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Guias e Dicas
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Biografia Proibida - Roberto carlos, Notas de estudo de Eletrônica

Biografia cantor

Tipologia: Notas de estudo

2012

Compartilhado em 06/09/2012

alba-aranda-9
alba-aranda-9 🇧🇷

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Baixe Biografia Proibida - Roberto carlos e outras Notas de estudo em PDF para Eletrônica, somente na Docsity! Roberto Carlos em Detalhes Paulo Cesar de Araújo Editora Planeta, 2006 “Quanto mais se tenta esconder a verdade, mais será revelado” FÐøRøMø Orelha do livro: Roberto Carlos é o mais popular cantor brasileiro de todos os tempos - e nenhuma celebridade deste país pode ser considerada mais conhecida ou mais adorada pelo público. Quando começou a fazer sucesso, o homem ainda não havia chegado à Lua, os Beatles ainda não haviam conquistado o mundo, a Guerra Fria ainda dividia o planeta, e o Brasil era apenas bicampeão mundial de futebol. Pois bem: o homem foi e voltou à Lua, os Beatles viraram lenda, a União Soviética acabou, o Brasil já conquistou o pentacampeonato e Roberto Carlos continua fazendo sucesso. Agora, tem-se a impressão de que a carreira de Roberto Carlos foi um deslizar natural em direção ao sucesso. Um grande equívoco. Neste livro, vai-se descobrir que sua vida também está repleta de percalços, de perdas, algumas muito dolorosas. Uma das explicações para o sucesso extraordinário que Roberto Carlos alcançou e alcança está numa declaração dele, logo depois de ser desclassificado no festival de San Remo de 1972: "Apesar de tudo não me senti vencido". Sim, porque, de fato, ele jamais se sente vencido. E isso mesmo nos momentos mais dramáticos de sua vida. Mesmo quando a tragédia lhe causa uma dor sem limite. Este livro é o resultado de uma história de vida com Roberto Carlos, mais de 15 anos de pesquisa e quase 200 entrevistas exclusivas. O autor, Paulo César de Araújo, além de pesquisador, é um apaixonado pelo cantor desde criança. Somente assim seria possível empreender o trabalho de levantar - em detalhes - toda a trajetória artística, a vida e a intimidade de Roberto Carlos. Nesse sentido, trata- se de uma obra de estatura inédita: nunca um ídolo nacional da dimensão de Roberto Carlos foi esmiuçado de modo tão meticuloso, e com tamanha obsessão de mostrá-lo ao público. De fato, este livro persegue - e dá conta - do desafio de contar tudo sobre Roberto Carlos, desde o início em Cachoeiro, passando por cada episódio significativo de sua vida. E isso detendo-se em todas as canções de sucesso - canções que expressaram a rebeldia da juventude numa época e que a seguir acompanharam os amores de seu público, como um amigo de horas certas e incertas. Enfim, trata-se de um retrato completo desse ídolo que, como ninguém, pode com sinceridade cantar os versos "se chorei ou se sorri/ o importante é que Uma história bonita... e triste Era uma manhã de sol, início de agosto de 1973. Recordo que seria o primeiro dia de aula depois das férias de julho. Eu estava a caminho da Escola Municipal Anísio Teixeira, onde cursava o quarto ano primário, quando um cartaz me chamou a atenção. Em um dos muros da avenida Régis Pacheco, no centro de minha cidade, o mural estampava em letras garrafais: "Roberto Carlos vem aí... Dia 31 de agosto, às 21 horas, Estádio Lomanto Júnior. Ingressos à venda". Meu coração disparou. Finalmente eu poderia ver Roberto Carlos ao vivo. Finalmente Roberto viria a Vitória da Conquista, cidade da Bahia que deu ao Brasil nomes como o cineasta Glauber Rocha e os cantadores Elomar e Xangai, mas que adotou Roberto Carlos como se também fosse seu filho. Desde pelo menos 1966, auge da jovem guarda, havia uma grande expectativa por um show de Roberto Carlos em minha cidade. Entretanto, o cantor se apresentava em Salvador e outras cidades baianas como Feira de Santana e Itabuna, e nada de vir a Vitória da Conquista. Assim como acontecia na época em relação à possível visita de Frank Sinatra ao Brasil, a presença de Roberto Carlos na cidade era várias vezes anunciada, mas, depois, nunca confirmada. Em setembro de 1969, por exemplo, um show chegou a ser programado, o local reservado, mas a agenda de Roberto não comportou Vitória da Conquista, que foi outra vez excluída do seu roteiro. Mas agora, em agosto de 1973, parecia que ele viria mesmo e imensos cartazes com a foto de Roberto Carlos estavam ali nos muros da cidade para quem quisesse ver. Seria um único show, em um único dia, única oportunidade de ver Roberto Carlos ao vivo em Vitória da Conquista. Naquele início dos anos 70, Roberto Carlos ainda era chamado de o rei da juventude, mas ele já atingia todas as faixas etárias, principalmente as crianças, que desde a jovem guarda se divertiam ao ouvir temas como O calhambeque, O brucutu e História de um homem mau. Espalhados por todo o Brasil havia milhares e milhares de pimpolhos que cantavam o seu repertório, imitavam seus gestos e repetiam suas frases e gírias, mora? E eu era uma dessas crianças com os olhos e ouvidos postos em Roberto Carlos, e atento a tudo o que ele fizesse. Mas, no meu caso, não apenas nele, porque costumava assistir a quase todos os shows que aconteciam em minha cidade. Com nove, dez, onze anos, ia sempre para a porta do Cine Glória, local da maioria dos shows, tentando filar uma entrada. E foi assim que assisti, em abril de 1972, por exemplo, ao primeiro show que Gilberto Gil fez no Brasil após sua volta do exílio em Londres. Seus pais, doutor Gil e dona Florinda, moravam em Vitória da Conquista e, nessa visita à família, Gil fez uma apresentação de voz e violão no Cine Glória. E lá estava eu, aos dez anos de idade, ouvindo Gilberto Gil discursar e cantar Expresso 2 2 2 2, O sonho acabou, Back in Bahia e outras canções do exílio. Recordo também de um concorrido show do cantor Paulo Sérgio, outro de Nelson Ned e até um do veterano Nelson Gonçalves. Mas agora estaria na cidade o ídolo maior, Roberto Carlos, e, diferentemente dos outros, o show dele não seria no cinema e sim no estádio de futebol Lomanto Júnior, o Lomantão. Na véspera do dia do show eu estava tão ansioso que nem dormi direito. Não tinha ingresso nem dinheiro para comprá-lo. O pior é que, ao contrário do Cine Glória, que fica no centro da cidade e dava para eu ir até lá a pé, o estádio Lomantão fica bem mais distante. Era preciso pegar ônibus e, caso conseguisse entrar no show, chegaria muito tarde em casa. O preço do ingresso, me lembro muito bem, era 10 cruzeiros. Era uma nota vermelha que trazia a esfinge de Tiradentes. Como eu desejei ter uma nota daquelas para comprar logo meu ingresso! Minha mãe percebeu a minha vontade e então tomou uma decisão. Deu-me o dinheiro de ida e volta do ônibus e pediu que eu fosse para a porta do Lomantão. Quem sabe encontraria alguém conhecido que pudesse me colocar dentro do estádio. Mas recomendou: se não conseguisse entrar, que eu viesse para casa imediatamente. Ela não iria dormir enquanto eu não voltasse. O ônibus que me conduziu ao estádio estava superlotado. Fiquei na parte de trás junto a um grupo de moças e rapazes que cantavam canções de Roberto Carlos. Era um clima festivo e de muita alegria. O grupo de trás puxava uma canção e a galera do ônibus seguia acompanhando. E assim fomos até o estádio cantando sucessos como Quero que vá tudo pro inferno, Se você pensa, Jesus Cristo e outras. Ao chegar ao estádio, notei que a fila estava imensa, mas andava com rapidez. A maioria das pessoas já estava com ingresso na mão. Acho que nem tinha mais ingressos para vender, talvez só nas mãos de cambistas. Eu procurava desesperadamente algum conhecido que pudesse me dar uma entrada. Corria de uma ponta a outra da fila. A pessoa mais conhecida que encontrei foi o gerente de um supermercado que havia perto da rua em que eu morava. Ele estava lá na fila com toda a família: a mulher, os filhos, a cunhada e acho que até a empregada dele ganhou um ingresso para o show. Depois de alguns minutos de hesitação, tomei coragem e me aproximei dele. Perguntei se ele podia pagar a minha entrada. Ele me reconheceu, estranhou que eu estivesse ali sozinho, mas disse que nada podia fazer porque os ingressos estavam contados. Fui para a porta de entrada principal do estádio e apelei ao porteiro para que me deixasse entrar. "Só com ingresso, e, por favor, saia da frente para não atrapalhar o público." Na época, Roberto Carlos utilizava para shows em estádios de futebol um equipamento de voz de 800 volts e dois canhões de luz de 2 000 volts de potência. Havia também um gerador próprio para suprir as dificuldades de energia nas cidades do interior. Tudo era transportado num caminhão Ford F-350, que eu vi parado em frente ao estádio. O caminhão trazia a inscrição RC-7 bem grande na sua carroceria de alumínio. Roberto Carlos era o cantor de todas as classes sociais, mas só o público de classe média para cima tinha o privilégio de ver o seu ídolo ao vivo. Na época, pouco antes de um show em Florianópolis, o próprio Roberto admitia ao repórter que o entrevistava: "Quer apostar como tem mais gente lá fora do que aqui dentro? Meu público é pobre, não pode pagar ingresso muito caro". De fato, a grande maioria do povo brasileiro ficava do lado de fora dos shows de Roberto Carlos. E eu estava ali para provar isso. Não era somente no Brasil que acontecia essa exclusão. No México acabou explodindo em forma de violência coletiva. O público do cantor provocou uma quase rebelião na cidade de Coatzacoalcos, no estado de Vera Cruz, no norte do país. Foi numa sexta-feira de abril de 1974, quando Roberto Carlos se apresentaria no ginásio de esportes Miguel Alena Gonzalez. Era um show há muito tempo aguardado na cidade e que atraiu uma multidão para a porta do ginásio. Entretanto, grande parte do público foi surpreendida com o preço dos ingressos, considerado muito alto. Os mais endinheirados compraram seus ingressos rapidamente, enquanto a parte mais pobre do público resolveu protestar, de paus e pedras na mão, acusando Roberto Carlos de cantar apenas para ricos. "Levamos um susto danado porque eles começaram a quebrar vidraças e jogar pedras quando já estávamos lá dentro", lembra o baixista Bruno Pascoal, que tinha chegado mais cedo com os companheiros do RC-7 para testar o som do ginásio. Foi como uma reação em cadeia. Pessoas que passavam pelo local, e que estavam descontentes com o preço do pão ou da tequila, se juntaram aos fãs de Roberto Carlos no quebra-quebra. Segundo relato da imprensa, grande parte das dependências do ginásio foi destruída pela multidão Kassu Produções, e consegui participar da coletiva daquele ano, no Copacabana Palace. Uma entrevista exclusiva, ela disse que não poderia ser. No ano seguinte, a coletiva foi no mesmo local, mas não consegui convite. Entrei no meio de jornalistas e fiquei ali escondido pelos cantos, evitando me encontrar com a assessora de imprensa. Em 1992, tentei novamente, e já me contentava em participar apenas da coletiva. Afinal, numa coletiva, em meio a uma série de perguntas absolutamente invariáveis através dos tempos, sempre podia surgir alguma informação nova, que eu poderia juntar às outras que estava acumulando. Não consegui falar com Ivone, nem convite. Fui assim mesmo para a coletiva do Imperator, no Méier, onde Roberto faria uma temporada. Dessa vez, não fiquei escondido pelos cantos, arrisquei falar com Ivone Kassu. Mas, assim que ela me viu, chamou um garçom e ordenou: "Por favor, não sirva nada a este rapaz. Ele não foi convidado para a coletiva". E me virou as costas. Fiquei ali alguns minutos paralisado. Mais uma vez estava barrado de um evento com Roberto Carlos. Por tudo isso, o possível encontro com Ivone Kassu na portaria do prédio de Roberto me deixava ansioso. Como ela iria reagir? Mas, justamente por causa da passeata, chegamos 25 minutos atrasados, e o porteiro informou que a assessora havia acabado de subir. Ele ligou para o apartamento e veio a ordem para o Lula subir. Eu subi junto. No elevador, já fui pensando: "Benditas foice e martelo...". Não tinha dúvida de que, se encontrasse Ivone Kassu na portaria, iria ser barrado mais uma vez. Mas agora o elevador subia e eu já estava a um passo da porta da sala de Roberto Carlos. A um passo de um encontro e de uma conversa frente a frente com o rei. Roberto mora na cobertura de um prédio de cinco andares, todos com apenas um apartamento, situado de frente para a baía de Guanabara com o Cristo Redentor ao fundo. Quando saímos do elevador, a porta já estava aberta. Em pé, lá estava ele, Roberto Carlos vestido de Roberto Carlos, com seu tradicional traje de calça jeans azul, camisa branca e tênis brancos. Ivone estava sentada em um sofá de frente para a porta. Lula foi o primeiro a entrar, sendo apresentado a Roberto por ela. Foi logo pedindo desculpas pelo atraso e em seguida me apresentou. "Roberto, este é meu amigo Paulo César..." Roberto estendeu-me a mão efusivamente, fitando meus olhos, e disse: "Já nos conhecemos não é, bicho?". Sem pestanejar, e também olhando no fundo dos seus olhos, respondi: "Com certeza, Roberto. Eu sou o Brasil". A conversa iniciou de forma descontraída na ampla sala de visitas de seu apartamento decorado em tons azuis e brancos. Bom anfitrião, ele perguntou se queríamos beber alguma coisa, sugerindo água, café ou suco. Pedimos apenas água, que nos foi servida por uma empregada devidamente uniformizada de azul e branco. Durante todo o tempo que ali permaneci não pude evitar a lembrança daquele dia do show de Roberto em Vitória da Conquista. Agora, ali estava eu, na sala de sua casa, conversando com ele. É verdade que tinha entrado sem ter sido convidado. Mas só poderia mesmo ter sido daquela maneira: sem convite, sem ingresso, quase pela porta lateral. Como seria naquele show em Vitória da Conquista. Depois de uma outra amenidade, Lula Branco Martins deu início à entrevista, antes colocando o pequeno gravador na ponta da mesa de centro, para não intimidar muito Roberto, que não se sente à vontade na presença do gravador. Roberto permaneceu a maior parte do tempo encostado no braço direito do sofá. Diante da primeira pergunta, ele sorri e hesita. Mas depois percebi que sempre sorri e hesita quando alguém lhe faz uma pergunta. E responde lentamente, em seguida, procurando as palavras como se estivesse pensando no assunto pela primeira vez. Já diante de perguntas mais embaraçosas, Roberto pára, abaixa a cabeça, esfrega as mãos, olha para o alto, fica algum tempo em silêncio, e só então responde. Outras vezes, ele pára e olha fixamente algum ponto no espaço perdido antes de responder - sempre tomando um cuidado extremo para evitar mal-entendidos. Uma das últimas perguntas foi sobre a relação de Roberto com o palco, Lula então aproveitou o tema e disse: "Aliás, Roberto, o Paulo tem uma história antiga com você em um show em Vitória da Conquista". Eu relatei tudo, passo a passo até o desfecho final. Roberto riu em algumas passagens, mas depois contraiu seu semblante e com aqueles seus olhos fundos cravados em mim, comentou: "Pôxa, bicho, que história bonita... bonita e triste". Ao final, ele e Ivone Kassu nos acompanharam até a porta do elevador. Então a assessora abriu a sua agenda, nos entregou dois convites e falou pra mim sorrindo: "Agora você não vai mais ficar do lado de fora de um show de Roberto Carlos". Este livro é resultado de uma história de vida com Roberto Carlos, mais quinze anos de pesquisa em jornais, revistas, arquivos, além de quase duas centenas de entrevistas exclusivas. Para melhor entender a obra musical de Roberto Carlos é necessário conhecer a trajetória de Roberto Carlos. Ele canta o que vive e o que sente. Nas suas canções, fala de sua infância, de sua mãe, de seu pai, de sua tia, de seus amores. Mesmo numa canção como Caminhoneiro, que trata de um personagem distante de sua realidade de astro pop, o fermento que o inspirou a compô-la está nos caminhões que via passar na frente de sua casa em Cachoeiro e no desejo que o menino Roberto acalentou de um dia dirigir um veículo daqueles. Enfim, se outros cantores-compositores têm uma produção musical desvinculada de sua trajetória de vida, este não é o caso de Roberto Carlos. Sua obra é marcadamente pessoal e autobiográfica. "O maior mérito de meu pai é cantar a sua verdade. A verdade é o que importa. Se alguém quer conhecê-lo ou saber o que pensa ou já pensou, é só ouvir suas músicas", diz seu filho Dudu Braga. Mas o caminho inverso também se faz necessário. Se alguém quer conhecer melhor suas canções e o que elas dizem, é necessário conhecer a trajetória de Roberto Carlos, sua história, seus embates, seus dramas, porque todos estão de certa forma retratados em sua obra. Este livro persegue este desafio, contar a trajetória artística de Roberto Carlos desde o início, canção por canção, detalhe por detalhe. * * * C AP Í T U L O 1 FORÇA ESTRANHA NO AR ROBERTO CARLOS E O RÁDIO "Eu estava muito nervoso, mas muito contente de cantar no rádio. Ganhei um punhado de balas, que era como o programa premiava as crianças que lá se apresentavam. Foi um dia lindo." Dois acontecimentos, um relacionado ao futebol, outro à música popular, marcaram a história do Brasil no ano de 1950. O primeiro teve como palco o estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro, e foi percebido e sentido no momento exato em que aconteceu: a derrota da seleção brasileira para o Uruguai na final da IV Copa do Mundo. Naquele domingo ensolarado de 16 de julho, o grito "Brasil campeão" foi silenciado aos 33 minutos e meio do segundo tempo do jogo, quando Alcides Edgardo Ghiggia avançou pela ponta direita e marcou o segundo gol uruguaio. Um sentimento de frustração, vergonha e humilhação tomou conta dos brasileiros assim que o juiz George Reader apitou o fim da partida. Em uma crônica, Nelson Rodrigues que você não vai cantar na rádio? Lá tem um programa para crianças domingo de manhã", propôs no início daquela semana. Pois uma hora antes de o programa entrar no ar, lá já estava o menino Roberto Carlos, trajando uma roupinha nova, daquelas de domingo, que sua mãe costurou especialmente para a ocasião. Quando o locutor Marques da Silva anunciou a vez de Roberto Carlos cantar, o violonista Zé Nogueira deu o tom no violão e o garoto se aproximou do microfone, soltando educadamente a voz: "Tú no sabes cuanto te quiero/ tú no sabes lo que yo tengo para ti/ tú no sabes que yo te espero para darte/ amor, amor, amor y mas amor...". Muito romântico desde criança, Roberto Carlos escolheu para sua estréia no rádio o bolero Amor y mas amor, composição do espanhol Bobby Capó, lançada naquele ano. E o garoto cantou em espanhol mesmo, como ele ouvia no rádio na voz do cantor uruguaio Fernando Borel que na época atuava no Brasil. Ao final da apresentação, como era de praxe, o apresentador do programa e o violonista foram cumprimentar o calouro. "Eu estava muito nervoso, mas muito contente de cantar no rádio. Ganhei um punhado de balas, que era como o programa premiava as crianças que lá se apresentavam. Foi um dia lindo", recorda Roberto Carlos. E foi assim, por um punhado de balas, que a voz mais ouvida até hoje na história do Brasil cantou no rádio pela primeira vez. O Programa Infantil era patrocinado pela fábrica de doces Esperança e todos os domingos eles mandavam um saco de balas para distribuir entre os participantes e a garotada da platéia. Era uma festa no auditório. "Garoto, volta no próximo domingo, que o Regional estará completo", disse Zé Nogueira para Roberto Carlos ao final do programa. "E eu posso voltar?" "Pode, quantas vezes quiser", incentivou-o o músico, abrindo-lhe assim as portas da Rádio Cachoeiro. De propriedade do empresário Alceu Nunes da Fonseca, a ZYL-9 Rádio Cachoeiro de Itapemirim foi inaugurada em junho de 1946. Seguindo o modelo das grandes emissoras da capital, a rádio também tinha seu auditório, com capacidade para duzentas pessoas. Para ocupar esse espaço e tocar a programação, a direção montou um broadcasting a partir de atrações locais como o cantor Genaro Ribeiro, a "voz romântica de Cachoeiro", a cantora Marlene Pereira, "a internacional", com seu repertório de tangos e boleros em espanhol, a cantora Therezinha Vasconcelos, intérprete de sambas e marchinhas carnavalescas, e até a poetisa Marly de Oliveira. E, como não poderia faltar, a rádio produzia também programas de humor, de esporte e, principalmente, radionovelas, com seus radioatores e novelistas como Hercília Surrage, espécie de Janete Clair de Cachoeiro. No elenco da emissora estava também o futuro ator Jece Valadão, mineiro que morava desde criança em Cachoeiro e começara a trabalhar ali como locutor de rádio. Enfim, não seria por falta de atrações que a população de Cachoeiro de Itapemirim deixaria de sintonizar a emissora de sua cidade. A audiência da rádio visava os 81 082 habitantes de Cachoeiro (segundo o censo daquele ano), sendo 43 846 na sede e o restante em Burarama, Canduru, Jaciguá, Marapé, Palotuba e Vargem Alta onde a emissora também chegava. Portanto, era nesses municípios que se localizavam as possíveis testemunhas dessa primeira e histórica apresentação do menino cantor Roberto Carlos. Comprovadamente ele teve a manifestação da vizinhança, pois, assim que voltou da rádio, atraiu a atenção das pessoas da sua rua, e muitos foram falar com ele, comentar sua apresentação no programa. O menino que saiu de manhã praticamente anônimo voltou artista ao meio-dia. E quando entrou em casa ganhou beijos e abraços bem carinhosos da mãe, que exclamou: "Meu filho, você cantou tão bonito!". De pronto, Roberto Carlos respondeu: "Pois é, mãe. Mas eu não quero mais ser médico, não. Agora eu quero ser cantor". É desejo da maioria dos pais no Brasil ter na família um filho doutor. Uns para manter a tradição familiar, outros para garantir um meio de ascensão social. No caso dos pais de Roberto Carlos não foi diferente. Eles também tinham esse desejo e estavam convencidos de que poderiam realizá-lo através do filho caçula. Por isso, devidamente orientado em casa, quando alguém perguntava o que ele ia ser quando crescer, Roberto Carlos respondia: médico. Entretanto, isto era só da boca pra fora, porque, quando bem menininho, nele havia o desejo de ser aviador, depois desejou ser caminhoneiro e por volta dos oito anos veio a vontade de ser desenhista. Mas essas especulações praticamente acabaram nesse dia da sua estreia na Rádio Cachoeiro. A partir daí, Roberto Carlos se firmou na idéia de ser um cantor de música popular, um artista do rádio. "É mesmo, meu filho? Então está bem. Vamos ver se você vai continuar com essa vocação", respondeu dona Laura. Embora acalentasse o desejo de ver o filho doutor, dona Laura nunca deixou de estimular a sua vocação artística. Foi ela quem, além de incentivá-lo a ir cantar no rádio, lhe ensinou as primeiras noções de violão. Nascida em Mimoso, Minas Gerais, Laura Moreira Braga aprendeu a tocar violão ainda adolescente, prática não muito comum entre as mocinhas de seu tempo. Era de bom-tom que as meninas tocassem piano, e que o violão, instrumento mais rude, ficasse com os homens. Mas na casa de Laura não tinha piano, que sempre foi um instrumento das famílias mais abastadas, e, como ela gostava de cantar, teve que se entender mesmo com o famigerado violão dos meninos. Esse gosto pela música ela procurou transmitir aos quatro filhos Lauro Roberto, Carlos Alberto, Norma e o caçula Roberto Carlos, os quais costumava reunir para tocar canções tirolesas e rancheiras num velho violão que trouxe de sua cidade natal. "Mostrei para os meus filhos as primeiras posições e ensinei-lhes notas como o lá maior, fá menor e assim por diante. A partir daí, o talento natural de Roberto se impôs e ele buscou se aprimorar." De fato, cada vez mais interessado pelo instrumento, o garoto foi aprender novos acordes, se valendo do tradicional método do violonista Américo Jacomino, o Canhoto, muito usado na época. E também não perdia a oportunidade de ouvir o toque de violão de Hermes Silva, um ajudante de caminhão que trabalhava num depósito perto de sua casa. "Eu gostava demais de ouvi-lo tocar aqueles sambas de breque estilo Moreira da Silva." Roberto Carlos é um típico fruto da miscigenação que marcou a colonização portuguesa nos trópicos. Flor amorosa de três raças tristes. Seu avô materno, Joaquim Moreira, era português, e sua avó, Anna Moreira, era filha de índio e negro. Os pais de Roberto Carlos, seu Robertino e dona Laura, saíram, já casados, do interior de Minas Gerais para morar em Cachoeiro de Itapemirim. Robertino era relojoeiro e instalou uma pequena loja, de uma porta, no centro da cidade. Laura era costureira e atendia uma vasta clientela, porque na época quase não se vendia roupa pronta. Na infância, Roberto Carlos e seus irmãos se acostumaram a dormir acalentados pela máquina de costura de sua mãe, que trabalhava até alta madrugada. O caçula Roberto Carlos Braga nasceu num Dia do índio, 19 de abril de 1941, às 5 horas da manhã, pesando 2,250 kg e medindo 42 cm. A família morava na rua índios Crenaques coincidência que o garoto gostava de comentar com seus colegas na escola. Essa rua que mais tarde teve seu nome mudado para João de Deus Madureira era mais conhecida mesmo por rua da Biquinha, porque ali há uma bica de água natural muito utilizada pelos moradores. Embora estreita, sem saída e sem calçamento, é uma rua próxima do centro da cidade, começando ao pé da linha do trem da Leopoldina e terminando ao pé mulheres bonitas em relação à área geográfica e à densidade populacional. Mulheres bonitas e liberadas, dizem alguns. "No auge do tabu da virgindade muitas garotinhas de Cachoeiro transavam tranquilamente. Era uma loucura. Amigos meus iam para Cachoeiro por causa de sua liberação sexual", garantia o cachoeirense Carlos Imperial. Talvez o clima quente e a proximidade com o Rio de Janeiro tenham influenciado essa postura liberal da mulher de Cachoeiro, cujo protótipo foi a dançarina Dora Vivacqua, mais conhecida pelo codinome Luz Del Fuego. Famosa por dançar com serpentes enroladas no corpo, ela saiu de Cachoeiro para criar o primeiro clube de nudismo no Brasil, em 1956. "O ser humano precisa ver o sexo de seu próximo", justificava. O outro aspecto no qual Cachoeiro se destacava era a intensa movimentação trabalhista e a contínua agitação política da cidade. Ali tudo era motivo para greves, passeatas, comícios ou quebra-quebras: o aumento das passagens dos trens, o reajuste das tarifas de energia ou até mesmo o simples aumento dos ingressos do cinema. Numa época em que médicos e professores não costumavam fazer greves, categorias como as dos marítimos, portuários e ferroviários eram vistas com grande alarme e desconfiança pelos setores conservadores. Pois as duas estradas de ferro da cidade utilizavam farta mão-de-obra e faziam do Sindicato dos Ferroviários de Cachoeiro um centro de agitação política. A grande concentração de operários conferia à cidade uma cor política incomum para a época e para os padrões de um modesto município do interior. Está viva na memória da velha guarda cachoeirense os embates entre comunistas, getulistas, udenistas e integralistas que mobilizavam grande parte da população. Nos anos 30, por exemplo, havia na cidade um pequeno núcleo da Ação Integralista Brasileira, organização de inspiração nazifascista liderada pelo escritor paulista Plínio Salgado. Os integralistas eram facilmente identificados pelo uso de uniformes verdes e um distintivo com a letra grega sigma, além de uma típica saudação "anauê" -, vinda da língua indígena tupi. Mas em Cachoeiro - como em grande parte do Brasil - eles eram chamados pejorativamente de "os galinhas verdes", e muitos moradores da cidade recitavam pelas ruas: "Galinha verde aqui não bota ovo/ se botar não choca/ se chocar não tira/ se tirar não cria/ se criar a gente mata!". Por aí se vê o clima de animosidade que reinava contra os integralistas na cidade de Roberto Carlos. E isto foi comprovado na manhã do dia 2 de novembro de 1935, um sábado, quando correu a notícia de que Plínio Salgado chegaria do Rio com grande comitiva para promover uma passeata na cidade. O operariado de Cachoeiro declarou-se em guerra contra essa visita e foi de paus e pedras nas mãos cercar a estação ferroviária à espera de Plínio Salgado. Vislumbrava-se um massacre e, antes mesmo de o trem se aproximar, houve pancadarias, correrias, tiros e duas mortes no largo da estação da Leopoldina. Providencialmente, entretanto, o líder integralista não veio ou foi aconselhado a ficar pelo caminho. Esse clima de agitação e contestação deu a Cachoeiro o título de "cidade vermelha". Sim, porque na época a cidade de Roberto Carlos abrigava também um aguerrido núcleo do PCB, o chamado Partidão, revelando militantes como Gilson Carone, Oswaldo Pacheco e Dante Palacani, que insuflavam todo tipo de agitação. Um dos líderes históricos do PCB, Hércules Corrêa, também nasceu em Cachoeiro. Assim como era de lá o líder sindical comunista Demisthoclides Baptista, o Batistinha, que, antes de comandar históricas greves com os ferroviários da Central do Brasil, militava no Sindicato dos Ferroviários de Cachoeiro. Como se vê, a cidade de Cachoeiro de Itapemirim poderia muito bem ter sido o berço de cantores de protesto como Chico Buarque ou Geraldo Vandré - mas quis o destino que ali nascesse o artista que atravessaria os anos dizendo não gostar nem entender de política. A programação da Rádio Cachoeiro -como das demais emissoras do Brasil naquela época - era marcada pela diversidade musical. E o menino Roberto Carlos cresceu ouvindo de tudo: baiões de Luiz Gonzaga, xaxados de Pedro Raimundo, modas de viola de Tonico e Tinoco, sambas-canções de Lupicínio Rodrigues e marchinhas carnavalescas de Marlene, Emilinha e companhia. Isto para citar apenas o repertório nacional, porque a parte internacional também era grande. Tocava-se muita música estrangeira no Brasil, tanto no original como em versões. E dá-lhe valsa, fado, fox, foxtrote e principalmente tangos e boleros cantados por nomes como Fernando Borel, Fernando Albuerne, Gregório Barrios, Albertinho Fortuna e Rui Rei, cantor paulista que se acompanhava de uma orquestra e cantava rumbas e sambas. A música latina, páreo duro com a norte-americana, tinha uma presença forte em todo o Brasil nos anos 40/50. O sambista carioca Nei Lopes, que tem a idade de Roberto Carlos, diz que, da mesma forma que os jovens de hoje formam grupos de rap, nos seus tempos de garoto no Irajá, a onda eram os grupos de rumba. "Era uma febre. Os cantores usavam roupas cheias de babados. Além de Rui Rei, que fez muito sucesso com sua orquestra e gravou La bamba dez anos antes da versão clássica de Ritchie Valens, tinha um cantor de Vila Isabel que se aproximava mais dessa mistura latina. Era El Cubanito, que cantava Cao cao mani picao." Foi também marcado por essa forte presença da música internacional (especialmente a latina) que o menino Roberto Carlos escolheu seu repertório nas primeiras apresentações que fez em público. Depois de Amor y mas amor, que cantou em sua estréia no rádio, outros boleros e tangos, como Adiós, de Enric Madriguera, Solamente una vez, de Agustín Lara, e Aventureira (El choclo), de Villoldo e Catan, desfilaram em sua voz - que voltou a aparecer nas semanas seguintes na Rádio Cachoeiro. No Programa Infantil havia um concurso para escolher o melhor cantor da semana e o vencedor era decidido pelo público. Mas o candidato tinha que apresentar o número inteiro, sem tropeçar. Quem esquecia a letra ou errava a melodia de uma canção era automaticamente desclassificado. Cumprida essa exigência, o candidato ia para o trono esperar o próximo concorrente. Os dois eram submetidos aos aplausos do público e quem tivesse um apoio maior continuava no trono aguardando o candidato seguinte. E assim transcorriam as duas horas do programa, coroando ao final o candidato vencedor do concurso. Participava uma média de vinte garotos por programa, pois nem todos conseguiam fazer seu número até o final. As inscrições eram no sábado e os violonistas Zé Nogueira ou Mozart Cerqueira orientavam os calouros na escolha da música e no tom ideal para a apresentação no palco. Nos três primeiros domingos que participou, Roberto Carlos foi o mais aplaudido pelo público. Não houve concorrente que conseguisse tirá-lo do trono - o que já revelava uma vocação inata para rei. Ele tornou-se então um participante hors-concours do Programa Infantil. Zunga não concorria mais com os outros garotos, simplesmente ensaiava um número com o regional para cantar na abertura ou no final de cada programa. Agradou tanto que semanas depois passou a cantar dois números, abrindo e encerrando o programa. E assim constata-se que, antes de comandar as jovens tardes de domingo na TV Record, nos anos 60, Roberto Carlos viveu as infantis manhãs de domingo na Rádio Cachoeiro, nos anos 50. Foi ali que ele começou a desenvolver a sua grande intimidade com o palco, com o público e com o microfone. Acompanhado pelos músicos do Regional L-9, ou às vezes rádio do país passaram a recordar seus sucessos, principalmente Adeus (Cinco letras que choram), composição de Silvino Neto, lançada pelo cantor em 1947: "Adeus, adeus, adeus, cinco letras que choram/ num soluço de dor...". Na casa de Roberto Carlos a tristeza também foi geral. Na noite de sábado, ele, seus pais e irmãos ficaram juntos ao pé do rádio, quase numa reverência, rezando, comentando o trágico acontecimento. Aquela foi até então a maior comoção coletiva testemunhada pelo menino Roberto Carlos. Nunca antes ele tinha visto uma morte provocar tanta dor. No domingo, pela primeira vez seu programa foi apresentado sem a dobradinha com Francisco Alves, mas com a presença deste no repertório. Aliás, naquele dia todos os programas da Rádio Cachoeiro foram dedicados ao ídolo tragicamente falecido. Até mesmo um dos moradores da cidade, o fiscal da Receita Federal Júlio Barbosa, fã incondicional do "rei da voz", prestou sua homenagem. Enquanto o funeral do cantor transcorria no Rio de Janeiro, ele acoplou um alto-falante ao motor de seu Chevrolet conversível e saiu pelas ruas tocando músicas de Francisco Alves. "Me lembro como se fosse hoje. Aquele homem sozinho, desolado, rodando com aquele carro de som pelas ruas de Cachoeiro", recorda o compositor cachoeirense Arnoldo Silva. A sensibilidade, o espírito solidário, o carinho pelas plantas e os animais, a intensa religiosidade - características que marcarão a personalidade do futuro ídolo Roberto Carlos -, já estavam presentes no menino Zunga, especialmente após um grave acidente que o vitimou aos seis anos de idade. "Nos dias que permaneci no hospital criei minha estrutura, inventei orações que repito até hoje", afirma Roberto Carlos. O fato aconteceu numa manhã de domingo, 29 de junho de 1947, dia de São Pedro. A brisa deslizava do alto das serras. Naquele dia, Cachoeiro amanheceu sorrindo e em festa para saudar o seu santo padroeiro que, segundo a Igreja Católica, foi morto e crucificado nessa data em Roma, durante o reinado do imperador Nero, no ano 65 d. C. Era feriado na cidade, dia de desfiles, músicas, bandeiras, discursos, ruas cheias de gente e muita alegria. As duas bandas da cidade, a Lira de Ouro e a Banda 26 de Julho, faziam retreta na praça, tocando dobrados. E muitos meninos já brincavam em volta do coreto ouvindo os músicos tocar. Como tantas outras crianças da cidade, naquele dia Roberto Carlos saiu cedo e animado de casa para assistir aos festejos. Era tanta bada-lação que muitos pais preparavam roupa nova para os filhos estrearem justamente nesse dia. Por isso Zunga estava ainda mais contente, porque iria desfilar com os sapatinhos novos que ganhara na véspera. E qual criança não fica feliz ao ganhar uma roupinha ou um novo par de sapatos? Logo que saiu à porta de casa, Roberto Carlos se encontrou com sua amiga Eunice Solino, uma menina da sua idade, que ele carinhosamente chamava de Fifinha. Frequentemente os dois estavam juntos, porque moravam na mesma rua e, mais tarde, foram estudar no mesmo colégio. Por várias vezes, a caminho da escola, era ela quem carregava o material de Roberto Carlos. "Fifinha foi a minha grande companheira da infância", diz o cantor. Pois naquela manhã os dois desceram mais uma vez juntos em direção ao local dos desfiles. Ao chegarem num largo, logo abaixo da rua em que moravam, já encontraram todos em plena euforia. Desfiles escolares, balizas e muitos balões coloriam o céu do pequeno Cachoeiro, ao mesmo tempo em que locomotivas se movimentavam para lá e para cá. Construída na época dos barões do café, no século XIX, quando a cidade era um paradouro de trem de carga, a Estrada de Ferro Leopoldina Railways atravessava Cachoeiro de ponta a ponta. Por volta de nove e meia da manhã, Zunga e Fifinha pararam numa beirada entre a rua e a linha férrea para ver o desfile de um grupo escolar. Enquanto isso, atrás deles, uma velha locomotiva a vapor, conduzida pelo maquinista Walter Sabino, começou a fazer uma manobra relativamente lenta para pegar o outro trilho e seguir viagem. Uma das professoras que acompanhava os alunos no desfile temeu pela segurança daquelas duas crianças próximas do trem em movimento e gritou para elas saírem dali. Mas, ao mesmo tempo em que gritou, a professora avançou e puxou pelo braço a menina, que caiu sobre a calçada. Roberto Carlos se assustou com aquele gesto brusco de alguém que ele não conhecia, recuou, tropeçou e caiu na linha férrea segundos antes de a locomotiva passar. A professora ainda gritou desesperada-mente para o maquinista parar o trem, mas não houve tempo. A locomotiva avançou por cima do garoto que ficou preso embaixo do vagão, tendo sua perninha direita imprensada sob as pesadas rodas de metal. E assim, na tentativa de evitar a tragédia com duas crianças, aquela professora acabou provocando o acidente com uma delas. Diante da gritaria e do corre-corre, o maquinista Walter Sabino freou o trem, evitando consequências ainda mais graves para o menino, que, apesar da pouca idade, teve sangue-frio bastante para segurar uma alça do limpa-trilhos que lhe salvou a vida. Uma pequena multidão logo se aglomerou em volta do local e, enquanto uns foram buscar um macaco para levantar a locomotiva, outros entravam debaixo do vagão para suspender o tirante do freio que se apoiava sobre o peito da criança. Com muita dificuldade, ela foi retirada de debaixo da pesada máquina carregada de minério de ferro. "Eu estava ali deitado, me esvaindo em sangue", recordaria Roberto Carlos anos depois numa entrevista. Mas naquele momento alguém atravessou apressado a multidão barulhenta e tomou as providências necessárias. "Será uma loucura esperarmos a ambulância", gritou Renato Spíndola e Castro, um rapaz moreno e forte, que trabalhava no Banco de Crédito Real. Providencialmente, Renato tirou seu paletó de linho branco e com ele deu um garrote na perna ferida do garoto, estancando a hemorragia. "Até hoje me lembro do sangue empapando aquele paletó. E só então percebi a extensão do meu desastre", afirma Roberto, que desmaiou instantes após ser socorrido. Esse momento trágico de sua vida ele iria registrar anos depois no verso de sua canção O divã, quando diz: "Relembro bem a festa, o apito/ e na multidão um grito/ o sangue no linho branco...", numa referência à cor do paletó que Renato Spíndola usava no momento em que o socorreu. Naquela época em Cachoeiro poucas pessoas possuíam automóvel e Renato Spíndola era uma delas. Ele pegou Roberto Carlos nos braços, colocou-o no banco de seu velho Ford e partiu a toda velocidade rumo ao hospital da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeiro, o único hospital daquela região. "Foi uma longa viagem. Traumas, uma de minhas composições conta bem isso", diz Roberto, citando outra canção confessional, lançada por ele em 1971, que em um dos versos fala do "delírio da febre que ardia/ no meu pequeno corpo que sofria/ sem nada entender...". No meio daquele corre-corre, com várias crianças espalhadas pelas ruas, pais e mães se desesperavam. Chamavam por seus filhos. Perguntavam quem era a criança atingida. Qual o nome dela. A confirmação não demorou. É o Zunga, um menino que mora na rua da Biquinha. O acidente mudou o roteiro daquele dia em Cachoeiro. Para muita gente a festa perdeu a graça. O feriado acabou. Muitas crianças voltaram para suas casas. "Lembro que eu estava desfilando toda prosa de luvas e de uniforme quando houve aquele alvoroço e o desfile dispersou. Todo mundo correu pra ver. É uma coisa de que jamais me esqueci. Houve uma dispersão geral", afirma a pianista Elaine Manhães, que na época tinha quinze anos e desfilava pelo Liceu Muniz Freire. Ao longo daquele dia, nas ruas, nos bares, nas residências, todos precária, mas com a qual já dava para circular sem chamar tanto a atenção. Engana-se, entretanto, quem imagina que a tragédia o tornou uma pessoa infeliz, solitária, recolhida e triste na infância e na adolescência. A ideia de Roberto Carlos como um pobre menino, estigmatizado, a suportar em silêncio a galhofa dos outros, não corresponde à verdade. A auto-estima dele foi muito bem trabalhada pela família e o garoto não se deixava abater. "Roberto era muito alegre, sempre sorridente e meio gozador. Estava sempre fazendo brincadeiras com um e outro", afirma Marlene Pereira, sua colega na Rádio Cachoeiro. Sua amiga de infância, Fifinha, enfatiza a mesma coisa. "Naquela época eu me acostumei a ver Roberto sempre rindo, brincando com a gente, com a avó dele, com as professoras. Ele era bem descontraído." A Rádio Cachoeiro costumava levar seu elenco de cantores e músicos para se apresentar em feiras ou eventos em cidades vizinhas. Era a chamada Caravana musical, que percorria cidades como Alegre, Marataíses, Guaçu e Mimoso do Sul. Às vezes, Roberto Carlos viajava com a caravana e para isso Zé Nogueira ia até a casa dele pedir autorização a dona Laura, se responsabilizando pelo garoto. Uma das primeiras "excursões" do menino-cantor foi para Mimoso do Sul, cidade que fica a trinta minutos de Cachoeiro de Itapemirim. Roberto Carlos estava com doze anos de idade quando se apresentou lá, no dia 15 de julho de 1953. Era o dia da festa de São José, padroeiro de Mimoso do Sul, cidade que não era propriamente estranha para Roberto Carlos. Seus tios Lúcio e Antonica moravam lá e nas férias escolares ele costumava ficar na casa deles. Mas agora era diferente: ele estava ali como artista, para cantar para o público da cidade. E dessa vez ele viajou acompanhado do próprio dono da Rádio Cachoeiro, Alceu Fonseca, que morava no Rio e naquela semana foi fazer uma visita à sua emissora. "Ele me levou no carro dele. Me lembro que era um carrão bonito, uma Mercury, uma beleza", recorda Roberto Carlos. Chegando lá, o menino subiu ao palanque da praça central da cidade e soltou a voz, cantando o tango Mano a mano, composição de Carlos Gardel que Roberto Carlos aprendeu na versão em português cantada por Albertinho Fortuna: "Naufragado na tristeza/ hoje vejo o desatino/ que tu foste em meu destino/ uma mulher, nada mais...". A voz de Roberto Carlos começava a se expandir para além de Cachoeiro de Itapemirim. Percebendo o interesse cada vez mais do filho pela prática musical, em 1954 dona Laura o matriculou no Conservatório de Música Cachoeiro. Ali, duas vezes por semana, às quartas e sextas-feiras, Roberto Carlos estudava piano com as professoras Helena Gonçalves Elaine Manhães. Mas logo nos primeiros dias de aula ele disse para a professora Helena: "Olha, eu sei que não vou ser pianista estou aqui por causa da música". As professoras insistiam para que o novo aluno aprendesse a ler partitura, mas ele teimava em tocar de ouvido - aquela altura já bastante para um garoto de treze anos. Numa época em que o estudo da música era uma atividade basicamente reservada para as meninas, Roberto Carlos foi um dos primeiros garotos matriculados no conservatório da cidade. Até o final dos anos 50, o desenvolvimento musical de um garoto de classe era retardado por conta de um duplo preconceito: ele não era estimulado a tocar violão porque este era um instrumento identificado a vagabundo, malandro; e também não podia aprender piano porque isso era coisa de menina ou de afeminado. O próprio Tom Jobin no início de seu aprendizado musical, compartilhava desse preconceito contra o instrumento "Eu queria deixar o piano lá de casa para minha irmã estudar, porque achava que aquilo era coisa de moça. Eu preferia ir à praia ou jogar futebol", dizia. A pianista Elaine Manhães confirma essa dificuldade em atrair alunos do sexo masculino para as salas do conservatório em Cachoeiro de Itapemirim. "Havia garotos, filhos de médicos e advogados, que não estudavam piano porque os próprios pais não deixavam, com receio de que eles se tornassem bichas. E violão também não, porque era visto como coisa de pinguço, da ralé." Por conta disso, para dar vazão ao seu talento musical, muitos garotos se viam obrigados a estudar acordeom, este sim, um instrumento de macho e não identificado à malandragem como o violão. Esta é a única explicação plausível para a onda de acordeons que dominou o Brasil naquela época. Garotos bem-nasci-dos como Marcos Valle, Edu Lobo, Gilberto Gil, Roberto Menescal, Eumir Deodato e Francis Hime iniciaram seu aprendizado musical tocando acordeom. E quase todos foram alunos de Mário Mascarenhas, um gaúcho radicado no Rio, e que nos anos 50 montou uma rede de academias de acordeom na maioria das capitais do país. A procura era tanta que, ao final de cada ano, Mascarenhas reunia estudantes e professores de suas academias num concerto de "mil acordeons" no Teatro Municipal do Rio. Para alguém como o humorista americano Ambrose Bierce, que dizia que o acordeom é "um instrumento com sentimento de um assassino", este concerto soava como uma verdadeira carnificina. Pior era para os alunos, que em pleno verão passavam horas com aquele instrumento pesado sobre o corpo, ensaiando. "Acordeom é um instrumento complicado porque poucos sabem tocá-lo muito bem, como um Sivuca ou um Dominguinhos. O violão, por exemplo, é mole de enganar. Você toca um pouquinho e todo mundo acha que você toca muito. Já o acordeom, não; quando o cara não toca muito bem, é um instrumento muito perigoso. E se o cara tocar mal, é um instrumento insuportável", afirma Edu Lobo, que na adolescência estudou acordeom durante sete anos. Foi só após a eclosão da bossa nova, em 1958, que o violão (por conta de João Gilberto) e o piano (por conta de Tom Jobim) ganharam a liberdade de ser tocados por todas as classes e sexos sem preconceitos. Mas, sem esperar por isso, Roberto Carlos já praticava os dois instrumentos, além de arriscar algumas aulas até mesmo de violino. Nesse sentido, os pais de Roberto Carlos eram avançados para a época. Não se opunham a que o filho tocasse o violão dos malandros nem o piano das meninas - o que acabou tirando de Roberto Carlos o peso do acordeom que tanto marcou os ombros de seus colegas de geração. Confirmando a regra da época, na turma dele no Conservatório de Música de Cachoeiro havia 45 alunos, e destes, além de Zunga, apenas mais dois do sexo masculino. Para Roberto Carlos, isto não era problema, pois sempre se sentiu muito bem entre as mulheres, e estas com ele. Cuidadoso e vaidoso, Zunga procurava então se manter impecavelmente arrumado. Quando descia a escada da sua casa para ir à rua, costumava olhar sua sombra na parede. Se notasse um cabelinho levantado, ele voltava e se arrumava na frente do espelho. E a preocupação continuava ao longo do dia. "Roberto andava com um pente no bolso e de quinze em quinze minutos ele passava aquele pente nos cabelos", lembra o violonista Zé Nogueira. "Quando menino eu tinha um redemoinho nos cabelos e me sentia mal com isso. Comprei gumex. E ficava bem chateado quando não havia gumex para acabar com aquele redemoinho", confessa Roberto Carlos. Por conta de todos esses cuidados, ele andava mesmo nos trinques, como se dizia. Suas roupas eram muito bem cortadas e passadas porque feitas com o capricho de sua mãe costureira. Nas apresentações no auditório da rádio, por exemplo, Roberto Carlos costumava se exibir vestido de terno. Já nas aulas de piano no "Quem passar pelo sertão vai ouvir alguém falar/ o herói já está cantando/ e eu vim aqui cantar...". Era também a maior emoção acompanhar o seriado O Sombra, transmitido pela Rádio Nacional às terças-feiras, nove da noite. Muitos garotos tremiam de medo ao ouvir a voz cavernosa do locutor Saint-Clair Lopes na vinheta do programa: "Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos? O Sombra sabe, hahahahahaha...". Esse seriado narrava as aventuras de um policial que tinha uma grande qualidade: ficava invisível e, assim, penetrava em todos os esconderijos dos bandidos. A sonoplastia mexia com a imaginação das crianças - que também se assustavam ao ouvir o Incrível, Fantástico, Extraordinário, no qual o famoso Almirante contava histórias fantasmagóricas, místicas, eletrizantes. Em 1955, aos catorze anos, Roberto Carlos ouviu sua voz registrada em disco pela primeira vez. O responsável por isso foi seu colega na Rádio Cachoeiro, o cantor Genaro Ribeiro, que foi até a capital, Vitória, e comprou quatro acetatos (discos de alumínio usados para gravações sonoras experimentais). O objetivo de Genaro Ribeiro era registrar sua própria voz em disco, mas, generoso, deu um acetato para o menino Roberto Carlos também gravar a dele. A gravação foi feita na oficina de um técnico em eletrônica, o único que na época sabia realizar aquela operação com acetato em Cachoeiro de Itapemirim. Genaro Ribeiro, Roberto Carlos e os músicos do Regional L-9 foram até lá e realizaram a gravação numa sala da oficina improvisada em estúdio. Roberto Carlos gravou uma canção inédita, o bolero Deusa, composição de Joel Pinto, um jornalista de Cachoeiro que se aventurava pelos caminhos da música. Como o próprio título indica, Deusa é um bolero de exaltação à mulher amada, naquele estilo consagrado por Rosa, de Pixinguinha. "Não gostei quando ouvi minha voz gravada", afirma Roberto Carlos. Mesmo assim, essa sua gravação de Deusa foi tocada algumas vezes para anunciar o seu programa na Rádio Cachoeiro. Paralelo ao seu trabalho com o Regional L-9, o violonista Zé Nogueira formou um conjunto de baile que se apresentava todo domingo na Casa do Estudante de Cachoeiro de Itapemirim. E junto com ele lá estava Roberto Carlos dando canja com seu repertório de tangos, boleros e sambas-canções. Mesmo quando não cantava, o garoto ficava no palco batendo o bongô ou as maracas. A Casa do Estudante mantinha grande atividade, promovendo concursos de oratória, concursos literários, jogos estudantis e escolha da Rainha dos Estudantes. Mas no domingo, das 16 às 20, era o momento de os brotos dançarem ao som do Conjunto de Ritmos de Zé Nogueira. Para isso, ele tinha dois crooners, Maria Angélica e Nilo Correia, que se revezavam no palco, mas sempre deixando uma brecha para o menino Roberto Carlos cantar. Um de seus números mais aplaudidos era o da canção portuguesa Coimbra, de Raul Ferrão e José Galhardo - que anos depois Roberto Carlos gravaria como uma lembrança desse seu tempo de crooner-mirim nas domingueiras da Casa do Estudante. Com o crescente envolvimento de Roberto Carlos no universo do rádio, sua mãe começou a ficar preocupada. Temia pela saúde do filho e pelo seu desempenho na escola, porque ele estava cada vez menos interessado nos estudos e começava a passar noites sem dormir. A visão que prevalecia na época era a de que o ambiente radiofónico era mesmo dominado por pessoas sem estudo, de vidas desregradas e muitas vezes doentes de tuberculose. Definitivamente, não era isso o que dona Laura queria para seu filho. Mas a preocupação dela não se traduzia em proibição, e sim em alerta para que o filho tivesse cuidado com tudo à sua volta. E o sinal vermelho piscou quando se descobriu que um dos cartazes da Rádio Cachoeiro, o cantor Genaro Ribeiro, estava com tuberculose. Sim, a "maldita", que já havia vitimado Noel Rosa, Sinhô, Nilton Bastos e tantos outros artistas do rádio, estava ali, bem próxima do menino cantor Roberto Carlos. Na época um dos mais queridos artistas de Cachoeiro de Itapemirim - e uma promessa de carreira vitoriosa no futuro -, o jovem cantor Genaro Ribeiro padecia tuberculoso num leito de hospital. A Rádio Cachoeiro decidiu então promover um grande show de auditório em seu benefício. Marcado para o dia 12 de agosto de 1955, dessa vez o público teve que pagar ingresso, pois a renda seria revertida para o tratamento do artista. Todo o elenco da emissora foi mobilizado para esse show beneficente, que contou, entre outros, com o cantor Ricardo Assunção, a cantora Marlene Pereira, a pianista Elaine Manhães e também com o croo-ner-mirim Roberto Carlos. Acompanhado do Regional L-9, nesse dia ele interpretou o samba-canção Olinda, cidade eterna, de Capiba: "Olinda, cidade heróica/ monumento secular da velha geração/ Olinda, serás eterna/ e eternamente viverás no meu coração...". Infelizmente, pouco pôde ser feito em benefício de Genaro Ribeiro porque ele acabou morrendo treze dias depois daquele show. Assim, a Rádio Cachoeiro perdia prematuramente uma de suas principais atrações. Mas as perdas não pararam aí porque meses depois foi a vez de Roberto Carlos também deixar definitivamente os microfones da ZYL-9. Aquela sua participação no show coletivo do dia 12 de agosto foi praticamente a sua despedida do microfone da rádio que o lançou para a carreira artística. Depois de cinco anos atuando ali, o objetivo maior de Roberto Carlos era agora cantar nas emissoras de rádio do Rio de Janeiro. Ele sabia que os programas radiofónicos da então Capital Federal eram os que ditavam os sucessos no Brasil. Uma das grandes atrações era A Hora do Pato, programa de calouros apresentado por César de Alencar, na Rádio Nacional. Participar desse programa era o desejo de todos os cantores iniciantes. Roberto Carlos também sonhava com isto ou pelo menos conhecer o famoso apresentador, entrar na Rádio Nacional. Em casa ele não falava em outra coisa. Tanto insistiu que certa vez, quando seu Robertino foi ao Rio comprar peças de relógio, levou o filho para conhecer a emissora. E eis que o menino-cantor chegou à praça Mauá, número 7, sede da PRE-8 Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Roberto Carlos atravessou deslumbrado aqueles corredores e se espantou com o tamanho do auditório (mais de seiscentos lugares) e o tamanho do estúdio, ambos bem maiores do que os da sua Rádio Cachoeiro. Naquele tempo, os estúdios das principais emissoras eram enormes porque a produção das radio-novelas exigia um espaço amplo para conter o grande número de radioatores participantes. Em outra viagem ao Rio, seu Robertino levou Zunga para se apresentar no programa Papel Carbono, de Renato Murce, também na Rádio Nacional. Mas nessa época Roberto Carlos estava na idade de mudar a voz e de repente não se sentiu cantando tão bem quanto antes. Chegou até a pensar que encerraria a carreira de cantor porque se surpreendia com alguns falsetes inesperados que desafinavam tudo. Entretanto, depois ele mesmo constatou que aquilo foi apenas uma breve fase de transição. Logo sua voz ficou definida e novamente afinada. E, com a confiança reconquistada, entre uma viagem e outra ao Rio, ia tentando escalar a programação das rádios cariocas. No início do ano de 1956, Roberto Carlos foi passar as férias escolares em Niterói, na casa de sua tia Jovina Moreira, a Dindinha, irmã de dona Laura. Depois de percorrer mais uma vez alguns programas de rádio, ele se convenceu de que precisava mesmo morar no Rio para tentar com mais afinco a carreira artística. Próximo do final das férias, ele voltou para Cachoeiro e decidiu então conversar com os pais e pedir para ficar morando na casa da tia em Niterói. Roberto Carlos argumentou que, para obter realmente uma chance, teria que ir todos os dias às emissoras de rádio cariocas, conhecer os bastidores da Era nos auditórios que os cantores testavam as músicas que recebiam para gravar. E só depois de passar por um microfone de rádio o cantor conseguia um bom qontrato para lançar um disco - que iria confirmar ou não o seu sucesso. Nomes como Silvio Caldas, Orlando Silva, Luiz Gonzaga e Angela Maria foram cantores do rádio antes de serem cantores do disco. Até mesmo João Gilberto, antes de criar a bossa nova, era crooner do Garotos da Lua, conjunto vocal contratado da Rádio Tupi. E eles tinham sua carteira assinada, precisavam marcar ponto e cumprir horário na emissora. Mesmo se o cantor tivesse um bom contrato com gravadora, continuava importante manter seu emprego no rádio. Aquele era o dinheiro certo no final de mês e sinal de prestígio e popularidade para o artista. Uma das perguntas mais frequentes que se fazia a um músico ou cantor era: em que rádio você atua? Quando ele não tinha o que responder, disfarçava constrangido: sou freelancer. Estar sem contrato no rádio era sinal de decadência para um cantor veterano e de falta de talento para um artista jovem. Por tudo isso, quando Roberto Carlos saiu de Cachoeiro para tentar a carreira artística no Rio de Janeiro, seu objetivo primeiro e principal era conseguir um emprego de cantor do rádio, fazer parte do cast fixo de alguma emissora. Para conseguir isso ele tinha que ir lá se apresentar, mostrar sua voz, encarar o auditório. Quem sabe, algum diretor artístico da emissora não se interessaria em contratá-lo? Com isso em mente, Roberto Carlos foi à luta. "Eu não perdia um programa de rádio que me desse a chance de cantar", afirma. O problema é que essa chance era mais difícil justamente nos programas de maior audiência e popularidade. Uma das boas vitrinas para um jovem cantor se projetar era o Programa Paulo Gracindo, grande sucesso nas manhãs de domingo da Rádio Nacional: "Está na hora louca/ de cantar assim sorrindo/ faz nascer na boca o nome do Programa Paulo Gracindo/ louras e morenas fazendo grande união/ cantando em coro exclamam todas as pequenas/ programa do meu coração...". Antes das nove horas da manhã, Roberto Carlos já estava lá com seu violão e um repertório de sambas-canções muito bem treinado. Mas havia uma competição muito grande para ser escalado no programa. As suas três horas de duração não davam para comportar todos os cantores da casa, muito menos os que pretendiam ganhar uma chance de se apresentar. Roberto Carlos tentava falar com a produção, os secretários e os assistentes do apresentador e nada conseguia. Quem sabe o próprio Paulo Gracindo não seria mais atencioso? E Roberto Carlos ficava ali pelo corredor esperando uma chance de falar com ele. "Me lembro do Roberto, bem rapazinho, encostado com um violão, sempre triste", diz Paulo Gracindo. Nem sempre era possível falar diretamente com o apresentador. Uma das poucas chances era nos intervalos comerciais, quando Paulo Gracindo deixava o estúdio para tragar um cigarro no corredor. "Seu Paulo, será que eu podia cantar hoje no programa?", perguntava timidamente Roberto Carlos. "Desculpe, meu filho, mas hoje não dá", respondia Paulo Gracindo, já apagando o cigarro. No domingo seguinte, Roberto Carlos novamente estava lá tentando uma chance. "Às vezes não dava tempo mesmo porque os contratados da Rádio Nacional tinham prioridade. E eu tinha que escalá-los no programa", justificou Paulo Gracindo anos depois. Nesse mesmo ano de 1956, um outro futuro grande nome da MPB estava frequentando o auditório da Rádio Nacional: o baiano Caetano Veloso, na época um adolescente de treze anos, que veio passar as férias escolares no Rio e decidiu estendê-las por todo aquele ano. Caetano também estava hospedado na casa de uma tia, em Guadalupe, na zona norte, e, sem mais o que fazer, quase diariamente ia para a Rádio Nacional. Mas, ao contrário de Roberto Carlos, que se infiltrava nos bastidores tentando uma chance de cantar, Caetano Veloso ficava no meio das macacas de auditório, pois queria apenas ver os ídolos no palco. Mas será que nesse entra-e-sai quase diário no edifício da praça Mauá não teria havido um encontro entre os adolescentes Roberto Carlos e Caetano Veloso? "É bem possível que tenhamos nos esbarrado. Naquele ano eu fui com uma frequência muito grande ao auditório da Rádio Nacional", diz Caetano. E bem que Roberto Carlos estava mesmo precisando fazer novas amizades. Esse período em Niterói foi bastante difícil porque ele andava muito sozinho. Estava distante de seus pais, de seus irmãos e de seus amigos de Cachoeiro de Itapemirim, que o acompanhavam em tudo desde pequenininho. Nessa época, Roberto Carlos curtiu uma saudade e uma solidão que ainda não conhecia. Em Niterói, seu único companheiro mais permanente foi o primo Alédio Moreira. Era pouco para quem desde criança andava sempre em grupo. Roberto Carlos ainda não havia encontrado sua turma no Rio, nem alguém que conhecesse os meandros do mundo artístico e pudesse apresentá-lo nas emissoras de rádio. Nenhuma daquelas pessoas que seriam importantes na sua trajetória artística, como Carlos Imperial, Erasmo Carlos e Tim Maia, tinham ainda cruzado seu caminho. Nessa fase inicial no Rio de Janeiro, Roberto Carlos tinha que batalhar uma oportunidade praticamente sozinho, na base da cara-de-pau - que ele, decididamente, não tinha. Nada conseguindo na Rádio Nacional, Roberto Carlos seguia em direção à Rádio Tupi. Quem sabe ali não poderia obter uma atenção melhor dos produtores dos programas? "Mas que esperança! Meu nome jamais constava entre os artistas escalados. E mais uma vez eu saía triste daquele prédio da avenida Venezuela", confessa o cantor. Para ele não estava sendo fácil a busca de um lugar ao sol na grande constelação de astros que brilhavam nas rádios do Rio de Janeiro. Que diferença com sua cidade Cachoeiro de Itapemirim. Ali tudo parecia mais fácil; ele mal batia e as portas já iam se abrindo. Agora tudo era diferente e ele tinha que começar praticamente do zero. Mas até quando Roberto Carlos poderia continuar sozinho nessa batalha? Dona Laura andava muito preocupada com o filho e escrevia-lhe cartas frequentemente. Como estava sua saúde? Como estava nos estudos? Como estava na carreira? No final daquele ano, Roberto Carlos não tinha notícias animadoras para dar: ele não conseguira emprego em nenhuma rádio e também não conseguira bom desempenho na escola. Não lhe foi possível conciliar a peregrinação pelas emissoras no Rio com o horário das aulas no colégio em Niterói e acabou sendo reprovado no terceiro ano ginasial. Por tudo isso, o cantor atravessou a virada do ano-novo de 1957 bastante preocupado e pensativo. Ele precisava tomar uma decisão muito séria: continuar tentando a carreira no Rio ou voltar para Cachoeiro de Itapemirim? Sim, como as coisas estavam muito mais difíceis do que imaginava, Roberto Carlos pensou em voltar para casa, para a Rádio Cachoeiro, para sua escola, para os seus amigos. E comentou sobre isso numa carta que escreveu para sua amiga Eunice Solino, a Fifinha. Datada de 20 de janeiro de 1957, a carta trata de assuntos comuns aos dois, mas no final Roberto Carlos fez um pedido à amiga: "Fifinha, se não lhe causar incómodo, peço-lhe para saber no Liceu quando é e o que é preciso para uma nova matrícula e exame de seleção. Peço-lhe também para não contar nada a ninguém sobre isso pois não é certo ainda a minha volta. Sem mais, aqui vou terminar Foi o que também disse seu Robertino, garantindo que estava em contato com alguém que poderia até conseguir um emprego público para o filho, desde que ele soubesse datilografia. Roberto Carlos foi então fazer o tal curso no Colégio Ultra. A partir daí, uma nova frente iria mesmo se abrir para ele, mas esta, decididamente, não teria nada a ver com as teclas das antigas máquinas Remington... * * * "Eu fui entrando ali como um câncer. É como um câncer que a gente vai entrando no ambiente que quer fazer parte." Erasmo Carlos C AP Í T U L O 2 LITTLE DARLING ROBERTO CARLOS E A TURMA DO SUBÚRBIO O uobop-bop-a-lum-uobop-bem-bum que Elvis Presley gritou lá de Memphis, em 1956, repercutiu como uma bomba nos subúrbios cariocas e quase abafou o bum bum bati cum dum prucu- rudum do samba do Rio de Janeiro. O bairro da Tijuca, na zona norte da cidade, foi o ponto de aglutinação de uma geração de garotos suburbanos e talentosos que sonhavam em ser americanos, vestir-se como americanos, cantar como americanos, viver como americanos. Seus ídolos eram os mesmos - e todos americanos: Elvis Presley, Little Richard, James Dean, Marlon Brando, Marilyn Monroe, Superman, Capitão América... E todos preferiam Coca-Cola a guaraná e só não passavam as tardes no McDonalds porque essa marca ainda não tinha chegado ao Brasil. O pessoal se reunia então em frente ao Bar Divino, na esquina da rua do Matoso com Haddock Lobo, próximo ao Cinema Madri e ao Instituto Lafayette. Espécie de Memphis do rock nacional, aquela esquina da Tijuca atraía garotos como Tim Maia, Erasmo Carlos, Jorge Ben (que nos anos 90 mudou o nome para Jorge Benjor), Lafayette, Wilson Simonal, Ar-lênio Lívio, Luiz Ayrão, futuros Blue Caps como Renato e Paulo César Barros, futuros Fevers como Luiz Carlos e Liebert Ferreira... Raul Seixas não andava por ali porque morava na Bahia, mas logo, logo, alguém que vivia mais perto, um capixaba chamado Roberto Carlos, estaria se enturmando naquele clube da esquina carioca - ou quase americano. As primeiras composições de Erasmo eram em inglês, embora ainda não entendesse quase nada do idioma. O fato é que ele não conseguia pensar musicalmente em português. E Jorge Ben, antes de criar seus próprios sambas-rock, gostava mesmo era de cantar, num inglês rudimentar, aquele rock de Ronnie Self: "Bop-a-lena, bop-a-lena/ she's my gal/ oh bop-a-lena, bop-a- lena,/ yeah she's my gal..." -, o que acabou lhe valendo o apelido de Babulina. Para aquela turma, Tio Sam era o seu profeta e os Estados Unidos a sua Meca. E o sonho de todos era um dia conhecer aquele país. A vontade era tanta que um dos garotos, Tim Maia, não quis esperar e se mandou para lá, aos dezessete anos, em 1959. Outro daquela turma, o baixista Paulo César Barros, chegou em Nova York nos anos 70. E, ao descer do carro que o pegou no aeroporto, fez reverência numa esquina da 7a avenida. "No momento que pisei naquela calçada eu senti uma grande emoção porque me lembrei de todos os meus ídolos, que ouvia desde garoto. E ali na 7a avenida eu vibrei dizendo: "Eles são daqui. E olha eu aqui na terra deles, pisando no chão do país que eles nasceram". Foi uma emoção maravilhosa." O triunvirato de consumo cultural daqueles garotos era formado basicamente por discos, filmes e revistas em quadrinhos americanos. E disso o que eles reproduziam eram as canções. Não se pode dizer que faziam rock de garagem porque todos cresceram sem automóvel e entre pessoas que também não tinham. Eles faziam rock de rua e, como ficavam até tarde tocando, frequentemente provocavam a ira de alguns moradores, especialmente os da esquina da rua do Matoso com Haddock Lobo. A polícia era então chamada e prendia o violão dos roqueiros. No dia seguinte, o responsável pelo garoto ia até a delegacia e pegava o instrumento de volta. Mas à noite ele estava novamente na mão da turma. Foi quando um delegado da Tijuca ficou invocado e decidiu prender os seresteiros em vez do violão. "Nós passamos várias noites na delegacia por causa dessas noitadas de rock", afirma Erasmo Carlos, revelando que não foram apenas os antigos sambistas os perseguidos pela polícia. Nos primórdios do rock no Brasil os roqueiros também o foram. A génese da turma da Tijuca foram os amigos Tim Maia e Erasmo Carlos, que moravam próximos e se viam desde os quatro ou cinco anos de idade. "Eu conheço Erasmo do tempo em que ele trocava o "r" pelo T. Ele falava "Elasmo", "galoto", "lalanja"", entrega Tim, que nasceu na Tijuca, em 1942. Erasmo Esteves nasceu no mesmo bairro, um ano antes, mas quase foi baiano. Sua mãe, Maria Diva Esteves, tinha acabado de chegar de Salvador - de onde saíra porque ficara grávida de um homem que não quis assumir a criança. Maria Diva veio com sua mãe e foi morar num quarto alugado na rua do Matoso, mudando-se mais tarde para outro quarto, na casa de seu padrinho, numa vila na rua Professor Gabizo. Distante da figura paterna, Erasmo teve infância e juventude de "filho único de mãe solteira", como ele mesmo define. Para preservar o filho de maiores traumas ou preconceitos, Maria Diva dizia que o pai de Erasmo tinha morrido antes de ele nascer. Entretanto, para surpresa do cantor, quando ele estava com 22 anos e já era um artista famoso, seu pai, o policial baiano Nilson Ferreira Coelho, resolveu dar as caras para conhecer o filho e contar a verdade. História parecida foi vivida pelo ator americano Jack Nicholson, cuja mãe ficou grávida dele muito jovem e também de um sujeito que não quis assumir o relacionamento. Para preservar a filha do estigma de mãe solteira, a avó registrou Jack Nicholson como filho, ficando a verdadeira mãe do ator como irmã dele. Só aos trinta anos - quando já era um astro do cinema - Nicholson descobriu toda a verdade. "O que realmente não me sai da cabeça é como duas pessoas conseguiram manter um segredo como esse por tanto tempo", diz o ator. Tanto no caso dele como no de Erasmo, o pano de fundo é uma época que trazia grande dificuldade para uma mulher assumir um filho fora do casamento. Maria Diva teve então que trabalhar para criar Erasmo sem o apoio do pai da criança. Ela exerceu os ofícios de empregada doméstica, lavadeira, operária, auxiliar de enfermagem, inspetora de colégio e várias outras atividades que a ajudavam a pagar o aluguel do quarto na casa do padrinho onde morava com o filho. Aliás, nessa época, o padrinho de Erasmo comia de marmita na pensão de seu Altivo Maia, pai do Tim. E este era o entregador de marmitas da pensão. Diariamente, Tim Maia saía pelas ruas da Tijuca carregando duas varetas cheias de ganchos com marmitas. Mas, frequentemente, o tempo passava e a comida do freguês não aparecia. "Meu padrinho chegava com fome, tinha pouco tempo para almoçar, coitado, e nada da marmita chegar. Ele ficava desesperado", lembra Erasmo. Certa vez, Erasmo olhou pela janela e viu o marmiteiro lá na esquina jogando bola com a garotada - enquanto as marmitas esfriavam num canto da calçada. De vez em quando, Tim ainda abria uma marmita, comia um bolinho de carne, e voltava para o campo de futebol. Erasmo correu até lá e deu uma dura nele. O estranha sensação e de trejeitos exageradamente imorais". É de se imaginar o que ele diria se na época existisse o funk carioca. O fato é que, através do cinema, o rock "n" roll se espalhou pelo mundo, chegando até os ouvidos dos rapazes da turma da Tijuca. Nas noites de sábado, Erasmo e alguns amigos costumavam ficar paquerando na praça ou às vezes entravam de penetra em algumas festas. Pois foi numa noite de sábado, no início de 1956, quando procurava mais uma boca-livre,: que ele ouviu um som muito alto vindo de uma casa na rua Afonso Pena, perto do campo do América. E o som era Rock around the clock, com Bill Haley e seus Cometas. "Nunca vou esquecer esse dia. Fiquei paralisado. Todo arrepiado. Parei em frente da festa e disse: "Meu Deus, o que é que é isso? Que coisa bonita!". Nunca senti nada tão forte", afirma Erasmo, que a partir daí não largou mais o rock"n"roll. E ele começou a procurar os programas de rádio, as revistas especializadas, os filmes. Logo depois, Erasmo descobriu o programa A Hora da Broadway, apresentado por Waldir Pinotti diariamente das cinco às seis da tarde na Rádio Metropolitana. O locutor tinha contato com alguém da embaixada dos Estados Unidos que lhe fornecia semanalmente um audioteipe do programa Your Make Believe Ballroom, com os cinqüenta primeiros lugares do Cash Box, a parada norte-americana. Waldir tirava a voz do locutor em inglês e anunciava os sucessos de Chuck Berry, Carl Perkins, Fats Domino, Gene Vicent, The Platters, The Coasters... E Erasmo ia constatando, maravilhado, que o tal de rock and roll tinha ainda mais, muito mais do que Bill Haley e seus Cometas. "Eu fiquei louco. Foi uma identificação natural e instantânea, o que eu sempre imaginei para o meu gosto, embora nunca tivesse visto nem ouvido nada daquilo antes." O rock pegou Erasmo ainda virgem musicalmente. Ao contrário de Roberto Carlos, que vinha de uma tradição romântica, fã de Tito Madi e de Dolores Duran, até então Erasmo não tinha maiores interesses musicais, a não ser pelas canções do caubói Bob Nelson no seu tempo de criança. Por isso o rock pegou mesmo Erasmo de jeito, e para sempre - o que não o tornou surdo para se encantar com a bossa nova quando essa surgiu logo depois. Erasmo foi um daqueles de sensibilidade musical aguçada o suficiente para perceber de imediato a grandeza da arte de João Gilberto. Mas, para Erasmo, a bossa nova chegou um pouco atrasada: seu corpo e sua alma já estavam tomados pelo diabo do rock"n"roll. E isto foi sacramentado quando repercutiu no Brasil a febre mundial pelo cantor Elvis Presley. Ou porque eram negros (como Chuck Berry), ou porque eram homossexuais (como Little Richard) ou porque eram feios (como Carl Perkins) ou porque já não eram tão jovens (caso de Bill Haley), nenhum dos pioneiros cantores de rock conseguiu superar os atores Marlon Brando e James Dean na preferência da garotada. A mudança aconteceu em 1956, quando Elvis Presley estreou na gravadora RCA com o single Heartbreak hotel. Branco, bonito, hétero, jovem e, além de tudo, cantando muito bem, Elvis Presley se tornou o primeiro grande fenómeno de popularidade da história do rock. Uma jovem brasileira que assistiu a um show do cantor nos Estados Unidos disse à revista O Cruzeiro; "A gente fica fascinada, e, quando o homem acaba de cantar, necessita-se ou de um banho de chuveiro ou de um psicanalista". Logo Elvis Presley fez também os seus primeiros filmes - Ama- me com ternura, A mulher que eu amo, O prisioneiro do rock"n"roll -, mantendo a dobradinha do rock com o cinema. Surpreso e encantado com o novo ídolo, Roberto Carlos ia frequentemente ao cinema Santa Alice, no Lins de Vasconcelos, para ver e ouvir Elvis Presley. "Eu sentia uma alegria, uma vontade de dançar e principalmente de cantar. As guitarras coloridas também me impressionavam muito", lembra Roberto Carlos, que aos poucos ia também descobrindo o novo ritmo e o novo som. O garoto que cresceu cantando boleros e sambas-canções finalmente parecia se identificar com uma música do seu tempo e da sua idade. No Colégio Ultra, os alunos de datilografia ficavam numa grande sala com mais de trinta máquinas de escrever, enquanto um professor circulava dando orientações básicas a cada um. E lá estava Roberto Carlos treinando nas teclas - ou catando milho, como se diz. Outro que também fazia aquele curso era o jovem Otávio Terceiro, que proporcionou ao cantor a sua primeira real oportunidade de cantar na televisão e o seu primeiro cachê no Rio de Janeiro. Na época, Otávio trabalhava com Chianca de Garcia, português radicado no Brasil, que produzia e dirigia programas de variedades, as chamadas revistas televisivas, com música, poesia e assuntos da atualidade. Mas a mãe de Otávio não via maiores perspectivas ou segurança naquele trabalho e também insistiu com o filho para que ele fizesse um curso de datilografia - pelo visto uma obsessão das mães naquela época. "Minha mãe falava nisso todo dia", lembra Otávio. Meio a contragosto, ele se matriculou naquele curso da praça da Bandeira que oferecia a matrícula e as primeiras aulas grátis. Foi no intervalo de uma daquelas aulas que ele viu um dos alunos tocando uma música de Elvis Presley ao violão. "Por que você está fazendo este curso aqui?", perguntou-lhe Otávio, curioso. "Minha mãe pediu para eu fazer", respondeu Roberto Carlos. "Ah, é? Eu também estou aqui por causa da minha mãe." E os dois ficaram ali papeando, antes de voltar para a máquina de escrever. Lá pelas tantas, quando Otávio Terceiro disse que trabalhava na televisão, Roberto Carlos arregalou os olhos e exclamou: "O quê?! Você trabalha na televisão?! Pois eu sou cantor". "Ah! É mesmo? Que bacana. Então aparece lá na TV um dia", convidou-o Otávio Terceiro. No final da aula, ele deu a Roberto Carlos o seu cartão, que o apresentava como assistente de direção dos programas de Chianca de Garcia. Para Roberto Carlos, aquilo foi o que de melhor o curso de datilografia poderia lhe proporcionar. Nunca até então ele estivera tão próximo de alguém que trabalhava na televisão. Já que não vinha obtendo muitas oportunidades de cantar no rádio, tentaria então a sorte nesse novo veículo, que há poucos anos tinha sido inaugurado no Brasil. A produtora dos programas de Chianca de Garcia - a NMBC Publicidade - ocupava todo o terceiro andar de um prédio na avenida Rio Branco, no centro do Rio. E não demorou muito para Roberto Carlos aparecer por lá, com seu violão de capa de lona preta nas costas, à procura de Otávio Terceiro. Ele o recebeu para conversar, e no momento em que tomavam um café, numa outra sala mais afastada, Chianca de Garcia escrevia os quadros para o próximo Teletur, programa de variedades, espécie de precursor do Fantástico, que ia ao ar toda segunda-feira à noite, na TV Tupi. Otávio aproveitou a oportunidade e defendeu a escalação de Roberto Carlos para aquele programa, que não costumava apresentar calouros, e sim cantores já consagrados. Chianca concordou desde que Otávio fizesse um pequeno teste com o rapaz. Roberto Carlos foi então conduzido para uma sala no fundo do escritório e ali cantou ao violão Tutti frutti, sucesso do repertório de Elvis Presley. "Que tal o gajo?", perguntou, disfarçadamente, Chianca de Garcia. "Ele canta direitinho", afirmou Otávio Terceiro, que assim garantiu a escalação de Roberto Carlos no Teletur de segunda-feira. Não seria a primeira vez que Roberto Carlos cantaria na televisão porque, aos doze anos, numa daquelas viagens que fez ao Rio com o pai, ele se apresentou no Clube do Guri, programa infantil comandado por Samuel Rosemberg na TV Tupi. Mas a estreia pra valer, na sua fase profissional, seria mesmo esta, aos dezesseis anos, em 1957. Roberto Carlos cantou Tutti frutti sentado em uma lambreta, num cenário que tinha como tema a juventude. "Roberto estava felicíssimo e muito à vontade no vídeo. Ele comunicou com muita simpatia", lembra Otávio Terceiro. "Para mim, que vivia sonhando em entrar para o rádio, aquilo foi bárbaro, porque eu achava justificava que este era um bom nome para o grupo, pois Sputnik era um nome sonoro, que apontava para o futuro, para o alto - e tudo que eles queriam era exatamente subir, subir cada vez mais. Os demais integrantes concordaram e o grupo começou os ensaios no porão da casa do Tim, na rua Barão de Itapagipe, na Tijuca. "Meu pai adorava música e curtia esse negócio de ensaio lá em casa", diz Tim Maia. De fato, principalmente porque para seu Altivo Maia era melhor ver o filho ali, cantando e tocando com os amigos, do que vagabundeando pela rua em companhia de elementos estranhos. De encrenca em encrenca, Tim Maia - que na infância era também conhecido como Tião Bolinha - não parava em nenhuma escola e acabou sendo expulso do Colégio Vera Cruz. "Ele roubava todo mundo lá dentro da escola. Roubava os objetos dos garotos mais fracos, os lápis, os doces, as merendas. Tim era um rato de porão", afirma o compositor Paulo Sette, seu colega na Tijuca. Por tudo isso, seu Altivo Maia tratava bem todos os que tocavam e cantavam com seu filho. Quem sabe uma carreira musical não colocaria Tim Maia nos eixos? Quando terminava o ensaio, seu Altivo mandava levar salgadinhos ou sanduíches ou uma rabanada que ele mesmo preparava para o pessoal. "Às vezes ele mandava descer mesmo era uma panela de feijão com arroz, batata e carne. E aí todo mundo caía de boca. Roberto Carlos principalmente. Ele comeu muitas vezes na minha casa. O bacana é que não foi uma, nem duas, nem três, nem quatro vezes. Roberto Carlos comeu várias e várias vezes lá em casa. Mais ou menos umas trinta mil refeições. Inclusive, ele está me devendo uma grana legal porque ele nunca pagou nada", brincava Tim Maia. Tim Maia era o líder musical do quarteto. "Mas era um líder muito desorganizado. Os nossos ensaios eram muito conturbados, brigávamos pra burro. Tim ficava muito nervoso e às vezes partia para a agressão", afirma Arlênio Lívio. The Sputniks se apresentavam com no máximo dois violões, um tocado pelo Tim, mais rítmico, pulsante, outro pelo Roberto, mais harmónico. Quando em algum show aparecia alguém com um baixo ou uma bateria oferecendo-se para acompanhá-los era uma festa. Mas isto era muito raro e os shows eram mesmo só com violão. No quarteto todos cantavam em harmonia vocal, com as vozes bem distribuídas. Mas, embora Tim e Roberto cantassem melhor, Wellington era o principal croo-ner porque era o único do grupo que sabia falar um pouquinho de inglês - o quarteto só cantava música americana. O repertório era montado basicamente em cima do que eles ouviam na Hora da Broadway, com destaque para a canção Little darling, composição de Maurice Williams, lançada pelo grupo Diamonds, que estava estourando na época. Era o número forte do quarteto, o seu carro-chefe, a música mais bem executada, mais bem ensaiada, com um arranjo igual ao dos Diamonds. The Sputniks cantavam Little darling com tanta perfeição que alguns até pensavam que eles estavam fazendo mímica - prática muito comum na época. A parte declamada no meio da música ("My darling I need you/ to call my own/ and never do wrong..."), ficava a cargo do vozeirão grave do mais baixinho do grupo, Ar-lênio Lívio. Já a percussão (aquele plec, plec, plec do arranjo original), era feita por Wellington com uma canequinha e uma colher pequenininha. Quatro vozes, dois violões e uma canequinha - nisto se resumia o quarteto The Sputniks. "E aquela canequinha chamava a atenção do pessoal. Nós íamos cantar em qualquer lugar sempre com aquela canequinha", lembra Arlênio. A primeira apresentação pública do quarteto foi em dezembro de 1957, num evento promovido na Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, na Tijuca. Um dos irmãos de Tim, António Maia, congregado mariano, fez a apresentação do grupo. E os Sputniks agradaram tanto que foram convidados a se apresentar nas missas dominicais pela manhã - isto quando Roberto Carlos ou Tim Maia conseguiam acordar cedo aos domingos, porque quase sempre um ou outro perdia a hora. Outra apresentação do quarteto foi na festa de aniversário do Clube Municipal, na rua Haddock Lobo. Ali, os Sputniks participaram de um concurso de calouros, ficando em segundo lugar. Um amigo de Wellington, o estudante José Campos, morador de Copacabana, viu essa apresentação do grupo e prometeu indicá-los a um rapaz que ele conhecia da praia e que estava começando um programa de rock na televisão. Seu nome: Carlos Imperial. Nenhum dos quatro Sputniks tinha até então maiores referências sobre ele. O seu programa Clube do Rock - o primeiro do género na TV brasileira - estava há pouco tempo no ar e nenhum dos Sputniks o tinha assistido ainda, até porque ninguém ali tinha aparelho de televisão em casa. Diante da possibilidade de se apresentarem na televisão, eles procuraram se informar sobre o programa e sobre o apresentador. Afinal, quem era esse tal de Carlos Imperial? Carlos Eduardo Souza Monteiro Costa da Corte Imperial nasceu em novembro de 1935, em Cachoeiro de Itapemirim, no mesmo mês e ano em que seu pai tornou-se prefeito da cidade. Gabriel da Corte Imperial era procurador da Fazenda Municipal e assumiu a prefeitura - para um mandato-tampão até janeiro de 1937 -, quando o titular, Brício Mesquita, saiu para ocupar a cadeira de deputado na Assembleia. O pomposo sobrenome de Carlos Imperial se originou em Vila de Itapemirim, um lugarejo vizinho, onde viveu seu tataravô, o barão de Itapemirim, um nobre da Corte Imperial. "Aí alguém muito inteligente da minha família teve a ideia de incorporar este título de nobreza ao nosso sobrenome", gabava-se. Carlos Imperial morou em Cachoeiro até os sete anos, pois em 1942 seu pai deixou o emprego público na cidade para comandar o Banco Mercantil, recém-instalado no Rio de Janeiro. E foi na zona sul carioca que cresceu e se formou o gordo e alto Carlos Imperial, que na infância tinha o não muito singelo apelido de Brucutu. Como um típico integrante da elite económica, ele frequentava o Country Club e passava feriados e finais de semana na casa da família em Petrópolis. E o garoto era recomendado a não se misturar com pessoas de outra classe social. Quando aparecia com uma nova namoradinha no Country, por exemplo, no outro dia seu pai logo lhe chamava a atenção. "Meu filho, que moça é aquela que você levou ontem ao Country Club? Ela é filha de quem? Já me telefonaram e disseram que ela não tem nada a ver com a sociedade e que foi até rejeitada pelas outras moças." Imperial recorda que certa vez se apaixonou por uma garota, filha de um sócio de restaurante no Leblon. "O quê?! Você está saindo com a filha de um sócio de restaurante?!", protestou seu pai. "Para minha família, eu só devia namorar com uma moça filha de alguém, que falasse francês e tocasse piano." Mandando tudo isso às favas em 1957, aos 22 anos, Carlos Imperial mergulhou no universo proletário do rock"n"roll, iniciando- se na carreira artística como dançarino e apresentador de programas de televisão. O seu Clube do Rock ia ao ar às terças-feiras, às 12 e 45 da tarde, na TV Tupi. No início era apenas um quadro de quinze minutos dentro do programa Jacy Campos -que cedeu o espaço para aquela nova onda musical que estava surgindo. "E agora com vocês o tão esperado Clube do Rock: one, two, three, four, five, six, seven...". O programa começava ao som de Rock around the clock e imagens de bailarinos dançando o ritmo da moda. Em meio à animação, Carlos Imperial mandava o público tirar o tapete da sala e colocar os móveis no corredor - bordão que repetiria ao longo do tempo em vários outros programas. Os Sputniks chegaram às onze e quinze da manhã na porta da TV Tupi e ali ficaram à espera de Carlos Imperial. Quando ele apareceu, o quarteto se aproximou pedindo a chance para se apresentar no programa. "Mas o que vocês cantam?", quis saber Imperial. Como não poderia deixar de ser, eles responderam quase em tornando conhecido para a meninada que via o programa", diz Roberto Carlos. Nesses shows, além de Roberto Carlos, o "Elvis Presley brasileiro", e de Tim Maia, o "Little Richard brasileiro", Carlos Imperial lançou uma nova atração: Wilson Simonal, apresentado por ele como o "Harry Belafonte brasileiro". Naquele momento, Simonal começava sua carreira cantando calipso e cha-chachá, tudo no rastro do cantor norte-ameri-cano que havia estourado nas paradas com The banana boat song (Day-o). E era exatamente esse hit o carro-chefe dos primeiros shows de Simonal. E foi assim que, naquele início de 1958, Carlos Imperial tinha sob suas asas uma trinca que faria história na MPB: Roberto Carlos, Tim Maia e Wilson Simonal; três garotos suburbanos e talentosos, enfrentando toda barra de preconceitos para se firmar como ídolos da música popular. E logo, logo, Carlos Imperial também teria nas mãos mais um jovem suburbano de talento: Erasmo Esteves, que ficaria mais conhecido pelo nome artístico de Erasmo Carlos. Ao contrário de Elvis Presley, que não fazia shows fora do território americano (sua única apresentação no exterior foi no Canadá), Bill Haley costumava sair em turnês pela Europa e América Latina. E em abril de 1958 veio se apresentar no Brasil, com espetáculos marcados para São Paulo e Rio de Janeiro. Carlos Imperial foi contratado para organizar o pré-show do astro americano no Maracanãzinho. Grande parte da sua turma de cantores e dançarinos do Clube do Rock teria uma chance de se apresentar. Entre eles estava o "Elvis Presley brasileiro", Roberto Carlos. Era uma chance de ouro, cantar ao vivo para um grande público e, provavelmente, para empresários e músicos norte-americanos que acompanhavam Bill Haley. E se o próprio Bill Haley decidisse chegar mais cedo ao ginásio para ver as atrações brasileiras? Por tudo isto, Roberto Carlos se preparou com muita antecedência para esse show. Ele cantaria apenas uma música - e não podia errar. Roberto Carlos decidiu cantar um número novo do repertório de Elvis Presley. Não mais Tuttifrutti ou Jailhouse rock, que ele costumava apresentar na televisão, mas uma música nova cantada por Elvis Presley: Hound dog. O problema é que ele não tinha a letra daquela música para ensaiar corretamente o número. Foi quando Arlênio Lívio - seu ex-compa-nheiro de Sputniks - disse que conhecia a pessoa certa para ele procurar: Erasmo Esteves, um cara ali da Tijuca que colecionava tudo sobre Elvis Presley: fotos, figurinhas, pósteres e todas as letras das músicas do rei do rock. Ok, era isso mesmo que Roberto Carlos precisava. E numa tarde de abril de 1958, ele foi com Arlênio Lívio, e mais um amigo comum de ambos, Edson Trindade, bater à porta da casa do tal Erasmo Esteves (que ainda não era Carlos). Roberto e Erasmo já se conheciam de vista desde o final de 1957, quando Roberto Carlos passou a se encontrar com o pessoal que frequentava o Bar Divino. Mas ali os dois não chegaram a travar maiores contatos, eram encontros esporádicos, rápidos; às vezes, quando um chegava, o outro já estava saindo. Por insistência de sua mãe, no início de 1958 Erasmo foi também estudar datilografia no Colégio Ultra, na Tijuca, onde Roberto Carlos àquela altura estava cursando o supletivo. Os dois se esbarravam pelos corredores do colégio, mas ali também não chegaram a ter uma apresentação formal. Isto só aconteceu mesmo em abril de 1958, quando Roberto Carlos precisou da letra de Hound dog. "Roberto, este é o Erasmo, o cara que sabe tudo de Elvis." Foi com essas palavras que Arlênio Lívio colocou em sintonia a dupla Roberto e Erasmo. "Eu já conheço você da televisão", afirmou Erasmo, deixando Roberto feliz ao ser reconhecido como artista. E de fato, além de se esbarrarem ali pela Tijuca, Erasmo já tinha visto Roberto Carlos cantar no Clube do Rock, quando Carlos Imperial o anunciava como "o Elvis Presley brasileiro". Erasmo logo abriu um caderno e pegou a letra de Hound dog, mostrando a Roberto Carlos que era realmente colecionador de tudo relacionado ao rei do rock. E tinha também uma outra coisa que imediatamente chamou a atenção de Roberto Carlos: a sua maneira de andar, o jeito de corpo de Erasmo era igual ao de Elvis Presley. "Eu via todos os filmes de Elvis e prestava atenção nos mínimos detalhes", explica Erasmo. Roberto também via aqueles filmes e por isso soube identificar os movimentos à la Elvis que Erasmo fazia. "E quando a gente comentava, mais ele fazia parecido", afirma Roberto Carlos. Erasmo tinha um velho violão de cravilha de madeira, presente de sua avó, que até então nunca tinha dedilhado. Pois Roberto Carlos pegou aquele violão, afinou-o mais ou menos e nele fez alguns bordões de Hound dog. Não era o Elvis Presley em pessoa, o que seria demais, mas era o Elvis Presley brasileiro - o que para Erasmo já era muito bom. "Eu fiquei maravilhado. Pô, ele estava ali tocando na minha casa, uma música de Elvis e com o meu violão. O rock"n"roll nos tornou amigos", afirma Erasmo. Demorou um pouco até que Roberto e Erasmo começassem a parceria musical - a primeira composição assinada pela dupla seria feita cinco anos depois. Mas naquela tarde de abril de 1958 eles logo descobriram muitas afinidades. Embora um tenha nascido no interior do Brasil e o outro na zona norte carioca, ambos estavam envolvidos por aquele universo adolescente criado pela música e o cinema americano. Os dois eram fãs de Elvis Presley, James Dean, Marlon Brando, Marilyn Monroe... Mas Roberto e Erasmo também se descobriram torcedores de um mesmo time, o Vasco da Gama, gostavam das mesmas revistas em quadrinhos, dos mesmos modelos de automóveis e, surpresa, ambos tiveram Bob Nelson como o primeiro ídolo na infância. Para eles, esta foi uma surpreendente identificação. Era a primeira vez que conheciam alguém que também sabia de cor antigas canções como Minha linda Salomé e Boi Barnabé. Anos mais tarde, eles até sacramentaram essa admiração pelo cantor caubói ao comporem a canção A lenda de Bob Nelson, gravada por Erasmo Carlos. Ao final daquele encontro, quando se dirigia para a porta de saída com a letra de Hound dogna mão, Roberto fez um convite a Erasmo: "Aparece lá na televisão, o pessoal é legal". Não precisou pedir duas vezes. Na terça-feira seguinte lá estava Erasmo na porta da TV Tupi, na Urca, esperando Roberto Carlos chegar. "Eu faltei ao trabalho naquele dia. Inventei uma desculpa para o patrão e fui para lá", diz Erasmo. Não demorou muito ele avistou Roberto Carlos e o pessoal do Clube do Rock se aproximando. Com um pouco de timidez, Erasmo foi falar com Roberto. "Oi, bicho, está lembrado de mim? Você esteve lá em minha casa, na Tijuca." "Claro, vamos entrando aí, vamos entrando", disse Roberto. E Erasmo foi mesmo entrando, entrando... e de repente já estava lá começando sua carreira de artista. "Aquele convite mudou a minha vida, bicho!", reconhece Erasmo. De fato, até aquele dia em que Roberto Carlos lhe foi apresentado, Erasmo ainda não sabia que rumo dar na sua vida. Era apenas um adolescente sem qualquer relação com a carreira artística. Perto dele, Roberto Carlos até poderia se considerar um veterano da música. Afinal, Roberto cantava em rádio desde criança, aparecia na televisão e agora ia cantar no pré-show de Bill Haley como o Elvis Presley brasileiro. Já Erasmo era apenas um ouvinte de rock"n"roll. Não sabia tocar, não cantava nem compunha. E não tinha contato com ninguém do meio artístico. Seus amigos da Tijuca eram ainda todos amadores. Mas agora tinha conhecido alguém daquele universo da música popular que ele de longe tanto admirava. "Roberto foi o elo entre a minha vida de incertezas e a minha vida concreta. Eu tinha dezessete anos e não sabia que profissão seguir, não sabia de nada. Eu vivia naquela incerteza própria da idade. Roberto apareceu na minha vida justamente nessa época e me trouxe para o mundo com o qual me identifiquei", afirma Erasmo. artística e, em maio de 1958, formou um novo quarteto vocal - para o qual convidou três outros amigos tijucanos: Edson Trindade, José Roberto, o China, e Erasmo Esteves. Àquela altura, Erasmo já estava convencido de que tinha algum talento para a música e decidiu parar de trabalhar em qualquer outra atividade, arriscando tudo na carreira artística. "Com complexo de culpa, me sentindo o cafetão de mãe, que trabalhava enquanto eu ficava em casa. Eu passava as tardes compondo." Um dos últimos trabalhos de Erasmo foi o de recepcionista num escritório de advogado. "Acontece que a mulher dele era cega e paralítica, e ficava me enchendo a paciência para eu contar pra ela tudo o que o marido fazia, quem tinha ido visitá-lo etc. Eu não agüentei, né?" Inicialmente eles batizaram o quarteto de The Boys of Rock e tinham a pretensão de disputar popularidade com os Golden Boys, outro conjunto vocal do subúrbio carioca que naquele momento despontava nas paradas de sucesso. "Quando eles passavam, a gente cochichava: "Hum, lá vêm eles! Lá vêm eles! Finge que não vê, finge que não vê"", lembra Erasmo. Assim como o dos Golden Boys, o repertório do The Boys of Rock era basicamente internacional, temas dos Del Vikings, Only you e Blue moon, que eles ensaiavam em cima da gravação original, botando o disco para rodar e cantando juntos. The Boys of Rock estrearam em um show promovido na Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, na Tijuca. Talvez não tivessem ensaiado o suficiente, porque logo na primeira música Erasmo entrou cantando fora do tom. "Aquilo pra mim foi um arraso. Quando terminou o show eu saí correndo pelas ruas chorando, meus amigos atrás de mim. Todo mundo me consolando e eu jurava que nunca mais iria pisar num palco." Essa decisão só durou até o dia seguinte, quando os quatro rapazes voltaram com mais garra aos ensaios. Não tardou muito e Carlos Imperial os convidou para participar de shows promovidos pelo Clube do Rock - mas sugeriu que mudassem o nome do quarteto para The Snakes (Os Cobras), o que acabou acontecendo, porque confiavam em Imperial. Além de apresentarem seu número solo, invariavelmente Blue moon, o carro-chefe do quarteto, eles passaram também a acompanhar Roberto Carlos ou Tim Maia em músicas que exigiam um arranjo de vocal. No início, nenhum dos quatro Snakes sabia tocar violão e em suas apresentações precisavam contar com o auxílio de algum violonista de plantão, invariavelmente Tim Maia ou Roberto Carlos. O problema é que na maioria das vezes o quarteto fazia o pré- show para Tim e Roberto e nenhum dos dois queria aparecer antes no palco para não queimar a atração. A solução era o violonista tocar escondido atrás das cortinas no momento em que os Snakes se apresentavam no palco. Por tudo isso, Erasmo foi percebendo que já era hora de também aprender a tocar violão. "Tim me ensinou os três primeiros acordes: lá, ré e mi maior. E eu descobri que com eles podia tocar uns quinhentos rocks. Era só inverter os acordes porque era tudo parecido mesmo." Em pouco tempo, Erasmo já estava acompanhando os Snakes - e os serviços de Roberto e Tim foram dispensados. Mas a recíproca não é verdadeira, porque os dois cantores continuaram requisitando os Snakes para fazer vocal em seus shows, que às vezes eram anunciados como Roberto Carlos & The Snakes ou Tim Maia & The Snakes. Uma das primeiras questões que Erasmo quis resolver foi a escolha de seu nome artístico. Ele se sentia incomodado a cada vez que algum apresentador o anunciava pelo nome Erasmo Esteves. "Pô, eu já entrava pequenininho no palco. Não achava legal este nome. Eu entrava humilhado." Erasmo decidiu então pedir aos locutores para anunciá-lo sem citar o sobrenome Esteves. "E agora, com vocês, Erasmooo!", anunciava o locutor Jair de Taumaturgo. Aí foi pior, bicho. Só Erasmo não deu. Este nome não dizia nada. Picava faltando alguma coisa." Depois de muito pensar, Erasmo teve um estalo: por que não adotar também o mesmo nome Carlos dos amigos Roberto Carlos e Carlos Imperial? Se o Carlos estava dando certo para eles, haveria de ser bom para ele também. E essa ideia se firmou de vez em sua cabeça quando ele leu numa revista que Carlos é um nome que representa cinco divindades: "C" de Cristo, rei dos reis; "A" de águia, rainha dos pássaros; "R" de rosa, rainha das flores; "L" de leão, rei dos animais; "O" de ouro, rei dos metais e "S" de sol, rei dos astros. "Quando eu li esse negócio, eu falei: quero esse nome pra mim também." E assim ele decidiu pelo nome artístico de Erasmo Carlos. Mas Roberto Carlos não gostou da ideia e protestou com o amigo. "Porra, bicho, vai ficar muito Carlos na jogada. Vai ser Carlos pra lá, Carlos pra cá, assim não dá." Como Erasmo não lhe deu ouvidos, Roberto foi falar com Imperial para que este também tentasse demover o outro de usar aquele nome. "Você tem que tirar de Erasmo esta ideia de colocar Carlos no nome dele, porque vai ficar um festival de Carlos, isto não é legal pra nós." Imperial não deu a mínima importância ao caso, até porque Erasmo, que estava atuando como seu secretário particular, já tinha até mandado fazer cartões com a inscrição: "Erasmo Carlos, cantor". E assim ficou. O secretário Erasmo garimpava informações para o chefe e, às vezes, ele próprio plantava algumas notas na coluna assinada por Imperial. "Erasmo Carlos. Guardem este nome. Este rapaz da Tijuca vai dar o que falar." No final dos anos 50, o rock"n"roll pareceu entrar em franca decadência, com alguns de seus principais astros morrendo, se afastando ou tendo a carreira seriamente abalada. O marco dessa fase foi março de 1958, quando, numa decisão surpreendente, Elvis Presley foi servir ao exército, deixando a carreira artística de lado por dois anos. Sem o seu rei, o rock ficou à deriva. Naquele mesmo ano, Jerry Lee Lewis foi execrado e teve seus shows cancelados depois que se tornou público seu envolvimento com uma prima de treze anos. Já Little Richard, após afirmar ter visto Deus, resolveu deixar o rock para se tornar pastor evangélico. Outro pioneiro, Chuck Berry, acabou indo para a cadeia sob a acusação de usar menores em sua casa noturna. E, como se não bastasse, em fevereiro de 1959, um acidente de avião matou o ídolo Buddy Holly, além de Ritchie Valens e os roqueiros do The Big Bopper. Por tudo isso, naquele final de década havia um clima de fim de festa no universo do rock"n"roll. Era como se aquilo tivesse sido apenas uma onda que agora chegava ao fim. E isso não era uma boa notícia para alguém que se apresentava como o Elvis Presley brasileiro. Sem patrocínio, o programa Clube do Rock saiu do ar e seu apresentador Carlos Imperial viajou para o exterior. A turma ficou meio sem orientação, afinal, ali ninguém tinha maiores experiências. Foi quando surgiu um vendedor de shows, Ataliba Santos, que prometeu fazer um grande trabalho com eles, repetindo as caravanas do programa de Carlos Imperial. E lá foram Roberto Carlos, Tim Maia, Wilson Simonal, The Snakes e outros percorrer a estrada em circos, clubes e feiras. "Acabamos indo parar em Volta Redonda, catando cacos de shows", lembra Roberto Carlos. "Fizemos um monte de apresentações e estamos para receber até hoje", cobra Arlênio Lívio. Com Elvis Presley no exército, Little Richard na igreja, Chuck Berry na prisão e Carlos Imperial no exterior, tudo parecia mais difícil para a turma de roqueiros da Tijuca. Sem o Clube do Rock, Roberto Carlos ficava sem espaço para se apresentar na televisão. No rádio ele também continuava sem muita chance, pois ainda prevalecia a preferência por cantores de vozeirão. Para onde ir então, Roberto Carlos? Na infância imitando Bob Nelson e cantando o repertório de Nelson Gonçalves, mais tarde, em Niterói, a influência de Tito Madi e Dolores Duran. Agora sua fase de "Elvis Presley brasileiro" parecia também ter chegado ao fim. O que fazer? Para onde ir?. Numa tarde de sábado Roberto Carlos chegou cansado e desanimado à sua casa no subúrbio de Lins de Vasconcelos. E de repente, uma voz e um violão irromperam no rádio: "Vai minha boate, e não de uma boate qualquer, e sim da badalada boate Plaza, que era chamada de "a jóia de Copacabana". O cantor não teve dúvida: foi lá falar com a prima e com o marido dela, Amaral Ribeiro. Roberto Carlos mostrou pra ele seu repertório de bossa nova e sambas-canções e se disse disposto a encarar a maratona de um cantor da noite. Amaral prometeu que, assim que surgisse uma vaga, esta seria dele. Roberto Carlos ficou na cola e, no início de 1959, véspera de completar dezoito anos, foi contratado para cantar no Plaza, conseguindo assim seu primeiro emprego e seu primeiro salário com a música - seis mil cruzeiros antigos mensais. Por ser menor de 21 anos - na época, a idade mínima exigida para trabalhar em casas noturnas -, Roberto Carlos precisou de uma autorização especial assinada por seu pai. "O primeiro dia que cantei na boate Plaza foi inesquecível. Aquilo foi uma felicidade, uma maravilha, eu me senti um profissional. Pra mim, que tinha vindo de Cachoeiro, cantar naquele nightclub de Copacabana foi um negócio sensacional", afirma o cantor. Naquele ano o Rio de Janeiro ainda era a capital da República e por seus bares e boates circulavam a elite política e cultural do país. A grã-finalha, empresários, ministros e senadores frequentavam boates como o Sachais, o Vogue, o Fred"s e o Drink"s. Já artistas e intelectuais preferiam as boates do Beco das Garrafas e, naturalmente, a boate Plaza, um sinónimo de vanguarda e de renovação musical na noite carioca. Inicialmente apenas um bar, o Plaza firmou-se como um dos espaços míticos da bossa nova porque ali, antes de se tornarem famosos, davam canjas músicos como João Gilberto, Johnny Alf, João Donato e Luizinho Eça, ainda de calça curta tocando acordeom. Mais tarde, o bar do hotel Plaza fechou para se construir um espaço maior, a boate, que entre o palco e as mesas tinha uma pista para uns 20 casais dançarem agarradinhos. E era nessa boate de classe, bonita, bem decorada, que Roberto Carlos iria agora desfilar sua voz. "Ali eu não podia cantar rock. Mas fiquei à vontade cantando da maneira que fazia em casa, muito parecido com João Gilberto", afirma o cantor. E a tal batida de João Gilberto, ele fazia direitinho? "Bossa nova eu só cantava. Não tocava aquele violão todo, não." Como um típico crooner de boate, Roberto Carlos se apresentava uniformizado de terno e gravata, sendo acompanhado ora pelo conjunto de Bola Sete, ora pelo conjunto do tecladista Zé Maria ou pelo conjunto do pistonista Barri-quinha, cujo pianista era João Donato. "Donato é um bicho muito louco, e ele me incentivava muito, me explicava as coisas, dizia: "Você tem que balançar um pouco mais, tá legal, afinadi-nho, mas tem que ter mais balanço", lembra Roberto Carlos. Em algumas noites, Roberto Carlos cantou acompanhado pelo piano de Vadico, ex-parceiro de Noel Rosa, que na época também trabalhava na noite. No Plaza, os shows eram divididos em duas partes: a nacional e a internacional. A primeira ficava a cargo de Roberto Carlos e de sua colega, a cantora Geny Martins. Os dois faziam blocos de meia hora, alternadamente, aquecendo o público para a principal atração da boate Plaza, o saxofonista americano Booker Pittman, que conduzia a parte internacional do show. Amigo de Louis Armstrong desde os tempos de juventude em Chicago, Pittman veio morar no Brasil no início dos anos 50, inicialmente em São Paulo e depois no Rio, contratado especialmente para tocar no Plaza. Mas ali nada era muito rígido e, às vezes, Roberto cantava acompanhado pelo Booker Pittman ou fazia a parte internacional quando era dia de folga do músico americano. Depois que começou a trabalhar na boate Plaza, Roberto Carlos perdeu um pouco o contato com o pessoal da Tijuca. O cantor chegava em casa sempre ao amanhecer e passava o dia dormindo, se recuperando para à noite estar em forma outra vez. Imerso nessa rotina diária, não sobrava muito tempo para vagar até a esquina da rua do Matoso. Mas certa vez, num dia de folga do trabalho, ele se encontrou com Erasmo e contou-lhe as novidades: ele era agora um cantor de bossa nova, crooner da boate Plaza. E disse com quem tocava e para quais personalidades costumava cantar naquela boate. Erasmo ouviu tudo maravilhado e revelou que também tinha novidades: embora continuasse vocalista dos Snakes, ele era agora um compositor, autor de letra e música, e não apenas de rock. E mostrou para o amigo um tema que tinha acabado de compor: Maria e o samba. "O meu coração/ obedece a uma voz/ Maria, meu bem/ e o samba também..." Roberto Carlos elogiou, pediu para ele cantar outra vez e anotou a letra numa folha de papel. Ao final do encontro, disse para Erasmo aparecer qualquer noite lá no Plaza para ouvi-lo cantar seu samba. Não precisou pedir duas vezes. Dias depois lá estava Erasmo na porta da boate. Mas houve um pequeno imprevisto, porque Roberto se esquecera de dizer ao amigo que ninguém entrava no Plaza sem paletó. E Erasmo apareceu de camisa esporte, aliás, o único tipo que tinha. A solução foi Roberto Carlos pedir emprestado o paletó reserva do porteiro da boate. Erasmo foi acomodado numa mesa próxima da saída para o Hi-Fi Society, um anexo do Plaza, por onde circulavam mais meninas. "Bicho, mas como é que funciona o esquema aqui, quanto custa uma cuba-libre?", quis saber o visitante. Roberto explicou que o negócio ali era meio caro, mas que o amigo podia pedir uma cuba- libre, esta ficaria por sua conta. E assim, com um paletó emprestado pelo porteiro e uma bebida garantida pelo crooner, Erasmo tirou uma onda naquela noite na boate Plaza. "Eu ali, um suburbano, naquele lugar, imagina! Eu ficava impressionadíssimo com as mulheres de lá. Era cada mulherão!" Nos intervalos, Roberto Carlos ficava na mesa papeando com ele, mas lá pelas tantas, se levantou, foi ao palco e cantou a composição Maria e o samba. "Puxa vida, ele ficou radiante de ouvir a musiquinha dele cantada ali no Plaza", lembra Roberto. "Eu chorava. Pô!, era o meu samba", afirma Erasmo, que naquela noite pela primeira vez ouviu uma música de sua autoria na voz de Roberto Carlos. E como já estava mesmo tarde demais, Erasmo agradeceu ao amigo, devolveu o paletó ao porteiro e voltou para casa feliz da vida. Outra visita que Roberto Carlos recebeu no Plaza - e esta muito mais consequente para ele na época -, foi a de seu conterrâneo Carlos Imperial, recém-chegado da viagem aos Estados Unidos. Imperial passava em frente da boate Plaza quando viu a foto de Roberto Carlos em um pequeno cartaz que anunciava as atrações daquela noite na casa. Era pouco antes das dez horas e naquele momento Roberto Carlos estava num canto, fazendo um pequeno aquecimento da voz, se preparando para subir ao palco. Imperial chegou por trás e bateu- lhe nas costas. "Ô, meu filho, o que faz você aqui no Plaza? Vi seu retrato na porta. O que está acontecendo?" Roberto Carlos informou-o então que havia deixado o rock e que agora era um cantor de bossa nova. "O quê? Bossa nova?", espantou-se Imperial, emitindo uma sonora gargalhada amplificada pela boa acústica da boate Plaza. Imperial costumava frequentar aquela boate em noites de jam sessions e nunca pensou que poderia encontrar ali o Elvis Presley brasileiro, ainda mais cantando bossa nova. Roberto Carlos então explicou que depois de ouvir João Gilberto tudo mudou para ele e que aquela fase de rock era agora coisa do passado. Imperial sentou-se a uma mesa e ficou ali para ver e crer. Naquela noite, acompanhado pelo conjunto de Bola Sete, Roberto Carlos desfilou mais uma vez canções do repertório de Dolores Duran, Tito Madi e de Tom Jobim, principalmente aquelas do primeiro álbum de João Gilberto. "Eu gostei, achei muito bacana ele cantando bossa nova", afirma Imperial. E naquela noite mesmo, Imperial vislumbrou que aquele garoto poderia obter uma chance de gravar na Chantecler? Cheios de esperança, no dia seguinte, no horário marcado, Roberto e Carlos Imperial voltaram à churrascaria. Chacrinha mediou o encontro e pediu para Roberto Carlos mostrar sua bossa nova para João Leite. Roberto Carlos empunhou o violão e cantou aqueles dois temas de Carlos Imperial: Fora do tom e Felicidade. Devido ao grande movimento na churrascaria, um local realmente pouco indicado para se ouvir canções intimistas, João Leite marcou uma audição para o dia seguinte em seu escritório, no centro do Rio. Lá Roberto Carlos desfilou novamente seu repertório de bossa nova e João Leite pareceu particularmente interessado em ouvi-lo cantar Fora do tom, composição na qual Imperial glosava Desafinado e outras canções de Tom Jobim: "Cheguei, sorri, venci/ depois chorei com a confusão/ no tom que vocês cantam eu não posso nem falar/ nem quero imaginar que desafinação/ se todos fossem iguais a vocês...". Roberto Carlos cantou esse tema umas três vezes para ele. No dia seguinte, João Leite ligou para Imperial dizendo que gostou da canção Fora do tom, mas não aceitava o cantor Roberto Carlos. Ele queria aquela música para gravar com Paulo Marques, recém-contratado pela Chantecler, e que estava preparando seu disco de estreia na gravadora. Carlos Imperial foi categórico: sua composição só iria junto com o cantor, fora isso, nada feito. Imperial não estava realmente interessado em simplesmente gravar sua música. Mais do que isso, Imperial queria lançar um novo cantor, produzir seu disco, divulgá-lo... Por isso, só aceitava o pacote completo e, além do mais, ele nem conhecia o cantor Paulo Marques. Enfim, para Carlos Imperial naquele momento era tudo ou nada. João Leite não aceitou e ele foi com Roberto Carlos bater em outra porta. Mais uma vez Imperial pediu ajuda ao < Chacrinha, que fez uma carta de recomendação, indicando que ele levasse Roberto Carlos para ser ouvido na Copacabana Discos. Ali Roberto Carlos poderia ter como colegas Dolores Duran, Elizete Cardoso, o palhaço Carequinha e outros artistas contratados da época. O diretor da gravadora era o compositor Braguinha, mas ele não participou da audição; tinha coisas mais importantes a fazer do que acompanhar testes de jovens cantores. Roberto Carlos cantou então para um dirigente de plantão e este também não aprovou o cantor. "Ele não tem qualidades artísticas", justificou. Três dias depois, Imperial e Roberto Carlos foram tentar a sorte na Continental, outra gravadora nacional. Esta tinha fábrica própria e uma boa divulgação, que garantia o sucesso de seu cast formado na época por cantores como Ângela Maria, Jamelão e Carlos José. Ali Imperial e Roberto Carlos esperaram horas para ser atendidos. E dessa vez Roberto Carlos nem conseguiu cantar a segunda música. Sem muito tempo ou paciência, o diretor artístico encerrou o teste, não se interessando pelo cantor. "Vozes como a dele aparecem vinte por dia", justificou a Imperial. Em seguida eles tentaram uma cartada mais ousada: a poderosa Odeon, a gravadora de João Gilberto, Anísio Silva e Celly Campello. Imperial conseguiu marcar uma audição com o diretor artístico Aloysio de Oliveira, o mesmo que contratara João Gilberto. Quem sabe ele poderia também se interessar por Roberto Carlos. Não foi o que aconteceu e mais uma vez Roberto Carlos voltou para casa sem ter onde gravar seu primeiro disco. Nessa época, Roberto Carlos andava com vistosas olheiras porque percorria as gravadoras durante o dia e trabalhava na boate Plaza à noite, chegando em casa ao amanhecer. Mas esta era a única forma de conseguir alguma coisa. E, de posse de uma já surrada carta de recomendação do Chacrinha, ele foi com Imperial bater à porta da gravadora Polydor -que pouco depois seria comprada pela Philips. A representação da Polydor no Brasil era fraca, não tinha um grande elenco nem estúdio próprio, mas o selo era de uma gravadora alemã de grande porte, a Deutsche Grammophon. A Polydor tinha lançado o cantor Agostinho dos Santos e naquele ano de 1959 emplacara um grande sucesso nacional, a balada Quem é?, gravada na voz do próprio autor Osmar Navarro: "Quem é/ que te cobre de beijos/ satisfaz seus desejos/ e que muito lhe quer...". Imperial e Roberto Carlos foram recebidos na Polydor pelo diretor artístico Joel de Almeida - ex-integrante da dupla Joel e Gaúcho, que nos anos 30 e 40 emplacou vários sucessos de carnaval. Naquele momento já afastado da carreira de cantor, Joel de Almeida se dedicava à administração da gravadora. Joel recebeu Roberto Carlos em seu escritório, no centro do Rio, e ali o cantor mostrou dois daqueles temas de bossa nova compostos por Carlos Imperial e um do repertório de João Gilberto. Como ocorria na época com a maioria dos cantores da velha guarda, Joel de Almeida não se entusiasmava muito com bossa nova e não demonstrou maior interesse por Roberto Carlos; mas é provável que não se entusiasmasse nem mesmo com o próprio João Gilberto. Chamou a sua atenção, entretanto, o fato de que o garoto cantava realmente parecido com João Gilberto, e isto poderia ser interessante comercialmente, especialmente cantando aquela canção Fora do tom, que glosava Desafinado. Além disso, Joel de Almeida alimentava uma velha rivalidade com Aloysio de Oliveira, o diretor artístico da Odeon. Os dois se estranhavam desde os velhos tempos do rádio, quando Joel fazia dupla com Gaúcho e Aloysio pertencia ao conjunto Bando da Lua. E Joel viu naquele garoto que imitava João Gilberto uma boa chance de provocar Aloysio de Oliveira, que se gabava de ser o lançador do papa da bossa nova. Por tudo isso, ao contrário dos diretores das outras gravadoras, Joel de Almeida aceitou gravar um disco com Roberto Carlos na Polydor - com a recomendação de que ele acentuasse ainda mais na imitação de João Gilberto. Definida a contratação, em julho de 1959 Roberto Carlos entrou no estúdio para gravar o primeiro disco de sua carreira. A gravação foi no estúdio da Philips, no Rio, que a Polydor alugava para seus artistas. Acompanhado por um conjunto rítmico da Polydor, que se esforçou para fazer o estilo bossa nova, Roberto Carlos gravou a primeira das duas faixas do 78 rpm, Fora do tom, de Carlos Imperial, e em seguida João e Maria, composição dele com Imperial, que acabou ficando com o lado A do disco. Um dos momentos mais emocionantes da carreira de Roberto Carlos foi quando ele chegou ao escritório da gravadora e recebeu o seu disco nas mãos. Ele lia e relia seu nome no rótulo, virava o disco de lado, revirava, olhava novamente. Era verdade, lá estava: Roberto Carlos, Polydor, João e Maria e Fora do tom. "Saí da gravadora com o disco debaixo do braço, feliz da vida. Tomei um trem para Lins de Vasconcelos e quando cheguei em casa dei o disco de presente para minha mãe", recorda Roberto Carlos. Dona Laura abraçou e beijou o filho, pois sabia que desde que ele cantara pela primeira vez no rádio, aos nove anos, sonhava com esse momento. Mas nem ela nem o marido ou outros filhos puderam ouvir o primeiro disco de Roberto Carlos imediatamente. Naquela época não tinha vitrola na casa de Roberto Carlos. Em outubro daquele ano, a estreia discográfica do novo cantor foi comentada na coluna "Discos" do jornal carioca Última Hora, na primeira crítica que Roberto Carlos mereceu na imprensa brasileira. "Agora é que a coisa vai piorar. Vão aparecer mil e um cantores tipo João Gilberto e ninguém vai aguentar mais. João sozinho é bom demais. A sátira de Carlos Imperial é interessante. Porém, falta alguma coisa ao jovem cantor." Como se vê, Roberto Carlos foi recebido mais como uma espécie de Juca Chaves do que como um novo João Gilberto. E, de fato, as duas faixas do disco, especialmente Fora do tom, estavam mais para Presidente bossa nova, que Juca Chaves lançaria no ano seguinte, do que para Chega de saudade. Tanto a letra das Em seguida foi a vez de eles tentarem a gravadora Philips (ex- Companhia Brasileira de Discos e ex-Sinter, ambas recém- compradas pela multinacional holandesa). Naquele momento a Philips preparava o lançamento do primeiro disco de Carlos Lyra e estava interessada em investir num elenco de bossa nova. Carlos Imperial insistiu que Roberto Carlos poderia muito bem ser um dos destaques desse elenco. Foi então acertada uma audição do cantor com a presença do diretor Paulo Serrano, do violonista Luiz Bitencourt e do maestro Carlos Monteiro de Souza. Os três ouviram Roberto Carlos cantar alguns temas de bossa nova. E os três unanimemente recusaram Roberto Carlos. Sem disco na praça e sem emprego na rádio, a única fonte de renda para Roberto Carlos era seu salário de crooner na boate Plaza. Mas isto só durou até quando Amaral, o gerente que o contratara, trabalhou na casa. Quando ele foi demitido, Roberto Carlos também perdeu o emprego, depois de nove meses de trabalho. Amaral foi gerenciar uma outra casa, a boate Bolero, na avenida Atlântica, e para lá também levou Roberto Carlos. Diferentemente do Plaza, o Bolero era um cabaré bastante frequentado por turistas e que, além de música, oferecia atrações como shows de mulatas, vedetes em minúsculos biquinis e outros balacobacos. Roberto Carlos cantava na abertura da casa, antes das grandes atrações da noite. Entretanto, ali as coisas não funcionaram muito bem e depois de dois meses de trabalho o cantor acabou também perdendo esse emprego. Roberto Carlos foi então oferecer seus serviços de crooner a outras boates cariocas. Seu objetivo era conseguir um espaço do mesmo nível do Plaza, frequentado por um mesmo tipo de público, onde ele poderia continuar desenvolvendo o mesmo estilo de bossa nova. O ideal era descolar uma daquelas badaladas casas noturnas do Beco das Garrafas, como o Bottle's Bar, Baccara e o Little Club, ou até, quem sabe, o Drink, outro espaço para cantores modernos como ele. Mas o máximo que Roberto Carlos conseguiu foi trabalhar na boate OK, um ponto de prostitutas frequentado por turistas num sobrado em Copacabana. "Sabia que meu caminho não era por ali. Mas, quando não há opção, a gente se agarra ao que pinta", justifica. Mas a barra naquela boate era muito pesada e ele acabou saindo. Desde que aderiu à bossa nova, Roberto Carlos ficou afastado da maioria de seus amigos da turma da Tijuca. Foi um distanciamento natural, em função dos novos ambientes e locais onde ele se apresentava tocando o novo estilo musical. Carlos Imperial insistia que ele deveria se enturmar mesmo era com pessoas que também tocassem e cantassem bossa nova. E naquele início de 1960 muito se falava de uma tal Turma da Bossa Nova, que se reunia em apartamentos da zona sul carioca. Liderados pelo jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli, a turma era composta por jovens como Carlos Lyra, Roberto Menescal, Nara Leão, Durval Ferreira e Chico Feitosa. Antes de serem apresentados à música de João Gilberto, esse grupo de rapazes e moças não tinha maiores interesses pela cultura brasileira. Assim como a turma da Tijuca, eles também pensavam como americanos, se vestiam como americanos, comiam como americanos -e bem mais e melhor do que os suburbanos, pela melhor condição económica. A diferença é que, em vez de se prenderam ao rock"n"roll -ritmo primário para uma turma mais culta -, eles admiravam jazz, musicais da Broadway, Frank Sinatra, Cole Porter, que costumavam ouvir desde a infância com seus pais. "Nós éramos um pessoal que negava tudo que existisse no rádio. Dircinha Batista, por exemplo, eu achava horrível. Nem mesmo de Noel Rosa eu gostava. Porque todos esses artistas não tinham nada a ver com a gente", dizia Nara Leão. Outro integrante da turma, Carlos Lyra, é ainda mais radical. "Politicamente eu sou socialista, mas esteticamente sou aristocrata. Isto é muito confuso, é realmente um choque, mas faz parte da minha história. Eu nunca gostei da música do rádio; eu sempre gostei da música do disco, principalmente da canção americana. O rádio brasileiro sempre foi medíocre, em todas as épocas. E eu detestava aquilo, achava de baixo nível, aquela música de povão, de consumo, que era a música da Rádio Nacional. Aqueles cantores do passado nunca fizeram a minha cabeça. Francisco Alves era desafinado, Orlando Silva tinha uma voz horrorosa, Carlos Galhardo, Marlene, Emilinha, Dircinha Batista, eu tinha pavor disso tudo. Eu gostava dos musicais de Fred Astaire, de Frank Sinatra, dos cantores de jazz. E eu não sou diferente de outros caras da Bossa Nova. Eles gostavam das mesmas coisas que eu e foi isto que nos uniu e aglutinou a Turma da Bossa Nova: o gosto pelo jazz, pela música fina de classe média." O depoimento de Nara Leão e, notada-mente, o de Carlos Lyra, são reveladores da grande diferença existente entre eles e o criador da bossa nova, João Gilberto. Este, ao contrário daqueles, nunca foi aristocrata: veio do interior do Brasil, cresceu e se formou ouvindo exatamente a música do rádio, do povão, a música comercial e de consumo produzida na época por artistas como Anjos do Inferno, Trio de Ouro, Francisco Alves e, principalmente, Orlando Silva, "o cantor das multidões" - o grande ídolo de João Gilberto. Foi esse gosto e interesse pela música popular do Brasil, além da sua genialidade como artista, que permitiu a João Gilberto dar um passo à frente e revolucionar a nossa música com a bossa nova. E, nesse sentido, Roberto Carlos está mais próximo de João Gilberto do que a turma da zona sul carioca, porque Roberto Carlos também veio do interior do país e também cresceu e se formou ouvindo a música comercial do rádio de sua época. A rigor, se fôssemos depender da Turma da Bossa Nova nunca teria existido a bossa nova. Ninguém poderia revolucionar a música brasileira ouvindo apenas discos de Fred Astaire e Frank Sinatra. E aqui se faz necessária uma melhor distinção entre Bossa Nova (caixa alta) e bossa nova (caixa baixa), coisas distintas, mas que frequentemente aparecem como sinônimos. A Bossa Nova (caixa alta) diz respeito a esse movimento ou reunião de jovens músicos da zona sul carioca, liderados por Ronaldo Bôscoli, no final dos anos 50, logo, um fenómeno datado. Já a bossa nova (caixa baixa), define o estilo musical criado por João Gilberto com base no ritmo do samba sendo, portanto, atemporal. Ou seja, uma coisa é a Bossa Nova (circunstância, o que foi) outra coisa é a bossa nova (essência, o que é). Pois naquela virada da década 1950 para a de 1960, Roberto Carlos estava influenciado pela bossa nova (caixa baixa) e ao mesmo tentava se enturmar com a Bossa Nova (caixa alta), que tinha um de seus pontos de encontro no apartamento de Nara Leão, na avenida Atlântica, em Copacabana. Era um amplo apartamento, um por andar, cuja porta já ficava aberta aos convidados a partir das cinco da tarde. "Antes de ir tocar em algum lugar, eu passava no apartamento de Nara porque sabia que tinha alguém da turma lá", lembra Roberto Menescal. Além dessas reuniões em apartamentos, havia também shows que a Turma da Bossa Nova realizava em faculdades e colégios do Rio de Janeiro. Produzidos e apresentados por Ronaldo Bôscoli, esses shows eram uma espécie de vitrina para os integrantes da turma, em sua maioria ainda amadores. Carlos Imperial sabia que era importante Roberto Carlos participar desses shows, mostrar que ele também sabia cantar bossa nova. O problema é que a tal turma formava um grupo fechado, que dificilmente admitia alguém de fora do seu círculo de amizades. "Tenho quase certeza que eu e Roberto Carlos não somos hoje cantores de samba, de bossa nova, porque não conseguimos participar da turma "Com uma sinceridade que não tenho, exceto quando com alguns uísques na cuca", confessa Bôscoli. E enquanto Roberto encapava seu violão, ele falou: "Bicho, quer um conselho? Pára. Reformula. Muda de estilo. O destino de imitador tem caminho curto. Não há lugar para dois João Gilberto." Roberto Carlos entendeu o recado, pegou seu violão e foi embora da Turma da Bossa Nova - mas não da influência da bossa nova de João Gilberto, que o acompanha ao longo de toda a carreira no estilo moderno de cantar. "O pior é que naquela noite do Liceu eu estava durinho. Mas não tive jeito de pedir", lembra Roberto Carlos, que só conseguiu chegar em casa de carona em carona. Mais do que nunca, naquele dia ele foi mesmo o "João Gilberto dos pobres". Quando, em novembro de 1962, se anunciou que haveria um show de bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, Carlos Imperial não tentou escalar Roberto Carlos porque àquela altura ele já estava novamente cantando rock. Mas se ainda quisesse o assunto não seria mais tratado com Ronaldo Bôscoli. O produtor daquele show foi o americano Sidney Frey, em parceria com o Itamaraty, e não deu para todos da turma participarem. "Eu fui barrado", afirma Ronaldo Bôscoli. Se Bôscoli, o que sempre barrava, estava agora sendo barrado, é sinal de que as coisas estavam mudando. De fato, desde que os primeiros discos de João Gilberto chegaram aos ouvidos dos músicos de jazz americanos, iniciou-se um processo de internacionalização da bossa nova, que virou onda discográfica nos Estados Unidos. O show do Carnegie Hall foi mais uma consequência disso. Ronaldo Bôscoli esperava ser convidado para cobrir o evento para a revista Manchete. Ao mesmo tempo, ele questionava um nome ou outro escalado para o show, como se fosse mais um daqueles sambas sessions organizados por ele em faculdades. Quando o produtor americano percebeu que a atuação de Bôscoli não se limitaria ao trabalho jornalístico, levou em seu lugar o crítico Sylvio Túlio Cardoso, do jornal O Globo. Como se sabe, o concerto do Carnegie Hall gerou polémica; para uns foi um fracasso, para outros um sucesso. "Aquilo foi um fiasco, não foi uma coisa séria", define Ronaldo Bôscoli que, passados muitos anos, não perdoava aquele barracão de Sidney Frey. "Esse cara acabou morrendo de câncer. Deus é grande! Deus é justo!", exultou em depoimento ao autor. O fato é que a partir de 1962 a Turma da Bossa Nova acabou implodindo e Ronaldo Bôscoli perdeu a sua função de líder do tal movimento. Cada vez mais a bossa nova ganhava o mundo, sendo ouvida e reproduzida por músicos como Stan Getz, Charlie Bird, Stan Kenton, Miles Davis - que, de longe, Bôscoli provavelmente via como bicões, aproveitadores de uma arte que queria sob controle dele, num apartamento da zona sul carioca. "A coisa começou a ampliar, ampliar, e nós acabamos perdendo o controle da bossa nova", lamentava. Mas a sua derrota não seria total porque restou a Ronaldo Bôscoli um importante trunfo nas mãos: a história da bossa nova. A versão que tem sido contada ao longo dos anos em reportagens da imprensa, livros, filmes e especiais de televisão é basicamente a dele: a de que a bossa nova foi uma criação coletiva de um grupo de rapazes e moças da zona sul carioca descontentes com a música brasileira. E foi Ronaldo Bôscoli e sua turma que também propagou a versão de que Roberto Carlos era apenas um bicão banido do movimento porque imitava João Gilberto. É certo que João Gilberto mesmo nunca teve nenhuma preocupação se Roberto Carlos o estava imitando ou não. E numa determinada noite, em meados de 1959, ele chegou ver e ouvir o garoto cantar na boate Plaza, num raro e histórico encontro entre o criador e a criatura, Naquele momento, já famoso com os sucessos de Chega de saudade e Desafinado, a presença de João Gilberto causou um certo rebuliço na porta do Plaza e imediatamente alguém foi soprar no ouvido do crooner que o homem estava lá fora, prestes a entrar na boate. Roberto Carlos subiu ao palco um pouco apreensivo, mais tenso do que de costume. "Foi difícil cantar nessa noite porque fiquei preocupado com o que o João pudesse pensar de mim", lembra Roberto Carlos. E a sua preocupação tinha sentido porque naquela época ainda corria na noite carioca um episódio acontecido poucos anos antes, envolvendo duas cantoras brasileiras: Dalva de Oliveira e Ângela Maria. Assim como Roberto Carlos em relação a João Gilberto, Ângela Maria começou a carreira, no início dos anos 50, imitando Dalva de Oliveira, uma das grandes estrelas da era do rádio. "Eu adorava a Dalva, era sua fã, sua macaca de auditório", afirma Ângela, que também foi trabalhar numa boate carioca, cantando ali basicamente o repertório da cantora que tanto admirava. Pois numa certa noite, Dalva de Oliveira apareceu na boate e ficou com alguns amigos numa mesa próxima ao palco. No meio do show, Ângela decidiu fazer uma homenagem a Dalva: enquanto cantava um dos sucessos da cantora, Ângela desceu do palco e se aproximou da mesa onde ela estava, curvando-se diante dela em sinal de reverência. Nesse momento, Dalva pegou um copo de gelo e atirou na cara de Ângela Maria. "Eu não esperava esta reação dela. Aquele gelo jogado na minha cara me esfriou toda por dentro", diz Ângela. Enquanto Ângela limpava o rosto, tirando a água gelada que entrava nos seus olhos, os amigos de Dalva saíram imediatamente com ela da boate. "Mas eu continuei cantando e cantando com mais vontade. Eu deixei o microfone de lado e soltei a voz com tudo. E o público da boate me aplaudiu de pé", diz Ângela Maria. É por essas e outras que a presença de João Gilberto na porta do Plaza deixou Roberto Carlos apreensivo. Lá fora, João Donato insistiu para que João Gilberto entrasse na boate: "João, vem ver você". Como pianista da casa, Donato acompanhava Roberto Carlos desde que ele chegou para trabalhar ali e testemunhava o esforço dele em cantar parecido com João Gilberto. E João entrou para ver, ficando num cantinho, lá atrás. E naquele momento ele se deparou no palco com o primeiro representante daquela geração dos anos 60 que surgiria se dizendo-se filho da sua arte. Sim, João Gilberto ouviu Roberto Carlos antes de conhecer Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu Lobo, Marcos Valle e vários outros de seus fãs confessos. "Lembro que quando entrei na boate Roberto estava cantando Brigas nunca mais", afirmou João Gilberto ao autor. De fato, esse lindo samba-canção de Tom e Vinícius, lançado por João em seu primeiro LP, era um dos números que Roberto Carlos cantava diariamente na boate Plaza. O curioso é que, discreto como sempre, João Gilberto entrou e saiu da boate sem que Roberto Carlos conseguisse vê-lo, até porque o interior do Plaza era muito escuro. "Até hoje eu não tinha certeza se João Gilberto havia mesmo me ouvido cantar naquela noite no Plaza", afirmou Roberto Carlos em conversa com o autor. Pois seu mestre não apenas ouviu como gostou do que ouviu. "Eu achei o Roberto muito musical", diz João Gilberto. Como se vê, a reação de João Gilberto foi muito diferente da de Dalva de Oliveira em relação a ângela Maria e também da própria Turma da Bossa Nova em relação a Roberto Carlos. Enquanto aqueles consideravam o jovem cantor apenas um bicão, barrando- lhe oportunidades, o criador da bossa nova enxergava nele talento musical. O tempo daria razão a João Gilberto. No início dos anos 60 já era possível constatar uma mudança no universo radiofónico brasileiro: a maioria das emissoras de rádio estava compondo a sua programação à base de discos. Isto resultou no desemprego de cantores e músicos, que se viam obrigados a fazer pequenos bicos em bailes e boates. Mas a própria vida noturna já não tinha a mesma movimentação de antes, especialmente no Rio de Janeiro, prestes a perder a condição de capital da República, com a inauguração de Brasília. para rodar e, deslumbrado, ficava imitando com gestos o solo de sax, de trombone, do trompete, e até o da bateria, com os dois braços subindo e descendo. "Preste atenção agora neste contrabaixo", e ele fazia o gesto com caras e bocas, como se estivesse tocando o instrumento. "Ele imitava toda a orquestra. Era muito engraçado", recorda Carlos Imperial. E assim se passou mais de uma hora e meia de papo... Enquanto isso, Roberto Carlos esperava lá fora de violão na mão na maior ansiedade. Houve um momento em que Côrte Real parou para atender um telefonema e Imperial aproveitou para ir ao banheiro. "E aí, papai, já falou com ele?", quis saber Roberto. "Calma! Primeiro tenho que fazer um charme." Quando Imperial retornou à sala, Côrte Real pegou o telefone e disse à secretária: "Não quero mais ser incomodado". E reiniciou a conversa discutindo sobre Thelonious Monk, bebop, hard bop, cool jazz, west coast... Eram mais de sete horas da noite quando, finalmente, Roberto Côrte Real perguntou a Carlos Imperial: "Amigo, mas a que devo mesmo a honra de sua visita...". Imperial explicou que estava ali para conseguir uma oportunidade de gravação para um jovem cantor que tinha tudo para ser um novo astro da bossa nova. E mostrou aquele primeiro disco gravado por Roberto Carlos na Polydor. O cantor foi finalmente chamado à sala e apresentado ao diretor artístico da Columbia, que naquele momento mesmo ouviu o disco dele. Ao final, Côrte Real fez apenas um comentário: que Roberto Carlos não precisava forçar tanto a semelhança com João Gilberto. "Hoje não vai dar mais tempo de ouvi-lo, mas venham na quinta-feira, às dez horas, para fazer um teste comigo", garantiu Roberto Corte Real. Quando desciam do prédio, ele perguntou se Imperial estava de carro ou não, pois poderia dar-lhe uma carona até Botafogo, onde morava. Imperial deixara seu automóvel estacionado num posto próximo da gravadora, mas mentiu dizendo que estava a pé, pois queria mais contato e conversa com o diretor artístico da Columbia. Distraído, Roberto Carlos não percebeu aquele rápido diálogo, e ao chegar lá fora foi andando em direção ao posto onde estava o carro de Imperial. "Roberto, venha para cá", chamou Imperial. O cantor olhava sem entender, porque o carro estava de um lado e Imperial se encaminhava para outro. "Nós vamos pegar uma carona aqui com Roberto Côrte Real", disse-lhe, piscando, Imperial. E os dois entraram no DKW Vemag do diretor da Columbia - que seguiu até Botafogo discutindo sobre Thelonious Monk, bebop, hard bop, cool jazz, west coast... No final da viagem, Imperial e Roberto desceram e pegaram um ônibus de volta ao centro da cidade. A ideia de Imperial era inicialmente tentar uma gravação apenas para Roberto Carlos, e mais tarde para outros jovens artistas que ele tinha sob controle. Mas como ele teve uma recepção calorosa na sua visita à Columbia -muito além do que podia esperar - resolveu arriscar um pouco mais. Na véspera do teste, ele ligou para Côrte Real e perguntou se podia levar também um quarteto vocal de muita bossa, na linha de Os Cariocas, que ele tinha descoberto. Côrte Real deu sinal verde e Imperial fez então um rápido ensaio com Wilson Simonal, seu irmão Roberto Simonal, Marcos Moran e Edson Bastos, batizando-os de Drian Boys. Até aquele momento trabalhando durante o dia como secretário de Imperial e à noite como crooner de boates, Wilson Simonal ainda batalhava a oportunidade de gravar o primeiro disco. Se a chance era essa, com um quarteto vocal, os Drian Boys, não seria desperdiçada. Na quinta-feira, às dez horas da manhã, lá estavam Carlos Imperial, Roberto Carlos e os rapazes de Os Drian Boys no estúdio da Columbia para o definitivo teste com Roberto Côrte Real. O mais tenso de todos era Roberto Carlos porque ele sabia que, se falhasse, não teria mais gravadora para procurar. Aquilo poderia significar um longo adiamento ou até, quem sabe, o fim de sua carreira de cantor. E o teste começou exatamente por Roberto Carlos, que preparou como número inicial o samba-canção Menina-moça, composição de Luiz António que naquele momento era um grande sucesso na voz de Tito Madi. Na época, os técnicos de som titulares da Columbia eram Sérgio Lara Campos e Um-berto Contardi, mas quem trabalhou no dia do teste de Roberto foi o técnico auxiliar Victor Manga, que apertou um botão na mesa de som e anunciou o início da audição. "Atenção, Roberto Carlos, teste, música Menina-moça." E Roberto soltou a voz em sua derradeira e definitiva viagem pelas gravadoras do país "Você menina moça/ mais menina que mulher/ rosa preciosa/ cada um deseja e quer...". Em seguida ele cantou mais dois temas, um de Carlos Imperial, Ser bem, e outro do repertório de João Gilberto, Brigas mumca mais, sua velha companheira nas noites de crooner na boate Plaza. "Fiz um esforço enorme para não imitar João Gilberto", lembra Roberto Carlos. Mas parece que o esforço não foi suficiente porque Côrte Real comentou na técnica, brincando. "Ele canta igualzinho ao João Gilberto, até o sotaque baiano ele imita." O nome João Gilberto era uma pedra no sapato de Roberto Côrte Real porque este não se perdoava de ter deixado o cantor escapar-lhe por entre as mãos. Um ano e meio atrás, em maio de 1958, pouco antes de ir para a Odeon, João fizera um teste na Columbia cantando Chega de saudade e Bim bom ao violão. Ou seja, tudo aquilo do que viria a ser chamado de bossa nova já estava com João Gilberto quando Côrte Real o ouviu naquele mesmo estúdio onde agora estava Roberto Carlos. O executivo da Columbia aprovou o teste de João Gilberto - e só um surdo não aprovaria -, mas caiu na besteira de pedir para o cantor modificar um trecho da letra de Bim bom e de editar a composição com seu amigo Fernando César. João Gilberto não quis saber de negócio com a Columbia. "Não gostei nem um pouco deste Côrte Rayol", teria dito ao deixar o prédio da gravadora. Perdido João Gilberto para a Odeon, Côrte Real estava ali agora com sua primeira e mais fiel cópia: Roberto Carlos. Talvez fosse melhor contratá-lo antes que outra gravadora o fizesse, pode ter pensado Côrte Real. O diretor artístico parecia estar gostando -mas essa impressão não era garantia de nada. Das outras vezes, em outras gravadoras, outros diretores artísticos também não demonstravam descontentamento na frente do artista. Quando o teste já parecia ter terminado, Roberto Côrte Real apertou o botão da técnica e disse para Roberto Carlos: "Garoto, canta agora a música que você mais gosta de cantar". Para Roberto Carlos tinha chegado a hora da verdade porque, se ele cantasse mal a música que mais gostava de cantar, ele cantaria bem o quê? E se Côrte Real ainda tinha alguma dúvida se contratava ou não o novo cantor, essa dúvida seria desfeita naquele momento. Roberto Carlos se ajeitou no banquinho do estúdio, empunhou com firmeza o violão e cantou Brotinho sem juízo, outra composição bossa nova de Carlos Imperial. "Brotinho tome juízo/ quando comigo sair/ olha bem este vestido/ para ele não subir..." Côrte Real ouviu atentamente e ao final pediu que Roberto Carlos repetisse a música. Antes mesmo que Roberto terminasse de cantar, o diretor artístico pediu para alguém chamar o maestro Lírio Panicalli. Paulista de Ribeirão Preto, na época com 34 anos, Lírio Panicalli já era um mito entre os arranjadores brasileiros, e foi um dos primeiros nomes que Côrte Real contratou quando assumiu a direção artística da Columbia. Lírio entrou na sala da técnica e ficou ao lado de Côrte Real e Carlos Imperial, ouvindo Roberto Carlos cantar, mais uma vez, Brotinho sem juízo. Depois de fazer um ou outro comentário mais genérico com o maestro, Côrte Real determinou: "Lírio, prepara dois arranjos para este garoto que nós vamos gravar com ele na próxima semana". Naquele momento, essa sua ordem definia que o cantor Roberto Carlos Braga era o novo contratado do grupo Columbia Broadcast System, a CBS. "E eu ouvi aquilo sem poder ainda avisar ao Roberto", lembra, emocionado, Carlos Imperial. de seu novo trabalho, sem esperar apenas pela gravadora. Diariamente ele percorria as emissoras de rádio, especialmente o programa do Chacrinha, na Rádio Mauá. "Eu pedi ao Othon Russo que desse mais trabalho a Roberto na CBS para ver se assim ele sossegava e espaçava as visitas diárias para três vezes por semana", afirma o apresentador. Paralelamente à sua atuação no rádio, na época Chacrinha comandava seu programa na TV Tupi, e lá também estava Roberto Carlos, participando do quadro "Adivinha quem é o cantor mascarado?". Roberto Carlos entrava de tarja preta no rosto, sentava em um banquinho e cantava ao violão Brotinho sem juízo. Em seguida, Chacrinha criava uma onda danada, perguntando ao público quem era aquele cantor. Ninguém tinha dúvida na resposta... era João Gilberto. Quando Roberto tirava a máscara, o público fazia oh!!!!!!!!!!, sem entender nada. Naquele momento Roberto Carlos era um cantor ainda desconhecido com máscara ou sem máscara. Assim como a primeira gravação da Polydor, esse disco também alcançou pouca repercussão nas rádios e foi um grande fracasso de venda. Mas o empenho de Roberto Carlos na divulgação demonstrou à CBS que o cantor estava disposto a trabalhar e que podia render muito mais. O passo seguinte seria gravar um disco explorando outras possibilidades, além da bossa nova. Roberto Côrte Real entendia que, com a sua experiência de crooner, Roberto Carlos poderia muito bem gravar outros ritmos, outros estilos de música popular. Foi quando o diretor artístico da Columbia deu o sinal verde para Carlos Imperial produzir o primeiro LP de Roberto Carlos. O repertório do disco mirava o estilo de quatro cantores de grande repercussão naquele momento: João Gilberto (bossa nova), Anísio Silva (bolero), Sérgio Murilo (rock, balada, cha-chachá) e Miltinho (samba) - não por acaso quatro cantores de vozes pequenas, nasais, como a de Roberto Carlos. O cantor Miltinho, por exemplo, estava numa fase de grande sucesso popular interpretando sambas suingados como Palhaçada, Mulher de trinta e Devagar com a louça. Pois Roberto Carlos gravou o samba Chorei, que não faria feio em nenhuma gafieira. Na cola de Anísio Silva, que emocionava multidões com temas ultrapopulares como Alguém me disse e Quero beijar-te as mãos, Roberto gravou o bolero Não é por mim. Já a bossa nova de João Gilberto estava representada por Ser bem, cuja letra é cheia de referências ao Rio dos anos 50, como o Copacabana Palace, a boate Sachais, o playboy Jorginho Guinle, o colunista Jean Pouchat e o socialite Baby Bocaiuva Cunha -um dos que serviam de mecenas à turminha do amor, do sorriso e da flor. Por fim, o LP trazia a tal da música jovem estilo Sérgio Murilo, nas faixas Linda e Louco por você. O restante do disco era basicamente de variações desses quatro estilos musicais. Para o diretor artístico Roberto Côrte Real, um daqueles alvos apontaria o futuro de Roberto Carlos. Ou seja, dependendo da faixa que obtivesse maior aceitação, ele seguiria na linha de João Gilberto ou daria uma guinada de 180 graus para ser um novo Anísio Silva ou ficaria na linha intermediária de Miltinho ou, quem sabe, avançaria na trilha dos brotos legais de Sérgio Murilo. Nesse sentido, o primeiro LP de Roberto Carlos foi uma espécie de laboratório. Hoje seria considerado um álbum eclético, plural, lounge de primeira ordem, mas na época revelou mais a indecisão do estilo do jovem cantor. Os arranjos do disco ficaram a cargo do maestro paulista Astor Silva, que começou sua carreira como trombonista de dancings. Na década de 1940, ele integrou a Orquestra Tabajara, de Severino Araújo, e, mais tarde, a orquestra do maestro Carioca. Depois de montar seu próprio conjunto e orquestra, Astor Silva acompanhou gravações de cantores como Moreira da Silva, Nora Ney, Emilinha Borba e Elza Soares. Ele entrou na CBS em 1960, para ocupar o cargo de maestro e arranjador-chefe. E foi exatamente nessa dupla função que ele trabalhou no primeiro álbum de Roberto Carlos. As duas primeiras faixas gravadas foram o chachachá Louco por você (versão de Careful, careful) e o bolero Não é por mim. Esta uma composição de Carlos Imperial (em parceria com Fernando César), que traz tudo a que o ritmo tem direito: congas, maracas, bongôs, orquestra de cordas e piano. Mas, mesmo ali, a interpretação de Roberto Carlos revela a nítida influência do João Gilberto de Hô-ba-lá-lá - a não ser por um importante detalhe. Logo após a gravação de cada faixa, Roberto Carlos ia ansioso para a mesa de som ver os resultados. E depois de mais uma audição atenta, ele ficou incomodado com um trecho da melodia do bolero Não é por mim. A frase "todo o amor que eu sinto agora", especialmente a palavra final da frase "agora" - soava estranha para Roberto Carlos. E ele queria refazer a gravação. Mas Carlos Imperial disse que não, porque estava tudo bem. Alguns músicos que participaram da gravação também disseram que não viam problema algum. Mas Roberto não se convencia e continuava incomodado, achando que tinha desafinado naquela passagem da melodia. Enquanto ele ouvia mais uma vez a gravação, eis que entra na sala da técnica o cantor Tito Madi, na época um dos contratados da gravadora Columbia. Ora, ninguém melhor do que seu ídolo Tito Madi para tirar aquela dúvida atroz. E, humildemente, Roberto pediu para Tito ouvir a faixa e dar o seu parecer. Já um pouco cansado com aquela insistência, o técnico Umberto Contardi colocou a fita para rodar mais uma vez. E, depois de ouvi-la, Tito Madi deu o seu veredicto com segurança: "Roberto, você não desafinou. Você semito-nou um pouquinho. Se botarem um pouco de eco aí ninguém vai perceber nada". Semitonaré quando um cantor emite uma nota um pouco fora da nota exata da melodia e, em alguns casos, dá mesmo para ajeitar isso com um pouco de eco, processo feito na mixagem. Ainda que um pouco cabreiro, Roberto aceitou a sugestão de Tito. Afinal, era a palavra de uma autoridade, Tito Madi, autor de Chove lá fora, Carinho e amor e tantas outras canções que enterneciam o jovem Roberto Carlos. E se Tito Madi estava dizendo que não havia desafinação, o estúdio da Columbia não ia parar para refazer tudo de novo por puro capricho e perfeccionismo de um cantor estreante. Naquele momento não havia espaço nem tempo para isto, e o técnico Umberto Contardi também não via problema nenhum na gravação. E assim o disco foi liberado para prensagem com recomendação de que se colocasse um pouco de eco na faixa Não é por mim. Entretanto, quando o disco saiu e Roberto Carlos foi ouvi-lo, não teve mais nenhuma dúvida: ele desafinava feio naquele trecho da melodia do bolero. O cantor ouviu a gravação com outras pessoas e agora todos pareciam concordar: ele desafinava mesmo. Tito Madi errou. Carlos Imperial errou. Todos erraram. Roberto Carlos chorou. Caramba, logo na primeira faixa, no seu primeiro álbum, uma desafinação - e não teve eco que desse jeito. Era uma triste ironia. O cantor que surgiu com a promessa de ser um novo astro da bossa nova, quem sabe um novo João Gilberto, literalmente desafinava - e cantando um bolero típico do repertório de Anísio Silva. É principalmente por causa disso que esse primeiro e histórico LP de Roberto Carlos permanece até hoje excluído dos relançamentos de sua discografia. Outra coisa que Roberto Carlos não gostou daquele disco foi a capa - porque esta saiu sem a sua imagem. O cantor chegou a posar para várias fotos, mas Roberto Côrte Real considerou que nenhuma ficou suficientemente boa para o disco. "Eu não era fotogênico, estava inibido, não fiquei bem", reconhece o cantor, que na época imaginou que fosse ser chamado para fazer uma nova sessão de fotos. Entretanto, Côrte Real decidiu lançar o disco sem a imagem de Roberto Carlos, optando por uma capa temática, que era muito comum na época. Em vez da imagem do cantor, a capa reproduzia o tema da
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