? Qual é seu lugar e significação? Ultrapassando inevitavel· mente os limites sempre históricos· e geográficos da cultura, coextensiva no tempo e no espaço com a espécie biológica, mas reforçandO, pela proibição social, a ação espontânea das forças naturais a que se opõe por seus caracteres próprios, embora identificando·se a elas quanto ao campo de aplicação, a proibição do incesto aparece diante da reflexão sociológica como um terrível mistério. Poucas prescrições sociais preser- varam, com igual extensão, em nossa sociedade a auréola de terror res· peitoso que se liga às coisas sagradas. De maneira significativa, e que teremos necessidade de comentar e explicar mais adiante, o incesto, em forma própria e na forma metafórica de abuso de menor (conforme diz o sentimento popular, "da qual se poderia ser o pai"), vem a encontrar·se mesmo, em certos países, com sua antítese, as relações sexuais inter-ra- ciais, que no entanto são uma forma extrema da exogamia, como os dois mais poderosos estimulantes do horror e da vingança coletivas. Mas este ambiente de temor mágico não define somente o clima no qual, ainda mesmo na sociedade moderna, a instituição evolui. Este ambiente envolve também, no plano teórico, debates aos quais, desde as origens, a sociologia se dedicou com uma tenacidade ambígua: "A famosa ques· tão da proibição do incesto, declara Lévy·Bruhl, esta vexata quaestio de que os etnólogos e os sociólogos tanto procuraram a solução, não admite nenhuma. Não há oportunidade em colocá·la. Nas sociedades das quais acabamos de falar é inútil perguntar por que razão o incesto é proibido. Esta proibição não existe ... ; ninguém pensa em proibi·la. É alguma coi· sa que não acontece. Ou, se por impossível isso acontecesse, seria alguma coisa inaudita, um monstrum, uma transgressão que espalha o horror e o pavor. As sociedades primitivas conhecem a proibição da autofagia ou do fratricídio? Essas sociedades não têm nem mais nem menos razão para proibir o incesto". n Não nos espantaremos em encontrar tanto constrangimento em um autor que não hesitou contudo diante das mais audaciosas hipóteses, se considerarmos que os sociólogos são quase unânimes em manifestar, di· ante deste problema, a mesma repugnância e a mesma timidez. 25. L. Lévy-Bruhl, Le Surnaturel et la Nature dans la mentaUté primitive, Paris 1931, p. 247. 49 l adoção, estas interdições e os castigos que as punem são - se tal é pos- sível - ainda mais severamente aplicadas". G Não se deve, aliás, perder de vista que desde o fim do paleolitico o homem utiliza procedimentos de reprodução endogâmicos, que leva- ram as espécies cultivadas ou domésticas a um crescente grau de per- feição. Como, portanto, supondo que o homem tenha tido consciência dos resultados desses métodos, e que, como também se supõe, procedesse nesse assunto julgando de maneira racional, como explicar que tenha chegado no dominio das relações humanas a conclusões opostas às que sua experiência verificava todos os dias no dominio animal e vegetal, do qual dependia seu bem-estar? Se o homem primitivo tivesse sido sensível a considerações dessa ordem, como compreender sobretudo que tenha parado nas proibições e não tivesse passado às prescrições, cujo resul- tado experimental - ao menos em certos casos - teria mostrado efeitos benéficos? Não somente não o fez, mas nos recusamos ainda a todo em- preendimento dessa ordem e foi preciso esperar teorias sociais recentes - cujo caráter irracional é aliás denunciado - para ver o homem pre- conizar para si a reprodução orientada. As prescrições positivas que mais freqüentemente encontramos nas sociedades primitivas ligadas à proibição do incesto são as que tendem a multiplicar as uniões entre primos cru- zados (respectivamente nascidos de um irmão e de uma irmã), por con- seguinte, que colocam nos dois pólos extremos da regulamentação social tipos de uniões idênticas do ponto de vista da proximidade, a saber, a união entre primos paralelos (respectivamente nascidos de dois irmãos ou de duas irmãs) igualada ao incesto fraterno, e a união entre primos cruzados, sendo esta última considerada como correspondendo a um ideal, apesar do grau muito estreito de consangüinidade entre os cõnjuges. É no entanto notável observar até que ponto o pensamento con- temporâneo tem repugnância em abandonar a idéia de que a proibição das relações entre consangüíneos ou colaterais imediatos seja justificada por motivo de eugenia. Isto deverá acontecer sem dúvida porque - con- forme a experiência que tivemos durante os últimos dez anOs - é nos conceitos biológicos que residem os últimos vestígios de transcendência de que dispõe o pensamento moderno. Um exemplo particularmente sig- nificativo é fornecido por um autor cuja obra científica contribuiu em alto grau para dissipar os preconceitos relativos às uniões consangüíneas. ~. M. East mostrou, com efeito, mediante admiráveis trabalhos sobre a reprodução do milho, que a criação de uma linhagem endogâmica tem como primeiro resultado um período de flutuações durante o qual o tipo está sujeito a extremas variações, devidas sem dúvida ao ressurgimento de caracteres recessivos habitualmente mascarados. DepOis, as variabili- dades diminuem progressivamente, terminando em um tipo constante e lnvariáveí~Ora, em uma obra destinada a um auditório mais amplo, o autor, depois de ter lembrado estes resultados, tira a conclusão que as crenças populares relativas aos casamentos entre parentes próximos são grandemente fundadas. O trabalho de laboratório não faria senão confir- mar os preconceitos do folclore. Segundo a expressão de um velho au- 6. Ch. Hose e W. McDougall, The pagan Tribes 01 Borneo. Londres 1912, voI. 1, p . . 7~.. -:- Conforme notam as autores desta observação ela põe em evidência a artzllctalldade das regras referentes ao incesto (ibid., voI. 2, p. 197). 52 + tor, "Superstition iz often awake when reezon iz asleep". f E isto porque "os caracteres recessivos pouco desejáveis são tão freqüentes na família humana quanto no milho". Mas este deplorável reaparecimento de ca· racteres recessivos só é explicável - excluidas as mutações - nahi· pótese em que se trabalha com tipos já selecionados, pOis os caracteres que reaparecem são precisamente aqueles que o esforço secular do cria· dor tinha conseguido eliminar. Esta situação não poderia encontrar:se no homem, porque - como acabamos de ver - a exogamia, tal como é praticada pelas sociedades humanas, é uma exogamia cega. Mas, sobretu· do, East estabeleceu indiretamente com seus trabalhos que estes supos· tos perigos não teriam jamais aparecidO se a humanidade tivesse sido endogãmica desde a origem. Neste caso nos acharíamos sem dúvida em presença de raças humanas tão constantes e definitivamente fixadas quan· to as linhagens endogãmicas do milho, depois da eliminação dos fatores de variabilidade.! O perigo temporário das uniões endógamas, supondo que exista, resulta evidentemente de uma \tradição de exogamia ou de pangamia, mas não pOde ser a causa dela. Os casamentos consangüíneos, com efeito, apenas combinam genes do mesmo tipo, ao passo que um sistema no qual a união dos sexos fosse determinada exclusivamente pela lei das probabilidades ("panmixia" de Dahlberg) os misturaria ao acaso. Mas a natureza dos genes e seus caracteres individuais continuam sendo os mesmos nOs dois casos. Bas- ta que as uniões consangüíneas se interrómpam para que a composição geral da população se restabeleça tal como se poderia prever com base na "panmixia", Os casamentos consangüíneos arcaicos, por conseguinte. não têm influência, não atuam senão sobre as gerações imediatamente con- secutivas. Mas esta influência é função das dimensões absolutas do gru· po. Para uma população de um volume dado, pode-se sempre definir um estado de equilíbrio no qual a freqüência dos casamentos consan· güíneos seja igual à prObabilidade de tais casamentos em regime de ("panmixia". Se a população ultrapassa este estado de equilíbrio, perma· necendo a mesma a freqüência dos casamentos consangüíneos, o número de portadores de caracteres recessivos aumenta. "O aumento do grupo acarreta o acréscimo de heterozigotismo a expensas do homozigotismo". ~ Se a população cai abaixo do estado de equilíbrio, permanecendo "nor· mal" a freqüência dos casamentos consangüíneos com relação a esse es- tado, os caracteres recessivos reduzem-se segundo uma taxa progressiva: 0,0572% em uma população de 500 pessoas com dois filbos por famllia; 0,1697% se a mesma população cai a 200 pessoas. Dahlberg pôde por conseguinte concluir que, do ponto de vista da teoria da hereditariedade, "as proibições do casamento não parecem justificadas". D lÊ verdade que as mutações determinantes do aparecimento de uma tara recessiva são mais perigosas nas pequenas populações que nas gran· de.w Nas priIl)eiras, com efeito, as probabilidades de passagem ao homozi· gotismo são mais elevadas. Em compensação, esta mesma passagem rá- pida e completa ao homozigotismo, em prazo mais ou menos longo, deve I L 7. E. M. East, Heredity and Human Aftairs. New York 1938, p. 156. 8. Gunnar Dahlberg, On Rare Defects in Human Populations with Particular Regard to Inbreeding and Isolate Effects. proceedings of lhe Royal SOciety of Edinburgh, voI. 58, 1937-1938, p. 224. 9. Id., Inbreeding in Man. Genetics, voI. 14, 1929, p. 454. 53 assegurar a eliminação do caráter temido. É possível, portanto, consí- derar que, em uma pequena população endógama de composição estável, cujo modelo é oferecido por muitas socíedades primitivas, o único risco do casamento entre consangüíneos provém do aparecimento de novas mu- tações - risco que pode ser calculado, porque esta taxa de aparecimen- to é conhecida - mas as probabilidades de encontrar no interior do grupo um heterozigoto recessivo tornaram-se mais fracas que as de ocor- rência possível no casamento com um estranho. Mesmo naquilo que se refere aos caracteres recessivos que surgem por mutação em uma po- pulação dada, Dahlberg julga que o papel dos casamentos consangüineos é muito fraco na produção dos homozigotos. Porque, para um homozigoto resultante de um casamento consangüíneo, há um número enorme de heterozigotos que, caso a população seja suficientemente pequena, serão necessariamente levados a se reprOduzir entre sLQ:ssim, em uma popula- ção de 80 pessoas, a proibição do casamento entre parentes próximos, inclusive primos em primeiro grau, não diminuiria o número dos porta- dores de caracteres recessivos raros senão de 10 a 15%.10 Estas consi- ! derações são importa'1Jtes porque levam em conta a noção quantitativa do . volume da populaçã0..,J0ra, as sociedades primitivas ou arcaicas são li- mitadas, por seu regIme econômico, a um volume populacional muito restrito e é justamente para volumes desta ordem que a regulamenta- ção dos casamentos consangüíneos só pOde ter conseqüências gen"l;lcas desprezíveis. Sem chegar ao fundo do problema - para o qual os teóri· cos modernos s6 ousam fornecer soluções provisórias e muit.o matiza~ das" - é possível portanto considerar que a humanidade primitiva não se encontrava em uma situação demográfica tal que fosse capaz mes~ mo de recolher os dados do problema. Um segundo tipo de explicação tende a eliminar um dos termos da antinomia entre os caracteres, natural e social, da instituição. Para um grande grupo de sociólogos e psicólogos, dos quais Westermarck e Ha- velock Ellis são os principais representantes, a proibição do incesto é ~penas a projeção ou o reflexo no plano social de sentimentos ou ten· dências que a riatureza do homem basta inteiramente para explicar. .ir: possível notar importantes variações entre os defensores desta posição, alguns fazendo derivar o horror do incesto, postulado na origem da proi· bição, da natureza fisiOlógica do homem, enquanto outros O derivam das tendências psíquicas. Na verdade, limitam-se estes autores a retomar o velho preconceito da "voz do sangue", expresso aqui em forma mais negativa que positiva. Ora, o fato do pretenso horror do incesto não poder ser derivado de uma fonte instintiva está suficientemente estabelecido pela verificação de que se manifesta somente por ocasião de um conhe· cimento suposto, ou posteriormente estabelecido, da relação de paren· tesco entre os culpados. Resta a interpretação pelo estímulo - ou antes a falta de estímulo - atual. Assim, para Havelock Ellis a repugnãncia 10. Id., On Rare Defects in Human Populations with Particular Regard to Inbreed- ing and Isolate Effects. Op. cit., p_ 220. 11. E. Baur, E. Fischer, P. Lem, Menschliche Erblichkeitslehre, Munique 1927. G. Dahlberg, Inzucht bei Polyhybriditat bei Menschen, Heredifas, voI. 14, 1930. L. Hogben, Genetic PrincipIes in Medicine and Social Sciences, Londres 1931. J. B. S. Haldane, Heredity and Politics, Londres 1938. - Cf. também adiante, capo VIII. 54 1 que constitua a negação de uma tendência congênita. A melhor prova é que, enquanto toda sociedade proíbe o incesto, não há nenhuma que não conceda um lugar ao suicídio, reconhecendo a legitimidade dele em certas circunstãncias ou por certos motivos, justamente aqueles em que a atitude individual coincide acidentalmente com um interesse social. Resta, portanto, sempre descobrir as razões pelas quais o incesto causa pre· juízo à ordem social. As explicações do terceiro tipo têm em comum com a que acaba de ser discutida o fato de pretenderem, também elas, eliminar um dos termos da antinomia. Neste sentido, ambas se opõem às explicações do primeiro tipo, que conservam os dois termos, embora tentando dissociá-los. Mas, enquanto os partidários do segundo tipo de explicação querem reduzir a proibição do incesto a um fenômeno psicOlÓgico ou fisiológico de ca- ráter instintivo, o terceiro grupo adota uma posição simétrica mas in- versa. Vê na proibição do incesto uma regra de origem puramente social, cuja expressãõ·em termos biológicos é um aspecto acidental e secun· dãi-io. A exposição desta concepção, mais diversificada conforme os au- tores, deve ser feita com maior número de detalhes que as precedentes. Considerada como instituição social, a proibição do incesto aparece sob dois aspectos diferentes. Ora achamo-nos somente em presença da proibição da união sexual entre consangüíneos ou colaterais próximos, ora esta forma de proibição, fundada sobre um critério biológico definido, é apenas um aspecto de um sistema mais amplo, do qual parece estar ausente qualquer base biológica. Em numerosas sociedades a regra da 'exogamia) proíbe o casamento entre categorias sociais que incluem os parentes próximos. mas, juntamente com eles, um número considerável de indivíduos entre os quais não é possível estabelecer nenhuma relação de consangüinidade ou de cOlateralidade, ou, em todo caso, só relações muito dístantes. Neste último caso, é o capricho aparente da nomenclatura que equipara os indivíduos feridos pelo interdito a parentes biológicos. Os partidários das interpretações do terceiro tipo dão principalmente atenção a esta forma ampla e socializada da proibição do incesto. Afaste- mos imediatamente certas sugestões de Morgan e de Frazer, que vêem nos sistemas exógamos métodos destinados a prevenir as uniões incestuosas, isto é, uma pequena fração das uniões que de fato proíbem. ,Q mesmo resultado, com efeito (o exemplo das sociedades sem clã nem metade é a prova), pOderia ser obtido sem o incõmodo edifício das regras exo- gâmicas. Se esta primeira hipótese dá uma explicação muito pouco sa- tisfatória da exogamia, não fornece nenhuma sobre a proibição do in- cesto. Muito mais importante, de nosso ponto de vista, são as teorias que, dando uma interpretação sociológica da exogamia, ou deixam aberta a possibilidade de fazer da proibição do incesto uma derivação da exo- gamia, ou afirmam categoricamente a existência desta derivação. -- No primeiro grupo incluiremos as idéias de McLennan, Spencer e Lubbock ", no segundo, as de Durkheim. McLennan e Spencer viram nas 17. J. F. McLennan, An lnquiry into the Origin 01 Exogamy. Londres 1896. H. Spencer, PrincipIes of Sociology. 3 vols., Londres 1882-1896. Sir John Lubbock, Lord Averbury, The Origin 01 Civilization and the Primitive Condition 01 Man, Londres 1870, p. 83ss; Marriage, Totemism and Religion, Londres 1911. 57 práticas exogâmicas a fixação pelo costume dos hábitos de tribos guer- reiras, nas quais a captura era o meio normal de obter esposas_ Lubbock traça um esquema de uma evolução que teria consagrado a passagem do casamento de grupo, de caráter endogâmico, ao casamento exogâmico por captura. As esposas obtidas por este último procedimento, por opo- sição às precedentes, seriam as únicas que possuiriam o estatuto de bens individuais, fornecendo assim o protótipo do casamento individua- lista moderno. Todas estas concepções podem ser afastadas por uma razão muito simples: se não querem estabelecer nenhuma conexão entre a exogamia e a proibição do incesto são estranhas ao nosso estudo; se, ao contrário, oferecem soluções aplicáveis não somente às regras da exo- gamia mas a esta forma particular de exogamia constituída pela proi- bição do incesto, são inteiramente inadmissíveis. Porque pretenderiam en- tão fazer derivar uma lei geral - a proibição do incesto - de tal ou qual fenômeno especial, de caráter freqüentemente anedótico, próprio sem dúvida de certas sociedades, mas cuja ocorrência não pode ser unlversa- lizada. Este vício metodológico, e alguns outros ainda, são comuns com a teoria de Durkheim, que constitui a forma mais consciente e sistemá- tica de interpretação por causas puramente sociais. A hipótese levantada por Durkheim no importante trabalho que inau- gura o primeiro volume do Année Sociologique" apresenta um triplice caráter: primeiramente, funda·se na universalização de fatos observados em um limitado grupo de sociedades; em seguida, faz da proibição de incesto uma conseqüência longínqua das regras da exogamia. Finalmente, estas últimas são interpretadas em função de fenômenos de outra ordem. É a observação das sociedades australianas, consideradas como ilustra- ção de um tipo primitivo de organização outrora comum a todas as sociedades humanas, que fornece, segundo Durkheim, a solução do pro- blema do incesto. A vida religiosa dessas sociedades, conforme se sabe, é dominada por crenças que afirmam a identidade substancial entre o clã e o totem epônimo. A crença na identidade substancial explica as proibições especiais que afetam o sangue, considerado como o símbolo sagrado e a origem da comunidade mágico-biológica que une os membros de um mesmo clã. Este temor do sangue clânico é particularmente in- tenso no caso do sangue menstrual, e explica por que na maioria das sociedades primitivas as mulheres são, primeiramente por ocasião das regras, e depois de maneira mais geral, objeto de crenças mágicas e marcadas por especiais proibições. Os interditos referentes às mulheres e à sua segregação, tal como se exprime na regra da exogamia, não seriam portanto senão a repercussão longinqua de crenças religiosas que primitivamente não fazem discriminação entre os sexos, mas que se trans- formam sob a influência da aproximação que se estabelece, no espírito dos homens, entre o sangue e o sexo feminino. Em última análise, se, de acordo com a regra da exogamia, um homem não pode contratar casamento no interior de seu próprio clã, é porque, se agisse de outra maneira, entraria em contato, ou correria o risco de entrar em contato, com este sangue que é o sinal visível e a expressão substancial do pa- rentesco com o seu totem. Esse perigo não existe para os membros de outro clã, porque o totem de outrem não sofre nenhum interdito, não é 18. E. Durkheim, La Prohibition de l'inceste. L'Année Sociologique, voI. 1, 1898. 58 1 depositário de nenhuma força mágica, do que decorre a dupla regra do casamento interclânico e da proibição do incesto no interior do clã. A proibição do incesto, tal como a concebemos atualmente, seria portanto um vestígio, a sobrevivência deste conjunto complexo de crenças e proi- bições que mergulham suas raizes em um sistema mágico-religioso no qual reside, afinal de contas, a explicação. Assim pois, seguindo uma mar· cha analítica, vemos que, para Durkheim, a proibição do incesto é um resíduo da exogamia, e que esta se explica pelas proibições especiais referentes às mulheres. Esses interditos encontram origem no temor do sangue menstrual, e essa proibição é apenas um caso particular de temor do sangue em geral, sendo' que finalmente este último exprime somente certos sentimentos que decorrem da crença na. consubstancialidade do in- divíduo, membro de um clã, com seu totem. A força desta interpretação provém da possibilidade de organizar em um só e mesmo sistema fenômenos muito diferentes uns dos outros, cada um dos quais, tomado em si mesmo, parece dificilmente inteligí- vel. A fraqueza da interpretação reside no fato das conexões assim es- tabelecidas serem frágeis e arbitrárias. Deixemos de lado a objeção ante- cipada tirada da não universalidade das crenças totêmicas. Com efeito, Durkheim postula esta universalidade, sendo provável que, diante das observações contemporâneas que de modo algum justificam, sem poder entretanto, e com razão, invalidar esta exigência teórica, mantivesse sua posição. Mas, mesmo colocando-nos por um instante nos quadros da hi- pótese, não se percebe nenhuma ligação lógica que permita deduzir as diferentes etapas partindo do postulado inicial. Cada etapa está ligada à precedente por uma relação arbitrária, sobre a qual não é possível dizer, a priori, que não tenha podido ocorrer, mas sobre a qual nada demonstra que tenha efetivamente se produzido. Tomemos, primeiramen- te, a crença na substancialidade totêmica. Sabemos que não opõe obs- táculo à consumação do totem, mas apenas confere a este ato um ca- ráter cerimonial. Ora, o casamento e, em muito numerosas sociedades, o própriO ato sexual apresenta caráter cerimonial e ritual, de modo al- gum incompatível com a operação suposta de comunhão totêmica que nele se quer discernir. Em segundo lugar, o horror do sangue, principal- mente do sangue menstrual, não é um fenômeno universal. H Os jovens Wlnnebago visitam suas amantes aproveitando o segredo a que as con- dena o isolamento prescrito durante o período da menstruação." Por outro lado, nos lugares em que o horror do sangue menstrual parece atingír o ponto culminante, não é de modo algum evidente que a impureza tenha predileções ou limites. Os Chaga são Banto que vi- vem nas encostas do Kilinanjaro. Sua organização social é patrilinear. Entretanto, as instruções fornecidas às moças durante a iniciação avisam- nas contra os perigos gerais do sangue menstrual e não contra os peri- gos especiais a que estariam expostos os depositários do mesmo sangue. Mais ainda, é a mãe - e não o pai - que parece correr o perigo mais ·grave: "Não o mostres a tua mãe, ela morreria! Não o mostres a tuas companheiras, porque pode haver entre elas uma maldosa, que se apo- 19. M. van Waters, The Adolescent Gire among primitive People. Journal 01 Re- ligious Psychology, voI. 6, 1913. 20. P. Radin. The Autobiography of a Winnebago Indian. University 01 Calilornia Publications in American Archaeology and Ethnology, vols. 16-17, 1920, p. 393. 59 L uniões biologicamente possíveis"." Outro especialista escreve a respeito do mesmo assunto: "Talvez seja impossível explicar um costume uni· versal e descobrir·Ihe a origem. Tudo quanto podemos fazer é estabele- cer um sistema de correlações com fatos de outro tipo"", o que coincide com a renúncia de Lowie. Mas a proibição do incesto representaria o único caso em que se exigiria das ciências naturais que explicassem a existência de uma regra sancionada pela autoridade dos homens. É verdade que, pelo caráter de universalidade, a proibição do in· cesto toca a natureza, isto é, a biologia ou a psicologia, ou ainda uma e outra, mas não é menos certo que, enquanto regra, constitui um fe- nômeno social e pertence ao universo das regras, isto é, da cultura, e por conseguinte à sociologia que tem por objeto o estudo da cultura. Lowie apreendeu tão bem este aspecto que o Apêndice ao Tratado retor· na à declaração citada no parágrafo anterior: "Não creio, contudo, como fazia outrora, que o incesto repugne instintivamente ao homem... De- vemos. .. considerar a aversão pelo incesto como uma adaptação cul- tural antiga"." Do malogro praticamente geral das teorias não se pode estar autorizado a tirar uma conclusão diferente. Muito ao contrário, a análise das causas desse fracasso deve permitir o reajustamento dos prin- cípios e dos métodos que unicamente podem fundar uma etnologia viá- vel. Com efeito, como se poderia pretender analisar e interpretar regras se diante da Regra por excelência, a única universal e que assegura o dominio da cultura sobre a natureza, a etnologia devia confessar-se Impotente? Mostramos que os antigos teóricos que se dedicaram ao problema da proibição do incesto colocaram-se em um dos três pontos de vista seguintes: alguns invocaram o duplo caráter, natural e cultural, da re- gra, mas se limitaram a estabelecer entre um e outro uma conexão extrinseca, constituída por uma atitude racional do pensamento. Outros, ou quiseram explicar a proibição do incesto, exclusivamente ou de ma- neira predominante, por causas naturais, ou então viram nela, exclusi- vamente ou de maneira predominante, um fenômeno de cultura. Veri- ficamos que cada uma dessas três perspectivas conduz a impossibilidades ou a contradições. Por conseguinte, só resta aberto um único caminho, o que fará passar da análise estática à sintese dinâmica. a.'proibição do incesto não é nem puramente de origem cultural nem puramente·ode origem natural, e também não é uma dosagem de elementos variados t9mados de empréstimo parcialmente à natureza e parcialmente à cultura. Constitui o passo fundamental graças ao qual, pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza à cultura. Em certo sentido pertence à natureza, porque é uma condição geral da cultura, e por con- seguinte não devemos nos espantar em vê-Ia co}]servar da natureza. seu caráter formal, isto é, a universalidade. Mas em outro sentido também já é a cultura, agindo e impondo sua regra no interior de fenômenos que não dependem primeiramente dela. Fomos levados a colocar o pro- blema do incesto a propÓSito da relação entre a existência biológica e 23. R. H. Lowie, Traité de socfologie prímitive, Trad. de Eva Métraux, Paris 1935, p. 27. 24. B. Z. Seligman, The Incest Taboo as a Social Regulation. Sociological Review, voI. 27, n. I, 1935, p. 75. 25. R. H. Lowie, op. clt., p. 446-447. 62 . L a existência. social do homem, e logo verificamos que a proibição não âepeiia,,-exatamente nem de uma nem de outra. Propomo-nos neste tra- balho fornecer a. solução dessa anomalia, mostrando que a proibiçã() <io Incesto constitui justamente o vinculo que as une Uma à ôutra. Ml!-:i esta !jIlião não é nem estática nem arbitrária, e desde que se estabelece a situaçãototaf aparece completamente modificada. Com efei~ to, é menos uma união do que. uma transformação ou passagem. AlÍtes dela a cultura aindá não está dada. Com ela a natureza deixa de existir, no homem, comoum--rélno_sôberano: A proibição do incesto é o processo pelo qual a natureza se ultrapassa a. si mesma. Acende a faisca sob a ação da qual forma-se uma estrutura de novo tipo, mais complexa, -e se superpõe, integrando-as, às estruturas mais simples da vida psíquica, assim como estas se superpõem, integrando-as, às estruturas, mais sim- ples que elas pr.mI"Í_as, da vida animal. Realiza, e constitui por si mesma, o advento de uma nova ordem. 63 r i i l Parte I A TROCA RESTRITA "Tua própria mãe Tua própria irmã Teus próprios porcos Teus próprios inhames que empilhaste Tu não podes comê-los As mães dos outros As irmãs dos outros Os porcos dos outros Os inhames dos outros que eles empilharam Tu podes comê·los" Aforismos Arapesh, citados por M. Mead, Sex and Temperament In Three Prlmltlve Socletles. Nova Iorque 1935, p. 83. imediatamente entre /cave maori ou "irmã verdadeira" e kave kasese, I<irmã diferente", kave fa/catafatafa, "irmã posta de lado'~, /cave i take yayae, "ir- mã de um outro lugar".' É a relação social, situada além do vínculo biológico, implicado pelos termos "pai", "mãe", "filho", "filha", uirmão" e "irmã" que desempenha o papel determinante. Por este motivo, so· bretudo, as teorias que tentam explicar a proibição do incesto pelas con· seqüências nocivas das uniões consangüíneas (inclusive numerosos mitos primitivos que sugerem esta interpretação) só podem ser consideradas como racionalizações. Considerada do ponto de vista mais geral, a proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consangüinidade ao fato cultuo ral da aliança. Já a natureza atua, por si mesma, segunda o duplo ritmo de receber e dar, traduzido na oposição entre casamento e filiação. Mas se este ritmo, igualmente presente na natureza e na cultura, lhes confere de certo modo uma forma comum. não aparece, nos dois casos, sob o mesmo aspecto. O dominio da natureza caracteriza·se pelo fato de nele só se dar o que se recebe. O fenômeno da hereditariedade exprime esta permanência e continuidade. No domínio da cultura, ao contrário, o in- divíduo recebe sempre mais do que dá, e ao mesmo tempo dá mais do que recebe. Este duplo desequilíbrio exprime·se respectivamente nos pro· cessas, entre si inversos e igualmente opostos ao precedente, que são a educação e a invenção. Não está certamente em nosso pensamento su- gerir aqui que os fenômenos vitais devam ser considerados como fenô- menos de equilíbrio. O contrário é manifestamente verdadeiro. Mas os desequilíbrios biológicos só aparecem como tais em sua relação com o mundo físico. Comparados aos fenômenos culturais mostram-se, ao con- trário, sob as espécies da estabilidade, ao passo que o privilégio da sín· tese dinãmica passa aos fenômenos da nova ordem. Considerado desse ponto de vista, o problema da passagem da natureza à cultura reduz,se, portanto, ao problema da Introdução de processos de acumulação no 'Interior de processos de repetição. Como é possível esta introdução com base nos dados naturais, por hipótese os únicos presentes? Segundo acabamos de acentuar, a nature- za, do mesmo modo que a cultura, atua segunda o dupla ritmo de re· ceber e dar. Mas os doís momentos desse ritmo, tal como é reprodu· zido pela natureza, não são indiferentes aos olhos da cultura. Diante do primeiro período, o do recebimento, expresso pelo parentesco biológico, a cultura é impotente, pais a hereditariedadE. de uma criança está in· tegralmente inscrita no interior dos genes veiculados pelas pais. Taís se· jam estes, tal será o filho. A ação momentãnea do meio pode acrescentar sua marca, mas não poderia fixá·la independentemente das transforma- ções desse mesmo meio. Consideremos agora a aliança. É tão imperio- samente exigida pela natureza quanto a filiação, mas não da mesma ma- neira nem na mesma medida. Porque, no primeiro caso, s6 é exigido o fato da aliança, mas - nos limites específicos - não sua determinação. A natureza atribui a cada individuo determinantes veiculados por seus pais efetivos, mas não decide em nada quais serão esses pais. A here- ditariedade, portanto, considerada do ponto de vista da natureza, é du- plamente necessária, primeiramente como lei - não há geração espon- 1. Rayrnond Firth, We, the Tikopia, Londres 1936, p. 265. 70 tânea - em seguida como especificação da lei, porque a natureza não diz somente que é preciso ter pais, mas também que tu serás semelhante a eles. Ao contrário, naquilo que se refere à aliança, a natu:reza, con· 'tenta·se' em' aflrmar-ãíei,sendo indiferente ao conteúdo dela. Se a 're- lação entre pais e filhos é rigorosamente determinada pela natureza dos primeiros, a relação entre macho e fêmea só é determinada pelo acaso e pela probabUidade..,lI!l. portanto na natureza - deixando de lado as mu· tações - um princípio de indeterminação, e um só, sendo no caráter arbitrário da aliança que se manifesta. Ora, se admitirmos, de acordo com a evidência, a anterioridade histórica da natureza em relação à cul- tura, somente graças às possibilidades deixadas abertas pela primeira é que a segunda pôde, sem descontinuidade, inserir sua marca e introduzir suas exigências próprias. A cultura tem de inclinar·se diante da fatalidade da herança biológica. A própria eugenia pode apenas pretender fazer uma manipulação desse dado irredutível, sempre respeitando suas condições Iniciais. Mas a cultura, impotente diante da flliação, toma consciência de "seus direitos, ao mesmo tempo que de si mesma, diante do fenômeno, inteiramente diferente, da aliança, o único sobre o qual a natureza já não disse tudo. Somente aí, mas por fim também aí, a cultura pode e deve, sob pena de não existir, afirmar "primeiro eu" e dizer à natureza: "não irás mais longe". Por motivos muito mais profundos que os já expostos, opomo·nos portanto às concepções que - tais como as de Westermarck e de Ha- velock EIlis - levam a crédito da natureza um princípio de determi- nação, mesmo negativo, da aliança. Sejam quais forem as incertezas a respeito dos costumes sexuais dos grandes macacos e do caráter monó- gamo ou polígamo da família entre os gorilas e os chimpanzés, é certo que estes grandes antropÓides não praticam nenhuma descriminação se- xual com relação a seus parentes próximos. Em compensação, as obser- vações de Hamilton estabelecem que, mesmo entre os macacos, o hábito sexual embota o desejo.' Por conseguinte, ou não existe nenhum vinculo entre os dois fenômenos ou então a passagem do hábito à aversão, con- siderada por Westermarck como o verdadeira origem da proibição, pro- duz,se no homem com caracteres novos. Como explicar esta particula- ridade se excluímos por hipótese a intervenção de toda atitude de origem intelectual, isto é, cultural? Seria preciso ver na suposta aversão um fe- nômeno especffico, mas cujos mecanismos fisiológicos correspondentes procuraremos em vão. Consideramos que se a aversão constituísse um fenômeno natural manifestar-se-ia num plano anterior, ou pelo menos exterior, à cultura, sendo indiferente a esta. Mas nesse caso indagaríamos inutilmente de que maneira, e de acordo com que mecanismos, se realiza esta articulação da cultura sobre a natureza sem a qual não pode exis- tir nenhuma continuidade entre as duas ordens. O problema esclarece-se quando admitimos a indiferença da natureza - corroborada por todo o Etstudo da vida animal - às modalidades das relações entre os sexos. Porque é precisamente a aliança que fornece a dobradiça, ou mais exata- mente o corte, onde a dobradiça pode fixar-se. A natureza impõe a alian- ,ça sem determiná-Ia, e a cultura só a recebe para definir-lhe imediata- mente as modalidades. Assim se resolve a aparente contradição entre o 2. G. S. Miller, loco cito 71 ~ ! caráter de regra da proibição e sua universalidade. A universalidade ex- prime s0nlente o fato da cl!ltura ter sempre e em toda a parte preen- chido eSta forma vazia, assim como uma fonte jorrante preenche pri- meiramente as depressões que cercam sua origem. Contentemo-nos por ·õra com esta verificaÇão, que a preencheu com o conteúdo que- -i! a Regra, substânCia ao mesmo tempo permanente e geral da cultura, sem levantar ainda a questão de saber por que esta regra apresenta o caráter geral de proibir certos graus de parentesco, e por que este caráter geral aparece tão curiosamente diversificado. o tato da regra, considerado de maneira inteiramente independente de suas modalidades, constitui, com efeito, a própria essência da proi- bição do incesto. Porque se a natureza abandona a aliança ao acaso e ao arbitráriõ, é impossível à cultura não introduzir uma ordem, de qual· quer espécie que seja, onde não existe nenhuma. O papel primordial da cultura está em garantir a existência do grupo como grupo, e portanto em substituir, neste domInio como em todos os outros, a organização ao acaso.' A proibição do incesto constitui uma certa forma - e mes- mo formaS muito diversas - de intervenção. Mas, antes de tudo, é intervenção, ou, mais exatamente ainda, é a Intervenção. Este problema da intervenção não se levanta somente no caso par- ticular que nos ocupa. E: levantado, e resolvido afirmativamente, todas as vezes que o grupo se defronta -cõri1 -a insuficiência ou a distribuição àleatória de um valor cujo uso apresenta fundamental importãncla. Cer- tas formas de racionamento são novas para nossa sociedade e criam uma Impressão de surpresa em espíritos formados nas tradições do liberalis- mo econômico. Por isso somos levados a ver na intervenção coletiva, que se manifesta com relação a comodidades que desempenham um papel es- sencial no gênero de vida próprio de nossa cultura, uma inovação ou- sada e um tanto escandalosa. Por que o controle da distribuição e do consumo tem por objeto a gasolina, acreditamos facilmente que sua fór- mula pode justamente ser contemporânea do automóvel. Entretanto, não é nada disso. O "regime do produto escasso" constitui um modelo de extrema generalidade. Neste caso, como em muitos outros, os períOdOS de crise aos quais, até uma data recente, nossa sociedade estava tam- pouco habituada a enfrentar restauram somente, em uma forma crítica, um estado de coisas que a sociedade primitiva considera mais ou menos normal. Assim, o "regime do produto escasso", tal como se exprime nas medidas de controle coletivo, é muito menos uma inovação devida às condições da guerra moderna e ao caráter mundial de nossa economia do que o ressurgimento de um conjunto de processos familiares às so- ciedades primitivas, sem os quais a coesão do grupo estaria a todo o instante comprometida. E: impossível abordar o estudo das proibições do casamento se não nos penetrarmos, desde o Inicio, do sentimento concreto de que os fatos desse tipo não apresentam nenhum caráter excepcional, mas constituem uma aplicação particular, a um domInio dado, de principios e métodos encontrados todas as vezes que a existência física ou espiritaul do grupo 3. Este ponto foi bem percebido por Porteus no que se refere à Austrália: S. D. Porteus, The Psychology 01 a PTimitive People, Nova Iorque-Londres 1931, p. 269. 72 o /;,. o =/;,. {;= L> = papu nu I pa pa~ev I paselJi I I I I /;,. O=>A O O O O {; {; O O nupu nvpi E farnu fornu fornu fornu 11(IU nau farnu fornu upa naula rowl~ upa nauta rawl- ~uong suang fornu ligo: hlam Illaw fornu Figura 2 Pá e nau recebem três alu e três amifi (as cabeças são para os parentes mais próximos, as articulações são para os mais distantes). farnu ngai: um akawng cada um hlam hlaw farnu: um ahnawi cada um nupu e papu: dividem o pu.a, ou vísceras rual (amigos rituais): um azang cada um Os assistentes, chefes, ferreiros, etc., participam igualmente da dis- tribuição. Estas regras não são apenas formalmente do mesmo tipo que as de- terminantes da distribuição do preço da noiva. Acham-se organicamente ligadas a ela. Temos ao menos dois indícios deste fato. Um homem forma sempre um par com uma de suas irmãs, que é chamada sua ruang pawn farnu, "irmã parceira", do qual recebe o preço do noivado, e do marido da qual torna·se o nupu. Por outro lado, a generosidade de- monstrada nas festas tem por efeito elevar o preço exigível para o casa· mento das moças." A distribuição organizada dos produtos alimenticios aplicava·se sem dúvida outrora, entre os cafres, aos alimentos vegetais e ao leite. assim como à carne. Mas ainda hoje "o ato de retalhar um boi na praça cen- tral da aldeia, ou as presas mortas na caçada, dá às crianças uma dra- mática demonstração do papel das relações de parentesco e da série de obrigações recíprocas que acarretam"." Os Thonga atribuem um quarto 12. H. N. C. Stevenson, Feasting and Meat Division among the Zahau Chins of Burma. Journal OI the Royal Anthropological Institute, voI. 67, 1937, p. 22-24. Podem ser encontrados outros esquemas de divisão em: S. M. Shirokogoroff, The Psycho- mental Complex 01 the Tungus, Londres 1935, p. 220; e C. Lévi-Strauss, La Vie lamiliale et sociale des Indiens Nambikwara, Paris 1948, Fig. 17. 13. A. Richards, Hunger and Work in o Savage Tribe, Londres 1932, p. 79. No mesmo sentido e depois de ter lembrado que toda a atividade de uma tribo aus- traliana funda-se numa rede de relações pessoais estabelecidas sobre a base de um sistema genealógico, Radcliffe Brown acrescenta: "Quando um indfgena vai caçar, a caça que traz não é somente para ele, mas também para sua mulher, filhos e outros parentes ainda, aos quais têm o dever de dar carne todas as vezes que a obtêm" (A. R. Radcliffe Brown, On Social Structure, Journal 01 the Royal Anthropo- logical lnstitute, voi. 70, parte 1, 1940, p. 7). - Elkin exprime-se aproximadamente 75 traseiro ao irmão mais velho. um quarto dianteiro ao innão mais moço, os dois outros membros aos filhos mais velhos, o coração e os rins às mulheres, o rabo e as ancas aos aliados, e um pedaço do filé ao tio matemo. Mas, em certas regiões da Arrica Oriental, as regras são in· finitamente mais complicadas, pois variam conforme se trate de bois, carneiros ou cabras. Além dos parentes, o chefe e aqueles que ajudaram a trazer o animal tém direito a uma parte. Essa distribuição é feita de maneira menos ostensiva do que a divisão na praça da aldeia, cujo fim é "que os que comem e os que não comem possam ser vistos", No interior da famllla, a autoridade repousa com efeito sobre "a posse e o controle do alimento", H J!: preciso finalmente citar a descrição, devida ao mesmo observa· dor, da divisão de um grande antílope, entre vinte e dois adultos e vinte e sete crianças: "Enquanto se retalhava o animal reinava a mais intensa excitação .. , e a refeição foi precedida por murmúrios de cobiça. As mulheres amassavam no pílão com entusiasmo um suplemento de fari· nha 'para comer com toda esta carne! ... ' Imediatamente depois do fes· tim, as mulheres reuniram·se não longe de mim. Conversavam ruidosa· mente e não se cansavam de escrever com êxtase como se sentiam faro tas. .. Uma velha, muito alegre, exclamava, batendo no estõmago: slnto-me ter voltado ao tempo de moça, tenho o coração tão leve ... "" Sem dúvida, tomamo-nos mais sensíveis desde alguns anos ao valor dramático de situações desta ordem. Em todo caso, não seria excessivo prevenir o leitor eventualmente inclinado a apreciá·las na perspectiva de nossa cultura tradicional, que se compraz em opor o patético do amor infeliz ao cômico da barriga cheia. Na Imensa maioria das sociedades humanas os dois problemas são colocados no mesmo plano, porque, em um e outro terreno, a natureza deixa o homem em presença do mesmo risco: o destino do homem farto oferece o mesmo valor emotivo, e pOde servir de pretexto para a mesma expressão lírica, que o do homem amado. A experiência primitiva afirma, aliás, a continuidade entre as sensações orgânicas e as experiências espirituais. O alimento está intei· ramente impregnado de sinais e de perigos. O sentimento de "calor" pode ser um denominador comum de estados para nós tão diferentes quanto a cólera, o amor ou o empanturramento. Este último, por sua vez, Impede as comunicações com o mundo sobrenatural. 1<1 Para admitir a equiparação das mulheres aos bens, de um lado es· cassos e de outro essenciais à vida do grupo, não é preciSO evocar o vocabulário matrimonial da Grande Rússia, onde o noivo é chamado "o negociante" e a noiva "a mercadoria",1T A comparação parece menos chocante se tivermos presentes no espírito as análises de A. Richards, que nos mesmos termos: "As regras do parentesco são igualmente a base da divisão dos bens, o que explica por que o indígena distribui tudo o que possui" (A. P. Elkin, Anthropology and the Future of the Australian Aborigines, Oceania, voI. 5, 1934, p. 9). 14. A. Richards, Hunger and Work.", p. 80-81. 15. A. Richards, Land, Labour .. " p. 58-59. 16. A. Richards, Hunger and Work, .. , p. 167. 17. M. Kowalevsky, Marriage among the Early Slavs, FOlklore, vaI. I, 1690, p. 480. O mesmo simbolismo encontra·se entre os cristãos de Mossul, onde o pedido de casamento reveste-se de uma expressão estilizada: "O senhor tem uma mercadoria para nos vender?.. Realmente a sua mercadoria é excelente! Nós compramos" (M. Kyrlakos, Fiançailles et marlage à Moussoul, Anthropos, voI. 6, 1911, p. 775). 76 , põem em evidência os sistemas de equivalências psicofislológicas do peno samento indígena: "O alimento é a fonte das emoções mais intensas, for· nece a base de algumas das noções mais abstratas e das metáforas do pensamento religioso... para o primitivo, o alimento pode tornar·se o simbolo das experiências espirituais mais altas e a expressão das rela· ções sociais mais essenciais". 18 Examinemos primeiramente o caráter de escassez. .Existe um equi· librio biológico entre os nascimentos masculinos e femininos. Exceto nas . sociedades nas quais este equilibrio é modificado pela intervenção dos costumes, todo indivíduo macho deve portanto ter uma possibilidade, que se aproxima de uma probabilidade multo alta, de encontrar uma esposa . .5erá...possível, nessas condições, falar das mulheres como de um bem es· cassa,.cuja .distribuição exige a intervenção coletiva? É difícil responder a esta pergunta sem levantar o problema da pOligamia, cuja discussão excederia demais os limites deste trabalho. Vamos nos limitar, portanto, a algumas considerações rápidas, que constituirão menos uma demons· tração do que a indicação sumária da posição que nos parece ser a mais sólida nesta matéria. Desde alguns anos a atenção dos etnólogos, sobre- tudo dos que admitem a interpretação difusionista, foi atraída pelo fato da monogamia parecer predominante nas sociedades cujo nível econô- mico e técnico aparece, sob outros aspectos, como o mais primitivo. Desta observação, e de outras semelhantes, estes etnólogos tiraram con· clusões mais ou menos aventurosas. Segundo o padre Schmidt e seus alunos, seria preciso ver ai o sinal de uma maior pureza do homem nessas fases arcaicas de sua existência social. Segundo Perry e Elliot Smith, estes fatos atestariam a existência de uma espécie de Idade de Ouro anterior aO descobrimento da civilização. Acreditamos que se pode con· ceder a todos esses autores a exatidão dos fatos observados, mas que a conclusão a tirar é diferente. São as dificuldades da existência cotidiana e o obstáculo que criam para a formação dos privilégiOS econômicos (a respeito dos quais percebe·se facilmente que, nas sociedades mais evo- luídas, constituem sempre a infra·estrutura da poligamia) que limitam, nesses níveis arcaicos, o açambarcamento das mulheres em proveito de algun.s., A pureza de alma, no sentido da Escola de Viena, nada tem a ver por conseguinte com o que chamariamos de bom grado, em vez de monogamia, uma forma de poligamia abortada. Porque, tanto nessas sociedades quanto nas que sancionam favoravelmente as uniões pOlígamas e quanto na nossa própria, a tendência é no sentido da multiplicação das esposas. Indicamos acima que o caráter contraditório das informa· ções relativas aos costumes sexuais dos grandes macacos não permite resolver, nO plano animal, o problema da natureza inata ou adquirida das tendências polígamas. A. observação social e biOlógica concorre para ~ugerir que estas tendênCÍás são naturais e universais ,no homem. e que somente as limitações nascidas do meio e da cultura são responsáveis pelo recalcamento delas." Aos nossos olhos, portanto, a monogamia não é uma instituição positiva, mas constitui somente o limite da poligamia em sociedades onde. por motivos muito diversos, a concorrência econo. mica e social atinge forma aguda. O fraco volume da unidade social 18. A. Richards, Hunger and Work .. 0' p. 173-174. 19. G. S. Miller, loe. cito 77 índios, escreve Colbacchini a propósito dos Bororo, entre os quais fizemos a observação citada no parágrafo precedente, o celibato não existe e nem mesmo é imaginado, porque não se admitiria sua possibilidade"." Igual- mente "os pigmeus desprezam os solteiros e zombam deles como de se- res contra a natureza"." Radcliffe Brown observa: "Um individuo foi-me assinalado como uma pessoa perigosa porque tinha recusado unir-se a uma mulher numa idade em que se considera conveniente para um ho- mem casar-se". ~~ Na Nova Guiné, "o sistema econômico e as regras tra- dicionais da divisão do trabalho entre homem e mulher fazem da vida comum entre os sexos uma necessidade. Na verdade, todos devem alcan- çar este estado, exceto os doentes"." "Entre os Chukchee da rena, nin- guém pOde levar uma vida suportável sem sua própria casa e uma mu- lher para tomar conta dela... Um adulto solteiro inspira geral desprezo. É um inútil, um preguiçoso, um vagabundo que vagueia de acampamento em acampamento". 2~ Gilhodes escreve a respeito dos Katchim da Birmânia: "Quanto ao celibato voluntário, parece que nem mesmo têm idéia do que seja. É uma grande glória para um katchim casar-se e ter filhos, sendo uma ver- gonha morrer sem posteridade. Pode-se entretanto ver alguns raros sol- teirões e solteironas, mas são quase sempre fracos de espírito, ou pes- soas de caráter impossível, e quando morrem fazem-lhes uma caricatura de enterro... São conhecidos alguns raros solteiros velhos de ambos os sexos. Durante a vida têm vergonha de sua condição, e no momento da morte fazem medo, particularmente às pessoas moças... Estas não tomam parte nas cerimônias funerárias, com receio de serem incapazes de estabelecer uma família... Os ritos são observados sobretudo pelos velhos dos dois sexos, e de maneira ridícula... Todas as danças são executadas às avessas",2H Terminemos pelo Oriente esta visão geral: "Para um homem sem mu- lher não há paraíso no céu nem paraíso na terra... Se a mulher não tivesse sido criada não haveria nem sol nem lua, não haveria agricul- tura nem fogo". Tal como os Judeus orientais e os antigos Babilônios, os Mandeano consideram o celibato um pecado. Os solteiros de um e outro sexo (especialmente os monges e as monjas) são entregues sem defesa ao comércio com os demônios, de que nascem os maus espíritos e os gêniOS maléficos que perseguem a espécie humana. J" OS índios Na- vaho participam da mesma teoria, segundo a qual mesmo nos três pri- meiros dos quatro mundos inferiores subsistem a distinção dos sexos e suas relações, tão grande é a dificuldade que os indígenas têm de imaginar uma forma de existência. mesmo a mais baixa e miserável. onde não haja o benefício dessa distinção". Mas os sexos são separados no quarto mundo, e os monstros são fruto da masturbação a que cada sexo se acha reduzido. '" 24. A. COlbacchini, Os BOTOTOS orientais, trad. portug. São Paulo 1942, p. 51. 25. P. Schebesta, Revisiting ... , p. 138. ' 26. A. R. Radcliffe Brown, The Andaman Islanders, cambridge 1933, p. 50·51. 27. R. Thurnwald, Bánaro Society. Social Organization and Kinship System of a Tri"~e. in the Interior of New Guines. Memoirs 01 the Amecan Anthropological As· Soctatwn, vaI. 3, n. 4, 1916, p. 384. 28. W. Bogaras, The Chukchee, p. 569. 29. C. Gilhodes, The Kachins; their Religion and Mythology, Calcutta 1922, p. 255 e 277. 30. E. S. Dr,?we, The Mandaeans of lraq and Iran, Oxford 1937, p. 17 e 59. 31. G. A. Relchard, Navaho Religion: a Study in Symbolism, ms., p. 662. 80 r , t Conhecem-se sem dúvida algumas exceções a esta atitude geraL O celibato parece ter certa freqüência na Polinésia", talvez porque a pro- dução dos alimentos nessa região do mundo não constitua um problema critico_ Em outros lugares, como entre os Karen da Birmãnia e os Tun- gu 33, é mais conseqüência do rigor com que esses povos aplicam suas regras exogâmicas_ Quando o cônjuge prescrito é objeto de uma deter- minação rigorosa, o casamento torna-se impossível na ausência de um parente que ocupe exatamente a posição requerida_ Neste último caso pelo menos a exceção confirma verdadeiramente a regra_ Que aconteceria, com efeito, se o principio da intervenção coletiva, afirmado do ponto de vista puramente formal pela regra que proíbe o in- cesto, sem consideração de conteúdo, não existisse? Seria possível esperar que se formassem privilégios no interior dessa aglomeração natural cons- tituída pela família, em virtude da maior intimidade que devem apre- sentar aí os contatos interindividuais, como na ausência de toda regra social que tende a equilibrá-la e a limitá-la_ Não sugerimos que cada fa- mília conservaria automaticamente o monopólio de suas mulheres_ Seria isso afirmar a anterioridade institucional da família sobre o grupo, supo- sição que está distante de nosso pensamento_ Postulamos apenas que no interior do grupo, e sem levantar a questão da precedênCia histórica de um com relação ao outro, a viscosidade específica da aglomeração familiar agiria nessa direção, e que os resultados de conjunto verifica- riam esta ação. Ora, tal eventualidade - segundo mostramos - é in- compatível com as exigências vitais da sociedade primitiva, e mesmo da sociedade pura e simplesmente. 32. Raymond Firth, We, the Tikopia, Londres e Nova Iorque 1936, passim. 33. W. Bogoras, The Chukchee, p. 570. Sir J. G. Frazer, Folklore in the Old Testament, Londres 1919, voI. 2. p. 138. 81 r l CAPITULO IV Endogamia e Exogamia Ao estabelecer uma regra de obediência geral - qualquer que seja essa regra - o grupo afirma seu direito de controle sobre o que considera legitimamente um valor essencial. Recusa-se a sancionar a desigualdade natural da distribuição do sexo nas famflias e estabelece, com base no único fundamento possível, a liberdade de acesso às mulheres do gru- po, reconhecida a todos os individuos_ Este fundamento, em suma, é o seguinte: J:j.em º estado de fraternidade nem o de paternidade podem &.err~jºYQ~ados--par_a reivindicar uma esposa, mas esta reivindicação vale somente enquanto direito pelo qual todos os homens são iguais na com- o petição por todas as mulheres, com suas relações respectivas definidas em termos de grupo e não de famflia_ Esta regra mostra-se ao mesmo tempo vantajosa para os indivíduos, porque, ao obrigá-los a renunciar a um lote de mulheres imediatamente disponíveis, mas limitado ou mesmo muito restrito, abre a todos um direito de reivindicação sobre um número de mulheres cUja disponibi- lidade é na verdade diferenciada pelas exigências do costume, mas que o teoricamente é tão elevado quanto possível, sendo o mesmo para todos. Se objetarem que este raciocinio é demasiado abstrato e artificial para vir ao espírito de uma humanidade muito primitiva, bastará observar que o resultado, única coisa que importa, não supõe um raciocínio for- malizado, mas somente a resolução espontânea de tensões psicossociais, que constituem dados imediatos da vida coletiva. Nestas formas não cris- talizadas de vida social, cuja pesquisa psicológica ainda está por fazer, e que são tão ricas em processos simultaneamente elementares e univer- sais, tais como as comunidades espontâneas formadas ao acaso das cir- cunstâncias (bombardeios, tremores de terra, campos de concentração, bandos infantis, etc.), aprende-se rapidamente a conhecer que a percep- ção do desejo de outrem, o temor de ser despojado pela violência, a angústia resultante da hostilidade coletiva, etc., podem inibir inteiramen- te o gozo de um privilégio. E a renúncia ao privilégio não requer ne- cessariamente para ser explicada a intervenção do cálculo ou da auto- ridade. l'Q.dJLnão __ ~<)r senão a resolução de um conflito afetivo, cujo modelo já se observa na escala da vida animal.' 1. S. Zuckerman, The Social Life of Monkeys and Apes, Londres 1932. W. Kbhler, The Mentality of Apes, 1925, p. 88ss, 300·302. R. M. Yerkes, Social Behavior in Infra- human Primates, em Handbook of Social Psychology, capo 21. H. W. Nissen e M. P. Grawford, A Preliminary Study Df Food-sharing Behavior in Young Chimpanzee, Journal of Comparative Psychology, vaI. 22, 1936, p. 383-420. 82 11 !i \, lj I il 11 " J " l certo modo também eterna) do "produto escasso", a proibição do incesto tem logicamente em primeiro lugar por finalidade "imobilizar" as mu- lheres no seio da famllla, a fim de que a divisão delas, ou a competição em torno delas seja feita no grupo e sob o controle do grupo, e não em regime privado_ Este é o único aspecto que examinamos até agora, mas vê-se também que é um aspecto primordial, o único coextenslvo à proi- bição inteira_ Devemos mostrar agora, passando do estudo da regra en- quanto regra ao de seus caracteres mais gerais, a maneira pela qual se realiza a passagem de uma regra de conteúdo originariamente negativo a um conjunto de estipulações de outra ordem_ Considerada como interdição, a proibição do incesto limita-se a afir- mar, em um terreno essencial à sobrevivência dj:t grupo, a preemiiiência . do social sobre o natural, do coletivo sobre o individual, da organiza- ção sobre o arbitrário_ Mas, mesmo nesta altura da análise, a regra apa- rentemente negativa já engendrou sua lllVersa, porque toda proibição é ao mesmo tempo, e sob outra relação, uma prescrição_ Ora, a proibição do incesto, desde que a consideremos deste novo ponto --de vista, apa- rece de tal maneira carregada de modalidades positivas que esta superde- . terminação levanta imediatamente um problema. Com efeito, as regras do casamento não fazem sempre senão proibir um circulo de parentesco. As vezes também determinam um círculo no interior do qual o casamento deve necessariamente efetuar-se, sob pena de provocar um escândalo do mesmo tipo daquele que resultaria da própria violação da proibição. Devemos neste ponto distinguir dois casos. De um lado, a endogamia, de outro lado, a união preferencial, isto é, a obrigação de casar-se no interior de um grupo definido objetivamente no primeiro caso e, no segundo, a obrigação de escolher para cõnjuge quem tem com o individuo uma relação de parentesco determinada. Esta distinção é difícil de fazer no caso dos sistemas classificatórios de pa- rentesco, porque então, uma vez que todos os individuos apresentam en- tre si, ou com um sujeito dado, uma relação de parentesco definida, passam a ser constituídos em uma classe, e seria possível transitar assim, sem mudança acentuada, da união preferencial à endogamia propriamen- te dita. Assim, todo sistema de casamento entre primos cruzados po- deria ser interpretado como um sistema end6gamo, se todos os indivi- duas, primos paralelos entre si, fossem designados por um mesmo termo, e se todos os indivíduos, primos cruzados entre si, fossem designados por um termo diferente. Esta dupla denominação poderia mesmo sub- sistir depoiS do desaparecimento do sistema matrimonial considerado e, como conseqüência, um sistema exógamo por excelência daria lugar a um novo sistema, que apresentaria, ao contrário, todas as aparências da en- dogamia. Esta conversão artificial de sistemas exogâmicos autênticos em sistemas ostensivamente end6gamos pode ser observada no terreno_ Ve- remos mais tarde as dificuldades que levanta para a interpretação de certos sistemas australianos.' Convém, portanto, distinguir dois tipos diferentes de endogamia: uma que é apenas o inverso de uma regra de exogamia e só se aplica em 6. Cf. capo XIII. 85 função desta; e a endogamia verdadeira, que não é um aspecto da exo- gamia, mas se encontra sempre dada conjuntamente com esta embOra não na mesma relação, e simplesmente em conexão. Toda sociedade, con- siderada deste último ponto de vista, é ao mesmo tempo exógama e endógama. Assim, os australianos são exógamos quanto ao clã, mas en- dógamos no que se refere à tribo. Ou a sociedade norte-americana mo- derna, que combina uma exogamia familiar, rígida para o primeiro grau, e maleável a partir do segundo ou do terceiro, com uma endogamia de raça, rígida ou flexível conforme os Estados.' Mas inversamente à hi- pótese que examinamos anteriormente, a endogamia e a exogamia não são aqui instituições complementares, sendo apenas do ponto de vista formal que podem aparecer como simétricas. A endogamia verdadeira é somente a recusa de reconhecer a possibilidade do casamento fora dos limites da comunidade humana, estando esta última sujeita a definições muito diversas, segundo a filosofia do grupo considerado. Um grande número de tribos primitivas chamam-se a si mesmas com um nome que significa somente, em sua língua, "os homens", mostrando com isso que a seus olhos um atributo essencial da humanidade desaparece quan- do se sai dos limites do grupo. É o que acontece com os Esquimó de Norton Sound, que se definem a si mesmos - mas exclusivamente - como o "povo excelente", ou mais exatamente "completo", e reservam o epíteto de "ovo de piolho" para qualificar as tribos vizinhas_' A genera- lidade dessa atitude dá uma certa verossimilhança à hipótese de Gobi- neau, segundo a qual a proliferação dos seres fantásticos do folclore, anões, gigantes, monstros, etc., se explicaria menos pela riqueza imagi- nativa que pela incapacidade de conceber os estranhos segundo o mes- mo modelo que os concidadãos. Certas tribos brasileiras identificaram os primeiros escravos negros importados para a América a umacacos da terra", por comparação com as espécies arborícolas, as únicas ~conheci­ das. Quando se perguntou pela primeira vez a certos povos melanésios quem eram, responderam: "homens", querendo dizer com isso que não eram nem demônios nem fantasmas, mas homens de carne e osso. Mas era porque não acreditavam que seus visitantes brancos fossem homens, e sim fantasmas ou demônios ou espiritos marinhos".' Quando chega- ram às Novas Hébridas, os europeus foram a principio tomados por fan- tasmas e receberam esse nome. Suas roupas foram chamadas peles de fantasmas e seus gatos ratos de fantasmas." Lévy-Bruhl recolheu outras narrativas não menos significativas: cavalos tomados por mães de seus ca- valeiros, porque os transportavam nas costas, em contraste com os mis- sionários, que eram chamados leões por causa de sua barba clara, etc. 11 Em todos esses casos trata-se somente de saber até onde se estende a conotação lógica da idéia de comunidade, que é função da solidarie- dade efetiva do grupo. Em Dobu considera·se o branco como "de outra espécie", não verdadeiramente um ser humano. no sentido indígena do termo, mas um ser dotado de caracteres diferentes. Estas difererenças en- 7. Cf. S. Johnson, Patterns Df Negro Segregation, Nova Iorque 1943. 8. H. J .. Rink, The Eskimo Tribes, Londres 1887, p. 333. 9. R. H. COdrington, The Melanesians: Studies in their Anthropology and FOlklore, Oxford 1891, p. 21. 10. A. B. Deacon, Malekula: a Vanishing People in the New Hebrides, Londres 1934, p. 637. - Também: A. R. Radcliffe Brown, The Andaman Islanders, p. 138. 11. L. Lévi-Bruhl, La Mythologie primitive, Paris 1935, p. 59-50. 86 tretanto, não se estendem aos inhames, que são tratados como pessoas. A ordem das afinidades é portanto a seguinte: o grupo indígena, tomot; os inhames, que se reproduzem segundo seu exemplo, e cuja multipli- cação permite ao mesmo tempo a sobrevivência; finalmente os brancos, que são colocados completamente fora desta comunidade_ Mas é que a continuidade do grupo é função da continuidade das linhagens vegetais_ Há jardins masculinos e jardins femininos, cada um proveniente das se- mentes ancestrais, transmitidas hereditariamente do irmão da mãe ao filho ou à filha da irmã_ Se uma "raça" de sementes se perde, a linha- gem humana corre o risco de interromper-se. A mulher não encontrará marido, não educará filhos, que sucumbirão à sua miserável herança e partilharão o desprezo ligado à sua destituição_ Quem se vê privado de suas sementes hereditárias não pode contar nem com a caridade nem com as sementes pedidas emprestadas fora: "Conheci mulheres que se encontravam nessa situação. Eram ladras - pescadoras ou buscadoras de sago - e mendigas"." Os inhames são pois pessoas, porque ficar sem inhame é ser órfão. Afinal de contas, a estrutura econômica e social do grupo justifica a definição limitativa desse como uma comunidade de tubérculos e cultivadores. Mas, não nos enganemos, são considerações formalmente análogas, embora desta vez de ordem espiritual, que fun- dam a rigorosa endogamia dos m6rmons. Vale mais para uma moça casar-se com seu pai se não encontrar em outro lugar um parceiro do- tado deste atributo absolutamente necessário à definição de um ser hu- mano, a saber, a posse da verdadeira fé. 1 ~ Nos grupos que colocam muito alto os privilégios de posição e de fortuna, chega-se também a distinções do mesmo gênero. Mas em todos estes casos a endogamia exprime apenas a presença de um limite con- ceitual, traduz somente uma realidade negativa. Unicamente no caso ex- cepcional de sociedades altamente diferenciadas é que esta forma negativa pode receber um conteúdo positivo, isto é, um cálculo deliberado para manter certos privilégios sociais ou econômicos no interior do grupo. Mesmo esta situação é mais resultado de uma concepção endógama, e não poderia lhe dar origem. De maneira geral, a endogamia "verdadeira" manifesta simplesmente a exclusão do casamento praticado fora dos li- mites da cultura, cujo conceito está sujeito a toda espécie de contrações e dilatações. A fórmula, positiva na aparência, da obrigação de casar- se no interior de um grupo definido por certos caracteres concretos (nome, lingua, raça, religião, etc.), é pois a expressão de um simples li- mite, socialmente condicionado, do poder de generalização. Fora das for- mas determinadas a que acabamos de aludir, exprime-se em nOssa so- ciedade sob uma forma difusa, pois sabe-se que a proporção dos ca- samentos entre primos é em geral maior do que a resultante da hipótese dos casamentos serem feitos ao acaso. H Ao contrário, a outra forma de endogamia que distinguimos ante- riormente, e que se poderia chamar "endogamia funcional", por ser so- mente uma função da exogamia, fornece o equivalente de uma regra ne- gativa. No casamento entre primos cruzados, por exemplo, a classe dos 12. R. F. Fortune, Sorcerers of DObu, Nova Iorque 1932, p. 69-74 e 102. 13. Der sexuelle Anteil an der Theologie der Mormonen, Imago, vaI. 3, 1914_ 14. L. Hogben, Genetic PrincipIes ... , p. 152. 87 tivas diferentes, mas solidárias, de um sistema de relações fundamentais, no qual cada termo é definido por sua posição no interior do sistema. Em certos casos, contudo, a relativa reciprocidade das relações en- dógama e exógama aparece já no vocabulário. Assim, o termo Ifugao para "aliados", aidu, corresponde a uma raiz que se encontra em toda a área indonésia, com o sentido primitivo de "o outro grupo" ou ~'os estrangeiros", e os sentidos derivados de "inimigo" ou de "parente por casamento". Igualmente, tulang, "parentes da mesma geração" que o su- jeito, adquire em outras linguas malaias o sentido de "indígena" (For- mosa, Bugi), "irmão e irmã", "irmã", "mulher", por um lado, e de ou- tro, "aliado" ou "esposa".2I É possível comparar com o japonês imo que designa ora a irmã ora a esposa. n Será possível afirmar, com Barton e Chamberlain, que esta ambivalência de certos termos arcaicos demons- tra a antiga existência de casamentos consangüineos? A hipótese não parece improvável quando se observa, como fizemos acima, que os an- tigos textos japoneses, ao limitarem a definição do incesto à união com a innã mais moça, parecem legitimar, como o Egito e Samoa, o casa- mento com a mais velha. A preferência para o casamento com a prima matrilinear entre os Batak e em outras regiões da Indonésia, os indi- cias em favor da existência antiga do mesmo sistema no Japão u, suge- rem uma outra interpretação, que aliás não exclui a anterior. As mu- lheres da mesma geração que o sujeito, embora confundidas na mesma designação, seriam distintas, conforme o ponto de vista em que nos colo- camos, em cônjuges possiveis e cônjuges proibidos. Deve notar-se a este respeito que no vocabulário Batak o termo tulang é aplicado por um ho- mem ao irmão de sua mãe e à filha deste que é o cônjuge preferido; ao passo que uma mulher dirige-se a uma estrangeira ou a um estran- geiro saudando-os com os nomes de "irmão do pai" e "irmão da mãe", respectivamente", isto é, com O nome da mulher do clã que se casa fora, ou do clã dos tios, com cujos filhos uma mulher não se casa. Se o sentido mais geral de aidu é "estrangeiro", e os sentidos de- rivados "aliado" e "inimigo", é evidente que estes últimos sentidos repre- sentam duas modalidades distintas, ou mais exatamente duas perspectivas sobre a mesma realidade, a saber, entre os "outros grupos" alguns são meus afins, outros meus inimigos, e cada um deles é ao mesmo tempo, mas não para a mesma pessoa, um inimigo e um afim. Esta interpre- tação relativista, evidente neste caso, pode ser também facilmente apli- cada ao primeiro sentido sem recorrer à hipótese de um casamento ar- caico com a irmã. Basta considerar que, partindo do sentido geral de frase acima foi qualüicada por M. Maybury-Lewis ("Parallel descent and the Apinayé Anomaly", Southwestern Journal of Anthropology, vaI. 16, n. 2, 1960) de "Startlingly specific remark" porque não leva em conta, diz ele, a diferença entre "descent" e "filiation" (p. 196). Haverá necessidade de acentuar que este livro considera exclusi- vamente modelos e não realidades empíricas, com relação às quais unicamente esta distinção, justamente criticada por Leach, merece que se diga ter sentido? Williams tinha perfeitamente apreendido, há mais de trinta anos, partindo de fatos melanésios, o principio teórico da "parallel descent" escrevendo no artigo citado acima: "The essence of [sex affiliation] is that male children are classed with their father's group and female children with their mother's" (loc. cit., p. 51)]. 21. R. F. Barton, Reflection in Two Kinship Terms of the Transition to Endogamy, American Anthropologist, voI. 43, 1941. 22. B. H. Chamberlain, Translation Df "Ko-Ji-Ki", Kobé 1932. 23. Cf. capo XXVII. 24. E. M. Loeb, Patrilineal and Matrilineal Organization in Sumatra; I: The Batak:, American AnthTopologist, vol. 35, 1935, p. 22 e 25. 90 tulang, "filhas de minha geração", estas são ou "irmãs" ou "esposas". Assim como um grupo "aliado" é simultaneamente "inimigo de alguém", assim também uma "mulher casada" deve ser necessariamente - e para que eu a espose - uma "irmã de alguém". Distinguimos deste modo uma endogamia "verdadeira", que é uma endogamia de classe (no sentido lógico, mas ao mesmo tempo, em nu- merosas sociedades que a praticam, no sentido social do termo classe), e uma endogamia funcional, que se pode chamar endogamia de relação. Esta é apenas a contraposição da exogamia. Sob forma positiva exprime o caráter aparentemente negativo desta última. Mas, conforme acentuamos no começo deste capítulo, a endogamia complementar aí está para lembrar que o aspecto negativo é apenas o aspecto superficial da proibição. O grupo no interior do qual o casa- mento é proibido evoca imediatamente a noção de um outro grupo, com caracteres definidos (proibição do incesto acompanhada de um sistema exogâmico J ou vagos (proibição simples, sem exogamiaJ no interior do qual o casamento é, conforme o caso, simplesmente possível ou inevi- tável. A proibição do uso sexual da filha ou da irmã obriga a dar em casamento a filha ou a irmã a um outro homem e, ao mesmo tempo, cria um direito sobre a filha ou a irmã desse outro homem. Assim, to- das as estipulações negativas da proibição têm uma compensação positi- va. A proibição equivale a uma obrigação, e a renúncia abre caminho a uma reivindicação. Vê-se, pois, como é impossível, conforme freqüen· temente se faz, considerar a exogamia e a endogamia como instituições do mesmo tipo. Isto é verdade somente para a forma de endogamia que chamamos funcional e que é apenas a própria exogamia conside- rada em suas conseqüências. Mas a comparação só é possível com a condição de excluir a endogamia "verdadeira", que é um princípio iner· te de limitação, incapaz de se superar a si mesmo. Ao contrário, a aná· lise da noção de exogamia basta para mostrar sua fecundidade. A proi- bição do incesto não é somente, como o capítulo anterior tinha sugerido, uma interdição. Ao mesmo tempo que proíbe, ordena. A proibição do incesto, como a exogamia que é sua expressão social ampliada, consti- tui uma regra de reciprocidade. A mulher que nos recusamos e que nos é recusada já com isso se oferece. A quem é oferecida? Ora a um grupo definido pelas instituições, ora a esta coletividade indeterminada e sem- pre aberta, limitada somente pela exclusão dos próximos, como é o caso em nossa sociedade. Mas nesta fase de nossa pesquisa acreditamos ser possivel desprezar as diferenças entre a proibição do incesto e a exo- gamia. Consideradas à luz das observações anteriores, seus caracteres for- mais são, com efeito, idênticos. Mas há mais. Quer nos encontremos no caso técnico do casamento chamado "por troca" ou em presença de qualquer outro sistema ma- trimonial, o fenômeno fundamental resultante da proibição do incesto é o mesmo. A partir do momento em que proíbo a mim mesmo o uso de uma mulher, que com isso passa a ser disponível para um outro homem, há, em algum lugar, um homem que renuncia a uma mulher que, por esse fato, torna-se disponível para mim. O conteúdo da proi- bição não se esgota no fato da proibição. Esta só é instaurada para ga- rantir e fundar J direta ou indiretamente, imediata ou mediatamente, uma troca. Como e por que, é o que se torna preciso agora mostrar. 91 r l CAPITULO V o PrincíPio de Reciprocidade As conclusões do admirável Essai sur le don são bem conhecidas. Neste estudo hoje em dia clássico, Mauss propôs·se mostrar primeiramente que a troca se apresenta nas sociedades primitivas menos em forma de tran- ,! sações que de dons reciprocos, e em seguida que estes dons recíprocos ocupam um lugar muito mais importante nessas sociedades que na nossa. Finalmente, que esta forma primitiva das trocas não tem somente, nem essencialmente, caráter econômico, mas coloca·nos em face do que chama, numa expressão feliz, "um fato social total", isto é, dotado de signifi- cação simultaneamente social e religiosa, mágica e econômica, utilitária e sentimental, juridica e moral. Sabe-se que em muito numerosas so- ciedades primitivas, principalmente as das ilhas do Pacífico e as da costa do Pacífico ao noroeste do Canadá e do Alasca, todas as cerimônias ce- lebradas por ocasião de acontecimentos importantes são acompanhadas por uma distribuição de riquezas. l1: assim que, na Nova Zelãndia, a oferenda cerimonial de vestuários, jóias, armas, alimentos e diversas pro- visões era um traço comum da vida social dos Maori. Faziam-se esses dons por ocasião dos nascimentos, dos casamentos, falecimentos, exu- mações, tratados de paz, delitos e culpas e "incidentes demasiadO nu- merosos para serem enumerados".' Igualmente, Firth, estudando as oca· siões em que ocorrem as trocas cerimoniais na Polinésia, enumera "nas- cimentos, iniciações, casamentos, doenças, mortes e outros incidentes da vida social ou fases do ritual".' Para um setor mais limitado da mesma região, outro observador cita o noivado, o casamento, a: gravidez, o nasci- mento e a morte. Descreve os presentes oferecidos pelo pai do jovem por ocasião da festa do noivado: dez cestos de peixe seco, dez mil co- cos maduros e seis mil verdes, recebendo ele próprio em troca dois bolos de quatro pés quadrados por seis polegadas de espessura.' Estes presentes ou são trocados imediatamente pelos bens equiva- lentes ou recebidos pelos beneficiários que têm por obrigação proceder, em uma ocasião ulterior. a contrapresentes, cujo valor excede muitas ve- zes o dos primeiros, mas que por sua vez dão direito a receber mais 1. E. Best, The Whare Kohanga and its Lore, Dominion Museum BUlletin, WelUn- gton 1929, p. 36. 2. R. Firth, Primitive POlynesian Economics, Londres 1939, p. 321. 3. R. Ian Hogbin, Sexual Life of the Natives of Ongtong Java, Journal of the Polynesian Sociely, vol. 40, p. 28. - Ver também os números espantosos reunidos por R. Firth, Primitive Economics of lhe New Zealand Maori, Nova Iorque 1929, p. 317ss. 92 obrigação ritual que o recebedor tem de aceitar e de retribuir, encontra- se na outra extremidade do continente americano, entre os Yaghan. 1 ~ O problema levantado por Turner no texto acima citado, referente a uma cultura altamente desenvolvida, tem como correspondente uma observação de Radcliffe-Brown sobre as trocas de presentes em um povo que se encontra em um dos níveis mais primitivos conhecidos, os ha- bitantes das ilhas Andaman. "A finalidade é priocipalmente moral, tendo por objetivo proquzir um sentimento amistoso entre as duas pessoas em questão ... "" A melhor prova do caráter supra-econômico dessas tro- cas é que no potlatch não se hesita em destruir às vezes valores con- sideráveis, quebrando ou jogando no mar um "cobre", e que maior pres- tígio resulta da aniquilação da riqueza que de sua distribuição, apesar de liberal, mas que supõe sempre uma retribuição. O caráter econômico subsiste entretanto, embora seja sempre limitado e qualificado pelos ou- tros aspectos da instituição. "Não é a simples posse das riquezas que confere o prestígio, mas antes a distribuição delas... O individuo só amontoa riquezas para se elevar na hierarquia social", Com efeito, "a idéia de dom gratuito é completamente estranha à cultura de Maleku- la ... um dom, é no máximo uma aventura, uma especulação e uma ex- periência de retribuição". Contudo, "mesmo quando se trocam porcos por porcos ou alimento por alimento, as transações não perdem todo alcance econômico, pOis impelem ao trabalho e estimulam a necessidade de cooperação a que deram nascimento"." Mas não é somente na sociedade primitiva que parece reinar a idéia de haver uma vantagem misteriosa na obtenção das comodidades - ou pelo menos de algumas delas - por via de donativos reciprocos, e não pela via da produção ou da aquisição individuais. Os indios do Alasca distinguem os objetos de consumo ou provisões. que não saem do círculo da produção e do consumo famíliar, das riquezas, que formam a pro- priedade por excelência, e que os KawakiutI chamam "the rich food". Este compreende cobertas decoradas com brazões, colheres de chifre, ti- gelas e outros recipientes cerimoniais, roupas de solenidades, etc., todos Objetos esses cujo valor simbólico excede infinitamente o do trabalho ou da matéria-prima, e que são os únicos a poder entrar nos ciclos ri~ tuais das trocas tribais ou intertribais. Mas esta distinção está sempre em vigor na sociedade moderna. Sabemos que existem certos tipos de objetos especialmente próprios, na maioria das vezes pelo caráter não utilitário, para serem dados como presentes. Em alguns países ibéricos, estes Objetos só podem ser encontrados, com todo seu luxo e diversidade, em lojas instaladas em função desse destino privilegiado, as "casas de regalias" ou "casas de presentes", a que correspondem as "gift shops" do mundo anglo-saxão. Ora, não é preciso dizer que os presentes, assim como os convites, que são não exclusivamente, mas também distribui- ções liberais de alimentos e bebidas, "se retribuem". Estamos, portanto, também aqui em pleno domioio da reciprOCidade. Tudo se passa, em nossa sociedade, como se certos bens, de valor de consumo não essencial, 13. M. Gusinde, Die Feuerland Indianer, Viena 1937, p. 980s. 14. Citado por Mauss, op. cit., p. 62. 15. A. B. Deacon, Malekula.... p. 199 e 202. 95 L r' mas aos quais ligamos grande apreço psicológico, estético ou sensual, como as flores, os bombons, e os "artigos de luxo", fossem considera- dos como devendo convenientemente ser adquiridos em forma de dons recíprocos, e não em forma de troca ou de consumo individual. Festas e cerimônias regulam também entre nós o retorno periódico e o estilo tradicional de vastas operações de troca. Na sociedade norte- americana, que parece muitas vezes procurar reintegrar na civilização mo· derna atitudes e procedimentos muito gerais das culturas primitivas, es· tas ocasiões tomam uma amplitude inteiramente excepcional. A troca de presentes de Natal, a que, durante um mês cada ano, todas as classes sociais se dedicam com uma espécie de furor sagrado, não é outra coisa senão um gigantesco potlatch envolvendo milhões de indivíduos, no final do qual os orçamentos familiares defrontam·se com duráveis desequilí- brios. Os "Christmas cards" ricamente decorados não atingem sem dú- vida o valor dos "cobres", mas o requinte de sua escolha, singularidade e preço (que, mesmo modesto, não deixa de se multiplicar por motivo da quantidade), o número deles, enviado ou recebido, são a prova, ri- tualmente exibida na chaminé do recebedor durante a semana fatídica, da riqueza de suas ligações sociais e do grau de seu prestígio. Seria preciso também mencionar as técnicas sutis que regulam o embrulho dos presentes e que, todas elas, traduzem, à sua maneira, o vinculo pessoal que existe entre o doador e o dom, e a função mágica do presente: em- balagens especiais, papéis e fitas consagradas, etiquetas emblemáticas, etc. Pela vaidade dos dons, cuja reduplicação freqUente resulta da escala li- mitada dos Objetos próprios para servirem de presente, estas trocas to- mam também a forma de uma vasta e coletiva destruição de riquezas, Sem desenvolver aqui o tema folclórico moderno, contudo tão significa· tivo, do milionário que acendia seus charutos com notas de dinheiro, há numerosos pequenos fatos para lembrar que, mesmo em nossa so- ciedade, a destruição das riquezas é um meio de prestígio. O comercian- te hábil não sabe atrair a clientela fazendo segredO de que certas mer- cadorias de alto preço são por ele "sacrificadas"? O Objetivo é econô- mico, mas a terminologia guarda um perfume misterioso. 11: sem dúvida o jogo que fornece, na sociedade moderna, a imagem mais característica dessas transferências de riquezas, com o fim exclu- sivo de adquirir prestígio, e o jogo exigiria, por si mesmo, um estudo especial. Vamos nos limitar aqui a uma breve observação. Durante os últimos cem anos o jogo tomou um desenvolvimento excepcional todas as vezes que os meios de pagamento excederam consideravelmente as dis- ponibilidades locais de bens. As fabulosas histórias de jogo do Klondyke ou do Alasca no momento da expansão mineira encontram eco nas da região amazônica na grande época da borracha. Tudo se passa, pois, co- mo se o dinheiro, que estamos habituados a considerar como simples meio de obtenção de bens econômicos, recuperasse, no momento em que não pOde esgotar-se nesse papel, uma outra função arcaica, atribuída outrora às coisas preciosas, a de instrumento de prestígio ao preço do dom e do sacrifício, efetivamente realizado ou simplesmente arriscado. Esta ritualização do uso dos "excedentes" corresponde à regulamentação, já estudada no capítulo IH, do uso dos "produtos escassos". Entre esses dois extremos encontra-se uma espécie de zona de indiferença e de li- berdade. Os estudos de Martius sobre os Aruak são conhecidos: "Embora 96 • , tenham a idéia da propriedade individual, o que cada um possui é tão banal e fácil de obter que todos emprestam e tomam emprestado, sem se preocuparem demasiado em restituir". 18 Os Yakut recusavam-se a crer que em algum lugar do mundo se pudesse morrer de fome, quando é tão fácil ir participar da refeição de um vizinho." Os requintes da di· visão ou da distribuição aparecem, portanto, com a urgência ou a au· sência da necessidade. Mas ainda aqui estamos em presença de um modelo geral. No do· minio tão característico das prestações alimentares, de que os banquetes, os chás e as ceias comprovam o vigor moderno, a própria linguagem, que diz "dar uma recepção", mostra que entre nós, tal como no Alasca ou na Oceânia, "receber" é dar. Este caráter de reciprocidade não é o único que autoriza a aproximar as refeições e seu ritual das instituições primitivas que evocamos. UNas relações econômicas e sociais a expressão !ai te kai, I'preparar o alimento". ouve-se freqüentemente e se refere ao ato preliminar da abertura da relação, pOis um cesto de alimento cons· titui o meio habitual de introduzir uma petição, de pagar multa por um dano causado ou de cumprir uma obrigação. Nas instruções indi· genas que se referem à maneira de agir em um grande número de si· tuações. as palavras "vai a tua casa, prepara alimentos" aparecem fre- qüentemente em primeiro lugar". IR "Oferece-se" um jantar a uma pessoa que se deseja homenagear, e este gênero de convite constitui o meio mais freqüentemente usado para "retribuir" uma delicadeza. Quanto mais o aspecto social domina o aspecto estritamente alimentar mais se vê estilizar·se o tipo de alimento oferecido e sua apresentação. O serviço de porcelana fina, a prataria, as toalhas bordadas, preciosamente guarda· das nos armários e nos guarda·louças familiares são um notável equi· valente das tigelas e colheres cerimoniais do Alasca que, em ocasiões aná- logas, saem das arcas pintadas e decoradas com brazões. As atitudes em face do alimento, sobretudo, são reveladoras. Para nós também, parece que aquilo que se pode chamar, sem trocadilho, os "rich food u , corres- pondem a uma outra função, diferente da simples satisfação das neces· sidades fisiOlógicas. Quando se "dá" um jantar, não se serve o menu cotidiano, e a literatura evocou copiosamente o salmão com maionese, o rodovalho com molho mousseline, as geléias de loie gras, todo este foI· clore dos banquetes. Ainda mais, se as obrigações alimentares exigem certos alimentos definidos pela tradição, basta apenas seu aparecimento para uma retribuição significativa, o consumo em forma compartilhada. Uma garrafa de vinho velho, um licor raro, um loie gras, convidam o outro a verrumar uma surda reivindicação na consciência do proprietá- rio. São iguarias que ninguém compraria e consumiria sozinho, sem um vago sentimento de culpabilidade. O grupo, com efeito, julga com sino guIar dureza aquele que "bebe sozinho". Por ocasião das trocas e ce- rimoniais polinésios é prescrito que, na medida do possível, os bens não sejam trocados no interior do grupo dos parentes próximos paternos, mas se estendam a outros grupos e a outras aldeias. Faltar a este dever chama-se sori tana, jjcomer de seu próprio ceston • E nas danças da al- 16. C. F. P. von Martius, Beitrage 2ur Ethnographie, etc., Leipzig 1867. 17. W. G. Sumner, The Yakuts. Abridged Iram the Russian af Sierashevski, Journal 01 the Royal Anthropological Institute, voI. 31, 1901, p. 69. 18. R. Firth, Primitive Polynesian Economics ... , p. 372. 97 vantagem. Porque a abertura traz consigo sempre um risco, o do par- ceiro responder à libação oferecida por um copázlo menos generoso, ou, ao contrário, do parceiro praticar uma maior oferta e nos obrigar - não esqueçamos que a garrafa é minima - ou a perder, em forma da última gota, nosso último trunfo, ou a fazer ao nosso prestígio o sacri- flclo de uma garrafa suplementar. Estamos, portanto, é verdade que em escala microscópica, em presença de um "fato social total", cujas impli- cações são ao mesmo tempo psicológicas, sociais e econômicas. Ora, este drama aparentemente fútil, a que o leitor talvez ache que concedemos uma Importãncia desproporcionada, parece-nos ao contrário oferecer ao pensamento sociológico matéria para inesgotáveis reflexões. Já indicamos o interesse que apresenta para nós as formas não cristalizadas da vida social ", com os agregados espontãneos resultantes de crises, ou (como o exemplo que acaba de ser discutido) simples SUbprodutos da vida co- letiva. Temos talvez em mãos vestígios ainda frescos de experiências psi- cossociais muito primitivas, cujo equivalente procurariamos em vão na es- cala, irremediavelmente inferior, da vida animal, ou na escala, muito superior, das instituições arcaicas ou selvagens. Neste sentido, a atitude respectiva dos estranhos no restaurante aparece-nos como a projeção in- finitamente longinqua, dificilmente perceptivel, mas contudo reconhecível, de uma situação fundamental, a saber, aquela na qual se encontram in- dividuos ou bandos primitivos, que entram em contato pela primeira vez, ou excepcionalmente, com desconhecidos. Mostramos em outro lugar" os caracteres dessa experiência, entre todas angustiante, da vida primitiva. Os primitivos só conhecem dois meios de classificar os grupos estranhos: ou são nbons" ou são "maus". Mas a tradução ingênua dos termos in- dígenas não nos deve iludir. Um grupo "bom" é aquele ao qual, sem discutir, concede-se hospitalidade, aquele para o qual nos despojamos dos bens mais preciosos, ao passo que o grupo "mau" é aquele do qual se espera e ao qual se promete, na primeira ocasião, o sofrimento ou a morte. Com um luta-se, com o outro troca-se. É por este prisma que se deve compreender a lenda Chukchee dos "Invisíveis", na qual os bens, misteriosamente veiculados, trocam-se por si mesmos. Nada a esclarece melhor que a descrição de seus antigos mercados, aos quais se vinha armado, sendo os produtos oferecidos na ponta das lanças. As vezes segurava-se um pacote de peles com uma das mãos e com a outra uma faca de pão, de tal modo o individuo estava pronto a entrar em luta à menor provocação. Por isso, o mercado era outrora designado com uma única palavra, elpu'r.1kln, "trocar", que se aplicava também às ven- detas. A lingua moderna introduzia um novo verbo: uili'uikln, "fazer co- mércio", correspondente ao koryak uili'uikln, "fazer a paz", O autor a quem devemos estas observações acrescenta: "A düerença de sentidos entre o antigo e o novo termo é significativa"." Ora, a troca, fenômeno total, é primeiramente uma troca total, com- preendendo o alimento, os Objetos fabricados e esta categoria de bens mais preciosos, as mulheres. Sem dúvida, estamos muito longe dos es· 22. P. 49ss. 23. C. Lévi-Strauss, La Vie familiale et soct.ale des lndiens Nambikwara. 24. W. Bogoras, The Chukchee"' J p. 53-55. 100 I l tranhos do restaurante, e talvez alguém leve um susto diante da su- gestão de que a repugnância de um camponês meridional em beber seu próprio frasco de vinho forneça o modelo segundo o qual se construiu a proibição do incesto. Sem dúvida, esta última não provém daquela. Acreditamos, no entanto, que todas as duas constituem fenômenos do mesmo tipo, que são elementos de um mesmo complexo cultural, ou mais exatamente do complexo fundamentai da cultura. Esta identidade funda- mental é aliás aparente na Polinésia, onde Firth distingue três esferas de troca, em função da mobilidade relativa dos artigos que participam da operação. A primeira esfera compreende sobretudo o alimento, em todas as suas diversas formas. A segunda engloba {t .. corda trançada e o tecido de casca; na terceira colocam·se os anzóis de escama e de con- cha, a amarra, os pães de turmeric e as pirogas. Acrescenta: "a essas três esferas de troca deve-se acrescentar uma quarta, quando se trata de bens cuja qualidade é individual. Assim, por exemplo, a transferência da mulher por um homem que não pode pagar sua canoa de outra ma- neira. As transferências de terra podem ser colocadas na mesma cate- goria. As mulheres e as terras são dadas em pagamento de obrigações individuais" . . ., Talvez alguém nos faça uma objeção prévia, que é indispensável dis· sipar antes de levar mais longe a demonstração. Dir-se-á que estão sendo aproximados dois fenômenos que não são da mesma natureza. Sem dú· vida, o dom constitui uma forma primitiva de troca. Mas desapareceu precisamente em proveito da troca, exceto algumas sobrevivências, como os convites, as festas e os presentes, que foram abusivamente postos em relevo. Porque em nossa sociedade a proporção dos bens que são transferidos segundo estas modalidades arcaicas representa uma porcen· tagem irrisória relativamente aos que são objeto de comércio e de ne- gócio. Os dons recíprocos são divertidos vestígios, que podem reter a curiosidade do antiquário, mas não é admissível fazer derivar de um tipo de fenômeno hoje em dia anormal e excepcional, de interesse puramente anedótico, uma instituição como a proibição do incesto, que é tão ge- rai e importante em nossa sociedade quanto ~m qualquer outra. Dito diferentemente, pOdem objetar-nos, conforme nós próprios fizemos a McLennan, Spencer, Lubbock e Durkheim, que 'estamos derivando a re- gra da exceção, o geral do especial, a função da sobrevivência. Talvez se acrescente que entre a proibição do incesto e o dom reCíproco só existe um único caráter comum, a repulsa individual e a reprovação so- cial dirigidas contra o consumo unilateral de certos bens. Mas dir-se-á que o caráter essencial dos dons reCíprocos, isto é, o aspecto positivo da reciprocidade, falta inteiramente no primeiro caso, de tal modo que nossa interpretação, a rigor, só poderia ser válida para os sistemas exo- gâmicos (e partiCUlarmente as organizações dualistas) que apresentam este caráter de reciprocidade, e não para a proibição do incesto tal como é praticada em nossa sociedade. Começaremos pela segunda objeção, à qual já foi feita alusão no capítulo precedente. Afirmamos, com efeito, que a proibição do incesto e a exogamia constituem regras substancialmente idênticas, não diferin- do uma da outra ~enão por um caráter secundário, a saber, que a reci- 25. R. Firth, Primitive Polynestan Economics, p. 344. 101 procidade, que se acha presente nos dois casos, é somente inorgânica no primeiro, ao passo que é organizada no segundo. Como a exogamia, a proibição do incesto é uma regra de reciprocidade, porque não re- nuncio à mlnba filha ou à minha irmã senão com a condição que meu vizinho também renuncie. A violenta reação da comunidade em face do incesto é a reação de uma comunidade lesada. A troca pOde não ser - diferentemente da exogamia - nem explícita nem Imediata. Mas o fato de que posso obter uma mulher é em última análise conseqüência do fato de um irmão ou um pai terem renunciado a ela. Apenas, a re- gra não diz em proveito de quem é feita a renúncia. O beneficiário, ou em todo caso a classe beneficiária, é ao contrário delimitada no casO da exogamia. A única diferença consiste portanto em que na exogamia exprime·se a crença de que é preciso definir as classes para que se pos- sa estabelecer uma relação entre as classes, enquanto na proibição do incesto basta a relação unicamente para definir, em cada instante da vida social, uma multiplicidade complexa e continuamente renovada de termos direta ou indiretamente solidários. Esta transformação levanta um problema que teremos de resolver. Iremos resolvê-lo mostrando que a exogamia e a proibição do incesto devem ser ambas interpretadas em função do modelo mais simples, fornecido pelo casamento entre primos cruzados. Mas, qualquer que deva ser a solução proposta, vê-se que a proibição do incesto não difere da exogamia e das trocas de obrigações de outra ordem. A segunda objeção toca um ponto igualmente essencial, porque se trata de escolher entre duas interpretações 'possíveis do termo "arcai- co". A sobrevivência de um costume ou de uma crença pode, com efeito, explicar-se de duas maneiras: ou o costume e a crença constituem um vestígio sem outra significação a não ser a de um resíduo histórico pou- pado pelo acaso, ou por motivo de causas extrínsecas; ou então sobre- viveu porque continua, ao longo dos séculos, a desempenhar um papel, e este não difere essencialmente daquele pelo qual é possível explicar seu aparecimento inicial. Uma instituição pode ser arcaica porque perdeu a razão de ser, ou, ao contrário, porque esta razão de ser é tão funda- mentaI que a transformação de seus meios de ação nem foi possível nem necessária. Tal é o caso da troca. Seu papel na sociedade primitiva é essencial, porque engloba ao mesmo tempo certos objetos materiais, valores so- ciais e as mulheres. Mas, enquanto com relação às mercadorias este papel diminuiu progressivamente de importãncia em favor de outros mo- dos de aquisição, no que se refere às mulheres, ao contrário, conservoU sua função fundamental, de um lado, porque as mulheres constituem o bem por excelência, e justificamos no capítulo lU o lugar excepcio- nal que ocupam no sistema primitivo dos valores, mas sobretudo por- que as mulheres não são primeiramente um sinal de valor social, mas um estimulante natural. São o estimulante do único instinto cuja satis- fação pode ser variada, o único, por conseguinte, para o qual, no ato da troca, e pela apercepção da reciprocidade, possa operar·se a transfor· mação do estimulante em sinal, e, ao definir por meio dessa medida fun· damental a passagem da natureza à cultura, florescer em uma instituição. A inclusão das mulheres no número das obrigações recíprocas de grupo a grupo e de tribo a tribo é um costume tão geral que não bas· 102 mento de um desses membros, a linhagem do marido é portanto esco- rada, se assim é posslvel dizer, por dois grupos de genros, os genros di- retos e os Indiretos, e sua ajuda se dirige a ele, e lhe são retribuldas por dois grupos de sogros, os sogros próprios e os sogros de seus sogros_ Encontraremos, no capítulo XVIII, este tipo de estrutura ligando ca- da linhagem, em um sistema de trocas orientadas, a seus "genros apro- ximados" e a seus "genros distantes", de um lado e, de outro, a seus "sogros próximos" e a seus "sogros afastados"_ O interesse da compa- ração está em mostrar que uma sociedade, cujo estudo evidencia certa- mente estruturas complexas de parentesco (porque Tikopia não conhece graus preferidos, sendo ai proibido o casamento dos primos), depende contudo dos nossos métodos de análise e pode ser definida, ao, menos de maneira funcional, como uma sociedade de ciclo longo, no sentido que será dado a este termo no capitulo XXVII_ Do ponto de vista mais geral, contentamo-nos em observar aqui que um novo casamento rea- nima todos os casamentos produzidos em outros momentos e pontos diferentes da estrutura social, de tal modo que cada conexão apóia-se so- bre todas as outras e lhes dá, no momento em que se estabelece, uma renovação de atividade_ Finalmente, é preciso notar que "a compensação" (te malai), que inaugura as trocas matrimoniais, representa uma indenização pela abdu- ção da nolva_ Mesmo o casamento por captura não contradiz a regra da reciprocidade, sendo antes um dos meios juridicos posslveis para põ-Ia em prática. A abdução da noiva exprime de maneira dramática a obri- gação em que está todo grupo possuidor de moças de cedê-Ias. Torna manüesta a disponibilidade delas. Seria, portanto, falso dizer que se trocam ou que se dão presentes, ao mesmo tempo que se trocam ou se dão mulheres. Porque a própria mulher não é senão um dos presentes, o presente supremo, entre aqueles que podem ser obtidos somente em forma de dons reclprocos. A primeira etapa de nossa análise foi justamente destinada a colocar em relevo este caráter de bem fundamental representado pela mulher na sociedade pri- mitiva, e explicar as razões desse fato. Não devemos, portanto, nos es- pantar ao ver as mulheres compreendidas entre as alocações recipro- cas, pois têm esse caráter em grau máximo, ao mesmo tempo que ou- tros bens, materiais e espirituais. Esse caráter sincrético do laço conjugal e, para além do laço conjugal, e sem dúvida anterior a ele, da aliança, ressalta bem do protocolo do pedido de casamento entre os bosqulma- nos da Arrica do Sul. Os pais da moça, solicitados por um intermediá- rio, respondem: somos pobres, não podemos nos permitir entregar nos- sa filha. O pretendente visita então sua futura sogra e diz: vim falar com a senhora; se morrer. eu a enterrarei, se seu marido morrer J eu o enterrarei. A isso seguem-se imediatamente os presentes." Não se po- deria exprimir melhor o caráter total, sexual, econômico, juridico e so- cial, deste conjunto de obrigações reciprocas que é o casamento. Em Ongtong Java, uma Ilha do arquipélago das Salomão, as trocas cerimo- niais realizam-se da maneira seguinte (Figura 4): Seja xl o chefe de grupo de a e de b. a casou-se com c, cujo chefe de grupo é x2, e b é casado com d, cujo chefe de grupo é x3. Em certa 28. I. Schapera, The Kholsan People of South Afrlca, Londres 1930, p. 106. 105 . i X2 x1 ~J i a c X3 A .~ A=O d b Figura 4 ocasião a e seus irmãos dão peixe a xl. e c, e as mulheres dos irmãos de seu marido, dão-lhe pães_ Em troca, a recebe pães e c recebe peixe_ Ao mesmo tempo, d dá peixe a x3 e b dá-lhe pães, e recebem o presente complementar _ Em outra ocasião, a dá a x2 peixe e c dá-lhe pães, e cada um recebe o presente complementar em retribuição; simultaneamente, d dá peixe a xl e b dá-lhe pães_ Assim, "em uma troca, o chefe recebe peixe de seus consangüineos masculinos e pães de suas afins femininas- Em outra recebe peixe de seus afins masculinos e pães de suas paren- tas_ Nos dois casos guarda uma parte dos presentes e oferece a cada pessoa o presente complementar da que ele próprio recebeu"_"" As trocas econômicas oferecem assim uma glosa ideal das transações matrimoniais. Analisando uma relação de parentesco especial, sobre a qual volta- remos a falar, em vigor entre certos grupos da Nova Guiné, Seligman observa: "O povo de Beipaa engorda porcos e cria cachorros, mas estes porcos e estes cachorros não são para eles, e sim destinados à aldeia de Amoamo que é sua utuapie, e em troca os porcos e os cachorros de Amoamo vão para Beipaa. .. O mesmo sistema funciona no que se refere aos casamentos. Segundo a regra admitida, uma jovem de uma aldeia não deve casar-se com homens que não entram no grupo dos ufuapie". 30 Não somente, conforme se vê por esses exemplos, que seria fácil multi- plicar quase ao infinito, o sistema das obrigações inclui o casamento, mas é a continuação dele. No Alasca, a rivalidade dos potlatch desenvolve-se essencialmente entre o sogro e o genro, e nas ilhas Andaman o genro é obrigado, muito depois do casamento, a homenagear especialmente seus sogros com presentes. Na Nova Caledônia o nome da irmã perpetua a lembrança dessas trocas, ao mesma tempo que sua situação de mulher exógama garante-lhe a continuidade. É chamada puneara, "causa de ali- menta". e a expressão indica que todo irmão encontra seu prato feito no país onde sua irmã é casada. 3' Finalmente, ° sistema das obrigações conduz ao casamento. No momento da puberdade os rapazes Konyak Nagas começam a procurar moças do clã complementar do seu e trocam pequenos pre- sentes cujo valor e natureza são estritamente fixados pelo costume. ES- tes presentes têm tal importância que a primeira questão que o rapaz faz a uma moça cujos favores procura obter é a seguinte: "Queres acei- tar meus presentes?" A resposta é ora "aceitarei" ou "recebi presen- tes de outro, não quero trocar contigo". O próprio texto destes preli- minares é fixado pela tradição. Esta troca de presentes inaugura uma 29. H. Ian Hogben, Tribal Ceremonies at Ongtong Java (Solomon IslandsL Journal 01 the Royal Anthropological Institute, voI. 61, 1931, p. 47. 30. C. G. Seligman, The Melanesians 01 British New Guinea, Londres 1910, p. 364. 31. M. Leenhardt, Notes d'ethnologie néO·calédonienne. Travaux et mémoires de l' Institut d'Ethnologie, vaI. 8, Paris 1930, p. 65 . 106 L_ série de prestações recíprocas que conduzem ao casamento, ou melhor, constituem as operações ínaugurals dele, a saber, trabalho do campo, re- feições, bolos, etc. ~2 Os pequenos bandos nômades dos índios Nhambkwara do Brasil Oci- dental têm habitualmente medo uns dos outros, e evitam-se_ Mas ao mes- mo tempo desejam o contato, porque este lhes fornece o único melo de proceder a trocas e de conseguir assim produtos ou artigos que lhes faltam_ Existe um vínculo, uma contínuidade entre as relàções hostis e a prestação de serviços recíprocos_ As trocas são guerras pacificamente resolvidas, as guerras são o desfecho de transações infelizes_ Este traço manifesta-se com plena evidência pelo fato da passagem da guerra à paz, ou pelo menos da hostilidade à cordialidade, realizar-se por íntermédio de gestos rituais, verdadeira "ínspeção de reconciliação". Os adversários apalpam-se reciprocamente, e com gestos que guardam aínda alguma coí- sa do combate, examinam os colares, os brincos, as pulseiras, os or- namentos de penas uns dos outros, com murmúrios de admíração. E da luta passa-se com efeito imediatamente aos presentes, presen- tes recebidos, presentes dados, mas silenciosamente, sem regateio, sem expressão de satisfação e sem reclamação, e sem ligação aparente entre o que é oferecído e o que é obtido. Trata-se, portanto, realmente de dons recíprocos e não de operações comerciais. Mas pode ser atíngido um estágio suplementar: dois bandos que chegaram assim a estabelecer relações cordíais duráveis podem decídir, de maneira deliberada, fundi- rem-se, instaurando entre os membros masculínos dos doís bandos res- pectivos uma relação artificial de parentesco, a de cunhados. Ou, levan- do-se em conta o sistema matrimonial dos Nhambkwara, esta ínovação tem por conseqüência imediata que todas as crianças de um grupo tor- nam·se cônjuges potenciais das crianças do outro grupo, e reciproca- mente. Existe uma transíção contínua da guerra às trocas e das trocas aos íntercasamentos. E a troca das noivas é apenas o termo de um pro- cesso ínínterrupto de dons recíprocos, que realiza a passagem da hos- tilidade à aliança, da angústia à confiança, do medo à amizade." 32. Ch. von FUrer-Halmendorf, The Morung System af the Konyak Nagas, Assam, Journal of the RogaZ Anthropological Institute, vaI. 68, 1938, p. 363. 33. C. Lévi-Strauss, Guerre et commerce chez les Indiens de l' Amérique du Sud. Renaissance, voI. 1, Nova Iorque 1943; The Social Use of Kinship Terrns among Brazilian Indians, American Anthropologist, vol. 45, 1943. 107
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