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Guias e Dicas
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Livro de filosofia, Notas de estudo de Filosofia

Filosofando

Tipologia: Notas de estudo

2013

Compartilhado em 28/08/2013

jameson-lima-6
jameson-lima-6 🇧🇷

4.4

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Baixe Livro de filosofia e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Maria Lúcia de Arruda Aranha Bacharel e licenciada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professora de Filosofia em escolas particulares de São Paulo. Maria Helena Pires Martins Doutora em Artes (área de concentração: Teatro) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. oIOSOFA Introdução à Filosofia Volume Único Componente curricuJar: FILOSOFIA 4a edição São Paulo, 2009 -111 Moderna Título original : Filosofando Introdução à Filosofia © Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, 2009 Coordenação editorial: Maria Raquel Apoliná rio, Eduardo Augusto Gui marães Edição de texto: Teia Editoria l, Maria Aparecida M. Bessana Assistência editorial: Vivian Kaori Ehara Preparação de texto: Carlos Zanchetta Coordenação de design e projetos visuais: Sandra Botelho de Carvalho Homma Projeto gráfico: A+comunicação Capa: Everson de Paula Imagem da capa: Mulher sentada, de Pablo Picasso, 1932 Coordenação de produção gráfica: André Monteiro. Maria de Lourdes Rodrigues Coordenação de arte: Maria Lucia F. Couto Edição de arte: Renata Susana Rechberger Assistente de produção: Márcia Nascimento. Tais Nakano. Daniela Máximo Coordenação de revisão: Elaine Cristina dei Nero Revisão: lolanda Maria do Nascimento. Todaescrita Servi ços Ltda. Coordenação de pesquisa iconográfica: Ana Lucia Soares Pesquisa iconográfica : Maria Helena Pires Mart ins (unidade 7 e capitulo 5). Ricardo Fabbrini, Cristina Mura Coordenação de bureau: Américo Jesus Tratamento de imagens: Pix Art Pré-impressão: Hélio P de Souza Filho, Marcio Hideyuki Kamoto. Everton L. de Oliveira Coordenação de produção industrial: Wil son Aparecido Troque Impressão e acabamento: Gráfica Ideal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP. Brasil) Aranha. Maria Lúcia de Arruda Filosofando : Introdução à Filosofia I Maria Lúcia de Arruda Aranha, Maria Helena Pires Martins. - 4. ed. - São Paulo : Moderna. 2009. Bibliografia . 1. Filosofia 2. Filosofia - Introduções M artins, Maria Helena Pires. 11 . Titulo. 111. Título: Introdução à Filosofia . 09-09113 CDD-l0l indices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Introdução 101 Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados EDITORA MODERNA LTDA. Rua Padre Adelino. 758 - Beleozlnho São Paulo - SP - Brasil - CEP 03303-904 Vendas e Atendimento: Te l. 10__111 2602-5510 Fax 10__111 2790-1501 www.moderna.com .b( 2011 Impresso no Brasil 1 3 5 7 9 10 8 6 4 -- -- A..........--­--.... ­ ..... I_-~. . _....-.--.....- ..­ --.-.~-- ~-=-=- ......-1­ _.---------­_....­ .........,.-... ,... . .-.... .-...­ --~ .. ­_.--..-­... =.:::._-­ ==--=-...=.:=.: ::--=---==-=-~ =~~::: ::':~r..;. .. -­ u_-­ -­.. _----._-----­- ,,-~ . - -­ --~..­_"'r -_.~_.--"-.- .... ­=.::.==_-....a ____• .---­ -­ - ---­ :.~-- :: :::::.. =--==--=--­="..::..-­ .a_,_ _....... -­ =-~------=..-==::..---­ ...............-.­ -­ --­--­ 1..,.- ..0 _ ........ _.................-----_..- ., --- ---.... - = ....--_. _._­ - -.----- --­._-_._­ :: ;::. - --­____o ----_.,..--­--­_......_­----­---­­--­- ­---­-­._.--­---­~-____o --­- _.-- --,­----­ -...----- _..._..-,.... -.--.........­~ ---.-­ ---­ ...:::::=­ _=-I i.. .=-._--­ ---­ .~_ .....-­---­.-....... _..-'­---_............... _­---­ =..~. -:::--*-= =------..=::.- -_.- _.--­==-=-­ --­ :::.:.."'::..::: D _ __o :::.~~:. --­_.. .. --. -~_.___o ---'-­---­- ­ --.-..--­_ ... _ c _:.=:=-­ ---­ ---- --­- ---­ -.--­..-.•-_..-............ ­ ..--_.--­.._.... _. ---­---­._._-­......- ._._ .._. ...._----­--­ Se~ões do final do livro Quem é7 Para saber mais• Para refletir, Glossário e Etimologia Distribuídas ao longo dos capí­ tulos, essas seções trazem dados biográficos de vários autores, informam aorigem eosignificado de conceitos importantes para a área, apresentam propostas de reflexão, além de outras informa­ ções pertinentes ao estudo. - --­--­ ~;;;;:~-:--.. --­ =-- -..--­_.._------ ~_._-=-...: ----­ ~---...­ ~~--~- --­ -­._---­ -----­-------­--­ • Quadro cronológico das correntes filosóficas e dos eventos históricos desde o século VI a.c. até os nossos dias. • Correntes filosóficas do século XX, com os pri ncipa is repre­ sentantes de cada corrente. • Vocabulário dos principais conceitos e termos filosóficos utilizados no livro. o Sugestões bibliográficas, em que as obras são indicadas por assunto. Indice de nomes para facilitar a rápida localização dos autores citados, inc'luindo datas, local de nascimento e área de atuação. o Sugestões de filmes, livros e sUes organizados por capítulo, com uma breve sinopse dos filmes indicados. QUldlc =nológlco - ..----­ ~ __o.-- .----­­-- _ .­--­ I • - ._--_... ---------­ Unidade 1 Descobrindo a filosofia 12 Capitulo 1 A experiência filosófica 14 1. Como é o pensar do filósofo? 15 / 2. A filosofia de vida 16 / 3. Para que serve a filosofia? 16 / 4. Informação, conhecimento e sabedoria 17 / 5. t possível definir filosofia? 19 / 6. Um filósofo 21 / 7. Para não concluir ... 22 Leitura complementar Contardo Calfigaris: A turba do "pega e lincha" 23 Atividades 24 Capitulo 2 A consciência mítica 2S 1. Dois relatos míticos 26/ 2. O que é mito? 27 / 3. Os rituais 27 / 4. Teorias sobre o mito 28 / 5. O mito nas civilizações antigas 30/ 6. O mito hoje 32/ 7. Para finalizar... 33 Leitura complementar Pierre C1astres: A tortura, a memória 34/ Theodor W Adorno: Os trotes de calouro 34 Atividades 35 Capitulo 3 o nascimento da filosofia 36 1. Situando no tempo 36/ 2. Uma nova ordem humana 37/ 3. Os primeiros filósofos 39 / 4. Mito e filosofia: continuidade e ruptura 41 Leitura complementar Friedrich Nietzsche: Tales, o primeiro filósofo 42 Atividades 43 Antropologia filosófica 44 Capitulo 4 Natureza e cultura 46 1. Para começar 46/ 2. O comportamento animal 47/ 3. O agir humano: a cultura 49/ 4. Uma nova sociedade? 50/ 5. A cultura como construção humana 51 Leitura complementar j E. Montaigne: Dos canibais 52 Atividades 53 Capitulo 5 Linguagem e pensamento S4 1. A linguagem do desenho 54 / 2. O que é uma linguagem? 55/ 3. A linguagem verbal 60/ 4. Funções da linguagem 60 / 5. Linguagem, pensamento e cultura 61 Leitura complementar Luis Fernando Verissimo: Papo-furado 64 Atividades 65 Unidade 3 Capitulo 6 1Iabalho, alienação e consumo 66 1. Trabalho como tortura? 67/ 2. A humanização pelo trabalho 67/ 3. Ócio e negócio 67/ 4. Uma nova concepção de trabalho 68/ 5. O trabalho como mercadoria: a alienação 69/ 6. A era do olhar: a disciplina 70/ 7. De olho no cronômetro 72/ 8. Novos tempos na fábrica 73/ 9. Da fábrica para o escritório 74/ 10. Consumo ou consumismo? 74/ 11. Crítica à sociedade administrada 75/ 12. Uma "civilização do lazer"? 76/ 13. A sociedade pós·moderna: o hiperconsumo 77 / 14. Para onde vamos? 78 Atividades 79 Capítulo 7 Em busca da felicidade 80 l Oque significa ser feliz? 80/ 2. A "experiência de ser" 81/ 3. Os tipos de amor 82/ 4. Platão: Eros e a filosofia 83 / 5. O corpo sob o olhar da ciência 85/ 6. A inovação de Espinosa 86/ 7. As teorias contemporâneas 88/ 8. Individualismo e narcisismo 91/ 9. Felicidade e autonomia 92 Leitura complementar Gilles Lipovetsl<y: O ecletismo da felicidade 93 Atividades 94 Capítulo 8 Aprender a morrer.. . ~5 1. A morte como enigma 95/ 2. Os filósofos e a morte 96/ 3. O tabu da morte 99/ 4. Aqueles que morrem mais cedo 100/ 5. t legítimo deixar ou fazer morrer? 100/ 6. A negação da morte 102/ 7. As mortes simbólicas 102/ 8. O sofrimento da natureza 103/ 9. Pensar na morte: refletir sobre a vida 104 Atividades 105 o conhecimento 106 Capitulo 9 o que podemos conhecer? 108 1. o ato de conhecer 109 / 2. Os modos de conhecer 109 / 3. A verdade 111 / 4. Podemos alcançar a certeza? 111 / 5. Teorias sobre a verdade 115 / 6. A verdade como horizonte 116 Leitura complementar Fernando Savater:As verdades da razão 117 Atividades 118 Capítulo 10 Ideologias 119 v C 71. Conceito geral de ideologia 120 / 2. Ideologia: sentieo restrito 120 / 3. Conceito marxista de ideologia 120/ 4. A ideologia em ação 122/ 5. O discurso não ideológico 125/ 6. Outras concepções marxistas de ideologia 125/ 7. Questionamento e conscientização 127 Leitura complementar Destutt de Tracy: Dois sistemas de instrução 128 Atividades 129 Capítulo 11 Lógica aristotélica 130 1. O que é lógica 131/ 2. Termo e proposição 131/ 3. Princípios da lógica 132/ 4. Quadrado de oposições 132/ 5. Argumentação 133/ 6. Tipos de argumentação 134/ 7. Falácias 136/ 8. A lógica pós-aristotélica 138 Leitura complementar Wesley Salmon: Descoberta da justificação 139 Atividades 140 Unidade 6 Capitulo 25 Liberalismo e democracia 312 1. Liberdade ou igualdade? 313 / 2. O liberalismo inglês 313 / 3. O liberalismo francês 314 / 4. Hegel: a crítica ao contratualismo 314/ 5. As contradições do século XIX 316 Leitura complementar Norberto Bobbio: Liberdade e igualdade 317 Atividades 318 Capitulo 26 As teorias socialistas 319 1. A origem do proletariado 320/ 2. O socialismo utópico 321/ 3. O marxismo 322/ 4. O anarquismo: principais ide ias 327 / 5. O socialismo no século XX 328/ 6. Fim da utopia socialista? 331 Leitu,ra complementar Karl Marx: Prefácio à Contribuição à critica da economia política 332 Atividades 333 Capitulo 27 o liberalismo contemporâneo 334 1. Um retrospecto 335/ 2. Liberalismo social 335/ 3. Liberalismo de esquerda 336/ 4. Neoliberalismo 337/ 5. Para não finalizar 338 Atividades 339 Filosofia das ciências 340 Capitulo 28 Ciência, tecnologia e valores 342 1. Que caminho devo tomar? 342/ 2. Senso comum e ciência 343/ 3. O método científico 345/ 4. A comunidade científica 345/ 5. Ciência e valores 346/ 6. Benefícios das ciências, para quem? 347/ 7. A responsabilidade social do cientista 348 Leitura complementar ~, -(-,' c.. Gérard Fourez: Eficácia e limites do domínio científico 349 Atividades 350 Capitulo 29 Ciência antiga e medieval 351 1. Filosofia e ciência 351/ 2. Geometria e medicina 352/ 3. Platão 352/ 4. Aristóteles 354/ 5. Alexandria e a escola helenística 357/ 6. A ciência na Idade Média 358/ 7. A decadência da escolástica 361 / 8. Um balanço final 361 Leitura complementar Umberto Eco: Um método para chegar a uma verdade provável 362 Atividades 363 Capitulo 30 A revolução científica do século XVII 364 1. Uma nova mentalidade 365/ 2. Características do pensamento moderno 365/ 3. Galileu e as duas novas ciências 366/ 4. A síntese newtoniana 368/ 5. Novas ciências, novo mundo 369 Leitura complementar Alexandre Koyré: A revolução científica 370 Atividades 371 Capitulo 31 o método das ciências da natureza 372 1. O desafio do método 373/ 2. A investigação científica 373/ 3. O método experimental 374/ 4. A ciência como construção 378/ 5. O desenvolvimento das ciências da natureza 379/ 6 . A crise da ciência 381 / 7. Novas orientações epistemológicas 382/ 8. A ambiguidade do progresso científico 384 Atividades 385 Capitulo 32 o método das ciências humanas 386 1. Explicar e compreender 387/ 2. Dificuldades metodológicas das ciências humanas 387/ 3. O nascimento das ciências humanas 389/ 4 A psicologia comportamentalista 390/ 5. A psicologia da forma 392/ 6. Freud e o inconsciente 393/ 7. As três instâncias do aparelho psíquico 394/ 8. Retomando a controvérsia 396 Atividades 397 Capitulo 33 Estética: introdução conceitual 400 1. Conceito e história do termo estética 401 / 2. O belo e o feio: a questão do gosto 402 / 3. A atitude estética 404 / 4. A recepção estética 404 / 5. A compreensão pelos sentidos 405 Leitura complementar Arthur C. Danto: A arte depois de seu fim 406 Atividades 407 Capitulo 34 Cultura e arte 408 1. Cultura hip-hop 409/ 2. Os sentidos de cultura 409/ 3. As diferenças entre arte e cultura 412 / 4. Arte e cultura 413 . Leitura complementar Car/os Haag: Quem não sabe dançar improvisa 414 Atividades 415 Capitulo 3S Arte como fonna de pensamento 416 1. Retrato de uma infância 417 / 2. Arte é conhecimento intuitivo do mundo 417 / 3. Funções da arte 421/ 4 . O conhecimento pela arte 423 Leitura complementar Tonica Chagas: Industrialização das tintas e seu reflexo nas artes 424 Atividades 426 Capitulo 36 A significação na arte 427 1. A especi fi cidade da informação estética 428 / 2. A forma 429 / 3. O conteúdo 431 / 4. A educação em arte 433 / 5. A importância de saber ler uma imagem 434 Leitura complementar José Teixeira Coelho Netto: Interpretação 435 Atividades 436 Capitulo 37 Concepções estéticas 437 1. Isto é arte? 437 / 2. A arte grega e o conceito de naturalismo 439/ 3. A estética medieval e a estilização 441/ 4. O naturalismo renascentista 442/ 5. Racionalismo e academismo: a estética normativa 442/ 6. Os empiristas ingleses 443 / 7. Kant e a crítica do juízo estético 444/ 8. O idealismo de Schiller 445 / 9. A estética romântica 445/ 10 . A modernidade e o formalismo 446/ 11. O pós-modernismo 447/ 12. O pensamento estético no Brasil 448/ 13. Como ficamos? 449 Leitura complementar Gilles Lipovetsky: Novidade 450 Atividades 451 Quadro cronológico 452 Correntes filosóficas do século XX 455 Vocabulário 456 Sugestões bibliográficas 460 rndice de nomes 463 Sugestões 468 12 ~ Capitulo 1 A experiência filosófica, 14 p 'tulo 2 A consoiência minca, 25 Cap tulo 3 O nascimento da filosofia, 36 Mulher chorando. Pablo Picasso,1937­ D Como é o pensar do filósofo? Leia o relato do filósofo francês André Com te­ -SponviUe: [...] A cena se desenrola no início do século XX, num lugarejo da França rural. Um jovem professor de filosofia passeia com um amigo eencontra um camponês, que seu amigo conhece, lhe apresenta e com o qual nosso filósofo troca algumas palavras. - Oque o senhor faz! - indaga o camponês - Sou professor de filosofia . - Isso é profissão! - Por que não! Acha estranho! - Um pouco' - Por quê? - Um filósofo é uma pessoa que não liga para nada ... Não sabia que se aprendia isso na escola . Na continuidade do texto, Sponville assim comenta o diálogo: oque é um filósofo? Éalguém que pratica a filosofia , em outras palavras, que se serve da razão para tentar pensar o mundo e sua própria vida, a fim de se aproximar da sabedoria ou da felicidade. E isso se aprende na escola? Tem de ser aprendido, já que ninguém nasce filósofo e já que a filosofia é, antes de mais nada, um trabalho. Tanto melhor, se ele começar na escola. O importante é começar, e não parar mais. Nunca é cedo demais nem tarde demais para filosofar, dizia Epicuro [.. .]. Digamos que só é tarde demais quando já não é possível pensar de modo algum. Pode acontecer. Mais um motivo para filosofar sem mais tardar. 1 Heráclito e Demócrito, afresco de Donato Bramante, c. 1500. O artista representa uma velha história sobre os pré-socráticos Heráclito e Demócrito (séc. V a.c.), segundo a qual o primeiro era o "filósofo que chora" e o outro o "filósofo que ri". Em que medida um filósofo pode lamentar ou ironizar o comportamento das pessoas? otexto de Sponville termina com uma constatação: a de que só não filosofam aqueles para quem "já não é possível pensar de modo algum". Nesse ponto, cabe a pergunta: afinal, só pensa e reflete quem filosofa? É claro que não, já que você pensa quando resolve uma equação matemática, reflete criticamente ao estudar história geral, pensa antes de decidir sobre o que fazer no fim de semana, pensa quando escreve um poema. Então, que tipo de "pensar" é esse, do filósofo? Não é melhor nem superior a todos os outros, mas sim dife­ rente, porque se propõe a "pensar nossos pensamen­ tos e ações". Dessa atitude resulta o que chamamos experiência filosófica. Ao criar ou explicitar conceitos, os filósofos delimitam os problemas que os intrigam e buscam o sentido dessespensamentos e ações, para não aceitarem certezas e soluções fáceis demais. Se olharmos com atenção esta tira do cartunista argentino Quino, constatamos que Mafalda faz uma interrogação filosófica sobre o sentido da existência, mas seu amigo Felipe quer se livrar o mais rapidamente dessa questão, ou seja, recusa-se a essa forma de pensar. AlGUMA VE Z VocÊ.J/ô. SE PERGUNTOU PARA QuE A GENTE ESTA" NESTE MUNDO? r-­ --- ­ NUNCA. MAS ~STOU ME PERGUNTANDO AGORA: .. PARA QUE A GENTE ESTA NESTE MUNDO"" QUANTO MAIS DEPRESSA A GENTE SE LIVRAR DESSE TIPO DE PROBLEMA, MEU-tOR' Tirinha da Mafalda, personagem criada pelo argentino Quino.Mafa/da 3, 1968. Em: LAVADO, Joaquim Salvador (Quino). Toda Mafa/da: da primeira à última tira . São Pa ulo: Martins Fontes, 1991. p. 79. COMTE-SPONVlLLE, André. Dicionáriofilosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 251-252. Aexperiência filosófica Capítulo 1 I .-~------------~~ ~~----------------~~-, r--======~~======~--Iô MILHÕES E MILHÕES AFINAL DE CONTAS, PARA ;:; DE PESSOAS VIVEM NO MUNDO. PARA QUE A GENTE EST~ NO QuÊ" MUNDO? Tirinha da Mafalda, personagem criada pelo argentino Quina. Mafa/da 3, 1968. Em: LAVADO,Joaquim Salvador (Quina). Toda Mafa/da: da primeira à última tira. São Paulo: Martins Fontes,1991. p. 79. Os que acompanham o trabalho de Quino sabem que Manolito tem uma mentalidade 12m mática. Por isso, nesta outra tira, promete dar uma resposta no dia seguinte, sem perceber que essa pergunta fundamen­ tal não depende de procurar uma informação qual­ quer. Trata-se de um problema filosófico permanen­ temente aberto à discussão e para o qual não existe . resposta unânime. fJ A filosofia de vida Talvez você tenha percebido que existe outra ideia permeando a explicação dada por Sponville no início do capítulo: a de que é possível a qualquer pessoa pro­ por questões filosóficas. De fato, na medida em que somos seres racionais e sensíveis, sempre damos sen­ tido às coisas. A esse "filosofar" espontâneo de todos nós, chamamos de filosofia de vida. A propósito desse assunto, o filósofo italiano Antonio Gramsci diz: não se pode pensar em nenhu m homem que não seja também filósofo, que não pense, precisamente porque o pensar é próprio do homem como tal. 2 Então as questões filosóficas fazem parte do nosso cotidiano? Fazem sim. Quando alguém decide votar em um candidato por ser de determinado par­ tido político; quando troca o emprego por outro não tão bem remunerado, mas que é mais de seu agrado; quando alterna a jornada de trabalho com a prática de esporte ou com a decisão de ficar em casa assis­ tindo à tevê; quando investe na educação dos filhos, e assim por diante. É preciso reconhecer que exis" tem critérios bem diferentes fundamentando tais decisões, pois há valores que entram em jogo nes­ sas escolhas, e a indagação sobre os valores é uma tarefa filosófica. Q 8 i o<:5 z s o Q Quantas vezes você já se perguntou sobre o que é o amor, a amizade, a fidelidade, a solidão, a morte? Certamente, não só pensou sobre esses assuntos, como eventualmente discutiu a respeito com seus amigos, observando que às vezes os pontos de vista não coincidem. Essas divergências também ocorrem entre os filósofos . Com isso, não identificamos a filosofia de vida com a reflexão do filósofo propriamente dita, mas nota­ mos que as indagações filosóficas permeiam a vida de todos nós. Os filósofos especialistas conhecem a história da filosofia e levantam problemas que ten­ tam equacionar não pelo simples bom-senso, mas por meio de conceitos e argumentos rigorosos. Por conta dessa afinidade que todos temos com o filosofar, parece claro que seria proveitoso sabermos um pouco sobre como os filósofos se posicionaram a respeito de determinados temas. Desse modo, você poderá enriquecer sua reflexão pessoal por meio de uma argumentação mais rigorosa, o que não significa sempre concordar com eles. Muito pelo contrário, a dis­ cussão filosófica está sempre aberta à controvérsia. D Para 'que serve a filosofia? Retomando o texto de abertura do capítulo: será que a opinião do camponês destoa do que muita gente pensa a respeito do filósofo, quando diz ser ele "uma pessoa que não liga para nada"? Essa ideia não estaria ligada a outra: a de achar que a filosofia não serve para nada? Afinal, qual é a "utilidade" da filosofia? Vivemos num mundo que valoriza as aplicações imediatas do conhecimento. O senso comum aplaude a pesquisa científica que visa à cura do câncer ou da aids; a matemática no ensino médio seria importante Pragmático. No contexto, aquilo que diz respeito à aplicação prática, à utilidade. GRAMSCl, Antonio. Obras escolhidas. São Paulo: Martins Fontes, 1978. p. 45. Unidade 1 Descobrindo a filosofia por "cair" no vestibular; a formação técnica do advo­ gado, do engenheiro, do fisioterapeuta prepara para o exercício dessas profissões. Diante disso, não é raro que alguém indague: "Para que estudar filosofia se não vou precisar dela na minha vida profissional?" De acordo com essa linha de pensamento, a filo­ sofia seria realmente "inútil", já que não serve para nenhuma alteração imediata de ordem prática. No entanto, a filosofia é necessária. Por meio daquele "olhar diferente", ela busca outra dimensão da reali­ dade além das necessidades imediatas nas quais o individuo encontra-se mergulhado: ao tornar-se capaz de superar a situação dada e repensar o pensamento e as ações que ele desencadeia, o individuo abre-se para a mudança. Tal como o artista, a que nos referimos na abertura do capítulo, ao filósofo incomoda o imobi­ lismo das coisas feitas e muitas vezes ultrapassadas. Por isso mesmo, a filosofia pode ser "perigosa", por exemplo, quando desestabiliza o ,staJus quo ao se con­ frontar com o poder. É o que afirma o historiador da filosofia François Châtelet: Desde que há Estado - da cidade grega às burocracias contemporâneas -, a ideia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes [... ]. Por conseguinte, a contribuição específica da filosofia que se coloca a serviço da liberdade, de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da polícia, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, °que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-Ia, arrancá-la .. 3 PARA REFLETIR Sempre há os que ignoram os filósofos. Mas não é o caso dos ditadores: estes os fazem calar, pela censura, porque bem sabem quanto eles ameaçam seu poder. É bem verdade, alguns dirão, sempre houve e ainda haverá pensadores que bajulam os poderosos e que emprestam suas vozes e argumentos para defender tiranos. Nesse caso, porém, estamos diante das fra­ quezas do ser humano, seja por estar sujeito a enga­ nos, seja por sucumbir ao temor ou ao desejo de pres­ tígio e glória. m Informa~ão, conhecimento e sabedoria Para melhor entender o campo da experiência filo­ sófica, o filósofo espanhol Fernando Savater faz uma distinção entre informação, conhecimento e sabedoria. Aproveitamos os três tópicos para comentá-los livre­ mente a seguir. ., Informação Ao lermos um jornal, uma determinada notícia pode nos chamar a atenção, como a que simulamos a seguir, a partir de dados recolhidos na mídia. A gravidez na adolescência quase sempre é uma gravidez não planejada e, por isso, indesejada. Desde 1970, a incidência de casos tem aumentado significativamente, ao mesmo tempo que tem diminuído a média de idade das adolescentes grávidas. Na maioria das vezes, a gravidez na adolescência ocorre entre a primeira e a quinta relação sexual , e a jovem grávida procura o serviço de saúde para fazer o pré-natal apenas entre o terceiro e o quarto mês de gravidez. ., Conhecimento Para explicar essa notícia, podemos lançar mão de uma série de conhecimentos. Por exemplo: • a ciência da história descreve as transformações do comportamento sexual desde a década de 1960 e analisa suas causas, mostrando o afrou­ xamento das regras que proibiam a atividade sexual antes do casamento, principalmente para as mulheres; • a sociologia investiga a repercussão desses compor­ tamentos nos novos modelos de farruila (aumento do número de divórcios; liberação da mulher; ampliação do espaço da mulher no mercado de trabalho; as famílias monoparentais, em que as crianças vivem apenas com um genitor, na maior parte das vezes, a mãe; as uniões de pessoas do mesmo sexo); • a biologia descreve como se dá a concepção - e descobre processos de contracepção -, conheci­ mentos que podem explicar os riscos da gravidez precoce para a saúde das mais jovens; Status quo. Expressão latina que significa estado atual das coisas, situação vigente. CHÂTELET, François. História dafilosofia: ideias, doutrinas. v. VJII. Rio de Janeiro: Zahar, s. d. p. 309. Aexperiência filosófica Capítulo 1 3 • A reflexão filosófica Já dissemos que a reflexão não é privilégio do filó­ sofo. O que, portanto, distingue a reflexão filosófica das demais? O filósofo brasileiro Dermeval Saviani, no livro Educação brasileira: estrutura e sistema, na tentativa de se aproximar de uma definição possível, concei­ tua a filosofia como uma reflexão ~, rigorosa e de conjunto sobre os problemas que a realidade apre­ senta. Explicaremos esses três tópicos. E ETIMOLOGIA Reflexão. Reflectere, em latim, significa "fazer retroce­ der", "voltar atrás". Portanto, refletir é retomar o pró­ prio pensamento, pensar o já pensado, voltar para si mesmo e questionar o já conhecido. Radical. Em latim, rad;x, rad;c;s significa "raiz", mas também "fundamento", "base". a) Radical A filosofia é radical, não no sentido corriqueiro de ser inflexível- nesse caso seria a antifilosofia! -, mas porque busca explicitar os conceitos fundamen­ tais usados em todos os campos do pensar e do agir. Por exemplo, a filosofia das ciências examina os pres­ supostos do saber científico: é ela que reflete sobre o que a comunidade científica define como ciência, como a ciência se distingue da filosofia e de outros tipos de saber, quais são as características dos diver­ sos métodos científicos, qual a dimensão de verdade das teorias científicas e assim por diante. O mesmo se dá com a psicologia, ao abordar o conceito de liber­ dade: indagar se o ser humano é livre ou determinado já é fazer filosofia. b)Rigorosa Os filósofos desenvolvem um pensamento rigo­ roso, justificado por argumentos, coerente em suas diversas partes. O uso de linguagem rigorosa evita as ambiguidades das expressões cotidianas, o que permite a interlocução com outros filósofos a partir de conceitos claramente definidos. Por isso criam expressões novas ou alteram o sentido de palavras usuais. Por exemplo, enquanto o termo ideia no grego arcaico (eidos: "forma") significava a intuição sensível de uma coisa (aquilo que se vê ou é visto), Platão criou o conceito de ideia para referir-se à concepção racional do conhecimento, a forma ima­ terial de uma coisa. Por exemplo, as pessoas e as coisas belas são percebidas pelos meus sentidos, mas a beleza é uma ideia pela qual compreendo a essência - ou seja, aquilo que faz com que uma Unidade 1 Descobrindo a filosofia coisa seja bela. Nesse sentido, para ele as ideias são mais "reais" que as próprias coisas. No entanto , o conceito de ideia seria rein­ ventado ao longo da história da filosofia , assu­ mindo conotações diferentes em Descartes, Kant, Hegel e assim por diante. É pelo rigor dos conceitos que se inovam os caminhos da reflexão. E isso não significa que um filósofo "suplanta" outro, porque qualquer um deles pode ­ e deve - ser revisitado sempre. PARA REFlETIR Você já ouviu falar em ética aplicada? É um ramo da filosofia contemporânea que trata de questões práti­ cas que, por sua vez,exigem justificação racional. São ramos da ética aplicada: a bioética, a ética ambien ­ tai e a ética dos negócios, que refletem, por exemplo, sobre a manipulação do genoma humano, o desastre ecológico e a responsabiliqade social das empresas, respectiva mente. Fotocomposição mostrando mãos que envolvem o planeta Terra, 2000. A partir dessa figura, faça uma reflexão sobre a ética ambiental: quais são as responsabilidades humanas (para o bem e para o mal) pelo destino do planeta? Proponha um titulo para a imagem e escreva um breve texto sobre o assunto. c) De conjunto A filosofia é um tipo de reflexão totalizante. de conjunto. porque examina os problemas relacio­ nando os diversos aspectos entre si. Mais ainda. o objeto da filosofia é tudo. porque nada escapa a seu interesse. Por exemplo, o filósofo se debruça sobre assuntos tão diferentes como a morai, a política, a ciência. o mito, a religião. o cômico, a arte, a téc­ nica. a educação e tantos outros. Daí o caráter trans­ disciplinar da filosofia, ao estabelecer o elo entre as diversas expressões do saber e do agir. Desse modo. o avanço da biologia genética desperta a discussão filosófica da bioética; a produção artística provoca a reflexão estética e assim por diante. ++ PARA SABER MAIS As áreas de investigação filosófica Os campos clássicos da investigação filosófica são: Lógica, Metafísica, Teoria do Conhecimento, Epistemologia, Filosofia Politica, Ética, Estética. Para saber de sua abrangência , consulte os verbetes no Vocabulário, no final do livro. Existem também inúmeras aplicações da filosofia a áreas específicas do conhecimento. Veja alguns exem­ plos:filosofia da educaçào, fi losofia da linguagem, filo­ sofia do direito, filosofia da religião, filosofia de cada uma das ciências (filosofia da matemática,da história, da biologia etc.) e assim por diante. mUm filósofo Lembremos a figura de Sócrates. Dizem que era um homem feio, mas que, quando falava, exercia estra­ nho fascínio. Procurado pelos jovens, passava horas discutindo na praça pública. Interpelava os transeun­ tes, dizendo-se ignorante, e fazia perguntas aos que julgavam entender determinado assunto: "O que é a coragem e a covardia?", "O que é a beleza?", "O que é a justiça?", "O que é a virtude?". Desse modo, Sócrates não fazia preleções, mas dialogava. Ao final, o inter­ locutor concluía não haver saída senão reconhecer a própria ignorância. A discussão tomava então outro rumo, na tentativa de explicitar melhor o conceito. Vejamos então esses dois momentos, que Sócrates denominou ~ e maiêutica. E ETIMOLOGIA Ironia. Do grego eironeía, "ação de perguntar, fingindo ignorar". Maiêutica. Do grego maieutiké, "arte de fazer um parto". No sentido comum, usamos a ironia para dizer algo e expressar exatamente o contrário. Por exemplo: afir­ mamos que alguma coisa é bonita, mas na verdade insinuamos que é muito feia. Diferentemente, para Sócrates, a ironia consiste em perguntar, simulando não saber. Desse modo, o interlocutor expõe sua opi­ nião, à qual Sócrates contrapõe argumentos que o fazem perceber a ilusão do conhecimento. A maiêutica centra-se na investigação dos concei­ tos. Para tanto, Sócrates faz novas perguntas para que seu interlocutor possa refletir. Portanto não ensina, mas o interlocutor descobre o que já sabia. Sócrates dizia que, enquanto sua mãe fazia parto de corpos, ele ajudava a trazer à luz ideias. O interessante nesse método é que nem sempre as discussões levam de fato a uma conclusão efetiva, mas ainda assim trazem o benefício de cada um abando­ nar a sua doxa, termo grego que designa a opinião, um conhecimento impreciso e sem fundamento. A partir dai, é possível abandonar o que se sabia sem crítica e atingir o conhecimento verdadeiro. OUEMB Sócrates (c. 470-399 a.c.). Nasceu e viveu em Atenas, Grécia. Filho de um escultor e de uma parteira, Sócrates conhecia a doutrina dos filósofos que o antecederam e de seus contemporâneos. Discutia em praça pública sem nada cobrar. Nào deixou livros, por isso conhecemos suas ideias por meio de seus discí­ pulos, sobretudo Platão e Xenofonte. Acusado de corromper a mocidade e negar os deuses oficia is da cidade, foi condenado à morte. Esses aconteci­ mentos fina is são relatados no d iá logo de Platão, Defesa de Sócrates.Em outra obra, Fédon, Sócrates discute com os discípulos sobre a imortalidade da alma, enquanto aguarda o momento de beber a cicuta. Na maioria dos diálogos platônicos, Sócrates é o protagonista. • uSó sei que nada sei" Em certa passagem de a Defesa de Sócrates, na qual se refere às calúnias de que foi vítima, o pró­ prio filósofo lembra quando esteve em Delfos, local em que as pessoas consultavam o orá­ culo no templo de Apolo para saber sobre assun­ tos religiosos, políticos ou ainda sobre o futuro. Busto de Sócrates, original grego do século IV a.c. Oráculo. Resposta da divindade às perguntas feitas pelos devotos. A experiência filosófica Capítulo 1 Lá, quando o seu amigo Querofonte consultou P'tia indagando se havia alguém mais sábio do que seu mestre Sócrates, ouviu uma resposta negativa. Surpreendido com a resposta do oráculo, Sócrates resolveu investigar por si próprio quem se dizia sábio. Sua fala é assim relatada por Platão: Fui ter com um dos que passam por sábios, porquanto, se havia lugar, era ali que, para rebater o oráculo, mostraria ao deus: "Eis aqui um mais sábio que eu, quanto tu disseste que eu o era!". Submeti a exame essa pessoa­ é escusado dizer o seu nome: era um dos políticos. Eis, Atenienses, a impressão que me ficou do exame e da conversa que tive com ele; achei que ele passava por sábio aos olhos de muita gente, principalmente aos seus próprios, mas não o era. Meti-me, então, a explicar-lhe que supunha ser sábio, mas não o era. A consequência foi tornar-me odiado dele e de muitos dos circunstantes. Ao retirar-me, ia concluindo de mim para comigo: "Mais sábio do que esse homem eu sou ; é bem provável que nenhum de nós saiba nada de bom, mas ele supõe saber alguma coisa e não sabe, enquanto eu, se não sei, tampouco suponho saber. Parece que sou um nadinha mais sábio que ele exatamente em não supor que saiba o que não sei". Daí fui ter com outro, um dos que passam por ainda mais sábios e tive a mesmíssima impressão; também ali me tornei odiado dele e de muitos outros? Ao ler essa passagem, podemos entender como a máxima socrática "só sei que nada sei" surgiu como ponto de partida para o filosofar. Podemos então fazer algumas observações: • Sócrates não está voltado para si mesmo como um pensador alheio ao mundo, e sim na praça pública. • Seu conhecimento não deriva de um saber aca­ bado, porque é vivo e em processo de se fazer, tendo por conteúdo a experiência cotidiana. • Guia-se pelo princípio de que nada sabe e, dessa perplexidade primeira, inicia a interrogação e o questionamento de tudo que parece óbvio. • Ao criticar o saber dogmático, não quer com isso dizer que ele próprio seja detentor de um saber. Desperta as consciências adormecidas, mas não se considera um "farol" que ilumina: o caminho novo deve ser construído pela discussão, que é inters .etiva e pela busca das soluções. • Sócrates é "subversivó' porque "desnorteiá', per­ turba a "ordem" do conhecer e do fazer, e por isso incomoda tanto os poderosos. Em um cântaro ático (séc. V a.c.), a Pítia é consultada por um rei. Muitas cidades gregas tinham oráculos, nos quais sacerdotisas chamadas de Pitias ou Pitonisas atendiam pessoas que vinham de longe para consultá-las sobre problemas pessoais, de negócios ou de politica. Em Delfos, um dos mais importantes oráculos, a Piha, em transe, ouvia o deus Apolo. Suas respostas eram interpretadas por sacerdotes com palavras sábias, mas às vezes ambiguas. li Para não concluir ... Começamos este capítulo com o diálogo em que um camponês pensa que "um filósofo é uma pessoa que não liga para nada". E terminamos com Sócrates, que, interrogando as pessoas que transitavam pela praça pública, as fazia pensar, o que despertou a ira dos poderosos. Entretanto, teria o filósofo resposta para tudo? É lógico que não. Vimos que Sócrates faz muitas per­ guntas, questiona, busca interlocutores a fim de com­ partilhar e discutir suas indagações. Mas nem sempre esses diálogos chegavam a uma resposta definitiva. Por isso costumamos dizer que a filosofia é a procura, mas não a posse, da verdade. Pítia. Também chamada Pitonisa. Sacerdoti sa que, em transe, proferia a resposta do deus Apolo às perguntas form u I adas. Dogmático. No contexto, saber baseado em crença não justificada, sem questionamentos. Intersubjetivo. Entre sujeitos, entre diferentes pessoas. PLATÃO. Defesa de Sócrates. v. lI. São Paulo: Abril Cultural, 1972. p. 15. (Coleção Os Pensadores). Un idade 1 Descobrindo a filosofla I ..I I J Aquedtl dt koro. Peter Paul Rubens, (16~ 638). Esta tela do pintor flamengo Peter Paul Rubens faz menção a tcaro, personagem mitico. Segundo uma das versões do mito grego, Dédalo e seu filho tcaro estavam presos no labirinto de ereta, corno castigo por ter ajudado Teseu a encontrar o Minotauro e matá-lo. Assim relata Pierre Grirnal: "Dédalo, a quem não faltavam recursos, fabricou para tcaro e para si mesmo umas asas que cotou com cera aos seus ombros e aos do filho. Em seguida, ambos levantaram voo. Antes de partir, Dédalo recomendara a tcaro que não voasse nem muito baixo nem muito alto. tcaro, porém, orgulhoso, não deu ouvidos aos conselhos do pai e elevou-se nos ares, aproximando-se tanto do Sol que a cera derreteu e o imprudente caiu no mar que, a partir desse momento, se chamou Mar Icário".1 A partir da imagem e do relato acima, e antes de ler o capitulo, explique que signüicado um mito teria para os povos da Antiguidade. Em seguida, elabore uma interpretação atual para o mito de tcaro. I Dicionário da. mitologia. grega. e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, s. d. p. 241. 25 Dois relatos míticos Costumamos dizer que a filosofia é grega, por ter nascido nas colônias gregas no século VI a.C. E antes da filosofia, que tipos de pensamentos ocupavam a mente das pessoas? Vamos primeiro examinar o mito, modo de cons­ ciência que predomina nas sociedades tribais e que nas civilizações da Antiguidade ainda exerceu sig­ nificativa influência. Ao contrário, porém, do que muitos supõem, o mito não desapareceu com o tempo. Está presente até hoje, permeando nossas esperanças e temores, como veremos. Entre os povos indígenas habitantes das ter­ ras brasileiras, encontramos várias versões sobre a origem da noite. Um desses relatos é o dos maué, nativos dos rios Tapajós e Madeira. Segundo eles, no início só havia o dia. Cansados da luz, foram ao encontro da Cobra-Grande, a dona da noite. Ela atendeu ao pedido com a condição de que os indí­ genas lhe dessem o veneno com que os pequenos animais como aranhas, cobras e escorpiões se pro­ tegiam. Em troca, receberam um coco com a reco­ mendação de só abri-lo ao chegarem à maloca. Ao ouvirem ruídos estranhos saindo dele, não resisti­ ram à tentação e assim deixaram escapar anteci­ padamente a escuridão da noite. Atônitos e perdi­ dos, pisaram nos pequenos bichos, cujas picadas venenosas mataram muitos deles. Desde então, os sobreviventes aprenderam os cuidados que deve­ riam tomar quando a noite viesse. De modo semelhante aos maué, os gregos dos tem­ pos homéricos narram o mito de Pandora, a primeira mulher. Em uma das muitas versões desse mito, Zeus enviou um presente aos humanos, mas com a intenção de puni-los por terem recebido o fogo do titã Prometeu, que o roubara dos Céus. Pandora levava consigo uma caixa, que abriu por curiosidade, deixando escapar todos os males que afligem a humanidade. Conseguiu, porém, fechá-la a tempo de reter a esperança, única maneira de suportarmos as dores e os sofrimentos da vida. Nos dois relatos, percebemos situações aparen­ temente diversas, mas que se assemelham, pois ambos tratam da origem de algo: entre os indígenas, como surgiu a noite; e entre os gregos, a origem dos males. E trazem como consequências dificuldades que as pessoas devem enfrentar. A leitura apressada do mito nos leva a com­ preendê-lo como uma maneira fantasiosa de expli­ car a realidade, quando esta ainda não foi justificada pela razão. Sob esse enfoque, os mitos seriam len­ das, fábulas, crendices e, portanto, um tipo inferior de conhecimento, a ser superado por explicações mais racionais. Tanto é que, na linguagem comum, costuma-se identificar o ~ à mentira. E ETIMOLOGIA Mito. Mythos, em grego, significa "palavra", "o que se diz", "narrativa". A consciência mítica é predomi­ nante em culturas de tradição oral, quando ainda não há escrita. o pintor pernambucano Rego Monteiro é um artista do modernismo brasileiro que recorre aos temas dos mitos indígenas. Nessa aquarela. vemos o contraste entre as raízes arcaicas indígenas e o tratamento contemporâneo da imagem. Observe o traço fino. a delicadeza dos gestos - o índio mais parece um bailarino - e a moça. que se deixa levar sem resistência. Ao fundo. a lua emoldura o casal. Que mito está representado na pintura? Oboto é um mamífero cetáceo comum nas águas do Rio Amazonas. Segundo a lenda do Boto'Cor'de-Rosa, à noite ele emerge do rio e se transforma em um belo e irresistivel homem que seduz as moças e as engravida. As mães advertem as filhas para o perigo que ele representa. Tal como na proposta de Rego Monteiro, podemos nos perguntar: o que esse mito tem a nos dizer hoje? o boto. Vicente do Rego Monteiro, 1921 . Unidade 1 Descobrindo a filosofia No entanto, o mito é mais complexo e muito mais expressivo e rico do que supomos quando apenas o tomamos como o relato frio de lendas desligadas do ambiente que as fez surgir. Não só os povos tribais ou as civilizações anti­ gas elaboram mitos. A consciência mítica persiste em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender e sobretudo sentir a realidade, como veremos adiante. fJ O que é mito? Como processo de compreensão da realidade, o mito não é lenda, pura fantasia, mas verdade. Quando pensamos em verdade, é comum nos referirmos à coerência lógica, garantida pelo rigor da argumen­ tação e pela apresentação de provas. A verdade do mito, porém, resulta de uma intuição compreensiva da realidade, cujas raízes se fundam na emoção e na afetividade. Nesse sentido, antes de interpretar o mundo de maneira argumentativa, o mito expressa o que desejamos ou tememos, como somos atraídos pelas coisas ou como delas nos afastamos. Não se trata, porém, de qualquer intuição. Para melhor circunscrever o conceito de mito, precisa­ mos de outro componente - o mistério -, pois ele sempre é um enigma a ser decifrado e como tal representa nosso espanto diante do mundo. U'PARA REFLEtIR o mistério éalgo que não podemos compreender, por ser inacessível à razão edepender da fé. Um problema éalgo que ainda não compreendemos, mas cuja res­ posta nos esforçamos para descobrir. Você poderia dar um exemplo de cada um desses conceitos? Segundo alguns intérpretes, o "falar sobre o mundo" simbolizado pelo mito está impregnado do desejo humano de afugentar a insegurança, os temo­ res e a angústia diante do desconhecido, do perigo e da morte. Para tanto, os relatos míticos se sustentam na crença, na fé em forças superiores que protegem ou ameaçam, recompensam ou castigam. Entre as comunidades tribais, os mitos consti­ tuem um discurso de tal força que se estende por todas as esferas da realidade vivida. Desse modo, o sagrado (ou seja, a relação entre a pessoa e o divino) permeia todos os campos da atividade humana. Por isso, os modelos de construção mítica são de natu­ reza sobrenatural, isto é, recorre-se aos deuses para essa compreensão do real. li Os rituais Segundo Mircea Eliade, historiador romeno estu­ dioso das religiões, uma das características do mito é fixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas. Desse modo, os gestos dos deuses são imitados nos rituais. Essa é a justificativa dada pelos teólogos e ritualis­ tas hindus: "Devemos fazer o que os deuses fizeram no princípio"; ''Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens". Eliade exemplifica com a resposta dada pelos arunta, povos nativos da Austrália, a respeito da maneira pela qual celebravam as cerimônias: "Porque os ancestrais assim o prescreveram". Em seus rituais, porém, os arunta não se limitavam a representar ou imitar a vida, os feitos e as aventuras dos ancestrais: tudo se passava como se os antepas­ sados aparecessem de fato nas cerimônias. O tempo sagrado é, portanto, reversível, ou seja, a festa religiosa não é simples comemoração, mas a ocasião pela qual o evento sagrado, que teve lugar no passado mítico, acontece novamente. Caso con­ trário, a semente não brotará da terra, a mulher não será fecundada, a árvore não dará frutos, o dia não sucederá à noite. Sem os ritos, é como se os fatos naturais descritos não pudessem se concretizar . • Exemplos de rituais A maneira mágica pela qual os povos tribais agem sobre o mundo pode ser exemplificada pelos inúme­ ros ritos de passagem: do nascimento, da infância para a idade adulta, do casamento, da morte. Assim diz Mircea Eliade: ... quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física, não é ainda reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos que se efetuam imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de 'vivo' propria mente dito; é somente graças a estes ritos que ele fica integrado na comunidade dos vivos. [...] Para certos povos, [...] a morte de uma pessoa só é reconhecida como válida depois da realização das cerimõnias funerárias, ou quando a alma do defunto foi ritual mente conduzida à sua nova morada, no outro mundo, e lá embaixo, foi aceito pela comunidade dos mortos 2 ELlADE, Mircea. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s. d. p. 143-144. Aconsciência mítica Capítulo 2 Enquanto outros teóricos interpretam os rrútos pela sua funcionalidade e se baseiam nos elementos particu­ lares, na pura subjetividade ou na história de um deter­ minado povo, Lévi-Strauss busca os elementos inva­ riantes, que persistem sob diferenças superficiais. Para tanto, interessam-lhe os sistemas de rela­ ções de parentesco, filiação, comunicação lin­ guistica, troca econômica etc., comuns a todas as sociedades. Por exemplo, uma regra universal é a proibição do incesto. Esse interdito tem o lado posi­ tivo de garantir a exogamia. ou seja, a união com pessoas de outro grupo. ETIMOLOGIA Exogamia. Palavra composta por dois termos gregos: exo, "fora de", e gamos, "casa mento". Segundo Lévi-Strauss, o mito não é, como se cos­ tuma dizer, o lugar da fantasia e do arbitrário, mas pode ser compreendido a partir de uma estrutura lógico-formal subjacente, pelo lugar que cada ele­ mento ocupa em determinada estrutura. Assim ele explica: Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos [através das estruturas] se pensam nos homens, e à sua revelia. q mO mito nas civilizações antigas Até aqui, tudo o que dissemos sobre os mitos nos remete aos povos tribais, cujas relações permane­ cem igualitárias. Nas sociedades mais complexas, com novas técnicas e ofícios especializados, desen­ volvimento da agricultura, pastoreio e comércio de excedentes, começaram a se estabelecer hierarquias entre segmentos sociais, inclusive introduzindo a escravidão. Assim floresceram as primeiras grandes civili­ zações, como na Mesopotâmia, no Egito, na Índia, na China e em Israel. As duas primeiras são as mais antigas e teriam surgido por volta do final do quarto milênio a.C. É bom lembrar que essas datas são aproximativas, uma vez que dependem de interpretações históricas muitas vezes diver­ gentes entre si. Nessas civilizações tão antigas o mito era com­ ponente importante da cultura, mas as instituições religiosas, por se tornarem mais elaboradas, pro­ vocaram a separação entre o espaço sagrado dos santuários e o espaço profano da vida cotidiana, O poder era exercido pela classe sacerdotal ou por seu representante máximo, como o faraó, soberano considerado um deus. Esse poder, em alguns casos, tor~ava-se teocrático. O culto exigia monumentos grandiosos, como os templos e as pirâmides, onde eram sepultados os reis. • Os deuses gregos A civilização grega teve início por volta do sécu­ lo XX a.C. (entre 2000 e 1900 a.C), quando invasores de origem indo-europeia ocuparam o continente, dando início à civilização a ueia (ou micênica). Nessa época a Grécia ainda se chamava Hélade e era constituída por diversas regiões autônomas, mas que mant~veram a língua e a unidade cultural. A religião dos gregos era politeísta, Os deu­ ses, habitantes do monte Olimpo, eram imortais, embora tivessem comportamentos semelhantes aos dos homens, sendo às vezes benevolentes e também agindo por inveja ou vingança. Entre as obrigações a eles devidas, como oferendas, preces e sacrifícios, destacam-se as peregrinações aos grandes santuá­ rios, tais como Delfos, onde se consultava o oráculo, como vimos no capítulo anterior. a) Homero Os mitos gregos surgiram quando ainda não havia escrita e eram transmitidos por poetas ambulantes chamados aedos e rapsodos, que os recitavam de cor em praça pública. Nem sempre é possível identificar a autoria desses poemas, por serem produção cole­ tiva e anônima. ++ PARA SABER MAIS Você sabe como identificar datas tão remotas? Vamos dar um exemplo: o ano de 3500 a.c. per­ tence a que milênio? Para saber, dividimos 3-500 por 1.000. O resultado é 3 (despreza-se a fração). Acrescentamos 1 e temos 4, ou seja, o ano de 3500 pertence ao 4° milênio. Para saber a que século cor­ responde este ano, dividimos 3-5°0 por 100 e acres­ centamos 1. Temos 36, portanto, século XXXVI a.c. Teocracia. Do grego theo, "deus", e kratia, "poder". Poder político que se funda no poder religioso. Aqueu. Oriundo da Acaia. região do norte da Península do Peloponeso. LÉVI-STRAUSS, Claude. ocru e o cozido. São Paulo: Cosac & Nai.fy, 2004. p. 31. Unidade 1 Descobrindo a filosofia Atribuem-se a Homero, um desses poetas, dois poemas épicos, as epopeias JUada e Odisseia. Existem, no entanto, controvérsias a respeito da época em que Homero teria vivido - século IX ou VIII a.C.? - e até se ele realmente existiu. Segundo alguns intérpretes, as epopeias representam fatos e mitos recolhidos por diversos autores, o que se verifica pela diversidade de estilos dos dois poe­ mas e pelas passagens indicativas de períodos his­ tóricos diferentes. •• PARA SABER MAIS A llíada trata da guerra de Troia (que em grego é ílion) e a Odisseia, do retorno a ítaca, terra natal de Ulisses (Odisseus é o nome grego de Ulisses). Essa viagem foi cheia de peripécias, por isso cos­ tumamos chamar de odisseia uma aventura mirabolante. Na vida dos gregos, as epopeias desempenharam um papel pedagógico significativo. Descreviam a história grega - o período da civilização micênica­ e transmitiam os valores culturais mediante o relato das realizações dos deuses e dos antepas­ sados. Por expressarem uma concepção de vida, desde cedo as crianças decoravam passagens des­ ses poemas. As ações heroicas relatadas nas epopeias mos­ tram a constante intervenção dos deuses, ora para auxiliar o protegido, ora para perseguir o inimigo. O indivíduo é presa do Destino, que é fixo, imutável. Assim diz o troiano Heitor: Nenhum homem me fará descer à casa de Hades contrariando o meu destino. Nenhum homem, afirmo, jamais escapou de seu destino, seja covarde ou bravo, depois de haver nascidoS O herói VlVla, portanto, na dependência dos deuses e do destino, faltando a ele a noção de von­ tade pessoal, de liberdade. Mas isso não o diminuía diante das pessoas comuns, ao contrário, ter sido escolhido pelos deuses era sinal de valor e em nada essa ajuda desmerecia a virtude do guerreiro belo e bom, que se manifestava pela coragem e pela força, sobretudo no campo de batalha. E ETIMOLOGIA Virtude. Vem do latim vir, virtus; primitivamente, vir significa o homem viril, forte, corajoso. Hades. Éo nome do Deus do Mundo Subterrâneo, que entre os romanos chamava-se Plutão. Também designa o Mundo dos Mortos. Hércules e a Hydra. Antonio di Jacopo Pollaiuolo, 1475. Hércules é o nome romano do semideus grego Héracles, filho de Zeus e de uma mortal. Conhecido por sua força fisica, enfrentou inúmeros desafios, principalmente devido à cólera e vingança da deusa Hera, esposa de Zeus, enciumada pela traição do marido. Na imagem Hércules se cobre com a cabeça e a pele do Leão de Némea, um monstro que matou no primeiro de seus doze trabalhos. Na tela do pintor italiano renascentista, o herói enfrenta a Hidra de Lema, espécie de serpente de várias cabeças que voltavam a crescer depois de cortadas. Segundo intérpretes, a hidra seria o pãntano de Lema - que Hércules conseguira secar - e as cabeças, as nascentes"d'água que até então não paravam de jorrar. Outros comparam a hidra ao delta dos rios, com suas enchentes. Não por acaso, a palavra hidra vem do grego e significa "água". Há nesse relato várias referências ao que vimos até aqui sobre os mitos. Procure identificá-las. Além disso, faça uma interpretação atual do mito, destacando algum acontecimento ou sentimento que poderia ser simbolizado pelo mito da Hidra de Lema. HOMERO.llíada (em forma de prosa). 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 72. A consciência mítica Capítulo 2 Diferentemente do que hoje entendemos por vir­ tude, para os gregos esse valor correspondia àexcelência e à superioridade, objetivo supremo do herói guerreiro. Essa virtude se destacava igualmente na assembleia dos guerreiros, pelo poder de persuasão do discurso. PARA REFLETIR o conceito de virtude variou entre os filósofos, mas em geral designa uma disposição ética para realizar o bem, o que supõe autonomia e não mais imposi­ ção do destino. Você saberia indicar algumas virtu­ des desejáveis para o convívio humano? b) Hesíodo Hesíodo, outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios do VII a.c., produziu uma obra com particularidades que tendem a supe­ rar a poesia impessoal e coletiva das epopeias. Essas características novas são indicativas do período arcaico, que então se iniciava. Mesmo assim, suas obras ainda refletem o inte­ resse pela crença nos mitos. Em Teogonia, Hesíodo relata as origens do mundo e dos deuses, em que as forças emergentes da natureza vão se transfor­ mando nas próprias divindades. Por isso a teogo­ nia é também uma cosmogonia, na medida em que narra como todas as coisas surgiram do ~ para compor a ordem do Cosmo. liiY ETIMOLOGIA Teogonia. Do grego théas, "deus", e ganas, "origem", Cosmogonia. Do grego kósmas, "mundo", "ordem", "beleza". Caos. Para os gregos, o vazio inicial. Por exemplo, do Caos surgiu Gaia, ou Geia (a Terra, elemento primordial), que, sozinha, deu ori­ gem a Urano (o Céu). Em seguida, uniu-se a Urano, gerando os deuses e as divindades femininas. Um de seus filhos é Cronos (Tempo), que toma o poder do pai e é destronado pelo filho Zeus. Os deuses gregos permaneceram por muito tempo na cultura ocidental da Antiguidade e foram assimilados pelos romanos, com outros nomes. Por exemplo, Cronos é Saturno, Zeus é Júpiter, Atena é Minerva, Afrodite é Vênus e assim por diante. mO mito hoje Perguntamos então: e hoje, o desenvolvimento do pensamento reflexivo teria decretado a morte da consciência mítica? Augusto Comte, fundador do positivismo, res­ ponde afirmativamente: ao explicar a evolução da humanidade, define a maturidade do espírito humano pela superação de todas as formas míticas e religiosas. Dessa maneira, opõe radicalmente mito e razão, ao mesmo tempo que inferioriza o mito como tentativa fracassada de explicação da realidade. ++ PARA SABER MAIS Positivismo Consulte o Vocabulário, no final do livro, e o capí­ tulo 15, "A crítica da metafísica". No entanto, ao criticar o mito e exaltar a ciência, contraditoriamente o positivismo fez nascer o mito do cientificismo, ou seja, a crença cega na ciência como única forma de saber possível. Desse modo, o positi­ vismo mostra-se reducionista, já que, bem sabemos, a ciência não é a única interpretação válida do real. De fato, existem outros modos de compreensão, como o senso comum, a filosofia, a arte, a religião, e nenhuma delas exclui o fato de o mito estar na raiz da inteligibilidade. A função fabuladora persiste não só nos contos populares, no folclore, como também na vida diária, quando proferimos certas palavras ricas de ressonâncias míticas - casa, lar, amor, pai, mãe, paz, liberdade, morte - cuja definição obje­ tiva não esgota os significados que ultrapassam os limites da própria subjetividade. Essas palavras nos remetem a valores arguetíDicos, modelos universais que existem na natureza inconsciente e primitiva de todos nós. E ETIMOLOGIA Arquétipo. Arché, em grego, significa "princípio", "origem". • A permanência do mito O mito ainda é uma expressão fundamental do viver humano, o ponto de partida para a compreen­ são do ser. Em outras palavras, tudo o que pensamos e queremos se situa inicialmente no horizonte da imaginação, nos pressupostos míticos, cujo sentido existencial serve de base para todo trabalho poste­ rior da razão. Comecemos pelas histórias em quadrinhos de super-heróis. Elas se fundam no manigueÍsmQ, que exprime o arquétipo da luta entre o bem e o mal, polarizando heróis de um lado e bandidos de outro; além disso, a dupla personalidade do personagem Unidade 1 Descobrindo a filosofia >Revendo o capitulo a É comum associarmos os mitos às lendas, des­ tacando o aspecto inverossimil desses relatos. Como se pode criticar esse modo de compreen­ der o mito? 11 O mistério do mito é abordado por teóricos que o explicam de maneira diversa. Escolha uma das tendências (funcionalismo, psicanálise, estru­ turalismo) e explique como o mito é por ela compreendido. 11 Embora o mito ainda fosse um componente impor­ tante nas mais antigas civilizações (Mesopotâmia, Egito, Grécia), em que se distingue do papel que ele exercia anteriormente nas sociedades tribais? É possivel ainda se falar em mitos contemporâ­ neos? Justifique sua resposta. >Apli.cando os conceitos 11 Leia as citações a seguir e interprete-as tendo em vista a concepção de ser humano transmitida pe­ las epopeias. a) "Eu sou uma div~ndade que te guarda sem cessar, em todos os trabalhos" (a deusa Atena a Ulisses). b) "Não sou eu o culpado, mas Zeus, o Destino e a Erinia, que caminha na sombra" (Agamêmnon, rei de Micenas, depois de um desvario momen­ tâneo, durante a guerra de 1i:oia). 111 Observe a imagem, leia o texto e responda. Orestes perseguido pelas Erinias. William Bouguereau, 1862. A história de Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra, é relatada nos poemas homéricos e na tragédia de Ésquilo Oresteia, uma trilogia. Ao voltar da guerra de 1i:oia, Agamêmnon é assas­ sinado pela sua mulher e por Egisto. Quando adulto, Orestes retoma à cidade de Argos e, com a autorização do deus Apolo, vinga-se matando a mãe e seu amante. O matricidio provocou a ira das Erinias, deusas que personificam a vin­ gança: elas punem os homicidas com remorsos de modo implacável, com torturas que podem levar à loucura. Discuta com seu colega. a) Esse mito pode simbolizar comportamentos que ainda hoje atormentam as pessoas? Na leitura complementar do capítulo 1, "A expe­ riência filosófica", Calligaris comenta o assassi­ nato de uma menina em que o pai e a madrasta são os principais suspeitos. A reação popular seria algo semelhante à ação das Erínias? b) Dê outros exemplos. >Di.sseltação 11 Com base nesta citação, faça uma dissertação sobre o tema: "Os bons e maus mitos do nosso tempo" . "Ll o mito propõe todos os valores, puros e impu­ ros. Não é da sua atribuiçâo autorizar tudo o que sugere. Nossa época conheceu o horror do desen­ cadeamento dos mitos do poder e da raça, quando seu fasclnio se exercia sem controle. A sabedoria é um equilibrio. O mito propõe, mas cabe à cons­ ciência dispor. E foi talvez porque um raciona­ lismo estreito demais fazia profissão de desprezar os mitos, que estes, deixados sem controle, torna­ ram-se loucos." (Georges Gusdorf. Mito e metafí­ sica. São Paulo: Convivio, 1979. p. 308.) >Debate 11 Em grupo, pesquisem sobre os mitos subjacentes nas produções culturais (telenovelas, propagan­ das, filmes, histórias em quadrinhos, programas humorísticos etc.). Elaborem um relatório para ser apresentado à classe. Em seguida haverá um debate sobre os temas expostos. Erínias. Deusas da vingança, também chamadas Fúrias. Zenão . Parmênides Demócrito Protágoras Leucipo r MAGNA GRÉCIA • Agrigento Anaxágoras Aristóteles Epicuro Pltdgoras Pino Élida. Platão Abdera • •Estagira JÓ"'IA / "" Heráclito Clazomena / • • • • Éfeso Atenas Sarnas . Mlleto Zenão .Cítio Il?t:: Sócrates D/r I ·ROO~ Filósofos da Grécia Antiga Periodo pré-socrático FR/(A,IVEO Tales Anaximandro Anaxímenes Panécio Posidónio Fonte: ABRÃO, Bernadete Siqueira [etal.]. Enciclopédia do Estudante. História da filosofia: da Antiguidade aos pensadores do século XXI. v. XII. São Paulo: Moderna, 2008. p. 17. Consulte o mapa dos principais filósofos gregos e identifique aqueles que correspondem ao período pré-socrático. Observe em que região Oônia ou Magna Grécia) e em que cidade eles se estabeleceram. Em seguida veja como os filósofos do período clássico (Sócrates, Platão) se fixam em Atenas. Embora Aristóteles tenha nascido em Estagira, cidade da Macedônia, foi em Atenas que fundou sua escola. Localize também os filósofos do helenismo, que se deslocam da Grécia continentat e se espalham pelas ilhas. D Situando no tempo Neste capítulo veremos o processo pelo qual se deu a passagem da consciência mítica para a consciência filosófica na civilização grega. Vejamos de início um quadro que abrange desde os períodos míticos até o século II a.C. g I ~ '" PARA SABER MAIS Periodização da história da Grécia Antiga Civilização micênica (sécs. XX a XII a.c.). Desenvolveu-se desde o início do segundo milênio a.c. Tem esse nome pela importância da cidade de Micenas, de onde, por volta de 1250 a.c., partiram Agamêmnon, Aquiles e Ulisses para sitiar e conquistarTroia . Tempos homéricos (sécs. XII a VIII a.c.). Na tra nsição de um mundo essencialmente rural,os senhores enrique­ cidos formaram a aristocracia proprietária de terras, que fez recrudescer o sistema escravista. Nesse período teria vivido Homero (séc.IX ou VIII a.c.). Período arcaico (sécs. VIII a VI a.c.). Com a formação das cidades-estados (póleis), ocorreram grandes alte­ rações sociais e políticas, bem como odesenvolvimento f) Uma nova ordem humana Costuma-se dizer que os primeiros filósofos foram gregos e surgiram no período arcaico, nas colônias gregas. Embora reconheçamos a importância de sábios que viveram na mesma época em outros luga­ res, suas doutrinas ainda estavam mais vinculadas à religião do que propriamente à reflexão filosófica. , ++ PARA SABER MAIS Os sábios que viveram no Oriente no século VI a.c., a mesma época em que a filosofia surgiu na Grécia, foram: Confúcio e Lao Tsé na China; Gautama Buda na índia; Zaratustra na Pérsia. Alguns autores chamaram de "milagre grego" a passagem da mentalidade mítica para o pensa­ mento crítico racional e filosófico, destacando o caráter repentino e único desse processo. Outros estudiosos, no entanto, criticam essa visão simplista e afirmam que a filosofia na Grécia não é fruto de um salto, do "milagre" realizado por um povo privi­ legiado, mas é a culminação do processo gestado ao longo dos tempos. Por enquanto, fiquemos com alguns fatos do período arcaico que ajudaram a alterar a visão mítica predominante e contribuíram para o surgi­ mento do filósofo: • a invenção da escrita e da moeda; • a lei escrita; • a fundação da pólis (cidade-Estado). .. A invenção da escrita A consciência mítica predomina em cultu­ ras de tradição oral, quando ainda não há escrita. Mesmo após seu surgimento, a escrita reserva-se do comércio e a expansão da colonização grega. No início desse período teria vivido Hesíodo. No final do século VII e durante o século VI a.c. surgiram os pri­ meiros filósofos. Período clássico (sécs. V e IV a.c.). Auge da civilização grega; na politica, o apogeu da democracia ateniense; desenvolvi mento das artes, literatura e filosofia; época em que viveram os sofistas e os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles. Período helenístico (sécs.111 e II a.c.). Decadência polí­ tica, domínio macedônico e conquista da Grécia pelos romanos; culturalmente, significativa influência das civilizações orientais; florescimento das filosofias estoica e epicurista. aos privilegiados, aos sacerdotes e aos reis, e geral­ mente mantém o caráter mágico: entre os antigos egípcios, por exemplo, a palavra hieróglifo significa literalmente "sinal divino". Na Grécia, já existira uma escrita no período micênico, mas restrita aos escribas que exerciam funções administrativas de interesse da aristocra­ cia palaciana. Com a violenta invasão dórica, no século XII a.C., a escrita desapareceu junto com a civilização micênica, para ressurgir apenas no final do século IX ou VIII a.C., por influência dos fenícios. Em seu ressurgimento, a escrita assumiu função diferente. Suficientemente desligada da influência religiosa, passou a ser utilizada para formas mais democráticas de exercício do poder. Enquanto os rituais religiosos eram cheios de fórmulas mágicas, termos fixos e inquestionados, os escritos passaram a ser divulgados em praça pública, sujeitos à discussão e à crítica. Isso não significa que a escrita se tornasse acessível a todos, muito pelo contrário, já que a maioria da popula­ ção era constituída de analfabetos. O que está em destaque é a dessacralização da escrita, ou seja, seu desligamento do sagrado. A escrita gera nova idade mental porque a pos­ tura de quem escreve é diferente daquela de quem apenas fala. Como a escrita fixa a palavra para além de quem a proferiu, exige maior rigor e clareza, o que estimula o espírito crítico. Além disso, a reto­ mada posterior do que foi escrito - não só por con­ temporâneos, mas por outras gerações - abre os horizontes do pensamento e proporciona o distan­ ciamento do vivido e o confronto das ideias . Portanto, a escrita surge como possibilidade maior de abstração, de uma reflexão aprimorada que tenderá a modificar a própria estrutura do pensamento. o nascimento da filosofia Capitulo 3 Os escritos dos filósofos pré-socráticos desa­ pareceram com o tempo. e só nos restam alguns fragmentos ou referências de filósofos posterio­ res. Sabemos que geralmente escreviam em prosa. abandonando a forma poética característica das epopeias. dos relatos míticos. ++ PARA SABER MAIS Períodos da filosofia grega Pré-socrático (séc. VII e VI a.c.). Os primeiros filó­ sofos ocupavam-se com questões cosmológicas, iniciando a separação entre a filosofia e o pensa­ mento mítico. Sócrático ou clássico (séc. V e IV a.c.) . Ênfase nas questões antropológicas e maior sistematização do pensamento. Desse período fazem parte os sofistas, o próprio Sócrates, seu discípulo Platão e Aristóteles, discípulo de Platão. Pós-socrático (séc.111 e II a.c.). Durante o helenismo, preponderou o interesse pela física e pela ética. Surgiram as correntes filosóficas do estoicismo (Zenão de Cítio). do hedonismo (Epicuro) e do ceti­ cismo (Pirro de Élida). ... PARA SABER MAIS Entre os primeiros filósofos, Pitágoras foi o que pela primeira vez usou a palavra filosofia e ainda hoje é estudado em cursos de geometria. Você conhece o teorema sobre a hipotenusa e os catetos do triân­ gulo retângulo? • O princípio de todas as coisas Os primeiros pensadores centraram a aten­ ção na natureza e elaboraram diversas concep­ ções de cosmologia. Note que dizemos cosmolo­ gia, conceito que se contrapõe à cosmogonia de Hesíodo. Enquanto no período mítico a cosmo­ gonia relata o princípio como origem no tempo (o nascimento dos deuses), as cosmologias dos pré-socráticos procuram a racionalidade consti­ tutiva do Universo. Todos eles procuram explicar como, diante da mudança (do devi r), podemos encontrar a estabili­ dade; como, diante do múltiplo, descobrimos o uno. Ao perguntarem como seria possível emergir o cosmo do caos - ou seja, como da confusão inicial surge o mundo ordenado -, os pré-socráticos buscam o prin­ cípio (em grego, aarkhej de todas as coisas, entendido não como aquilo que antecede no tempo, mas como fundamento do ser. Buscar a arkhé é explicar qual é o elemento constitutivo de todas as coisas. As respostas dos filósofos à questão do funda­ mento das coisas, da unidade que pode explicar a Unidade 1 Descobrindo a filosofia multiplicidade, são as mais variadas. Vejamos algu­ mas delas: • Para Tales de Mileto (640-c.548 a.c.), astrô­ nomo, matemático e primeiro filósofo, a arkhé é a água; • De acordo com Pitágoras (séc. VI a.C), filósofo e matemático, o número é a essência de tudo; todo o cosmo é harmonia, porque é ordenado pelos números. Monocórdio de Pitágoras em ilustração, 560-480 d.c. o monocórdio - como o nome diz - é um instrumento de uma corda só. Nele, Pitágoras fez experiências para mostrar que a música se expressa em linguagem matemática. Ao calcular os intervalos entre os diferentes pontos pressionados na corda, descobriu a relação entre as notas musicais e as proporções no seu comprimento. Faça uma pesquisa para explicar com mais detalhes quais foram as proporções estabelecidas por Pitágoras no seu experimento. Se necessário, consulte alguém que conheça teoria musical, matemática ou ainda fisica. • Para Anaximandro (610-547 a.C.), o fundamento dos seres é uma matéria indeterminada, ilimi­ tada (ápeiron, em grego), que daria origem a todos os seres materiais. • Para Anaxímenes (588-524 a.C.), é o ar, que pela rarefação e condensação faz nascer e transfor­ mar todas as coisas. • Parmênides de Eleia (c.544-450 a.C.) e Heráclito de Éfeso (sécs. VI-V a.c.) desenvolveram teorias que entraram em conflito e instigaram os filó­ sofos do período clássico (como veremos no capítulo 13, ''A busca da verdade"). Enquanto para Parmênides o ser real é imóvel, imutável e Homem na balança dos quatro elementos. Autor desconhecido, '532. A teoria dos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - faz parte da tradição de vários povos antigos. A que foi elaborada por Empédocles tornou-se a mais conhecida e aceita na cultura ocidental até o século XVIII, quando o cientista Lavoisier contestou sua validade. o movimento é uma ilusão, para Heráclito tudo flui e tudo o que é fixo é ilusão: "não nos banha­ mos duas vezes no mesmo rid'. o Anaxágoras (499-428 a.C.), nascido em Clazômena, mudou-se para Atenas, onde foi mestre de Péricles. Sustentava que as "sementes" de todas as coisas foram ordenadas por um princípio inteligente, uma Inteligência cósmica (Nous, em grego). o Os quatro elementos, terra, água, ar e fogo, cons­ tituem a teoria de Empédocles (483-430 a.C.). o Os filósofos Leucipo (séc. V a.C.) e Demócrito (c.460-c.370 a.C.) são atomistas, por conside­ rarem o elemento primordial constituído por átomos, partículas indivisíveis. Como para eles também a alma era formada por átomos, esta­ mos diante de uma concepção materialista e determinista. A Mito e filosofia: continuidade e ruptura Já podemos observar a diferença entre o pen­ samento mítico e a filosofia nascente: a cosmolo­ gia racional distingue-se da cosmogonia mítica de Hesíodo. Para estudiosos como o inglês Francis Mcdonald Cornford, no entanto, apesar das diferenças o pen­ samento filosófico nascente ainda apresentava vin­ culações com o mito. Examinando os textos dos filósofos jônicos, Cornford descobriu neles a mesma estrutura de pensamento existente no relato mítico: os jônios afirmavam que, de um estado inicial de indistinção, separam-se pares opostos (quente e frio, seco e úmido), que vão gerar os seres naturais (o céu de fogo, o ar frio, a terra seca, o mar úmido). Para eles, a ordem do mundo deriva de forças opos­ tas que se equilibram reciprocamente, e a união dos opostos explica os fenômenos meteóricos, as esta­ ções do ano, o nascimento e a morte de tudo o que vive. Ora, para Cornford, essa explicação racional se assemelha aos relatos de Hesíodo na Teogonia, segundo os quais Gaia gera sozinha, por segregação. o Céu e o Mar; depois, da união de Gaia com Urano resulta a geração dos deuses. Embora em parte concorde com o fato de que a filosofia deriva do mito, em Mito e pensamento entre os gregos Vernant contrapõe-se a Cornford ao desta­ car o novo, "aquilo que faz precisamente com que a filosofia deixe de ser mito para se tornar filosofia". Nesse sentido, existe uma ruptura entre mito e filosofia. Enquanto o mito é uma narrativa cujo con­ teúdo não se questiona, a filosofia problematiza e, portanto. convida à discussão. No mito a inteligibi­ lidade é dada, na filosofia ela é procurada. A filoso­ fia rejeita o sobrenatural. a interferência de agentes divinos na explicação dos fenômenos. Ainda mais: a filosofia busca a coerência interna, a definição rigo­ rosa dos conceitos; organiza-se em doutrina e surge, portanto, como pensamento abstrato. o nascimento da filosofia Capítulo 3 Tales de Mileto. imagem_ do século XIX. _ Leia o texto de Nietzsche sobre Tales de Mileto e responda às questões. -tura com lemen ar 11 Identifique no trecho selecionado as três razões destacadas por Nietzsche se­ gundo as quais podemos levar a sério a reflexão de Iales de Mileto sobre a água como principio de tudo. IJ Em que sentido a reflexão de Iales é filosófica e. portanto, se distingue do mito e da ciência? Leitura complem "lar Unidade 1 Tales, O primeiro filósofo "A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: aágua é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário deter-nos nela e levá-Ia a sério? Sim, e por três razões: em pri­ meiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; enfim, em terceiro lugar, por­ que nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: 'Tudo é um'. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos, a segunda o tira dessa sociedade e no-lo mostra como investigador da natu­ reza, mas, em virtude da terceira, Tales se torna o pri­ meiro filósofo grego. Se tivesse dito: 'Da água provém a terra', teríamos apenas uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do cientí­ fico. Ao expor essa representação da unidade através da hipótese da água, Tales não superou o estágio infe­ rior das noções físicas da época, mas, no máximo, sal­ tou sobre ele. As parcas e desordenadas observações de natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as tra nsformações da água ou, ma is exata­ mente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo aconselharia tão monstruosa generalização; o que o impeliu a esta foi um postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que encontramos em todos os filósofos, ao lado dos esforços sempre renovados para exprimi-Ia melhor - a proposição: 'Tudo é um'. [...] Quando Tales diz: 'Tudo é água', o homem [.. . ] pressente a solução última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dosgraus inferiores do con heci mento." NI rnSCH E, Friedrich.A filosofia na época trágica dos gregos, §3. Em : Os pre-soaáticos. São Paulo: Abril Cultural , 1973. p. 16. (Coleção Os Pensadores). ~ Questões lIoUEM.e? Tales de Mileto (640­ -C.548 a.C). de origem fenícia. viveu em Mileto, na JÔnia. Éconsiderado o primeiro filósofo e um dos Sete Sábios da Grécia. Foi também matemático: enquanto os egípcios conheciam uma geometria prá­ tica. Tales transformou esse saber empírico em conhecimento cientí­ fico. Éatribuído a ele o teorema de Tales (dois triângulos são iguais quando possuem um lado igual compreen­ dido entre dois ângulos iguais). e teria calculado a altura de uma pirâmide comparando a sombra dela com sua própria sombra. Como astrônomo. teria pre­ visto um eclipse solar. Talvez por ter viajado muito e conhecido as cheias do Nilo. intuiu que a água deve­ ria ser o princípio de tudo. por estar ligada à vida. à germinação. mas também à corrupção e à putre­ fação. Por considerar a água um "deus inteligente". conclui que "todas as coisas estão cheias de deuses~. Como não restou nada do que escreveu - se é que escreveu -. nem todos os relatos a seu respeito são confiáveis. Metafísica. Termo que adquiriu contornos diferen­ tes no transcurso da história da filosofia. Na tradi­ ção aristotélica é estudo do "ser enquanto ser" (do ser absoluto e dos primeiros princípios). A metafísica procura analisar conceitos básicos como Deus. alma. mundo. Atualmente. trata-se do campo da filosofia que investiga questões que estão por trás ou além daquelas que são objeto das ciências. como identi ­ dade. verdade. existência. conhecimento. significado. causalidade. necessidade. liberdade. o § ao o 'O A partir das duas imagens e do texto de Cassuer, atenda às questões. 1. Identifique os elementos da tela de Torres-Garcia que remetem à tradição e à inovação. 2. Interprete o titulo Construtivo misterioso, levando em conta o que o pintor diz sobre construtivismo e mistério. 3. Que outro tipo de expressão da ação ou do pensamento humanos manifesta o confronto entre tradição e inovação? Essas e outras questões serão examinadas ao longo desta Unidade, que trata de importantes aspectos da vida humana: a cultura, a linguagem, o trabalho, a busca da felicidade e a morte. 45 46 Contorno de mão na gruta de Pegada do astronauta Neil Pech-Merle, França. Era Paleolítica, Armstrong na chegada do cerca de 15 mil anos atrás. homem à Lua, em 1969. A primeira imagem é de uma impressão da pahna da mão, encontrada na gruta de Pech-Merle, na França, provavehnente de 15 mil anos atrás. A segunda, de 1969, é a pegada de Neil Annstrong, um dos três astronautas que chegaram pela primeira vez à Lua. Dê um titulo que relacione as duas imagens. o Para começar Conta-se que por volta de 1920 foram encontradas na Índia duas meninas que teriam crescido entre lobos. Essas crianças não possuíam quaisquer das características humanas: não choravam, não riam e, sobretudo, não faiavam. Seu processo de humanização só teve início quando passaram a participar do convivio humano. Um fato notável, porém, ocorreu nos Estados Unidos com Helen Keller (1880-1968), nascida cega e surda e que portanto não aprendera a falar. Desse modo, permaneceu praticamente exduída do processo de humanização até a idade de 7 anos, quando seus pais contrataram a professora Anne Sullivan. Essa mulher admirável conduziu Helen ao mundo humano das significa­ ções, de início pelo sentido do tato. Começou por dedilhar sinais nas mãos da menina, relacionando-os com os objetos, sem saber de início se a criança percebia a relação entre sinal e coisas. Até que um dia, ao bombearem a água de um poço, Helen deu o passo definitivo na direção da linguagem. Em sua autobiografia, ela relata: ... minha professora colocou minha mão sob o jorro. À medida que o fluxo gelado escorria em minha mão, ela soletrou na outra a palavra água, primeiro devagarzinho e depois mais depressa. Fiquei quieta; toda a minha atenção concentrava-se no movimento de seus dedos. De repente senti uma nebulosa consciência de algo como que esquecido - uma impressão de retorno do pensamento; e de alguma forma o mistério da linguagem me foi revelado. Soube então que á-g-u-a significava a maravilhosa coisa fria que deslizava pela minha mão. [.. . ] Saí do poço ansiosa por aprender. Tudo tinha um nome, e cada nome dava origem a um novo pensClmento. Ao voltarmos para casa , todo objeto que eu tocava parecia vibrar, cheio de vida. Isso se dava porque eu via tudo com a nova e estranha visão que se me apresentara .1 No mesmo dia Helen associou inúmeras outras "palavras" com objetos. Depois, com o tempo, apren­ deu a falar, a ler e a escrever. Tornou-se uma escri­ tora e conferencista conhecida mundialmente. Esses relatos nos propõem uma pergunta ini­ cial: seria a linguagem o elemento que caracteriza fundamentalmente a cultura humana e que distin­ gue o ser humano do animal? fJ Ocomportamento animal Muitas vezes nos surpreendemos com as semelhanças entre os humanos e os animais, principalmente com aqueles que se encon­ tram nos níveis mais altos da escala zoológica de desenvolvimento, como macacos e cães. Tal como eles, temos inteligência, demonstramos amor e ódio, sentimos prazer, dor e sofrimento, expressamos alegria, tristeza e desejos, além de tantas outras características comuns que des­ cobrimos no convívio com os animais. Por isso mesmo, indagamos: "Será que meu cachorro pensa?". E se pensa, em que o "pensamento" dele se distingue do meu? .. A ação por instinto Se os animais superiores são inteligentes, o mesmo não acontece com os animais que se situam nos níveis mais baixos da escal.a zoológica - tais como os insetos -, porque eles agem principal­ mente por reflexos e instintos. A ação instintiva é regida por leis biológicas, idên­ ticas na espécie e invariáveis de indivíduo para indi­ víduo. A rigidez do instinto dá a ilusão de perfeição, já que o animal executa certos atos com extrema habilidade. Não há quem não tenha observado com atenção e pasmo o "trabalho" paciente da aranha tecendo a teia. Todavia, esses atos não se renovam ­ não têm história -, portanto, permanecem os mes­ mos ao longo do tempo, salvo no que se refere às modificações decorrentes da evolução das espécies e das mutações genéticas. Ainda que ocorram essas alterações, elas continuam valendo para os descen­ dentes, por transmissão hereditária. A vespa "fabrica" a célula onde deposita o ovo; junto dele coloca insetos, dos quais a larva, ao nascer, irá se alimentar. Se retirarmos os insetos e o ovo, mesmo assim a vespa dará prosseguimento às etapas seguintes, até o fechamento adequado da célula, ainda que vazia. Esse com,portamento é "cego" porque não leva em conta a finalidade da "fabricação" da célula, ou seja. a preservação do ovo e da futura larva. Instinto. Do latim instinctu5 : impulso ou inclinação. Comportamento inato (que nasce com o indivíduo) e que lindepende das circunstâncias e do controle racional da vontade. Citado em: SAGAI'IJ, Car!. Os dragões do Éden:especulações sobre a evolução da inteligência humana. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1980. p. 90. Natureza e cultura Capítulo 4 I Como fica. então. a individualidade diante do 11 Uma nova sociedade? peso da herança social? Haveria sempre o risco de o individuo perder sua liberdade e autenticidade? Martin Heidegger. filósofo alemão contemporâneo. alerta para o que chama de mundo do "se". pronome reflexivo que equivale ao impessoal agente. Veste-se. come-se. pensa-se, não como cada um gostaria de se vestir. comer ou pensar. mas como a maioria o faz. Será que esses sistemas de controle da sociedade aprisionam o individuo numa rede sem saída? Entretanto. assim como a massificação decorre da aceitação sem crítica de valores impostos pelo grupo social, também é verdade que a vida autên­ tica nasce na sociedade e a partir dela. Justamente aí encontramos o paradoxo de nossa existência social. PARA REFLETIR Um ermitão pode seconsiderarverdadeiramente soli­ tário? Na verdade, seu afastamento revela, em cada ato seu, a negação e, porta nto, a consciência e a lem­ bra nça da sociedade rejeitada. Seus valores, erguidos contra os da sociedade, se situam também a partir dela. Nesse caso, perguntamos: a recusa de se comu­ nicar não seria ainda um modo de comunicação? Se o processo de humanização se faz por meio das relações pessoais. será dos impasses e confron­ tos surgidos nessas relações que a consciência de si poderá emergir lentamente. O importante é manter viva a contradição fecunda de polos que se opõem, mas não se separam. Ou seja, ao mesmo tempo que nos reconhecemos como seres sociais. também somos pessoas. temos uma individualidade que nos distingue dos demais. Ainda que em todos os tempos e lugares sempre tenham ocorrido mudanças, as chamadas socieda­ des tradicionais fixavam hábitos mais duradouros que ordenavam a vida de maneira padronizada. com estilos de comportamento resistentes a alte­ rações, sempre introduzidas de maneira gradativa. No entanto. a partir dos anos de 1960 nota-se uma mudança de Jjaradigma.. porque os parâmetros que vinham orientando nosso modo de pensar. valorar e agir desde o Renascimento e a Idade Moderna come­ çaram a entrar em crise no final do século XIX, ace­ lerando-se muito rapidamente na segunda metade do século passado. .. A sociedade da informa~ão A formidável revolução da informática já se faz sentir na cultura contemporânea. Voltando no tempo. imaginemos a mudança de paradigma que representou. na Grécia Antiga, a introdução do alfabeto fonético. E no Renascimento. o que significou a democratização do saber pela inven­ ção dos tipos móveis. engenho que deu início à era da imprensa. Na contemporaneidade. os tex­ tos que circulavam nos livros. revistas e jornais se integraram às imagens e aos sons. primeiro pelo cinema e pela televisão. depois por todos os canais que as recentes descobertas tecnológicas tornaram disponíveis no campo da automação. robótica e microeletrônica. ') Paradigma. Modelo, padrão; conjunto de teorias, técnicas, valores de uma determinada época que, de tempos em tempos, entram em crise. r Marc ChagaU. pintor russo de nascimento. viveu em Paris. onde sofreu influência do cubismo. do fauvismo e do simbolismo. Mas nunca se esqueceu da infância na aldeia em que nasceu. como mostra essa tela. Observe que duas diagonais dividem o quadro em partes antagônicas: à esquerda o animal e à direita o homem; acima o casal de camponeses e suas casas. abaixo a natureza vegetal. Em ambas as oposições a presença humana entrelaça-se com a natureza na expressão da cultura. Interprete a tela usando conceitos estudados até aqui. Eu e a aldeia. Marc ChagaI!, '9". Unidade 2 Antropologia filosófica Estamos vivendo a era da sociedade da informa­ ção e do conhecimento, que tem transformado de maneira radical todos os setores de nossas vidas. A influência da mídia e da informática acelerou o pro­ cesso de globalização, a partir de uma rede de comu­ nicação que nos coloca em contato com qualquer pessoa ou grupo em todos os lugares do planeta. Observe, por exemplo, a rapidez de comunicação que representaram o rádio, o telégrafo, a televisão, em comparação com os computadores pessoais, que hoje são janelas para o mundo. Possibilitam troca de arquivos, acesso a bancos de dados internacionais, divulgação de pesquisas, correio eletrônico e discus­ são em tempo real de temas os mais variados. Aparelhos eletrônicos cada vez menores não ces­ sam de ser inventados, desde celulares com inúme­ ros recursos além da função original, até as mais novas invenções, como o aparelho de mp3, que sur­ gem a cada momento e nos surpreendem por suas múltiplas possibilidades. As grandes transformações que tiveram início no final dos anos 1960 e meados da década de 1970 cria­ ram, entre outras inovações, uma nova estrutura social dominante: a sociedade em rede. Segundo o sociólogo Manuel Castells,2 uma sociedade em rede é um con­ jlll1to de nós interconectados que podem ser dos mais variados tipos. Por exemplo: rede de fluxos financei­ ros globais, de produção e distribuição de drogas, de gangues de rua, de sistemas de comunicação ou trans­ porte, de estúdios de entretenimento e tantas outras. Consequentemente, o impacto das novas mídias também se reflete nos nossos valores e crenças, a uma velocidade que não se compara a nenhuma outra época. O desafio dos novos tempos é ser capaz de selecionar a informação e refletir sobre seu significado. Nessa perspectiva, interprete a tira de Bob Thaves a seguü. PARA REFLETIR Em um país em que o analfabetismo ainda apre­ senta índices elevados, em plena era da informa­ ção, é grande o número de pessoas que não tem acesso aos computadores, "os anal'fabetos digitais". Discuta com seus colegas esse tema. D A cultura como construção humana Por mais que adestremos os animais superio­ res e os façamos se aproximar de comportamentos semelhantes aos humanos, eles jamais conseguüão transpor o limite que separa a natureza da cultura. Esse limiar encontra-se na linguagem simbólica, na ação criativa e intencional, na imaginação capaz de efetuar transformações inesperadas. A cultura é, portanto, um processo que caracteriza o ser humano como ser de mutação, de projeto, que se faz à medida que transcende, que ultrapassa a pró­ pria experiência. Quando o filósofo francês contem­ porâneo Georges Gusdorf - retomando de Heidegger e Sartre citação similar - diz que "o homem não é o que é, mas é o que não ê', não faz um simples jogo de palavras. Quer mostrar que o ser humano não se define por um modelo ou uma essência nem é apenas o que as circunstâncias fizeram dele. Define-se pelo lançar-se no futuro, antecipando, por meio de proje­ tos, sua ação consciente sobre o mundo. É evidente que essa condição de certo modo fra­ giliza o ser humano, pois não se encontra, como os animais, em harmonia com a natureza. Ao mesmo tempo, o que seria mera fragilidade transforma-se justamente em sua força, a característica humana mais nobre: a capacidade de produzir sua própria história e de se tornar sujeito de seus atos. PA~AM~ PA 'ERA PA INF~MAÇÃO' ./ PA'U. A ''''U. PO E'XC"~ P" INFOR:MAÇÃO' la §i ;j .. ~i' HTira de Frank ir & Ernest, de ~ 8 80b Thaves, ,, 3 p publicada em 'f-I} O Estado de S. !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!~~e.!!!!:~~rJ~~~~~ID Paulo, em 2008. o que a tira nos diz sobre a informação na era em que estamos vivendo? CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. v. I. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 498. (Série A Era da Informação: economia, sociedade e cultura). Natureza e cultura Leitura com menta Dos canibais "Durante muito tempo tive a meu lado um homem que permanecera dez ou doze anos nessa parte do Novo Mundo descoberto neste século, no lugar em que tomou pé Villegaignon e a que deu o nome de 'França Antártica'. Essa descoberta de um imenso país parece de grande alcance e presta-se a sérias reflexões. [...] Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade eda razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administra­ ção excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chama­ mos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. [...] Ninguém concebeu jamais uma simpliôdade natural elevada atal grau, nem ninguém jamais acreditou pudesse a sociedade subsistir com tão poucos artifícios. Éum país [...] onde não há comércio de qualquer natureza, nem lite­ ratura, nem matemáticas; onde não existe hierarquia polí­ tica, nem domesticidade, nem ricos e pobres. Contratos, sucessão, partilhas aí são desconhecidos; em matéria de trabalho só sabem da ociosidade; o respeito aos parentes é o mesmo que dedicam a todos; o vestuário, a agricul­ tura, o trabalho dos metais aí se ignoram; não usam vinho nem trigo; as próprias palavras que exprimem a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a calúnia, o perdão, só excepcionalmente se ouvem . [ ...] Esses povos guerreiam os que se encontram além das montanhas, na terra firme. Fazem-no inteiramente nus, tendo como armas apenas seus arcos e suas espadas de madeira, pontiagudas como nossas lanças. E é admirável a resolução com que agem nesses combates que sempre QUEM~1 Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), human ista efi lósofofran­ cês, é conhecido por seu Ensaios,que escreveu na primeira pessoa, refle­ tindo sobre os mais diversos assun­ tos do cotidiano, o que representou uma inovação na literatura filosófica. Michel de Sua postura cética o leva a denunciar Montaigne. Autor com agudeza e ironia os costumes do descon hecido, seutempo,a hipocrisiaeassupersti- século XVI. ções. Em um período de sangrentas lutas religiosas,critica os fanatismos que geram violência. No texto refere-se à "França Antártica", colônia francesa que Villegagnon instalou na Ilha de Guanabara. de 1555 a 1567. até ser expulso pelos portugueses. Leitura complementar Unidade 2 terminam com efusão de sangue e mortes, pois ignoram a fuga e o medo. Como troféu, traz cada qual acabeça do ini­ migo trucidado, a qual penduram à entrada de suas resi­ dências. Quanto aos prisioneiros, guardam-nos durante algum tempo, tratando-os bem e fornecendo-lhes tudo de que precisam até o dia em que resolvem acabar com eles. Aquele a quem pertence o prisioneiro convoca todos os seus amigos. No momento propício, amarra a um dos braços da vítima uma corda cuja outra extremidade ele segura nas mãos, o mesmo fazendo com o outro braço que fica entregue a seu melhor amigo, de modo a manter o condenado afastado de alguns passos e i ncapaz de rea­ ção. Isso feito, ambos o moem de bordoadas às vistas da assistência, assando-o em seguida, comendo-o e presen­ teando os amigos ausentes com pedaços da vítima. Não o fazem entretanto para se alimentarem, como o faziam os antigos citas, mas sim em sinal de vingança. [ ...] Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de cruel­ dade, masque o fato de condenartais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo queé mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios etormentos e o quei­ mar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado. [.. . ] Podemos portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os exce­ demos em toda sorte de barbaridades." MONTAIGNE. Ensaios. São Paulo : Abril Cultural, 1972. p. 104-107. (Coleção Os Pensadores). Cita. Habitante da Cítia, região da Ásia Central. >Questão Comente as três frases extraídas do texto de Montaigne transpondo-as para os dias de hoje, a fim de indicar sua atualidade. a) "L .. ] cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra." b) "[...] que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos." c) "Podemos portanto qualificar esses povos como bárba­ ros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades." Christiana Moraes, artista brasileira contemporâ­ nea, dedica-se ao desenho, além de outras formas de arte visual. Esse desenho, da série Fototrop"ismo, foi feito com bastão de óleo e lápis conté sobre uma pran­ cha ultra mount. Para fazer o fundo negro, usou tinta látex. A obra mede 2,44 metros por 1,10 metro, tendo, portanto, um impacto visual bastante grande. Apresenta uma figura humana sentada, com um buquê de flores entre as mãos; outras quatro flores estão dispostas, verticalmente, dos dois lados da figura central. A metade inferior da obra tem fundo branco, com desenhos pretos; a metade superior tem o fundo negro, com desenhos brancos. Por trás da cabeça da figura central, pode-se ver um braço e uma mão, segurando a flor do lado superior esquerdo. O desenho é figurativo, porém não é realista, isto é, não pretende ser uma cópia fiel do real. Tanto que não podemos dizer se a figura humana é um homem ou uma mulher, uma vez que não há detalhes identificadores. A linha é contínua, nem muito grossa nem fina. A flor na parte inferior esquerda e o buquê foram dese­ nhados com linhas mais fortes, poderíamos dizer ner­ vosas, uma vez que percebemos o ir e vir do bastão de óleo, num traço contínuo. Já as outras flores e a mão que segura a flor são desenhados com linhas tão finas e delicadas que é preciso observar o desenho com muita atenção para vê-los. O fundo preto dá um destaque especial ao busto da figura humana, uma vez que ele continua em branco, com o preto ao seu redor. O estilo é expressionista, ou seja, privilegia a expressão da afetividade e do modo subjetivo com que a artista vê o mundo, mais que as questões de exatidão da representação. A figura humana não é simétrica e suas mãos são indicadas, mas não mos­ tram todos os dedos. Mas se o desenho é uma linguagem, o que será que esse desenho pode nos dizer? Que significados podemos atribuir a ele? Ele nos fala da solidão do ser humano e de sua ligação com a natureza. O buquê de flores preenche todo o peito da figura humana, exatamente onde se situa o coração, considerado simbolicamente como a sede de nossos sentimentos e da afetivi­ dade. Interpretando a imagem a partir de seu título Fototropismo, podemos dizer que, assim como as plantas seguem o movimento do sol (luz), os seres Fototropismo. Em biologia. designa a reação de aproximação ou afastamento de um organismo ao estímulo da luz; movimento de orientação realizado pela planta sob a ação da luz. PEIRCE. Charles S. Semióüca. São Paulo: Perspectiva. 1977. p. 46. humanos são atraídos e se orientam não só pela luz, mas por toda a natureza. QUEM É? Christiana Moraes (1972). Nasceu em São Paulo e cursou Artes Plásticas. com habilitação em Gravura. na Escola de Comunica­ ções e Artes da Universidade de São Paulo. formando-se em 1993­ Nesse mesmo ano. ganhou o Prêmio Exposição na VII Mostra Christiana Universitária de Artes Plásticas da Moraes. artista Faculdade Santa Marcelina e. em plástica brasileira 1995. o Prêmio Viagem pelo Brasil. naSCida em 1972. do XV Salão Nacional de Artes Plásticas. Participou de várias exposições no Brasil e algumas no exterior. Além disso. é pós-graduada em Práxis Artística e Terapêutica pela Faculdade de Medicina da USP e, em 2004. fez outro curso de pós-graduação em Performance. no Art Institute de Chicago, Estados Unidos. fJ O que é uma linguagem? A linguagem é um instrumento que nos permite pensar e comunicar o pensamento, estabelecer diá­ logos com nossos semelhantes e dar sentido à rea­ lidade que nos cerca. Quando nos referimos à linguagem, a primeira da qual nos lembramos é a linguagem verbal, tanto a oral quanto a escrita. Por meio dela, nomeamos objetos, formamos conceitos e articulamos nosso pensamento sobre o mlll1do, tanto o mlll1do subjetivo de sentimen­ tos e desejos quanto o mlll1do objetivo exterior a nós. A linguagem verbal, contudo, não é a primeira linguagem que aprendemos em nossa vida nem a única que usamos para dar significados ao mundo. Desde bebês, conseguimos nos comunicar por meio do choro, de olhares, de gestos e de balbucios que são compreendidos por todos aqueles que nos cer­ cam e cuidam de nós. Mas será que todas as linguagens são estrutura­ das da mesma forma? .. Estrutura da linguagem Toda linguagem é um sistema de signos. O signo, segundo definição do filósofo Charles Sanders Peirce, é uma coisa que está no lugar de outra sob algum aspecto. l Por exemplo, o choro de uma criança pode estar no lugar do aviso de desconforto, de fome, de frio ou de dor; ou pode estar no lugar simplesmente da frustração da criança que não conseguiu o que queria. Linguagem e pensamento Capitulo 5 ochoro pode ser signo de todas essas coisas e, para decifrá-lo adequadamente, precisamos saber o con­ texto em que ele ocorre e ter familiaridade com a criança que assim se expressa. Os números e as palavras também são signos, isto é, estão no lugar das quantidades reais de objetos ou do próprio objeto. Quando digo: "Há quatro assaltan­ tes ai fora', estou me referindo à quantidade e à exis­ tência real de quatro pessoas, armadas ou não, que cometem um crime do lado de fora de onde estamos ou estão prestes a iniciá-lo. Conforme o contexto, a afirmação pode funcionar como simples constata­ ção de um fato: "Está acontecendo um assalto, mas fiquem calmos"; ou aviso de perigo "Chamem a polí­ cia! Corram! Escondam-se!", na esperança de que algo possa ser feito para resolver o problema. Tipos de signos Se o signo está no lugar do objeto, isto é, se o substitui, ele é uma representação do objeto. Um objeto pode ser representado de várias manei­ ras, dependendo da relação que existe entre ele e o signo. Vejamos um exemplo: um galo pode ser representado por uma fotografia, por um desenho, pela palavra "galo", pelo som de seu canto cocori­ cÓÓÓó. Cada um desses signos (fotografia, desenho, palavra e cacarejar) mantém uma relação diferente com o objeto galo. Quando a relação é de semelhança, temos um signo do tipo ícone. O desenho do galo é um ícone quando apresenta semelhança com ele; a repre­ sentação do galo por meio de seu canto também é um ícone, pois tem uma semelhança sonora com o canto da ave. Se a relação é de causa e efeito, uma relação que afeta a existência do objeto ou é por ela afetada, temos um signo do tipo indice. A fotografia do galo é um índice de sua existência porque toda fotografia é resultado da ação da luz refletida por um objeto e captada pela câmera. Ou seja, o objeto fotografado esteve em frente à câmera no momento em que a fotografia foi feita. Outros exemplos: a chuva pode ser representada pelo signo indiciaI nuvem (causa da chuva) ou chão molhado (consequência da chuva); a fumaça ou o cheiro de queimado são signos indi­ ciais de fogo; os sinais matemáticos (+, -, X e +), quando colocados ao lado de números, são signos indiciais das operações que devem ser efetuadas; a febre é signo que indica doença. Todos esses signos indicam o objeto representado. Se a relação é arbitrária, regida simplesmente por convenção, temos o simbolo. As palavras são o melhor exemplo de símbolo, mas há muitos outros: nas culturas ocidentais, o preto é sím­ bolo de luto; o uso da aliança no dedo anelar da mão esquerda simboliza a condição de casado; o desenho de um coração simboliza amor, ami­ zade. Esses signos são aceitos pela sociedade como representação dos objetos luto, casamento e sentimento de amor e mantêm-se por conven­ ção, hábito ou tradição. Como só o ser humano é capaz de estabelecer signos arbitrários, regidos por convenções sociais, dizemos que o mundo humano é simbólico. Os animais são capazes de entender apenas íco­ nes e índices. Os cachorros, por exemplo, utilizam o signo indiciaI cheiro. Eles são capazes de reconhecer o cheiro do dono em uma roupa, em um lugar. E o cheiro indica a presença do objeto (dono) que ele pro­ cura. Ele reconhece, ainda, o tom de voz, as ações que indicam passeio, castigo ou a hora de comer. Podemos explicar um signo por meio de outro, inclusive misturando linguagens. Para explicar o signo-palavra "casa" para uma criança, podemos fazer um signo-desenho de uma casa. O desenho, nesse caso, é um segundo signo que interpreta, dá sentido ao primeiro, pela semelhança com o objeto representado. Um sinônimo explica igualmente um signo: "casa" pode também ser interpretada por meio da palavra "lar". O segundo signo (lar) interpreta o primeiro em sentido bastante especí­ fico de "minha casa' ou "lugar onde moro e consi­ dero meu refúgio'. Essa explicação é diferente da oferecida pelo desenho, que se refere mais à arqui­ tetura que à relação afetiva que mantemos com o lugar onde moramos. QUEMt1 Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo e lógico americano,éofundador do pragmatismo eda semió­ tica. Pensador enciclopédico, é também conhecido por suas contribuições para a história da lógica e para a matemática,epistemologia, história das ciên­ cias, psicologia, cosmologia, ontologia, ética, estética e história. Teve três centros de interesse constantes: a reflexão sobre a linguagem,a significação e, sobre­ tudo, o signo. O pragmatismo foi fundado para desembaraçar a filosofia das fórmulas vazias em favor do que é verdadeiramente significativo. Contrário à separa­ ção entre matéria e espírito, propõe que a ideia que temos de qualquer objeto é igual à soma de todos os seus efeitos práticos imagináveis, ou seja, essa soma dos efeitos práticos é tudo oque conhecemos do objeto e basta para guiar nossa ação no mundo. Depois de alguns anos, preferiu usar o termo "prag­ maticismo" para sua teoria, para se diferenciar do pragmatismo de William James. Unidade 2 Antropologia filosófica 7.1. Toca do Baixão das Mulheres lI, Complexo Serra Talhada. (Desenhos reproduzidos em: VIDAL, Lux. Grafismo indígena. São Paulo: Studio NobellFapesp/Edusp, 1992. p. 27.) Os desenhos rupestres do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piaui, são em sua maioria figurativos, embora esquemáticos, e às vezes são preenchidos pelo mesmo tom negro usado para fazer as linhas de seu contorno. São, portanto, signos icônicos. Outros elementos da linguagem Precisamente por ser um sistema de signos, toda linguagem possui um repertório, ou seja, uma relação de signos que a compõem. Na lingua­ gem do desenho, como vimos ao analisar o dese­ nho Fototropismo, que abre o capítulo, o repertório é muito pequeno: o plano ou a superfície, a linha e o ponto. As linhas podem ter diversas qualida­ des: serem quebradas ou contínuas, retas ou cur­ vas, grossas ou finas; a superfície pode ser plana ou não, e seu próprio re]evo pode produzir efeitos no desenho. Com os três elementos - superfície, linha e ponto - é possível fazer qualquer desenho, seja técnico, de observação, de ilustração, de ornamen­ tação ou de criação, também chamado artístico. O repertório das linguagens verbais (ou línguas, como são chamadas), ao contrário, é bastante amplo e costuma ser relacionado em dicionários. A linguagem musical tonal, para compor seu repertório, dentre todos os sons possíveis, sele­ ciona alguns, denominados dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, acrescidos de sustenidos ou bemóis, que são semitons. Além do repertório, também é preciso que se estabeleçam as regras de combinação dos signos. Quais podemos usar juntos, quais não podemos? Na linguagem do desenho, plano, linha e ponto podem ser usados como o desenhista quiser. Na linguagem verbal, do ponto de vista semântico, não podemos combinar signos que tenham sen­ tidos opostos: subir/descer, nascer/morrer etc. Não podemos dizer "Ele subiu descendo as esca­ das", mas podemos dizer "Ele subiu correndo as escadas".2 Como último passo, a linguagem deve estabe­ lecer as regras de uso dos signos. Em que ocasiões devemos usar o pronome tu e o vós? Devemos vestir as crianças de preto, em ocasiões de luto? Só quando conhecemos o repertório de signos, as regras de combinação e as regras de uso desses signos é que podemos dizer que dominamos uma linguagem. Por exemplo, o personagem Chico Bento, criado por Mauricio de Sousa, não domina as regras de combinação e de uso da norma culta da língua portuguesa. Ele desrespeita as regras de concor­ dância de número, suprime parte das palavras ("os otro" e "foro reprovado" em vez de "os outros" e "foram reprovados") e pronuncia as palavras incor­ retamente. Expressa-se no dialeto caipira, o que sobrou da língua nheengatu, mistura de português e línguas indígenas, usada pelos índios e descen­ dentes de portugueses na época colonial. Representação. O que está presente no espírito, ou seja, o conteúdo concreto de um ato de pensamento. Semântico. Refere-se ao significado das palavras. Na fala popular brasileira contemporânea, porém, vem sendo utilizada uma expressão criada por Harry Truman, ex-presidente norte-americano: "Inclua-me fora disso", que é um franco desrespeito a essa regra semântica. linguagem e pensamento Capítulo 5 2 o A linguagem verbal Como o ser humano é o único capaz de criar signos arbitrários, podemos dizer, com Georges Gusdorf, que a palavra é a senha de entrada no mundo humano. Por isso, vamos examinar em maior profundidade o que é a linguagem verbal. A linguagem é um sistema simbólico. O ser humano cria símbolos, isto é, signos arbitrários em relação ao objeto que representam, e que são con­ vencionais: para serem usados precisam ser acei­ tos por todos os membros da sociedade. Tomemos a palavra "casa". Não há nada no som nem na forma escrita dessa palavra que nos remeta ao objeto por ela representado (cada casa que, concretamente, existe em nossas ruas). Designar esse objeto pela palavra "casa", então, é um ato arbitrário. Como não há relação alguma entre o signo "casa" e o objeto por ele representado, necessitamos de uma convenção, aceita pela sociedade, de que aquele signo representa aquele objeto. Só a partir dessa aceitação podemos nos comunicar, sabendo que, ao usarmos a palavra "casa", nosso interlocutor entenderá o que queremos dizer. A linguagem, portanto, é um sistema de representações aceito por um grupo social que possibilita a comunicação entre os integrantes do grupo. Porque o laço entre representação e objeto representado é arbitrário podemos dizer que ele é necessariamente uma construção da razão, isto é, uma invenção do sujeito para poder se aproximar da realidade. A linguagem, portanto, é produto da razão e só pode existir onde há racionalidade. A linguagem é um dos principais instrumentos na formação do mundo cultural porque nos per­ mite transcender nossa experiência. No momento em que damos nome a qualquer objeto da natureza, nós o individuamos, o diferenciamos do resto que o cerca; ele passa a existir para a nossa consciência. Com esse simples ato de nomear, distanciamo-nos da inteligência concreta animal, limitada ao aqui e agora, e entramos no mundo do simbólico. O nome é símbolo dos objetos que existem no mundo natu­ ral e das entidades abstratas, que só têm existência no nosso pensamento (por exemplo, ações, estados ou qualidades, como tristeza, beleza, liberdade). O nome tem a capacidade de tornar presente para nossa consciência o objeto que está longe de nós. O nome, ou a palavra, retém na nossa memó­ ria, enquanto ideia, aquilo que já não está ao alcan­ ce dos nossos sentidos: o cheiro do mar, o perfume do jasmim numa noite de verão, o toque da mão da pessoa amada, o som da voz do pai, o rosto de Unidade 2 Antropologia flIosóflca um amigo querido. O simples pronunciar de uma palavra representa, isto é, torna presente à nossa consciência o objeto a que ela se refere. Não pre­ cisamos mais da existência física das coisas: cria­ mos, por meio da linguagem, um mundo estável de ideias que nos permite lembrar o que já foi e proje­ tar o que será. Dessa forma, é instaurada a tempo­ ralidade no existir humano. Pela linguagem, o ser humano deixa de reagir somente ao presente, ao imediato; passa a poder pensar o passado e o futuro e, com isso, a construir o seu projeto de vida. Por transcender ou ir além da situação con­ creta, o fluir contínuo da vida, o mundo criado pela linguagem se apresenta mais estável e sofre mudanças mais lentas do que o mundo natural. Pelas palavras, podemos transmitir o conheci­ mento acumulado por uma pessoa ou sociedade, podemos passar adiante essa construção da razão que se chama cultura. · Funções da linguagem E para que servem as linguagens? O linguista contemporâneo Roman ]akobson propôs uma abordagem das funções comunica­ tivas da língua verbal bastante ampla que tam­ bém pode ser usada para as demais linguagens . Na década de 1950, após ter conhecido os traba­ lhos de Charles Peirce, percebeu a necessidade de uma semiótica que firmasse a Hnguagem como ele­ mento de comunicação humana por excelência. OUEM~? Roman Jakobson nasceu em Moscou, em 1896. Em 1914, inscreveu-se no Instituto de Eslavística da Universidade de Moscou, onde a linguística era a disciplina básica. Seus estudos de literatura abrangeram os textos escritos, a poesia oral e o folclore . Em 1916, com outros estudantes, fundou o Círculo Linguístico de Moscou. Em 1920, foi para Praga, onde deu continuidade às suas pesquisas, que o levaram a definir o fonema como unidade autônoma. Em 1939, refugiou-se da perseguição nazista na Dinamarca, indo, mais tarde, para os Estados Unidos, onde lecionou em Harvard e no Massachussetts Institute ofTechnology (MIT). Seus conceitos estão até hoje presentes na semiótica da cultura. Jakobson morreu nos Estados Unidos, em 1982. Transcender. No contexto, significa ir além de. Semiótica. Teoria geral dos signos. Jakobson clistingue seis fatores fundamentais na comunicação verbal que dão origem a seis funções linguísticas diferentes. Esses fatores podem ser esque­ maticamente representados da seguinte forma: Contexto Emissor Destinatário Contato Código Esse esquema corresponde a outro, das funções da linguagem originadas por cada um desses fatores: Referencial Expressiva Conativa Fática Metalinguística Explicando: • A função referencial é orientada para o contexto da comunicação, isto é, refere-se ao que está ao nosso redor, como as afirmações: "Hoje faz frio:'; "Isto é uma entrevista:'; "Este sapato está apertado:'. •A função expressiva ou emotiva está centrada no emissor que declara sua atitude afetiva sobre o assunto do qual está tratando, por exemplo, a poesia lírica ou os xingamentos. • A função conativa é orientada para o destina­ tário, invocando-o CEi, você aí!") ou dando-lhe uma ordem. •A função fática tem por objetivo estabelecer, man­ ter ou interromper a comunicação (as expressões "bem", "pois é" ou "escuta" usadas no início da frase, sem ligação com o que vem depois). • Na função metalinguística a mensagem discute o uso do próprio código, esclarecendo-o, como quando perguntamos o significado de uma pala­ vra. Também pode ser o caso de uma linguagem comentar outra linguagem, como a leitura de uma obra de arte. • A função poética é aquela que visa à mensa­ gem em si, colocando em evidência sua própria forma. A mensagem poética ou estética é sempre estruturada de maneira ambígua em relação ao código que lhe é subjacente, como veremos com mais profunclidade na Unidade 7, "Estética'. Na verdade, essas funções não se apresentam separadamente em cada mensagem, mas com­ binam-se entre si. A diversidade das mensagens depende da hierarquização das várias funções, com predominância de uma sobre as demais. Considerando a linguagem do ponto de vista funcional, Jakobson dá conta não só dos aspec­ tos cognitivos da língua, mas também de aspectos afetivos que fazem parte de quase toda situação comunicacional. Ampliando essas funções para outras lingua­ gens, podemos dizer que tanto a linguagem da moda quanto as obras de arte expressionistas (como o desenho Fototropismo do início do capí­ tulo) fazem uso da função expressiva. J á os manuais técnicos e todas as obras realistas apresentam uma preponderância da função referencial. A propaganda, as preces e a arte romântica estão centradas sobre o destinatário, tendo função conativa. A introdução de qualquer peça musical ou o apagar das luzes numa encenação teatral tem o objetivo de testar ou estabe­ lecer o contato com o destinatário, realizando, por­ tanto, a função fática. Quando fazemos uma paródia, estamos usando a função metalinguística; o mesmo acontece quando adaptamos um texto para teatro ou cinema. Já a função poética necessariamente está presente em todas as obras de arte. Agora, podemos responder para que serve uma linguagem: para nos comunicarmos com os outros seres humanos de hoje, do passado e do futuro; para expressar nossos afetos positivos ou negativos; para falar da realidade que nos circunda; para des­ pertar uma reação no destinatário; para discutir o código que estamos usando ou outro qualquer; para reafirmar o contato com o outro, sem o que não haverá comunicação; e para fazer arte. Dispomos de toda essa riqueza quando temos o domínio de uma ou de várias linguagens. m Linguagem, pensamento e cultura Do mesmo modo, como existem diversos tipos de linguagem, existem diversos tipos de pensa­ mento. Há o pensamento concreto, que se forma a partir da percepção sensível, ou seja, da repre­ sentação de objetos reais, e é imediato, sensível e intuitivo; e o pensamento abstrato, que estabelece Unguagem e pensamento Capítulo 5 relações (não perceptíveis), que cria os conceitos e as noções gerais e abstratas, é mediato (precisa da mediação da linguagem) e racional. Por exem­ plo, percebemos algumas laranjas sobre a fruteira, num espaço dado, com disposição, cor e odor determinados. Essa percepção, portanto, é con­ creta, sensível (as laranjas estão ali), imediata (dis­ pensa raciocínio) e individual (é daquelas laranjas). Já quando realizamos a soma 4 +4, estamos lidando com uma noção geral de quantidade. Não encontra­ mos o número 4 na natureza. Encontramos uma certa quantidade de laranjas, abacates, meninos etc., repre­ sentados abstratamente pelos números que são cons­ trução da nossa razão (veremos as questões relaciona­ das ao conhecimento na Unidade 3). Leia o que afirma o filósofo polonês Adam Schaff: [...] o processo de pensamento como processo cognitivo se verifica não só com o auxílio de meios linguísticos (signos verbais), mas também em unidade orgânica com os processos linguísticos. Poder-se-ia muito bem permutar as expressões "pensar" e "experimentar processos linguísticos", pois em ambos os casos nos referimos ao mesmo processo de pensar, com a única diferença de ênfase em um de seus aspectos.3 Para cada tipo de pensamento, há um tipo de lin­ guagem mais adequado. Vejamos. Para o pensamento abstrato e conceitual, que se afasta do sensível, do individual, a língua se apresenta como condição necessária, por ser um sistema de sig­ nos simbólicos que, como já dissemos, nos permite ir além do dado vivido e construir um mundo de ideias. Ora, cada língua possui uma estruturação pró­ pria quanto ao repertório e às regras de combinação e de uso. Isso quer dizer que cada língua organiza a realidade de modo diferente de outra, pois estabe­ lece repertório e regras diferentes. Exemplo clássico é a língua dos esquimós (inuíte), que tem seis nomes diferentes para designar vários estados da neve. Em português, temos apenas a pala­ vra "neve". Outras alternativas não são previstas em nossa língua. O fato importante de ser ressaltado, entretanto, é que se uma língua tem um maior número de palavras para recortar a realidade, a existência des­ sas palavras leva a uma percepção diferente da reali­ dade. O esquimó percebe os diferentes estados da neve (recém-caída, cristalizada, começando a derreter), e nós percebemos somente se há neve ou não. Mesmo porque a neve é uma presença quase contínua para o esquimó e um evento raríssimo no Brasil. Outro exemplo interessante é a expressão "ter paciêncià', usada na língua portuguesa, e a expressão japonesa "fazer paciêncià'. Usar o verbo "ter" significa que a paciência já existe dentro de nós, em estoque maior ou menor; quando se usa o verbo" fazer", entre­ tanto, indicamos que a paciência não habita dentro de nós, que precisamos de uma ação voluntária para "criar" paciência. São modos culturais diferentes de lidar com um sentimento. Podemos dizer que a estruturação da língua influencia a percepção da realidade e os níveis de abstração e generalização do pensamento, como afirma Adam Schaff.4 Outros tipos de linguagem, entretanto, em espe­ cial as linguagens artísticas, são mais adequados ao pensamento concreto, como veremos na Unidade 7, quando tratarmos da arte como forma de pensa­ mento e conhecimento. O pintor, por exemplo, está mais ligado ao mundo visual das cores e formas do que ao mundo dos conceitos. Além de estruturar o pensamento, a linguagem mantém estreita relação com a cultura. Se, por um lado, as várias linguagens fixam e passam adiante os produtos do pensamento sob a forma de ciência, técnicas e artes, elas também sofrem a influência das modificações culturais. Nas línguas há modifica­ ções semânticas e de repertório a partir das novas descobertas e do desenvolvimento da técnica. Nas artes, a reestruturação da linguagem responde a mudanças de valores, de anseios e de buscas no seio da cultura de cada sociedade. .. A importância da linguagem Sabemos que a linguagem é um produto bas­ tante sofisticado que só a razão humana pode criar. Por isso, sua aquisição é um marco referencial da humanidade. A linguagem é simbólica, estruturada, adequada à cultura dentro da qual se desenvolve, apropriada ao tipo de pensamento que vai comuni­ car ou expressar. Ela permite que o ser humano vá além do mundo vivido, do presente, para o mundo das ideias, da reflexão; permite que ele ultrapasse sua realidade de vida e entre no mundo das possi­ bilidades. Que exerça, enfim, a atividade produtiva de criar sentidos para o mundo e para sua vida. SCHAFF. Adam. Introdução à semântica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1968. p. 281-282. 4 SCHAFF. Adam. Linguagem e conhecimento. Coimbra: Almeida. 1974. p. 252. Unidade 2 Antropologia filosófica >Revendo o capitulo D Por que se pode dizer que a aquisição da lingua­ gem é a senha de entrada no mundo humano? 11 Por que são criadas linguagens de diferentes tipos? Para que elas servem? 11 Descreva o processo de significação. >Aplicando os conceitos 11 Cite algumas regras de combinação da lingua portuguesa: regras da escrita e regras de concor­ dância. 11 Qual a relação entre as regras de uso de uma lin­ gua e a cultura na qual ela é usada? 11 Identüique a função das seguintes mensagens e justifique sua resposta: a) "Colombol! Feche a porta de seus mares ... " (Castro Alves) b) "Telefone para 0800-XXXX, adquira o seu pro­ duto Y e ganhe um frasco de perfume, um CD de música eletrõnica e um boné. Mas, compre já!" c) Você é um idiota completo! Pensa que pode fazer o que lhe dá na telha, sem pensar nas consequências? d) Não entendi. O que isso quer dizer? e) Presta atenção! Estou falando com você! f) Vou lhe contar um segredo. Ontem, depois da festa da Chris, eu fiquei com um cara de fora da cidade. S Faça o mesmo com este poema de Décio Ptgnatari, capa da obra Poesia, pois é, poesia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. 0 o 0 O e S s O E é S I A >Pesquisa 11 Faça uma pesquisa sobre a linguagem da música dodecafônica: a) quando ela surgiu; b) quem a criou; c) qual o repertório de sons; d) como eles podem ser combmados entre si; e) quem a introduziu no Brasil; f) quais as transformações pelas quais passou; g) suas influências na música popular contem­ porânea. >Caiu no vestibular 11 (Fuvest-SP) Procura da poesia "Não faças versos sobre acontecimentos. Não há criação nem morte perante a poesia. Diante dela a vida é um sol estático, não aquece nem ilumina. [...] Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos . Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. [...]" Carlos Drummond de Andrade. A rosa do povo. No contexto do livro, a afirmação do caráter ver­ bal da poesia e a incitação a que se penetre "no reino das palavras", presentes no excerto, indi­ cam que para o poeta de A rosa do povo, a) Praticar a arte pela arte é a maneira mais eficaz de se opor ao mundo capitalista. b) A procura da boa poesia começa pela estrita observãncia da variedade padrão da lin­ guagem. c) Fazer poesia é pro.duzir enigmas verbais que não podem nem devem ser interpretados. d) As intenções sociais da poesia não a dis­ pensam de ter em conta o que é próprio da linguagem. e) Os poemas metahnguisticos, nos quais a poe­ sia fala apenas de si mesma, são superiores aos poemas que falam também de outros assuntos. Nessa pintura de Femand Léger, o trabalho é figurado de modo ambivalente: de um lado, demonstra o exerci cio da força física, o "peso do trabalho", a "unüorrnização" dos trabalhadores; de outro, há algo de lúdico nesses operários que nos andaimes parecem equilibristas de circo em seus trapézios. Corno contraponto à leveza dessa tela, pesquise a letra da canção Construção, de Chico Buarque, da qual selecionamos urna estrofe: "E tropeçou no céu corno se fosse um bêbado I E flutuou no ar corno se fosse um pássaro I E se acabou no chão feito um pacote flácido I Agonizou no meio do passeio público I Morreu na contramão atrapalhando o tráfego". Essa música foi composta em 1971, periodo da ditadura militar. As estrofes repetem-se com variações inventivas em que predominam as proparoxítonas, enriquecidas com metáforas que em um primeiro momento nos remetem aos operários de construção civil, vitimas diárias dos acidentes de trabalho. Mas também pode simbolizar a atividade de qualquer pessoa cuja morte - real ou metafórica - parece indüerente às demais. Após a leitura do capitulo, retome a esta abertura para analisar as duas expressões artísticas (a tela e a canção), aplicando os conceitos aprendidos. D 1iabalho como tortura? Talvez você já tenha visto camisetas que tra­ zem estampados o simpático (e preguiçoso) gato Garfield e a frase "Odeio segunda-feira!", represen­ tando o sentimento quase universal de desânimo diante do trabalho. De fato, enquanto o próximo e desejado final de semana não chega, busca-se alento no happy haur, como se a "hora feliz" só pudesse existir no tempo-após-o-trabalho. Confirmando esse sentido negativo, a própria palavra trabalhar deriva do latim tripaliare, que nomeava o tripálio, um instrumento formado por três paus, próprio para atar os condenados ou para manter presos os animais difíceis de ferrar. A ori­ gem comum identifica o trabalho à tortura. Se a vida humana depende do trabalho, e este causa tanto desprazer, só podemos concluir que o ser humano está condenado à infelicidade. Para reverter esse quadro pessimista, vejamos os aspec­ tos positivos do trabalho. fi A humanização pelo trabalho No capítulo 4, "Natureza e culturá', vimos que o ser humano inaugura o mundo da cultura por sua capacidade de simbolizar. Por mudar conforme a época e o lugar, a cultura humana "faz história", isto é, as gerações conservam certas práticas aprendidas e modificam outras. É pelo trabalho que a natureza é transformada mediante o esforço coletivo para arar a terra, colher seus frutos, domesticar animais, modificar paisagens e construir cidades. E não só: pelo trabalho surgem instituições como a família, o Estado, a escola; obras de pensamento como o mito, a ciência, a arte, a filosofia. Podemos dizer que o ser humano se faz pelo tra­ balho, porque ao mesmo tempo que produz coisas, torna-se humano, constrói a própria subjetividade. Desenvolve a imaginação, aprende a se relacionar com os demais, a enfrentar conflitos, a exigir de si mesmo a superação de dificuldades. Enfim, com o trabalho ninguém permanece o mesmo, porque ele modifica e enriquece a percepção do mundo e de si próprio. PARA REFLETIR Para se emancipar, a mulher precisou ter amplo acesso ao mercado de trabalho, não só para garantir sua autonomia financeira com relação ao homem­ pai ou marido -, mas também para construir uma nova identidade e tornar-se mais livre em suas escolhas. Como condição de humanização, o trabalho liberta, ao viabilizar projetos e concretizar sonhos. Se em um primeiro momento a natureza apresen­ ta-se como destino, o trabalho será a possibilidade da superação dos determinismos. Nesse sentido, a liberdade humana não é dada, mas resulta da ação humana transformadora. Nem sempre, porém, pre­ valece essa concepção positiva, sobretudo quando as pessoas são obrigadas a viver do trabalho alie­ nado, que resulta de relações de exploração. Estamos, portanto, diante de um impasse: o trabalho é tortura ou emancipação? Se voltarmos nosso olhar à história para ver como as pessoas tra­ balham e o que pensam sobre o trabalho, teremos uma visão mais clara dessa contradição. D Ócio e negócio Nas sociedades tribais, as pessoas dividem tarefas de acordo com sua força e capacidade. Os homens caçam, derrubam árvores para preparar o terreno das plantações, enquanto as mulheres semeiam e fazem a coleta. Como a divisão das tare­ fas se baseia na cooperação e na complementação e não na exploração, tanto a terra como os frutos do trabalho pertencem a toda a comunidade. Por que mudaria esse estado de coisas? Para Jean-Jacques Rousseau, filósofo do século XVIII, a desigualdade surgiu quando alguém, ao cercar um terreno, lembrou-se de dizer "Isto é meu:', criando assim a propriedade privada. Nesse momento, abriu­ -se o caminho para a divisão social, as relações de dominação e a desigual apropriação dos frutos do trabalho. Desse modo, desde as mais antigas civiliza­ ções existe a divisão entre aqueles que mandam ­ e portanto projetam, concebem, inventam - e os que só obedecem e executam. Éo que se denomina a dico­ tomia entre a concepção e a execução do trabalho. À primeira vista, há aqueles que até hoje admi­ tem ser "natural" essa divisão de funções, pois alguns teriam mais talento para o pensar, ao passo que outros só seriam capazes de atividades braçais. O olhar mais atento constata, no entanto, que a sociedade descobre mecanismos para manter a divisão, não conforme a capacidade, mas sim de acordo com a classe a que cada um pertence. Entre os antigos gregos e romanos, que viviam em sociedades escravagistas, era nítida a divisão entre atividades intelectuais e braçais, com a evi­ dente desvalorização desta última. Um dos indícios da divisão social era a educação, por ser privilégio >Dicotomia. Divisão em duas partes. Trabalho, alienação e consumo Capítulo 6 No entanto, Marx nega que a nova ordem eco­ nômica do capitalismo fosse capaz de possibilitar a igualdade entre as partes, porque o trabalhador perde mais do que ganha, já que produz para outro: a posse do produto lhe escapa. Nesse caso, é ele pró­ prio que deixa de ser o centro de si mesmo. Não escolhe o salário - embora isso lhe apareça ficti­ ciamente como o resultado de um contrato livre -, não escolhe o horário nem o ritmo de trabalho e é comandado de fora, por forças que não mais controla. O resultado é a pessoa tornar-se "estranha", "alheia" a si própria: é o fenômeno da alienacão. E ETIMOLOGIA Alienação. Do latim alienare, "afastar"; alienus, "que pertence a um outro"; alius, "outro". Portanto, alienar, sob determinado aspecto, é tornar alheio, transferir para outrem o que é seu. Há vários sentidos para a palavra alienação. Em todos eles, há algo em comum: do ponto de vista jurídico, perde-se a posse de um bem; para a psiquiatria, o alienado mental perde a dimensão de si na relação com os outros; segundo Rousseau, o poder do povo é inalienável, porque só a ele per­ tence; na linguagem comum, a pessoa alienada perde a compreensão do mundo em que vive. .. Aliena~ão na produ~ão Para Marx, que analisou esse concei to básico, a alienação não é puramente teórica, porque se manifesta na vida real quando o produto do tra­ balho deixa de pertencer a quem o produziu. Isso ocorre porque na economia capitalista pre­ valece a lógica do mercado, em que tudo tem um preço, ou seja, ao vender sua força de trabalho mediante salário, o operário também se trans­ forma em mercadoria. Ocorre então o que Marx chama de fetichismo da mercadoria e reificação do trabalhador. Vejamos o que significam esses conceitos. • O fetichismo é o processo pelo qual a mer­ cadoria, um ser inanimado, adquire "vida" porque os valores de troca tornam-se supe­ riores aos valores de uso e passam a deter­ minar as relações humanas, ao contrário do que deveria acontecer. Desse modo, a rela­ ção entre produtores não se faz entre eles próprios, mas entre os produtos do seu tra­ balho. Por exemplo, não são relações entre alfaiate e carpinteiro, mas entre casaco e Unidade 2 Antropologia filosófica mesa, que são equiparados conforme uma medida comum de valor. PARA SABER MAIS Nas práticas míticas, "feitiço" ou "fetiche" signi ­ fica objeto a que se atribui poder sobrenatural; em psicologia, fetichismo é a perversão na qual a satisfação sexual depende da visão ou do con­ tato com pa rtes específicas do corpo ou objetos (pés, cabelos, sapatos, roupas íntimas etc.) e não com a pessoa i nteira. A semelha nça entre o sen­ tido mítico, o psicológico e o fetichismo da mer­ cadoria é que, nos três casos, objetos inertes, sem vida, ou pa rtes de um todo tornam-se "animados", "humanizados". • A reificação (do latim res, "coisa") é a trans­ formação dos seres humanos em coisas. Em consequência, a "humanização" da mercadoria leva à desumanização da pessoa, à sua coisi­ ficação, isto é, o indivíduo é transformado em mercadoria. A alienação não se aplica apenas à produção do trabalhador, mas também às formas do consumo, como veremos mais adiante. Im A era do olhar: a disciplina Outros pensadores investigaram as mudan­ ças decorrentes do capitalismo e do nascimento das fábricas, analisando-as sob outro ângulo, o da instauração da era da disciplina. Segundo Michel Foucault, um novo tipo de disciplina facilitou a dominação mediante a "docilízação" do corpo. OUEMÉ? Michel Foucault (1926-1984). Fi lósofo fra ncês, desenvol­ veu um método de investi ­ gação histórica e filosófica que chamou de genealogia . Examinando a mudança dos comportamentos no início da Idade Moderna, sobretudo nas instituições prisionais e nos Michel Foucault, hospícios, buscou compreen­ 1967­der os processos da produ­ ção dos saberes que tornaram possível o controle difuso e não tematizado, que chamou de microfísica do poder. Suas principais obras são História da loucura na Idade Clássica, As palavras e as coisas, História da sexualidade, Vigiar e punir, Microfísica do poder. Para exemplificar, vamos voltar à França do século XVIII. A historiadora francesa con temporânea :Michelle Perrot relata a descrição feita por um inspetor de manufaturas de uma oficina têxtil com cerca de 100 metros de comprimento, pavimentada por lajes e iluminada por cinquenta janelas com tela branca: No meio dessa sala [em] um canal coberto com lajes entreabertas cada fiandeira vai, em silêncio, tirar a água de que precisa [para a fiação]. Essa oficina, à primeira vista, surpreende o visitante pela quantidade de pessoas aí empregadas, pela ordem, pela limpeza e pela extrema subordinação que aí reina .. . Contamos 50 rocas duplas [ ... ] ocupadas por 100 fiandeiras e o mesmo tanto de dobradeiras, tão disciplinadas como tropas] Nos trechos em itálico, a historiadora destaca a nova maneira de trabalhar, representada por dois modelos disciplinares: o religioso (silêncio) e o militar (hierar­ quia, disposição em fileiras), A disciplina é mantida pelos supervisores, que avaliam a qualidade do serviço, evitam brigas e fazem cumprir os severos regulamen­ tos por meio de proibições (não falar alto, não dizer palavrões, não cantar), regras de horários (começa a "tirania" do relógio para entrada, saída e intervalos) e ainda penalidades como multas, advertências, suspen­ sões, demissões, de acordo com a gravidade da "falta", Foucault aproveita a descrição que o jurista Jeremy Bentham (séc. XVIII) fez de um projeto denominado Panopticon (literalmente, "ver tudo"), em que imagina uma construção de vidro, em anel, para alojar loucos, doentes, prisioneiros, estudantes ou operários. Controlados de uma torre central com absoluta visibilidade, o resultado é a interiorização do olhar que vigia, de modo que cada um não perceba a própria sujeição. Para refletir: e hoje, como vive o cidadão comum? Os sistemas eletrônicos de vigilância estão em todos os lugares: nos prédios residenciais, empresariais, nas 'lojas, nos shoppings, nas ruas e nas estradas, Quais as vantagens desse aparato e quais os riscos de expor nossa privacidade? Penitenciária de Stateville, inspirada no Panopticon, de Jeremy Bentham. Estados Unidos, 2002. PARA REFLETIR La Fontaine viveu na França do século XVII. Escreveu várias fábulas, dentre as quais destaca -se A cigarra e a formiga, que todos conhecem. Procure conhecer essa fábula e estabeleça a relação entre ela e a nova maneira de organizar a disciplina do trabalho. Em seguida, pensando nos tempos atuais, invente outro final para a história. Na nova estrutura, o "olhar vigilante" sobressai de maneira decisiva. A organização do tempo e do espaço imposta na fábrica não é, porém, um fenômeno iso­ lado. Nos séculos XVII e XVIII, formou-se a chamada "sociedade disciplinar", com a criação de instituições fechadas, voltadas para o controle social, tais como prisões, orfanatos, reformatórios, asilos de miseráveis e "vagabundos", hospícios, quartéis e escolas. .+ PARA SABER MAIS A escola institucionalizou-se de maneira mais com­ plexa quando foram criados os internatos, com a exigência de separação por idades, graduação em anos e organização de currículos, Assim diz Michel Foucault: Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 57-58. TrabaJho, alienação e consumo Capítulo 6 3 constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as "disciplinas". Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo [ ...]. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação. [ ...] O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades , nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil , e inversamente. [ ...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos "dóceis". Adisciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)4 De olho no cronômetro opoeta brasileiro Mário Quintana, em Das ampu­ lhetas e das clepsidras, diz o seguinte: Antes havia os relógios d'água, antes havia os relógios de areia. OTempo fazia parte da natureza. Agora é uma abstração - unicamente denunciada por um tic-tac mecânico, como o acionar contínuo de um gatilho numa espécie de roleta-russa. Por isso é que os antigos aceitavam mais naturalmente a morte. 5 Dialogando com o poeta, acrescentamos que somos "feitos" de tempo: sem a memória (passado) e sem os projetos (futuro), o nosso presente deixa­ ria de ser propriamente humano. Portanto, o que dizer de um tempo de velocidade preestabelecida que não respeita a cadência do próprio corpo nem as diferenças individuais? Na era capitalista, eficá­ cia, organização e padronização transformam-se em palavras de ordem e todo movimento passa a ser controlado externa e artificialmente. Se artifi­ cializamos demais os ritmos vitais, nem poderemos "morrer bem", já que vivemos tão mal! Foi isso que aconteceu quando os proprietários das fábricas, na busca de maior produtividade, implanta­ ram sistemas de "racionalização", que, em última aná­ lise, significam economizar tempo, transformando-o em mercadoria. Como foi possível tal proeza? FOUCAUL1~ Michel. Vigiar e punir: história da violência nas p. 126-127. .. O trabalho lIem migalhas" O norte-americano Frederick Taylor, no início do século XX, elaborou uma teoria conhecida como taylo­ rismo. Partindo do princípio de que os operários são indolentes e não sabem usar seus gestos de modo eco­ nômico, Taylor estabeleceu um "controle científico", por meio da medição por cronômetros, para que a pro­ dução fabril fosse cada vez mais simples e rápida. Com a criação de um setor de planejamento res­ ponsável pelo "saber como produzir", ficava muito mais nítida a separação entre a concepção e a exe­ cução do trabalho, isto é, entre o projeto e a sua rea­ lização, entre o pensar e o fazer. A mesma intenção de aumentar a produtivi­ dade levou Henry Ford, também norte-americano, a introduzir a esteira da linha de montagem e o pro­ cesso de padronização ou estandardização da produção em série na sua fábrica de automóveis. Unha de montagem do modelo Ford T, em Highland Park, Mich igan (EUA), 1913. A produção de carros e os lucros de Henry Ford aumentaram vertiginosamente, mas o operário fOl submetido ao trabalho parcelado e repetitivo. O parcelamento das tarefas reduz a atividade a gestos mínimos, o que aumenta a produção de maneira incrível, mas também transforma o tra­ balho "em migalhas": cada operário produz apenas uma parte do produto. prisões. Petrópolis: Vozes, 1987. QUlNTANA, Mário. Porta giratória. 3. ed. São Paulo: Globo, 1997. p. 61. Unidade 2 Antropologia filosófica 4 5 nossas escolhas. Muitas vezes, o consumo dá ao indivíduo apenas a sensação provisória de sacie­ dade e satisfação, ou o faz sentir-se ilusoriamente inserido socialmente. Além da compra de produtos, vale lembrar que "consumimos" também ide ias, veiculadas pela mídia. A preferência pela leitura de determinada revista, jor­ nal ou blog pode orientar fortemente nosso modo de pensar, caso não busquemos fontes diferentes que comparem e interpretem o mesmo fato. Por isso a pluralidade de veículos difusores de notícias é salutar na democracia e toda censura é perniciosa. • O consumo alienado A organização dicotômica do trabalho a que nos referimos - pela qual se separam a concepção e a execução do produto - reduz as possibilidades de o trabalhador encontrar satisfação na maior parte da sua vida, enquanto se sente obrigado a realizar tarefas desinteressantes. Muitas vezes, essa situa­ ção cria a necessidade artificial de se proporcionar prazer pela posse de bens. Além disso, a produção em massa tem por corolário o conswno de massa, porque as necessidades artificial­ mente estimuladas, sobretudo pela publicidade, levam os indivíduos a consllIllli' sempre mais. O conswno alie­ nado degenera em consumísmo quando se torna wn fim em si e não um meio, provocando desejos nunca satis­ feitos, wn sempre querer mais, um poço sem fundo. A ânsia do conswno perde toda relação com as neces­ sidades reais, o que leva as pessoas a gastar mais do que precisam e, às vezes, mais do que têm. PARA REFLETIR Ao olhar as vitrines, se pudéssemos examinar os "bastidores" da fabricação de muitas roupas "de marca", encontraríamos tecelagens que produzem rápido à custa da exploração de mão de obra ba rata, principalmente de mulheres. Éo caso de países como Guatemala, Honduras, Argélia, Turquia, Malásia e tantos outros, inclusive o Brasil. O comércio facilita a realização dos desejos ao possibilitar o parcelamento das compras, promo­ ver liquidações e ofertas de ocasião, estimular o uso de cartões de crédito, de compras pela inter­ net. As mercadorias são rapidamente postas "fora de moda" porque seu design se tornou antiquado ou porque um novo produto se mostrou "indispensá­ vel", seja televisão, geladeira, celular ou carro. m Critica à sociedade administrada Sobre a questão da produção e do consumo, debruçaram-se inúmeros filósofos, entre os quais os pensadores da Escola de Frankfurt, movimento que surgiu na década de 1930 na Alemanha. Para os frankfurtianos, chegamos ao impasse que nos deixa perplexos diante da técnica - apresen­ tada de início como libertadora - e que pode se mostrar, afinal, artífice de uma ordem tecnocrática opressora. A técnica aplicada ao trabalho tem pro­ vocado a alienação do trabalhador e o esgotamento dos recursos naturais. De fato, a exaltação do pro­ gresso indiscriminado não tem respeitado o que hoje chamamos de desenvolvimento sustentável. Ao submeter-se passivamente aos critérios de produtividade e desempenho no mundo competi­ tivo do mercado, o indivíduo perde muito do prazer de sua atividade ao ser regido por princípios apa­ rentemente "racionais". Por isso, Max Horkheimer acrescenta que "a doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de domi­ nar a natureza". E mais, que "a história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a his­ tória da subjugação do homem pelo homem".6 Degelo em glaciar. Perito Moreno, Argentina, 1993­ A intensificação do efeito estufa, devido ao excessivo acúmulo de gases na atmosfera, tem provocado o aumento da temperatura média, no planeta, o que leva ao derretimento dos gelos polares, causando prejuízos para os animais nati.vos e inundações nos litorais: para muitos estudiosos, uma sequência perversa de causas e efeitos em razão da intervenção humana indiscriminada na natureza. HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. p. 116. Trabalho, alienação e consumo Capítulo 6 6 • A razão instrumental De que "razãó' fala o filósofo? Trata-se da razão instrumental, que serve para qualquer fim, sem ave­ riguar se é bom ou mau. Na sociedade capitalista, os interesses definem-se pelo critério da eficácia, uma vez que a organização das forças produtivas visa a atingir níveis sempre mais altos de produtivi­ dade e de competitividade. Onde a técnica é o prin­ cipal, a pessoa deixa de ser fim para se tornar meio de qualquer coisa que se acha fora dela, além de que a relação do ser humano com a natureza passa a ser de domínio e não de harmonia. Na sociedade da total administração, segundo a expressão de Max Horkheimer e Theodor Adorno, os conflitos são dis­ simulados e a oposição desaparece. • A unidimensionalidade Herbert Marcuse chama unidimensionalidade à perda da dimensão crítica, pela qual o trabalhador não percebe a exploração de que é vítima. O filósofo alerta para a distinção entre necessidades vitais e falsas necessidades, para que a satisfação dos indi­ viduos não se reduza a uma "euforia na infelicidade". Assim ele diz: A maioria das necessidades comunsde descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades. Tais necessidades têm um conteúdo e uma função sociais determinados por forças externas sobre as quais o indivíduo não tem controle algum; o desenvolvimento e a satisfação dessas necessidades são beterÔpomos. Independentemente do quanto tais necessidades possam ter se tornado do próprio indivíduo, reproduzidas e fortalecidas pelas condições de sua existência; independentemente do quanto ele se identifique com elas e se encontre em sua satisfação, elas continuam a ser o que eram de início - produtos de uma sociedade cujo interesse dominante exige repressão? E ETIMOLOGIA Heterônomo. Do grego, hetero, "diferente", e nomos. " lei". Aquele que é comandado por outrem, que está sujeito a uma lei exterior. O contrário de autônomo. O que pretendemos não é negar o valor da razão instrumental, pela qual produzimos a cultura, mas recuperar o que se perde em termos de humanização quando a razão técnica prevalece sobre a razão vital. Tampouco, considerar o ser humano indefeso diante de um suposto determinismo a que não pode fugir. A questão fundamental está na ret1exão moral e política sobre os fins das ações humanas no trabalho, no con­ sumo, no lazer, nas relações afetivas, a fim de observar se estão a serviço do ser humano ou de sua alienação. mUma "civilização do lazer"? o lazer é uma criação da civilização industrial e apareceu como fenômeno de massa com caracterís­ ticas específicas que nunca existiram antes do século XX, quando a nova expressão histórica do lazer surgiu como contraponto explícito ao período de trabalho. As reivindicações dos trabalhadores sobre o alar­ gamento do tempo de lazer obtiveram alguns êxi­ tos muito lentamente, tais como descanso semanal, diminuição da jornada de trabalho para oito horas, semana de cinco dias, férias. Era o início de uma nova era, que tendia a tomar contornos mais defini­ dos com a intensificação da automação do trabalho. Estava sendo gestada a "civilização do lazer". A diminuição da jornada de trabalho criou o tempo liberado, que não pode ser confundido com o tempo livre, pois aquele é gasto com transporte, obrigações familia­ res, sociais, políticas ou religiosas. O tempo propria­ mente livre, de lazer, é aquele que sobra após a realiza­ ção de todas as funções que exigem obrigatoriedade. O que é lazer, então? O sociólogo francês ]offre Dumazedier diz: [ ...] o lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desemba raça r-se das obrigações profissionais, fa m i I iares e sociaisB Há, portanto, três funções solidárias no lazer: • descanso e, em decorrência, liberação da fadiga; • divertimento, recreação, entretenimento e, con­ sequentemente, uma complementação que dá 7 MARCUSE. Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar. 1973. p. 26. 8 DUMAZEDIER.]offre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva. 1973. p. 34. Unidade 2 Antropologia filosófica Como explicitação dessa felicidade fantasiosa, em algumas revistas os famosos estampam apenas sorrisos, enquanto em outras é exposta com certa crueldade a intimidade de relações malsucedidas, brigas, internações para tratamento de dependên­ cia de drogas ou para mais uma cirurgia plástica, na luta contra o envelhecimento. Pelos consultórios médicos passam pessoas com estresse, a doença do nosso tempo. O enfren­ tamento de depressões desemboca na banalização do consumo de psicofármacos - as "pílulas da feli­ cidade". Sob essa última perspectiva, a felicidade é vista pelo seu avesso: como a não dor, o não sofri­ mento, a não perda. De certo modo, representa a adequação das pessoas a comportamentos padro­ nizados, ao que Nietzsche chamaria de "felicidade de rebanho'. PARA REFLETIR No livro Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, as pessoas permanecem sempre jovens e são "felizes" porque tomam o soma, uma droga que impede a manifestação da tristeza e do sofrimento. Seria isso a felicidade? Ao contrário dessa busca cega, a felicidade encontra-se mais naquilo que o ser humano faz de si próprio e menos no que consegue alcançar com ' os bens materiais ou o sucesso. Não se veja aqui a acusação de que rico não pode ser feliz nem o elogio ao despojamento ou à pobreza. Queremos dizer que, no primeiro caso, apenas as posses não nos tornam felizes, porque a riqueza nunca é um bem em si, mas um meio para nos propiciar outras coisas. O que se percebe é que na busca da felicidade muitas vezes as pessoas dela se afastam. A esse res­ peito, diz Aristóteles: Ora, é esse o conceito que preeminentemente fazemos da felicidade. Éela procurada sempre por si mesma e nunca com vistas em outra coisa, ao passo que à honra , ao prazer, à razão e a todas as virtudes nós de fato escolhemos por si mesmos [...] ; mas também os escolhemos no interesse da felicidade,. pensando que a posse deles nos tornará felizes. A felicidade, todavia, ninguém a escolhe tendo em vista algum destes, nem, em geral, qualquer coisa que não seja ela própria .1 Conforme a ética aristotélica, conhecida como eudemonismo as ações humanas tendem para o bem e o bem supremo é a felicidade. E esta significa a realização da excelência (o melhor de si), que é a sua natureza de ser racional. E ETIMOLOGIA Eudemonismo. Do grego eudaimonia, "felicidade". fi A "experiência de ser" De maneira geral, a felicidade comporta um dado característico, que é o sentimento de satisfação em relação ao modo como vivemos, à possibilidade de sentirmos alegria, contentamento, prazer. Por expe­ riência, sabemos que não se trata de uma plenitude, porque esse estado de espírito não ocorre o tempo todo, já que a vida feliz não exclui os contratempos, como a dor, o sofrimento, a tristeza. Só a satisfação não é suficiente para explicar a felicidade, porque ela supõe a realização de desejos que, não raro, são conflitantes. Por exemplo, você pode ficar em dúvida entre assistir a um filme ou ficar estudando. Os motivos que influem na decisão podem ser de diversas naturezas: o filme é de um bom dire­ tor e trata de um tema que lhe interessa; ou então é puro entretenimento e você precisa se distrair. Por outro lado, o estudo pode ser um prazer, se o assunto lhe despertou o interesse; mas pode repre­ sentar, naquele momento, a privação de um prazer, por preferir um bem futuro, como a sua profissio­ nalização. Em qualquer caso, os desejos não são compatíveis e uma decisão satisfaz um desejo, mas frustra o outro. Vemos aí mais um componente da felicidade: a autonomia da decisão. Se não somos livres, ficamos sujeitos às influências externas e tornamos nos­ sos sonhos alheios, o que acontece nas sociedades massificadas em que os comportamentos tendem à padronização. Ao contrário, quando agimos de acordo com nossos próprios projetos de vida, deci­ dimos de modo coerente. Para tanto, é necessária a reflexão, que nos per­ mite apreciar o que desejamos da vida como um todo, conforme projetos que dão sentido às nossas decisões. É o que o filósofo francês Robert Misrahi chama de "experiência de ser". E completa: ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 255. (Coleção Os Pensadores) . Em busca da felicidade Capitulo 7 I .. omito de Eros Eros. Vaso ático, C.470 a.c.­ -450 a.c. Na mitologia grega, Eros (Cupido, para os romanos) é representado por um belo jovem ou por uma criança travessa que flecha os corações para tomá-los apaixonados. No diálogo O banquete, Platão relata um encon­ tro em que os convivas discursam sobre o amor. Aristófanes, o melhor comediógrafo da época, conta o mito sobre a origem do amor. No início, os seres humanos eram duplos e esféricos, e os sexos eram três, um deles constituído por duas metades mas­ culinas, outro por duas metades femininas e o ter­ ceiro, andrógino, metade masculino, metade femi­ nino. Por terem ousado desafiar os deuses, Zeus cortou-os em dois para enfraquecê-los. A partir dessa separação, cada metade buscou restaurar a unidade primitiva, de onde surgiu o amor recíproco. E como os seres iniciais não eram apenas bissexuais, foi valorizado o amor entre seres do mesmo sexo, sobretudo o masculino, como expressão possível desse encontro amoroso. Ao ser dada a palavra a Sócrates, a discussão é focada no amor como anseio humano por uma totalidade do ser, representando desse modo o pro­ cesso de aperfeiçoamento do próprio eu. Sócrates lembra então o diálogo que tivera com a sacerdo­ tisa Diotima sobre a origem e a natureza de Eros. Segundo ela, durante o aniversário de Afrodite, Eros nasceu de Poros (Expediente, Engenho ou Recurso) e de Pénia (Pobreza). Deve, portanto, aos pais a inquietude de procurar sair da situação de pobreza e, por meio de expedientes, alcançar o que deseja: por isso o amor é a oscilação eterna entre o não possuir e o possuir, é um !lnelQ de qualquer coisa que não se tem e se deseja ter. Unidade 2 Antropologia filosófica Pela boca de Sócrates, Platão estabelece uma rela­ ção entre Eros e a filosofia, de modo a não reduzir a busca do amor apenas à procura da outra metade que nos completa. Para ele, Eros é a ânsia de aju­ dar o eu autêntico a se realizar, na medida em que a vontade humana tende para o bem e para o belo, quando subordina a beleza física à beleza espiritual. Nesse estágio, é capaz de desligar-se da paixão por determinado indivíduo ou atividade, ocupando-se com a pura contemplação da beleza. O amor intelectual é, portanto, superior ao amor sensível. Se na juventude predomina a admiração pela beleza física, o verdadeiro discípulo de Eros amadurece com o tempo ao descobrir que a beleza da alma é mais preciosa que a do corpo. ++ PARA SABER MAIS Oque é o tão falado amor platônico? Éo amor em que não mais predominam a sensibilidade e as paixões. mas o prazer intelectual e espiritual. É importante observar que essa concepção deve ser compreendida de acordo com a concepção pla­ tônica de submissão do corpo à alma. Assim. Platão subordina as paixões à razão, Eros a Logos. .. COrpO e alma: o dualismo platônico Durante muito tempo os filósofos ocidentais explicaram o ser humano como composto de duas partes diferentes e separadas: o corpo (material) e a alma (espiritual e consciente). Chamamos de dua­ lismo psicofisico essa dupla realidade da consciência separada do corpo. Segundo Platão, antes de se encarnar, a alma teria vivido no mundo das ideias, onde tudo conhe­ ceu por simples intuição, ou seja, por conhecimento intelectual direto e imediato, sem precisar usar os sentidos. Quando a alma se une ao corpo, ela se degrada, por se tornar prisioneira dele. Passa então a se compor de duas partes: a) alma superior (a alma intelectiva); b) alma inferior e irracional (a alma do corpo). Esta, por sua vez, divide-se em duas partes: • a alma irascível, impulsiva, sede da coragem, localizada no peito; • a alma concupiscível, centrada no ventre e sede do desejo intenso de bens ou gozos materiais, inclusive o apetite sexual. >Anelo. Desejo intenso. Cavaleiro guiando cavalos. desenho em vaso grego de 540 a.c. Essa figura representa a divisão da alma, segundo Platão. A alma inferior é representada pelos dois cavalos, um branco e um preto, respectivamente, a coragem e o desejo. Se os cavalos simbolizam a força, o impulso que nos leva adiante, o cocheiro é a razão que os controla. Escravizada pelo sensível, a alma inferior con­ duz à opinião e, consequentemente, ao erro, pertur­ bando o conhecimento verdadeiro. O corpo é tam­ bém ocasião de corrupção e decadência moral, caso a alma superior não saiba controlar as paixões e os desejos. Portanto, todo esforço humano consiste no domínio da alma superior sobre a inferior. Não deixa de parecer contraditória essa desva­ lorização do corpo, se sabemos o quanto os gregos apreciavam os exercícios físicos, os esportes, além de cultuar a beleza do corpo. Não por acaso, a Grécia foi o berço das Olimpíadas, durante as quais até as guerras cessavam e seus artistas esculpiam corpos perfeitos, simétricos e belos. No entanto, o aforismo "corpo são em mente sã" apenas confirma a superioridade do espírito: na posse de saúde perfeita, a alma se desprende dos sentidos para melhor se concentrar na contem­ plação das ideias. Caso contrário, a fraqueza física torna-se empecilho maior à vida intelectual. Nesse contexto, fica claro que a felicidade para Platão é de natureza racional e moral, e depende do controle do corpo e das paixões. ++ PARA SABER MAIS A concepção platônica de separação corpo-alma continuou na Idade Méd ia com a tradição platôni­ co-cristã. que associava o corpo a sexo e pecado. A convicção de que as paixões são perigosas e levam à degradação moral estimulou as práticas de purifi­ cação pelo asceti smo. por meio de jejum. flagelação e abstinência sexual. 9 O COrpO sob O olhar da ciência Durante o Renascimento e a Idade Moderna, começou a mudar a concepção de corpo. Um indício foi a prática de dissecação de cadáveres, até então proibida pela Igreja, por ser um ato sacrílego que desvenda o que Deus teria ocultado de nosso olhar. No século XVI, o médico belga Andreas Vesalius (1514-1564) causou perplexidade ao desafiar essa tradição. Apesar das dificuldades enfrentadas, seu procedimento revolucionário alterou várias con­ cepções inadequadas da anatomia tradicional, até então baseada na obra de Cláudio Galeno, médico que viveu no século II e que se restringira a disseca­ ções de animais. Nesta tela do século XVII, o pintor não representa apenas médicos aprendendo a dissecação. Trata-se do novo olhar profano. voltado para um mundo a ser desvendado pela ciência nascente. Licào de anatomia do Dr. van der Meer. Michiel Jansz van Mi erevelt. 161T Em busca da fellddade Capítulo 7 A "profanação" pelo olhar levada a efeito por para adquiri-lo é a mais útil ocupação qu e se possa Vesalius foi ilustrada por Rembrandt no célebre qua­ ter, como é, sem dúvida, a mais agradável e a mais dro Lição de anatomia e por outros pintores, como doce 6 Van Merevelt. Esse novo olhar sobre o mundo é o da consciência secularizada, da qual se retira o compo­ nente religioso para só considerar a natureza física e biológica do corpo, como objeto de estudo cien­ tífico. Esses antecedentes são indicativos da revo­ lução científica levada a efeito no século XVII por Bacon, Descartes e Galileu. .. Descartes: o corpo~máquina A filosofia de René Descartes (1596-1650) contri­ buiu para a nova concepção de corpo. Para ele, o ser humano é constituído por duas substâncias distintas: • a substância pensante (em latim res cogitans, "coisa que pensá'), de natureza espiritual: o pensamento; • a substância extensa (res extensa), de natureza material: o corpo. Eis aí o dualismo psicofísico cartesiano. Esse posi­ cionamento, embora pareça com o dualismo platô­ nico, apresenta diferenças, porque Descartes con­ cebe um corpo-objeto associado àideia mecanicista do ser humano-máquina. Ou seja, para o filósofo, o nosso corpo age como máquina e funciona de acordo com as leis universais. Descartes explica, porém, que, apesar de diferen­ tes, corpo e alma são substâncias que se relacionam, porque a alma necessita do corpo: é pela imagina­ ção que o corpo fornece à alma os elementos sensí­ veis do mundo e pelo qual podemos experimentar sentimentos e apetites. Mas cabe à alma submeter a vontade à razão, controlar as paixões que preju­ dicam a atividade intelectual e provocam tristeza, bem como cultivar aquelas que nos dão alegria. Em As paixões da alma, Descartes afirma que podemos conhecer a força ou a fraqueza da alma pelos com­ bates em que a vontade consegue vencer mais facil­ mente as paixões. Como vemos, a concepção cartesiana sobre a relação corpo e alma alia-se à necessidade de um comportamento moral livre que, por meio da prática da virtude e da sabedoria, permita ao ser humano controlar as paixões. Seria isso a felicidade? É assim que Descartes escreve em uma carta dirigida à prin­ cesa Elisabeth da Boêmia, em 1645: a maior felicidade do homem depende desse reto uso da razão e, por conseguinte, que o estudo que serve mA inovação de Espinosa No século XVII, Espinosa constitui uma exceção na tentativa de superar a dicotomia corpo-consciência para restabelecer a unidade humana. Como para ele o desejo é a própria essência humana, interessa-se por tudo o que nos dá alegria e, por consequência, aumenta nossa capacidade de pensar e de agir, dis­ tinguindo o que nos leva à tristeza, à passividade e que atrofia nossa potência de eXJÍstir. .. A teoria do paralelismo Ao analisar as possibilidades de expressão da liberdade, Espinosa desafia a tradição vinda dos gre­ gos. A novidade é a teoria do paralelismo, segundo a qual não há relação de causalidade ou de hierar­ quia entre corpo e espírito: nem o espírito é superior ao corpo, como afirmam os idealistas, nem o corpo determina a consciência, como dizem os materialis­ tas. A relação entre um e outro não é de causalidade, mas de expressão e simples correspondência, pois o que se passa em um deles exprime-se no outro: a alma e o corpo expressam a mesma coisa, cada um a seu modo próprio. Espinosa, gravura anônima, século XVIII. QUEM É? 8aruch Espinosa (1632-1677). filó­ sofo judeu holandês, sofreu inú­ meros reveses em sua vida. Cedo foi expulso da sinagoga, acu ­ sado de heresia. Deserdado pela família, ocupou-se como polidor de lentes, para garantir a sobre ­ vivência e dedicar-se à reflexão. Escreveu Tratado teológico-polí tico e Ética,entrevárias obras mal compreendidas e quase nunca lidas, tanto no seu século como nos subsequentes. Sofreu acusa­ ções ora de ateísmo, ora de panteísmo. Considerado por muitos um filósofo determinista, no sentido de negar a liberdade humana, Espinosa, ao contrário, critica toda forma de poder, quer político, quer reli­ gioso, ao esclarecer quais são os obstáculos à vida, ao pensamento e à política livres. Ele quer descobrir o que nos leva à servidão e à obediência, o que per­ mite e o que impede o exercício da liberdade. 6 DESCARTES, René. Cartas. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 319. (Coleção Os Pensadores). . • Unidade 2 Antropologia filosófica >Revendo o capitulo D Explique quais são os argumentos das duas posi­ ções antagônicas assumidas com relação ao traba­ lho: como tortura e como condição de humaniza­ ção. Em seguida, posicione-se sobre a questão. 11 Distinga a concepção de trabalho na Antiguidade e na Idade Moderna. 11 Explique o que Marx entende por fetichismo da mercadoria e reificação do trabalhador. a Releia a citação de Foucault no tópico 7, "De olho no cronômetro", e explique a relação que o filósofo estabelece entre disciplina, utilidade e obediência. >Aplicando os conceitos 11 Interprete a frase de Aristóteles baseando-se na concepção de trabalho na Grécia Antiga: "r... ] se as lançadeiras tecessem e as palhetas tocas­ sem citaras por si mesmas, os construtores não teriam necessidade de auxiliares e os senhores não necessitariam de escravos". (Política, Livro I, capitulo li, 1254a, 3. ed. Brasilia: UnB, 1997. p. 18). 11 A era da flexibilização do trabalho exige que todos os trabalhadores sejam alfabetizados, mas também que se ofereça outro tipo de educação para os jovens, diferente da tradicional. Explique por quê. Sisifo, personagem da mitologia grega, foi conde­ nado a empurrar uma pedra até o alto de uma montanha, de onde ela tornava a cair sem cessar. Compare esse mito ao trabalho alienado. S Compare as ideias de Marcuse e Lipovetsky apresentadas no capitulo e indique em que eles se opõem. Em seguida, posicione-se sobre o assunto. >Dissertação 11 Elabore uma dissertação com o tema: "Trabalho e lazer: onde está o equilibrio e a interação?". >Caiu no vestibular DI (UEL-PR) Analise a figura a seguir. Cena do f i lme Tempos modernos. Charles Cha plin, 1936 "Parece que enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte da atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto indivi­ duo, a sua capacidade de opor resistência ao cres­ cente mecanismo de manipulação das massas, o seu poder de imaginação e o seu juizo independente sofreram aparentemente uma redução. O avanço dos recursos técnicos de informação se acompanha de um processo de desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o que se supõe ser o seu próprio objetivo: a ideia de homem." (Max Horkheimer. Eclipse da razão. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976. p. 6.) Com base no texto, na imagem e nos conhecimentos sobre racionalidade instrumental, é correto afinnar: a) A imagem de Chaplin está de acordo com a critica de Horkheimer: ao invés de o progresso e da técnica servirem ao homem, este se torna cada vez mais escravo dos mecanismos criados para tornar a sua vida melhor e mais livre. b) A imagem e o texto remetem à ideia de que o desenvolvimento tecnológico e o extraordiná­ rio progresso permitiram ao homem atingir a autonomia plena. c) Imagem e texto apresentam o conceito de racionali­ dade que está na estrutura da sociedade industrial como viabilizador da emancipação do homem em relação a todas as formas de opressão. cO Enquanto a imagem de Chaplin apresenta a autonomia dos trabalhadores nas sociedades contemporâneas, o texto de Horkheimer mostra que, quanto maior o desenvolvimento tecnoló­ gico, maior o grau de humanização. e) Tanto a imagem quanto o texto enaltecem a inevitável instrumentalização das relações humanas nas sociedades contemporâneas. 7 opasseio (1917-1918), de Marc ChagaU. Autorretrato do pintor com sua amada mulher BeUa. Sobre a grama, a toalha vermelha estendida para o piquenique. Ao fundo, sua aldeia natal, na Rússia. Escreva em poucas linhas que elementos dessa tela são signüicativos para explicitar a felicidade. D O que significa ser feliz? "Feliz aniversário!", "Feliz Ano-Novo!", "Felicidades!". As saudações são nossos votos para aqueles que estimamos. E dese­ jamos o mesmo para nós: ser feliz. Mas é possível ser feliz? Em que con­ siste a felicidade? Alguns, mais pessimistas, acham a felicidade um sonho impossível. Os problemas do cotidiano, os sofrimentos físicos e morais, a fome, a pobreza, a violência, o tédio são empecilhos severos. Mas será que mesmo essas pessoas não têm um fiapo de esperança de ter uma vida melhor? Para outros, como vemos na publicidade, a felicidade estaria nos momentos de consumo, longe do trabalho, com todo o conforto e pra­ zer que o dinheiro pode lhes dar: um carro, um iate, roupas de marca, ausência de sofrimento, um doce "nada fazer ..... Por isso tantos esperam as férias, a aposentadoria ou o prêmio da loteria. Não convém, portanto, dizer que o corpo é pas­ sivo enquanto a alma é ativa, ou vice-versa. Quando passivos, o somos de corpo e alma; quando ativos, o somos de corpo e alma também. Somos ativos quando autônomos, senhores de nossa ação, e pas­ sivos quando o que ocorre em nosso corpo ou alma tem uma causa externa mais poderosa que nossa força interna. Daí decorre a heteronomia. Vejamos como Espinosa concebe as paixões da alegria e da tristeza. Qual a diferença entre elas? E ETIMoroGlA Paixão. Em grego.pathos sign inca "padecer", "sofrer", no sentido de algo que ocorre no sujeito indepen­ dentemente de sua vontade. Ao padecer, nào somos nós que agimos, mas sofremos a açào de uma causa exterior. o A alegria é a passagem do ser humano de uma perfeição menor para uma maior. o A tristeza é a passagem do ser humano de uma perfeição maior para uma menor. A paixão alegre, ao aumen tar o nosso ser e a nossa potência de agir, aproxima-nos do ponto em que nos tornaremos senhores dela e, portanto, dignos de ação. Assim, o amor é a alegria do amante, forti­ ficada pela presença do amado ou da coisa amada. Outras expressões da alegria são o contentamento, a admiração, a estima, a misericórdia. A paixão triste afasta-nos cada vez mais da nossa potência de agir, por ser geradora de ódio, aversão, temor, desespero, indignação, inveja, crueldade, ressentimento, melancolia, remorso, vingança etc. E quanto à alma: qual é sua força e sua fraqueza? A virtude da alma, no sentido primitivo de força, de poder, consiste na atividade de pensar, conhe­ cer. Portanto, sua fraqueza é a ignorância. Quando a alma se reconhece capaz de produzir ideías, passa a uma perfeição maior e é afetada pela alegria. Mas, se em alguma situação a alma não consegue enten­ der, a descoberta de sua impotência provoca o sen­ timento de diminuição do ser e, portanto, a tristeza. Nesse caso, a alma está passiva. ++ PARA SABER MAIS Espinosa usa o termo latino conatus (esforço, impulso) para designar a tendência de todos os seres a sea utopre­ servarem:"toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser" (Ética, Parte 111, Proposição VI). .. Uma ética da felicidade O que fazer para evitar a paixão triste e propi­ ciar a paixão alegre? Pela teoria do paralelismo, a alma não determina o movimento ou o repouso do corpo, nem o corpo leva a alma a pensar, por isso não cabe ao espírito combater as paixões tristes. O que as destruirá só pode ser uma paixão alegre, nas situações em que, de joguetes dos nossos afetos, podemos passar a ser senhores deles. Portanto, um afeto jamais é vencido por uma ide ia, mas um afeto forte é capaz de destruir um afeto fraco. o pintor realista Edward Hopper (1882-1967) é conhecido pelas telas representativas do cotidiano. aparentemente banais. mas densas de significados. Seus personagens exprimem desalento. tristeza, desengano. Reflita: nesta tela Quarto de hotel, a mulher encontra-se em um quarto simples de hotel. as malas ainda nem foram desfeitas. Levemente arcada, aparentemente inerte, tem um papel nas mãos. Em que sentido uma tristeza de tal ordem pode desencadear - segundo os conceitos de Espinosa - uma diminuição do ser? Hotel room. Edward Hopper, 1931. Em busca da felicidade Capítulo 7 • A sexualidade humana não é puramente bioló­ gica, separada da pessoa integral. Já vimos que ela é na verdade erotismo, e, sob esse aspecto, constitui parte integrante do ser total. Merleau­ -Ponty cita o exemplo dado por Wilhelm Steckel, discípulo dissidente de Preud, para quem a frigi­ dez quase nunca está ligada a condições anatô­ micas ou fisiológicas. A frigidez traduziria a recusa da condição feminina ou da condição de ser sexuado, e esta por sua vez traduz a recusa do parceiro sexual e do destino que ele representa 8 • Poderíamos argumentar que, ao contrário dos exemplos anteriores, a dor e a doença seriam manifestações de pura corporeidade. Afinal, há uma objetividade na cadeira onde demos uma canelada, e todo órgão afetado por alguma doença padece a ação de virus ou bactérias. Há doen­ ças hereditárias, defeitos congênitos. Tudo isso parece muito distante da ação da consciência. No entanto, a facticidade nunca se separa da trans­ cendência, que resulta do sentido que a pessoa dá à dor ou à doença ou no uso que faz dela. Que conclusão podemos tirar do conceito de inten­ cionalidade, tão caro à fenomenologia? A compreen­ são que temos do corpo e da consciência, dos afetos, enfim, do mundo e dos outros, nunca resulta da pura intelecção, mas depende do sentido que descobrimos em cada experiência, nos significados que deciframos ao pensar o mundo, o outro e nós mesmos. .. Marcuse: Eros e civilizattão No século XIX, exerceu-se um controle cada vez mais severo sobre o trabalhador fabril. O princípio de adestramento do corpo, que o submetia a férrea disciplina, com jornada de 14 a 16 horas em locais insalubres, fez com que o trabalho não representasse apenas um freio para o sexo, mas que promovesse um processo de dessexualização e deserotização do corpo. Ou seja, quando o trabalho é instrumento de exploração econômica, dele é retirado todo prazer e possibilidade de humanização. Nas décadas de 1960 e 1970, influenciado pelo marxismo e pela psicanálise, o filósofo alemão Herbert Marcuse indagava sobre a possibilidade de uma civilização não repressiva. Embora espe­ rasse que o progresso tecnológico haveria de dila­ tar o tempo livre e propiciar melhores condições de trabalho, concluiu pela negação dessa utopia, pelo menos naquele momento. Em Eros e civilização, constata que as exigências da nova ordem industrial capitalista provocam uma super-repressão, intimamente ligada ao princípio de desempenho, segundo o qual o trabalhador interioriza a necessidade de rendimento, de produtividade, pre­ enchendo funções preestabelecidas e organizadas em um sistema cujo funcionamento se dá independente­ mente da participação consciente de cada um. Assim, o ideal de produtividade da sociedade industrial faz-se por meio da repressão: "eficiência e repressão convergem". Nesse ambiente repres­ sor, a sexualidade, que deveria impregnar todas as ações humanas prazerosas, restringe-se a momen­ tos isolados, nas horas de lazer, além de ser redu­ zida à genitalidade, ao ato sexual exclusivamente. Mais ainda, em alguns casos é controlada para não se desviar da função de procriação. U PARA REFLETIR Reveja no capítulo 6, "Trabalho, alienação e con­ sumo", o conceito de unidimensionalidade, pelo qual Marcuse denuncia a perda da dimensão crítica do trabalhador na economia capitalista. Relacione-o com o teor do presente item, indicando os aspectos psicanalíticos e marxistas de sua teoria . Poderíamos objetar que, a partir da década de 1960, com a chamada revolução sexual, a repressão seria substituída pela valorização da sexualidade, o que significaria, segundo alguns, uma liberação. No entanto, o capitalismo reagiu incorporando as novas tendências a fim de amenizar seus efeitos. Por exemplo, uma ampla produção de revistas, filmes, livros, peças teatrais atende ao interesse despertado pelas questões sexuais. Essa produção, porém, vol­ ta-se para um "novo filão' do consumismo: o sexo torna-se vendável e exposto como em um supermer­ cado. Ao examinar o conteúdo de tais publicações, percebe-se que, na verdade, simulam a liberação da sexualidade e reforçam preconceitos. Para Marcuse, essa liberação é ilusória, porque na verdade é um tipo de repressão mais sutil. Em primeiro lugar, porque a sexualidade "liberadà' é a sexualidade genital, isto é, a que se centraliza no ato sexual, o que denota empobrecimento da sexuali­ dade humana, que deveria estar difusa não só no corpo todo como no ambiente e nos atos não propria­ mente sexuais. A canalização dos instintos para os S MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p 218 . • I Unidade 2 Antropologia filosófica órgãos do sexo impede que seu erotismo "desorde­ nadá' e "improdutivo" prejudique a "boa ordem" do trabalho e extravase os limites permitidos. Na verdade, oculta-se que o ambiente no qual o indivíduo podia obter prazer­ que ele podia concentrar como agradável quase como uma zona estendida de seu corpo - foi reduzido. Consequentemente, o "universo" de concentração de desejos libidinosos é do mesmo modo reduzido. O efeito é uma localização e contração da libido, a redução da experiência erótica para experiência e satisfação sexuais 9 estabelece padrões sobre o que é normal ou patoló­ gico, classifica os tipos de comportamento, determina a . rofilaxia e aprisiona os indivíduos à última palavra do "especialista competente", por meio do qual o sexo é vigiado e regulado. Foucault vai mais longe ao investigar de que maneira as instâncias do poder atuam sobre o indi­ víduo para criar modos de agir e de pensar e con­ clui que a imposição de comportamentos passa pela domesticação e docilização do corpo. Pela teoria da microfisica do poder, Foucault demonstra como a debilitação do corpo não depende necessariamente do aparelho do Estado ou de algum outro modo de dominação às claras, tal como a escra­ vidão. Mas trata-se da ação de micropoderes que se exercem de maneira difusa nos mais diversos campos da vida social e cultural, no próprio seio da sociedade. O novo tipo de disciplina atua na organização do espaço, no controle do tempo e na vigilância, visando à padronização de comportamento. Marcuse e Foucault, por caminhos diferentes, desvendam o controle sobre o corpo e sobre a sexua­ lidade, ainda quando esta aparece como "normal" ou "liberadà'. Perguntamos: como fica a felicidade de um sujeito cuja autonomia é diminuída sem que ele perceba? Pode-se falar em felicidade com tão alto controle social? D Individualismo e narcisismo As discussões entre os pensadores a respeito das mudanças institucionais que começaram a ocorrer na segunda metade do século XX identificam complexas reações à antiga ordem. Devido à prevalência do setor de serviços, à entrada na era da informática e da comu­ nicação e à globalização, aceleraram-se as mudanças culturais a partir das décadas de 1980 e 1990. Desse modo, as crianças e os adolescentes edu­ cados fora das normas da cultura patriarcal tra­ dicional cresceram convivendo com diferentes padrões de conduta. A família adquiriu formatos plurais, tais como divorciados que se casam nova­ mente, núcleos monoparentais (formados ape­ nas pela mãe ou pelo pai), uniões informais entre homem e mulher e entre pessoas do mesmo sexo. Profilaxia. Parte da medicina que trata da preserva­ ção da saúde por meio de práticas de higiene e de prevenção de doenças. {J !i :l .a ~ C> % Il 9­ Grande nu americano n. 27­ wm Wesselmann, 1962. O artista expõe a nudez ao lado de sorvetes e milk-shakes, indicando antecipadamente, no inicio da década de 1960, a ligação entre liberdade sexual e sociedade de consumo, ou seja, a sexualidade como objeto de consumo. • Foucault: a microfisica do poder Segundo Michel Foucault, autor de História dasexua­ lidade, a civilização contemporânea fala muito sobre sexo, sobretudo a partir do discurso científico. Para ele, a ciência "naturalizà' o sexo, reduzindo-o a uma visão biologizante. Ao mostrá-lo como algo "natural", MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar. 1973. p. 83. Em busca da felicidade Capítulo 7 9 vO{]~ ~if.o ~ /'CrI.~ ~ % ~P,~ ) 11J!;1:> 86-1. I",i\ F;It (. ~ f'b«! !Wco -m-f/t) ( conciliar a preocupação de si com a gene­ rosidade, no esforço para a construção de uma individualidade responsável pelo outro e pelo mundo. Por outro lado, Lipovetsky adverte sobre a ambiguidade dessas novas estimulações: [...] ao mesmo tempo em que exerce uma função de personalização, o narcisismo Tira Família Brasil, de Luis Fernando Verissimo pu bl icada no jornal O Estado de S. Paulo, em 2008. Por decorrência, também os jovens comportam-se com mais liberdade sexual e isenção de culpa do que nas gerações que os antecederam. Ao mesmo tempo, readquirem forças os movimentos de retorno ao ideal da família patriarcal e da defesa da indissolubilidade do casamento, estimulados sobretudo por grupos religiosos. Esse estado de coisas repercute no que entendemos e esperamos das relações amorosas e nas expectativas em torno do que é ser feliz. Quais são as consequências do afrouxamento das regras de comportamento que passaram a per­ mitir modos plurais de conduta? O que se percebe em um primeiro momento é o individualismo, por­ que cada um se volta com mais intensidade para si mesmo, na busca da realização dos desejos aqui e agora. Segundo alguns, diminuiu o interesse pelo coletivo, retraindo-se a participação política rebelde típica dos anos de 1960. Como decorrência, intensi­ ficou-se o narcisismo devido à ênfase no aprimora­ mento da própria imagem e pela ânsia de consumo numa sociedade hedonista e permissiva. Após longa tradição de desvalorização do corpo e das paixões, de seu controle e normatização, surge a tendência aparentemente transgressiva da libera­ ção e do resgate do corpo, até que no final do sécu­ lo XX se dissemina o culto do corpo visando a garan­ tir a saúde, o bem-estar e a beleza. O filósofo Gilles Lipovetsky analisa as mudan­ ças do nosso tempo, por ele consideradas inevitá­ veis. Destaca aspectos positivos na nova ordem, na qual coabitam os fenômenos de massificação e de personalização, de individualismo exacerbado e de individualismo responsável. Por um lado, esta­ ríamos ganhando autonomia e personalização, já que as respostas "não estão prontas", o que permite comportamentos alternativos. Nesse caso, basta realiza também uma missão de normalização do corpo: o interesse febril que temos pelo corpo não é, de modo algum, espontâneo e "livre", pois obedece a imperativos sociais, tais como a "linha", a "forma", o orgasmo etc. O narcisismo joga e ganha em todas as tabelas funcionando concomitantemente como operador de despadronização e operador de padronização, sendo que esta jamais se reconhece como tal, mas se dobra diante das mínimas exigências da personalização: a normalização pós-moderna se apresenta sempre como o único meio de o indivíduo ser realmente ele mesmo, jovem, esbelto, dinãmicow mFelicidade e autonomia Ao analisar o que é ser feliz, fizemos um percurso na história da filosofia. Pudemos ver que a felicidade não se separa do processo de constituição da identi­ dade de cada um de nós, do que queremos para nossa vida, da nossa "experiência de ser". Essa busca, porém, não é solitária. mas realiza-se na intersubjetividade: depende das amizades. do amor, do erotismo e, nesse sentido, de como compreendemos nosso corpo, os sentimentos e nossa relação com os outros. A turbulência e a novidade das mudanças ocor­ ridas a partir das últimas décadas do século XX, que modificaram de maneira drástica os padrões de com­ portamento, explicam a perplexidade de muitos. Se alguns veem com bons olhos as mudanças, há os que denunciam o braço invisível da alienação em condu­ tas aparentemente autônomas. Nessa ótica. con­ cluem não haver propriamente autonomia, porque os mecanismos de repressão encontram-se na pró­ pria sociedade e são exercidos como instrumentos de controle dos desejos. seja para estimulá-los. seja para reprimi-los. É preciso, portanto, prosseguir na busca da autêntica liberação. '" LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005. p. 44. Unidade 2 Antropologia filosófica Andy Warhol (1928-1987) criou várias versões do retrato de Jaclteline Kennedy junto ao féretro do marido, o presidente norte-americano John F. Kennedy, assassinado em novembro de 1963. lackie, uma mulher jovem, irradiando felicidade, de repente vê-se transformada numa viúva enlutada. Esta serigrafia invoca o contraste da alegria e da tristeza, da plenitude e da perda, polos inseparáveis da vida humana. A morte como enigma Por que o título do capítulo é ''Aprender a morrer ..:'? Parece contrassenso dizer que a morte, essa desconhecida, pode ser objeto de aprendizagem. No entanto, é assim que Sócrates se refere ao filósofo, cuja única ocupação con­ sistiria em preparar-se para morrer. Na mesma linha, Michel de Montaigne (1533-1592) cita o filósofo e orador romano: "Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão se preparar para a morte". Evidentemente, não se trata de estar sempre pensando na morte de maneira mórbida, mas sim que, diante da sua inevitabilidade, possamos aceitá-la com serenidade, revendo os valores e a maneira pela qual vivemos, distinguindo o fútil do prioritário. 95 Hápessoas que só reavaliam sua maneira de viver em situações-limite, como doença grave, seques­ tro ou uma ameaça qualquer que revele de modo contundente a fragilidade da vida. Outros preferem não pensar na morte porque a veem como aniqui­ lamento, ao admitir que nada existe depois dela. Como viveríamos a partir dessa hipótese? Segundo alguns, levando em conta que a vida talvez devesse ser aproveitada gozando o momento presente, con­ forme a exaltação do carpe diem romano. Como passagem para outra vida, como aniqui­ lamento ou de acordo com inúmeras outras inter­ pretações possíveis, a morte é um enigma que nos assombra desde sempre. Estudos a respeito dos pri­ mórdios da nossa civilização relacionam o registro dos sinais de culto aos mortos ao aparecimento das primeiras angústias metafísicas. Sob esse aspecto, a morte é a fronteira que não representaria apenas o fim da vida, mas o limiar de outra realidade. A morte daqueles que amamos e a iminência da nossa morte estimulam a crença a respeito da imortalidade ou de algum tipo de continuidade da vida, como a reencarnação. Por isso o recurso à fé religiosa aplaca o temor diante do desconhecido, oferece um conjunto de convicções que orienta o comportamento humano diante do mistério e pres­ creve maneiras de viver para garantir melhor des­ tino à alma. Desse modo, a angústia da morte leva à crença no sobrenatural, no sagrado, na vida depois da morte. Com o amparo da fé, a morte representa a pas­ sagem para a vida eterna no Paraíso, para um outro tipo de vida humana ou animal, ou para o Nirvana. Ainda que a fé continue como um farol para mui­ tos, o que discutimos neste capítulo são as reflexões filosóficas sobre a morte. Se a filosofia é uma das expressões da transcendência humana, pela qual buscamos o sentido de nossa existência, a morte não lhe pode ser estranha. ~PARA SABER MAIS A teologia é diferente da filosofia. A teologia (do grego theos. "deus". e lagos. "estudo") trata dos entes sobrenaturais que conhecemos pela fé. pela reve­ lação divina. A filosofia. como vimos no capítulo 1. "A experíência filosófica". trabalha com conceitos explicitados por argumentos. portanto ela é uma reflexão dessacralizada, mesmo quando o próprio filósofo é uma pessoa religiosa. fJ Os filósofos e a morte Em todos os tempos, portanto, a morte nos apa­ rece como enigma. Admiti-la como um aconteci­ mento inevitável pode nos levar à reflexão ética sobre "como devemos viver". Vejamos como a pen­ saram alguns filósofos. • Sócrates e Platão o diálogo de Platão Fédon ou Da imortalidade da alma relata os momentos finais da vida de Sócrates, enquanto aguarda que lhe tragam a taça de cicuta. Em meio à emoção de todos, contrasta a serenidade do mestre, a tal ponto que Fédon, um dos discípulos presentes, afirma não poder sentir compaixão, já que tem diante dos olhos um homem feliz. Explica o estado de espírito de Sócrates como uma questão de coerência, pois, como filósofo, "não poderia irritar-se com a pre­ sença daquilo [a morte] que até então tivera pre~ sente no pensamento e de que fizera sua ocupa­ ção!" (Fédon, 64a). Como Sócrates preparou-se para a morte? Rejeitando os excessos do comer, do beber e do sexo, sem se deslumbrar com riqueza e honras, e buscando sempre a sabedoria. Sabemos que Sócrates nada escreveu e que portanto é Platão que fala pela boca do mestre. Nesse relato, com­ preendemos o caráter moral de sua exposição pela qual se esforça para superar as limitações do mundo sensível em direção ao suprassensível. Sua libertação pela morte seria o sinal de outra vida, quando a alma se purificaria ao se separar do corpo. É bem verdade, Sócrates não tem tanta cer­ teza sobre o que diz a respeito do que viria após a morte, mas afirma a vantagem de aceitar as cren­ ças vigentes e permanecer confiante sobre o des­ tino da alma quando se vive conforme os valores da temperança, da justiça, da coragem, da liber­ dade e da verdade. Em outro diálogo de Platão, a Defesa de Sócrates, a última frase do filósofo é a seguinte: é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu, se vós, é segredo para todos, menos para a divindade.' PLATÃO. Defesa de Sócrates. São Paulo: Abril Cultural. 1972. p. 33. (Coleção Os Pensadores). Unidade 2 Antropologia filosófica I Memento mori. Alberto Dürer, '50l Esta gravura expressa o que se chama memento mori, expressão latina que significa "lemibra-te de que vais morrer". O renascentista Dürer compõe um casal de figuras contrastantes: uma jovem com a coroa e o vestido tipicos de uma noiva no dia do seu casamento, ao lado de um personagem mitico das florestas impenetráveis dos Alpes que simboliza a lasclvia, a extremada sensualidade. À frente deles, a caveira: ou seja, o amor sagrado e o profano serão ambos inevitavelmente vencidos pela morte. Memento mori é uma advertência para que não nos esqueçamos da brevidade da vida. • Epicuro: não temer a morte Para Epicuro (341-270 a.C.), a morte nada signi­ fica porque ela não existe para os vivos, e os mortos não estão mais aqui para explicá-la. De fato, quando pensamos em nossa própria morte, podemos nos imaginar mortos, mas não sabemos o que é a expe­ riência do morrer. O filósofo lamenta que a maioria das pessoas fuja da morte como se fosse o maior dos males, mas para ele não há vantagem alguma em viver eternamente. Mais do que ter a alma imortal, vale a maneira pela qual escolhemos viver. Essas considerações fazem sentido na concepção hedonista de Epicuro. Para ele, o bem encontra-se no prazer. Que tipo de prazer? Hoje em dia costuma-se dizer que a civilização contemporânea é hedonista, por identificar a felicidade com a satisfação ime­ diata dos prazeres, sobretudo pelo consumismo: ter uma bela casa, um carro possante, muitas roupas, boa comida. E, também, pela incapacidade de tole­ rar qualquer desconforto, seja uma simples dor de cabeça ou o enfrentamento das doenças e da morte. E ETIMOLOGIA Hedonismo. Do grego hedoné, "prazer". No entanto, não é esse o sentido do hedonismo grego. Segundo a ética epicurista, os prazeres do corpo são causa de ansiedade e de sofrimento; por­ tanto, para que a alma permaneça imperturbável é preciso aprender a gozá-los com moderação. Essa atitude levou Epicuro ao cultivo dos prazeres espi­ rituais, com destaque para a amizade e os prazeres refinados. E completa: o sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não viver não é um mal. Assim como opta pela comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve 2 • Montaigne: aprender a viver No início do capítulo vimos que Montaigne cita Cícero, para quem "filosofar é aprender a morrer". Mas o tema da morte reaparece várias vezes em sua obra Ensaios. Para ele, meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade, porque quem apren­ deu a morrer recusa-se a servir, a submeter-se. Viver bem, portanto, é preparar-se para morrer bem. E assegura: ''A vida em si não é um bem nem um mal. Torna-se bem ou mal segundo o que dela fazeis" (Ensaios, Livro r. capítulo XX). Nesse sentido, morrer é apenas o fim de todos nós, mas não o objetivo da vida. É preciso ter em vista o esforço para conhecer-se melhor e aprender a não ter medo da morte. Carpe diem. Expressão usada pelo poeta latino Horácio (I a.c.). Literalmente quer dizer"colha o dia", ou seja, aproveite o momento. Assim ele começa o poema:"Colha o dia, confie o mínimo no amanhã". Nirvana. Termo sânscrito que significa literalmente "perda do sopro", representado pela extinção do eu no Ser (em Buda ou em Brama). O Nirvana não é um lugar, mas um estado da mente de "supremo apazi­ guamento": cessam os desejos e sofrimentos e liber­ ta-se das transmigrações da alma. ~ EPICURO. Carta sobre a felicidade: a Meneceu. São Paulo: Editora Unesp, 2002. p. 31. Aprender a morrer... Capítulo 8
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