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Guias e Dicas
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As Veias Abertas da América Latina, Notas de estudo de Economia

Esse é um dos melhores livros que eu ja li, leitura obrigatória para quem faz Economia e quem tem iteresse de estudar sobre a América Latina

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010
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Compartilhado em 21/09/2009

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willyan-d-angellis-10 🇧🇷

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Baixe As Veias Abertas da América Latina e outras Notas de estudo em PDF para Economia, somente na Docsity! 1 AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA EDUARDO GALEANO DIGITALIZADO E REVISADO PELO: W W W.INVENTATI.ORG/SABOTAGEM 2 Galeano, Eduardo As Veias Abertas da América LAtina: tradução de Galeano de Freitas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, (estudos latino-americano, v.12) Do original em espanhol: Las venas abiertas da America Latina Este livro não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzido para fins não comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, preservan- do o nome do autor. 5 CENTO E VINTE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfei- çoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ga- nham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. São muito mais altos os impostos que cobram os compradores do que os preços que recebem os vendedores; e no final das contas, como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, “falar de preços justos, atualmente, é um concei- to medieval. Estamos em plena época da livre comercialização...” Quanto mais liberdade se outorga aos negócios, mais cárceres se torna necessário construir para aqueles que sofrem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e carrascos não só funcionam para o mercado externo dominante; proporcionam também caudalosos mananciais de lucros que fluem dos empréstimos e inversões estrangeiras nos mercados internos domi- nados. “Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões”, advertia, lá por 1913, o presidente norte-ameiricano Woodrow Wil- son, Ele estava certo: “Um país - dizia - é possuído e dominado pelo capital que nele se tenha investido.” E tinha razão. Na caminhada, até perdemos o direito de chamarmo-nos americanos, ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabelecerem nas costas de Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebu- losa identificação. É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de traba- lho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (Há quatro séculos, já existiam dezesseis das vinte cidades latino-americanas mais populosas da atualidade.) Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvol- vimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou 6 sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm doloro- sas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes - dominantes para dentro, dominadas de fora - é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga. A brecha se amplia. Em meados do século passado, o nível de vida dos países ricos do mundo excedia em 50% o nível dos países pobres. O desenvolvimento desenvolve a desigualdade: Richard Nixon anunciou, em abril de 1969, em seu discurso perante a OEA, que no fim do século XX a renda per capita nos Estados Unidos será quinze vezes mais alta do que esta mesma renda na América Latina. A força do conjunto do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magni- tudes cada vez mais dramáticas. Os países opressores tornam-se cada vez mais ricos em termos absolutos, porém muito mais em termos relativos, pelo dinamismo da disparidade crescente. O capitalismo central pode dar-se ao luxo de criar e acreditar em seus próprios mitos de opulência, mas os mitos não são comíveis, e os países pobres que constituem o vasto capitalismo periférico o sabem muito bem. A renda média de um cidadão norte-americano é sete vezes maior que a de um latino-americano, e aumenta num ritmo dez vezes mais intenso. E as médias enganam, pelos insondáveis abismos que se abrem, ao sul do rio Bravo, entre os muitos pobres e os poucos ricos da região. No topo, com efeito, seis milhões de latino-americanos açambarcam, segundo as Nações Unidas, a mesma renda que 140 milhões de pessoas situadas na base de pirâmide social. Há 60 milhões de camponeses, cuja fortuna ascende a 25 centavos de dólares por dia; no outro extremo, os proxenetas da desgraça dão-se ao luxo de acumular cinco milhões de dólares em suas contas privadas na Suíça ou nos Estados Unidos, e malbaratam na ostentação e luxo estéril - ofensa e desafio - e em inversões improdutivas, que constituem nada menos do que a metade da inversão total, os capitais que América Latina poderia destinar à reposição, ampliação e criação de fontes de produção e de trabalho. Incorporadas desde sempre à constelação do poder imperialista, nossas classes dominantes não têm o menor interesse em averiguar se o patriotismo poderia ser mais rentável do que a traição ou se a mendicân- cia é a única forma possível de política internacional. Hipoteca-se a soberania porque “não há outro caminho”; os álibis da oligarquia confundem interessadamente a impotência de uma classe social com o presumível vazio de destino de cada nação. Josué de Castro declara: “Eu, que recebi um prêmio internacional da paz, penso que, infelizmente, não há outra solução que a violência para América Latina.” Cento e vinte milhões de crianças se agitam no centro desta tormenta. A população da América Latina cresce como nenhuma outra; em meio século triplicou com sobras. Em cada minuto morre uma criança de doença ou de fome, mas no ano 2000 haverá 650 milhões de latino-americanos, e a metade terá menos de 15 anos de idade: uma bomba de tempo. Entre os 280 milhões de latino-americanos há, atualmente, cinqüenta milhões de desemprega- dos ou subempregados e cerca de cem milhões de analfabetos; a metade dos latino-americanos vive apinhada em moradias insalubres. Os três maiores mercados da América Latina - Argentina, Brasil e México - não chegam a igualar, somados, a capacidade de consumo da França ou da Alemanha Ocidental, mesmo que a população reunida de nossos três grandes exceda de muito a de qualquer país europeu. A América Latina produz, hoje em dia, em relação a sua população, menos alimentos do que antes da última guerra 7 mundial, e suas exportações per capita diminuíram três vezes, a preços constantes, desde a véspera da crise de 1929. O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao Diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições. Até a industrialização dependente e tardia, que comoda- mente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego ao invés de tentar resolvê-lo; estende-se a pobreza e concentra-se a riqueza, que conta com imensas legiões de braços cruzados, que se multiplicam sem descanso. Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento - São Paulo, Buenos Aires, a cidade do México -, porém reduz-se cada vez mais o número da mão-de-obra exigido. O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam maciçamente mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUs, preservativos e almanaques marcados, mas colhem crianças; obstinadamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de obter um lugar ao sol, nestas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam. Em princípios de novembro de 1968, Richard Nixon comprovou em voz alta que a Aliança para o Progresso havia cumprido sete anos de vida e, entretanto, agravaram-se a desnutrição e a escassez de alimentos na América Latina. Poucos meses antes, em abril, George W. Ball escrevia em Life: “Pelo menos durante as próximas décadas, o descon- tentamento das nações pobres não significará uma ameaça de destruição do mundo. Por mais vergonhoso que seja, o mundo tem vivido, durante gerações, dois terços pobres e um terço rico. Por mais injusto que seja, é limitado o poder dos países pobres”. Ball encabeçara a delegação dos Estados Unidos na Primeira Conferência de Comércio e Desenvolvimento em Genebra, e votara contra nove dos doze princípios gerais aprovados pela conferência, com o objetivo de aliviar as desvantagens dos países subdesenvolvidos no comércio inter- nacional. São secretas as matanças da miséria na América Latina; em cada ano explodem, silenciosamente, sem qualquer estrépito, três bombas de Hiroxima sobre estes povos, que têm o costume de sofrer com os dentes cerrados. Esta violência sistemática e real continua aumentando: seus crimes não se difundem na imprensa marrom, mas sim nas estatísti- cas da FA O. Ball diz que a impunidade é ainda possível, porque os pobres não podem desencadear uma guerra mundial, porém o Império se preocupa: incapaz de multiplicar os pães, faz o possível para suprimir os comensais. “Combata a pobreza, mate um mendi- go!”, rabiscou um mestre do humor-negro num muro da cidade de La Paz. O que propõem os herdeiros de Malthus senão matar a todos os próximos mendigos, antes que nasçam? Robert McNamara, o presidente do Banco Mundial, que tinha sido presidente da Ford e secretário da Defesa, afirma que a explosão demográfica constitui o maior obstáculo para o progresso da América Latina e anuncia que o Banco Mundial dá prioridade, em seus empréstimos, aos países que realizam planos para o controle da natalidade. McNamara comprova, com pesar, que os cérebros dos pobres pensam cerca de 25% a menos, e os tecnocratas do Banco Mundial (que já nasceram) fazem zumbir os computadores e geram complicadíssimas teses sobre as vantagens de não nascer. “Se um país em desenvolvi- mento, que tem uma renda média per capita de 150 a 200 dólares anuais, consegue reduzir sua fertilidade em 50% num período de 25 anos, ao cabo de 30 anos sua renda per capita será superior pelo menos em 40% ao nível que teria alcançado mantendo sua fertilidade, 10 PRIMEIRA PARTE: A POBREZA DO HOMEM COMO RESULTADO DA RIQUEZA DA TERRA FEBRE DE OURO, FEBRE DE PRATA O SIGNO DA CRUZ NOS CABOS DAS ESPADAS Quando Cristóvão Colombo se lançou à travessia dos grandes espaços vazios a oeste da Ecúmene, havia aceitado o desafio das lendas. Tempestades terríveis balançariam suas naus, como se fossem cascas de nozes, e as arremessariam nas bocas dos monstros; a grande serpente dos mares tenebrosos, faminta de carne humana, estaria à espreita. Só faltavam mil anos para que os fogos purificadores do Juízo Final arrasassem o mundo, como acreditavam os homens do século XV; o mundo era o mar Mediterrâneo com suas costas ambíguas: Europa, África, Ásia. Os navegantes portugueses asseguravam que os ventos do oeste traziam cadáveres estranhos e às vezes arrastavam troncos curiosamente talhados, mas ninguém suspeitava que o mundo seria, logo, assombrosamente acrescido por uma vasta terra nova. A América não só carecia de nome. Os noruegueses não sabiam que a haviam descoberto há muito tempo, e o próprio Colombo morreu, depois de suas viagens, ainda convencido de que tinha chegado à Ásia pela rota do oeste. Em 1492, quando a bota espanhola pisou pela primeira vez as areias das Bahamas, o almirante acreditou que estas ilhas eram uma ponta da fabulosa ilha de Cipango: Japão. Colombo levava consigo um exemplar do livro de Marco Polo, coberto de anotações às margens das páginas. Os ha- bitantes de Cipango, dizia Marco Polo, “possuem ouro em enorme abundância, e as minas onde o encontram não se esgotam jamais... Também há nessa ilha pérolas do mais puro oriente em grande quantidade. São rosadas, redondas e de grande tamanho e superam em valor as pérolas brancas.” A riqueza de Cipango tinha chegado aos ouvidos do Gran Khan Kublai, tinha despertado em seu peito o desejo de conquistá-la: ele tinha fracassado. Das fulgurantes páginas de Marco Polo esvoaçavam todos os bens da criação; havia quase treze mil ilhas no mar da Índia com montanhas de ouro e pérolas, e doze tipos de especi- arias em quantidades imensas, além da abundância da pimenta branca e preta. A pimenta, o gengibre, o cravo, a noz-moscada e a canela eram tão cobiçados como o sal para conservar a carne no inverno, sem que se apodrecesse ou perdesse o sabor. Os Reis Católicos de Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para se libertarem da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que açambarcavam o comércio das especiarias e plantas tropicais, as musselinas e as armas brancas, provenien- tes de misteriosas regiões do oriente. O desejo de metais preciosos, meio de pagamento para o tráfico comercial, impulsionou também a travessia dos mares malditos. A Europa inteira necessitava de prata: os filões da Boémia, Saxônia e Tirol já estavam quase exaus- tos. A Espanha vivia o tempo da reconquista. 1492 não foi só o ano do descobrimento da América, o novo mundo nascido do equívoco de conseqüências grandiosas. Foi também o ano da recuperação de Granada. Fernando de Aragão e Isabel de Castela, superando com o casamento a perda de seus domínios, tomaram em começos de 1492 o último reduto dos árabes em solo espanhol. Custara quase oito séculos recobrar o que se havia perdido em sete anos,1 e a guerra de reconquista esgotara o tesouro real. Mas, esta era uma guerra santa, a guerra cristã contra o Islã, e não é por acaso, além disso, que neste mesmo ano de 11 1492 cento e cinquenta mil judeus declarados foram expulsos do país. A Espanha adquiria realidade como nação; levantando espadas cujas empunhaduras desenhavam o sinal da cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da América não podia explicar-se sem a tradição militar de guerra de cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para dar caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era espanhol, converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a Terra. Três anos depois do descobrimento, Cristóvão Colombo dirigiu pessoalmente a cam- panha militar contra os indígenas da Ilha Dominicana. Um punhado de cavaleiros, duzen- tos infantes e alguns cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios. Mais de quinhentos, enviados à Espanha, foram vendidos como escravos em Sevilha e morreram miseravelmente.2 Entretanto alguns teólogos protestaram e a escravização dos índios foi formalmente proibida ao nascer do século XVI. Na realidade, não foi proibida, mas abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católica: “Senão o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, e vos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder...”3 A América era o vasto império do diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos confundia-se com a febre que provocava, nas hostes da conquista, o brilho dos tesouros do Novo Mundo. Bernal Díaz del Castillo, fiel companheiro de Fernão Cortez na conquista do México, escreve que chegaram à América “para servir a Deus e a Sua Majestade e também por haver riquezas”. Colombo ficou deslumbrado, quando atingiu a ilhota de San Salvador, pela colorida transparência do Caribe, a paisagem verde, a doçura e a limpeza do ar, os pássaros esplên- didos e os mancebos “de boa estatura, gente mui formosa” e “bastante mansa” que ali habitava. Presenteou aos indígenas “uns botões vermelhos e umas contas de vidro que se punham no pescoço, e outras muitas coisas de pouco valor com que fizeram muito prazer e ficaram tão nossos que era uma maravilha”. Mostrou-lhes as espadas. Eles não as conheciam, seguravam-nas pelo fio, cortavam-se. Enquanto isto, conta o almirante em seu diário de navegação, “eu estava atento e trabalhava para saber se havia ouro, e tendo visto que alguns deles traziam um pedacinho pendente do buraco que tinham no nariz, por sinais pude entender que indo ao Sul ou contornando a ilha pelo Sul, que estava ali um Rei que tinha grandes vasos disto, e tinha muitíssimo”. Porque “do ouro se faz tesouro, e com ele quem o tem faz o que quiser no mundo e chega a levar as almas ao Paraíso”. Em sua terceira viagem, Colombo continuava acreditando que estava no mar da China, quan- do entrou nas costas da Venezuela: isto não o impediu de saber que dali se estendia uma terra infinita, que era o próprio paraíso terrestre. Também Américo Vespúcio, explorador do litoral do Brasil, enquanto nascia o século XVI, relataria a Lorenzo de Médici: “As árvores são de tanta beleza e tanta suavidade que nos sentíamos estar no Paraíso terrestre...”4 Com pesar escrevia Colombo aos reis, da Jamaica, em 1503: “Quando eu descobri as índias 1. J. H. Elliot, La España imperial, Barcelona, 1965. 2. L. Capitan e Henri Lorin, El trabajo en América, antes y después de Colónn, Buenos Aires, 1948. 3. Daniel Vidart, Ideologia y realidad de América, Montevidéu, 1968. 12 disse que eram o maior senhorio rico que há no mundo. Eu disse do ouro, pérolas, pedras preciosas, especiarias...” Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento empregava para abrir as portas do paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na terra. A epopéia dos espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo. As terras virgens, densas de selvas e perigos, inflamavam a cobiça dos capitães, dos cavaleiros fidalgos e dos soldados em trapos, lançados à conquista dos espetaculares despojos de guerra: acreditavam na glória, “o sol dos mortos”, e na chave para alcançá-la, que Cortez assim definia: “Aos ousados ajuda a Fortuna”. O próprio Cortez havia hipotecado todos seus bens pessoais para equipar a expedição ao México. Salvo raras exceções - Colombo, Dávila, Magalhães - as expedições de conquista não eram custeadas pelo Estado, mas pelos próprios conquistadores ou por empresários que financiavam a aventura5. Nasceu o mito do Eldorado, o monarca do ouro: de ouro eram as ruas e as casas das cidades de seus reinos. Um século depois de Colombo, Sir Walter Raleigh subiria o Orinoco, em busca do Eldorado, e seria derrotado pelas cataratas. A ilusão da “serra que emanava prata” tornou-se realidade em 1545, com o descobrimento de Potosí, mas antes morre- ram, vencidos pela fome e pela doença ou varados a flechadas pelos indígenas, muitos dos expedicionários que tentaram, infrutiferamente, alcançar o manancial da prata, subindo o rio Paraná. Havia, sim, ouro e prata em grandes quantidades, acumulados no planalto do Mé- xico e no altiplano andino. Fernão Cortez revelou para a Espanha, em 1519, a fabulosa magnitude do tesouro asteca de Montezuma, e quinze anos depois chegou a Sevilha o gigantesco resgate, um aposento cheio de ouro e prata, que Francisco Pizarro mandou pagar ao inca Atahualpa antes de estrangulá-lo. Anos antes, com o ouro arrancado das Antilhas, a Coroa pagara o serviço dos marinheiros que acompanharam Colombo em sua primeira viagem6. Finalmente, a população das ilhas do Caribe deixou de pagar tributos, porque desapareceu: os indígenas foram completamente exterminados nas lavagens de ouro, na terrível tarefa de revolver as areias auríferas com a metade do corpo mergulhada na água, ou lavrando os campos até a extenuação, com as costas dobradas sobre os pesa- dos instrumentos de aragem trazidos da Espanha. Muitos indígenas da Ilha Dominicana antecipavam-se ao destino imposto por seus novos opressores brancos: matavam seus filhos e se suicidavam em massa. O historiador Fernández de Oviedo interpretava assim, em meados do século XVI, o holocausto dos antilhanos: “Muitos deles, por passatempo, mataram-se com veneno para não trabalhar, e outros se enforcaram com as próprias mãos”7. 4. Luís Nicolau D'Olwer, Cronistas de las culturas precolombinas, México, 1963. O advogado Antonio de León Pinelo dedicou dois tomos inteiros para demonstrar que o Éden estava na América. Em El Paraíso en el Nuevo Mundo (Madri, 1656), incluiu um mapa da América do Sul no qual se pode ver, no centro, o jardim de Êden regado pelo Amazonas, o rio da Prata, o Orinoco e o Magdalena. O fruto proibido era a banana. O mapa indicava o lugar exato de onde partira a Arca de Noé, quando do Dilúvio Universal. 5. J. M. Ots Capdequí, El Estado español en las índias, México, 1941. 6. Earl J. Hamilton, American treasure and the price revolution in Spain (1501- - 1650), Massachusetts, 1934. 7. Gonzalo Fernández de Oviedo, Historia general y natural de las Índias, Madri; 1959. A interpre- tação fez escola. Assombra-me ler, no último livro do técnico francês Renê Dumont, Cuba, est- il socialiste?, Paris, 197O: "Os índios não foram totalmente exterminados. Seus gens subsistem nos cromossomas cubanos. Eles sentiam uma tal aversão pela tensão que exige o trabalho contínuo, que alguns se suicidaram antes de aceitar o trabalho forçado..." 15 reas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconheci- da e repugnante que aumentava a febre e descompunha as carnes? “Já se foram a mexer em Tlaxcala. Então se difundiu a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam”, diz uma testemunha indígena, e outro: “Muitos morreram com a pegajosa, compacta, dura doença de grãos”15. Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas contra doenças novas. E os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro calcula16 que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu logo no primeiro contato com os homens brancos. “COMO PORCOS FAMINTOS, ANSEIAM PELO OURO” Com tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste, avançavam os implacá- veis e escassos conquistadores da América. É o que contam as vozes dos vencidos. Depois da matança de Cholula, Montezuma envia novos emissários ao encontro de Fernão Cortez, que avança rumo ao vale do México. Os enviados presenteam os espanhóis com colares de ouro e bandeiras de penas de quetzal. Os espanhóis “deleitavam-se. Como se fossem macacos levantavam o ouro, como que se encantassem, gestos de prazer, como que se lhes renovasse e iluminasse o coração. Como que certo é que isso desejam com muita sede. Se lhes incha o corpo por isto. Como uns porcos famintos que anseiam pelo ouro”, diz o texto náhuatl, preservado no Códice Florentino. Mais adiante, quando Cortez chega Tenochtitlán, a esplêndida capital asteca de 300 mil habitantes, os espanhóis entram na casa do tesouro, “e logo fizeram uma grande bola de ouro, e puseram fogo, incendiaram, atearam fogo a tudo que restava, por mais valioso que fosse: com o que tudo ardeu. E em relação ao ouro, os espanhóis o reduziram a barras .. “ Houve guerra, e finalmente Cortez, que havia perdido Tenochtitlán, a reconquistou em 1521. “E já não tínhamos escudos, já não tínhamos bordunas, e nada tínhamos de que comer, já nada comíamos.” A cidade, devastada, incendiada e coberta de cadáveres, caiu. “Com os escudos foi seu resguardo, mas nem com escudos pôde ser sustentada sua solidão.” Fernão Cortez havia-se horrorizado ante os sacrifícios dos indígenas de Veracruz, que queimavam entranhas dos meninos para oferecer a fumaça aos deuses; todavia, não houve limites para sua própria crueldade na cidade reconquistada. “E toda a noite choveu sobre nós.” Mas a força e o tormento não foram suficientes: os tesouros arrebatados não Preenchiam nunca as exigências da imaginação, e durante muitos anos escavaram os espanhóis o fundo do lago do México em busca do ouro e dos objetos preciosos que os índios teriam escondido. Pedro de Alvarado e seus homens atiraram-se sobre a Guatemala e “eram tantos os índios que mataram, que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque”, e tàmbém “o dia tornou-se vermelho pelo excesso de sangue que houve naquele dia”. Antes da batalha decisiva, “e visto que os índios atormentados disseram aos espanhóis que não os atormentassem mais, que ali havia muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas que tinham os capitães Nehaib Ixquín, Nehaib feito águia e leão. E logo deram aos espa- nhóis e ficaram com eles ...”17 Antes de Francisco Pizarro degolar o inca Atahualpa e lhe cortar a cabeça, arrancou-lhe um resgate em “pilhas de ouro e de prata que pesavam mais de vinte mil marcos de prata 15. Autores anônimos de Tlatelolco e informantes de Sahagún, em Miguel León- Portilla, op. Cit. 16. Darcy Ribeiro, As Américas e a civilizarão, tomo I: A civilizarão ocidental e nós. Os povos- testemunhas, Buenos Aires, 1969, Rio, 1973. 17. Miguel León-Portilla, op. cit. 16 fina, um milhão e trezentos e vinte e seis mil escudos de ouro finíssimo...” Depois lan- çou-se sobre Cuzco. Seus soldados acreditavam entrar na cidade dos césares, tão deslum- brante era a capital do império incaico, mas não demoraram em saquear o Templo do Sol: “Forcejando, lutando entre si, cada qual procurando levar a parte do leão do tesouro, os soldados, com camisa de malha, pisoteavam jóias e imagens, martelavam os utensílios de ouro para reduzi-los a um formato mais fácil e manejável... Atiravam-nos ao crisol, para convertê-lo em barras, todo o tesouro do templo: as placas que cobriam as paredes, as assombrosas árvores esculpidas, pássaros e outros objetos de jardim.”18 Hoje em dia, no zócalo, a imensa praça nua do centro da capital do México, a catedral católica se levanta sobre as ruínas do templo mais importante de Tenochtitlán, e o palácio do governo está situado sobre a residência de Cuauhtémoc, o chefe asteca martirizado e morto por Cortez. Tenochtitlán foi arrasada. Cuzco, no Peru, teve sorte semelhante, mas os conquistadores não puderam destruir de todo seus muros gigantescos, e hoje pode-se ver, ao pé dos edifícios coloniais, o testemunho de pedra da colossal arquitetura incaica. ESPLENDORES DE POTOSÍ: O CICLO DA PRATA Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade de Potosi19. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente cobertas com barras de prata. Em Potosí a prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial. Para arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosí os capitães e ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o desenvolvimento da Europa. “Vale um Peru” era o elogio máximo às pessoas ou as coisas, quando Pizarro tornou-se dono de Cuzco; mas a partir do novo descobrimento, Dom Quixiote de la Mancha adverte Sancho com outras palavras: “Vale um Potosí”. Veia jugular do vice-reinado, manancial da prata da América, Potosí contava com 120 mil habitantes, segundo o censo de 1573. Só 28 anos havia transcorrido desde que a cidade brotara entre os páramos andinos, e já tinha, como por mágica, a mesma popu- lação que Londres e mais habitantes do que Sevilha, Madri, Roma ou Paris. Por volta de 1650, um novo censo dava a Potosí 160 mil habitantes. Era uma das maiores e mais ricas cidades do mundo, dez vezes mais habitada do que Boston, no tempo em que Nova Iorque não tinha ainda esse nome. A história de Potosí não nasceu com os espanhóis. Tempos antes da conquista, o inca Huayna Cápaj ouvira falar, através de seus “vassalos” de Sumaj Orcko, da formosa mon- tanha, e por fim pôde vê-la quando se fez levar, doente, às termas de Tarapaya. Das palhoças do povoado de Cantumarca, os olhos do inca contemplaram pela primeira vez aquele cone perfeito que se levantava, orgulhoso, por entre os cumes das serras. Ficou estupefato. As infinitas tonalidades avermelhadas, e a forma esbelta e o tamanho gigan- 18. Ibid. 19. Para a reconstrução do apogeu de Potosí, o autor consultou os seguintes teste-munhos do passado: Pedro Vicente Cañete y Dominguez, Potosí colonial; guía histórica, geográfica, política, civil y legal del gobierno e intendencia de Ia provicia de Potosi, La Paz, 1939; Luis Capoche, Relación general de Ia Villa Imperial de Potosi, Madri, 1959; e Nicolás de Martínez Arzanz y Vela, História de Ia Vilia Imperial de Potosí, Buenos Aires, 1943. Além disso, as Crónicas potosinas,'de Vi-cente G. Quesada, Paris, 1890, e La ciudad única, de Jaime Molins, Potosí, 1961. 17 tesco do monte continuaram sendo motivo de admiração e assombro. Mas o inca suspei- tava que suas entranhas abrigavam pedras preciosas e ricos metais, e os quis para novos adornos ao Templo do Sol em Cuzco. O ouro e a prata que os incas arrancavam das minas de Colque Porco e Andacaba não saíam dos limites do reino: não serviam para comerciar, mas para adorar os deuses. Mal os indígenas cravaram suas machadinhas nos filões de prata do monte, uma voz cavernosa os derrubou. Era uma voz forte como um trovão, que saía das profundezas daquelas brechas e dizia, em quéchua: “Não é para vocês. Deus reserva estas riquezas para os que vêm de longe.” Os índios fugiram apavorados e o inca abandonou o monte. Antes, mudou-lhe o nome. O monte passou a chamar-se Potojsi, que significa: “Estronda, arrebenta, faz explosão.” “Os que vêm de longe” não demoraram muito a aparecer. Os capitães da conquista abriam caminho. Huayna Cápaj já tinha morrido quando chegaram. Em 1545, o índio Huallpa perseguia os rastros de uma lhama fugitiva e se viu obrigado a passar a noite no monte. Para não morrer de frio, fez fogo. A fogueira iluminou um filamento branco e brilhante. Era prata pura. Desencadeou-se a avalancha espanhola. Fluiu a riqueza. O imperador Carlos V deu imediatos sinais de gratidão, outorgando a Potosí o título de Vila Imperial e um escudo com esta inscrição: “Sou o rico Potosí, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos reis.” Apenas onze anos depois do achado de Huallpa, a recém-nascida Vila Imperial celebrava a coroação de Felipe II com festejos que duraram 24 dias e custaram oito milhões de pesos. Choviam caçadores de tesouro sobre a inóspita paragem. A montanha, a quase cinco mil metros de altura, era o mais poderoso dos ímãs, mas a seus pés a vida era dura, inclemente: passava-se frio como se fosse um imposto, e num abrir e fechar de olhos uma sociedade rica e desordenada brotou, em Potosí, junto com a prata. Auge e turbulência do metal, Potosí passou a ser “o nervo principal do reino”, como definiu o vice-rei Furtado de Mendonça. No começo do século XVII, a cidade já contava com 36 igrejas esplendidamente ornamen- tadas, 36 casas de jogo e 14 escolas de danças. Os salões, os teatros e os tablados para as festas ostentavam riquíssimos tapetes, cortinas, brasões e obras de ourivesaria; dos balcões pendiam damascos coloridos e trançados de ouro e prata. As sedas e os tecidos vinham de Granada, Flandres e Calábria; os chapéus de Paris e Londres; os diamantes do Ceilão, as pedras preciosas da Índia, as pérolas do Panamá; as meias de Nápoles; os cristais de Veneza; os tapetes da Pérsia; os perfumes da Arábia, e a porcelana da China. As damas rebrilhavam com jóias, de diamantes, rubis e pérolas; os cavalheiros ostentavam tecidos bordados na Holanda. Ás touradas seguiam-se os jogos de argolinha e nunca faltavam os duelos no estilo medieval, rixas de amor e de orgulho, com elmos de ferro incrustados de esmeraldas e vistosas plumagens, arreios e estribos de filigrana de ouro, espadas de Toledo e cavalos chilenos paramentados com todo o luxo. Em 1579, queixava-se o ouvidor Matienzo: “Nunca faltam - dizia - novidades, safadezas e atrevimentos.” Por esta época já havia em Potosí 800 jogadores profissionais e 120 prostitutas célebres, a cujos resplandecentes salões acorriam os mineiros ricos. Em 1608, Potosí festejava as festas do Santíssimo Sacramento com seis dias de comédias e seis noites de festas de máscaras, oito dias de touradas e três de saraus, dois de torneios e outras festas. A ESPANHA TINHA A VACA, MAS OUTROS TOMAVAM O LEITE Entre 1545 e 1558 descobriram-se as férteis minas de prata de Potosí, na atual Bolívia, e as de Zacatecas e Guanajuato no México; o processo de amálgama com mercú- rio, que tornou possível a exploração da prata de lei inferior, começou a ser aplicado neste 20 seu solo, e ali deram um importante impulso às manufaturas britânicas. Como se vê, as enormes distâncias e as difíceis comunicações não eram os principais obstáculos que se opunham ao progresso industrial da Espanha. Os capitalistas espanhóis se convertiam em usurários, através da compra dos títulos da dívida da Coroa, e não investiam seus capitais no desenvolvimento industrial. O excedente econômico escorria por leitos improdutivos: os velhos ricos, senhores de ancinho e foice, donos da terra e dos títulos de nobreza, levantavam palácios e acumulavam jóias; os novos ricos, especuladores e mercadores, compravam terra e títulos de nobreza. Nem uns nem outros pagavam impostos na prática, nem podiam ser presos por dívidas. Quem se dedicasse a uma atividade industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia25. Sucessivos tratados comerciais, assinados a partir das derrotas militares dos espa- nhóis na Europa, outorgaram concessões que estimulavam o tráfego marítimo entre o porto de Cádis - onde se despejavam os metais da América - e os portos franceses, ingle- ses, holandeses e hanseáticos. A cada ano, quase oitocentas e mil naus descarregavam na Espanha os produtos industrializados por outros países. Levavam a prata da América e a lã espanhola, que ia para os teares estrangeiros de onde seria devolvida já tecida pela indústria européia em expansão. Os monopolistas de Cádis limitavam-se a remarcar os produtos industriais que expediam ao Novo Mundo: se as manufaturas espanholas não podiam sequer atender ao mercado interno, como iam satisfazer às necessidades das colônias? Os tecidos de Lille e Arraz, os panos holandeses, os tapetes de Bruxelas e os brocados de Florença, os cristais de Veneza, as armas de Milão e os vinhos e linhos da França26 inundavam o mercado espanhol, às custas da produção local, para satisfazer a ânsia de ostentação e as exigências de consumo dos ricos parasitas, cada vez mais numerosos e poderosos num país cada vez mais pobre. A indústria não se desenvolvia, e os Habsburgos fizeram todo o possível para acelerar sua extinção. Em meados do século XVI, chegou se ao cúmulo de autorizar a importação de tecidos estrangeiros, ao mesmo tempo em que se proibia toda a exportação de tecidos castelhanos, a não ser para América27: Ao contrário, como notou Ramos, muito diferentes eram as diretrizes de Henry VIII ou Elizabeth I na Inglaterra: proibiam nesta ascendente nação a saída do ouro e da prata, monopolizavam as letras de câmbio, impediam a extração de lã e expulsavam dos portos britânicos os mercadores da Liga Hanseática do Mar do Norte. Enquanto isto, as repúblicas italianas protegiam seu comércio exterior e sua indústria, mediante taxas, privilégios e proibições rigorosas: os artesãos que desejassem sair do país eram ameaçados com a pena de morte. A ruína abarcava tudo. Dos 16 mil teares que restaram em Sevilha em 1558, depois de Carlos V, só sobraram 400 quando morreu Felipe II, quarenta anos depois. Os sete milhões de ovelhas do rebanho andaluz reduziam-se a dois milhões. Cervantes retratou em Dom Quixote de la Mancha - por muito tempo proibido na América - a sociedade da época. Um decreto de meados do século XVI impossibilitava a importação de livros estran- geiros e impedia os estudantes de cursarem escolas fora da Espanha; os estudantes de Salamanca reduziram-se à metade em poucas décadas; havia nove mil conventos e o clero se multiplicava quase tão intensamente quanto a nobreza de capa e espada; 160 mil estrangeiros açambarcaram o comércio exterior, e os esbanjamentos da aristocracia conde- navam a Espanha à impotência econômica. Por volta de 1630, pouco mais de uma centena e meia de duques, marqueses, condes e viscondes recolhiam cinco milhões de ducados de renda anual, que alimentavam copiosamente o brilho de seus títulos ostentosos. O duque de Medinaceli tinha setecentos criados, e eram trezentos os servidores do grão-duque de 25. J. Vicens Vives, História social y económica de España y América, Barcelona, 1957. 26. Jorge Abelardo Ramos, Historia de la nación latinoamericana, Buenos Aires, 1968. 27. J. H. Elliot, op. cit. 21 Osuna, que, para zombar do czar da Rússia, os vestia com capotes de peles28. 0 século XVII foi a época da desonra, da fome e das epidemias. Era infinita a quantidade de mendigos espanhóis, mas isso não impedia que também os mendigos estrangeiros afluíssem de todos as regiões da Europa. Por volta de 1700, a Espanha já contava com 625 mil fidalgos, senhores da guerra, embora o país se esvaziasse: sua população tinha-se reduzido à meta- de em pouco mais de dois séculos, e era equivalente da Inglaterra, que no mesmo período a tinha duplicado. 1700 assinala o fim do regime dos Habsburgos. A bancarrota era total. Desemprego crônico, grandes latifúndios, moeda caótica, indústria arruinada, guerras perdidas e tesouros vazios, a autoridade central desconhecia nas províncias: a Espanha que defrontou Felipe V estava “pouco menos defunta que seu amo morto”29. Os Borbóns deram à nação uma aparência mais moderna, mas em fins do século XVII o clero espanhol tinha nada menos que 200 mil membros e o resto da população improdutiva não detinha seu massacrante desenvolvimento, às expensas do subdesen- volvimento do país. Por esta época, havia ainda na Espanha mais de dez mil povoados e cidades sujeitos à jurisdição senhorial da nobreza e, portanto, fora do controle direto do rei. Os latifúndios e a instituição da primogenitura continuavam intactos. Continuava de pé o obscurantismo e o fatalismo. Não havia sido superada a época de Felipe IV: no seu tempo, uma junta de teólogos reuniu-se para examinar o projeto de construção de um canal entre o Manzanares e o rio Tajo, e terminou declarando que se Deus quisesse que os rios fossem navegáveis, Ele mesmo os teria feito assim. A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE O CAVALO E O CAVALEIRO Escreveu Karl Marx, no primeiro tomo de O Capital: “O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalam os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original” (p. 638). O saqueio, interno e externo, foi o meio mais importante para a acumulação primi- tiva de capitais que, desde a Idade Média, possibilitou o surgimento de uma nova etapa histórica na evolução econômica mundial. À medida que se estendia a economia monetá- ria, o intercâmbio desigual ia abarcando cada vez mais segmentos sociais e regiões do planeta. Ernest Mandel somou o valor do ouro e da prata arrancados da América até 1660, o espólio da Indonésia pela Companhia Holandesa das Índias Orientais desde 1650 até 1780, os lucros do capital francês no tráfico de escravos durante o século XVII, os ganhos obtidos pelo trabalho escravo nas Antilhas britânicas e o saque inglês da Índia durante meio século: o resultado supera o valor do capital investido em todas as indústrias euro- péias até 180030. Mandel observa que esta gigantesca massa de capitais criou um ambien- te favorável aos investimentos na Europa, estimulou o “espírito de empresa” e financiou diretamente o estabelecimento de manufaturas, dando um grande impulso à revolução 28. A espécie não se extinguiu. Abro uma revista de Madri, de fins de 1969, e leio: morreu dona Teresa Bertrán de Lis y Pidal Gorouski y Chico de Guzmán, duquesa de Albuquerque marquesa dos Alcañices y dos Balbases, e a chora o viúvo duque de Albuquerque, dom Beltrán Alonso Osorio y Díez de Rivera Martos y Figueroa, marquês de Alcañices, dos Balbeses, de Cadreita, de Cuéllar, de Cullera, de Montaos, conde de Fuensaldaña, de Grajal, de Huelma, de Ledesma, de la Torre, de Villanueva de Cañedo, de Villahumbrosa, três vezes Grande da Espanha. 29. John Lynch, Adminisiración colonial española, Buenos Aires, 1962. 30. Ernest Mandel, Tratado de economia marxista, México, 1969. 22 industrial. Mas, ao mesmo tempo, a formidável concentração internacional da riqueza em beneficio da Europa impediu, nas regiões saqueadas, o salto para a acumulação de capital industrial. “A dupla tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que não só foram vítimas deste processo de concentração internacional, mas que também, posteriormente, tiveram de compensar o atraso industrial, ou seja, realizar a acumulação original de capital indus- trial, num mundo inundado pelos artigos manufaturados por uma indústria já madura, a ocidental.31” As colônias americanas foram descobertas, conquistadas e colonizadas dentro do processo da expansão do capital comercial. A Europa estendia seus braços para alcançar o mundo inteiro. Nem a Espanha nem Portugal receberam os benefícios do envolvente, avanço do mercantilismo capitalista, embora fossem suas colônias as que, em grande parte, proporcionaram o ouro e a prata, que nutriram esta expansão. Como vimos, se bem que os metais preciosos da América iluminassem a enganosa fortuna de uma nobreza espanhola, que vivia sua Idade Média tardiamente e na contramão da, história, simulta- neamente selaram a ruína da Espanha nos séculos seguintes. Foram outras as comarcas da Europa que puderam incubar o capitalismo moderno, valendo-se, em grande parte, da expropriação dos povos primitivos da América. À rapinagem dos tesouros acumulados sucedeu a exploração sistemática, nos socavãos e jazidas, do trabalho forçado dos indíge- nas e escravos negros, arrancados da África pelos traficantes. A Europa necessitava de ouro e prata. Os meios de pagamentos em circulação se multiplicavam sem cessar e era preciso alimentar os movimentos do capitalismo na hora do parto: os burgueses se apoderavam das cidades e fundavam bancos, produziam e trocavam mercadorias, conquistavam novos mercados. Ouro, prata, açúcar: a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessida- des do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de metais preciosos foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que o valor das importações, compostas por escravos, sal e artigos de luxo. Os recursos fluíam para que os acumulassem as nações européias emergentes do outro lado do mar. Esta era a missão fundamental que trouxeram os pioneiros, embora, além disso, aplicassem o Evangelho quase tão freqüentemente como o chicote, aos índios agonizantes. A estrutura econômica das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado externo e, em conseqü- ência, centralizada em torno do setor exportador, que concentrava renda e poder. Ao longo do processo, desde a etapa dos metais à provisão de alimentos, cada região se identificou com o que produzia, e produzia o que dela se esperava na Europa: cada produto, carregado nos porões dos navios que sulcavam o oceano, converteu-se numa vocação e num destino. A divisão internacional do trabalho, tal como foi surgindo junto com o capitalismo, parecia-se mais com a distribuição de funções entre o cavaleiro e o cavalo, com diz Paul Baran32. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado interno do capitalismo que emergia. Celso Furtado adverte33 que os senhores feudais europeus obtinham um excedente econômico da população por eles dominada, e o utilizavam, de uma forma ou de outra, em suas próprias regiões, enquanto o objetivo principal dos espanhóis, que recebiam do rei minas, terras e indígenas na América, consistia em subtrair um excedente para transferi-lo para a Europa. Esta observação contribuiu para esclarecer a meta final que teve, desde sua implantação, a economia colonial americana; embora formalmente mostrasse alguns as- 31. Ernest Mandel, La teoria marxista de Ia acumulación primitiva y la industrialización del Tercer Mundo, revista Amaru, nº 6, Lima, abril/junho de 1968. 32. Paul Baran, Economía del crescimento, México, 1959. 33. Celso Furtado, La economia latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución cubana, Santiago do Chile, 1969, México, 1969. 25 mão sábia para pesar e separar, picotam, como passarinhos, os restos minerais em busca do estanho. Nos velhos socavãos que ainda não estão inundados os mineiros entram, a lâmpada numa mão, os corpos encolhidos, para arrancar o que podem. Prata não tem, nem uma centelha; os espanhós rasparam os veios até com ancinhos. Os pallacos cavam com picareta e pá pequenos túneis para extrair filões dos despojos. “A montanha é rica entretanto - dizia-me sem assombro um desempregado que arranhava a terra com as mãos. - Deus tem de existir, imagine: o minério cresce como se fosse planta, igualzinho.” Frente à montanha rica de Potosí, levanta-se um testemunho da devastação. É um pico chamado Huakajchi, que em quéchua significa “montanha que chorou.” De suas encostas brotam muitos mananciais de água pura, “os olhos d’água” dão de beber aos mineiros. No seu auge, na metade do século XVII, a cidade tinha congregado muitos pintores e artesãos, espanhóis ou nativos, mestres europeus e nacionais ou santeiros indígenas que deixaram sua marca na arte colonial americana. Melchor Pérez de Holguín, o Greco da América, deixou uma vasta obra religiosa que ao mesmo tempo mostra o talento de seu criador e o abismo pagão destas terras: é difícil esquecer, por exemplo, a esplêndida Virgem Maria que, com os braços abertos, dá de mamar com um peito ao Menino Jesus e com o outro a São José. Os ourives, os cinzeladores de prataria e os entalhadores, os artesãos do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins nobres, alimentaram as nume- rosas igrejas e mosteiros de Potosí com talhas de imaginação colonial e altares de infinitas filigranas, faiscantes de prata, e púlpitos e retábulos valiosíssimos. As frentes barrocas dos templos, trabalhadas em pedras, resistiram ao embate dos séculos, mas o mesmo não ocorreu com os quadros, em muitos casos mortalmente atacados pela umidade, nem com as figuras e objetos de pouco peso. Os turistas e os párocos esvaziaram as igrejas de tudo que puderam levar: desde os cálices e sinos até as talhas de São Francisco e Cristo em mogno ou carvalho. Estas igrejas descuidadas, já fechadas em sua maioria, estão caindo aos pedaços, arrasadas pelos anos. É uma pena, porque ainda constituem, embora tenham sido saqueadas, formidáveis tesouros de uma arte colonial que funde e ilumina todos os estilos, valiosíssima no gênio e na heresia: o “signo escalonado” de Tiahuanacu, em lugar da cruz de Cristo, e a cruz junto ao sagrado sol e sagrada lua, as virgens e os santos nus, as uvas e as espigas incrustadas nas colunas, até os capitéis, junto com a kantuta, a flor imperial dos incas; as sereias, Baco e a festa da vida, alternando com o ascetismo romântico, os rostos morenos de algumas divindidades e as cariátides de traços indígenas. Há igrejas que foram reacondicionadas para prestar, já vazia de fiéis, outros serviços. A igreja de Santo Ambrósio converteu-se em Cine Omiste; em fevereiro de 1970, sob os baixos-relevos barro- cos da frente se anunciava a próxima estréia: “O mundo está louco, louco, louco.” O templo da Companhia de Jesus converteu-se também em cinema, depois em depósito de mercadorias da empresa Grace e por fim em armazém de víveres para a caridade pública. Mas outras poucas igrejas estão ainda, mais ou menos, em atividade: há pelo menos um século e meio que Os vizinhos de Potosí queimam círios à falta de dinheiro. A de São Francisco, por exemplo. Dizem que a cruz desta igreja cresce alguns centímetros por ano, e que também cresce a barba do Senhor de Vera Cruz, um imponente Cristo de prata e seda que apareceu em potosí, trazido por não se sabe quem, há quatro séculos. Os padres não negam que em cada tempo determinado lhe fazem a barba, e atribuem, até por escrito, todos os milagres: “conjurações sucessivas de secas e pestes, guerras em defesa da cidade acossada”. Entretanto, nada pode o Senhor da Vera Cruz contra a decadência de Potosí. O esgotamento da prata tinha sido interpretada como um castigo divino pelas atrocidades e pecados dos mineiros. Ficaram para trás as missas espetaculares; assim como os banque- tes e as touradas, os bailes e os fogos de artifício, os luxuosos cultos religiosos, no fim das 26 contas, tinham sido também um subproduto do trabalho escravo dos índios. Os mineiros faziam, na época de esplendor, fabulosas doações às igrejas e aos mosteiros, e celebravam suntuosos ofícios fúnebres. Chaves de prata pura para as portas do céu: o mercador Álvaro Bejarano tinha ordenado, em seu testamento, que “todos os padres e sacerdotes de Potosí” acompanhassem seu cadáver. O curandeirismo e a bruxaria se misturavam com a religião autorizada, no delírio de fervores e pânicos da sociedade colonial. A extrema-unção com campainha e pálio podia, como a comunhão, curar o agonizante, embora fosse muito mais eficiente um vultoso testamento para a construção de um templo ou de um altar de prata. Combatia-se a febre com os envangelhos: as orações em alguns conventos refresca- vam o corpo; em outros, davam calor. “O Credo era fresco como o tamarindo doce e a Ave Maria era cândida como a flor de laranja ou o cabelo do milho.”40 Na Rua Chuquisaca pode-se admirar a fachada, roída pelos séculos, dos condes de Carma e Cayara, mas o palácio é agora o consultório de um cirurgião-dentista; a heráldica do mestre-de-campo Dom Antônio López de Quiroga, à Rua Lanza, agora adorna uma escolinha; o escudo do marquês Otavi, com seus leões grimpantes, reluz no pórtico do Banco Nacional. “Em que lugares viverão agora? Longe devem ter ido...” A velha potosina, presa a sua cidade, me conta que primeiro se foram os ricos, e depois também se foram os pobres: Potosí tem agora três vezes menos habitantes do que tinha quatro séculos atrás. Contemplo a montanha de um terraço da Rua Uyuni, uma estreitíssima e serpenteante ruazinha colonial, onde as casas têm grandes balcões de madeira tão próximos uns dos outros, que os vizinhos podem beijar-se ou dar socos, sem necessidade de descer à rua. Sobrevivem aqui, como em toda a cidade, os velhos candeeiros de luz mortiça, sob os quais, no dizer de Jaime Molins, “se resolveram as rixas de amor e escorreram, como duendes, cavaleiros disfarçados, damas elegantes e jogadores profissionais”. A cidade tem agora luz elétrica, mas não se nota muito. Nas praças escuras, a luz dos velhos faróis, funcionam rifas durante as noites: vi rifar um pedaço de torta no meio de uma multidão. Junto com Potosí, decaiu Sucre. Esta cidade do vale, de clima agradável, que antes tinha-se chamado Charcas, La Plata e Chuquisaca, sucessivamente, desfrutou boa parte da riqueza gerada pelas veias da montanha rica de Potosí. Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, instalara ali sua corte, faustosa como a de um rei; igrejas e casarões, parques e quintas de recreio brotavam continuamente junto com os juristas, místicos e poetas retóricos que foram dando à cidade, de século em século, sua marca. “Silêncio, é Sucre. Silêncio, só silêncio. Mas antes...” Antes, foi a capital cultural de dois vice-reinados, a sede da principal arquidiocese da América e do mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais brilhante e culta do Sul. Dona Cecilia Contreras de Torres e dona Maria de las Mercedes Torralba de Gramajo, senhoras de Ubina e Colquechaca, davam banquetes de Camacho: competiam no esbanjamento das fabulosas rendas que produziam suas minas de Potosí, e quando terminavam as suntuosas festas, jogavam pelos balcões vasilhas de prata e até objetos de ouro, para que os transeuntes de sorte os apanhassem. Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo; dizem que com as jóias de sua Virgem poder-seia pagar toda a gigantesca dívida externa da Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas, que 1809 cantaram com júbilo a emancipação da América, hoje oferecem um som fúnebre. O sino rouco de São Francisco, que tantas vezes anunciara sublevações e motins, hoje dobra pela mortal imobilidade de Sucre. Pouco importa que continue sendo a capital legal da Bolívia, e que em Sucre se situe ainda a Suprema Corte de Justiça. Pelas ruas passeiam rábulas, doentes e de pele amarelada, sobreviventes testemunhas da decadência: doutores do tipo que usa pince-nez, com cinta preta e tudo. Dos grandes palácios vazios, os ilustres patriarcas de Sucre mandam seus 40. Gustavo Adolfo Otero, op. cit. 27 servidores venderem empadas na estação ferroviária. Houve quem soube comprar, em outras horas afortunadas, até um título de príncipe. Em Potosí e Sucre só ficaram vivos os fantasmas da riqueza morta. Em Huanchaca, outra tragédia boliviana, os capitais anglo-chilenos esgotaram, durante o século passado, filões de prata de mais de dois metros de largura, de altíssimo teor; agora só restam as ruínas cheias de poeira. Huanchaca continua nos mapas, como se existisse ainda, identificada como um centro mineiro ainda vivo, com seu ancinho e pá cruzados. Tiveram melhor sorte as minas mexicanas de Guanajuato e Zacatecas? Com bases nos dados que proporciona Alexander von Humboldt, em seu já citado Ensaio sobre o Reino da Nova Espanha, estimou-se em cinco bilhões de dólares atuais a magnitude do excedente econômico levado do México entre 1760 e 1809, apenas meio século, através das exportações de prata e ouro41” Nesta época não havia minas mais importantes na América. O grande sábio alemão comparou a mina de Valenciana, em Guanajuato, com a Himmels Furst da Saxônia, que era a mais rica da Europa: a Valenciana produzia 36 vezes mais prata, no curso do século, e deixava a seus acionistas lucros 33 vezes maiores. O conde de Santiago de la Laguna vibrava de emoção ao descrever, em 1732, o distrito mineiro de Zacatecas e “os preciosos tesouros que ocultam seus profundos seios”, nas montanhas “honradas com mais de quatro mil bocas, para melhor servir com o fruto de suas entranhas a ambas Majestades”, Deus e o Rei, e “para que todos acorram para beber e participar do grande, do rico, do culto, do urbano, do nobre”, porque era “fonte de sabedoria, polícia, armas e nobreza...”42. O padre Marmolejo descreveria mais tarde a cidade de Guanajuato, atravessada por pontes, com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na Babilônia e os templos faustosos, o teatro, a praça de touros, as arenas de rixa de galos e as cúpulas levantadas contra as verdes ladeiras das montanhas. Mas este era “o país da desigualdade” e Humboldt pôde escrever sobre o México: “Em nenhuma parte a desigualdade é mais espantosa... a arquitetura dos edifícios públicos e privados, a finura do enxoval das mulhe- res, o ar da sociedade; tudo anuncia um extremo esmero que se contrapõe extraordinari- amente à nudez, ignorância e rusticidade do populacho.” As novas veias de prata engoli- am homens e mulas nas ondulações das cordilheiras; os índios, “que viviam só para sair de dia”, sofriam fome endêmica, e as pestes matavam como moscas. Num único ano, 1784, uma onda de doenças provocadas pela falta de alimentos, gerada por uma geada arrasa- dora, tinha ceifado mais de oito mil vidas em Guanajuato. Os capitais não se acumulavam, eram desperdiçados. Dizia-se: “Pai mercador, filho cavaleiro, neto mendigo.” Numa representação dirigida ao governo, em 1843, Lucas Alamán formulou uma sombria advertência, enquanto insistia na necessidade de defender a in- dústria nacional, mediante um sistema de proibições e fortes gravames contra a concor- rência estrangeira: “É preciso recorrer ao fomento da indústria, como única fonte de pros- peridade universal - dizia. - De nada serviria a Puebla a riqueza de Zacatecas, se não fosse para o consumo de suas manufaturas, e se estas decaíssem outra vez, como já ocorreu, arruinar-se-ia este departamento florescente, sem que se possa salvar da miséria a riqueza 41. Fernando Carmoga, prólogo a Diego López Rosado, Historia y pensamiento económico de México, México, 1968. 42. D. Joseph Ribera Bernárdez, Conde Santiago de la Laguna, Descripción breve de la muy nobre y leal ciudad de Zacatecas, em Gabriel Salinas de la Torre, Testimonios de Zacatecas, México, 1946. Além desta obra e do ensaio de Humboldt, o autor consultou: Luis Cháves Orozco, Revolución industrial - Revolución politica, Biblioteca del Obrero y Campesino, México, s.d; Lucio Marmolejo, Efemérides guanajuatenses, o datos para formar la historia de la ciudad de Guanajualo, Guanajuato, 1883; José Maria Luis Mora, México y sus revoluciones, México, 1965; e para os dados da atualidade, La economia del Estado de Zacatecas e La economia del Estado de Guanajuato, da série de pesquisas do Sistema Bancos de Comércio, México, 1968. 30 vel de índios, porém isto não procede do trabalho quem têm nessas minas de prata e mercúrio, mas da libertinagem em que vivem.” O testemunho de Capoche, que tinha muitos índios a seu serviço, é ilustrativo, neste sentido. As temperaturas glaciais do campo aberto alternavam-se com os calores infernais do fundo da montanha. Os índios entravam nas profundidades, e ordinariamente eram retirados mortos ou com cabeças e pernas quebradas, e nos engenhos todo o dia se machucam.” Os mitayos retiravam o minério com a ponta de uma barra e o carregavam nas costas, por escadas, à luz de uma vela. Fora do socavão, moviam enormes eixos de madeira nos engenhos ou fundiam a prata no fogo, depois de moê-la e lavá-la. A mita era uma máquina de triturar índios. O emprego do mercúrio para a extração de prata por amálgama envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da terra. Fazia cair o cabelo, os dentes e provocava tremores incontroláveis. Os “azogados” se arrastavam pedindo esmolas pelas ruas. Seis mil e quinhentas fogueiras ardiam na noite sobre as ladeiras da montanha, e nelas se trabalhava a prata, valendo-se do vento que o “glorioso Santo Agostinho” mandava do céu. Por causa da fumaça dos fornos não havia pastos nem plantações num raio de seis léguas ao redor de Potosí, e as emanações não eram menos implacáveis com os corpos dos homens. Não faltavam as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nasceu um sistema de álibis para as consciências culpáveis. Transformava-se os índios em bestas de carga, porque resistiam a um peso maior do que o que suportava o débil lombo da lhama, e de passagem comprovava-se que, na realidade, os índios eram bestas de carga. O vice-rei do México considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para curar “a malda- de natural” dos indígenas. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios mereciam o trato que recebiam porque seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus. O conde de Buffon afirmava que não se registrava nos índios, animais frígidos e débeis, “nenhuma atividade da alma”. O abade De Paw inventava uma América onde os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer como semelhantes os “homens degradados” no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e disse que os índios tinham perecido ao sopro da Europa48. No século XVII, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de ascendên- cia judaica, porque, como os judeus, “são preguiçosos, não crêem nos milagres de Jesus Cristo e não são gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fizeram”. Pelo menos, este sacerdote não negava que os índios descendiam de Adão e Eva: eram numerosos os teólogos e pensadores que não se convenceram com a Bula do Papa Paulo III, emitida em 1537, que tinha declarado os índios como “verdadeiros homens”. O padre Bartolomeu de Las Casas agitava a corte espanhola com suas inflamadas denúncias contra a crueldade dos conquistadores da América: em 1557, um membro do conselho real respondeu-lhe que os índios estavam nos últimos degraus da escala da humanidade para serem capazes de receber a fé49. Las Casas dedicou sua fervorosa vida à defesa do índio, frente aos desmandos dos mineiros e encomenderos. Dizia que os índios preferiam ir ao inferno para não se encontrarem com os cristãos. Aos conquistadores e colonizadores eram “encomendados” indígenas para que os 48. Antonello Gerbi, La disputa del Nuevo Mundo, México, 1960, e Daniel Vidart, op. cit. 49. Lewis Hanke, Estudios sobre fray Bartolomé de Las Casas y sobre la lucha por la Justicia en la conquista española de América, Caracas, 1968. 31 catequizassem. Mas como os índios deviam ao encomendero serviços pessoais e tributos econômicos, não sobrava muito tempo para introduzi-los na senda cristã da salvação. Em recompensa de seus serviços, Fernão Cortez recebeu 23 mil vassalos; repartiam-se os índios ao mesmo tempo que se outorgavam as terras, mediante favores reais ou por despojo direto. Desde 1536, os índios eram outorgados em “encomenda”, junto com sua descendência, pelo prazo de duas vidas: a do encomendero e a do herdeiro imediato; a partir de 1629, o regime estendeu-se por três vidas, e em 1704 por quatro vidas50. No século XVIII, os índios, os sobreviventes, já asseguravam a vida cômoda de muitas gerações futuras. Como os deuses vencidos persistiam em suas memórias, não faltavam santos álibis para o usufruto de sua mão-de-obra por parte dos vencedores: os índios eram pagãos, não mereciam outra vida. Tempos passados? Quatrocentos e vinte anos depois da Bula do Papa Paulo 111, em setembro de 1957, a Corte Suprema de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juizes do país que “os índios são tão seres humanos como os outros habitantes da república...” E o Centro de Estudos Antropológicos da Universidade Católica de Assunção realizou posteriormente uma pesquisa & opinião pú- blica na capital e no interior: de cada dez paraguaios, Oito crêem que “os índios são como animais”. Em Caaguazú, no Alto Paraná e no Chaco, os índios são caçados como feras, vendidos a preços baratos e explorados em regime de virtual escravidão. Todavia, quase todos os paraguaios têm sangue indígena, e o Paraguai não se cansa de compor canções, poemas e discursos em homenagem à “alma guarani”. A NOSTALGIA COMBATENTE DE TÚPAC AMARU Quando os espanhóis irromperam na América, o império teocrático dos incas estava em seu apogeu, estendendo seu poder sobre o que hoje chamamos de Peru, Bolívia e Equador, abarcando parte da Colômbia e do Chile e chegando até o norte argentino e à selva brasileira; a confederação dos astecas tinha conquistado um alto nível de eficácia no vale do México; em Yucatán e na América Central a esplêndida civilização dos maias persistia em todos os povos herdeiros, organizados para o trabalho e a guerra. Estas sociedades deixaram numerosos testemunhos de sua grandeza, apesar de todo o enorme tempo da devastação: monumentos religiosos levantados com maior sabe- doria do que as pirâmides egípcias, eficazes criações técnicas para a luta contra a natureza, objetos de arte que denunciam um talento invicto. No museu de Lima podem ver-se centenas de crânios que foram objeto de puncturas e curas com placas de ouro e prata por parte dos cirurgiões incas. Os maias foram grandes astrônomos, tinham medido o tempo e o espaço com precisão assombrosa e descoberto o valor da cifra zero antes de qualquer outro povo na História. Os aquedutos e as ilhas artificiais criadas pelos astecas deslumbra- ram Fernão Cortez, embora não fossem de ouro. A conquista rompeu as bases daquelas civilizações. Piores conseqüências do que o sangue e o fogo da guerra teve a implantação de uma economia mineira. As minas exigiam grandes deslocamentos da população e desarticulavam as unidades agrícolas comunitárias; não só extinguiam incontáveis vidas através do trabalho forçado, como abatiam indiretamente o sistema coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos socavãos, submetidos à servidão dos encomenderos e obrigados a entregarem por nada as terras que obrigatoriamente deixavam ou descuidavam. Na costa do Pacífico, Os espa- nhóis destruíram ou deixaram extinguir enormes cultivos de milho, mandioca, feijão, 50. J. M. Ots Capdequí, op. cit. 32 amendoim, batata doce; o deserto devorou rapidamente grandes extensões de terra que tinham sido trabalhadas pela rede incaica de irrigação. Quatro séculos e meio depois da conquista, só restam pedras e capim bravo em lugar da maioria dos caminhos que unia o império. Embora as gigantescas obras públicas dos incas fossem, em sua maior parte, arrasadas pelo tempo ou pela mão dos usurpadores, sobram ainda, desenhadas na cordilheira dos Andes, os intermináveis terraços que permitiam e ainda permitem cultivar as ladeiras das montanhas. Um técnico norte americano51 calculava, em 1936, que se neste ano se construíssem, com métodos modernos, os terraços incas, custariam uns 30 mil dólares por acre. Tanto os terraços como os aquedutos de irrigação foram possíveis, naquele império que não conhecia a roda, o cavalo nem o ferro, graças à prodigiosa organi- zação e à perfeição técnica conseguida através de sábia divisão de trabalho, mas também graças à força religiosa que regia a relação do homem com a terra - que era sagrada e estava, portanto, sempre arada. Também foram assombrosas as respostas astecas ao desafio da natureza. Em nossos dias, os turistas conhecem por “jardins flutuantes” as poucas ilhas sobreviventes no lago ressecado onde agora se levanta, sobre as ruínas indígenas, a capital do México. Essas ilhas tinham sido criadas pelos astecas para responder ao problema da falta de terras no lugar eleito para a criação de Tenochtitlán. Os índios transportaram grandes massas de barro das margens e apresaram as novas ilhas de limo entre delgadas paredes de bambu, até que as raízes das plantas lhes dessem firmeza. Por entre os novos espaços de terra deslizavam os canais de água. Sobre estas ilhas inusitadamente férteis, cresceu a poderosa capital dos astecas, com suas amplas avenidas, seus palácios de austera beleza e pirâmides escalo- nadas: brotada magicamente da lagoa, Tenochtitlán estava condenada a desaparecer ante os embates da conquista estrangeira. Quatro séculos demoraria o México para alcançar uma população tão numerosa quanto a que existia naqueles tempos. Os indígenas eram, como diz Darcy Ribeiro, o combustível do sistema produtivo colonial. “É quase certo - escreve Sergio Bagú - que às minas espanholas foram lançados centenas de índios escultores, arquitetos, engenheiros e astrônomos, confundidos entre a multidão escrava, para realizar um tosco e esgotador trabalho de extração. Para a econo- mia colonial, a habilidade técnica destes indivíduos não interessava. Eles só eram conta- dos como trabalhadores não qualificados.” Mas não se perderam todos os sinais daquelas culturas destruídas. A esperança de renascimento da dignidade perdida incendiaria nu- merosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzco. Este cacique mestiço, descendente direto dos imperadores incas, encabeçou o movi- mento messiânico e revolucionário de maior envergadura. A grande rebelião estourou na província de Tinta. Montado no seu cavalo branco, Túpac Amaru entrou na praça de Tugasuca e, ao som de tambores e pututus, anunciou que havia condenado à forca o corregedor real Antonio Juan de Arriaga, e dispôs a proibição da mita de Potosí. A província de Tinta estava ficando despovoada por causa do serviço obrigatório nos socavãos de prata da montanha. Poucos dias depois, Túpac Amaru expediu um novo comunicado pelo qual decretava a liberdade dos escravos. Aboliu todos os impostos e o repartimiento de mão-de-obra indígena em todas suas formas. Os indígenas se juntavam, aos milhares, às forças do “pai de todos os pobres e de todos os miseráveis e desvalidos”. À frente de seus guerrilheiros, o caudilho lançou-se sobre Cuzco. Marchava pregando seu credo: todos os que morressem sob suas ordens nesta guerra ressuscitariam para desfrutar as felicidades e riquezas de que tinham sido despojados pelos invasores. Sucederam-se vitórias e derrotas; no fim, traído e capturado por um de seus chefes, Túpac Amaru foi entregue, amarrado com correntes, 51. Um membro do Serviço Norte-Americano de Conservação de Solos, segundo John Collier, op. cit. 35 na Nicarágua, os índios carcas foram rapidamente lançados longe de suas terras nas ribeiras, e esta é também a história dos índios de todos os vales férteis e subsolos ricos do rio Bravo para o sul. As matanças dos indígenas começaram com Colombo e nunca cessa- ram. No Uruguai e na Patagônia argentina, os índios foram exterminados, no século passado, por tropas que os buscaram e os encurralaram nos bosques ou no deserto, com o objetivo de que não atrapalhassem o avanço organizado dos latifúndios de gado57. Os índios yaquis, do estado mexicano de Sonora, foram mergulhados num banho de sangue para que suas terras, ricas em recursos minerais e férteis para a agricultura, pudessem ser vendidas sem inconvenientes a diversos capitalistas norte-americanos. Os sobreviventes eram deportados para as plantações de Yucatán. Assim, a península de Yucatán converteu-se não só em cemitério dos indígenas maias, que haviam sido seus donos, mas também em tumba dos índios yaquis, que chegavam de longe: em princípios do século, os cinqüenta reis do sisal dispunham de mais de cem mil escravos indígenas em suas plan- tações. Apesar de sua excepcional fortaleza física, raça de gigantes formosos, dois terços dos yaquis morreram durante o primeiro ano de trabalho escravo58. Em nossos dias, a fibra de sisal só pode competir com seus substitutos sintéticos graças ao nível de vida humamente baixo dos operários. As coisas mudaram, é certo, porém não tanto como se crê, pelo menos para os indígenas de Yucatán: “As condições de vida destes trabalhadores assemelha-se muito com as do trabalho escravo”, diz o professor Arturo Bonilia Sárichez59 . Nas encostas andinas próximas a Bogotá, o peão indígena é obrigado a cumprir jornadas gratuitas de trabalho para que o fazendeiro lhe permita cultivar, nas noites de lua clara, sua própria parcela: “Os antepassados deste índio cultivavam livremente, sem contrair dívidas, o rico solo do platô, que não pertencia a ninguém. Ele trabalha grátis para assegurar o direito de cultivar a pobre montanha!”60 Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desa- pareceram 90, aniquiladas por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo, para os indígenas, o contato com a morte. As disposições legais que desde 1537 protegem os índios do Brasil voltaram-se contra eles. De acordo com o texto de todas as constituições 56. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968. 57. Os últimos charruas, que por volta de 1832 sobreviviam saqueando novilhos nas campinas selvagens do norte do Uruguai, sofreram a traição do presidente Fructuoso Rivera. Afastados da mata cerrada que lhes dava proteção, desmontados e desarmados por falsas promessas de amiza- de, foram abatidos numa paragem chamada a Boca do Tigre: "Os clarins tocaram o degolar - conta o escritor Eduardo Acevedo Díaz (jornal La Época, 19 de agosto de 1890) - A horda se revolveu desesperadamente, caindo um após outro seus varões bravos, como touros feridos na nuca." Vários caciques morreram. Os poucos índios que puderam romper o cerco de fogo se vingaram pouco depois. Perseguidos pelo irmão de Rivera, armaram-lhe uma cilada e crivaram-no de lanças junto com seus solda-dos. O cacique Sepe "mandou cobrir com alguns nervos do cadáver o extremo da ponte de sua lança." Na Patagônia argentina, em fim do século, os soldados recebiam seu soldo contra a apresentação de cada par de testículos. O romance de David Viñas Los dueños de la tierra (Buenos Aires, 1959) se abre com a caça aos índios: "Porque matar era como violar alguém. Algo bom. E até agradava: tinha que correr, se podia gritar, se suava e depos sentia fome... Os disparos iam-se espaçando. Seguramente tinha ficado algum corpo enforquilhado num desses ninhos. Um corpo de índio deixado para trás, com uma mancha enegrecida entre as coxas..." 58. John Kenneth Turner, México bárbaro, México, 1967. 59. Arturo Bonilla Sárichez, Un problema que se agrava: la subocupación rural, em Neolatifundismo y explotación, de Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co., vários autores, México, 1968. 60. René Dumont, Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo, México, 1963. 36 brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que quanto mais ricas são estas terras virgens mais grave é a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime. A caça de índios foi deflagrada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior seiva do mundo, gigantesco espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de um novo “sonho americano”. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados Unidos lançaram-se sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Esta invasão norte-americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios morrem sem deixar rastros e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O ouro e outros minerais vultosos, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investiga- ções que foram realizadas. Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do extinto Serviço de Proteção aos índios, designado pelo presidente Castelo Bran- co para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer quarenta e dois tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo explodiu em 1968. A sociedade indígena de nossos dias não existe no vazio, fora do marco geral da economia latino-americana. É verdade que há tribos brasileiras ainda encerradas na selva, comunidades do altiplano isoladas por completo do mundo, redutos de barbárie na fron- teira da Venezuela, mas no geral os índios estão incorporados no sistema de produção e no mercado de consumo, embora de forma indireta. Participam, como vítimas, de uma ordem econômica e social onde desempenham o duro papel dos mais explorados entre os explorados. Compram e vendem boa parte das escassas coisas que consomem e produ- zem, em mãos de intermediários poderosos e vorazes que cobram muito e pagam pouco; são diaristas nas plantações, a mão-de-obra mais barata, e soldados nas montanhas; gastam seus dias trabalhando para o mercado mundial ou lutando por seus vencedores. Em países como a Guatemala, por exemplo, constituem o eixo da vida econômica nacio- nal: ano após ano, ciclicamente, abandonam suas terras sagradas, terras altas, para fornece- rem 200 mil braços às colheitas do café, algodão e açúcar nas terras baixas. Os empreiteiros os transportam em caminhões, como gado, e nem sempre a necessidade decide: às vezes decide a cachaça. Os empreiteiros pagam uma orquestra de marimba e fazem correr o álcool forte: quando o índio acorda da bebedeira, já o acompanham as dívidas: Pagará trabalhando em terras quentes que não conhece, de onde regressará ao fim de alguns meses, talvez com alguns centavos no bolso, talvez com tuberculose ou impaludismo. O exército colabora eficazmente na tarefa de convencer os renitentes61. A expropriação dos indígenas - usurpação de suas terras e de sua força de trabalho - foi e é simétrica ao desprezo racial, que por sua vez se alimenta da objetiva degradação das civilizações indíge- nas arrasadas pela conquista. Os efeitos da conquista e todo o longo tempo de humilhação posterior despedaçaram a identidade cultural e social que os indígenas tinham alcançado. Todavia, essa identidade fragmentada é a única que persiste na Guatemala62. Persiste na 61. Eduardo Galeano, Guatemala, país ocupado, México, 1967. 62. Os maias quichés acreditavam num só deus, praticavam o jejum, a penitência, a abstinência e a confissão; acreditavam no dilúvio e no fim do mundo: o Cristianismo não lhes trouxe grandes novidades. A decomposição religiosa começou com a colônia. A religião católica só assimilou alguns aspectos mágicos e totêmicos da religião maia, na vã tentativa de submeter a fé indígena à ideologia dos conquistadores. O esmagamento cultural abriu caminho para o sincretismo e assim se recolhem, por exemplo, na atualidade, testemunhos da inovação com resPeito àquela evolução alcançada: "Dom Vulcão necessita de carne humana bem tostadinha." Carlos Guzmán Böckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala: una interpretación historico-social, México, 1970. 37 tragédia. Na semana santa, as procissões dos herdeiros dos maias dão lugar a terríveis exibições de masoquismo coletivo. Arrastam pesadas cruzes, participam da flagelação de Jesus passo a passo durante a interminável ascensão do Gólgota; com gemidos de dor, convertem Sua morte e Seu enterro no culto da própria morte e do próprio enterro, a aniquilação da formosa vida remota. A semana santa dos índios guatemaltecos termina sem Ressurreição. VILA RICA DE OURO PRETO: A POTOSÍ DE OURO A febre de ouro, que continua impondo a morte e a escravidão aos indígenas da Amazônia, não é nova no Brasil; muito menos seus estragos. Durante dois séculos a partir do descobrimento, o solo do Brasil tinha negado os metais, tenazmente, a seus proprietários portugueses. A exploração da madeira, o pau-brasil, cobriu o primeiro período de colonização das costas, e logo se organizaram grandes plantações de açúcar no Nordeste. Porém, ao contrário da América espanhola, o Brasil parecia vazio de ouro e prata. Os portugueses não tinham encontrado aqui civiliza- ções indígenas de alto nível de desenvolvimento e organização, senão tribos selvagens e dispersas. Os aborígenes desconheciam os metais, foram os portugueses que tiveram de descobrir, por sua própria conta, os locais onde se depositavam os aluviões de ouro no vasto território que se ia abrindo, através da derrota e do extermínio dos indígenas, à passagem da conquista. Os bandeirantes63 da região de São Paulo atravessaram a vasta zona entre a Serra da Mantiqueira e a cabeceira do rio São Francisco, e notaram que os leitos e os bancos de vários rios e riachos que por ali corriam continham traços de ouro aluvional em pequenas quantidades visíveis. A ação milenar das chuvas tinha roído os filões de ouro das rochas e os havia depositado nos rios, no fundo dos vales e nas depressões das montanhas. Sob as camadas de areia, terra ou argila, o pedregoso subsolo oferecia pepitas de ouro, fácil de extrair do cascalho de quartzo; os métodos de extração tornaram-se mais complicados na medida em que se foram esgotando os depósitos mais superficiais. A região de Minas Gerais entrou assim, impetuosamente, na história: a maior quantidade de ouro então descoberta no mundo foi extraída no menor espaço de tempo. “Aqui o ouro era mato”, diz, agora, o mendigo, e seu olhar passeia pelas torres das igrejas. “Tinha ouro nas calçadas, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos e se conside- ra uma tradição de Mariana (Ribeirão do Carmo), a pequena cidade mineira próxima a Ouro Preto, que se conserva, como Ouro Preto, paralisada no tempo. “A morte é certa, a hora incerta. Cada um tem seu tempo marcado”, me diz o mendigo. Cospe sobre a escada de pedra e sacode a cabeça: “Não sabiam onde pôr o dinheiro e por isso faziam uma igreja ao lado da outra.” Em outros tempos, esta comarca era a mais importante do Brasil. Agora... “Agora não - me diz o velho.- Agora isto não tem vida nenhuma. Aqui não tem jovens. Os jovens se vão.” Caminha descalço, a meu lado, em passos lentos sob o tíbio sol da tarde: “Vê? aí, na frente da igreja, estão o sol e a lua. Isso significa que os escravos trabalhavam dia e noite. Este templo foi feito pelos negros; aquele, pelos brancos. E aquela é a casa do monsenhor Alípio, que morreu aos 99 anos justos.” Ao longo do século XVIII, a produção brasileira do cobiçado minério superou o volu- me total do ouro que a Espanha tinha extraído de suas colônias durante os dois séculos 63. As bandeiras paulistas eram bandos errantes de organização paramilitar e de força variável. Suas expedições selva adentro desempenharam um papel importante na colonização do interior do Brasil. 40 Francisco levantou para ela um castelo, com um jardim de plantas exóticas e cascatas artificiais; em sua honra dava opíparos banquetes regados pelos melhores vinhos, bailes noturnos de nunca acabar e funções de teatro e concertos. Ainda em 1818, Tijuco festejou o grande casamento do príncipe da corte portuguesa. Dez anos antes, John Mawe, um inglês que visitou Ouro Preto, assombrou-se com sua pobreza: encontrou casas vazias e sem valor, com letreiros que as colocavam infrutuosamente à venda, e comeu comida imunda e escassa71. Tempos atrás tinha explodido a rebelião, que coincidiu com a crise na comarca do ouro. Joaquim José da Silva Xavier, o Tíradentes, tinha sido enforcado e despedaçado, e outros lutadores pela independência tinham partido de Ouro Preto rumo ao cárcere ou ao exílio. CONTRIBUIÇÃO DO OURO DO BRASIL AO PROGRESSO DA INGLATERRA O ouro começou a correr no exato momento em que Portugal assinava o Tratado de Methuen, em 1703, com a Inglaterra. Esta foi, a coroação de uma enorme série de privilé- gios conseguida pelos comerciantes britânicos em Portugal. Em troca de algumas vanta- gens para seus vinhos no mercado inglês, Portugal abria seu próprio mercado, e o de sua colônias, às manufaturas britânicas. Dado o desnível de desenvolvimento industrial já então existente, a medida implicava uma condenação à ruína para as manufaturas locais. Não era com vinho que se pagavam os tecidos ingleses, mas com ouro, com o ouro do Brasil, e neste processo ficariam paralíticos os teares de Portugal. Portugal não se limitou a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, declarou como crime a abertura de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, determinou o incêndio aos teares e fiadores brasileiros. Inglaterra e Holanda, campeãs de contrabando de ouro, que juntaram grandes for- tunas no tráfico ilegal da carne negra, açambarcam por meios ilícitos, segundo se calcula, mais da metade do metal que correspondia ao imposto do “quinto real” que deveria receber, do Brasil, a coroa portuguesa. Porém a Inglaterra não recorria somente ao comér- cio proibido para canalizar o ouro brasileiro em direção a Londres. As vias legais também lhe pertenciam. O auge do ouro, que implicou o fluxo contínuo de grandes contingentes de população portuguesa para Minas Gerais, estimulou agudamente a demanda colonial de produtos industriais e proporcionou, ao mesmo tempo, meios para pagá-los. Da mesma maneira que a prata de Potosí repicava no solo espanhol, o ouro de Minas Gerais só passava de trânsito por Portugal. A metrópole converteu-se em simples intermediária. Em 1755, o marquês de Pombal, primeiro ministro português, intentou a ressurreição de uma política protecionista, mas já era tarde: denunciou que os ingleses haviam conquistado Portugal sem os inconvenientes de uma conquista, que abasteciam a duas terças partes de suas necessidades e que os agentes britânicos eram donos da totalidade do comércio português. Portugal não produzia praticamente nada, e tão fictícia era a riqueza do ouro que até os escravos negros que trabalhavam nas minas da colônia eram vestidos pelos ingleses.72 Celso Furtado fez notar73 que a Inglaterra, que seguiu uma política clarividente em matéria de desenvolvimento industrial, utilizou o ouro do Brasil para pagar importações 71. Augusto de Lima Júnior, op. cit. 72. Allan K. Manchester, British Preeminence in Brazil: its Rise and Fall, Chape Hill, Carolina do Norte, 1933. 73. Celso Furtado, op. cit. 41 essenciais de outros países e pôde concentrar inversões no setor manufatureíro. Rápidas e eficazes inovações tecnológicas puderam ser aplicadas graças a esta gentileza histórica de Portugal. O centro financeiro se transladou de Amsterdã para Londres. Segundo as fontes britânicas, a entrada de ouro brasileiro alcançava 50 mil libras por semana em alguns períodos. Sem esta tremenda acumulação de reservas metálicas, a Inglaterra não teria podido enfrentar, posterior- mente, Napoleão. Nada ficou, no solo brasileiro, do impulso dinâmico do ouro, salvo os templos e as obras de arte. Em fins do século XVIII, embora ainda não se tivessem esgotado os diaman- tes, o país estava prostrado. A renda per capita dos três milhões de brasileiros não superava os 50 dólares anuais no atual poder aquisitivo, segundo os cálculos de Furtado, e este era o nível mais baixo de todo o período colonial. Minas Gerais caiu verticalmente numa grande onda de decadência e ruína. Incrivelmente, um brasileiro agradece o favor e sus- tenta que o capital que saiu de Minas “serviu para a imensa rede bancária que propiciou o comércio entre nações e tornou possível levantar o nível de vida dos povos capazes de progresso”74. Condenados inflexivelmente à pobreza em função do progresso alheio, os povos mineiros “incapazes” ficaram isolados e tiveram que se resignar a arrancar seus alimentos das pobres terras já despojadas de metais e pedras preciosas. A agricultura de subsistência ocupou o lugar da economia mineira75. Em nossos dias, os campos de Minas Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, teimo- sos bastiões do atraso. A venda de trabalhadores mineiros às fazendas de outros estados é quase tão freqüente quanto o tráfico que os escravos nordestinos padecem. Franklin de Oliveira percorreu Minas Gerais há pouco tempo. Encontrou casas de pau a pique, povoa- dos sem água nem luz, prostitutas com idade média de treze anos na estrada do Vale do Jequitinhonha, loucos e famélicos à beira do caminho. Conta-o em seu recente livro A tragédia da renovação brasileira. Henri Gorceix disse, com razão, que Minas Gerais tinha um coração de ouro num peito de ferro,76 porém a exploração de seu fabuloso quadrilátero ferrífero corre por conta, atualmente, da Hanna Mining Co. e a Bethlehem Steel, asso- ciadas no projeto: as jazidas foram entregues em 1964, ao fim de uma sinistra história. O ferro, em mãos estrangeiras, não deixará mais do que o ouro deixou. Só a explosão de talento ficou como recordação da vertigem do ouro, para não mencionar os buracos das escavações e as pequenas cidades abandonadas. Portugal não pôde, tampouco, resgatar outra força criadora que não fosse a revolução estética. O con- vento de Mafra, orgulho de Dom João V, levantou Portugal da decadência artística: em seus carrilhões de 37 sinos, seus vasos e seus candelabros de ouro maciço, cintila ainda o ouro de Minas Gerais. As igrejas de Minas foram bastante saqueadas e são raros os objetos sacros, de tamanho portátil, que nelas perduram, mas ficarão para sempre, alçadas sobre as ruínas coloniais, as monumentais obras barrocas, os frontispícios e os púlpitos, os retábulos, as tribunas, as figuras humanas, que desenhou, talhou e esculpiu Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o filho genial de uma negra escrava e um artesão famoso. Já agonizava o século XVIII quando Aleijadinho começou a modelar em pedra um conjun- to de grandes figuras sagradas, ao pé do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. A euforia do ouro era coisa do passado: a obra se chama Os profetas, mas já não havia nenhuma glória por profetizar. Toda a pompa e alegria tinham-se des- vanecido e não sobrava espaço para nenhuma esperança. O dramático testemunho final, grandioso como um enterro para aquela fugaz civilização do ouro nascida para morrer, foi 74. Augusto de Lima Júnior, op. cit. O autor sente uma grande alegria pela "expansão do imperi- alismo colonizador, que os ignorantes de hoje, movidos por seus mestres moscovitas, qualificam de crime". 75. Roberto C. Simonsen, História Econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962. 76. Eponina Ruas, Ouro Preto. Sua história, seus templos e monumentos, Rio de Janeiro, 1950. 42 deixado aos séculos seguintes pelo artista mais talentoso de toda a história do Brasil. O Aleijadinho, desfigurado e mutilado pela lepra, realizou sua obra-prima amarrando o cinzel e o martelo em suas mãos sem dedos e arrastando-se de joelhos, cada madrugada, rumo a sua oficina. A lenda assegura que na igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, de Minas Gerais, os mineiros mortos celebram ainda missa nas frias noites de chuva. Quando o sacerdote se volta, levantando as mãos do altar-mor, se vêem os ossos do rosto. O REI AÇÚCAR E OUTROS MONARCAS AGRÍCOLAS AS PLANTAÇÕES, OS LATIFÚNDIOS E O DESTINO A busca do ouro e da prata foi, sem dúvida, o motor central da conquista. Porém, em sua segunda viagem, Cristóvão Colombo trouxe as primeiras raízes de cana-de-açúcar, das ilhas Canárias, e as plantou nas terras que hoje ocupa a República Dominicana. Uma vez semeadas, brotaram com rapidez, para o grande regozijo do almirante1. O açúcar, que se cultivava em pequena escala na Sicília e nas ilhas Madeira e Cabo Verde e se comprava, a preços altos, no Oriente, era um artigo cobiçado pelos europeus, que até nos enxovais das rainhas chegou a figurar como dote. Vendia-se nas farmácias, era pesado por grãos2. Durante pouco menos de três séculos a partir do descobrimento da América, não houve, para o comércio da Europa, produto agrícola mais importante que o açúcar cultivado nestas terras. Ergueram-se os canaviais no litoral úmido e quente do Nordeste do Brasil; posteriormente, também as ilhas do Caribe - Barbados, Jamaica, Haiti, Guadalupe, Cuba, Dominicana, Porto Rico -, Veracruz e a costa peruana foram sucessivos cenários propícios para a exploração, em grande escala, do “ouro branco”. Imensas legiões de escravos vieram da África para proporcionar, ao rei açúcar, a força de trabalho numerosa e gratuita que exigia: combustível humano para queimar. As terras foram devastadas por esta planta egoísta, que invadiu o Novo Mundo arrasando as matas, desgastando a fertilidade natural e exigindo o húmus acumulado pelos solos. O longo ciclo do açúcar deu origem, na Amé- rica Latina, a prosperidades tão mortais como as que engendraram, em Potosí, Ouro Preto, Zacatecas e Guanajuato, os furores da prata e do ouro; ao mesmo tempo, impulsionou com força decisiva, direta ou indiretamente, o desenvolvimento industrial da Holanda, França, Inglaterra e Estados Unidos. A plantação nascida da demanda de açúcar no ultramar era uma empresa movida pela ânsia de lucro de seu proprietário e posta ao serviço do mercado que a Europa ia articulando internacionalmente. Por sua estrutura interna, entretanto, levando em conta que em boa parte se bastava a si mesma, alguns de seus traços predominantes eram feudais. Utilizava, por outro lado, mão-de-obra escrava. Três idades históricas distintas - mercantilismo, feudalismo, escravidão - combinavam-se assim numa só idade econômica e social, porém era o mercado internacional que estava no centro da constelação de poder, integrado desde cedo pelo sistema de plantações. Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos gargalos da garrafa que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e 1. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, La Habana, 1963. 2. Caio Prado Júnior, Historia económica del Brasil, Buenos Aires, 1960. 45 distância do solo7. O Nordeste brasileiro é, na atualidade, uma das regiões mais subdesenvolvidas do hemisfério ocidental8. Gigantesco campo de concentração para trinta milhões de pessoas, padece hoje a herança da monocultura do açúcar. De suas terras nasceu o negócio mais lucrativo da economia agrícola colonial na América Latina. Atualmente, menos da quinta parte da zona úmida de Pernambuco está dedicada à cultura da cana-de-açúcar, e o resto não se usa para nada9: os donos dos grandes engenhos centrais, que são os maiores plantadores de cana, dão-se a este luxo do desperdício, mantendo improdutivos seus vastos latifúndios. Não é nas zonas áridas e semi-áridas do interior nordestino onde as pessoas comem pior, como equivocada- mente se crê. O sertão, deserto de pedra e arbustos ralos, vegetação escassa, padece fomes periódicas: o sol inclemente da seca abate-se sobre a terra e a reduz a uma paisagem lunar; obriga aos homens o êxodo e semeia cruzes às margens dos caminhos. Porém é no litoral úmido onde se padece a fome endêmica. Ali onde mais opulenta é a opulência, mais miserável se forma, terra de contradições, a miséria; a região eleita pela natureza para produzir todos os alimentos, nega-os todos: a faixa costeira ainda conhecida, ironia do vocabulário, como zona da mata, em homenagem ao passado remoto e aos míseros vestí- gios da floresta sobrevivente aos séculos do açúcar. O latifúndio açucareiro, estrutura do desperdício, continua obrigado a trazer alimentos de outras zonas, sobretudo da região Centro-Sul do Brasil, a preços crescentes. O custo de vida no Recife é o mais alto do Brasil, muito acima do índice do Rio de Janeiro. O feijão custa mais caro no Nordeste do que em Ipanema. Meio quilo de farinha de mandioca eqüivale ao salário diário de um trabalhador adulto numa plantação de açúcar por sua jornada de sol a sol: se o operário protesta, o capataz manda buscar o carpinteiro para que tire as medidas do corpo, para saber o quanto de madeira será necessário para o caixão. Aos proprietários ou seus administradores con- tinua em vigência, em vastas zonas, o “direito à primeira noite” de cada moça. A terça parte da população de Recife sobrevive marginalizada em palhoças de chão batido; num bairro, Casa Amarela, mais da metade das crianças que nascem morrem antes de chegar ao primeiro ano10. A prostituição infantil, meninas de dez ou doze anos vendidas por seus pais, é freqüente nas cidades do Nordeste. A jornada de trabalho em algumas plantações se paga a preços mais baixos do que a diária mais baixa da índia. Um informe da FA O, Organização das Nações Unidas, assegurava em 1957 que na localidade de Vitória de Santo Antão, perto de Recife, a deficiência de proteínas “provoca nas crianças uma perda de peso 40% mais grave do que se observa geralmente na África”. Em numerosas planta- ções subsistem ainda as prisões privadas, “mas os responsáveis pelos assassinatos por subnutrição - diz René Dumont - não são presos nelas, porque são os que têm a chave”11. Pernambuco produz agora menos da metade do açúcar que produz o Estado de São Paulo, e com rendimentos muito menores por hectare; todavia, Pernambuco vive do açúcar, e dele vivem seus habitantes densamente concentrados na região úmida, enquan- to o Estado de São Paulo contém o centro industrial mais poderoso da América Latina. No 7. Ibid. Um viajante inglês, Henry Koster, atribuía o costume de comer terra ao contato dos meninos brancos com os negrinhos, "que se contagiam com este vicio africano". 8. O Nordeste padece, por várias vias, uma sorte de colonialisino interno em beneficio do Sul industrializado. Dentro do Nordeste, por sua vez, a região do sertão está subordinada à zona açucareira, e a abastece; os latifúndios açucareiros dependem das usinas industrializadoras do produto. A velha instituição do senhor de engenho está em crise; os moinhos centrais devora- ram as plantações. 9. Segundo as investigações do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de Pernambuco, citadas por Kit Sims Taylor em El nordeste brasileño: azúcar y plus-valia, Monthly Review, nº 63, Santiago do Chile, 1969. 1O. Franklin de Oliveira, Revolución y contrarrevolucién en el Brasil, Buenos Aires, 1965 11. René Dumont, Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo, México, 1963. 46 Nordeste nem mesmo o progresso é progressista, porque até o progresso está em mãos de poucos proprietários. O alimento das minorias converte-se em fome das maiorias. A partir de 1870, a indústria açucareira modernizou-se consideravelmente com a criação dos gran- des moinhos centrais, e então “a absorção das terras pelos latifúndios progrediu de modo alarmante, acentuando a miséria alimentícia desta zona”12. Na década de 1950, a indus- trialização em auge incrementou o consumo de açúcar no Brasil. A produção nordestina teve um grande impulso, porém sem o aumento de produtividade por hectare. Incorporam-se novas terras, de qualidade inferior, aos canaviais, e o açúcar novamente devorou as poucas áreas dedicadas à produção de alimentos. Convertido em assalariado, o camponês que antes cultivava sua pequena parcela não melhorou com a nova situação, pois não ganha o suficiente para comprar os alimentos que antes produzia13. Como de costume, a expansão expandiu a fome. EM MARCHA LENTA NAS ILHAS DO CARIBE As Antilhas eram as Sugar Lands, as ilhas do açúcar: sucessivamente incorporadas ao mercado mundial como produtoras de açúcar, ao açúcar Ficaram condenadas, até nossos dias, Barbados as ilhas de Sotavento, Trinidad Tobago, Guadalupe, Porto Rico e República Dominicana. Prisioneiras da monocultura da cana nos latifúndios de vastas terras exaustas, as ilhas sofrem o desemprego e a pobreza: o açúcar é cultivado em grande escala e em grande escala irradia suas maldições. Também Cuba continua dependendo, em medida determinante, de suas vendas de açúcar, mas a partir da reforma agrária de 1959, iniciou-se um intenso processo de diversificação da economia da ilha, o que colocou um ponto final no desemprego: os cubanos não trabalham apenas cinco meses no ano, durante as safras, mas sim doze, ao longo da interrompida e decerto difícil construção de uma nova sociedade. “Pensareis talvez, senhores - dizia Karl Marx em 1848 -, que a produção de café e açúcar é o destino natural das índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que pouco tem a ver com o comércio, não tinha plantado ali nem a árvore do café nem a cana-de- açúcar.”14 A divisão internacional do trabalho não se foi estruturando por obra e graça do Espírito Santo, senão por obra dos homens ou, mais precisamente, por causa do desenvol- vimento internacional do capitalismo. Na realidade, Barbados foi a primeira ilha do Caribe onde se cultivou o açúcar para a exportação em grandes quantidades, desde 1641, embora anteriormente os espanhóis tenham plantado cana na Ilha Dominicana e em Cuba. Foram os holandeses, como vimos, que introduziram as plantações na minúscula ilha britânica; em 1666, já havia em Barbados 800 plantações de açúcar e mais de 800 mil escravos. Vertical e horizontalmente ocupada pelo latifúndio nascente, Barbados não teve melhor sorte do que o Nordeste do Brasil. Antes, a ilha desfrutava da policultura; produzia, em pequenas propriedades, algodão e tabaco, laranjas, vacas e porcos. Os canaviais devoraram as culturas agrícolas e devastaram as densas matas em nome do efêmero apogeu. Rapidamente, a ilha descobriu que seus solos haviam-se esgotado, que não tinha como alimentar sua população e que estava produzindo açúcar a preços fora de concorrência15. O açúcar propagou-se a outras ilhas, em direção ao arquipélago de Sotavento, rumo à Jamaica e, em terras continentais, às Guianas. No começo do século XVIII, os escravos 12. Josué de Castro, op. cit. 13. Celso Furtado, Dialética do desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1964. 14. Karl Marx, Discurso sobre el libre cambio, em Miseria de la filosofla, Moscou, s.d. 15. Vincent T. Harlow, A History of Barbados, Oxford, 1926. 47 eram, na Jamaica, dez vezes mais numerosos do que os colonos brancos. Também seu solo cansou-se em pouco tempo. Na segunda metade do século, o melhor açúcar do mundo brotava do solo esponjoso das planuras da costa do Haiti, um colônia francesa que nessa época se chamava Saint Domingue. Ao norte e a oeste, Haiti converteu-se em sorvedouro de escravos: o açúcar exigia cada vez mais braços. Em 1786, chegaram à colônia 27 mil escravos, e no ano seguinte 40 mil. No outono de 1791, explodiu a revolução. Num só mês, setembro, duzentas plantações de cana foram tomadas pelas chamas; os incêndios e os combates sucederam-se sem trégua à medida que os escravos insurretos iam empurrando os exércitos franceses até o oceano. Os barcos zarparam carregando cada vez mais france- ses e cada vez menos açúcar. A guerra derramou rios de sangue e devastou as plantações. Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado; em fins do século a produção caiu vertical- mente. “Em novembro de 1803 quase toda a colônia antigamente florescente, era um grande cemitério de cinzas e escombros”, diz Lepkowski16. A revolução haitiana tinha coincidido, e não só no tempo, com a revolução francesa, e Haiti sofreu também, na própria carne, o bloqueio contra a França da coalizão internacional: a Inglaterra dominava os mares. Porém logo sofreu, à medida que sua independência ia-se fazendo inevitável, o bloqueio da França. Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados Unidos proibiu o comércio com Haiti, em 1806. Logo em 1825, a França reconheceu a independência de sua antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca indenização em dinheiro. Em 1802, pouco depois de Toussaint-Louverture caudilho dos exércitos escravos ser preso, o general Leclerc escreveu a seu cunhado Napoleão: “Eis minha opinião sobre o país: há que supri- mir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando-se somente as crianças menores de doze anos, exterminar a metade dos negros nas planícies e não deixar na colônia nem um só negro que use jarreteiras”17. O trópico vingou-se de Leclerc, pois morreu “agarrado pelo vômito negro” apesar das esconjurações mágicas de Paulina Bonapart18 sem poder cumprir seu plano, porém a indenização em dinheiro tornou-se uma pedra esmagadora sobre as cosas dos haitianos independentes que haviam sobrevi- vido aos banhos de sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra eles. O país nasceu em ruínas e não se recuperou jamais: hoje é o mais pobre da América Latina. A crise do Haiti provocou o auge açucareiro de Cuba, que rapidamente converteu-se na primeira supridora do mundo. Também a produção cubana de café, outro artigo de intensa demanda no ultramar, recebeu seu impulso da queda de produção haitiana, porém, o açúcar ganhou a corrida da monocultura: em 1862 Cuba viu-se obrigada a impor- tar café do estrangeiro. Um membro direto da “sacarocracia” cubana chegou a escrever sobre as “profundas vantagens que se podem tirar da desgraça alheia”19. À rebelião haitia- na sucederam os preços mais fabulosos da história do açúcar no mercado europeu, e em 1806 Cuba já tinha duplicado, ao mesmo tempo, os engenhos e a produtividade. CASTELOS DE AÇÚCAR SOBRE OS SOLOS QUEIMADOS DE CUBA Os ingleses haviam-se apoderado fugazmente de Havana em 1762. Nesta época, as pequenas plantações de tabaco e a pecuária eram as bases da economia rural da ilha; Havana, praça forte militar, mostrava um considerável desenvolvimento nos artesanatos, 16. Tadeusz Lepkowski, Haiti, tomo I, La Habana, 1968. 17. Ibid. 18. Há um romance esplêndido de Alejo Carpetier, O reino deste mundo, sobre este alucinante período da vida do Haiti. Contém uma recriação perfeita das andanças de Paulina e seu marido pelo Caribe. 19. Manuel Moreno Fraginals, El ingenio, Havana, 1964. 50 nesse tempo “dificilmente se igualou a qualquer país”25. O desastre de 1921 fora provoca- do pela queda do preço do açúcar no mercado dos Estados Unidos, e dos Estados Unidos não demorou a chegar um crédito de 50 milhões de dólares: nas ancas do crédito, chegou também o general Crowder; sob pretexto de controlar a utilização dos fundos, Crowder governaria, de fato, o país. Graças a seus bons ofícios, a ditadura Machado chega ao poder em 1924; com Cuba, paralisada pela greve geral, a grande depressão dos anos trinta leva adiante este regime de sangue e fogo. O que ocorria com os preços, repetia-se com os volumes das exportações. Desde 1948, Cuba recuperou sua quota para cobrir a terça parte do mercado norte-americano de açúcar, a preços inferiores aos que recebiam os produtores dos Estados Unidos, porém mais altos e mais estáveis do que os do mercado internacional. Já anteriormente os Esta- dos Unidos haviam retirado as taxações das importações de açúcar cubano em troca de privilégios similares, concedidos à entrada de artigos norte-americanos em Cuba. Todos estes favores consolidaram a dependência. “O povo que compra manda, o povo que vende serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade; o povo que quer morrer vende a um só povo, e o que quer salvar-se vende a mais de um”, havia dito Martí e repetiu Che Guevara na conferência da OEA, em Punta del Este, em 1961. A produção era arbitrariamente limitada pelas necessidades de Washington. O nível de 1925, uns cincos milhões de toneladas, continuava sendo a média dos anos cinqüenta: o ditador Fulgencio Batista assaltou o poder, em 1952, montado na maior safra até então conhecida, mais de sete milhões de toneladas, com a missão de apertar as cravelhas, e no ano seguinte, obediente à demanda do norte, a produção caiu para quatro26. A REVOLUÇÃO ANTE A ESTRUTURA DA IMPOTÊNCIA A proximidade geográfica e o surgimento do açúcar de beterraba, aparecido durante as guerras napoleônicas, nos campos da França e Alemanha, converteram os Estados Unidos em principal cliente das Antilhas. Já em 1850, os Estados Unidos dominavam a terça parte do comércio de Cuba, vendiam e compravam mais do que Espanha, embora a ilha fosse uma colônia espanhola, e a bandeira das listras e estrelas ondulava nos mastros da metade dos navios que ali chegavam. Um viajante espanhol encontrou por volta de 1859, no interior, em remotas aldeias cubanas, máquinas de costurar fabricadas nos Esta- dos Unidos27. As principais ruas de Havana foram calçadas com blocos de granito de Boston. Quando despontava o século XX, se lia no Louisiana Planter: Pouco a pouco, a ilha de Cuba vai passando para mãos de cidadãos norte-americanos, o que é o meio mais simples e seguro de conseguir a anexação aos Estados Unidos.” No Senado norte-americano, se falava já de uma nova estrela na bandeira; derrotada a Espanha, o general Leonard Wood governava a ilha. Ao mesmo tempo, passavam às mãos norte-americanas as Filipinas e Porto Rico28. “Outorgaram-nos pela guerra - dizia o presidente Mckinley incluindo Cuba -, 25. Celso Furtado, La economia latinoamericana..., op. cit. 26. O diretor do programa de açúcar no Ministério de Agricultura dos Estados Unidos declarou tempos depois da Revolução: "Desde que Cuba saiu de cena, nós não contamos com a proteção deste país, o maior exportador mundial, já que dispunha sempre de reservas para atender, quando era preciso, nosso mercado." Enrique Ruiz García, América Latina: anatomia de una revolución, Madri, 1966. 27. Leland H. Jenks, Nuestra colonia de Cuba, Buenos Aires, 1960. 28. Porto Rico, outra feitoria açucareira, caiu prisioneiro. Do ponto de vista norte-americano, os porto-riquenhos não são suficientemente bons para viverem numa pátria própria, mas em 51 e com a ajuda de Deus e em nome do progresso da humanidade e da civilização, é nosso dever responder a esta grande confiança.” Em 1902, Tomás Estrada Palma teve de renun- ciar à cidadania norte-americana que havia adotado no exílio: as tropas norte-americanas de ocupação o converteram no primeiro presidente de Cuba. Em 1960, o embaixador norte-americano em Cuba, Earl Smith, declara diante de uma subcomissão do Senado: “Até a chegada de Castro ao poder, os Estados Unidos tinham em Cuba uma influência de tal maneira irresistível que o embaixador norte-americano era a segunda personalidade do país, e às vezes ainda mais importante do que o presidente cubano.” Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo seu açúcar nos Estados Unidos. Cinco anos antes, um jovem advogado havia profetizado corretamente, ante aqueles que o julgavam pelo assalto ao quartel Moncada, que a história o absolveria: havia dito em sua vibrante defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria de matéria-prima. Exporta-se açúcar para importar caramelos...”29 Cuba comprava nos Estados Unidos não só automóveis e máquinas, produtos químicos, papel e roupa, mas também arroz e feijão, alhos e cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami, pães de Atlanta e até jantares de luxo de Paris. O país do açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia, embora só a terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente, e a metade das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as empresas não produ- ziam nada30. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47% da área açucareira total e ganhavam por volta de 180 milhões de dólares em cada safra. A riqueza do subsolo - níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio - formava parte das reser- vas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas apenas exploravam os minerais de acordo com as variáveis exigências do exército e da indústria do norte. Havia em Cuba, em 1958, mais prostitutas registradas do que operários mineiros31. Um milhão e meio de cubanos sofria o desemprego total ou parcial, segundo as investigações de Seuret y Pino que cita Nuñez Jiménez. A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O poder de compra das exporta- ções cubanas entre 1952 e 1956 não superava o nível de 30 anos atrás32, embora as neces- sidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos 30, quando a crise consolidou a depen- dência da economia cubana em lugar de contribuir para rompê-la, havia-se chegado ao compensação são bons para morrerem na frente do Vietnã, em nome de uma pátria que não é deles. Num cálculo proporcional à população, o "Estado livre associado" de Porto Rico tem mais soldados que lutaram no sudeste asiático do que os restantes dos Estados Unidos. Aos porto- riquenhos que resistem ao serviço militar obrigatório no Vietnã se agregam outras humilhações herdadas da invasão de 1898, além de cinco anos de prisão nos cárceres de Atlanta, e esta humilhações são benzidas por lei (por lei do Congresso dos Esta-dos Unidos). Porto Rico conta com uma representação simbólica no Congresso norte-americano, sem voto e praticamente sem voz. Em troca deste direito, um estatuto colonial: Porto Rico tinha, até a ocupação norte- americana, uma moeda própria e mantinha um comércio próspero com os principais mercados. Hoje, a moeda é dólar e as taxas alfandegárias são fixadas em Washington, que decide tudo sobre o comércio exterior e interno da ilha. O mesmo ocorre com as relações exteriores, com os transportes, com as comunicações, com os salários e com as condições de trabalho. É a Suprema Corte dos Estados Unidos a que julga os porto-riquenhos; o exército local integra o exército do norte. A indústria e o comércio estão em mãos dos interesses privados norte-americanos. A desnacionalização quis se fazer absoluta pela via da emigração: a miséria empurrou a mais de um milhão de porto-riquenhos a buscarem melhor sorte em Nova Iorque, ao preço da perda de sua identidade nacional. Ali, formam um subproletariado que se aglomera nos bairros mais sórdidos. 29. Fidel Castro, La Revolución cubana (discursos), Buenos Aires, 1959. 30. A. Nuñez Jiménez, Geografia de Cuba, Havana, 1959. 31. René Dumont, op. cit. 32. Dudley Scees, Andrés Bianchi, Richard Jolly e Max Nolff, Cuba, the Economic and Social Revolution, Chapel Hill, Carolina do Norte, 1964. 52 cúmulo de desmontar fábricas recém instaladas para vendê-las a outros países. Quando a Revolução triunfou, no primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba era muito pobre e lento, mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as poucas fábricas com tecnologia moderna eram teledirigidas dos Estados Unidos. Um economista cubano, Regino Boti, co-autor das teses econômicas dos guerrilheiros da serra, cita o exemplo de uma filial da Nestlé que produzia leite concentrado em Bayamo: “Em caso de acidente, o técnico telefonava a Connecticut e observava que em seu setor alguma coisa não funcionava. Recebia em seguida instruções sobre as medidas a tomar e as executava mecanicamente... Se a operação falhasse, quatro horas mais tarde chegava um avião transportando uma equipe de especialistas de alta qualificação que consertavam tudo. Depois da nacionalização, já não se podia telefonar para pedir socorro e os raros técnicos que poderiam reparar os defeitos secundários haviam partido”33. O testemunho ilustra cabalmente as dificuldades que a Revolução encontrou desde que se lançou à aventura de converter a colônia em pátria. Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da dependência e não foi fácil andar por conta própria. A metade das crianças cubanas não ia à escola em 1958, porém a ignorância era, como denunciara Fidel Castro tantas vezes, muito mais vasta e muito mais grave do que o analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um exército de jovens volun- tários para ensinar ler e escrever a todos os cubanos e os resultados assombraram o mun- do: Cuba ostenta atualmente, segundo o Escritório Internacional de Educação da UNESCO, a menor porcentagem de analfabetos é a maior porcentagem de população escolar, primá- ria e secundária, da América Latina. Todavia, a herança maldita da ignorância não se supera da noite para o dia - nem em 20 anos. A falta de quadros técnicos eficazes, a incompetência da administração e da desorganização do aparato produtivo, o burocrático temor à imaginação criadora e à liberdade de decisão, continuam interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas apesar de todo o sistema de impotências, forjado pelos quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está renascendo, com um incessante entusiasmo: mede suas forças, alegria e desmesura, ante os obstáculos. O AÇÚCAR ERA O PUNHAL E O IMPÉRIO O ASSASSINO “Edificar sobre o açúcar é melhor do que edificar sobre a areia?”, perguntava-se Jean-Paul Sartre em 1960, em Cuba. No cais do porto de Guayabal, que exporta açúcar a granel, voam os alcatrazes sobre um galpão gigantesco. Entro e contemplo, atônito, uma pirâmide dourada de açúcar. À medida que as comportas se abrem, por baixo, para que as canaletas conduzam o carrega- mento, sem ensacar, até os navios, a rachadura do teto vai deixando cair novos jorros de ouro, açúcar recém-transportado dos moinhos dos engenhos. A luz do sol filtra-se e lhes arranca faíscas. Vale uns quatro milhões de dólares esta montanha macia que apalpo, e meu olhar não dá para enquadrá-la inteira. Penso que aqui se resume todo o drama e euforia da safra de 1970 que quis, mas não pôde, apesar do esforço sobre-humano, alcan- çar as dez milhões de toneladas. E uma história muito mais longa resvala, com o açúcar, ante o olhar. Penso no reino da Francisco Sugar Co., a empresa de Allen Dulles, onde passei uma semana escutando as histórias do passado e assistindo ao nascimento do futuro: Josefina, filha de Claridad Rodríguez, que estuda numa sala onde seu pai foi preso e torturado antes de morrer; Antonio Bastidas, o negro de setenta anos que uma madruga- da deste ano pendurou-se com ambos os punhos na alavanca da sirena porque o engenho 33. K. S. Karol, Les guérrilleros au pouvoir, L'itinéraire politique de la révolution cubaine. Paris, 1970. 55 padecem os demais países latino-americanos. No mesmo sentido, operam os gastos com a defesa. A Revolução é obrigada a dormir com os olhos abertos, e isto também custa, em termos econômicos, muito caro. Esta Revolução acossada, que teve de suportar invasões e sabotagens sem trégua, não cai porque - estranha ditadura! - defende-a o povo em armas. Os expropriadores expropria- dos não se conformam. Em abril de 1961, a brigada que desembarcou em Playa Girón não estava formada somente pelos velhos militares e policiais de Batista, mas também pelos donos de mais de 370 mil hectares de terra, quase dez mil imóveis, setenta fábricas, dez centrais açucareiras, três bancos, cinco minas e doze cabarés. O ditador da Guatemala, Miguel Ydígoras, cedeu campos de treinamento aos expedicionários em troca de pro- messas que os norte-americanos formularam, segundo ele mesmo confessou mais tarde: dinheiro sonante e cantante, que nunca lhe pagaram, e um aumento da quota guatemalteca de açúcar no mercado dos Estados Unidos. Em 1965, outro país açucareiro, a República Dominicana, sofreu a invasão de uns 40 mil marines dispostos a permanecerem “indefinidamente neste país, em vista da confusão reinante”, segundo declarou seu comandante, o general-Bruce Palmer. A queda vertical dos preços do açúcar foi um dos fatores que fizeram explodir a indignação popular; o povo levantou-se contra a ditadura militar e as tropas norte-americanas não demoraram em restabelecer a ordem. Deixaram quatro mil mortos nos combates que os patriotas sustentaram, corpo a corpo, entre rio Ozama e o Caribe, num bairro encurralado na cidade de Santo Domingo36. A Organização dos Estados Americanos - que tem a memória da mula, pois não esquece nunca onde come - benzeu a invasão e a estimulou com novas forças. Era preciso matar o germe de outra Cuba. GRAÇAS AO SACRIFÍCIO DOS ESCRAVOS NO CARIBE, NASCERAM A MÁQUINA DE JAMES WATT E OS CANHÕES DE WASHINGTON Che Guevara dizia que o subdesenvolvimento é um anão de cabeça enorme e barriga inchada: suas pernas débeis e seus braços curtos não se harmonizam com o resto do corpo. Havana resplandecia, zuniam os cadilaques por suas avenidas de luxo; no maior cabaré do mundo, ao ritmo de Lecuona, ondulavam as vedetes mais lindas; enquanto isso, no campo cubano, só um entre dez operários agrícolas bebia leite, apenas 4% consumia carne e, segundo o Conselho Nacional de Economia, as três quartas partes dos trabalhado- res rurais ganhavam salários que eram três ou quatro vezes inferiores ao custo de vida. Porém, açúcar não só produziu anãos. Também produziu gigantes, ou pelo menos contribuiu intensamente para o desenvolvimento de gigantes. O açúcar do trópico latino-americano deu um grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento in- dustrial da Inglaterra, França, Holanda e, também, dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que 36. Ellsworth Bunker, presidente da National Sugar Refining Co., foi o enviado especial de Lyndon Johnson à ilha Dominicana depois da intervenção militar. Os interesses da National Sugar neste pequeno país foram salvaguardados sob o olhar atento de Bunker: as tropas de ocupação se retiraram para deixar no poder, ao fim de eleições muito democráticas, Joaquim Balaguer, que fora o braço-direito de Trujillo ao longo da sua feroz ditadura. A população de São Domingos havia lutado nas ruas e nos terraços com pedaços de pau, machetes e fuzis, contra os tanques, basucas e helicópteros das forças estrangeiras, reivindicando a volta ao poder do presi- dente constitucionalmente eleito, Juan Bosch, derrubado por um golpe militar. A História, burladora, joga com profecias. No dia em que Juan Bosch assumiu sua breve presidência, ao fim de trinta anos de tirania de Trujillo, Lyndon Johnson, na época vice-presidente dos Estados Unidos, levou a São Domingos o presente oficial de seu governo: uma ambulância. 56 mutilou a economia do Nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar. “A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia, de política e também de moral,” dizia Augusto Cochin. As tribos da África Ocidental viviam lutando entre si, para aumentar, com prisionei- ros de guerra, suas reservas de escravos. Pertenciam aos domínios coloniais de Portugal, porém os portugueses não tinham naves nem artigos industriais para oferecer na época do auge do tráfico de negros, e se converteram em meros intermediários entre capitães negreiros e os régulos africanos. A Inglaterra foi, enquanto lhe era conveniente, a grande campeã da compra e venda de carne humana. Os holandeses tinham, contudo, maior tradição no negócio, porque Carlos V lhes havia presenteado o monopólio de transportes de negros para a América, tempos antes de a Inglaterra obter o direito de introduzir escravos em colônias alheias. Em relação à França, Luís XIV, o Rei Sol, compartia com o rei da Espanha a metade dos lucros da Companhia da Guiné, formada em 1701 para o tráfico rumo à América, e seu ministro Colbert, artífice da industrialização francesa, tinha motivos para afirmar que o comércio de negros “era recomendável para o progresso da marinha mercante nacional”37. Adam Smith dizia que o descobrimento da América tinha “elevado o sistema mercantil a um grau de esplendor e glória, que de outro modo não seria alcançado jamais”. Segundo Sergio Bagú, o mais formidável motor de acumulação do capital mercantil euro- peu foi a escravatura americana; por sua vez, esse capital tornou-se a “pedra fundamental sobre a qual se construiu o gigantesco capital industrial dos tempos contemporâneos”38. A ressurreição da escravatura greco-romana no Novo Mundo teve propriedades milagrosas: multiplicou as naves, as fábricas, as ferrovias e os bancos de países que não estavam na origem nem, com exceção dos Estados Unidos, no destino dos escravos que cruzavam o Atlântico. Entre os albores do século XVI e a agonia do século XIX, vários milhões de africanos, não se sabe quantos, atravessaram o oceano; sabe-se, sim, que foram muito mais que os imigrantes brancos, provenientes da Europa, embora, está claro, muito menos sobreviveram. Do Potomac ao rio da Prata, os escravos edificaram a casa de seus amos, abriram as matas, cortaram e moeram cana-de-açúcar, plantaram algodão, cultivaram o cacau, colheram o café e o tabaco, afogaram se nos socavãos mineiros. A quantas Hiroximas eqüivaleram seus extermínios sucessivos? Como dizia um plantador inglês de Jamaica , - “os negros, é mais fácil comprá-los do que criá-los”. Caio Prado Júnior calcula que até o princípio do século XIX havia chegado ao Brasil entre cinco a seis milhões de africanos; por esta época, Cuba já era um mercado de escravos tão grande como o havia sido, antes, todo o hemisfério ocidental39. Por volta de 1562, o capitão John Hawkins tinha arrancado 300 negros de contra- bando da Guiné portuguesa. A rainha Elizabete ficou furiosa: “Esta aventura - sentenciou - clama vingança do céu.” Porém, Hawkins contou-lhe que no Caribe havia obtido, em troca dos escravos, um carregamento de açúcar e peles, pérolas e gengibre. A rainha perdoou o pirata e converteu-se em sócia comercial dele. Um século depois, o duque de York marcava a ferro quente suas iniciais, DY, sobre a nádega esquerda ou o peito dos três mil negros que sua empresa conduzia anualmente para “as ilhas do açúcar”. A Real Companhia Africana, entre cujos acionistas figurava o rei Carlos II, dava 300% de dividen- dos, apesar de que, dos 70 mil escravos que embarcaram entre 1680 e 1688, só 46 mil sobrevivessem à travessia. Durante a viagem, numerosos africanos morriam vítimas de 37. L. Capitan e Henri Lorin, El trabajo en America, antes y después de Cólon, Buenos Aires, 1948. 38. Sergio Bagú, op. cit. 39. Daniel P. Mannix e M. Cowley, Historia de la trata de negros, Madri, 1962. 57 epidemias ou desnutrição, ou se suicidavam negando-se a comer, enforcando-se com suas correntes ou lançando-se pela borda ao oceano eriçado por barbatanas de tubarões. Lenta, porém firmemente, a Inglaterra ia quebrando a hegemonia holandesa no tráfico negreiro. A South Sea Company foi a principal usufrutuária do “direito de asiento” concedido aos ingleses pela Espanha, e nela estavam envolvidos os mais proeminentes personagens da política e das finanças britânicas: o negócio, brilhante como nenhum outro, enlouqueceu a bolsa de valores de Londres e deflagrou uma especulação legendária. O transporte de escravos elevou Bristol, sede dos estaleiros, à categoria de segunda cidade da Inglaterra, e converteu Liverpool no maior porto do mundo. Partiam os navios com seus porões carregados de armas, tecidos e rum abençoados, quinquilharias e vidros de cores, que seriam o meio de pagamento em troca da mercadoria humana da África. Os ingleses impunham seu reinado sobre os mares. Em fins do século XVIII, África e o Caribe davam trabalho a 180 mil operários têxteis em Manchester; de Sheffield vinham os pu- nhais e de Birmingham, 150 mil mosquetões por ano40. Os caciques africanos recebiam as mercadorias da indústria britânica e entregavam os carregamentos de escravos aos capi- tães negreiros. Dispunham, assim, de novas armas e abundante aguardente para empre- ender as próximas caçadas nas aldeias. Também proporcionavam marfins, ceras e azeite de palmeira. Muitos dos escravos provinham da selva e nunca tinham visto o mar; confun- diam os rugidos do oceano com os de alguns monstros submergidos que os esperavam para devorá-los ou, segundo o testemunho de um traficante da época, acreditavam, e de certo modo não se equivocavam, que “iam ser levados como carneiros ao matadouro, sendo sua carne muito apreciada pelos europeus.”41 De muito pouco serviam os chicotes de sete pontas para conter o desespero suicida dos africanos. Os “fardos” que sobreviviam à fome, às doenças e ao amontoamento da travessia, eram recebidos em farrapos, pura pele e ossos, na praça pública, depois de desfilarem pelas ruas coloniais ao som das gaitas. Os que chegavam ao Caribe demasiado exaustos podia-se engordá-los nos depósitos antes de exibi-los aos olhos dos compradores; os enfer- mos deixava-se morrer nos cais. Os escravos eram vendidos em troca de dinheiro em espécie ou promissórias de três anos de prazo. Os barcos zarpavam de regresso a Liverpool levando diversos produtos tropicais: em princípios do século XVIII, as três quartas partes do algodão fiado pela indústria têxtil inglesa provinham das Antilhas, embora logo Georgia e Louisiania se tornassem as principais fontes de abastecimento; em meados do século, havia 120 refinarias de açúcar na Inglaterra. Um inglês podia viver, naquela época, com seis libras por ano; os mercadores de escravos de Liverpool somavam lucros anuais de mais de 1.100 mil libras, contando exclu- sivamente o dinheiro obtido no Caribe e sem agregar os benefícios do comércio adicional. Dez grandes empresas controlavam um novo sistema de molhes; cada vez se construíam mais navios, maiores e de maior calado. Os ourives ofereciam “brincos e colares de prata para negros e cachorros”, as damas elegantes mostravam-se em público acompanhadas de um macaco vestido de colete bordado e um menino escravo, com turbante e bombachas de seda. Um economista escreveu por esta época: o comércio de escravos é “o princípio básico e fundamental de todo o resto; como o principal impulso da máquina que põe em movimento cada roda da engrenagem”. Os bancos se propagam em Liverpool e Manchester, Bristol, Londres e Glasgow; a empresa de seguros Lloyd’s acumulava lucros segurando escravos, navios e plantações. Desde muito cedo, os anúncios da London Gazette indicavam que os escravos fugidos deviam ser devolvidos ao Lloyd’s. Com fundos do comércio negro construiu-se a grande ferrovia inglesa do oeste e nasceram indústrias, como as fábricas de louças de Gales. O capital acumulado no comércio triangular - manufaturas, escravos, açúcar - 40. Eric Williams, Capitalism and slavery, Chapel Hill, Carolina do Norte, 1944. 41. Daniel P. Mannix e M. Cowley, op. cit. 60 exército conhecido até muito depois da independência do Brasil. Nada menos de dez mil pessoas defenderam a última fortaleza de Palmares; os sobreviventes foram degolados, lançados pelos precipícios ou vendidos aos mercadores do Rio ou de Buenos Aires. Dois anos depois, o chefe Zumbi, a quem os escravos consideravam imortal, não pôde escapar à traição. Encurralaram-no na selva e cortaram-lhe a cabeça. Porém as rebeliões conti- nuaram. Não passaria muito tempo para que o capitão Bartolorneu Bueno do Prado regressasse do rio das Mortes com seus troféus da vitória contra uma nova sublevação de escravos. Trazia três mil e novecentos pares de orelhas nos alforjes dos cavalos. Também em Cuba teriam lugar as sublevações. Alguns escravos suicidavam-se em grupo; enganavam ao amo “com sua greve eterna e sua inacabável cisma pelo outro mundo”, diz Fernando Ortiz. Acreditavam que assim ressuscitavam, carne e espírito, na África. Os amos multilavam os cadáveres, para que ressuscitassem castrados, manetas ou decapitados; deste modo conseguiram que muitos renunciassem à idéia de se matar. Lá por 1870, segundo recente versão de um escravo que na juventude tinha fugido para as montanhas de Las Villas, os negros já não se suicidavam em Cuba. Mediante um cinturão mágico, “iam embora voando, voavam para o céu e escapavam para sua terra”, ou se perdiam na serra porque “qualquer um se cansava de viver. Os que se acostumavam tinham o espírito frouxo. A vida no morro era mais saudável”49. Os deuses africanos continuavam vivos entre os escravos da América, como vivas continuavam, alimentadas pela nostalgia, as lendas e os mitos das pátrias perdidas. Pare- ce evidente que os negros expressavam assim, em suas cerimônias, em suas danças, em seus conjuros, a necessidade de afirmação de uma identidade cultural que o cristianismo negava. Mas também deve ter influído o fato de a Igreja estar materialmente associada ao sistema de exploração que sofriam. No começo do século XVIII, enquanto nas ilhas ingle- sas os escravos acusados de crimes morriam esmagados entre os tambores dos trapiches de açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou submetidos ao suplício da roda, o jesuíta Antonil formulava doces recomendações aos donos de engenhos no Brasil, para evitar semelhantes excessos: “Aos administradores não se lhes deve consentir de nenhuma maneira dar pontapés principalmente na barriga das mulheres que andam grávidas nem pauladas nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes e podem ferir a cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”50. Em Cuba, os capatazes descarregavam seus chicotes de couro ou cânhamo sobre as costas das escravas grávidas que houvessem cometido qualquer falta, porém não sem antes deitá-las de boca para baixo, com o ventre num pequeno buraco, para não estropiar a “peça”; os sacerdotes, que recebiam como dizimo 5% da produção de açúcar, davam sua cristã absolvição: o capataz castigava como Jesus Cristo aos pecadores. O missionário apostólico Juan Perpinã y Pibernat publicava seus sermões aos negros. “Pobrezinhos! Não vos assusteis por muito que sejam as penalidades que tenhais que sofrer como escravos. Escravo pode ser o vosso corpo: porém tendes a alma para voar um dia à feliz mansão dos escolhidos”51. O deus dos párias não é sempre o mesmo deus do sistema que os faz párias. Embora a religião católica abarque, pela informação oficial, 94% da população do Brasil, na realida- de a população negra conserva vivas suas tradições africanas e perpetuamente viva sua fé 49. Esteban Monteio tinha mais de um século de idade quando contou sua história a Miguel Barnet (Biografia de um cimarrón, Buenos Aires, 1968, México, 1971). 50. Roberto C. Simonsen, História econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962. 51. Manuel Moreno Fraginals, op. cit. Uma quinta-feira santa, o conde de casa Bayona decidiu humilhar-se ante seus escravos. Inflamado de fervor cristão, Iavou os pés de doze negros e os sentou para comer, com ele, em sua mesa. Foi a última ceia propriamente dita. No dia seguinte, os escravos se sublevaram, e tocaram fogo no engenho. Suas cabeças foram cravadas sobre doze lanças, no centro do pátio. 61 religiosa, freqüentemente camuflada por trás das figuras sagradas do cristianismo.52 Os cultos de raiz africana encontram ampla projeção entre os oprimidos - qualquer que seja a cor de sua pele. A mesma coisa ocorre nas Antilhas. As divindades do vodu do Haiti, do bembé de Cuba e da umbamda e da quimbanda do Brasil são mais ou menos as mesmas, apesar da maior ou menor transfiguração que sofreram, ao se nacionalizarem em terras da América, os ritos e os deuses originais. No Caribe e na Bahia, entoam-se cânticos cerimo- niais em nagô, yorubá, congo e outras línguas africanas. Nos subúrbios das grandes cida- des do sul do Brasil, em compensação, predomina a língua portuguesa, porém nasceram da costa do oeste africano as divindades do bem e do mal que atravessaram os séculos para se transformarem nos fantasmas vingadores dos marginais, a pobre gente humilha- da que clama nas favelas do Rio de Janeiro: Força baiana, força africana, força divina, vem cá. Vem ajudá A VENDA DE CAMPONESES Em 1888, aboliu-se a escravidão no Brasil. Porém não se aboliu o latifúndio e neste mesmo ano uma testemunha escrevia do Ceará: “O mercado de gado humano esteve aberto enquanto durou a fome, pois compradores nunca faltaram. Raro era o vapor que não conduzisse grande número de cearenses”53. Meio milhão de nordestinos emigraram para a Amazônia, magnetizados pelas miragens da borracha, até o fim do século; desde então, o êxodo continuou, ao impulso de periódicas secas que assolaram o sertão e das sucessivas marés da expansão dos latifúndios açucareiros dá Zona da Mata. Em 1900, 40 mil vítimas da seca abandonaram o Ceará. Tomavam o caminho habitual por esta época: a rota do norte rumo à selva. Depois, o itinerário mudou. Em nossos dias, os nordestinos emigram rumo ao Centro e ao Sul do Brasil. A seca de 1970 lançou multidões famintas sobre as cidades do Nordeste. Saquearam trens e lojas; aos berros imploravam chuva a São José. Os flagelados lançaram-se na estrada. Um telegrama de abril de 1970 informa: “A polícia do Estado de Pernambuco deteve no último domingo, no município de Belém do São Francisco, 210 camponeses que iam ser vendidos aos proprietários rurais do Estado de Minas Gerais a 18 dólares por cabeça54. Os camponeses eram provenientes da Paraíba e Rio Grande do Norte, dos estados mais castigados pela seca. Em junho, os teletipos trans- mitem as declarações do chefe da Polícia Federal: seus serviços não dispõem ainda de meios eficazes para pôr fim ao tráfico de escravos e, embora nos últimos meses tenham sido iniciados dez processos de investigação, continua a venda de trabalhadores do Nor- deste aos proprietários ricos de outras zonas do pais. 52. Eduardo Galeano, Los dioses e los diablos en las favelas de Rio, em Amaru, nº 10, Lima, junho de 1969. 53. Rodolfo Teófilo, História da Seca do Ceará (1877-1880), Rio de Janeiro, 1922. 54. France Presse, 21 de abril de 1970. Em 1938, a peregrinação de um vaqueiro pelos calcinados caminhos do sertão tinha dado origem a um dos melhores romances da história literária do Brasil. O açoite da seca sobre os latifúndios de gado do interior, subordinados aos engenhos de açúcar do litoral, não cessou e tampouco variou suas conseqüências. O mundo de Vidas Secas continua intacto: o papagaio imitava o latido do cachorro, porque seus donos já quase não faziam uso da voz humana. (Graciliano Ramos, Vidas secas, Havana, 1964) 62 O boom da borracha e o auge do café implicaram grandes levas de trabalhadores nordestinos. Mas também o governo faz uso deste caudal de mão-de-obra barata, formi- dável exército de reserva para as grandes obras públicas. Do Nordeste vieram, transporta- dos como gado, os homens nus que da noite para o dia levantaram a cidade de Brasília no centro do deserto. Esta cidade, a mais moderna do mundo, está hoje cercada por um vasto cinturão de miséria: terminado o trabalho, os candangos foram expulsos para as cidades- satélites e, sempre prontos para qualquer serviço, vivem dos desperdícios da resplandescente capital. O trabalho escravo dos nordestinos está abrindo, agora, a grande estrada transamazônica, que cortará o Brasil em dois, penetrando a selva até a fronteira com a Bolívia. O plano implica também um projeto de colonização agrária para ampliar “as fronteiras da civilização”: cada camponês recebe dez hectares de superfície, se sobrevive às febres da floresta tropical. No Nordeste há seis milhões de camponeses sem terras, en- quanto que quinze mil pessoas são donas da metade da superfície total. A reforma agrária não se realiza nas regiões já ocupadas, onde continua sendo sagrado o direito de proprie- dade dos latifundiários, mas em plena selva. Isto significa que os flagelados do Nordeste abrirão caminho para a expansão do latifúndio sobre novas áreas. Sem capital, sem meios de trabalho, que significam dez hectares a dois ou três mil quilômetros de distância dos centros de consumo? Muito diferentes são, deduz-se, os propósitos reais do governo: proporcionar mão-de-obra aos latifundiários norte-americanos, que compraram ou usur- param a metade das terras ao norte do rio Negro, e também à United States Steel Co., que recebeu do governo as enormes jazidas de ferro e manganês da Amazônia.55 O CICLO DA BORRACHA: CARUSO INAUGURA UM TEATRO MONUMENTAL NO MEIO DA SELVA Alguns autores calculam que pelo menos meio milhão de nordestinos sucumbiram às epidemias, ao impaludismo, à tuberculose ou ao beribéri na época do auge da goma. “Este sinistro ossário foi o preço da indústria da borracha.”56. Sem nenhuma reserva de vitaminas, os camponeses das terras secas realizavam a longa viagem para a selva úmida. Ali os aguardava, nos pantanosos seringais, a febre. Iam amontados nos porões dos barcos, em tais condições que muitos sucumbiam antes de chegar; antecipavam, assim, o próxi- mo destino. Outros nem sequer conseguiam embarcar. Em 1878, dos oitocentos mil habi- tantes do Ceará, 120 mil marchavam rumo ao rio Amazonas, porém menos da metade pôde chegar; os restantes foram caindo, abatidos pela fome ou pela doença, nos caminhos do sertão ou nos subúrbios de Fortaleza57. Um anos antes, havia começado uma das sete maiores secas de quantas açoitaram o Nordeste durante o século passado. Não só a febre; também aguardava, na selva, um regime de trabalho bastante pare- cido com a escravidão. O trabalho pagava-se em espécies - carne seca, farinha de mandi- oca, rapadura, aguardente - até que o seringueiro saldasse suas dívidas, milagre que raras vezes ocorria. Havia um acordo entre os empresários para não dar trabalho aos operários que tivessem dívidas pendentes; os guardas rurais, postados nas margens dos rios, dispa- ravam contra os fugitivos. As dívidas somavam-se às dívidas. À dívida original, pelo trans- porte do trabalhador do Nordeste, se agregava a dívida pelos instrumentos de trabalhos, 55. Paulo Schilling, Un nuevo genocidio, em Marcha nº 1501, Montevidéu, 10 dejulho de 1970. Em outubro de 1970, os bispos do Pará denunciaram ante o presidente do Brasil a exploração brutal dos trabalhadores nordestinos por parte das empresas que estão construindo a rodovia Transamazônica. O governo a denomina "obra do século". 56. Aurélio Pinheiro, A margem do Amazonas, São Paulo, 1937. 57. Rodolfo Teófilo, op. cit. 65 tabaco e também algumas minas; porém Gran Cacao foi o nome com que o povo batizou, acertadamente, a oligarquia escravagista de Caracas. À custa do trabalho dos negros, esta oligarquia enriqueceu-se abastecendo de cacau a oligarquia mineira do México e a metró- pole espanhola. Em 1873, inaugurou-se na Venezuela uma idade do café; o café exigia, como o cacau, terras de vertentes ou vales cálidos. Apesar da irrupção do intruso, o cacau continuou, de todos os modos, sua expansão, invadindo os solos úmidos de Carúpano. A Venezuela continuou sendo agrícola, condenada ao calvário das quedas cíclicas dos preços do café e do cacau; ambos produtos sortiam os capitais que tornavam possível a vida parasitária, o puro desperdício de seus donos, seus mercadores e seus usureiros. Até que, em 1922, o país converteu-se de súbito num manancial de petróleo. A partir de então, o petróleo dominou a vida do país. O ouro negro vinha dar razão, com quatro séculos de atraso, às fantasias dos conquistadores espanhóis: procurando sem sorte o rei que se banhava em ouro, eles chegaram à loucura de confundir uma aldeazinha de Maracaibo com Veneza e a fétida costa de Pariá com o paraíso terrestre61. Nas últimas décadas do século XIX, iniciou-se a glutonaria dos europeus e dos norte-americanos ao chocolate. O progresso da indústria deu um grande impulso às plan- tações de cacau do Brasil e estimulou a produção das velhas plantações da Venezuela e do Equador. No Brasil, o cacau fez seu ingresso impetuoso no cenário econômico ao mesmo tempo que a borracha e, como a borracha, deu trabalho aos camponeses do Nordeste. A cidade de Salvador, na Bahia de Todos os Santos, tinha sido uma das mais importantes cidades da América, como capital do Brasil e do açúcar, e ressuscitou então como capital do cacau. Ao sul da Bahia, desde o Recôncavo até o Estado do Espírito Santo, entre as terras baixas do litoral e a cadeia montanhosa da costa, os latifúndios continuam proporcionando, em nossos dias, a matéria-prima de boa parte do chocolate que se consome no mundo. Como a cana-de-açúcar, o cacau trouxe consigo a monocultura e a queimada das matas, a ditadura das cotações internacionais e a penúria sem trégua dos trabalhadores. Os propri- etários das plantações, que vivem nas praias do Rio de Janeiro e são mais comerciantes do que agricultores, proíbem que se destine uma só polegada de terra a outras culturas. Seus administradores costumam pagar salários em espécie - charque, farinha, feijões; quando pagam em dinheiro, o camponês recebe por um dia inteiro de trabalho uma diária que eqüivale a uma garrafa de cerveja e deve trabalhar um dia e meio para poder comprar uma lata de leite em pó. O Brasil desfrutou por um bom tempo dos favores do mercado internacional. Não obstante, encontrou na África sérios competidores. Por volta da década de 20, Gana já havia conquistado o primeiro lugar: os ingleses desenvolveram a plantação de cacau em grande escala, com métodos modernos, neste país que por esta época era colônia e se chamava Costa do Ouro. O Brasil caiu para o segundo lugar, e anos mais tarde para o terceiro, como provedor mundial de cacau. Porém, houve mais de um período em que nada fazia crer que um destino medíocre aguardasse as terras férteis do sul da Bahia. Intocados durante toda a época colonial, os solos multiplicavam os frutos: os peões parti- am as cascas a golpe de facão, juntavam os grãos, carregavam-nos nos carros para que os burros os levassem até os escoadouros, e era preciso cortar cada vez mais matas, abrir novos clarões, conquistar novas terras ao fio do machado e a tiros de fuzil. Nada sabiam os peões dos preços nem dos mercados. Nem sequer sabiam quem governava o Brasil: até pouco tempo ainda se encontravam trabalhadores nas fazendas convencidos de que Dom Pedro II, o imperador, continuava no trono. Os senhores do cacau esfregavam as mãos: eles sim sabiam, ou acreditavam saber. O consumo de cacau aumentava e com ele au- mentavam a cotação e os lucros. O porto de Ilhéus, por onde se embarcava quase todo o cacau, chamava-se “a Rainha do Sul”, e embora definhe hoje, ali ficaram os sólidos 61. Domingo Alberto Rangel, Capital y desarollo, tomo I, La Venezuela agraria, Caracas, 1968. 66 palacetes que os fazendeiros mobiliaram com faustuoso e péssimo gosto. Jorge Amado escreveu vários romances sobre o tema. Assim recria uma etapa de alta de preços: “Ilhéus e a zona do cacau nadaram em ouro, banharam em champanha, dormiram com francesas vindas do Rio de Janeiro. No Trianon, o cabaré mais chique da cidade, o coronel Maneca Dantas acendia charutos com notas de mil réis, repetindo o gesto de todos os fazendeiros ricos do país nas altas anteriores do café, da borracha, do algodão e do açúcar”62. Com a alta de preços, a produção aumentava; depois os preços baixavam. A instabilidade se fez cada vez mais estrepitosa e as terras foram mudando de dono. Começou o tempo dos “milioná- rios mendigos”: os pioneiros das plantações cediam seu sítio aos exportadores, que se apoderavam, executando dívidas, das terras. Em apenas três anos, entre 1959 e 1961, para dar apenas um exemplo, o preço internacional do cacau em amêndoa reduziu-se numa terça parte. Posteriormente, a ten- dência à alta dos preços não foi capaz de abrir, por certo, as portas da esperança; a Cepal prevê vida curta para a curva de ascenso63. Os grandes consumidores de cacau - Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha Federal, Holanda, França - estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produzem, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, dispondo como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados procuram árvores para sob elas dormir e bananas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incri- velmente da França e da Suíça. Os chocolates valem cada vez mais; o cacau, em termos relativos, cada vez menos. Entre 1950 e 1960, as vendas de cacau do Equador aumentaram mais de 30% em volume, mas somente uns 15% em valor. Os 15% restantes foram um presente do Equador aos países ricos, que no mesmo período lhe enviaram, a preços crescentes, seus produtos industrializados. A economia equatoriana depende das vendas de bananas, café e cacau, três alimentos duramente submetidos ao naufrágio dos preços. Segundo dados oficiais, de cada dez equatorianos, sete padecem de desnutrição básica e o país sofre um dos índices de mortalidade mais altos do mundo. BRAÇOS BARATOS PARA O ALGODÃO O Brasil ocupa o quarto lugar no mundo como produtor de algodão; o México, o quinto. Em conjunto, da América Latina provêm mais da quinta parte do algodão que a indústria têxtil consome no planeta inteiro. No fim do século XVIII, o algodão havia-se convertido na matéria-prima mais importante dos viveiros industriais da Europa; a Ingla- terra multiplicou por cinco, em trinta anos, suas compras desta fibra natural. O fuso que 62. O título de "coronel" é outorgado no Brasil, com suma facilidade, aos latifundiários tradicio- nais e, por extensão, a todas as pessoas importantes. O parágrafo foi tirado do romance de Jorge Amado, São Jorge dos Ilhéus (Montevidéu, 1966). Enquanto isto, "nem os meninos tocavam nos frutos do cacau. Sentiam medo daqueles cocos amarelos, de caroços doces, que os manti- nham presos a esta vida de frutos de jaca e carne seca". Porque no fundo, "o cacau era o grande senhor a quem até o coronel temia" (Jorge Amado, Cacao, Buenos Aires, 1935). Em outro romance, Gabriela, Cravo e Canela, um personagem fala de Ilhéus em 1925, levantando o dedo, categórico: "Não existe na atualidade, no norte do país, uma cidade de progresso mais rápido." Atualmente, Ilhéus não é nem a sombra do que foi. 63. Referindo-se aos aumentos de preços do cacau, e do café, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) das Nações Unidas diz que "têm um caráter relativamente transitório", que obedecem "em grande parte a contratempos ocasionais nas colheitas". CEPAL, Estudio económico de América Latina, 1969, tomo II: La economia de América Latina en 1969, Santiago do Chile, 1970. 67 Arkwright inventou, ao mesmo tempo que Watt patenteava sua máquina de vapor, e a posterior criação do tear mecânico de Cartwright impulsionaram com decisivo vigor a fabricação de tecidos e proporcionaram ao algodão, planta nativa da América, mercados ávidos no ultramar. O porto de São Luiz do Maranhão, que dormira uma longa sesta tropical apenas interrompida por raros navios durante o ano, foi bruscamente despertado pela euforia do algodão: os escravos negros afluíram às plantações do Norte do Brasil, e entre 150 e 200 navios partiam cada ano de São Luiz carregando um milhão de libras de matéria-prima têxtil. Enquanto nascia o século XIX, a crise da economia mineira proporci- onava ao algodão mão-de-obra escrava em abundância; esgotados o ouro e os diamantes do Sul, o Brasil parecia ressuscitar no Norte. O porto floresceu, produziu poetas em me- dida suficiente para que o chamassem de Atenas do Brasil64 mas a fome chegou, com a prosperidade, à região do Maranhão, onde ninguém cuidava de cultivar alimentos. Em alguns períodos, só houve arroz para comer65. Esta história terminou como havia co- meçado: o colapso chegou de súbito. A produção do algodão em grande escala nas planta- ções do sul dos Estados Unidos, com terras de melhor qualidade e meios mecânicos para descaroçar e enfardar o produto, abateu os preços à terça parte e o Brasil ficou fora da concorrência. Uma nova etapa de prosperidade abriu-se com a guerra da Secessão, que interrompeu os fornecimentos norte-americanos, porém durou pouco. Já no século XX, entre 1934 e 1939, a produção brasileira de algodão incrementou-se num ritmo impressi- onante: de 126 mil toneladas passou a mais de 320 mil. Então sobreveio um novo desastre: os Estados Unidos jogaram seus excedentes no mercado mundial e o preço caiu. Os excedentes agrícolas norte-americanos são, como se sabe, o resultado dos fortes subsídios que o Estado outorga aos produtores: a preços de dumping e como parte dos programas de ajuda exterior, os excedentes se espalham pelo mundo. Assim, o algodão foi o principal produto de exportação do Paraguai até que a concorrência ruinosa do algodão norte-americano o deslocou dos mercados e a produção paraguaia reduziu-se, desde 1952, à metade. Assim o Uruguai perdeu o mercado canadense para seu arroz. Assim o trigo da Argentina, um país que tinha sido o celeiro do planeta, perdeu sua importância nos mercados internacionais. O dumping norte-americano do algodão não impediu que uma empresa norteamericana, a Anderson Clayton and Co., detenha o império deste produto na América Latina, nem impediu que, através dela, os Estados Unidos comprem algodão mexicano para revendê-lo a outros países. O algodão latino-americano continua vivo no comércio mundial, aos trancos e bar- rancos, graças a seus baixíssimos custos de produção. Inclusive as cifras oficiais, máscaras da realidade, delatam o miserável nível da retribuição do trabalho. Nas plantações do Brasil, os salários de fome se alternam com o trabalho servil; nas da Guatemala os propri- etários orgulham-se de pagar salários de dezenove quetçais por mês (o quetçal eqüivale nominalmente ao dólar) e, como se fosse muito, eles mesmos advertem que a maior parte se liquida em espécies ao preço por eles fixado66; no México, os diaristas que deambulam de safra em safra cobrando um dólar e meio por jornada não só padecem o subemprego, mas também, e como conseqüência, a subnutrição, e muito pior é a situação dos traba- lhadores do algodão da Nicarágua; os salvadorenhos que fornecem algodão aos industriais têxteis do Japão consomem menos calorias e proteínas que os famintos hindus. Para a economia do Peru, o algodão é a segunda fonte agrícola de divisas. José Carlos Mariátegui observou que o capitalismo estrangeiro, em sua perene busca de terras, braços e mercados, tendia a apoderar-se das culturas de exportação do Peru, através da execução de hipotecas 64. Roberto C. Simonsen, op. cit. 65. Caio Prado Júnior, Formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, 1942. 66. Comité Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, Guatemala. Tenencia de la tierra y desarrollo socioeconómico del setor agrícola, Washington, 1965. 70 entre sete e quinze centavos de dólar por dia. Na Colômbia, território de vertentes, o café desfruta a hegemonia. Segundo informe publicado pela revista Time de 1962, os trabalhadores só recebem cinco por cento, através dos salários, do preço total que o café obtém em sua viagem desde a planta para os lábios do consumidor norte-americano70. Ao contrário do Brasil, o café da Colômbia não é produ- zido, em sua maior parte, nos latifúndios, mas em minifúndios que tendem a pulverizar-se cada vez mais. Entre 1955 e 1960, apareceram cem mil plantações novas, em sua maioria com extensões ínfimas, de menos de um hectare. Pequenos e muito pequenos agriculto- res produzem três quartas partes do café que a Colômbia exporta; 96% das plantações são minifúndios71. Juan Valdés sorri nos anúncios, porém a atomização da terra abate o nível de vida dos agricultores, de renda cada vez menor, e facilita as manobras da Federação Nacional de Cafeicultores, que representa os interesses dos grandes proprietários e que virtualmente monopolizam a comercialização do produto. As parcelas de menos de um hectare geram uma renda de fome: cento e trinta dólares, como média, por ano72. A COTAÇÃO DO CAFÉ JOGA NO FOGO AS COLHEITAS E MARCA O RITMO DOS CASAMENTOS O que é isto? O eletroencefalograma de um louco? Em 1889, o café valia dois centa- vos e seis anos depois tinha subido a nove; três anos mais tarde tinha baixado a quatro centavos e cinco anos depois a dois. Este foi um período ilustrativo73. Os gráficos do café, como os de todos os produtos tropicais, se assemelha sempre com os quadros clínicos de epilepsia, porém a linha sempre cai verticalmente quando registra o valor de troca do café, frente às maquinarias e os produtos industrializados. Carlos Lleras Restrepo, presidente da Colômbia, queixava-se em 1967: neste ano, seu país teve de pagar 57 sacas de café para comprar um jipe, e em 1957 bastavam 17 sacas. Ao mesmo tempo, o secretário de agricul- tura de São Paulo, Herbert Levi, fazia cálculos mais dramáticos: para comprar um trator em 1967, o Brasil necessitava de 350 sacas de café, porém 14 anos antes 70 sacas teriam sido suficientes. O presidente Getúlio Vargas arrebentou o coração com um tiro, em 1954, e a cotação do café não foi alheia à tragédia: “Veio a crise da produção do café - escreveu Vargas em seu esplêndido testamento - e valorizou-se nosso principal produto. Pensamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre nossa economia, a ponto de ver-nos obrigados a ceder.” Vargas quis que seu sangue fosse o preço do resgate do povo brasileiro. Se a colheita do café de 1964 tivesse sido vendida, no mercado norte-americano, a preços de 1955, o Brasil teria recebido 200 milhões de dólares a mais. A baixa de um só centavo na cotação do café implica uma perda de 65 milhões de dólares usurpados pelo país consumidor, Estados Unidos, ao Brasil, país produtor. Porém, em beneficio de quem? Do cidadão que bebe café? Em julho de 1968, o preço do café brasileiro nos Estados Unidos tinha baixado 30% em relação a janeiro de 1964. Todavia, o consumidor norte-americano não pagava mais barato seu café, senão 13% mais caro. Os intermediários ficaram, pois, entre 1964 e 68, com este 13% e com aquele 30%: ganharam nas duas pontas. No mesmo 70. Mario Arrubla, Estudios sobre el subdesarrollo colombiano, Medellín, 1969. O preço se descompõe assim: 40% para os intermediários, exportadores e importadores; 10% para os impos- tos de ambos governos; 10% para os transportadores; 5% para a propaganda do Escritório Pan- Americano do Café, em Washington; 30% para os donos das plantações e 5% para os salários operários. 71. Banco Cafetero, La industria cafetera en Colombia, Bogotá, 1962. 72. Panorama económico latino-américano, nº 87, Havana, setembro de 1963. 73. Pierre Monbeig, Pionniers et planteurs de São Paulo, Paris, 1952. 71 espaço de tempo, os preços recebidos pelos produtores brasileiros, por cada saca de café reduziram-se à metade74. Quem são os intermediários? Seis empresas norte-americanas dispõem de mais da terça parte do café que entra nos Estados Unidos: são as firmas dominantes em ambos os extremos da operação75. Assim como a United Fruit exerce o monopólio da venda de bananas da América Central, Colômbia e Equador, e ao mesmo tempo monopoliza a importação e distribuição de bananas nos Estados Unidos, são em- presas norte-americanas as que manejam o negócio do café, e o Brasil só participa como fornecedor e como vítima. É o Estado brasileiro quem suporta o ônus dos estoques, quando a superprodução obriga acumular reservas. Acaso não existe, todavia, um Acordo Internacional de Café para equilibrar os preços no mercado? O Centro Mundial de Informação do Café publicou em Washington, em 1970, um amplo documento destinado a convencer os legisladores para que os Estados Unidos prorrogassem, em setembro, a vigência da lei complementar correspondente à vigência do convênio. O informe assegura que o convênio beneficiou em primeiro lugar os Estados Unidos, consumidores de mais da metade do café que se vende no mundo. A compra do grão continua sendo uma gangorra. No mercado norte-americano, o irrisório aumento do preço do café (em benefícios, como vimos, dos intermediários) foi muito menor do que a alta generalizada do custo de vida e do nível interno dos salários; o valor das exportações dos Estados Unidos elevou-se, entre 1960 e 1969, uma sexta parte, e no mesmo período o valor das importações de café, ao invés de aumentar, diminuiu. Além disso, é preciso levar em conta que os países latino-americanos aplicam as deterioradas divisas que obtêm com a venda do café, na compra destes produtos encarecidos norte-americanos. O café beneficia muito mais a quem o consome do que a quem o produz. Nos Estados Unidos e na Europa, gera rendas e empregos e mobiliza grandes capitais; na América Latina paga salários de fome e acentua a deformação econômica dos países postos a seu serviço. Nos Estados Unidos o café proporciona trabalho a mais de 600 mil pessoas: os norte-americanos que distribuem e vendem café latino-americano ganham salários infinitamente mais altos do que os brasileiros, colombianos, guatemaltecos, salvadorenhos ou haitianos que semei- am e colhem o grão nas plantações. Por outro lado, a Cepal nos informa, por incrível que pareça, que o café despeja mais riqueza nas arcas estatais dos países europeus, do que a riqueza que deixa em mãos dos países produtores. De fato, “em 1960 e 196 1, as cargas fiscais totais impostas pelos países da Comunidade Européia ao café ascenderam a cerca de 700 milhões de dólares, enquanto as rendas dos países abastecedores (em termos de valor FOB das exportações) só chegaram a 600 milhões de dólares”76. Os países ricos, pregadores do comércio livre, aplicam o mais rígido protecionismo contra os países pobres: convertem tudo em que tocam em ouro para si e em lata para os demais - incluindo a própria produção dos países subdesenvolvidos. O mercado internacional do café copia de tal maneira o modelo de um funil, que o Brasil aceitou recentemente impor altos impostos a suas exportações de café solúvel para proteger - protecionismo ao contrário - os interesses dos fabricantes norte-americanos do mesmo artigo. O café instantâneo produzido pelo Brasil é mais barato e de melhor qualidade do que a florescente indústria dos Estados Unidos, porém no regime da livre concorrência, está visto, uns são mais livres do que outros. Neste reino do absurdo organizado, as catástrofes naturais convertem-se em bên- çãos do céu para os países produtores. As agressões da natureza levantam os preços e 74. Dados do Banco Central, Instituto Brasileiro de Café e FA O, Revista Fator, nº 2, Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1968. 75. Segundo a investigação realizada pela Federal Trade Comission, Cid Silveira, Café, um drama na economia nacional, Rio de Janeiro, 1962. 76. CEPAL, El comercio internacional y el desarrollo de América Latina, México-Buenos Aires, 1964. 72 permitem mobilizar as reservas acumuladas. As ferozes geadas que assolaram a colheita de 1969 no Brasil condenaram à ruína numerosos produtores sobretudo os mais débeis, porém subiram a cotação internacional do café e aliviaram consideravelmente o estoque de sessenta milhões de sacas - equivalentes a dois terços da dívida externa do Brasil -, que o Estado tinha acumulado para defender os preços. O café armazenado, que estava deteriorando-se e perdia progressivamente seu valor, podia ter acabado na fogueira. Não seria a primeira vez. Em conseqüência da crise de 1929, que derrubou os preços e contraiu o consumo, o Brasil queimou 78 milhões de sacas de café: assim ardeu em chamas o esforço de 200 mil pessoas durante cinco safras77. Aquela foi uma típica crise de uma economia colonial: veio de fora. A brusca queda dos lucros dos plantadores e dos exportadores de café nos anos 30 provocou, além do incêndio do café, um incêndio da moeda. Este é o mecanis- mo usual na América Latina para “socializar as perdas” do setor exportador: compensa-se em moeda nacional, através das desvalorizações, o que se perde em divisas. Porém, o auge dos preços não tem melhores conseqüências. Deflagra grandes seme- aduras, um crescimento da produção, uma multiplicação da área destinada ao cultivo do produto afortunado. O estímulo funciona como um bumerangue, porque a abundância derruba os preços e provoca o desastre. Isto foi o que ocorreu em 1958, na Colômbia, quando se colheu o café semeado com tanto entusiasmo quatro anos antes, e ciclos seme- lhantes se repetiram ao longo da história deste país. A Colômbia depende do café e sua cotação exterior a tal ponto que, “em Antióquia, a curva dos casamentos responde agil- mente à curva dos preços do café. É típico de uma estrutura dependente: até o momento propício para uma declaração de amor em uma colina antioquenha se decide na bolsa de Nova lorque”78. DEZ ANOS QUE SANGRARAM A COLÔMBIA Lá pelos anos 40, o prestigioso economista colombiano Luis Eduardo Nieto Arteta escreveu uma apologia do café. O café tinha conseguido o que nunca conseguiram, nos ciclos anteriores econômicos do país, as minas nem o tabaco, nem o anil nem a quina: dar nascimento a uma ordem madura e progressista. As fábricas têxteis e outras indústrias leves nasceram, não por acaso, nos departamentos produtores de café: Antióquia, Caldas, Valle del Cauca, Cundinamarca. Uma democracia de pequenos produtores agrícolas, de- dicados ao café, converteria os colombianos em “homens moderados e sóbrios”. “O pres- suposto mais vigoroso - dizia -, para a normalidade no funcionamento da vida política colombiana foi a consecução de uma peculiar estabilidade econômica. O café a produziu, e com ela o sossego e o comedimento.”79 Pouco tempo depois, explodiu a violência. Na realidade, os elogios ao café não interromperam, como por arte de magia, a longa história de revoltas e repressões sangui- nárias na Colombia. Desta vez, durante dez anos, entre 1948 e 1957, a guerra camponesa abarcou os minifúndios e os latifúndios, os desertos e os campos semeados, os vales e as selvas e os páramos andinos, empurrou comunidades inteiras ao êxodo, gerou guerrilhas revolucionárias e bandos de criminosos; converteu o país inteiro num cemitério: estima-se que deixou um saldo de 180 mil mortos.80 O banho de sangue coincidiu com um período de euforia econômica para a classe dominante: é lícito confundir prosperidade de uma classe com o 77. Roberto Simonsen, op. cit. 78. Mario Arrubla, op. cit. 79. Luis Eduardo Nieto Arteta, Ensayos sobre economia colombiana, Medellín, 1969. 80. Germán Guzmán Campos, Orlando Fals Borda e Eduardo Umaña Luna, La violencia en Colombia. Estudio de un processo social. Bogotá, 1963-64. 75 midores estrangeiros deram vida a uma burguesia nativa do café, que irrompeu no poder político, através da revolução liberal de Justo Rufino Barrios, no começo da década de 1870. A especialização agrícola, ditada de fora, despertou o furor da apropriação de terras e de homens; o latifúndio atual nasceu, na América Central, sob as bandeiras da liberdade de trabalho. Assim passaram a mãos privadas grandes extensões de terras baldias, que eram de ninguém ou da Igreja ou do Estado, e aconteceu o frenético saque às comunidades indíge- nas. Os camponeses que se negavam a vender suas terras eram incorporados, à força, ao exército; as plantações converteram-se em cemitérios de índios; ressuscitaram as ordena- ções coloniais, o recrutamento forçado de mão-de-obra e das leis contra a vadiagem. Os trabalhadores fugitivos eram perseguidos a tiros; os governos liberais modernizavam as relações de trabalho instituindo os salários, mas os assalariados se convertiam em propri- edade dos novos empresários do café. Em nenhum momento, é claro, ao longo de todo o século transcorrido desde então, os períodos de altos preços se fizeram notar sobre o nível dos salários, que continuam sendo retribuições de fome, sem que as melhores cotações do café se traduzissem em aumentos. Este foi um dos fatores que impediram o desenvolvi- mento do mercado interno do consumo nos países centro-americanos84. Como em todas as partes, o cultivo do café desalentou, em sua expansão sem freios, a agricultura de alimentos destinados ao mercado interno. Também estes países foram condenados a padecer uma crônica escassez de arroz, feijões, trigo, tabaco e carne. Apenas sobreviveu uma miserável agricultura de subsistência, nas terras altas e quebradas onde o latifúndio encurralou os indígenas ao apropriar-se das terras baixas de maior fertilidade. Nas monta- nhas, cultivando em minúsculas parcelas o milho e os feijões imprescindíveis para sobre- viverem, habitam, durante uma parte do ano, os indígenas que oferecem seus braços, na colheita, às plantações. Estas são as reservas de mão-de-obra do mercado mundial. Em um século, a situação não mudou: o latifúndio e o minifúndio constituem, juntos, a unidade de um sistema que se apoia sobre a cruel exploração da mão-de-obra nativa. Em geral, e muito especialmente na Guatemala, esta estrutura de apropriação da força de trabalho aparece identificada com todo o sistema de preconceito racial: os índios padecem o colonialismo interno dos brancos e dos mestiços, ideologicamente bendito pela cultura dominante, do mesmo modo que os países centro-americanos sofrem o colonialismo externo85. Desde o princípio do século, apareceram também, em Honduras, Guatemala e Costa Rica, os “enclaves” bananeiros. Para transportar o café aos portos, já tinham construído algumas linhas ferroviárias, financiadas pelo capital nacional. As empresas norte- americanas se apropriaram destas ferrovias e criaram outras, exclusivamente para levar a produção das suas plantações, ao mesmo tempo que implantavam o monopólio dos serviços de luz elétrica, correios, telégrafos, telefones e - serviço público não menos impor- tante - também o monopólio da política: em Honduras, “uma mula custa mais do que um deputado” e em toda a América Central, os embaixadores dos Estados Unidos presidem mais do que os presidentes. A United Fruit Co. deglutiu seus competidores na produção e venda de bananas, transformou-se na principal latifundiária da América Central e suas filiais açambarcaram o transporte ferroviário e marítimo; fez-se dona dos portos, e dispõe de alfândega e policia próprias. O dólar converteu-se, de fato, na moeda nacional cen- tro-americana. 84. Edelberto Torres-Rivas, Procesos y estructuras de una sociedad dependiente (Centroamérica), Santiago do Chile, 1959. 85. Carlos Guzmán Böckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala: una interpretación histórico-social, México, 1970. 76 OS FLIBUSTEIROS NA ABORDAGEM Na concepção geopolítica do imperialismo, a América Central não é mais do que um apêndice natural dos Estados Unidos. Nem sequer Abraham Lincoin, que também pensou em anexar seus territórios, pôde escapar aos ditados do “destino manifesto” da grande potência sobre suas áreas contíguas86. Em meados do século passado, o flibusteiro William Walker, que operava em nome dos banqueiros Morgan e Garrison, invadiu a América Central à frente de uma quadrilha de assassinos, que se autodenominavam “a falange americana dos imortais”. Com o apoio oficioso do governo dos Estados Unidos, Walker roubou, matou, incendiou e se proclamou presidente, em expedições sucessivas, da Nicarágua, El Salvador e Honduras. Reimplantou a escravidão nos territórios que sofreram sua devastadora ocupação, continuando, assim, a obra filantrópica de seu país nos Estados do México que tinham sido ocupados, pouco antes. Em seu regresso aos Estados Unidos, foi recebido como um herói nacional. Desde então sucederam-se as invasões, as intervenções, os bombardeios, os empréstimos obriga- tórios e os tratados firmados ao pé do canhão. Em 1912, o presidente William H. Taft afirmava: “Não está longe o dia em que três bandeiras de listras e estrelas marcarão em três lugares eqüidistantes a extensão de nosso território: uma no Pólo Norte, outra no canal do Panamá e a terceira no Pólo Sul. Todo o hemisfério será nosso, de fato, como, em virtude de nossa superioridade racial, já é nosso moralmente”87. Taft dizia que o reto caminho da justiça na política externa dos Estados Unidos “não exclui de modo algum uma ativa intervenção para assegurar a nossas mercadorias e a nossos capitalistas facilida- des para as inversões lucrativas”. Nesta mesma época, o ex-presidente Teddy Roosevelt recordava em voz alta a brilhante amputação de terra à Colômbia: - “I took the Canal”-, dizia o novo Prêmio Nobel da Paz, enquanto contava como tinha inventado o Panamá88. A Colômbia recebera, pouco depois, uma indenização de US$ 25 milhões: era o preço de um país nascido para que os Estados Unidos dispusessem de uma via de comunicação entre ambos os oceanos. As empresas apoderavam-se de terras, alfândegas, tesouros e governos; os marines desembarcavam por todas as partes para “proteger a vida e os interesses dos cidadãos norte-americanos”, álibi exato que utilizariam, em 1965, para apagar com água benta as marcas do crime da República Dominicana. A bandeira envolvia outras mercadorias. O comandante SmedIey D. Butler, que encabeçou muitas das expedições, resumia assim sua própria atividade, em 1935, já aposentado: “Passei 33 anos e 4 meses no serviço ativo, como membro da mais ágil força militar deste país: o Corpo de Infantaria da Marinha. Servi em todas as hierarquias, desde segundo tenente até general-de-divisão. E durante todo este período, passei a maior parte do tempo em funções de pistoleiro de primeira classe para os Grandes Negócios, para Wall Street e para os banqueiros. Em uma palavra, fui um pistoleiro do capitalismo... Assim, por exemplo, em 1914 ajudei a fazer com que o México, e em especial Tampico, se tornassem uma presa fácil para os interesses petrolífe- ros norte-americanos. Ajudei a fazer com que o Haiti e Cuba fossem lugares decentes para a cobrança de juros por parte do National City Bank... Em 1909-1912 ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional Brown Brothers. Em 1916, levei a luz à República Dominicana, em nome dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1903, 86. Darcy Ribeiro, Las Américas y la civilización, tomo III, Los pueblos transplantados. Civilizacion y desarrollo, Buenos Aires, 1970. 87. Gregorio Selser, Diplomacia, garrote y dólares en América Latina, Buenos Aires, 1962. 88. Claude Julien, L'Empire Americain, Paris, 1968. 77 ajudei a ‘pacificar’ Honduras em benefício das companhias frutíferas norte-americanas”89. Nos primeiros anos do século, o filósofo William James tinha ditado uma sentença pouco conhecida: “O país vomitou de uma vez e para sempre a Declaração de Independência...” Para dar apenas um exemplo, os Estados Unidos ocuparam o Haiti durante vinte anos, e ali, nesse país negro que tinha sido o cenário da primeira revolta vitoriosa dos escravos, introduziram a segregação racial e o regime de trabalhos forçados, mataram mil e qui- nhentos operários em uma de suas operações de repressão (segundo a investigação do Senado norte-americano em 1922) e, quando o governo local se negou a converter o Banco Nacional numa sucursal do National City Bank de Nova Iorque, suspenderam o pagamen- to do presidente e de seus ministros, para que mudassem de opinião90. Histórias semelhantes se repetiam nas demais ilhas do Caribe e em toda a América Central, o espaço geopolítico do Mare Nostrum do Império, ao ritmo alternado do big stick ou da “diplomacia do dólar”. O Corão menciona a bananeira entre as árvores do paraíso, mas a bananização da Guatemala, Honduras, Costa Rica, Panamá, Colômbia e Equador permite suspeitar que se trata de uma árvore do inferno. Na Colômbia, a United Fruit tinha-se tornado dona do maior latifúndio do país, quando explodiu, em 1928, uma grande greve na costa atlântica. Os trabalhadores nas plantações de bananas foram aniquilados a bala, em frente a uma estação ferroviária. Um decreto oficial fora ditado: “Os homens da força pública ficam livres para castigar pelas armas...” e depois não houve necessidade de baixar nenhum decreto para apagar a matança da memória oficial do país91. Miguel Ángel Asturias narrou o processo da conquista e o saque da América Central. O Papa Verde era Minor Keith, rei sem coroa da região inteira, pai da United Fruit, devorador de países: “Temos portos, ferrovias, terras, edifícios, mananciais - enumerava o presidente -; corre o dólar, fala-se o inglês e se hasteia nossa bandeira...”. Chicago não podia senão sentir orgulho deste filho que marchou com um par de pistolas e regressava para reclamar seu posto entre os imperadores da carne, reis das ferro vias, reis do cobre, reis do chiclete”92. Em o paralelo 42, John dos Passos traçou a rutilante biografia de Keith, biografia da empresa: “Na Europa e Estados Unidos as pessoas começaram a comer bananas, assim que tombaram as selvas através da América Central para semear bananas e construir ferrovias para transportá-las, e cada ano mais vapores da Great White Fleet iam para o norte repletos de bananas; essa é a história do império norte-americano no Caribe e do canal de Panamá e do futuro canal de Nicarágua e os marines e os encouraçados e as baionetas...” As terras ficavam tão exaustas quanto os trabalhadores; às terras roubavam o húmus e aos trabalhadores os pulmões, porém, sempre havia novas terras para explorar e mais trabalhadores para exterminar. Os ditadores, próceres de opereta, velavam, pelo bem 89. Publicado em Common Sense, novembro de 1935. V. Leo Huberman, Man's Worldly Goods. The Story of the Wealth of Nations, Nova Jorque, 1936. 90. William Krehm, Democracia y tiranía en el Caribe, Buenos Aires, 1959. 91. Este é o tema do romance de Alvaro Cepeda Samudio, La casa grande (Buenos Aires, 1967), e também integra um dos capítulos de Cem anos de solidão de Garcia Marquez: "Certamente foi um sonho", insistiam os oficiais. 92. O ciclo compreende os romances Viento fuerte, El papa verde e Los ojos de los enterrados, trilogia publicada em Buenos Aires na década de 50. Em Vientofuerte, um dos personagens, mister Pyle, diz profeticamente: "Se em lugar de comprarmos novas plantações, nós comprásse- mos, dos produtores particulares, suas frutas, ganharemos muito no futuro." Isto é o que atualmente ocorre na Guatemala: a United Fruit exerce seu monopólio bananeiro através dos mecanismos de comercialização, mais eficazes do que a produção direta, e também menos perigoso. Cabe notar que a produção de banana caiu verticalmente na década de setenta, a partir do momento em que a United Fruit decidiu vender e/ou arrendar suas plantações na Guatemala, ameaçadas pelos fervores da agitação social. 80 bustos e quadros do Imperador, que tinha, segundo ele, seu mesmo perfil. Acreditava na disciplina militar: militarizou os funcionários de correio, as crianças das escolas e a orques- tra sinfônica. Os integrantes da orquestra tocavam de uniforme, a troco de nove dólares mensais, as peças que Ubico escolhia e com a técnica e os instrumentos por ele dispostos. Considerava que os hospitais eram para efeminados, de modo que os pacientes recebiam assistência no chão dos corredores, se tinham o azar de serem pobres, além de doentes. QUEM DEFLAGROU A VIOLÊNCIA NA GUATEMALA? Em 1944, Ubico caiu de seu pedestal, varrido pelos ventos de uma revolução de tendência liberal, encabeçada por alguns jovens oficiais e universitários da classe média. Juan José Arévalo, eleito presidente, pôs em marcha um vigoroso plano de educação e ditou um novo Código de Trabalho para proteger os trabalhadores do campo e das cidades. Nasceram vários sindicatos; a United Fruit Co., dona de vastas terras, ferrovia e porto, virtualmente isenta de impostos e livre de controles, deixou de ser onipotente em suas propriedades. Em 1951, em seu discurso de despedida, Arévalo revelou que teve de superar 32 conspirações financiadas pela empresa. O governo de Jacobo Arbenz continuou e aprofundou o ciclo de reformas. As rodovias e o novo porto de San José romperam o monopólio da empresa de frutas sobre os transportes e a exportação, Com capital nacional, e sem estender a mão a nenhum banco estrangeiro, puseram-se em marcha diversos projetos de desenvolvimento que conduziram à conquista da independência. Em junho de 1952, aprovou-se a reforma agrária, que chegou a beneficiar mais de cem mil famílias, embora só afetasse terras improdutivas e pagasse indenização, em bonos, aos proprietári- os expropriados. A United Fruit cultivava apenas oito por cento de suas terras, estendidas entre ambos os oceanos. A reforma agrária propunha-se “a desenvolver a economia capitalista camponesa e a economia capitalista da agricultura em geral”, mas uma furiosa campanha de propagan- da internacional foi desencadeada contra a Guatemala: “A cortina de ferro desceu sobre a Guatemala”, vociferavam as rádios, os jornais e os próceres da OEA97. O coronel Castillo Armas, graduado em Fort Leavenworth, Kansas, lançou sobre seu próprio país tropas treinadas e equipadas, para este objetivo, nos Estados Unidos. O bombardeio dos F-47, com aviadores norte-americanos, apoiou a invasão. “Tivemos que nos desfazer de um governo comunista que tinha assumido o poder”, diria, nove anos mais tarde, Dwight Eisenhower98. As declarações do embaixador norte-americano em Honduras, ante uma subcomissão do Senado dos Estados Unidos, revelaram no dia 27 de julho de 1961 que a operação “libertadora” de 1954 fora realizada por uma equipe, da qual faziam parte, além dele mesmo, os embaixadores na Guatemala, Costa Rica e Nicarágua. Allen Dulles, que naquela época era o homem número um da CIA, havia-lhe enviado um telegrama de felicitações pelo trabalho feito. Anteriormente, o bom Allen tinha integrado a direção da United Fruit Co. Sua cadeira foi ocupada, um ano depois da invasão, por outro dirigente da CIA, o general Walter Bedell Smith. Foster Dulles, irmão de Allen, havia-se inflamado de impaciência na conferência da OEA que deu visto à expedição militar na Guatemala. Casualmente, em seus escritórios de advogado, tinham sido redigidos, em tempos do ditador Ubico, os rascunhos dos contratos da United Fruit. A queda de Arbenz marcou a fogo a história posterior do país. As mesmas forças que 97. Eduardo Galeano, Guatemala, país ocupado, México, 1967. 98. Discurso na American Booksellers Association, Washington, 10 de junho de 1963. Citado por David Wise e Tomas Ross, El gobierno invisible, Buenos Aires, 1966. 81 bombardearam a cidade de Guatemala, Puerto Barrios e o porto de San José, no entardecer de 18 de junho de 1954, estão hoje no poder. Várias ditaduras ferozes sucederam-se à intervenção estrangeira, incluindo o período de Julio César Méndez Montenegro (1966-1970), que proporcionou à ditadura a aparência de um regime democrático. Méndez Montenegro havia prometido uma reforma agrária, porém limitou-se a assinar a autorização para que os fazendeiros portassem armas, e as usassem. A reforma agrária de Arbenz foi destruída quando Castillo Armas cumpriu sua missão, devolvendo as terras à United Fruit e aos outros fazendeiros expropriados. 1967 foi o pior dos anos do ciclo da violência iniciado em 1954. Um sacerdote católico norte-americano expulso da Guatemala, o padre Thomas Melville, informava ao National Catholic Reporter em janeiro de 1968: em pouco mais de um ano, os grupos terroristas da direita assassinaram mais de dois mil e oitocentos intelectuais, estudantes, dirigentes sindicais e camponeses que “intentaram combater as doenças da sociedade guatemalteca”. O cálculo do padre Melville foi feito com base em informações da imprensa, porém sobre a maioria dos cadáveres nunca se informou nada: eram pobres índios sem nome nem origem conhecidas, que o exército incluía, algumas vezes, só como números, nos comuni- cados das vitórias contra a subversão. A repressão indiscriminada fazia parte da campanha militar de “cerco e aniquilamento” contra os movimentos guerrilheiros. De acordo com o novo código em vigência, os membros dos corpos de segurança não tinham responsabili- dade penal por homicídios, e os comunicados policiais ou militares eram considerados plena prova em juízo. Os fazendeiros e os administradores foram legalmente equipados à qualidade de autoridades locais, com direito a portar armas e formar corpos repressivos. Não vibraram os teletipos do mundo com os “furos” da sistemática carnificina, não chega- ram à Guatemala os jornalistas ávidos de noticias, não se escutaram vozes de condenação. O mundo virava as costas, porém a Guatemala sofria uma longa noite de São Bartolomeu. A aldeia Cajón del Rio ficou sem homens e os da aldeia Tituque tiveram as tripas revolvi- das a punhal; os de Piedra Parada foram escalpelados vivos e os de Agua Blanca da Ipala, baleados nas pernas e depois queimados vivos; no centro da praça de San Jorge cravaram num mastro a cabeça de um camponês rebelde. Em Cerro Gordo, encheram de alfinetes as pupilas de Jaime Velázquez; o corpo de Ricardo Miranda foi encontrado com trinta e oito perfurações e a cabeça de Haroldo Silva, sem o corpo, na beira de uma estrada para San Salvador; em Los Mixcos cortaram a língua de Ernestro Chinchilia; na fonte do Ojo de Agua, os irmãos Oliva Aldana foram mortos a tiros com as mãos amarradas nas costas e os olhos vendados; o crânio de José Guzmán converteu-se em quebra-cabeças de peças minúsculas lançadas pelo caminho; dos poços de San Lucas Sacatepequez emergiam mortos, invés de água; os homens amanheciam sem mãos nem pés na fazenda Miraflores. Às ameaças sucediam-se as execuções, ou a morte chegava, sem aviso, pela nuca; nas cidades indicavam-se com cruzes negras as portas dos sentenciados. Eram metralhados ao sair e lançavam-se os cadáveres pelos barrancos. Depois, não cessou a violência. Ao longo do tempo do desprezo e da cólera inaugu- rado em 1954, a violência tem sido e continua sendo uma transpiração natural da Guatemala. Continuaram aparecendo, embora em menor medida, os cadáveres nos rios ou na beira dos caminhos, os restos irreconhecíveis, desfigurados pela tortura, que jamais serão identificados. Também continuaram, e em maior medida, as matanças mais secre- tas: os cotidianos genocídios da miséria. Outro sacerdote expulso, o padre Blase Bonpane, denunciava no Washington Post, em 1968, esta sociedade doente: “Das setenta mil pessoas que cada ano morrem na Guatemala, trinta mil são crianças. A taxa de mortalidade infantil na Guatemala é 40 vezes mais alta do que a dos Estados Unidos.” 82 A PRIMEIRA REFORMA AGRÁRIA DA AMÉRICA LATINA: UM SÉCULO E MEIO DE DERROTAS PARA JOSÉ ARTIGAS Ao ataque de lança ou golpes de facão, foram os expropriados os que realmente combateram, quando despontava o século XIX, contra o poder espanhol nos campos da América Latina. A independência não os recompensou: traiu as esperanças dos que ti- nham derramado seu sangue. Quando a paz chegou, com ela se reabriu uma época de cotidianas desditas. Os donos da terra e os grandes mercadores aumentaram suas fortu- nas, enquanto se ampliava a pobreza das massas populares oprimidas. Ao mesmo tempo, e ao ritmo das intrigas dos novos donos da América Latina, os quatro vice-reinados do império espanhol se quebraram em pedaços e múltiplos países nasceram como cacos da unidade nacional pulverizada. A idéia de “nação” que o patriciado latino-americano engen- drou parecia-se demasiado à imagem de um porto ativo, habitado pela clientela mercantil e financeira do império britânico, com latifúndios e socavãos à retaguarda. A legião de parasitas que recebera os comunicados da guerra de independência dançando o minueto nos salões das cidades, brindava pela liberdade de comércio em taças de cristais britânicos. Puseram na moda as mais altissonantes palavras de ordem da burguesia européia: nossos países punham-se ao serviço dos industriais ingleses e dos pensadores franceses. Porém, qual “burguesia nacional” era a nossa, formada pelos donos de terras, os grandes trafican- tes, comerciantes e especuladores, os políticos de fraque e doutores sem raízes? A América Latina logo teve suas constituições burguesas, muito envernizadas de liberalismo, mas não teve, em compensação, uma burguesia criadora, no estilo europeu ou norte-americano, que se propusesse à missão histórica do desenvolvimento de um capitalismo nacional pujante. As burguesias destas terras nasceram como simples instrumentos do capitalismo internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que sangrava as colônias e semi- colônias. Os burgueses de vitrina, agiotas e comerciantes, que açambarcaram o poder político, não tinham o menor interesse em impulsionar a ascensão das manufaturas locais, já mortas ao nascer quando o livre-cambismo abriu as portas à avalanche de merca- dorias britânicas. Seus sócios, os donos das terras, não estavam, por sua vez, interessados em resolver “a questão agrária”, senão na medida de suas próprias conveniências. O latifúndio consolidou-se sobre o saque, ao longo do século XIX. A reforma agrária foi, na região, uma bandeira precoce. Frustração econômica, frustração social, frustração nacional: uma história de traições sucedeu à independência. A América Latina, desgarrada por suas novas fronteiras, conti- nuou condenada à monocultura e à dependência. Em 1824, Simón Bolívar ditou o Decreto de Trujillo para proteger os índios do Peru e reordenar ali o sistema de propriedade agrária: suas disposições legais não feriram em absoluto os privilégios da oligarquia peruana, que permaneceram intactos apesar dos bons propósitos do Libertador, e os índios continuaram tão explorados como sempre. No México, Hidalgo e Morelos foram derrotados tempos antes e transcorreria um século antes que rebrotassem os frutos de sua prédica pela emancipação dos humildes e a reconquista das terras usurpadas. No sul, José Artigas encarnou a revolução agrária. Este caudilho, com tanta sanha caluniado e tão desfigurado pela história oficial, encabeçou as massas populares dos terri- tórios que hoje ocupam Uruguai e as províncias argentinas de Santa Fé, Corrientes, Entre Ríos, Misiones e Córdoba, no cicio heróico de 1811 a 1820. Artigas quis lançar as bases econômicas, sociais e políticas de uma Pátria Grande nos limites do antigo vice-reinado do Rio da Prata, e foi o mais importante e lúcido dos chefes federais que combateram o centralismo aniquilador do porto de Buenos Aires. Lutou contra os espanhóis e portugue- ses e finalmente suas forças foram trituradas pelo jogo de tenazes do Rio de Janeiro e Buenos Aires, instrumentos do império britânico, e pela oligarquia que, fiel ao seu estilo, 85 baixíssimos custos. Uma paisagem sem homens: os maiores latifúndios ocupam, e não durante todo o ano, apenas duas pessoas por cada mil hectares. Nas aldeias, à margem das estâncias, acumulam-se, miseráveis, as reservas sempre disponíveis de mão-de-obra. O gaúcho dos postais folclóricos, tema de quadros e poemas, tem pouco a ver com o peão que trabalha, na realidade, terras grandes e estranhas. As alpargatas ocupam o lugar das botas de couro; um cinturão comum, ou às vezes um simples barbante, substitui os largos cinturões com adornos de ouro e prata. Aqueles que produzem a carne perderam o direito de comê-la: os criollos raras vezes têm acesso ao churrasco criollo, a carne suculenta e tenra, dourada nas brasas. Embora as estatísticas internacionais sorriam, exibindo rendas médias enganosas, a verdade é que o “ensopado”, guisado de macarrões e tripas de capão, constitui a dieta básica, carente de proteínas, dos camponeses no Uruguai106. ARTEMIO CRUZ E A SEGUNDA MORTE DE EMILIANO ZAPATA Exatamente um século depois do regulamento de terras de Artigas, Emiliano Zapata pôs em prática, em sua comarca revolucionaria do sul do México, uma profunda reforma agrária. Cinco anos antes, o ditador Porfirio Díaz havia celebrado, com grandes festas, o primeiro centenário do grito de Dolores: os cavalheiros de fraque, México oficial, olimpica- mente ignoravam o México cuja miséria alimentava seus esplendores. Na república dos parias, as rendas dos trabalhadores não haviam aumentado num só centavo desde o histórico levante do cura Miguel Hidalgo. Em 1910, pouco mais de 800 latifundiários, muitos deles estrangeiros, possuíam quase todo o território nacional. Eram playboys de cidade, que viviam na capital ou na Europa e raramente visitavam as casas grandes de seus latifúndios, onde dormiam protegidos por altas muralhas de perra escura, sustenta- das por robustos contrafortes107. Do outro lado das muralhas, os peões se amontoavam em quartinhos de adobe. Doze milhões de pessoas dependiam, numa população total de 15 milhões, de salários rurais; as diárias se pagavam quase por inteiro nos pequenos arma- zéns das fazendas, traduzidas, a preços altíssimos, em feijões, farinha e cachaça. A cadeia, o quartel e a sacristia tinham a seu cargo a luta contra os defeitos naturais dos índios, os quais, no dizer de um membro de uma família ilustre da época, nasciam “frouxos, bêba- dos e ladrões”. A escravidão, amarrado o trabalhador por dívidas que se herdavam ou por contrato legal, era o sistema real de trabalho nas plantações de sisal de Yucatán, nas de tabaco do Valle Nacional, nos bosques de madeira e frutas de Chiapas e Tabasco e nas plantações de seringueira, café, cana-de-açúcar, tabaco e frutas de Veracruz, Oaxaca e Morelos. John Keneth Turner, escritor norte-americano, denunciou, num esplêndido tes- brotaram da desgraça nacional; a especulação financeira deflagrou, depois, a febre dos pescadores de água turva da inflação. Porém, sobretudo, os capitais fugiram: os capitais e os lucros que, anos após anos, o país produz. Entre 1962 e 1966, segundo dados oficiais, 250 milhões de dólares voaram do Uruguai rumo aos seguros bancos da Suíça e Estados Unidos. Também os homens, os homens jovens, baixaram do campo à cidade, há vinte anos, para oferecer seus braços à indústria em desenvolvimento, e hoje marcham, por terra ou por mar, rumo ao exterior. Mas, é claro, seu destino é diferente. Os capitais são recebidos com os braços abertos; aos peregrinos lhes aguarda um destino difícil, O desraizamento e a intempérie, a aventura incerta. O Uruguai de 1971, estreirecido por uma crise feroz, não é o oásis de paz e progresso que atraía os imigrantes europeus, mas um país turbulento que condena ao êxodo seus próprios habitantes. Produz violência e exporta homens tão naturalmente como produz e exporta carne e lã. 106. German Wettstein e Juan Rudolf, La sociedad rural, Nuestra Tierra, nº 16, Montevidéu, 1969. 107. Jesús Silva Herzog, Breve historia de la revolución mexicana, México-Buenos Aires, 1960. 86 temunho de sua visita, que “os Estados Unidos converteram virtualmente Porfirio Díaz num vassalo político e, em conseqüência, transformou o México em uma colônia escra- va”108. Os capitais norte-americanos obtinham, direta ou indiretamente, suculentos lucros de sua associação com a ditadura. “A norte-americanização do México, da qual tanto se vangloria Wall Street - dizia Turner - está se executando como se fosse uma vingança.” Em 1845, os Estados Unidos tinham anexado os territórios mexicanos de Texas e Califórnia, onde restabeleceram a escravidão em nome da civilização. Na guerra, o México também perdeu os atuais estados norte-americanos de Colorado, Arizona, Novo México, Nevada, Utah. Mais da metade do país. O território usurpado eqüivalia à extensão atual da Argentina. “Coitado do México! - diz-se desde então - Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.” O resto de seu território mutilado sofreu depois a invasão das inversões norte-americanas no cobre, no petróleo, na borracha, no açúcar, no banco e nos transportes. O American Cordage Trust, filial da Standard Oil, não estava em absoluto alheio ao exter- mínio dos índios maias e yaquis na plantações de sisal de Yucatán, campos de concentra- ção onde os homens e as crianças eram comprados e vendidos como mulas, porque esta era a empresa que comprava mais da metade do sisal produzido e convinha-lhe dispor de fibras a preço barato. Outras vezes, a exploração da mão-de-obra escrava era direta, como descobriu Turner. Um administrador norte-americano lhe contou que pagava os lotes de peões empregados a cinqüenta pesos por cabeça, “e os conservávamos enquanto durem... Em menos de três meses enterramos mais da metade”109. Em 1910, chegou a hora do desquite. México levantou-se em armas contra Porfirio Díaz. Um caudilho do campo encabeçou desde então a insurreição no sul: Emiliano Zapata, o mais puro dos líderes da revolução, o mais leal à causa dos pobres, o mais fervoroso em sua vontade de redenção social. As últimas décadas do século XIX tinham sido tempos de espoliação feroz para as comunidades agrárias de todo o México; os povoados e as aldeias de Morelos sofreram a febril caçada de terras, águas e braços que as plantações de cana-de-açúcar devoravam em sua expansão. As fazendas açucareiras dominavam a vida do Estado e sua prosperidade gerara engenhos modernos, grandes destilarias e ramais ferroviários para transportar o produto. Na comunidade de Anenecuilco, onde vivia Zapata e à qual pertencia de corpo e alma, os camponeses indígenas reivindicavam sete séculos de trabalho contínuo sobre o solo: estavam ali desde antes da chegada de Fernão Cortez. Os que se queixavam em voz alta marchavam para os campos de trabalhos forçados em Yucatán. Como em todo o Estado de Morelos, cujas terras boas estavam em mãos de 17 proprietários, os trabalhado- res viviam muito pior do que os cavalos de pólo que os latifundiários mimavam em seus estábulos de luxo. Uma lei de 1909 determinou que novas terras fossem arrebatadas a seus legítimos donos e pôs fogo às já ardentes contradições sociais. Emiliano Zapata, o cavaleiro de poucas palavras, famoso porque era o melhor domador do estado e unanime- mente respeitado por sua honestidade e sua coragem, fez-se guerrilheiro. “Grudados no rabo do cavalo do chefe Zapata”, os homens do sul formaram rapidamente um exército libertador110. Caiu Díaz, e Francisco Madero, nas ancas da Revolução, chegou ao poder. As pro- 108. John Kenneth Turner, México bárbaro, publicado nos Estados Unidos em 1911, México, 1967. 109. John Kenneth Turner, op. cit. O México era o país preferido pelos investimentos norte- americanos: reunia em fins do século pouco menos da terça parte dos capitais dos Estados Unidos investidos no estrangeiro. No estado de Chihuahua e outras regiões do norte, William Randolph Hearst, o célebre Citizen Kane do filme de Orson Welles, possuía mais de três milhões de hectares. Fernando Carmona, El drama de América Latina. El Caso de México, México, 1964. 110. John Womack Jr., Zapata y la revolución mexicana, México, 1969. 87 messas de reforma agrária não demoraram em dissolver-se numa névoa institucionalista. No dia de seu casamento, Zapata teve que interromper a festa: o governo tinha enviado as tropas do general Victoriano Huerta para esmagá-lo. O herói convertera-se em “bandido”, segundo os doutores da cidade. Em novembro de 1911, Zapata proclamou seu Plano de Ayala, ao mesmo tempo que anunciava: “Estou disposto a lutar contra tudo e contra todos.” O plano advertia que a “imensa maioria das gentes e cidadãos mexicanos não são mais donos senão do terreno que pisam” e propugnava pela nacionalização total dos bens dos inimigos da Revolução, a devolução a seus legítimos proprietários das terras usur- padas pela avalanche latifundiária e a expropriação da terça parte das terras dos fazendei- ros restantes. O plano de Ayala converteu-se num ímã irresistível que atraía milhares e milhares de camponeses às fileiras do caudilho reformista. Zapata denunciava “a infame pretensão” de reduzir tudo a uma simples troca de pessoas no governo: a Revolução não era feita para isso. Cerca de dez anos durou a luta. Contra Díaz, contra Madero, logo contra Huerta, o assassino, e mais tarde contra Venustiano Carranza. O longo tempo da guerra foi também um período de intervenções norte-americanas contínuas: os marines tiveram a seu cargo dois desembarques e vários bombardeios, os agentes diplomáticos urdiram conjuras polí- ticas diversas e o embaixador Henry Lane Wilson organizou com êxito o crime do presiden- te Madero e seu vice. As mudanças sucessivas no poder não alteravam, em todo o caso, a fúria das agressões contra Zapata e suas forças, porque elas eram a expressão não masca- rada da luta de classes no fundo da revolução nacional: era o perigo real. Os governos e os jornais bradavam contra “as hordas vandálicas” do general de Morelos. Poderosos exérci- tos foram enviados, um atrás do outro, contra Zapata. Os incêndios, as matanças, a devastação dos povoados, foram, vez por outra, inúteis. Homens, mulheres e crianças morriam fuzilados ou enforcados como “espias zapatistas” e às carnificinas seguiam os anúncios de vitória: a limpeza foi um êxito. Porém, pouco tempo depois voltavam a se acender as fogueiras nos moveis acampamentos revolucioná- rios das montanhas do sul. Em várias oportunidades, as forças de Zapata contra-atacavam com êxito até os subúrbios da capital. Depois da queda do regime de Huerta, Emiliano Zapata e Pancho Villa, o “Átila do Sul” e o “Centauro do Norte”, entraram na cidade do México como vencedores e fugazmente compartilharam o poder. Em fins de 1914, abriu-se um breve ciclo de paz que permitiu a Zapata pôr em prática, em Morelos, uma reforma agrária ainda mais radical do que a anunciada no Plano de AyaIa. O fundador do Partido Socialista e alguns militantes anarcosindicalistas influíram muito neste processo: radicalizaram a ideologia do líder do movimento, sem ferir suas raízes tradicionais, e lhe proporcionaram uma imprescindível capacidade de organização. A reforma agrária propunha-se a “destruir pela raiz e para sempre o injusto mono- pólio da terra para realizar um estado social que garanta plenamente o direito natural que todo homem tem sobre a extensão de terra necessária a sua própria subsistência e à de sua família”. Restituíam-se as torras, as comunidades e indivíduos despojados a partir da lei de desamortização de 1856, fixavam-se limites máximos aos terrenos segundo o clima e a qualidade natural, e declaravam-se propriedade nacional as fazendas dos inimigos da Revolução. Esta última disposição política tinha, como na reforma agrária de Artigas, um claro sentido econômico: os inimigos eram os latifundiários. Formaram-se escolas de téc- nicos, fábricas de ferramentas e um banco de crédito rural; nacionalizaram-se os engenhos e as destilarias, que se converteram em serviços públicos. Um sistema de democracias locais colocava nas mãos do povo as fontes do poder e a sustentação econômica. Nasciam e difundiam-se escolas zapatistas, organizavam-se juntas populares para a defesa e a promoção dos princípios revolucionários, uma democracia autêntica tomava forma. Os municípios eram unidades nucleares do governo e o povo elegia as autoridades, seus 90 63 a 40%. Não faltam tecnocratas dispostos a afirmar, aplicando mecanicamente receitas feitas, que isto é um índice de progresso: a urbanização acelerada, a migração maciça da população camponesa. Os desempregados, que o sistema vomita sem parar, afluem, de fato, para as cidades e ampliam seus subúrbios. Porém as fábricas, que também segregam desempregados à medida que se modernizam, não oferecem refúgio a esta mão-de-obra excedente e não especializada. Os escassos progressos tecnológicos do campo aguçam o problema. Incrementaram-se os lucros dos donos de terra, quando incorporam meios mais modernos na exploração de suas propriedades, porém mais braços ficam sem ativi- dade e se torna maior a brecha que separa ricos e pobres. A introdução de equipamentos motorizados, por exemplo, elimina mais empregos rurais do que os cria. Os latino-americanos que produzem, em jornadas de sol a sol, os alimentos, sofrem normalmente de desnutrição: suas rendas são miseráveis, a renda que o campo gera gasta-se nas cidades ou emigra para o exterior. As melhores técnicas, que aumentam os magros rendimentos do solo mas deixam intacto o regime de propriedade vigente, não são, decerto, embora contribuam para o progresso geral, uma bênção para os camponeses. Não crescem seus salários nem sua participação nas colheitas. O campo irradia pobreza para muitos e riqueza para muito poucos. Os aviões particulares sobrevoam desertos miseráveis, multiplica-se o luxo estéril nos grandes bal- neários e a Europa ferve de turistas latino-americanos cheios de dinheiro, que descuidam do cultivo de suas terras mas não se descuidam, é claro, do cultivo de seus “espíritos”. Paul Bairoch atribui a debilidade principal da economia do Terceiro Mundo ao fato de sua produtividade agrícola média só alcançar a metade do nível obtido, nas vésperas da Revolução Industrial, pelos países hoje desenvolvidos121. Com efeito, a indústria, para expandir-se harmoniosamente, requereria um aumento muito maior da produção de alimentos e de matérias-primas agropecuarias. Alimentos, porque as cidades crescem e comem; matérias-primas, para as fábricas e para a exportação, de maneira a diminuir as importações agrícolas e aumentar as vendas no exterior, gerando as divisas que o desen- volvimento requer. Por outra parte, o sistema de latifúndios e minifúndios implica o raquitismo do mercado interno e, sem sua expansão, a indústria nascente perde terreno. Os salários de fome no campo e o exército de reserva cada vez mais numeroso de desem- pregados conspiram neste sentido: os emigrantes rurais, que vivem a bater nas portas das cidades, empurram para baixo o nível geral de salário dos operários. Desde que a finada Aliança para o Progresso proclamou, aos quatro ventos, a neces- sidade da reforma agrária, a oligarquia e a tecnocracia não cessaram de elaborar projetos. Dezenas de projetos, gordos, magros, largos, estreitos, dormem nas prateleiras dos parla- mentos de todos os países latino-americanos. A reforma agraria já não é um tema maldito: os políticos aprenderam que a melhor maneira de não fazê-la consiste em invocá-la conti- nuamente. Os processos simultâneos de concentração e pulverização da propriedade da terra continuam, olímpicos, seu curso na maioria dos países. Não obstante, as exceções começam a abrir caminho. Porque o campo não é somente um viveiro de pobreza: é, também, um viveiro de rebeliões, embora as tensões sociais agudas se ocultem freqüentemente, mascaradas pela resignação aparente das massas. O Nordeste do Brasil, por exemplo, impressiona à pri- meira vista como um bastião do fatalismo, cujos habitantes aceitam morrer de fome tão passivamente como aceitam a chegada da noite ao fim do dia. Porém não está longe o tempo, afinal, da explosão mística dos nordestinos que combateram junto a seu messias, apóstolos extravagantes, levantando a cruz e os fuzis contra o exército, para trazer para esta terra o reino dos céus, nem as furiosas marés de violência dos cangaceiros: os fanáticos e os bandoleiros, utopia e vingança, deram razão ao protesto social, apesar de cego, dos 121. Paul Bairoch, Diagnostic de l'évolution économique du Tiers Monde. 1900-1966, Paris, 1967. 91 camponeses desesperados122. As ligas camponesas recuperariam mais tarde, aprofundando-as, estas tradições de luta. O regime militar que tomou o poder no Brasil em 1964 não demorou em anunciar sua reforma agrária. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária foi, como notou Paulo Schilling, um caso único no mundo: ao invés de distribuir terras para os camponeses, dedicou-se a expulsá-los, para restituir aos latifundiários as extensões espontaneamente invadidas ou expropriadas por governos anteriores. Em 1966 e 1967, antes do maior rigor da censura à imprensa, os jornais costumavam denunciar os saques, incêndios e persegui- ções que as tropas da polícia levavam a cabo por ordem do atarefado Instituto (IBRA). Outra reforma agrária digna de uma antologia é a que se promulgou no Equador em 1964. O governo só distribuiu terras improdutivas, facilitando, ao mesmo tempo, a concen- tração das terras de melhor qualidade em mãos dos grandes latifundiários. A metade das terras distribuídas pela reforma agrária da Venezuela, a partir de 196O, eram de proprieda- de pública; as grandes plantações comerciais não foram tocadas e os latifundiários expro- priados receberam indenizações tão altas que obtiveram esplêndidos lucros e compraram novas terras em outras zonas. O ditador argentino Juan Carlos Organía esteve a ponto de antecipar em dois anos sua queda, quando em 1968 tentou aplicar um novo regime de impostos à propriedade rural. O projeto intentava tributar as improdutivas planuras peladas mais severamente do que as terras produtivas. A oligarquia do boi pôs a boca no trombone, mobilizou suas próprias armas no Estado Maior, e Organía teve que esquecer suas heréticas intenções. A Argentina dispõe, como o Uruguai, de pradarias naturalmente férteis que, sob o influxo de um clima benigno, lhe tem permitido desfrutar de uma prosperidade relativa na América Latina. Porém, a erosão vai corroendo sem piedade as imensas planuras abandonadas que não são destinadas à cultura nem ao pastoreio, e o mesmo ocorre com grande parte dos milhões de hectares dedicados à exploração extensiva do gado. Como no Uruguai, embora em menor grau, essa exploração extensiva está no fundo da crise que sacudiu a economia argentina nos anos 60. Os latifundiários argentinos não mostraram maior interesse por introduzir inovações técnicas em seus campos. A produtividade é baixa porque convém que seja assim; a lei do lucro pode mais do que todas as leis. A extensão das propriedades, através da compra de novos campos, é mais lucrativa e menos arriscada do que a colocação em prática dos meios que a tecnologia moderna proporciona para a produção intensiva123. Em 193 1, a Sociedade Rural opunha o cavalo ao trator: “Agricultores pecuaristas! - proclamavam seus dirigentes - Trabalhar com cavalos nas tarefas agrícolas é proteger seus próprios interesses e os do país.” Vinte anos depois, insistia em suas publicações: “É mais fácil - disse um conhecido militar - que o pasto chegue ao estômago de um cavalo do que a gasolina ao tanque de um pesado caminhão”124. Segundo os dados da CEPAL, a Argen- tina tem, em proporção aos hectares de superfície arável, 16 vezes menos tratores do que a França e 19 vezes menos tratores do que o Reino Unido. O país consome, também em proporção, 140 vezes menos fertilizantes do que a Alemanha Ocidental125. Os rendimen- 122. Rui Facó, Cangaceiros e fanáticos, Rio de Janeiro, 1965. 123. O prado artificial representa, sob o prisma do capitalista pecuarista, um translado de capital para uma inversão mais volumosa, mais perigosa e simultaneamente menos rentável do que a inversão tradicional na pecuária extensiva. Assim, o interesse privado do produtor entra em contradição com o interesse da sociedade em conjunto: a qualidade do gado e seus rendimentos só podem ser incrementados, a partir de certo ponto, através do aumento do poder nutritivo do solo. O país precisa de que as vacas produzam mais carne e as ovelhas mais lã, porém os donos da terra ganham mais do que o suficiente, ao nível dos rendimentos atuais. As conclusões do Instituto de Economia da Universidade do Uruguai (op. cit.) são, neste sentido, também aplicá- veis à Argentina. 124. Dardo Cúneo, Comportamiento y crisis de la clase empresaria, Buenos Aires, 1967. 92 tos do trigo, milho e algodão da agricultura argentina são muito mais baixos do que os rendimentos destas culturas nos países desenvolvidos. Juan Domingo Perón desafiou os interesses da oligarquia de terras da Argentina, quando impôs o estatuto do peão e o cumprimento do salário-mínimo rural. Em 1914, a Sociedade Rural afirmava: “Na fixação dos salários é primordial determinar o padrão de vida do peão comum. São às vezes tão limitadas suas necessidades materiais que um resíduo tem destinos socialmente pouco interessantes.” A Sociedade Rural continua fa- lando dos peões como se fossem animais, e a profunda meditação a propósito das curtas necessidades de consumo dos trabalhadores oferece, involuntariamente, uma boa chave para compreender as limitações do desenvolvimento industrial argentino: o mercado interno não se estende nem se aprofunda na medida suficiente. A política de desenvolvi- mento econômico que impulsionou o próprio Perón não rompeu nunca a estrutura de subdesenvolvimento agropecuário. Em junho de 1952, num discurso que pronunciou do Teatro Colón, Perón desmentiu que tivesse o propósito de realizar uma reforma agraria, e a Sociedade Rural comentou oficialmente: “Foi uma boa dissertação.” Na Bolívia, graças à reforma agrária de 1952, melhorou visivelmente a alimentação em vastas zonas rurais do altiplano, tanto que até se comprovaram mudanças de estatura dos camponeses. Todavia, o conjunto da população boliviana consome ainda apenas uns 60% das proteínas e a quinta parte do cálcio necessário na dieta mínima; nas áreas rurais, o déficit é ainda mais agudo que estas médias. Não se pode dizer de modo algum que a reforma agrária fracassou, mas a divisão das terras altas não bastaram para impedir que a Bolívia gaste, em nossos dias, a quinta parte de suas divisas para importar alimentos do estrangeiro. A reforma agrária que o governo militar do Peru pôs em prática, em 1969, mostrou ser, desde o início, uma séria experiência de mudança em profundidade. E a respeito da expropriação de alguns latifúndios chilenos por parte do governo de Eduardo Frei, é justo reconhecer que abriu o leito à reforma agrária radical tentada por Allende. AS TREZE COLÔNIAS DO NORTE E A IMPORTÂNCIA DE NÃO NASCER IMPORTANTE A apropriação privada da terra sempre se antecipou, na América Latina, ao seu cultivo útil. Os traços mais retrógrados do sistema de posse, atualmente vigente, não provêm da crise, mas nasceram durante os períodos de maior prosperidade; ao contrário, os períodos de depressão econômica apaziguaram a voracidade dos latifundiários pela conquista de novas extensões. No Brasil, por exemplo, a decadência do açúcar e o virtual desaparecimento do ouro e diamante tornaram possível, entre 1820 e 1850, uma legisla- ção que assegurava a propriedade da terra a quem a ocupasse e a fizesse produzir. Em 1850, a ascensão do café como novo “produto rei” determinou a sanção da Lei de Terras, cozinhada segundo o paladar dos políticos e dos militares do regime oligárquico, para negar a propriedade para os que nela trabalhassem, na medida em que iam-se abrindo, até o sul e o oeste, os gigantescos espaços inteiros do país. Esta lei “foi reforçada e ratificada, desde então, por uma copiosíssima legislação, que estabelecia a compra como única forma de acesso à terra e criava um sistema cartorial de registro que tornava quase impraticável que um lavrador pudesse legalizar sua posse...126 A legislação norte-americana da mesma época propôs-se ao objetivo oposto, para 125. CEPAL, Estudio económico de América Latina, Santiago do Chile, 1964 o 1966, e El uso de fertilizantes en América Latina, Santiago do Chile, 1966. 126. Darcy Ribeiro, Las Américas y la civilización, Tomo II, Los pueblos nuevos, Buenos Aires, 1969. 95 ção - declarou - poderemos examinar todas as riquezas da Terra: os poços de petróleo desconhecidos, as minas de cobre e de zinco...” O petróleo continua a ser o principal combustível de nosso tempo, e os norte-americanos importam a sétima parte do petróleo que consomem. Para matar vietnamitas, precisam de balas, e balas precisam de cobre: os Estados Unidos compram fora de suas fronteiras a quinta parte do cobre que gastam. A falta de zinco se torna cada vez mais angustiosa: cerca da metade vem do exterior. Não se pode fabricar aviões sem alumínio, e não se pode fabricar alumínio sem bauxita: os Estados Unidos quase não têm bauxita. Seus grandes centros siderúrgicos - Pittsburgh, Cleveland Detroit - não encontram ferro suficiente nas jazidas de Minnesota, que estão a caminho de se esgotarem, nem têm o manganês de que necessita. Para produzir motores do retropropulsão, não contam com níquel nem com cromo em seu subsolo. Para fabricar aços especiais, é preciso ter tungstênio: importam a quarta parte. Esta dependência crescente, em relação aos fornecimentos externos, determina uma identificação também crescente dos interesses capitalistas norte-americanos na América Latina com a segurança nacional dos Estados Unidos. A estabilidade interior da primeira potência do mundo está intimamente ligada às inversões norte-americanas ao sul do rio Bravo. Cerca da metade destas inversões é dedicada à extração de petróleo e à exploração de riquezas minerais, “indispensáveis para a economia dos Estados Unidos, tanto na paz como na guerra”1. O presidente do Conselho Internacional da Câmara de Comércio do país do norte o define assim: “Historicamente, uma das razões principais de os Estados Unidos para investirem no exterior é o desenvolvimento de recursos naturais, particularmente minerais e, mais especialmente, o petróleo. É perfeitamente óbvio que os incentivos deste tipo de inversões devam ser incrementadas. Nossas necessidades de matérias-primas estão em constante aumento, na medida em que a população se ex- pande e o nível de vida sobe. Ao mesmo tempo, nossos recursos domésticos se esgo- tam...”2 Os laboratórios científicos do governo, das universidades e das grandes corporações envergonham a imaginação com o ritmo febril de suas invenções e descobertas, mas a nova tecnologia não encontrou a maneira de prescindir dos materiais básicos que a natu- reza, e só ela, proporciona. Vão-se debilitando, ao mesmo tempo, as respostas que o subsolo nacional é capaz de dar ao desafio do crescimento industrial dos Estados Unidos3. O SUBSOLO TAMBÉM PRODUZ GOLPES DE ESTADO, REVOLUÇÕES, ESTÓRIAS DE ESPIONAGEM E AVENTURAS NA SELVA AMAZÔNICA No Brasil, as esplêndidas jazidas de ferro do vale do Paraopeba derrubaram dois presidentes - Jânio Quadros e João Goulart - antes que o marechal Castelo Branco, que tomou o poder em 1964, os cedesse a Hanna Mining Co. Outro amigo anterior do embaixa- dor dos Estados Unidos, o presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-51), tinha concedido à Bethlehem Steel, alguns anos antes, as quarenta milhões de toneladas de manganês do Estado de Amapá, uma das maiores jazidas do mundo, em troca de 1,4% para o Estado sobre as rendas de exportação; desde então, a Bethlehem está transferindo as montanhas 1. Edwin Lieuwcn, The United States and the Challenge to Security in Latin America, Ohio, 1966. 2. Philip Courtney, num trabalho apresentado ante o II Congresso Internacional de Poupança e Inversão, Bruxelas, 1959. 3. Harry Magdoff, La era del imperialismo, em Monthly Review, seleções em castelhano, Santi- ago do Chile, janeiro-fevereiro de 1969, e Claude Julien, L'Empire Américain, Paris, 1969. 96 para os Estados Unidos com tal entusiasmo que se teme que daqui a quinze anos o Brasil fique sem manganês para abastecer sua própria siderurgia. De resto, de cada cem dólares que a Bethlehem investe na extração de minerais, oitenta e oito correspondem a uma gentileza do governo brasileiro: as isenções fiscais em nome do “desenvolvimento regio- nal”. A experiência do ouro perdido de Minas Gerais - “ouro branco, ouro negro, ouro podre”, escreveu o poeta Manuel Bandeira - não serviu, como se vê, para nada: o Brasil continua despojando-se gratuitamente de suas fontes naturais de desenvolvimento4. Por sua parte, o ditador Renê Barrientos apoderou-se da Bolívia em 1964 e, entre uma e ou tra matança de mineiros, outorgou à firma Philips Brothers a concessão da mina Matilde, que contém chumbo, prata e grandes jazidas de zinco com um teor doze vezes mais alto do que as minas norte-americanas. A empresa foi autorizada a levar o zinco em bruto, para elaborá-lo em suas refinarias estrangeiras, pagando ao Estado nada menos de 1,5% do valor de venda do mineral5. No Peru, em 1968, perdeu-se misteriosamente a página número 11 do convênio que o presidente Belaúnde Terry tinha firmado aos pés de uma filial da Standard Oil; o general Velasco Alvarado derrubou o presidente, tomou as rédeas do país e nacionalizou os poços e a refinaria da empresa. Na Venezuela, no grande lago de petróleo da Standard Oil e da Gulf, tem lugar a maior missão militar norte-americana da America Latina. Os freqüentes golpes de estado da Argentina explodem antes e depois de cada licitação petrolífera. O cobre não está de modo algum alheio à desproporcionada ajuda militar que o Chile recebia do Pentágono até o triunfo eleitoral das forças de esquer- da encabeçadas por Salvador Allende; as reservas norte-americanas de cobre tinham caído em mais de 60% entre 1965 e 1969. Em 1964, em seu gabinete de Havana, Che Guevara me mostrou que a Cuba de Batista não era só de açúcar: as grandes jazidas cubanas de níquel e manganês explicavam melhor, em seu juízo, a fúria cega do império contra a revolução. Desde aquela conversa ção, as reservas de níquel dos Estados Unidos se redu- ziram a um terço: a empresa norte-americana Nicro-Nickel fora nacionalizada e o presi- dente Johnson ameaçara os metalúrgicos franceses com o embargo de seus envios aos Estados Unidos, se comprassem o minério de Cuba. Os minérios tiveram muito que ver com a queda do governo do socialista Cheddi Jagan, que em fins de 1964 obtivera novamente a maioria dos votos no que então era a Guiana inglesa. O país que hoje se chama Guiana é o quarto produtor mundial de bauxita e figura no terceiro lugar entre os produtores latino-americanos de manganês. A CIA desempenhou um papel decisivo na derrota de Jagan. Arnold Zander, o dirigente máximo da greve que serviu de provocação e pretexto para negar com armadilhas a vitória eleitoral de Jagan, admitiu publicamente, tempos depois, que seu sindicato tinha recebido uma chuva de dólares de uma das fundações da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos6. O novo regime, muito ocidental e muito cristão, garantiu que não correriam perigo os interesses da Aluminium Company of America na Guiana: a empresa poderia continuar levando, sem sobressaltos, a bauxita, e vendê-la a si mesma ao mesmo preço de 1938, embora desde então houvesse se multiplicado o preço do alumínio7. O negócio já 4. O governo do México advertiu a tempo, em compensação, que o país, um dos principais exportadores de enxofre, estava se esvaziando. A Texas Gulf Sulphur Co. e a Pan American Sulphur tinham assegurado que as reservas com que ainda contavam suas concessões eram seis vezes mais abundantes do que eram na realidade, e o governo resolveu, em 1965, limitar as vendas ao exterior. 5. Sergio Almaraz Paz, Réquiem para una república, La Paz, 1969. 6. Claude Julien, op. cit. 7. Arthur Davies, presidente da Aluminium Co. durante muito tempo, morreu em 1962 e deixou trezentos milhões de dólares de herança às fundações de caridade, com a expressa condição de que não gastassem os fundos fora do território dos Estados Unidos. Nem sequer por esta via pôde a Guiana resgatar ainda que fosse uma parte da riqueza que a empresa lhe arrebatou. (Philip 97 não corria perigo. A bauxita de Arkansas vale o dobro da bauxita da Guiana. Os Estados Unidos dispõem de muito pouca bauxita em seu território; utilizando matéria-prima alheia e muito barata, produzem, em compensação, quase a metade do alumínio que se elabora no mundo. Para abastecer-se da maior parte dos minerais estratégicos que se consideram de valor crítico para seu potencial de guerra, os Estados Unidos dependem das fontes exter- nas. “O motor de retroprosulsão, a turbina de gás e os reatores nucleares têm hoje uma enorme influência sobre a demanda de materiais que só podem ser obtidos no exterior”, diz Magdoff neste sentido8. A imperiosa necessidade de materiais estratégicos, imprescin- díveis para salvaguardar o poder militar e atômico dos Estados Unidos, está claramente vinculada à maciça compra de terras, por meios geralmente fraudulentos, na Amazônia brasileira. Na década de 60, numerosas empresas norte-americanas, conduzidas pela mão de aventureiros e contrabandistas profissionais, se lançaram num rush febril sobre esta selva gigantesca. Previamente, em virtude do acordo firmado em 1964, os aviões da Força Aérea dos Estados Unidos haviam sobrevoado e fotografado a região. Utilizaram equipa- mentos de cintilômetros para detectar jazidas de minerais radioativos pela emissão de ondas de luz de intensidade variável, electromagnetrômetros, para radiografar o subsolo rico em minerais não ferrosos, e magnetrômetros para descobrir e medir o ferro. Os infor- mes e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas secretas da Amazônia foram postos em mãos de empresas privadas, interessadas no assunto, graças aos bons serviços do Geological Survey do governo dos Estados Unidos9. Na imensa região, comprovou-se a existência de ouro, prata, diamantes, gipsita, hematita, magnetita, tantálio, toro, urânio, quartzo, cobre, manganês, chumbo, sulfatos, potássios, bauxita, zinco, circônio, cromo e mercúrio. O céu da selva virgem de Mato Grosso até as planuras do sul de Goiás é tão aberto que, segundo o delírio da revista Time, em sua última edição latino-americana de 1967, pode-se ver ao mesmo tempo o sol brilhante e alguns relâmpagos de tormentas diferentes. O governo tinha oferecido isenções de impostos e outras vantagens para colonizar os espaços virgens deste universo mágico e selvagem. Segundo o Time, os capitalistas estrangeiros tinham comprado antes de 1967, a sete centavos o acre, uma superfície maior do que a que somam os territórios de Connecticut, Rhode Island, Delaware, Massachusetts e New Hampshire. “Devemos manter as portas abertas à inversão estrangeira - dizia o diretor da SUDAM, agência governamental para o desenvolvimento da Amazonia -, porque necessitamos mais do que podemos obter.” Para justificar o levantamento aerofotogramétrico por parte da aviação norte-americana, o go- verno tinha declarado, antes, que carecia de recursos. Na América Latina é o normal: sempre entregam os recursos ao imperialismo em nome da falta de recursos. O Congresso brasileiro pôde realizar uma investigação que culminou com um volu- moso informe sobre o tema10. Nele se enumeram os casos de venda de terras em vinte milhões de hectares, estendidas de maneira tão curiosa que, segundo a comissão de inquérito, “formam um cordão para isolar a Amazônia do resto do Brasil”. A “exploração clandestina de minerais muito valiosos” figura no informe como um dos principais moti- vos da avidez norte-americana para abrir uma nova fronteira dentro do Brasil. O testemu- Reno, Aluminium Profus and Caribbean People, Monthly Review, Nova Iorque, outubro de 1963, e do mesmo autor, El drama de Ia Guyana Británica. Un pueblo desde la esclavitud a la lucha por el socialismo, Monthly Review, seleções em castelhano, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1965. 8. Harry Magdoff, op. cit. 9. Hermano Alves, A Aerofotogrametria em Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1967. 10. Informe da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a venda de terras brasileiras a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, Brasília, 3 de junho de 1968.
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