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3 Comentario Biblico Espositivo do Antigo Testamento - Warren W. Wiersbe-Volume-III-Poeticos, Notas de estudo de Teologia

3 Comentario Biblico Espositivo do Antigo Testamento - Warren W. Wiersbe-Volume-III-Poeticos

Tipologia: Notas de estudo

2015

Compartilhado em 14/03/2015

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edson-nobre-6 🇧🇷

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Baixe 3 Comentario Biblico Espositivo do Antigo Testamento - Warren W. Wiersbe-Volume-III-Poeticos e outras Notas de estudo em PDF para Teologia, somente na Docsity! P o é t i c o s C o m en tário B íblico Expositivo Antigo Testamento Volume III — Poéticos W arren W . W iersbe T r a d u z i d o p o r S u s a n a E. K l a s s e n Ia Edição 5 a Impressão Geogmfíça Santo André, SP - Brasil 2010 Jó Sem dúvida, muitos já ouviram falar de Jó e de suas provações, mas poucos sabem o que elas significam e o que Deus estava procurando realizar por meio delas. Também são poucos os que entendem que Jó sofreu desse modo para que o povo de Deus, nos dias de hoje, aprenda com suas experiências a ser paciente em meio ao sofrimento e a perseverar até o fim. Quando resolvi escrever sobre Jó, co­ mentei com minha esposa: "Fico imaginan­ do quanto sofrimento teremos de suportar para que eu possa escrever este livro". (Não desejo escrever nem pregar de maneira im­ pessoal ou acadêmica. Se a Palavra não se tornar real para mim, não serei capaz de torná-la real para outros.) Mal sabíamos as tribulações que Deus permitiria que passás­ semos! No entanto, testemunhamos que Deus é fiel, responde a orações e sempre tem em mente um propósito maravilhoso (Jr 29:11). Talvez você também tenha de passar pela fornalha a fim de estudar o Livro de Jó e de compreender, de fato, sua mensagem. Se esse for o caso, não tema! Pela fé, diga como Jó: "Mas ele sabe o meu caminho; se ele me provasse, sairia eu como o ouro" (Jó 23:10). O ouro não teme o fogo. Tudo o que é quei­ mado e fica para trás na fornalha não vale coisa alguma. Ao estudarmos juntos o Livro de Jó, es­ pero que duas coisas se realizem em sua vida: que você aprenda a ser paciente em meio a suas provações e que aprenda a aju­ dar a outros em meio às dificuldades deles. Estamos cercados de pessoas necessitando de encorajamento, e Deus pode estar prepa­ rando você exatamente para esse ministério. De qualquer modo, espero que este livro venha a ajudá-lo. Lord Byron acertou em cheio quando escreveu: "A verdade é sempre estranha; mais estranha do que a ficção". O Livro de Jó não é uma ficção religiosa. Jó não foi um personagem imaginário, mas sim uma pessoa real; tanto Ezequiel (14:14, 20) quanto Tiago (5:11) dão testemunho desse fato. Uma vez que foi um homem real, com experiências reais, Jó é capaz de nos contar aquilo que precisamos saber sobre a vida e os problemas no mundo real. C o m eç a o D ram a Jó i - 3 1 Tendes ouvido da paciência de Jó (Tg 5:11) O s três primeiros capítulos apresentam o homem chamado Jó e revelam qua­ tro fatos importantes sobre ele. 1. A PROSPERIDADE DE JÓ (JÓ 1:1-5) E bem provável que a terra de Uz ficasse próxima a Edom (Lm 4:21). Elifaz, um dos amigos de Jó, veio de Temã, um lugar associa­ do aos edomitas (Jó 2:11; Cn 36:11). Seu caráter (1:1). Jó era "íntegro e reto" (Jó 1:1). Não era um indivíduo sem pecados, pois essa é uma característica que ninguém pode requerer para si. Porém, seu caráter era maduro e pleno, e sua conduta, "reta". O termo "integridade" é outra palavra impor­ tante em Jó (2:3, 9; 27:5; 31:6). Pessoas ínte­ gras são indivíduos completos, sem qualquer hipocrisia ou duplicidade. Jó manteve sua integridade diante das acusações de seus amigos e do silêncio de Deus, e, por fim, o Senhor o justificou. Jó era um homem "temente a Deus e que se desviava do mal"; esse era o alicerce de seu caráter. "Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e o apartar-se do mal é o enten­ dimento" (28:28). Temer ao Senhor significa respeitá-lo por seu caráter, seus atos e suas palavras. Esse temor não é o medo que faz o escravo encolher-se diante de seu senhor, mas sim a reverência amorosa de um filho diante do pai, um respeito que conduz à obediência. Nas palavras de Oswald Cham- bers: "O mais extraordinário a respeito do temor a Deus é que, quando tememos a Deus, não temos medo de nada. Ao passo que, se não temermos a Deus, teremos medo de tudo". Sua família (1:2). Jó possuía uma família próspera. Os acontecimentos do livro desen­ rolam-se na época dos patriarcas, quando uma família grande era considerada uma bênção de Deus (Cn 12:2; 13:16; 30:1). Os filhos de Jó deviam gostar de passar tempo juntos, ten­ do em vista que se reuniam com freqüência para comemorar seus aniversários, indicando que Jó e sua esposa educaram bem seus fi­ lhos. O fato de o patriarca oferecer sacrifícios especiais depois de cada aniversário não indi­ ca que fossem comemorações ímpias. Mos­ tra, apenas, que Jó era um homem piedoso e desejava se certificar de que tudo em sua fa­ mília estava em ordem diante de Deus. Seus bens materiais (1:3). Naquele tem­ po, a riqueza era medida principalmente em termos de terras, animais e servos; e Jó pos­ suía os três em abundância. Porém, sua rique­ za não o afastou de Deus. Ele reconheceu que o Senhor havia lhe dado todos os seus recursos (Jó 1:21) e usou sua riqueza com generosidade para beneficiar a outros (4:1- 4; 29:12-17; 31:16-32). Jó não teria proble­ ma algum em obedecer àquilo que Paulo escreveu em 1 Timóteo 6:6-19. Seus amigos (2:11). Apesar de ser verda­ de que os três amigos de Jó o magoaram profundamente, ainda assim, eram seus ami­ gos. Quando ficaram sabendo das tragédias ocorridas na família de Jó, vieram de lugares distantes para visitá-lo e sentaram a seu lado em silêncio, demonstrando compaixão por ele. Seu erro foi achar que precisavam en­ contrar uma justificativa para a situação de Jó e lhe dizer como mudá-la. Henry Ford disse: "Meu melhor amigo é aquele que faz aflorar o que há de melhor em mim"; mas os amigos de Jó fizeram aflorar o que havia de pior nele. No fim das contas, porém, Jó e seus amigos se reconciliaram (42:7- 10), e quero crer que seu relacionamento tor­ nou-se ainda mais profundo. Sem dúvida, os amigos verdadeiros são um grande tesouro. 2. A ADVERSIDADE DE JÓ (JÓ 1:6-19) Em um único dia, Jó foi privado de suas rique­ zas. Um após o outro, quatro mensageiros JÓ 1 - 3 9 assustados relataram que 500 juntas de bois, 500 jumentos e 3 mil camelos foram rouba­ dos em ataques inimigos; 7 mil ovelhas fo­ ram atingidas por raios e mortas e todos os seus 10 filhos foram mortos por um venda- val. O rei Salomão estava certo: "Pois o ho­ mem não sabe a sua hora. Como os peixes que se apanham com a rede traiçoeira e como os passarinhos que se prendem com o laço, assim se enredam também os filhos dos homens no tempo da calamidade, quando cai de repente sobre eles" (Ec 9:12). Jó sabia o que havia acontecido, mas não sabia por que isso havia ocorrido; esse era o "x" da questão. Uma vez que o autor nos permite visitar a sala do trono no céu e ouvir Deus e Satanás conversando, sabemos quem causou a destruição e por que ele teve per­ missão de fazê-lo. Mas, se não tivéssemos esse insight, é bem provável que usaríamos a mesma abordagem dos três amigos culpan­ do Jó pela tragédia. Essa cena revela várias verdades relevan­ tes, sendo uma das principais que Deus é soberano sobre todas as coisas. Ele está as­ sentado em seu trono no céu, os anjos fazem sua vontade e lhe prestam contas; nem mes­ mo Satanás pode fazer coisa alguma contra o povo de Deus sem a permissão divina. O "Todo-Poderoso" é um dos nomes mais im­ portantes de Deus em Jó e é usado trinta e uma vezes nesse livro. Desde o princípio, o autor nos faz lembrar que não importa o que venha a acontecer neste mundo e em nossa vida, Deus está assentado em seu trono e tem todas as coisas sob controle. Outra verdade - talvez até surpreenden­ te - é que Satanás tem acesso ao trono de Deus no céu. Graças ao Paraíso Perdido de John Milton, muita gente tem a idéia equivo­ cada de que Satanás reina sobre este mundo a partir do inferno ("Melhor reinar no infer­ no/ do que servir no céu"). Mas Satanás só será lançado no lago de fogo depois do juízo final (Ap 20:1 Oss). Hoje, ele tem liberdade de rodear a terra (Jó 1:7; 1 Pe 5:8) e até mesmo de ir à presença de Deus no céu. A terceira verdade é a mais importante de todas: ao contrário de Satanás, Deus não en­ controu qualquer culpa em Jó. A declaração de Deus em Jó 1:8 repete a descrição de Jó no versículo 1, mas Satanás a questionou. A palavra "Satanás" significa "adversário, aque­ le que se opõe à lei". Trata-se de uma cena num tribunal, em que Deus e Satanás dão veredictos diferentes sobre Jó. Ao estudar este livro, devemos ter sempre em mente que Deus declarou Jó "inocente" (1:8; 2:3; 42:7). Não foi algo na vida de Jó que levou Deus a fazê-lo sofrer. Porém, Satanás o declarou "cul­ pado", pois ele é o acusador do povo de Deus e não encontra nada de bom naqueles que temem ao Senhor (Zc 3; Ap 12:10). A acusação de Satanás contra Jó foi, na verdade, um ataque a Deus. Assim podemos fazer a seguinte paráfrase: "Tu estás pagando Jó para te temer. Os dois têm um contrato: enquanto ele te obedece e te adora, tu o proteges e o fazes prosperar. Tu não és um Deus digno de adoração! Afinal, precisas pagar para que as pessoas te honrem". Os três amigos de Jó afirmaram que ele estava sofrendo porque havia pecado - o que não era verdade. Eliú disse que Deus estava disciplinando Jó a fim de aperfeiçoá- lo - o que, em parte, era verdade. Porém, o motivo fundamental do sofrimento de jó foi silenciar as acusações blasfemas de Satanás e provar que, mesmo tendo perdido tudo, um homem honraria a Deus. Foi uma luta "nas regiões celestes" (Ef 6:12), mas Jó não sabia disso. A vida de Jó foi um campo de batalha em que as forças de Deus e de Satanás tra­ varam uma guerra espiritual para decidir a seguinte questão: "O Deus Jeová é digno da adoração do homem?" Agora, podemos compreender melhor por que Jó se mostrou tão inflexível ao resistir aos conselhos de seus amigos. Eles deseja­ vam que Jó se arrependesse de seus pecados para que Deus removesse o sofrimento e o fizesse prosperar outra vez. Jó se recusava a "inventar" um pecado em sua vida só para se arrepender e "merecer" a bênção de Deus. Se tomasse tal atitude, estaria fazendo exa­ tamente o que o Acusador queria! Em vez disso, Jó apegou-se firmemente a sua integri­ dade e bendisse a Deus, mesmo sem enten­ der o que o Senhor estava fazendo. Uma derrota e tanto para o príncipe das trevas! 12 JÓ 1 - 3 perseguição a Jó, esses três homens possuíam algumas qualidades admiráveis. Em primeiro lugar, importaram-se o sufi­ ciente com Jó a ponto de percorrer uma longa distância para visitá-lo. Quando se lamen­ taram com ele, não o fizeram numa casa confortável nem em um quarto de hospital: assentaram-se com ele no monturo, cerca­ dos de lixo. Sua tristeza era tanta que não conseguiram falar durante sete dias. (Fica claro que, posteriormente, tiraram o atraso desse silêncio.) Na verdade, sua expressão de tristeza foi como o luto pela morte de uma pessoa eminente (Gn 50:10). A melhor maneira de ajudar as pessoas que sofrem é simplesmente ficar com elas, dizendo pouca coisa ou permanecendo em silêncio, demonstrando que nos preocupa­ mos com elas. Não devemos tentar explicar coisa alguma, pois as explicações não curam o coração ferido. Se os amigos de jó tives­ sem dado ouvidos a ele, aceitando seus senti­ mentos e não argumentado com ele, teriam sido de grande ajuda. Porém, escolheram ser advogados de acusação em vez de testemu­ nhas. No final, o Senhor os repreendeu, e ti­ veram de pedir perdão a Jó (jó 42:7-10). A voz do sofredor (3:1-26). Depois de sete dias de sofrimento silencioso, Jó não abriu a boca para amaldiçoar a Deus, mas sim para maldizer o dia do seu próprio nas­ cimento. "Por que eu fui nascer?". Essa é uma pergunta que, nos momentos de dor, já foi feita aos prantos por muitos filhos de Deus, inclusive o profeta Jeremias (Jr 20:14-18). Não se trata exatamente da mesma coisa que dizer: "Queria estar morto", apesar de Jó ter expressado esse desejo em mais de uma ocasião (Jó 6:9; 7:15, 16; 14:13). Em mo­ mento algum, Jó fala de dar cabo da própria vida. A "lamentação pelo nascimento" profe­ rida por Jó não é uma apologia ao suicídio nem à eutanásia. E a declaração de um ho­ mem cujo sofrimento era tão intenso que ele desejou jamais ter nascido. Quando sofremos, podemos dizer e fa­ zer uma porção de coisas das quais nos arre­ penderemos mais tarde. O sofrimento de Jó era tão grande que ele se esqueceu das bên­ çãos que ele e sua família haviam desfrutado durante tantos anos. Se jamais tivesse nasci­ do, não teria sido o homem mais importante do Oriente! Mas a dor nos faz esquecer as alegrias do passado e olhar somente para um futuro sem esperança. Os amigos de Jó ouviram o que ele disse, mas não sentiram a angústia de seu coração e usaram a aborda­ gem errada para ajudá-lo a lidar com suas provações. Argumentaram sobre suas pala­ vras em vez de ministrar a seus sentimentos. Jó amaldiçoou dois momentos: a noite de sua concepção e o dia do seu nascimento (3:1-13). A concepção é uma bênção de Deus (Gn 30:1, 2; SI 139:13-16), de modo que, quando amaldiçoamos uma bênção, estamos questionando a bondade de Deus. (Observe como Jó diz que uma criança foi concebida e não "uma massa de proto­ plasma" ou "uma coisa". Ele era uma pessoa desde a concepção.) A palavra-chave dessa passagem é tre­ vas. Quando um bebê nasce, sai das trevas para a luz, mas Jó queria permanecer nas trevas. Na verdade, teria sido melhor se ti­ vesse nascido morto! Então, teria ido para o reino dos mortos (sheol) e não precisaria pas­ sar por todo esse sofrimento. Jó encerra sua maldição repetindo qua­ tro vezes "por quê?", fazendo perguntas que somente Deus é capaz de responder. É fácil perguntar por quê, mas é difícil obter a res­ posta certa. Não há nada de errado em per­ guntar, desde que não pensemos que Deus nos deve uma resposta. Até mesmo Jesus perguntou: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (Mt 27:46). Mas se o Senhor nos explicasse o motivo de as coisas acontecerem, será que isso aliviaria nossa dor ou sararia nosso coração partido? Ver a radiografia faz passar a dor de uma perna quebrada? Vivemos de promessas e não de explicações, de modo que não devemos gastar muito tempo perguntando a Deus "por quê". A última metade do lamento é uma des­ crição do mundo dos mortos, o lugar que os judeus chamavam de Sheol (Jó 3:1 3-26). Era lá que Jó desejava estar! O Antigo Testamen­ to não apresenta uma revelação completa e definitiva da vida depois da morte. Essa revelação só foi dada com a vinda do Salva­ dor (2 Tm 1:10). Jó imaginava o Sheol como um lugar de sombras, onde os grandes e os pequenos descansavam juntos, longe dos far­ dos e sofrimentos da vida na terra, jó prefe­ ria estar morto e ter descanso a estar vivo e suportar toda a miséria que lhe havia sobre­ vindo. Afinal, no que se referia a seu futuro (Jó 3:23), já se encontrava no escuro, de modo que podia muito bem ir para as trevas do Sheol. No final de seu lamento, Jó conta um se­ gredo (vv. 25, 26): antes de todos os seus problemas terem início, havia sentido - e te­ mido - que algo terrível aconteceria. Esse sen­ timento fora uma intuição vinda do Senhor? Por vezes, o povo de Deus recebe essas in- tuições que o faz buscar ao Senhor e orar pedindo sua ajuda. Foi isso o que Jó fez? Não sabemos, mas temos certeza de que estava arrasado, pois seus piores medos se realizaram. Infelizmente, os três amigos de Jó con- centraram-se em seu lamento, não em sua declaração de fé (1:21- 2:10). Depois de ouvirem Jó amaldiçoar o dia de seu nasci­ mento, pensaram ser necessário repreendê- lo e defender Deus. Aqui começa a argumentação, que se transforma numa discussão e, depois, numa contenda, levando o Senhor a intervir para encerrar a questão de uma vez por todas. Interlúd io Uma vez que passaremos um bocado de tempo com os três amigos de jó, con­ vém conhecê-los um pouco melhor. Os três homens eram idosos (Jó 32:6) e mais velhos que Jó (15:10), mas supomos que o mais velho de todos era Elifaz. Seu nome aparece primeiro (2:11), foi ele quem falou primeiro, e, ao que parece, o Senhor o considerava o membro mais velho do trio (42:7). E associado a Temã, um lugar conhe­ cido por sua sabedoria (Jr 49:7). Elifaz baseou seus discursos em duas coisas: nas próprias observações acerca da vida ("Segundo eu tenho visto", "Bem vi eu", "Eis que isto já o havemos inquerido"; Jó 4:8; 5:3, 27, respec­ tivamente) e numa experiência assustadora que teve certa noite (4:12-21). Elifaz confia­ va muito na tradição (15:18, 1 9), e o Deus que ele adorava era um Legislador rígido. "Acaso, já pereceu algum inocente?" (4:7), perguntou ele, e incontáveis mártires pode­ riam responder: "Nós!" (Que dizer do Senhor Jesus Cristo?) Elifaz possuía uma teologia inflexível que não deixava muito espaço para a graça de Deus. E bem possível que Bildade fosse o se­ gundo mais velho, uma vez que seu nome aparece em segundo lugar e ele fala depois de Elifaz. Pode-se descrever Bildade com uma só palavra: legalista. Seu lema era: "Eis que Deus não rejeita ao íntegro, nem toma pela mão os malfeitores" (8:20). Era capaz de ci­ tar provérbios antigos e, assim como Elifaz, tinha profundo respeito pela tradição. Bildade estava certo de que os filhos de Jó haviam morrido porque também eram peca­ dores (v. 4). Não demonstra sensibilidade alguma pelo amigo sofredor. Zofar era o mais jovem dos três e, sem dúvida, o mais dogmático. Fala como um diretor de escola dirigindo-se a uma turma de calouros ignorantes. Sua abordagem in­ sensível é: "Sabe, portanto!" (11:6; 20:4). Não se mostra, de modo algum, um homem misericordioso e diz a Jó que, tendo em vis­ ta seus pecados, Deus o estava fazendo so­ frer muito menos do que merecia! (11:6). Seu lema era: "Porventura, não sabes tu que desde todos os tempos [...] o júbilo dos perversos é breve, e a alegria dos ímpios, momentânea?" (Jó 20:4, 5). É interessante observar que Zofar só se dirige a Jó em duas ocasiões. Ou ele decidiu que não era capaz de refutar a argumentação de Jó, ou con­ siderou uma perda de tempo tentar ajudar o amigo. Algumas das palavras desses três homens são boas e verdadeiras, enquanto outras são insensatas. De qualquer modo, por terem uma visão muito restrita, não puderam aju­ dar o amigo. Sua teologia não era vital nem vibrante, mas sim morta e rígida, e o Deus que tentaram defender era pequeno o sufi­ ciente para ser compreendido e explicado. Esses homens são uma ilustração perfeita da declaração de Dorothy Sayers: "Nada é im­ possível de ser provado caso seu ponto de vista seja suficientemente limitado". Por que alguém falaria a um amigo do modo como esses três homens falaram a Jó? Por que estavam tão zangados? Encontra­ mos uma pista nas palavras de Jó: "Assim também vós outros sois nada para mim; ve­ des os meus males e vos espantais" (6:21). Esses três homens estavam com medo de que as mesmas calamidades acontecessem com eles! Portanto, precisavam defender sua pre­ missa de que Deus recompensa os justos e castiga os perversos. Enquanto fossem "jus­ tos", nada de mal lhes aconteceria nesta vida. O medo e a raiva muitas vezes andam juntos. Ao afirmar sua integridade e se re­ cusar a dizer que havia pecado, Jó abalou a teologia de seus amigos e tirou deles sua paz e confiança, o que, por sua vez, os deixou zangados. Deus usou Jó para destruir a teo­ logia superficial desses homens e desafiá-los a aprofundar-se no coração e na mente do JÓ 4 - 7 17 Qual foi o conteúdo da mensagem? Essa men­ sagem foi uma revelação direta de Deus? Uma vez que os manuscritos hebraicos do Antigo Testamento não apresentam pon­ tuações, nem sempre sabemos, ao certo, onde começam e terminam certas citações. A maioria das traduções em nossa língua determina o trecho de 4:1 7-21 como a decla­ ração completa do "espírito". Porém, alguns estudiosos acreditam que essa declaração limita-se ao versículo 1 7 e que o restante é um comentário de Elifaz. De qualquer modo, a mensagem é a mesma: a vida do ser huma­ no é breve e frágil, e, por sua própria conta, ele nunca é capaz de ser suficientemente jus­ to para agradar a Deus. Mas será que essa declaração foi uma revelação direta de Deus? É bem provável que não, uma vez que essa experiência como um todo não parece encaixar na maneira habitual de Deus revelar a verdade. Em pri­ meiro lugar, não tem a autoridade de uma declaração como: "Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo" ou "Assim diz o Senhor". Além do mais, Deus não costuma aparecer de modo furtivo e assustar as pessoas. Não sabemos ao certo, mas é possível que Elifaz tenha sonhado com essa experiência, medi­ tado sobre ela e, aos poucos, a transforma­ do numa visão. Uma coisa é certa: Elifaz não estava di­ zendo tudo sobre a relação entre Deus e o ser humano. Sem dúvida, o ser humano vive numa casa de barro que, a seu tempo, se transforma em pó, e a vida humana pode ser exterminada como se esmaga uma traça ou como se desmonta uma tenda. No entanto, o ser humano também é feito à imagem de Deus, e seu Criador é um Deus de graça e de misericórdia bem como um Deus de justiça. O segundo argumento de Elifaz baseia- se em suas observações pessoais sobre a vida (5:1-7). Ele viu pecadores prosperarem e cria­ rem raízes, mas que acabaram destruídos e perdendo tudo. Trata-se de uma descrição nada sutil da situação de Jó. Deve tê-lo ma­ goado profundamente ouvir que seus pe­ cados haviam provocado a morte de seus filhos. Porém, no Salmo 73, Asafe apresenta uma perspectiva totalmente diferente. Ele conclui que Deus permite que os ímpios pros­ perem nesta vida, pois este é o único "céu" que terão. Deus acertará as contas na vida depois desta e providenciará para que seu povo seja recompensado e os perversos se­ jam castigados. O problema de argumentar com base naquilo que observamos é que nossas obser­ vações são extremamente limitadas. Além disso, ao contrário de Deus, não somos ca­ pazes de enxergar o que há no coração hu­ mano e determinar quem é reto aos olhos do Senhor. Alguns pecadores sofrem julgamen­ to quase imediato, enquanto outros têm vida próspera e morrem em paz (Ec 8:10-14). Os problemas não brotam do solo como ervas daninhas, mas fazem parte do ser hu­ mano desde seu nascimento, pois todo ser humano nasce pecador (Jó 5:6, 7). Elifaz con­ clui que, se Jó está passando por dificul­ dades, ele próprio é culpado, pois pecou contra Deus. Assim, Jó deve se arrepender de seus pecados e pedir que Deus o perdoe. Seu apelo (5:8-17). Essa conclusão leva Elifaz a fazer um apelo para que Jó busque ao Senhor e se entregue a ele. O Deus que faz maravilhas e cuida de sua criação certa­ mente socorrerá Jó, se ele se humilhar e con­ fessar seus pecados. Jó deve considerar suas tribulações como uma disciplina de Deus para torná-lo um homem melhor (vv. 1 7, 18), tema que será retomado mais adiante por Eliú. Ao que parece, Jó estava levando uma vida deplorável, pois Deus lhe tomou suas riquezas, sua família e sua saúde a fim de colocá-lo na linha! Afinal, a disciplina não é um instrumento do amor de Deus? (Pv 3:11, 12; Hb 12:1-11.) Sua convicção (5:17-27). Elifaz encerra seu discurso com palavras de convicção. O mesmo Deus que fere também cura (Dt 32:39; Os 6:1, 2). Ele livrará das dificulda­ des, salvará dos inimigos e dará uma vida longa e uma morte tranqüila. "Eis que isto já o havemos inquirido, e assim é; ouve-o e medita nisso para teu bem" (Jó 5:27). Mas essas palavras não passam de uma reformulação da filosofia de Satanás! "Porventura, Jó debalde teme a Deus? [...] Pele por pele, e tudo quanto o homem tem 18 JÓ 4 - 7 dará pela sua vida" (1:9; 2:4). Elifaz estava pedindo que Jó negociasse com Deus: con­ fesse seus pecados, e Deus lhe dará de volta tudo o que perdeu. Se houvesse escolhido agir assim, Jó teria envergonhado Jeová e provado que Satanás estava certo, algo que se recusou a fazer. 2. A RESPOSTA DE JÓ (JÓ 6-7 ) Jó respondeu com dois apelos veementes. Primeiro, suplicou aos três amigos que mos­ trassem mais compreensão e compaixão (Jó 6). Em seguida, suplicou a Deus para que considerasse sua situação miserável e alivias­ se seu sofrimento antes que morresse (Jó 7). A súplica de Jó a seus amigos (cap. 6). Até então, somente Elifaz havia falado, mas Jó percebeu que Bildade e Zofar concorda­ vam com ele. Nenhum dos amigos identifi­ cou-se com aquilo que Jó estava passando física e emocionalmente. Uma coisa era as­ sentar a seu lado, outra bem diferente era sentir o que ele estava sentindo (Ez 3:15). Uma criança definiu "compaixão" como "sen­ tir sua dor em meu coração", mostrando sa­ ber mais sobre como oferecer consolo do que esses três homens. Para começar, não sentiram o peso de seu sofrimento (Jó 6:1-3). Não é de se admi­ rar que Jó tenha falado de modo tão enérgi­ co! Seus amigos teriam feito a mesma coisa se estivessem carregando um fardo como o dele. Ao contrário dos cristãos de hoje, Jó não possuía a revelação plena do céu, de modo que seu futuro era um enigma. Nós, por outro lado, podemos ler 2 Coríntios 4:16-18 e receber novo ânimo. Seus amigos também não entenderam a amargura de seu sofrimento (Jó 6:4-7). Jó se sentia como um alvo contra o qual Deus ati­ rava flechas envenenadas, e esse veneno amargurava seu espírito. Deus havia enfilei- rado seus soldados que, agora, atiravam contra um único homem fraco, e os amigos de Jó apenas destilavam mais veneno. Jó pre­ cisava de palavras de estímulo para nutrir seu espírito e fortalecê-lo, mas seus amigos o alimentavam apenas com palavras inúteis e insípidas. Se suas queixas soavam como um jumento zurrando ou um boi mugindo, era porque, assim como um animal morrendo de fome, ansiava por amor e compreensão. Jó tentou fazê-los sentir o desespero de sua situação (vv. 8-13). O sofrimento inten­ so e prolongado pode levar a pessoa a se sentir impotente para lidar com a vida, o que, por sua vez, pode conduzir ao deses­ pero. Como planejar para o futuro se não somos capazes de controlar alguns dos ele­ mentos que constituem a vida? Assim, Jó perguntou: "Por que esperar, se já não te­ nho forças? Por que prolongar a vida, se o meu fim é certo?" (v. 11). Em outras pala­ vras: "O que estou esperando? A vida só está ficando pior!" O desespero pode gerar um sentimento de inutilidade, e, quando nos sentimos inú­ teis, perdemos a vontade de viver. Isso expli­ ca por que Jó desejava que Deus lhe tirasse a vida (3:20-23; 6:8, 9; 7:1 5, 16; 10:18, 19; 14:1 3). Jó não atentou contra a própria vida, pois sabia que o suicídio era errado; porém, pediu a Deus que o libertasse de sua condi­ ção miserável. Os amigos de Jó possuíam saúde e conforto e não entendiam como era acordar cada manhã sabendo que outro dia de sofrimento os esperava. Jó havia perdido todas as suas forças e se sentia imprestável (6:12, 13). Numa atitude corajosa, Jó lhes mostrou a ineficácia de seu ministério a ele (vv. 14- 30). Não tinham piedade dele nem tentavam suprir suas necessidades. Eram como um córrego seco no meio do deserto, que serve apenas para decepcionar os viajantes seden­ tos. Nos tempos de prosperidade, foram seus "amigos", mas em tempos de dificuldade, se voltaram contra ele. Jó fez dois pedidos aos amigos: "Ensinai- me" (v. 24) e "Olhai para mim" (v. 28). Não precisava de acusações, e sim de esclare­ cimento! Mas eles nem sequer o fitavam e atentavam para sua situação miserável. Fi­ sicamente, os homens estavam assentados com Jó no monturo, mas emocionalmente eram como o sacerdote e o levita que passa­ ram "de largo" (Lc 10:30-37). Em meu ministério pastoral, lembro-me de visitar pacientes de hospital para os quais era difícil olhar por causa de sua enfermidade, JÓ 4 - 7 19 acidente ou cirurgia e, por vezes, também era difícil escutá-los, pois haviam se tornado amargurados. Pela forma como eu os olhava e pelas minhas reações a suas palavras, essas pessoas eram capazes de perceber se me preocupava mesmo com elas ou não. Não adiantaria muita coisa ler a Bíblia e orar a menos que, antes, tivéssemos construído uma ponte entre nossos corações. Só então seria possível ministrar um ao outro. Jó encerrou seu discurso a seus amigos com uma súplica veemente para que recon­ siderassem sua situação e o tratassem com mais amor. "Tornai a julgar, vos peço, e não haja iniqüidade; tornai a julgar, e a justiça da minha causa triunfará" (Jó 6:29). Esses três homens estavam tão preocupados em de­ fender a si mesmos que haviam se esqueci­ do de consolar seu amigo! A súplica de Jó ao Senhor (cap. 7). Jó usou várias imagens vividas para descrever a futilidade da vida. Sentia-se como um ho­ mem que havia sido alistado à força num exército, sendo obrigado a levar uma vida "penosa" (v. 1 a); como um escravo que anseia pela sombra e um trabalhador que espera pelo fim do dia e por seu pagamento (v. 2). Pelo menos, esses homens tinham algo pelo que esperar, enquanto o futuro de Jó era de- sesperador. Suas noites eram insones e seus dias, inúteis (Dt 28:67), e o Senhor parecia não se importar. Em seguida, concentrou-se na brevidade da vida. O tempo estava passando veloz­ mente, de modo que, se Deus pretendia fa­ zer alguma coisa, era melhor se apressar! A vida de Jó era como a lançadeira do tecelão (Jó 7:6), movendo-se com rapidez e ficando quase sem fio. (O termo "soltar", em 6:9, re­ fere-se a cortar o tecido do tear. Ver Is 38:12.) A vida é como uma tecelagem, e somente Deus conhece o desenho todo e sabe quan­ do está completo. Jó também viu sua vida como um sopro ou uma nuvem, que existe por um breve momento e depois desaparece para sempre (Jó 7:7-10; Tg 4:14). Deus o estava tratando como um monstro perigoso que precisava ser vigiado incessantemente (Jó 7:11, 12). Não é de se admirar que Jó estivesse amar­ gurado contra Deus por guardá-lo a todo tempo. O fato de, no original, Jó se referir a Yam ("o mar") e a Tammin ("um monstro ma­ rinho"), duas figuras mitológicas, não signifi­ ca que aprovava os ensinamentos dos mitos orientais. Estava apenas usando personagens conhecidos para ilustrar sua argumentação. Era impossível Jó escapar de Deus, o "Espreitador dos homens" (v. 20). Se Jó ador­ mecia, Deus o aterrorizava em seus sonhos. Se estava acordado, sabia que Deus o estava observando (10:14; 13:27; 31:4). Não podia sequer engolir sua saliva sem que Deus sou­ besse! Por que toda essa atenção de Deus sobre um só homem? (7:17, 18; SI 8:4.) Jó encerrou seu apelo com um pedido de perdão (Jó 7:20, 21). "Se pequei, então me perdoa. Por que devo ser um fardo para ti e para mim mesmo? O tempo está passan­ do rapidamente, então vamos resolver tudo sem demora!" Não era uma confissão de pecados, pois Jó continuava afirmando sua integridade; antes, era a oportunidade de Deus tratar de áreas da vida de Jó que lhe eram desconhecidas (SI 19:12-14). Então, Jó se calou. Havia expressado sua dor e frustração e suplicado a seus amigos por ânimo e compreensão. Será que seu pe­ dido seria atendido? Observemos, a seguir, as palavras de Bildade, o suíta, que faz uma breve preleção teológica acerca da justiça de Deus. 22 JÓ 8 - 10 (vv. 16-22). Algo havia acontecido às "raizes" de Jó, e ele estava desfalecendo; assim, o pecado seria a causa de tudo. Ninguém ar­ ranca uma planta boa e a destrói, de modo que devia haver algo de errado com Jó, pois Deus o havia desarraigado de seu jardim. Deus não cultiva ervas daninhas nem lança fora as plantas boas! Bildade reafirmou sua promessa anterior de que Deus restauraria a sorte de Jó, se ele reconhecesse que havia pecado e colocasse sua vida em ordem dian­ te do Senhor. Mais um convite de Satanás! 2. Três perguntas difíceis (Jó 9:1 - 10:22) Daqui em diante, a ênfase da discussão recai sobre a justiça de Deus, e a imagem proe­ minente nos pensamentos de Jó é a de um processo legal. Ele deseja levar Deus a um tribunal e ter a oportunidade de provar sua integridade. Essa intenção fica clara pelo vo­ cabulário que emprega: contender (Jó 9:3; 10:2) = processar legalmente responder (9:3, 16) = testemunhar no tribunal juiz (v. 15) = um oponente em demanda, acusador citar (v. 19) = convocar para se apresentar no tribunal árbitro (v. 33) = mediador, moderador defender-se (13:3) = justificar-se encaminhar a minha causa (v. 18) = pre­ parar o caso ouvir (31:35) = conceder uma audiência adversário (v. 35) = acusador no tribunal Em Jó 9 e 10, Jó faz três perguntas: [1 ] "Como posso ser reto diante de Deus?" (9:1-13); [2] "Como posso me encontrar com Deus no tri­ bunal?" (vv. 14-35); [3] "Por que nasci?" (10:1- 22; ver v. 18). Podemos ver como essas perguntas encontram-se interligadas. Jó é um homem reto, mas precisa provar esse fato. Como é possível um mortal provar que é reto diante de Deus? Pode processar Deus num tribunal? Mas se Deus não se apresentar e tes­ temunhar em favor de Jó, que propósito há em tanto sofrimento? Afinal, por que Jó nasceu? " Como posso ser reto diante de Deus?" (9:1-13). Não se trata de uma pergunta so­ bre a salvação ("Como posso ser justifica­ do?"), mas sim sobre a justificação ("Como posso ser declarado inocente?"). Se um ho­ mem tentasse processar Deus num tribunal, de modo algum seria capaz de responder às perguntas de Deus, nem uma em mil! No entanto, Jó não conhece outra forma de "lim­ par seu nome" perante os amigos. A maior parte dessa seção é uma declara­ ção que se concentra nos atributos de Deus, especialmente em sua sabedoria invencível e em seu poder, que controla a Terra e os céus. Alguém ousaria processar um oponen­ te que tem o poder de abalar a Terra, criar as estrelas e andar sobre as ondas? (ver Is 44:24 e Am 4:13). Porém, Deus não é apenas invencível, mas também invisível. Jó não podia vê-lo, nem detê-lo para intimá-lo a comparecer ao tri­ bunal. Deus pode fazer o que bem lhe aprouver, e ninguém é capaz de questioná- lo! Até mesmo os "auxiliadores do Egito", a grande potência da época, devem se curvar diante do poder de Deus (Jó 9:13). "Como posso me encontrar com Deus no tribunal?" (9:14-35). A fim de provar que era um homem reto, Jó precisava levar Deus a um tribunal. Mas e se Deus aceitasse a intimação, o que Jó diria ou faria? Ele discute essa questão imaginando várias situações. (1) "Se Deus comparecesse, o que eu di­ ria?" (vv. 14-19). De que maneira Jó poderia responder ao interrogatório de Deus? Como é possível arrazoar com Deus ou se defen­ der diante dele? Se Deus respondesse, Jó não acreditaria que era sua voz, e se jó disse algo errado, Deus o afligiria ainda mais. Quan­ do, por fim, Jó se encontrou com Deus (Jó 38 - 41), o Senhor lhe fez 77 perguntas! E Jó não conseguiu responder a nem uma! Sua única resposta foi admitir sua ignorância e se calar. (2) "O que eu faria se pudesse declarar minha inocênciaV (vv. 20-24). De modo al­ gum isso garantiria que Deus libertaria Jó. Tanto Elifaz quanto Bildade declararam que Deus recompensa o justo e julga o ímpio, mas Jó afirmou que, por vezes, Deus destrói JÓ 8 - 10 23 tanto o justo quanto o ímpio. Os juizes iní­ quos condenam os justos e ajudam os per­ versos, e, ao que parece, Deus permanece indiferente. Jó está acusando Deus de ser in­ justo não apenas para com ele e sua família, mas também para com as pessoas inocentes de sua terra. (3) "De que adian tará ten tar ser feliz ?" (w. 25-31). O tempo de Jó estava se esgotando, passando rapidamente como os mensagei­ ros do rei que se apressam para chegar a seu destino, como os barcos de junco do Egito que deslizam velozmente sobre as águas do rio e a águia que mergulha do céu. Talvez Jó devesse assumir uma atitude mais positiva com relação a sua aflição, esquecer sua dor e sorrir (v. 27). Mas será que isso mudaria alguma coisa? Não! Ainda seria culpado diante de Deus, rejeitado pelos amigos e continua­ ria assentado no depósito de lixo da cidade, com sua enfermidade e agonia. Mesmo que tomasse um banho e trocasse de roupas num ato de contrição e de purificação pública, ainda temeria o que Deus lhe poderia fazer. Jó estava convicto de que Deus estava con­ tra ele e de que qualquer passo que desse na terra seria anulado pelo céu. O réu pode sorrir e aparentar coragem quando está no tribunal, mas isso não impede o júri de declará-lo "culpado". (4) "Se ao menos eu tivesse um media­ dor!" (vv. 32-35). Se Deus fosse um ser hu­ mano, Jó poderia abordá-lo e defender sua causa. Ou se houvesse um "árbitro" (media­ dor) entre Deus e Jó, poderia remover sua vara de julgamento e reunir Jó e Deus. Mas Deus não é homem e não há mediador algum! Eaqui que jesus entra em cena! Jesus é Deus e se fez homem para revelar o Pai (Jo 14:7-11) e conduzir os pecadores a Deus (1 Tm 2:5, 6; 1 Pe 3:1 8). Ele é o "árbi­ tro" pelo qual Jó suplicou séculos antes (Jó 16:21). "Porque eu nasci?"(10:1-22). Nessa pas­ sagem, Jó argumenta que Deus o criou e lhe deu vida (vv. 3, 8-12, 18, 19), mas Deus não o está tratando como parte de sua criação. Depois de dedicar tempo e esforço para criar Jó, Deus o está destruindo! Além disso, Deus julga Jó sem sequer lhe dizer quais são as acusações contra ele (v. 2)! Não é de se admirar que Jó esteja exausto, amargurado e confuso (vv. 1, 15). Observe que, nesse capítulo, Jó se dirige diretamente a Deus e não a seus amigos. Deus não é um homem para precisar es­ quadrinhar as coisas e correr contra o tempo (vv. 4-6). Deus é eterno e pode demorar o tempo que quiser; Deus também é oniscien­ te e não precisa realizar investigações como um detetive particular. Jó, a princípio, quis um árbitro (9:33), mas agora busca um li­ bertador que o livre do julgamento (10:7). Deus é um Guarda sempre presente, vigian­ do todos os movimentos de Jó (v. 14). Es­ preita Jó como um leão (v. 16) e o ataca com seu exército (v. 1 7). Jó está cercado e não tem como escapar. Diante disso, parece-lhe justo perguntar: "Por que, pois, me tiraste da madre?" (v. 18). A vida de Jó na terra parecia tão sem propó­ sito que ele suplicou a Deus por alguns mo­ mentos de paz e de felicidade antes do fim. Podia ver sua vida passando rapidamente (7:6, 7; 9:25, 26), e não havia um momento sequer a perder. "Deixe-me em paz", pede em oração, "para que possa ter um pouco de conforto antes de ir para o mundo das trevas". Jó não conseguia entender o que Deus estava fazendo, e era importante que não entendesse. Se Jó soubesse que Deus o estava usando para derrotar Satanás, teria simples­ mente se recostado e esperado, confiante­ mente, até a batalha terminar. Porém, ao olhar para si mesmo e para sua situação, fez a mesma pergunta feita pelos discípulos de Jesus, quando Maria o ungiu: "Para que este desperdício?" (Mc 14:4). Antes de criticar­ mos Jó com muita severidade, devemos lem­ brar quantas vezes nós mesmos fizemos essa pergunta ao saber de um bebê que morreu ou de um jovem com um futuro promissor morto num acidente. Nada do que é entregue a Cristo pela fé e com amor é desperdiçado. A fragrância do bálsamo de Maria desapareceu há muitos séculos, mas o significado de sua adoração tem abençoado cristãos de todas as eras. Jó estava falido e enfermo, e tudo o que podia 24 JÓ 8 - 10 oferecer ao Senhor pela fé era seu sofrimento. Mas era justamente isso o que o Senhor dese­ java a fim de calar o diabo. Quando William Whiting Borden morreu no Egito, em 191 3, a caminho do campo mis­ sionário, é possível que alguém tenha per­ guntado: "Por que esse desperdício?" Mas Deus continua usando a história dessa vida tão curta para desafiar as pessoas a entregar tudo a Cristo. Quando John e Betty Stam foram marti- rizados na China, em 1 934, houve quem per­ guntasse: "Por que esse desperdício?" Mas a obra O Triunfo de john e Betty Stam, escrita pela esposa de Hudson Taylor, tem transfor­ mado vidas desde que foi publicada em 1935. Em meu aniversário de 21 anos, rece­ bi esse livro de presente de minha namorada (agora é minha esposa) e até hoje sua mensa­ gem fala a meu coração. Quando cinco missionários foram marti- rizados no Equador pelos índios Auca, al­ guns chamaram esse acontecimento de "um desperdício trágico de obreiros". Mas não foi o que Deus pensou, e a história desses cinco heróis da fé tem ministrado à Igreja desde então. Jó perguntou: "Por que eu nasci?" Diante de suas perdas e de seu sofrimento pessoal, tudo parecia um desperdício tão grande! Mas Deus sabia o que estava fazendo naquele tempo e sabe o que está fazendo hoje. "Tendes ouvido da paciência de Jó e vistes que fim o Senhor lhe deu; porque o Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo" (Tg 5:11). Se alguém dissesse tais palavras a Jó, talvez ele não tivesse acreditado, mas isso não muda a verdade. E uma verdade que se aplicava a ele em seu tempo e que vale para nós hoje. Pode crer! JÓ 1 1 -14 27 Talvez isso significasse que a sabedoria de Deus é total e plena ou que Deus é muitas vezes mais sábio do que Jó imaginava. Uma vez que Deus é onisciente, sabia tudo sobre Jó e poderia tê-lo castigado ainda mais. A expressão "poderia ser pior!" certa­ mente não é consolo algum para um homem que perdeu a família, a riqueza, a saúde e que, por pouco não perdeu também a vida. Não aferimos o sofrimento de maneira quan­ titativa, como se pesam frutas e legumes no supermercado. A leviandade com que os amigos de Jó falavam de sua situação de­ monstra sua falta de entendimento. De acor­ do com um ditado do Talmucle: "Quanto mais profunda a tristeza, menor a língua". As duas perguntas do versículo 7 espe­ ram uma resposta negativa. Ninguém pode desvendar "os arcanos de Deus" nem pene­ trar "até à perfeição do Todo-Poderoso". E evidente que, em momento algum, Jó afir­ mou saber tudo sobre Deus, mas aquilo que ele conhecia do Senhor lhe deu ânimo para se apegar firmemente à sua integridade e não desistir. Deus não precisa prestar contas para nós. Pode capturar e aprisionar quem ele quiser, reunir o tribunal e declarar a senten­ ça sem que haja quem tenha autoridade para protestar (v. 10; ver 9:12). Deus sabe quem é sábio e quem é insensato, que é puro e quem está em pecado. Uma vez que Deus julgou Jó, então Jó devia ser culpado. Zofar encerrou essa acusação citando um provérbio (11:12). Não é fácil determi­ nar seu significado. E possível que esteja di­ zendo que por mais estulto que um homem seja quando nasce, mesmo que seja tão tolo quanto um asno selvagem, ainda há espe­ rança de ele se tornar inteligente. Ou talvez queira dizer exatamente o oposto, como aparece na a r a : "Mas o homem estúpido se tornará sábio, quando a cria de um asno mon- tês nascer homem". Tendo em vista a ira de Zofar e sua linguagem insultuosa, é bem pro­ vável que se trate desta última possibilidade. Jó é obstinado e deve se arrepender (w. 73-20). " Haverá esperança" - disse Zofar a fim de animar Jó (v. 18) e descreveu o que Jó poderia experimentar. Deus o abençoaria abundantemente e seus problemas chega­ riam ao fim. Poderia erguer a cabeça outra vez, e seus medos passariam (v. 15; 10:15). Esqueceria sua desgraça como águas passa­ das (11:1 6). Deus lhe daria uma vida longa e seria o início de um novo dia para ele (v. 1 7). Não habitaria nas trevas do Sheol, mas sim na luz (10:20-22), e a proteção de Deus daria cabo de todos os seus temores (11:1 9, 20). Porém, se Jó desejava essas bênçãos, deveria obtê-las de acordo com os termos de Zofar. Sem dúvida, havia esperança, mas era condicional: Jó precisava arrepender-se e confessar seus pecados (vv. 13, 14). Zofar está tentando Jó a negociar com Deus a fim de se ver livre das suas dificuldades. Era exata­ mente isso o que Satanás desejava que Jó fizesse! "Porventura, Jó debalde teme a Deus?", perguntou Satanás (1:9). Satanás acusou Jó de ter uma "fé interesseira", com base nas promessas de prosperidade em tro­ ca de sua obediência. Se Jó tivesse seguido o conselho de Zofar, teria feito exatamente o que o inimigo queria. Jó não possuía uma "fé interesseira" que negociava com Deus. Antes, era uma fé con­ fiante que dizia: "Ainda que Deus dê cabo de mim, confiarei nele" (ver 13:15, n v i ). Essas não parecem ser as palavras de um homem em busca de uma solução fácil para seus problemas. Como disse C. H. Spurgeon: "Jó não entendia os motivos de Deus, mas ainda assim continuou a confiar em sua bondade". Essa é a verdadeira fé! 2. As TRÊS DECLARAÇÕES DE Jó (JÓ 12-14) O discurso de Zofar foi curto, mas Jó apre­ sentou respostas demoradas para cada uma das acusações de Zofar. Começou com a segunda acusação, de acordo com a qual Jó não tinha conhecimento de Deus (Jó 11:5- 12). Jó afirmou que possuía conhecimento e discernimento como eles (Jó 12). Em segui­ da, respondeu à primeira acusação de Zofar, de acordo com a qual Jó estaria vivendo em pecado (11:1-4). Mais uma vez, Jó afirmou sua integridade (Jó 13). Em seguida, encer­ rou seu discurso objetando ao terceiro pon­ to de Zofar, de que ainda havia esperança 28 JÓ 1 1 -14 (11:13-20). Em Jó 14, Jó admite que perdeu quase toda a esperança. A grandeza de Deus (cap. 12). Em primei­ ro lugar, Jó contrapôs a declaração de seus amigos de que possuíam mais sabedoria do que ele. Por certo, eram mais velhos que Jó, mas a idade não é garantia alguma de sabe­ doria. Existem tolos de todas as idades. Em seguida, Jó os repreendeu por sua falta de sensibilidade para com ele e por transformá-lo em motivo de riso. Acreditava ser um homem justo e reto, e foi assim que Deus o descreveu (1:1, 8; 2:3). "No pensa­ mento de quem está seguro, há desprezo para o infortúnio, um empurrão para aquele cujos pés já vacilam. As tendas dos tiranos gozam paz, e os que provocam a Deus es­ tão seguros; têm o punho por seu deus" (12:5, 6). Zofar afirmou que a sabedoria não está ao alcance dos homens (11:7-9), porém Jó disse que as criaturas de Deus podiam lhes ensinar aquilo que precisavam saber (12:7-11; ver Cn 1:26-28). Até mesmo as criaturas "insensatas" sabem que foi a mão de Deus que fez e que mantém todas as coi­ sas. Até mesmo o fôlego usado para acusar Jó era uma dádiva de Deus a esses homens, e o Senhor poderia removê-lo sem a permis­ são deles. O Senhor deu aos seres humanos a capacidade de provar e de avaliar os afí- mentos. Não lhes daria, portanto, a capaci­ dade ainda mais importante de avaliar as palavras e de analisar a verdade? (Jó 12:11). Nos versículos 12 a 25, Jó descreve a sabedoria e o poder de Deus. É bem prová­ vel que o versículo 12 seja uma referência a Deus, o "idoso" e "Longevo". Essas designa­ ções divinas são uma repreensão aos ami­ gos idosos de Jó, que acreditavam que seus anos de experiência lhes haviam ensinado tanta coisa! Jó ressaltou que Deus é inteiramente so­ berano naquilo que faz com a natureza (vv. 14, 15) e com as pessoas (vv. 16-25). Não podemos reconstruir aquilo que ele destrói, nem libertar aquilo que ele prende (Ap 3:6- 8). Deus pode enviar secas ou inundações e não há quem seja capaz de detê-lo (Jó 12:1 5). Ele sabe o que fazer e tem o poder para rea­ lizar o que é preciso (vv. 13, 16). Em sua soberania sobre as pessoas, qual­ quer que seja seu status, Deus está no con­ trole. De acordo com a argumentação de Jó, todo tipo de gente passa por dificuldades na vida, pois Deus pode fazer o que bem lhe aprouver. Ele não faz acepção de pessoas e não se impressiona com sua posição, rique­ za ou condição social. Por exemplo: se for da vontade de Deus, os conselheiros do rei perdem sua autorida­ de e riqueza e os juizes se tornam confusos e insensatos. Na verdade, os próprios reis são transtornados e os sacerdotes são despoja­ dos de seus cargos e levados cativos (v. 19). Homens sábios, como os conselheiros e anciãos, serão calados (v. 20), e os príncipes (nobres) e os fortes (poderosos) (v. 21) per­ derão seu respeito e força. Deus, porém, é soberano tanto sobre as nações quanto sobre os indivíduos (vv. 23- 25; Dn 2:20-22; At 1 7:24-28). Pode fazer uma nação crescer ou destruí-la; pode dar-lhe a liberdade ou o cativeiro - basta tirar a sabe­ doria de seus líderes e sua destruição é certa. Os orgulhosos não gostam de ouvir essa men­ sagem. Desde de a cidade de Enoque (Gn 4:16-18) e a torre de Babel (11:1 -9), a huma­ nidade vem tentando construir e administrar as coisas sem Deus, e suas tentativas termi­ nam sempre em fracasso e em julgamento. A integridade de Jó (cap. 13). Nessa parte de sua defesa, Jó expressou, primeiramente, sua decepção com os três amigos (vv. 1-12), depois, sua declaração de fé no Senhor (vv. 13-1 7) e, por fim, seu desejo de que Deus vá ao encontro dele e acerte a questão de uma vez por todas (vv. 18-28). (1) Decepção (w. 1-12). Os amigos de Jó não haviam levantado seu ânimo. Antes, ha­ viam assumido uma atitude de superioridade como juizes, partindo do pressuposto de que conheciam Deus melhor do que Jó. Não se identificaram com ele em sua tristeza e dor. Jó os acusou de "[besuntar] a verdade com mentiras", de ser "médicos que não valem nada" e de "[falar] perversidades em favor de Deus". O termo "besuntar" (v. 4) também signifi­ ca "caiar". Eles besuntaram a discussão com a cal de suas mentiras de modo a evitar o pro­ blema difícil e, ao mesmo tempo, a manter JÓ 1 1 -14 29 suas idéias tradicionais (SI 119:69). Perma­ neceram num nível superficial sem jamais se aprofundar nas verdades de Deus ou nos sentimentos de Jó. Os conselhos que se atêm à superfície não valem muita coisa. A fim de ajudarmos as pessoas, precisamos ir muito mais fundo, um processo que requer amor, coragem e paciência. Como médicos, haviam feito um diagnós­ tico incorreto, de modo que seus medica­ mentos foram inúteis (Jr 6:14; 8:11). E como "defensores de Deus", teriam feito melhor permanecendo calados, pois não sabiam do que estavam falando. Sua visão de Deus era tão rígida e limitada e sua visão de Jó era tão preconceituosa que todo o seu "caso" não passava de uma invenção construída a partir de uma série de mentiras. O que fariam quan­ do Deus virasse a mesa e os examinasse? (ver Rm 14:1-13). "As vossas máximas são como provérbios de cinza, os vossos baluar­ tes, baluartes de barro" (Jó 13:12). Aquilo que os três amigos consideravam declara­ ções profundas da verdade não passava de cinzas requentadas de fogos antigos e de su­ portes de barro que não tardariam a se de­ sintegrar. Um bom conselheiro precisa de muito mais do que uma excelente memória. Precisa de sabedoria para aplicar a verdade às necessidades das pessoas nos dias de hoje. (2) Declaração (vv. 13-17). Trata-se de uma das mais extraordinárias declarações de fé registradas nas Escrituras, mas é importante que seja compreendida dentro de seu con­ texto. Jó está dizendo: "Pleitearei meu caso diretamente junto a Deus e provarei minha integridade. Sei que estou arriscando a vida ao abordar o Senhor, pois ele é capaz de me aniquilar. Porém, se ele não o fizer, provará que não sou o hipócrita que vocês me consi­ deram". Posteriormente, Jó faz um juramento e desafia Deus a julgá-lo (Jó 27). Aproximar- se pessoalmente de Deus era um grande ato de fé (Êx 33:20; Jz 13:22, 23), mas Jó estava tão certo de sua integridade que se mostrou disposto a correr esse risco. Afinal, se ficasse de braços cruzados, morreria, e se fosse rejei­ tado por Deus, também. No entanto, havia sempre a possibilidade de ser justificado pelo Senhor. (3) Desejo (vv. 18-28). Essas palavras são dirigidas a Deus. Jó havia "encaminhado" sua causa (v. 18) e estava certo de que venceria. Tinha dois desejos: que Deus removesse sua mão disciplinadora e lhe concedesse alívio e que fosse ao encontro dele de maneira a não aterrorizá-lo. Jó estava pedindo que Deus se encontrasse com ele no tribunal para que pudessem discutir o "pleito" de Deus contra Jó e vice-versa. No versículo 22, Jó dá a Deus a opção de falar primeiro! Por que Jó deseja encontrar-se com Deus no tribunal? Para que Deus apresente, de uma vez por todas, seu "pleito" contra Jó e revele os pecados na vida dele que lhe cau­ saram tanto sofrimento. "Por que Deus de­ veria me dar tanta atenção?", pergunta Jó. "Ele me trata como um inimigo, mas sou apenas uma folha frágil ao vento, uma palha seca que não vale coisa alguma. Sou um pedaço de madeira podre e uma roupa comi­ da pelas traças, e, no entanto, Deus me trata como um prisioneiro de guerra e me vigia o tempo todo". Jó sentia que havia chegado a hora de acertar essa questão, mesmo que perdesse a vida ao longo do processo. A falta de esperança de Jó (cap. 14). Zofar havia garantido a Jó que ainda haveria espe­ rança, caso ele reconhecesse seus pecados e se arrependesse (Jó 11:13-20). Mas Zofar não se encontrava na situação de Jó! Do ponto de vista de Jó, seu futuro era desanimador. Nos versículos 1 a 12, Jó empregou várias imagens para ilustrar a situação desesperadora do ser humano neste mundo. É como uma flor que logo seria cortada, uma sombra que desapa­ rece lentamente, um jornaleiro que trabalha e depois é dispensado. Deus conhece os limi­ tes de nossos dias (7:1; 14:5; SI 139:16). Em sua insensatez, um suicida pode apressar o dia de sua morte, mas ninguém vai além dos limites estabelecidos por Deus para sua vida. Uma vez que o ser humano é apenas uma flor, uma sombra e um servo, por que Deus lhe daria alguma atenção? Tendo em vista que a vida é tão curta, por que Deus encheria os dias do homem de tristeza e dor? "Desvia dele [do homem] os olhares, para que tenha repouso [...] [para que] tenha prazer no seu dia" (Jó 14:6). Em outras palavras, o que Jó 32 JÓ 1 5 - 1 7 passa de um sistema com ares de piedade para promover o egoísmo. Quando Deus chamou a nação de Israel e fez sua aliança com ela, o povo foi motivado a obedecer por medo do castigo. Se obede­ cessem à lei, Deus os abençoaria; se desobe­ decessem, ele os castigaria. Porém, isso se deu na infância de Israel como nação, quan­ do Deus ainda tratava com eles como se fossem crianças. As crianças entendem mui­ to melhor um sistema de recompensas e de castigos do que princípios de ética e mora­ lidade. Mas quando uma nova geração esta­ va prestes a entrar em Canaã, Moisés deu ao povo uma motivação muito maior para obe­ decer: seu amor por Deus (Dt 6:4, 5; 7:7; 10:12-16; 11:1,13, 22; 19:9). Não eram mais crianças, e Deus não precisava assustá-los (nem "suborná-los") para que obedecessem. O amor é o cumprimento da lei (Rm 13:8- 10) e o mais elevado de todos os motivos para obedecer (Jo 14:15). Para Elifaz, as palavras de Jó indicavam que ele possuía um coração perverso (Jó 15:5, 6). "A tua iniqüidade ensina à tua boca!" (v. 5; ver Mt 12:34-37). Jó estava de­ clarando sua inocência, mas Elifaz interpre­ tou essas palavras como prova de sua culpa! Que esperança haveria para Jó quando seus amigos nem sequer acreditavam no que ele estava dizendo? Jó não tinha sabedoria, pois lhe faltava experiência (Jó 15:7-10). A essa altura, Elifaz usou de sarcasmo, outra prova de que havia esgotado seus argumentos inteligentes. Tratava-se de outro artifício do polemista: quando não é possível refutar o discurso, ridicularize o orador. Em momento algum Jó afirmou ser o primeiro homem criado por Deus, o confidente de Deus ou aquele que recebeu do Senhor direitos absolutos so­ bre a sabedoria. Jó sabia que seus amigos eram mais velhos do que ele, mas a idade não é garantia alguma de sabedoria (32:9; SI 119:97-104). De acordo com Elifaz, a atitude de Jó estava errada, pois ele recusou a ajuda de Deus (Jó 15:11-16). Elifaz considerava a si mesmo e a seus amigos como mensageiros de Deus, enviados para dar a Jó o consolo de que ele necessitava. Tinha "palavras suaves" (v. 11), mas as palavras de Jó eram cheias de ira. Os três amigos serviam a Deus, mas Jó resistia a ele. Em seguida, Elifaz repetiu a mensagem que havia transmitido em seu primeiro discur­ so (vv. 14-16; 4:1 7-19). Jó havia se recusado a aceitar essa mensagem da primeira vez, mas talvez agora, depois de haver sofrido mais, estivesse aberto a ouvi-la. Se o céu não é puro diante de Deus, nem os anjos que habitam no céu, como poderia um simples homem declarar-se inocente? O ser humano nasce com uma natureza pecaminosa que anseia pelo pecado, e Jó não era exceção. Essas palavras preparam o caminho para a segunda advertência de Elifaz. Deus julga o perverso (w. 17-35). Em seu primeiro discurso, Elifaz havia descrito as bênçãos do homem justo (5:17-26); aqui, descreve os sofrimentos do homem ímpio. Elifaz teve o cuidado de lembrar Jó de que essas não eram apenas suas próprias idéias, mas todos os antigos também concordavam com ele. Se Jó rejeitasse as palavras de Elifaz, estaria dando as costas para a sabedoria de seus antepassados. Elifaz era um homem que encontrava grande força na tradição e se es­ quecia de que "a tradição é um guia e não um carcereiro" (W. Somerset Maugham). Ao ler essa descrição de um homem per­ verso, vemos que Elifaz está falando de seu amigo. Jó estava vivendo em meio à dor, às trevas, às tribulações, à angústia e ao medo. Estava provocando Deus e desafiando-o a ir ao encontro dele e provar que ele era culpa­ do. O fogo havia destruído as ovelhas de Jó (1:16; 15:30, 34); invasores haviam rouba­ do seus camelos (1:17; 15:21); perdera sua riqueza (v. 29); a casa de seu filho mais velho havia sido destruída e, com ela, todos os filhos de Jó (1:19; 1 5:28). Uma vez que Elifaz não foi nada sutil em sua abordagem, todos sabiam que estava falando de Jó. Porém, em suas palavras de conclusão (vv. 34, 35), Elifaz desferiu o golpe mais ter­ rível de todos: chamou Jó de hipócrita e ímpio e culpou-o pelas tragédias que haviam sobrevindo a ele e sua família. Jó havia se­ cretamente "concebido" o pecado, e, agora, JÓ 1 5 - 1 7 33 seu pecado havia dado à luz sofrimento e morte (Tg 1:14, 15; Is 59:4; SI 7:14). "Conce­ bem a malícia e dão à luz a iniqüidade", diz Jó 15:35; a expressão traduzida por "o seu coração só prepara enganos", da versão Re­ vista e Atualizada (a r a ), foi traduzida por "seu ventre gera engano" da Nova Versão Inter­ nacional. Elifaz diz que essa malícia é conce­ bida no ventre, ou seja, o mesmo lugar que, de acordo com ele, está cheio do "vento oriental" (Jó 15:2). Assim, para Elifaz, se alguém fizesse uma radiografia de Jó, não encontraria outra coisa senão vento quente e pecado! A acusação de "hipocrisia" é um elemento-chave no discurso dos três amigos de Jó. Bildade insinuou que Jó era um hipó­ crita (8:13), e tanto Zofar quanto Eliú reto­ maram esse tema (20:5; 34:30; 36:13). É evidente que Jó negou tais acusações (13:16; 17:8; 27:8) e argumentou que nem Deus e nem seus amigos poderiam provar que fos­ se verdadeira. O problema com a declaração de Elifaz acerca do julgamento dos ímpios é que, na prática, nem sempre isso acontece. Muitos perversos levam uma vida aparentemente bem-sucedida e feliz, enquanto muitos jus­ tos passam por sofrimentos e fracassos. E verdade que, em última análise, os perver­ sos sofrem e os justos são abençoados, mas, enquanto isso não ocorre, muitas vezes se tem a impressão de que é justamente o con­ trário (SI 73; Jr 12:1-4). Além do mais, Deus faz o sol brilhar sobre os maus e os bons e envia a chuva para os justos e os injustos (Mt 5:45). Ele é longânimo para com os pe­ cadores (2 Pe 3:9) e espera que sua bonda­ de os conduza ao arrependimento (Rm 2:4; Lc 15:17-19). O maior julgamento que Deus pode en­ viar sobre os perversos em vida é deixar que consigam aquilo que querem. "Já receberam a recompensa" (Mt 6:2, 5, 16). O único céu que os ímpios terão é o prazer que desfru­ tam aqui na terra nesta vida e que Deus está disposto a lhes dar. O único sofrimento que os justos terão é aquele que suportam nesta vida, pois no céu não haverá dor nem lágri­ mas. Além disso, o sofrimento pelo qual o povo de Deus passa agora coopera para seu bem e, um dia, conduzirá à glória (1 Pe 1:6- 8; 5:10; 2 Co 4:16-18; Rm 8:18). Elifaz e seus amigos haviam confundido tudo. 2. Jó: TRÊS PEDIDOS (Jó 16 - 1 7) Jó responde com três pedidos sinceros: pri­ meiro, uma súplica a seus amigos para que tenham compaixão dele (Jó 1 6:1-14); depois, uma súplica a Deus por justiça (vv. 15-22) e, por fim, uma súplica para que Deus dê cabo de sua vida e alivie seu sofrimento (1 7:1-16). Uma súplica por solidariedade (16:1-14). Os amigos de Jó ainda não haviam se identi­ ficado com ele; não sentiam sua agonia nem compreendiam sua perplexidade. Jó os cha­ mara, anteriormente, de ribeiros enganosos (ver 6:15) e de "médicos que não valem nada" (13:4), mas agora os chamava de "conso­ ladores molestos" (16:2). Todas as tentati­ vas deles de consolá-lo o fizeram sentir-se ainda mais miserável! Como afirma o ditado: "Com amigos como vocês, quem precisa de inimigos?" Jó garantiu-lhes que, se os amigos estives­ sem no lugar dele, seria mais compreensivo. Em vez de longos discursos, ofereceria pala­ vras de ânimo. Ouviria com seu coração e tentaria ajudá-los a carregar seus fardos. Por vezes, a fim de aprendermos a ministrar a outros, temos de sofrer com a falta de com­ preensão de amigos que não se identificam conosco. Jó estava passando por uma expe­ riência nova e tentava fazê-lo da maneira mais proveitosa possível. Porém, quer falasse quer permanecesse calado, ainda era um homem sofredor (v. 6). Em sua súplica pela compaixão amorosa de seus amigos, Jó lhes diz o que está rece­ bendo da mão de Deus (vv. 7-14). Está desgastado; sua família desapareceu; está definhando e sente-se fraco. Sofre ataques de homens e de Deus. Sua impressão é de que Deus pintou um alvo em suas costas e entregou arcos e flechas a todos a seu redor! Não há alívio: Deus continua a atacá-lo como um guerreiro implacável. "Não fui eu quem atacou Deus, mas sim ele que se voltou con­ tra mim!" Deus é seu inimigo (16:9; 13:24), e não há nada que Jó possa fazer para ter uma trégua. Se olha para o alto, Deus está 34 J Ó 15 - 17 contra ele. Se olha ao redor, seus amigos es­ tão contra ele. Onde encontrar refúgio? Uma súplica por justiça (w. 15-22). De que maneira Jó reagiu aos ataques de Deus? Vestiu-se de panos de saco, chorou em hu­ milhação e contrição e prostrou-se com o rosto em terra. Apesar das acusações de Elifaz (15:4-6), Jó sabia que sua vida estava em ordem diante de Deus e que o Senhor ouviria suas orações (16:17). jó viu-se no meio de um dilema. Seu so­ frimento era tanto que desejava morrer, mas não queria partir antes de provar sua inocên­ cia ou de ver Deus justificá-lo. Isso explica sua súplica no versículo 18: "O terra, não cubras o meu sangue, e não haja lugar em que se oculte o meu clamor!" Os antigos acreditavam que o sangue de uma vítima inocente clamava a Deus por justiça (Cn 4:8- 15) e que os espíritos dos mortos não ti­ nham descanso enquanto o corpo não fosse devidamente sepultado (Is 26:21). Mesmo que Jó morresse, não encontraria repouso até que o Senhor provasse sua retidão. Jó clamou repetidamente por um jul­ gamento justo perante o Senhor (Jó 9:1-4, 14-16, 19, 20, 28-35; 10:2; 13:6-8, 19). La­ mentou o fato de não ter um advogado para representá-lo diante do trono de Deus (9:33). Nenhum de seus amigos estava disposto a defendê-lo, de modo que sua única espe­ rança era que o Deus do céu pleiteasse em favor dele e desse testemunho de sua integri­ dade (1 6:19). Porém, Jó ansiava por alguém que intercedesse por ele junto a Deus (v. 21). Jesus Cristo é o Advogado celestial do cristão (1 Jo 2:1, 2). Como nosso Sumo Sa­ cerdote intercessor, Cristo nos dá a graça vitoriosa de que precisamos quando somos tentados e provados (Hb 2:17, 18; 4:14-16). Se falhamos, ele é nosso Advogado para nos perdoar e restaurar quando lhe confessamos nossos pecados (1 Jo 1:5 - 2:2). É evidente que Jó desejava ter um "advo­ gado" para pleitear sua causa junto a Deus e convencê-lo de que Jó era um homem ino­ cente. Uma vez que Jó tivesse ganho essa causa, Deus o justificaria diante de seus amigos, tão prontos a criticá-lo, e restauraria a honra de Jó. O povo de Deus não precisa desse tipo de intercessão, pois o Pai e o Fi­ lho encontram-se em perfeita concordância em seu amor por nós e em seu plano para nossa vida. O Senhor Jesus está interceden­ do incessantemente por seu povo (Rm 8:31- 39; Hb 7:25) e aperfeiçoando os cristãos na vontade de Deus (13:20, 21). Aproximamo- nos do trono da graça, não de um trono de julgamento, e estamos certos de que nosso Pai amoroso fará o que é melhor para nós. Uma súplica pela morte (17:1-16). Um dos motivos pelos quais Jó desejava que seu Advogado celestial agisse com rapidez era a iminência de sua morte: "o caminho de onde não tornarei" (Jó 1 6:22). Quando as pessoas sofrem tanto a ponto de seu espírito se "con­ sumir" (17:1), perdem a luta e desejam que a vida chegue ao fim. Os amigos de jó estavam contra ele e se recusavam a apresentar-se diante do tri­ bunal para pagar sua "fiança" (vv. 3-5). As pessoas o tratavam como se fosse a mais desprezível das criaturas (v. 6). Seu corpo não passava de uma sombra de seu físico de outros tempos (v. 7), e todos os seus pla­ nos haviam sido frustrados (v. 11). Seus amigos se recusavam a mudar de idéia e defendê-lo (v. 10). Na verdade, em vez de enfrentarem a situação com honestidade, não paravam de lhe dizer que a luz não tar­ daria a brilhar sobre ele (v. 12). É de se ad­ mirar, portanto, que, para Jó, a única saída parecia ser a morte? Porém, em momento algum ele pensou em tirar sua própria vida nem pediu a algu­ ma outra pessoa que o fizesse por ele. A vida é uma dádiva sagrada de Deus, e so­ mente Deus pode concedê-la ou tirá-la. Por um lado, Jó queria viver o suficiente para ser justificado, mas, por outro lado, não sabia quanto ainda seria capaz de suportar. Uma vez que estivesse no Sheol, o reino dos mor­ tos, só poderia ser justificado na terra se Deus o trouxesse de volta. Jó descreve o Sheol como seu lar, onde se deitaria na escuridão e repousaria (v. 13). Uma vez que não tinha família, adotaria o sepulcro como pai e os vermes como mãe e irmãs. Estes lhe dariam mais consolo que seus amigos! Q ue o V erdadeiro In im ig o se A presente Jó 18 - 19 A morte é uma grande aventura que faz as aterrissagens na lua e as viagens espa­ ciais parecerem insignificantes. (Joseph Bayly) Bildade começou seu segundo discurso com as mesmas palavras do primeiro: "Até quando?" (Jó 18:2; 8:2), e Jó disse a mesma coisa ao responder (19:2). Os ami­ gos estavam ficando impacientes uns com os outros, pois sua conversa parecia não es­ tar indo a lugar algum. George Bernard Shaw comparou as conversas, de um modo geral, com "um fonógrafo com meia dúzia de dis- j cos: logo se fica enjoado de todos eles". Bildade culpou Jó por esse impasse e o admoestou: "Considera bem, e, então, fala­ remos" (18:2). Em momento algum ocorreu a Bildade que talvez fossem os três amigos que estivessem repetindo suas declarações: (1) Deus é justo; (2) Deus castiga o perverso e abençoa o justo; (3) uma vez que Jó está sofrendo, então deve ser perverso; (4) se ele se arrepender de seus pecados, Deus voltará a abençoá-lo. Estavam andando em círculos. Bildade afirmou que Jó não estava sendo sensato e nem respeitoso. Tratava os amigos j como animais irracionais e não como os ho- j mens sábios que eram (v. 3). Além disso, es­ tava sendo irritável e mostrando ira em lugar de humildade (v. 4). "Será que Deus deve rearranjar o mundo inteiro só para você?", perguntou Bildade. "Deve devastar a terra com guerras ou mesmo enviar um terremo­ to só por sua causa?" Elifaz não era o único que sabia usar o sarcasmo! Porém, Bildade planejava empregar uma arma ainda mais poderosa que o sarcasmo. 6 Sua arma era o medo. Se os três amigos não estavam conseguindo arrazoar com Jó nem fazê-lo se envergonhar e se arrepender, en­ tão talvez conseguissem intimidá-lo com uma descrição do que acontece quando os perversos morrem. Antes de estudarmos o discurso assusta­ dor de Bildade, devemos observar que o medo é uma emoção normal do ser humano e que não há nada de errado com esse senti­ mento. Usamos o medo de doenças, feri­ mentos ou morte para ensinar as crianças a lavar as mãos, ficar longe de linhas de alta tensão e olhar com cuidado antes de atra­ vessar a rua. O medo de perder dinheiro serve de motivação para as pessoas comprarem seguros, e o medo da morte as leva a fazer check-ups médicos todos os anos. O medo da morte (e do julgamento sub­ seqüente) é uma motivação legítima para crer em Jesus Cristo e ser salvo. Jesus disse: "Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei, antes, aquele que pode fazer perecer no inferno tanto a alma como o corpo" (Mt 10:28). A mensa- | gem de Cristo trata da graça e do amor, mas também é uma mensagem severa de julga­ mento. Paulo escreve: "E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça" (2 Co 5:11). Quando Jona- than Edwards pregou seu sermão sobre Os pecadores nas mãos de um Deus irado, não transgrediu qualquer princípio psicológico ou bíblico. As emoções dos incrédulos de­ vem ser tocadas antes de sua mente poder ser instruída e de sua vontade ser desafiada. | Porém, Bildade cometeu dois erros em seu discurso sobre os horrores da morte. Em primeiro lugar, ele o dirigiu à pessoa errada, pois seu amigo sofredor já era um homem temente a Deus (Jó 1:1, 8). Em segundo lu­ gar, pregou com a motivação errada, pois não havia amor algum em seu coração. O dr. R. W. Dale, um pregador inglês, perguntou certa vez ao evangelista D. L. Moody se ele usava o "elemento do terror" em suas prega­ ções. Moody respondeu que, em cada uma de suas campanhas evangelísticas, pregava 38 JÓ 1 8 - 1 9 um sermão sobre o céu e outro sobre o infer­ no, mas disse que "o homem deve ter um coração muito sensível" ao falar sobre a con­ denação dos perdidos. Bildade não tinha esse coração sensível. 1. O s HORRORES DA MORTE (Jó 18:5-21) Em seu discurso, Bildade apresentou quatro descrições vividas da morte dos perversos. Uma luz que é apagada (vv. 5, 6). A luz é associada à vida, assim como as trevas são associadas à morte. Uma vez que Deus é o autor da vida, somente ele pode "acender nossa lâmpada", pois "ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais" e "nele vivemos, e nos movemos, e existimos" (At 17:25, 28). Essa descrição refere-se a uma lamparina pendurada em uma tenda e a um fogo queimando num fogareiro. De repente, a lamparina se apaga, a última faísca do fogo desaparece e a tenda fica completamente escura (Pv 13:9; 24:20). Assim como a chama da lamparina ou as faíscas do carvão, a vida é preciosa, porém delicada. Até mesmo uma brisa pode apagá- la. "Apenas há um passo entre mim e a mor­ te" (1 Sm 20:3). William Randolph Hearst, magnata nor­ te-americano dos jornais, não permitia jamais que alguém mencionasse sua morte em sua presença. No entanto, no dia 14 de agosto de 1951, a chama de sua vida se apagou e ele morreu. "O espírito do homem é a lâm­ pada do S e n h o r " (P v 20:27), e Deus pode apagar essa lâmpada quando lhe apraz. Um viajante preso numa armadilha (vv. 7-10). Assustado, o ser humano sai de sua tenda e se põe a caminhar pela estrada em busca de um lugar seguro. Porém, a estrada acaba sendo o lugar mais perigoso de todos, pois está repleta de armadilhas. Bildade usa seis palavras diferentes para descrever os perigos que as pessoas enfrentam em sua tentativa de fugir da morte: uma rede - estendida no caminho para apanhá-lo; a boca de um fosso - ramos que cobrem uma cova profunda; uma armadilha - um laço com um nó cor- rediço que se aperta quando é tocado, prendendo o viajante pelo calcanhar; um laço - uma cilada no caminho; uma corda - escondida na terra; outra armadilha - um dispositivo usado para capturar presas. Esses dispositivos eram usados para pegar pássaros e outros animais e não pessoas. Mas a pessoa perversa é como um animal, pois deixou Deus fora de sua vida. Por mais que tente usar de vários artifí­ cios, o viajante não tem como escapar das armadilhas, e quanto mais ele tenta, mais fraco vai ficando (Jó 1 8:7). Está cercado pe­ la escuridão e pelo perigo e não tem mais esperanças. Um criminoso perseguido (vv. 11-15). A morte é o "rei dos terrores" (v. 14), decidida a capturar o culpado onde quer que ele es­ teja. Se o criminoso fugitivo correr pelo ca­ minho e escapar das armadilhas, então a morte enviará ajudantes para persegui-lo. O terror o assalta, a calamidade consome, aos poucos, suas forças e a tragédia espera pela sua queda (vv. 11, 12). O criminoso assustado vai sucumbindo, mas ainda tenta prosseguir. Se voltar à tenda para se esconder, seus perseguidores o en­ contrarão, prenderão, arrastarão para fora e levarão ao rei dos terrores. Removem tudo da tenda e a queimam, espalhando enxofre sobre as cinzas. O fim desse homem é fogo e enxofre! Uma árvore desarraigada (vv. 16-21). Por vezes, a morte não é tão dramática e súbita quanto a captura de um criminoso. Também pode ser gradual, como a morte de uma ár­ vore. As raízes secam, os ramos começam a murchar e os galhos mortos são podados um a um. Logo, a árvore está morta por intei­ ro e é derrubada pelo homem. A morte da árvore ilustra a extinção de uma família, de uma "árvore genealógica". Não apenas o in­ divíduo perverso é cortado, como também todos os ramos são podados, não deixando descendente algum para dar continuidade ao seu nome. (Lembre-se de que todos os filhos de Jó haviam morrido no vendaval.) JÓ 1 8 - 1 9 39 No Oriente, a extinção de uma família era considerada uma grande tragédia. Jó havia usado uma árvore como uma ilustração de esperança e ressurreição (14:7- 11), mas Bildade discordou dele. De acordo com Bildade, uma vez que a árvore é derru­ bada pelo ser humano, esse é seu fim; não há esperança alguma para o perverso. Apesar de Bildade estar se dirigindo ao homem errado pelos motivos errados, aqui­ lo que disse sobre a morte deve ser levado a sério. A morte é um inimigo temido por to­ dos os que não estão preparados para enfrentá-lo (1 Co 1 5:26), e a única forma de se preparar é crer em Jesus Cristo (Jo 5:24). Para o cristão, morrer significa ir para o lar e estar junto do Pai no céu (Jo 14:1-6), adormecer na terra e despertar no céu (At 7:60; Fp 1:21-23), entrar no descanso (Ap 14:13) e numa luz mais fulgurante (Pv 4:18). Nenhum dos retratos apresentados por Bildade aplica-se àqueles que são salvos em Cristo. 2. AS TRIBULAÇÕES DA VIDA (JÓ 19:1-29) Quando Bildade terminou de descrever os horrores da morte, Jó respondeu descreven­ do as tribulações da vida - de sua própria vida. "Não preciso morrer para passar por provações", disse a seus amigos. "Estou pas­ sando por elas neste exato momento, e vocês parecem não se importar!" Insultos (w. 1-4). Nossas palavras podem ferir ou curar os outros; com elas, podemos tornar os fardos mais pesados ou ajudar os outros a carregá-lo com coragem. Os ami­ gos de Jó o oprimiram com suas palavras, fazendo-o sentir-se imprestável e desam­ parado diante de seu sofrimento. Como é importante sermos sensíveis às necessidades e lutas dos outros! Até mesmo quando pre­ cisam ser repreendidos, devemos admoes- tá-los com amor; nossas palavras devem animá-los, não enfraquecê-los. "Mesmo que eu tenha pecado", disse Jó em 19:4, "essa transgressão é minha, não sua. Deixem-me em paz, pois esse é um assunto entre mim e Deus". O termo empregado por Jó ("errar") significa "cometer um pecado involuntário". Jó continuou defendendo sua integridade e afirmando que não havia co­ metido pecado algum que o fizesse merecer toda a aflição pela qual estava passando. Ilustrações (w. 5-12). Bildade havia apre­ sentado quatro descrições assustadoras dos horrores da morte, de modo que Jó as refu­ tou com sete retratos vividos das tribulações de sua vida, aquilo que estava experimen­ tando naquele instante! Sentia-se como um animal preso numa rede (v. 6). Jó via-se capturado pela rede de Deus, não por causa de seus pecados, mas porque Deus havia preparado essa armadilha para ele. Bildade descreveu seis tipos dife­ rentes de armadilha que pegariam um crimi­ noso fugitivo (18:7-10), mas Jó não se inclui nessa descrição. Ele não estava fugindo de Deus, nem era culpado de pecado algum. Deus o havia pego de repente por motivos que Jó não era capaz de compreender. Jó também se sentia como um réu num tribunal (19:7). Deus o havia injustiçado ao capturá-lo e levá-lo a julgamento. O que ele havia feito? Por que não lhe diziam quais eram as acusações? Por que não lhe era permi­ tido se defender? "Eis que clamo: violência! Mas não sou ouvido; grito: socorro! Porém não há justiça" (v. 7). Ao longo de todo o livro, Jó clama por justiça e suplica por um advogado para defendê-lo diante de Deus. O que ele não sabe é que e/e é o advogado defendendo Deus! Foram a fé e a paciência submissa de Jó que provaram a falsidade de Satanás e glorificaram o Senhor. Jó se via como um viajante cercado (v. 8). A queixa de Satanás era a de que Deus havia cercado Jó e sua família de cuidados a fim de protegê-los das tribulações (1:9-12). Aqui, Jó queixa-se de que Deus bloqueou seu ca­ minho e que é impossível seguir viagem. Jó não conseguia entender por que Deus havia feito as trevas descerem sobre suas veredas. Por vezes, Deus permite que seus filhos atravessem as trevas e acabem numa rua sem saída. Quando isso acontecer, espere que o Senhor, a seu tempo, faça a luz voltar a bri­ lhar. Não tente criar a própria luz nem tomá- la emprestada de outros. Siga o conselho sábio de Isaías: "Quem há entre vós que tema ao S en h o r e que ouça a voz do seu Servo? 42 JÓ 18 - 19 humanidade, passar por tudo o que passa­ mos e, por fim, voltar ao céu e nos represen­ tar diante do Pai. Ele quer e pode salvar. Um dia, julgará sobre a Terra e justificará seu povo. Jó encerrou seu discurso com uma ad­ vertência a seus três amigos críticos (19:28, 29): eles também se veriam diante do trono de julgamento de Deus, de modo que era melhor estarem preparados. Acusaram Jó de ser um pecador, mas acaso eles próprios tam­ bém não eram pecadores? Haviam dito que Deus o estava julgando por seus pecados, mas acaso o Senhor também não os julgaria? Um dia, teriam de prestar contas a Deus so­ bre a forma como se dirigiram a Jó, de modo que deveriam ter cuidado. As palavras de Jó nos lembram o conselho de Paulo em Ro­ manos 14:10-13 e as palavras de Jesus em Mateus 7:1-5. Abraham Lincoln disse certa vez: "Só tem direito de criticar quem tem um coração dis­ posto a ajudar". Esse é seu caso? T u d o D epende d o S eu P o n to de V ista Jó 20 - 21 A ajuda mais genuína que podemos ofe­ recer a um homem aflito não é remover seu fardo, mas sim fazer aflorar nele suas maiores forças para que seja capaz de suportá-lo. (Philip Brooks) Zofar é o próximo da fila a falar, mas não tem nada de novo a dizer. É a mesma história de sempre: Deus castiga os perver­ sos, de modo que a melhor coisa que Jó tem a fazer é colocar sua vida em ordem com Deus. Seu texto-chave é Jó 20:5: "O júbilo dos perversos é breve, e a alegria dos ímpios, momentânea". Esse tema já foi discutido por Bildade (8:11-19; 18) e Elifaz (15:20-35), mas Zofar ficou tão perturbado com o último discurso de Jó que julgou necessário se pro­ nunciar. "Eu ouvi a repreensão, que me en­ vergonha, mas o meu espírito me obriga a responder segundo o meu entendimento" (20:3). Zofar sentiu-se insultado por Jó e re­ solveu se defender. 1. A TERRÍVEL SINA DOS PERVERSOS (Jó 20:4-29) Zofar faz três declarações para provar que a sina dos perversos é, de fato, terrível: sua vida é breve (Jó 20:4-11), seu prazer é tem­ porário (vv. 12-19), e sua morte é dolorosa (vv. 20-29). Sua vida é breve (w. 4-11). Zofar declara que, desde os primórdios da história da hu­ manidade, o triunfo ("júbilo") dos perversos é transitório. Perguntamo-nos de onde ele tirou essa informação, uma vez que o Se­ nhor esperou 120 anos para mandar o dilú­ vio (Gn 6:3) e deu aos cananeus perversos 7 pelo menos quatro séculos antes de julgá- los (15:13-16). Nas Escrituras, a maioria das pessoas que refletiram sobre o problema do mal no mun­ do partiu de outra premissa: os perversos desfrutam uma vida longa e sem grandes di­ ficuldades, enquanto os justos sofrem muito e morrem jovens (SI 37; 73; Jr 12:1-4). A fim de provar que sua argumentação estava cer­ ta, Zofar ignorou uma porção de dados. De acordo com Zofar, quanto mais o homem perverso elevar-se em seu sucesso, maior será sua queda quando lhe sobrevier o julgamento. Quando isso ocorrer, seguirá esgoto abaixo como seu próprio esterco, e as pessoas perguntarão: "Onde está?" (Jó 20:6, 7). Desaparecerá como um sonho es­ quecido ou como uma visão noturna que não pode ser evocada (v. 8). Não apenas o perverso e seu nome desa­ parecerão, como também sua riqueza se per­ derá. Depois de sua morte, a verdade sobre seus crimes virá à tona, e seus filhos terão de usar sua herança para ressarcir as pessoas de quem seu pai roubou. Seu pai ainda estava cheio de "vigor da juventude" quando mor­ reu (v. 11), mas logo não passará de um ca­ dáver numa cova. De acordo com Zofar, os perversos têm morte precoce e inesperada. Ao investigarmos tanto a história sagrada quanto a secular, descobrimos que não há regras fixas que determinam quando o per­ verso ou o justo morrerá. Em termos gerais, as pessoas que ignoram as leis de Deus estão mais vulneráveis a problemas que podem le­ var à morte prematura. A promiscuidade, o uso de drogas (inclusive do álcool e do fumo) e um estilo de vida imprudente podem con­ tribuir para encurtar a vida de uma pessoa. Porém, não há qualquer garantia de que isso acontecerá. É impressionante como alguns ímpios vivem até uma idade avançada. Tal­ vez sua vida seja prolongada pela graça de Deus, dando-lhes tempo de se arrepender. Zofar não estava se referindo às conse­ qüências naturais de uma vida perversa, mas sim aos julgamentos de Deus sobre os pe­ cadores. Zofar e seus dois amigos estavam certos de que Jó era um hipócrita e de que sua vida de piedade era superficial e servia 44 JÓ 20 - 21 apenas para encobrir seus pecados secretos. Em seu segundo discurso, Elifaz chega a ci­ tar alguns dos pecados cometidos por Jó! (22:5-9). Porém, Deus nem sempre julga os hipócritas e outros pecadores de imediato, e a morte de uma pessoa jovem não é evi­ dência alguma de que fosse dissimulada. O grande pregador presbiteriano escocês Robert Murray McCheyne morreu quando tinha apenas 29 anos de idade e o missioná­ rio William Whitting Borden ("Borden de Yale", como era conhecido), tinha apenas 25 anos quando morreu no Egito. David Brai- nerd, um missionário dedicado a atuar entre os povos nativos norte-americanos, tinha 29 anos quando faleceu. De acordo com Zofar, esses homens devem ter sido culpados de pecados secretos, de modo que Deus lhes tirou a vida na flor da idade. Seu prazer é temporário (w. 12-19). Aqui, Zofar usa o ato de comer como sua imagem principal. O indivíduo perverso desfruta o pecado como quem saboreia um alimento, degustando-o demoradamente antes de en- goli-lo. Na verdade, gosta tanto do pecado que não consegue obrigar-se a engoli-lo! Po­ rém, essa comida deliciosa em sua boca aca­ ba se tornando um veneno e fazendo esse indivíduo adoecer e vomitar tudo. Enquanto desfrutava seu pecado, não percebeu que havia sido picado por uma serpente vene­ nosa e que estava condenado a morrer. Em outras palavras, o pecado traz consigo tanto o prazer quanto o castigo, e se alguém dese­ ja provar uma coisa, deve aceitar também a outra. Os prazeres do pecado são transitó­ rios (Hb 11:25). Porém, o julgamento de Deus vai muito mais longe: o perverso não apenas adoece em decorrência de seu pecado como tam­ bém não tem prazer nas bênçãos diárias da vida (Jó 20:1 7). "Não se deliciará com a vis­ ta dos ribeiros e dos rios transbordantes de mel e de leite." A terra de Canaã manava "leite e mel" (Êx 3:8; Lv 20:24), que não eram luxos, mas sim dois alimentos básicos, de modo que uma terra assim seria produtiva e poderia sustentar seu povo. Mas o perverso perdeu o gosto pelas comidas simples, e nada mais o satisfaz. Seu apetite pelo pecado des­ truiu o prazer que vem das bênçãos mais essenciais da vida. Ao usar essa imagem de uma pessoa co­ mendo, Zofar deixa duas coisas claras: aqui­ lo que o perverso engolir o fará adoecer e também tirará dele o desejo pelas coisas boas da vida. Além disso, em Jó 20:18, 19 ele afirma que esse indivíduo não será capaz de desfrutar (engolir) algumas das coisas pelas quais trabalhou. As riquezas que adquiriu por seu pecado não o satisfarão. Sem dúvida, podemos ver isso na vida de muitas pessoas que rejeitam a Cristo e se entregam aos prazeres do pecado. Quanto mais se deixam levar por esses prazeres, maior é seu desejo, e quanto mais saciam esses desejo, menos satisfação encontram. Quan­ to menos satisfação sentem, mais precisam pecar a fim de experimentar novamente as mesmas sensações de outrora e, quanto mais pecam, mais destroem sua capacidade de desfrutar qualquer coisa. Em outras palavras, essas pessoas "queimaram os fusíveis", e os mecanismos de sua vida não funcionam mais como antes. Sua morte é dolorosa (vv. 20-29). Nem mesmo as riquezas do perverso poderão evitar que a morte lhe sobrevenha (Jó 20:20; ver SI 49). Enquanto desfruta sua prosperi­ dade, o perverso sentirá aflições, tribulações e a ira consumidora de Deus. O Senhor "man­ dará sobre ele o furor da sua ira" (Jó 20:23). O perverso tentará fugir, mas Deus o atacará com uma espada e o traspassará com uma flecha com a ponta de bronze. Nessa altura de seu discurso, Zofar co­ meça a falar como Bildade (Jó 18). Descreve o perverso tentando escapar do julgamento de Deus. As flechas vêm em sua direção, enquanto corre na escuridão, e o fogo cai ao seu redor. Então, é pego por uma inundação que destrói tudo. Mas esse ainda não é o fim: o perverso é levado para o tribunal em que o céu e a terra testemunham contra ele e o declaram culpado (20:27). 2. O VERDADEIRO FIM DO PERVERSO (Jó 21:1-34) Depois de suplicar mais uma vez pela compreensão e compaixão de seus amigos JÓ 20 - 21 47 que ele havia refutado anteriormente (ver 18:13-21 e 20:20-29), ainda assim esperava ouvir discursos parecidos outra vez. Jó perguntou a seus amigos se, em algu­ ma ocasião, haviam investigado qual era a situação de outros lugares fora de sua terra natal. Como Dorothy Sayers escreveu: "Não há coisa alguma que não possa ser provada, se a visão de mundo for suficientemente li­ mitada". "Porventura, não tendes interroga­ do os que viajam?", perguntou Jó (21:29). As pessoas que viajam não costumam ter uma perspectiva provinciana, pois suas ex­ periências são mais amplas. Com toda a sua sabedoria, os três amigos talvez ainda tives­ sem uma visão de mundo mais limitada, pois não haviam observado como as pessoas vi­ viam em outros lugares. Se os amigos de Jó conversassem com pessoas viajadas, fica­ riam sabendo que, no mundo todo, os per­ versos parecem escapar das calamidades que assolam os justos. Em seguida, Jó fez uma pergunta muito pessoal aos seus amigos: "Se acreditam mesmo que os perversos estão destinados a morrer prematuramente, já os advertiram? Já lhes disseram francamente que não apro­ vam o que fazem?" (v. 31, paráfrase). Caso seus amigos tivessem respondido: "Nunca conversamos com os ímpios sobre o que o futuro lhes reserva", então Jó poderia ter dito: "Então por que estão advertindo um homem justo sobre o futuro dele?" Quanta incoerência! As palavras finais de Jó em 21:34 deixam claro para os três amigos que ele não confia naquilo que dizem. Seu consolo é "em vão" e suas respostas não passam de "falsidade". O termo hebraico traduzido por "falsidade" significa "um ato deliberado de transgressão da lei de Deus, um ato de traição" e costu­ ma ser traduzido também por "transgressão". Ao atacar Jó, os três amigos foram desleais e pecaram contra Deus. Em vez de ajudar Jó, eles o estavam fazendo se desviar. Tenho um amigo que ora todos os dias: "Senhor, ajuda-me para que hoje eu não au­ mente os fardos de ninguém". Infelizmente, Bildade, Zofar e Elifaz não faziam essa oração! Talvez todos nós devêssemos começar a pedir isso a Deus! 1. Be cke r, Ernst. The D en ia l o f D eath. Free Press, p. ix. Interlúd io Se você deseja ser um estímulo para aque­les que sofrem, procure ver as coisas pela perspectiva deles. Seja humilde o suficiente para admitir que pode haver outros pontos de vista. A experiência de vida dos três amigos de Jó era limitada. Apegavam-se ra­ dicalmente a seus dogmas e se recusavam a ceder. Numa carta dirigida a algumas pes­ soas que discordavam dele, Oliver Cromwell escreveu: "Rogo-vos pela mais profunda es­ sência de Cristo que considereis a possibili­ dade de estardes equivocados". Alguém definiu os fanáticos como "pes­ soas incapazes de mudar de idéia ou de assunto". Certa vez, Samuel Johnson comen­ tou sobre um homem: "É uma pessoa de uma idéia só e, ainda por cima, é uma idéia errada". Sempre existe algo de novo a aprender sobre Deus, sobre a Bíblia, sobre as pessoas e sobre a vida. Sejamos bons aprendizes - e bons ouvintes! O rdem n o T ribunal Jó 22 - 24 8 O Deus de Israel, o Salvador, é, por ve­ zes, um Deus que se esconde, mas nunca um Deus que se ausenta. Pode estar nas sombras, mas nunca está distante. (Matthew Henry) Aquilo que deveria ter sido uma conver­sa estimulante entre amigos tornou-se uma altercação irada e amargurada. Em vez de tentar acalmar as coisas, Elifaz assumiu o papel de promotor de justiça e transformou a discussão num julgamento. Eram três pes­ soas contra um: Jó assentado no monte de cinzas ouvindo seus amigos mentirem sobre ele. De acordo com o Talmude judaico: "A língua caluniadora mata três pessoas: o caluniador, o caluniado e aquele que ouve a calúnia". Havia morte por toda parte no monte de cinzas em Uz! 1. Três acusações falsas (Jó 22:1-30) Como qualquer promotor competente, Eli­ faz estava totalmente a par do caso e havia preparado seu resumo dos fatos. Fez três acusações sérias contra Jó: ele é um peca­ dor (Jó 22:1-11), está escondendo seus pe­ cados (vv. 12-20) e deve confessá-los e se arrepender, a fim de que Deus possa socorrê- lo (vv. 21-30). Jó é um pecador (w. 1-11). Elifaz não conseguiu resistir à tentação de lançar uma farpa sarcástica contra Jó. "[O Senhor] te re­ preende pelo teu temor de Deus ou entra contra ti em juízo?" (v. 4). Os tribunais não julgam pessoas por sua retidão, mas sim por sua transgressão da lei! Logo, uma vez que Deus havia enviado julgamentos terríveis so­ bre Jó, ele deveria estar vivendo em pecado. "Porventura, não é grande a tua malícia, e sem termo, as tuas iniqüidades?" (v. 5). Po­ rém, Elifaz não entendeu aquilo que Jó esta­ va argumentando: "Por que Deus aplicou a pena antes de me prender, de ler a acusação formal e de realizar o julgamento?" Parecia tudo muito injusto. Primeiro, Elifaz acusou Jó do pecado de orgulho (vv. 1-3). Jó estava agindo como se seu caráter e conduta fossem importantes e, de algum modo, benéficos para Deus. A teo­ logia de Elifaz girava em torno de um Deus distante, o Juiz do mundo, mas não o Amigo dos pecadores. Porém, o caráter e a conduta de Jó eram importantes para o Senhor, pois Deus estava usando jó para calar o diabo. Nem Jó nem seus três amigos sabiam que Deus tinha um plano, mas Jó acreditava que Deus estava cumprindo algum propósito em sua vida e, um dia, o justificaria. Além disso, o caráter e o comportamento do povo de Deus são im­ portantes para o Senhor, pois seu povo pode lhe causar alegria ou tristeza (1 Ts 4:1; Hb 11:5; Gn 6:5, 6; SI 37:23). Ele não é um Deus passivo e distante, que não se identifica com seu povo, mas sim um Deus que se deleita com os que são seus, assim como eles se deleitam com o Senhor (SI 18:19; Is 63:9; Hb 4:14-16). Como filhos de Deus, devemos seguir o exemplo de Jesus, que disse: "Faço sempre o que lhe agrada" (Jo 8:29). Então, o Pai po­ derá nos dizer aquilo que disse sobre Jesus: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo" (Mt 3:17). Além do orgulho, Elifaz acusou Jó de cobiça (Jó 22:6). Era um homem ganancioso que abusava das pessoas a fim de obter mais riquezas. Usava seu poder e reputação (v. 8) para intimidar as pessoas e roubar delas. Na lei mosaica, um credor podia tomar algo de seu devedor como garantia, mas nada que colocasse em risco seu trabalho, sua saúde ou sua dignidade como ser humano (Êx 22:25-27; Dt 24:10-13). Elifaz acusou Jó de tomar garantias desnecessárias de seus ir­ mãos e de deixar as pessoas despidas por tirar delas toda sua roupa até que lhe pagas­ sem o que deviam! 52 JÓ 22 - 24 julgamento justo. Jó estava preparado para apresentar sua causa e seus argumentos e deixar que Deus desse o veredicto. Estava certo de que, apesar do grande poder de Deus como Legislador, sua causa venceria, pois ele era um homem reto, e Deus não condena os retos de coração. "Ali, o homem reto pleitearia com ele, e eu me livraria para sempre do meu juiz" (v. 7). Porém, de que maneira o indivíduo en­ contra Deus? Se Jó fosse para frente ou para trás (para leste ou oeste), para a direita ou para a esquerda (para o norte ou para o sul), não conseguiria ver Deus nem mesmo de re­ lance. Sem dúvida, Deus está presente em toda a parte (SI 139:7-12); mas Jó desejava encon­ trar-se pessoalmente com ele. Tinha perguntas a lhe fazer e argumentos a lhe apresentar! Deus sabia onde Jó estava: na fornalha! (Jó 23:10). Porém, era uma fornalha prepa­ rada por Deus, não decorrente do pecado de Jó, de modo que Deus usaria a aflição que ele sentia para purificá-lo e aprimorá-lo. Essa não é a única resposta para a pergunta: "Por que os justos sofrem?", mas é uma das melhores e pode servir de grande encora­ jamento para o sofredor. As Escrituras usam a imagem da fornalha com freqüência para descrever o ministério purificador de Deus por meio do sofrimen­ to. "Eis que te acrisolei, mas disso não resul­ tou prata; provei-te na fornalha da aflição" (Is 48:10). O sofrimento de Israel no Egito foi como o ferro colocado na fornalha (Dt 4:20) e suas disciplinas posteriores também foram "experiências na fornalha". "Pois tu, ó Deus, nos provaste; acrisolaste-nos como se acriso- la a prata" (SI 66:10). Essa imagem é usada em 1 Pedro 1:6, 7 e 4:12 com referência aos cristãos que sofriam perseguições. Quando Deus coloca seu povo na forna­ lha, fica de olho no relógio e com a mão no termostato. Sabe exatamente quanto tempo deve deixá-lo lá e qual deve ser a intensida­ de do calor. Podemos questionar por que, em primeiro lugar, ele permite esse tipo de experiência e, ainda, por que não abaixa a temperatura nem livra sua gente de todo esse calor, mas essas perguntas são apenas provas de incredulidade. A resposta encontra-se em Jó 23:10: "Mas ele sabe o meu caminho; se ele me provasse, sairia eu como o ouro". O ouro não teme o fogo. A fornalha serve ape­ nas para tornar o ouro mais puro e brilhante. E importante observar que Jó vivia de modo agradável a Deus antes de entrar na fornalha (vv. 11,12). Elifaz advertira Jó a acei­ tar as palavras de Deus e a lhes obedecer (22:22), mas Jó fazia isso havia muito tem­ po. A Palavra de Deus era seu guia enquanto trilhava o caminho da vida e cuidava para não tomar desvios. Mais do que isso, po­ rém, a Palavra de Deus era seu alimento, mais importante do que as refeições diárias. As­ sim como Jeremias (jr 15:16) e Jesus (Mt 4:4; Jo 4:31-34), Jó encontrava na Palavra de Deus o único alimento que satisfazia seu ser interior. (Ver SI 1:2; 119:103; 1 Pe 2:1-3.) Algumas pessoas são queimadas dentro da fornalha da aflição; outras, saem dessa experiência purificadas. O que distingue es­ sas pessoas umas das outras? Sua atitude com relação à Palavra e â vontade de Deus. Se formos alimentados pela Palavra e nos sujeitarmos à vontade de Deus, por mais dolorosa que seja a experiência de passar pela fornalha, ela nos refinará e aperfeiçoará. Porém, se resistirmos à vontade de Deus e não nos alimentarmos de sua verdade, essa experiência não apenas nos queimará, como também nos tornará amargurados. Jó desejava apresentar ainda outra queixa. "Deus está me atemorizando" (w. 13- 17). "Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará" (v. 1 3). Jó não tinha nenhum outro deus para o qual se voltar em busca de aju­ da, como também não havia forma alguma de opor-se a Deus ou fazê-lo mudar de idéia. Deus controla o universo de acordo com sua vontade e não por um consenso ou votação democrática. Seus pensamentos e caminhos são muito mais elevados que os nossos, mas ele sabe o que é melhor, de modo que deve­ mos aceitar sua vontade e nos alegrar nela (Is 55:8-11). Aqueles que resistem à soberania de Deus ou que a negam privam-se de paz e de cora­ gem. Como disse Charles Haddon Spurgeon: JÓ 22 - 24 53 "Não há atributo de Deus mais consolador a seus filhos do que a doutrina da soberania divina. Por outro lado, também não há dou­ trina mais odiada por aqueles que são do mundo". Por quê? Porque o coração huma­ no é orgulhoso e não quer sujeitar-se ao Deus Todo-Poderoso. As pessoas desejam "fazer as coisas a sua maneira" em vez de encon­ trar prazer em realizar a vontade de Deus. Se essa doutrina é uma fonte tão eficaz de forças, então por que Jó ficava tão atemo­ rizado ao pensar na soberania de Deus? Por­ que seu sofrimento era intenso e ele ficava imaginando o que o Deus Todo-Poderoso lhe faria sobrevir em seguida. Uma coisa é sujei- tar-se a Deus quando se pode ver seu rosto e ouvir sua voz em sua Palavra. Mas quando, como Jó, só o que há é escuridão e dor, é fácil "desintegrar-se" e temer. "Pois ele cum­ prirá o que está ordenado a meu respeito e muitas coisas como estas ainda tem consigo" ÍJó 23:14). O que acontecerá em seguida? Porém, Jó 23:14 deve ser contrastado com Jeremias 29:11: "Eu é que sei que pen­ samentos tenho a vosso respeito, diz o S e­ n h o r ; pensamentos de paz e não de mal, para vos dar o fim que desejais". Quando Jesus Cristo é nosso Senhor, o futuro é nosso aliado e não precisamos temer. Nas palavras do psicólogo Roilo May. "A maneira mais eficaz de garantir um futuro de valor é confrontar o presente corajosa e construtivamente". E a melhor forma de fazer isso é sujeitar-se ao Senhor e ter a consciência de que ele está no controle. "Aleluia! Pois reina o Senhor, nosso Deus, o Todo-Poderoso" (Ap 19:6). "Deus me confunde" (w. 1-25). Este ca­ pítulo inteiro concentra-se naquilo que pare­ ce ser uma série de injustiças permitidas por Deus neste mundo. Jó começa seu discurso perguntando: "Por que Deus não tem dias específicos para ouvir nossa causa? assim, eu poderia comparecer a seu tribunal e lhe dizer o que penso sobre como ele está go­ vernando o mundo!" Jó parte das injustiças no campo (vv. 1- 11), passando depois aos crimes na cidade (vv. 12-17). Encerra seu discurso com uma imprecação contra os perversos (vv. 18-25). Se Deus não os julgasse, Jó o faria! (1) As injustiças no campo (vv. 1-11). Na maioria das vezes, não havia cercas nem muros para separar as propriedades rurais; cada família tinha seu pedaço de terra, e as pessoas respeitavam os marcos de delimita­ ção ("limites"; ver Dt 19:14; Pv 22:28; 23:10). Deus prometeu amaldiçoar aqueles que movessem esses marcos e se aproprias­ sem das terras de outros (Dt 27:17), mas era isso o que os perversos faziam. No entanto, não paravam por aí. To­ mavam posse não apenas das terras, mas também dos animais que nelas pastavam! Apropriavam-se de rebanhos, jumentos e bois de viúvas e órfãos e deixavam desti­ tuídas essas pessoas mais vulneráveis. Jó 24:5-11 apresenta uma das descrições mais vividas na Bíblia da situação terrível dos po­ bres. Pode-se vê-los vagando em busca de alimentos como animais selvagens no deser­ to (vv. 5, 6); morrendo de frio por não terem o que vestir (v. 7); encharcados pela chuva por não terem onde morar (v. 8); chorando, pois seus filhos lhes foram arrancados de seus braços até pagarem suas dívidas (v. 9); e for­ çados a trabalhar para os ricos, sem ter per­ missão de comer qualquer alimento que colhessem (vv. 10, 11). Até mesmo os bois podem comer os grãos que estão debulhan- do (Dt 25:4). Então, Jó diz aos seus amigos: "Se Deus julga os perversos, por que não julgou aque­ les que trataram os pobres com tanta injusti­ ça e crueldade?" (2) Os crimes na cidade (vv. 12-17). Jó começa com os assassinatos (vv. 12-14); ou­ ve os gemidos dos feridos e vê a morte dos inocentes. Nos Estados Unidos, cerca de 60 pessoas são assassinadas por dia, num total de 22 mil pessoas por ano. E como acabar com uma cidade pequena. Alguns desses assassinos nunca são identificados, presos nem condenados, e Jó diz: "contudo, Deus não tem isso por anormal" (v. 12). Jó nunca havia assassinado ninguém e, no entanto, seus amigos afirmavam que ele sofria o julgamen­ to de Deus. No versículo 15, Jó fala dos pecados se­ xuais, que, sem dúvida, correm soltos em al­ gumas partes de nossas cidades. O adúltero 54 JÓ 22 - 24 e o estuprador esperam pela escuridão a fim de esgueirar-se para fora de suas casas e sa­ ciar seus desejos. O ladrão que rouba as casas também espera pelo cair da noite (vv. 16, 1 7). "Há crimes por toda parte na cidade", diz Jó, "e Deus parece indiferente". (3) Uma imprecação contra os perversos (vv. 18-25). Essa passagem pode ser inter­ pretada como uma descrição, dizendo o que acontecerá aos perversos, ou como uma acusação pública ou imprecação contra eles. A meu ver, se refere ã maldição que o pró­ prio Jó profere contra os perversos, que pa­ recem escapar do julgamento. Sua maldição pode ser resumida da se­ guinte maneira: "Que os perversos desapa­ reçam como a espuma do mar ou a neve que derreta com o calor do sol (vv. 18, 19). Que sejam esquecidos por todos, até mes­ mo por suas próprias mães, enquanto apo­ drecem na cova (v. 20). Que suas esposas sejam estéreis e não lhes dêem herdeiro al­ gum (v. 21). Que sua ilusão de segurança e sucesso desapareça rapidamente ao serem derrubados e ceifados como o trigo na co­ lheita" (vv. 22-24). "Se não é assim, quem me desmentirá e anulará as minhas razões?" (v. 25), ou seja, "se aquilo que eu disse não é verdade, então provem que estou errado!" - algo que ja­ mais conseguiram fazer. É admirável que Jó tenha visto não ape­ nas as próprias necessidades, mas também as dificuldades de outros e expressado uma ira santa contra o pecado e a injustiça. Com muita freqüência, o sofrimento pessoal nos torna egoístas e até mesmo cegos para as necessidades de outros, mas Jó se preocupa­ va que Deus ajudasse a outros que sofriam. Seus três amigos tratavam o problema do sofrimento de modo excessivamente filo­ sófico, e Jó tentou fazê-los enxergar além das questões no plano racional para vislumbrar os sofredores como pessoas. Jesus teve esse mesmo problema com o advogado judeu que quis falar sobre o bom relacionamento com o próximo sem, no entanto, descobrir quem era seu próximo ou tentar ajudá-lo (Lc 10:25-37). As injustiças na sociedade são motivo de grande dor na vida das pessoas, e, sem dúvi­ da, devemos fazer tudo o que está a nosso alcance para defender a lei e promover a jus­ tiça. Porém, os que criam as leis e os que cuidam para que sejam cumpridas são ape­ nas seres humanos e, portanto, não podem tratar de tudo perfeitamente. Um dia, o Se­ nhor Jesus Cristo voltará, julgará os perversos e estabelecerá seu reino. Até que ele venha, devemos aceitar a realidade da presença do mal neste mundo e continuar orando "Amém! Vem, Senhor Jesus!" (Ap 22:20). JÓ 25 - 28 57 No entanto, aos olhos de Deus, jó esta­ va certo. Em duas ocasiões, Deus havia de­ clarado diante de um tribunal celestial que Jó era um homem "íntegro e reto, temente a Deus e que se desvia do mal" (Jó 1:8; 2:3). Assim, os inimigos de Jó estavam errados, e Jó tinha o direito de pedir que Deus o justi­ ficasse. Na verdade, Deus era o único que podia provar que jó estava certo e que seus inimigos estavam errados. Onde mais Jó bus­ caria ajuda? Os três amigos advertiram Jó repetida­ mente sobre o destino terrível dos perver­ sos, de modo que Jó apenas retrucou com as mesmas palavras. "Seja como o perverso o meu inimigo, e o que se levantar contra mim, como o injusto" (27:7). Jó imaginou seus inimigos sofrendo intensamente e cla­ mando a Deus por ajuda sem receber res­ posta alguma e, depois, sendo levados, de súbito, pela morte. Não é justamente esse o julgamento que os amigos de jó haviam pre­ dito para ele e, provavelmente, esperado que lhe sobreviesse? Bildade afirmara que Deus é justo e cas­ tiga aqueles que lhe desobedecem. Porém, isso não significa que todos os que sofrem são castigados por seus pecados. Por vezes, sofremos em decorrência do pecado de ou­ tros (como no caso de José) ou pelo fato de Deus estar nos guardando de pecar (como no caso de Paulo em 2 Co 12). Jesus sofreu não por seus próprios pecados - pois não tinha pecado algum -, mas pelos pecados do mundo (1 Pe 2:22-24; 3:18); e, por causa de seu sofrimento e morte, os pecadores podem crer e receber a vida eterna. Jó ensina uma lição (w. 11-23). "Ensinar- vos-ei o que encerra a mão de Deus" (27:11), diz Jó, e, em seguida, descreve o julgamento de Deus sobre os perversos. No dia em que Deus justificar Jó, é isso o que acontecerá a seus inimigos. Eles morrerão, e suas viúvas não prantea­ rão por eles - um insulto terrível no mundo oriental. Seus filhos serão mortos pela espada ou pela peste e, se alguns deles sobrevive­ rem, passarão o resto da vida mendigando por um pouco de alimento. Os perversos se deitarão abastados e acordarão pobres. Sua prata e roupas caras terão desaparecido. Suas casas serão destruídas como casulos (ou teias de aranha) ou como as cabanas temporárias dos vigias nos campos. A morte dos perversos não será tranqüila. Durante a noite, lhes sobrevirão terrores como uma inundação que os levarão embora. Mesmo que tentem fugir, a tempestade os seguirá e os destruirá. Podemos reconhecer nessa descrição várias imagens que os amigos de Jó usaram em seus discursos de "julgamento" contra ele. Jó empregou essas imagens de propósi­ to, a fim de lembrá-los de que era melhor terem cuidado com o que diziam, para que não acabassem por proferir o próprio casti­ go. "Não julgueis, para que não sejais julga­ dos. Pois, com o critério com que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que tiverdes medido, vos medirão também" (Mt 7:1, 2). As Escrituras registram vários casos em que o Senhor fez um julgamento planejado por um inimigo voltar-se contra ele e sua família. O Faraó ordenou que os meninos hebreus recém-nascidos fossem afogados e, mais tarde, seu próprio exército afogou-se no mar Vermelho (Êx 1:15-22; 14:23-31). Hamã construiu uma forca para executar Mordecai, mas o próprio Hamã e seus fi­ lhos foram enforcados nela (Et 7:10; 9:25). Os inimigos de Daniel tentaram destruí-lo, mas foram eles e suas famílias que acaba­ ram na cova dos leões (Dn 6:24; ver Pv 11:8). Os estudiosos não apresentam um con­ senso quanto à interpretação de Jó 27:23. No texto original da frase "à sua queda lhe batem palmas, à saída o apupam com asso­ bios", também não é indicado quem bate palmas. Em The Expositor 's Bible, Elmer B. Smick sugere que pode se tratar de Deus e que o versículo 23 deve ser associado ao versículo 13, no qual "Deus" é o sujeito da oração (vol. 4, p. 972). Smick propõe a se­ guinte tradução para o versículo 23: "Ele bate palmas contra eles e assobia para eles de sua habitação [do céu]". Quer o sujeito seja Deus quer os homens, a destruição dos per­ versos é motivo de alegria. 58 JÓ 25 - 28 3. JÓ BUSCA A SABEDORIA DE DeUS (JÓ 28 ) "Mas onde se achará a sabedoria?" (Jó 28:12). "Donde, pois, vem a sabedoria, e onde está o lugar do entendimento?" (v. 20). Jó fez es­ sas perguntas porque estava cansado dos chavões e trivialidades que os amigos lhe apresentavam como "sabedoria". Sem dúvi­ da, acreditavam proferir palavras que eram ouro puro, mas Jó concluiu que não passa­ vam de ouropel e de lixo. Os três homens possuíam conhecimento, mas lhes faltava sabedoria. Nas palavras de Charles Spurgeon: "A sabedoria é o uso correto do conhecimento. Conhecer não é ser sábio. Muitos homens têm extensos conhecimentos e, justamente por isso, são os mais tolos. Não há tolo maior do que o tolo instruído. Mas saber como usar o conhecimento é ter sabedoria". Nesse poema sobre a sabedoria, Jó apre­ senta três respostas para sua pergunta: "Onde se achará a sabedoria?" A sabedoria não pode ser garimpada (w. 1-11). Jó nos leva para as profundezas da Terra, onde homens corajosos mineram o ouro, o ferro, o cobre e as pedras preciosas. Os metais e pedras preciosos são usados com freqüência na Bíblia como símbolos de sabedoria (Pv 2:1-10; 3:13-15; 8:10-21; 1 Co 3:12-23). Uma vez extraídos, precisam ser "refinados" na fornalha e "processados" para o uso. De acordo com Paulo, o oposto da sabedoria de Deus é a sabedoria dos homens - "madeira, feno, palha" -, materiais sem beleza, durabilidade ou valor (1 Co 3:12). Podemos encontrar madeira, feno e palha na superfície da Terra, mas se desejamos achar tesouros verdadeiros, precisamos cavar até lugares mais profundos. Jó descreve os homens que trabalham arduamente e enfrentam grandes perigos para encontrar riquezas materiais. Cavam túneis por rochas e arriscam a vida para enrique­ cer. Por que as pessoas não se esforçam desse modo para obter a sabedoria de Deus? A Palavra de Deus é como uma mina profun­ da, repleta de pedras preciosas; mas o cris­ tão pode empenhar-se para descobrir suas riquezas. E necessário meditar e estudar com atenção e também orar e obedecer a fim de garimpar os tesouros da Palavra de Deus, e o Espírito Santo está pronto a nos ajudar. En­ tão, por que nos mostramos tão negligentes com toda essa riqueza que se encontra a nosso alcance? Apesar de o homem ser capaz de cavar até as profundezas da Terra e encontrar gran­ des riquezas, apesar de poder chegar a lu­ gares aonde aves e outros animais não se atrevem a ir, apesar de poder até encontrar as fontes ocultas de rios caudalosos, o ser humano não é capaz de encontrar a sabe­ doria de Deus por seu próprio empenho. E preciso mais do que coragem e inteligência; é preciso humildade e percepção espiritual. O fato de uma pessoa ser extremamente bem-sucedida em uma área da vida não sig­ nifica que possua qualificações para falar de outras áreas. Os publicitários costumam usar atletas para anunciar lâminas de barbear e carros ou atores para vender remédios. Quando cientistas famosos (que nunca estu­ daram a Bíblia) fazem declarações cheias de autoridade sobre coisas espirituais, sua opi­ nião tem tanto valor quanto a de um teólogo amador que nunca se preparou para esse campo de trabalho. A sabedoria não pode ser comprada (w. 12-19). A sociedade moderna acredita que, com dinheiro suficiente, pode-se obter ou realizar qualquer coisa. As agências do go­ verno querem uma fatia cada vez maior do orçamento anual para combater a crimina­ lidade, acabar com a poluição, criar empre­ gos e melhorar o ambiente. Apesar de ser preciso ter certa quantia de dinheiro para sobreviver na sociedade moderna, o dinheiro não é tão poderoso quanto o mundo diz. É bom desfrutar as coisas que o dinheiro pode comprar (1 Tm 6:1 7), desde que não se perca aquilo que o dinheiro não pode comprar. Nestes versículos, Jó menciona o ouro cinco vezes, a prata uma vez e cita o nome de sete pedras preciosas, e, no entanto, ne­ nhum desses tesouros, por si mesmos, nem uma combinação de todos eles terá o poder de comprar a sabedoria de Deus. O verda­ deiro problema é que o ser humano não en­ tende qual é o preço da sabedoria e pensa JÓ 25 - 28 59 que é barato obtê-la (Jó 28:13). "[A sabedo­ ria] mais preciosa é do que pérolas, e tudo o que podes desejar não é comparável a ela" (Pv 3:15). A verdadeira sabedoria custa caro. Não é recebida automaticamente só ao ou­ vir um CD sobre o assunto, participar de uma palestra ou escutar um preletor dinâmico. A sabedoria vem somente de Deus (vv. 20-28). Nem nas maiores alturas, onde voam os pássaros, nem nas maiores profundezas, como o abismo [o Abadom] e a morte, é pos­ sível achar a sabedoria. Somente Deus sabe onde a encontrar, pois somente ele vê todas as coisas (não precisa escavar a terra para ver o que se encontra em seu interior!). Deus tem sabedoria para ajustar a pressão do ven­ to e medir a quantidade de água da atmosfe­ ra. Que transtorno seria para a natureza se essas proporções mudassem! Deus sabe como controlar a chuva e guiar a tempesta­ de, enquanto esta se move sobre a Terra. Raios e trovões talvez nos pareçam aleató­ rios, mas também estão sob o controle de Deus. Jó responde à própria pergunta sobre onde encontrar a sabedoria em Jó 28:28: "E disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e o apartar-se do mal é o en­ tendimento" (ver SI 111:10; Pv 1:7; 9:10). Essa foi a descrição que Deus fez de Jó (Jó 1:8, 2:3). Portanto, apesar do que seus ami­ gos diziam sobre ele, jó era um homem de sabedoria. O que é o "temor do Senhor"? É uma reverência amorosa por Deus, por seu cará­ ter, suas palavras e seus atos (Ml 2:5, 6). E um temor que energiza, não que paralisa. Quando tememos ao Senhor, obedecemos aos mandamentos (Ec 12:13), andamos em seus caminhos (Dt 8:6) e o servimos (Js 24:14). Somos leais e nos dedicamos a ele de todo o coração (2 Cr 19:9). Assim como Jó, quando tememos ao Senhor, apartamo- nos do mal (Pv 3:7, 8). O "temor do Senhor" é o temor que domina o medo (SI 112), pois se tememos ao Senhor, não precisamos ter medo de ninguém (Mt 10:26-31). Logo, o primeiro passo para encontrar a verdadeira sabedoria é uma atitude reveren­ te e respeitosa para com Deus, que envolva, por sua vez, uma postura humilde com rela­ ção a nós mesmos. O orgulho pessoal é o maior obstáculo para a sabedoria espiritual. "Em vindo a soberba, sobrevêm a desonra, mas com os humildes está a sabedoria" (Pv 11:2). O próximo passo é pedir a Deus sabedo­ ria (Tg 1:5) e usar com diligência os meios que ele nos oferece para obter sua sabe­ doria, especialmente o conhecimento e a prática da Palavra (Mt 7:21-29). Não basta apenas estudar; devemos também obedecer ao que Deus nos ordena (Jo 7:1 7). Ao cami­ nhar pela fé, descobrimos a sabedoria de Deus em coisas do cotidiano. A sabedoria espiritual não é abstrata, mas sim extrema­ mente pessoal e prática. Podemos aprender a sabedoria em nos­ sa comunhão com outros cristãos na igreja, compartilhando uns com outros. O impor­ tante é nos concentrarmos em Cristo, pois ele é a nossa sabedoria (1 Co 1:24), e nele se encontram escondidos "todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento" (Cl 2:3). Quanto melhor conhecermos a Cristo e mais semelhantes a ele nos tornarmos, mais anda­ remos em sabedoria e compreenderemos a vontade de Deus. Devemos permitir que o Espírito Santo abra os olhos de nosso cora­ ção para vermos Deus em sua Palavra e com­ preendermos melhor as riquezas que temos em Cristo (Ef 1:15-23). O discurso de Jó ainda não chegou ao fim. Nos três capítulos seguintes, ele faz uma retrospectiva de sua vida e, depois, desafia Deus a justificá-lo ou a julgá-lo. Com isso, a discussão encerra, e entram em cena outros dois participantes: Eliú e o Senhor. 62 JÓ 29 - 31 comum: todos negam a realidade do mundo a seu redor" (Reality Therapy [Terapia da Rea­ lidade], p. 6). Ao se recusar a viver no passa­ do e encarar a vida real de maneira correta, jó desenvolveu ainda mais integridade e maturidade. Em seu lamento, Jó contrastou sua situação presente com a vida que costu­ mava levar no passado e mostrou como tudo pode ser mudado segundo a vontade de Deus. Suas cinco "queixas" são paralelas às cinco alegrias citadas no capítulo 29: "Não sou mais respeitado" (vv. 1-15, ver 29:7-11). "Não sou mais abençoado" (w. 16-23, ver 29:2-6). "Não tenho quem me socorra" (vv. 24, 25, ver 29:12-1 7). "Não tenho futuro" (vv. 26-28, ver 29:18- 20). "Não tenho um ministério" (vv. 29-31, ver 29:21-25). "Não sou mais respeitado" (vv. 1-15). Os jovens que, em outros tempos, abriam pas­ sagem para Jó (Jó 29:8), agora zombam dele e até cospem em seu rosto (30:1, 9, 10). Pior, porém, é o fato de esses rapazes serem filhos de homens tão desprezíveis que Jó os compara a jumentos vagando pelo deserto. Chama-os de "filhos de doidos, raça infame" (v. 8). São párias da sociedade que precisam forragear no deserto a fim de encontrar ali­ mento e combustível para seus fogos. Em outros tempos, Jó havia sido o mais eminente dos homens do Oriente, mas agora é motivo para canções de zombaria do populacho (v. 9). Esses homens, que nem sequer eram dig­ nos de carregar as sandálias de Jó, ridiculari­ zam-no publicamente. O que mudou? Agora, Jó é um pária como eles. Quando o "arco se [reforçava]" na mão de Jó - uma imagem de vigor e de sucesso (29:20) -, esses homens o respeitavam. Mas Deus havia "afrouxado" a corda e o afligiu, de modo que esses rebel­ des deixaram de refrear-se e passaram a desprezá-lo (30:11). Quando, em outros tempos, honraram Jó, não era por respeito a seu caráter ou integridade. Era porque respeitavam sua posição e sua riqueza e esperavam beneficiar-se de algum modo de seu favor. Sua amizade era volúvel e seu res­ peito era hipócrita. Uma vez que esses homens do populacho "sacudiram de si o freio" (v. 11), tornaram a vida de Jó insuportável. Jó os descreve como um exército impiedoso, sitiando uma cidade, construindo rampas, lançando armadilhas a seus pés, rompendo defesas e desferindo ata­ ques contra ele (vv. 12-14). Também eram como uma tempestade que assustava jó, varrendo sua dignidade e destruindo sua se­ gurança como o vento que sopra uma nu­ vem passageira (v. 15). Jó passou por sofrimentos semelhantes aos de Jesus Cristo. Pessoas abjetas teceram falsas acusações contra ele (Mt 26:59-64), cuspiram nele (v. 67) e o ridicularizaram en­ quanto sofria (Lc 23:35-39). Tornou-se "mo­ tivo para cantigas de beberrões" (SI 69:12). Jó não sabia, mas estava sendo honrado por Deus ao participar da "comunhão dos seus sofrimentos [de Cristo]" (Fp 3:10). Apesar de estar assentado sobre um monte de cin­ zas, Jó havia sido exaltado da maneira mais nobre possível! "Não sou mais abençoado" (w. 16-23). "Agora [...] os dias da aflição se apoderaram de mim", gemeu ele (v. 16). Que contraste em relação aos tempos de leite e azeite (29:6)! Em vez de enriquecê-lo com bênçãos, Deus estava tomando dele até os prazeres mais básicos da vida. Durante o dia, o sofrimento de Jó era terrível e, durante a noite, Deus lutava com ele, transformava suas roupas numa camisa-de-força e o atirava na lama (30:16-19). Toda noite, Deus lutava com Jó... e Jó sempre perdia. Ele orava a Deus. Colocava-se em pé e clamava por livramento, mas suas orações não eram respondidas (v. 20). Em vez de a mão de Deus erguê-lo, ela o atava impiedo­ samente e o lançava de um lado para o ou­ tro, como uma pena numa tempestade (vv. 21, 22). Jó suplicava por sua vida, mas a morte parecia inevitável (1:23). "Não tenho quem me socorra" (w. 24, 25). Jó havia ajudado fielmente os necessita­ dos (29:12-17), mas agora, não havia quem JÓ 29 - 31 63 o socorresse. Ninguém chorava com ele, nem sequer o tocava. Era tratado como um lepro­ so que poderia contaminar quem se aproxi­ masse ou como um condenado que poderia ser destruído por Deus a qualquer momen­ to. Seria imprudente aproximar-se demais dele. Onde estavam as pessoas que Jó havia socorrido? Sem dúvida, algumas teriam dese­ jado mostrar reconhecimento encorajando seu benfeitor nesse momento de necessida­ de. Mas ninguém apareceu para ajudá-lo. Como escreveu Mark Twain: "Se cuidar de um cão que está morrendo de fome, esse animal não o morderá quando tiver se recupe­ rado. Essa é a principal diferença entre um cão e um homem". Por certo, não devemos ajudar a outros afim de constrangê-los a nos servir (Lc 14:12- 14). Nossa motivação deve ser nosso amor por Cristo e o desejo de glorificar seu nome (Mt 5:16), além de uma identificação com a necessidade dessas pessoas e o desejo de socorrê-las (Rm 12:15; Lc 10:25-37). O mé­ dico missionário Wilfred Grenfell disse: "O serviço que prestamos a outros é, na verda­ de, o aluguel que pagamos pelo nosso lugar aqui na terra". "Não tenho futuro" (w. 26-28). Em seus tempos de prosperidade, Jó esperava des­ frutar uma vida longa e confortável e ter uma morte tranqüila (29:18-20). Mas tudo havia mudado. Ele procurava o bem, mas Deus lhe mandava o mal; procurava a luz, mas Deus lhe mandava trevas. Ao invés de conforto e paz, havia apenas uma inquieta­ ção interior. "O meu íntimo se agita sem cessar; e dias de aflição me sobrevêm" (30:27). O ensaísta inglês Wiliiam Hazlitt escre­ veu: "A esperança é o melhor de todos os bens. Só são completamente desgraçados aqueles que não têm esperança, e poucos chegam à tamanha degradação". Foi o caso de Jó, um homem com o qual nem mesmo o Senhor parecia se preocupar. Seu corpo es­ tava fraco e febril e sua pele, escurecida pela doença. "Não tenho um ministério" (w. 29-31). Em outros tempos, as palavras de Jó haviam dado ânimo e esperança a muitas pessoas (29:21-25); mas agora, suas palavras são como o uivo dos chacais e o lamento das corujas e avestruzes (Mq 1:8). Uma vez que sua esperança morreu, seu cântico se tor­ nou um hino fúnebre. Sua harpa e sua flauta passaram a tocar em tons menores. Como poderia dizer palavras de estímulo aos outros quando ele próprio estava nas profundezas do desânimo? "Onde está, pois, a minha es­ perança?", havia perguntado anteriormente na discussão. "Sim, a minha esperança, quem a poderá ver?" (Jó 17:15). 3. JÓ OLHA ADIANTE EM BUSCA DA JUSTIÇA de Deus (Jó 31) Este capítulo registra a última defesa de Jó. É como um documento legal no qual Jó colo­ ca-se sob juramento diante de Deus e pede que este pese sobre ele, caso Deus prove sua culpa (Jó 31:35-37). A única esperança de Jó era que Deus ouvisse seu clamor e justificasse seu nome. Poderia morrerem paz se soubesse que seus inimigos haviam sido calados e sua reputação havia sido restaura­ da. Em suas dezesseis declarações começan­ do com "Se...", jó faz uma retrospectiva de sua vida e de seus relacionamentos e pede a Deus que o julgue. "Eis aqui a minha defesa assinada!" (v. 35), disse Jó ao oficializar seu juramento e assinar o documento. "Encerro a minha defesa!" Nos versículos 33 a 37, Jó pede três coi­ sas a Deus ("meu adversário" = juiz): uma audiência, uma resposta a suas acusações e um documento comprovando sua inocên­ cia. Se Deus não pudesse fazer isso, então Jó estaria disposto a receber as maldições que faziam parte de seu juramento. Se fosse pre­ ciso, estava preparado a prestar contas a Deus de todos os seus passos, a fim de levar sua causa a uma conclusão. Jó não tinha o que esconder; não era um hipócrita que morria de medo dos outros (vv. 33, 34). Como indivíduo (w. 1-12). Jó citou três pecados específicos que poderiam fazer qualquer homem tropeçar: lascívia (vv. 1-4), falsidade (vv. 5-8) e adultério (vv. 9-12). (1) A lascívia é o primeiro passo para o pecado, e o pecado é o primeiro passo para 64 JÓ 29 - 31 a morte (Tg 1:13-16). Uma coisa é ver e ad­ mirar uma pessoa bonita e outra bem dife­ rente é olhar com um coração lascivo. Jesus afirmou: "Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impu­ ra, no coração, já adulterou com ela" (Mt 5:28). Apesar de o pecado do coração não ser tão destrutivo quanto o pecado que é colocado em prática, ainda assim é o primei­ ro passo para o ato em si, e nunca se sabe aonde uma imaginação poluída pode levar. Além disso, Deus vê tanto nossas ações quan­ to "os pensamentos e propósitos do cora­ ção" (Hb 4:12, 13) e julgará um e também o outro. "Acaso, não é a perdição para o iní­ quo, e o infortúnio, para os que praticam a maldade?" (Jó 31:3). (2) O segundo pecado que Jó nega é a falsidade (vv. 5-8). Jamais usou de qualquer dolo em seus negócios a fim de ganhar mais dinheiro. Na verdade, nem sequer andava com pessoas que agiam desse modo (Lv 19:35-37; Pv 11:1) e não tinha medo de ser examinado por Deus! (Dn 5:27). Seu cora­ ção não havia sido ganancioso, nem suas mãos haviam se contaminado, pois ele não havia tomado o que não lhe pertencia. Caso fosse culpado de cobiça e de falsidade, esta­ va disposto a ter sua próxima colheita toma­ da dele. (3) O adultério (Jó 31:9-12) começa com a lascívia do coração (v. 1), que leva a tenta­ tivas dissimuladas de satisfazer os desejos pecaminosos. Em momento algum Jó havia espreitado a esposa de seu próximo para ver se ela estava sozinha. Caso fosse culpa­ do, estava disposto a ver sua própria esposa tornar-se escrava e amante de outro homem! O adultério é um crime abominável que traz conseqüências vergonhosas e dolorosas nesta vida e julgamento na próxima (Pv 6:27-29; Ef 5:3-7; Hb 13:4). Como patrão (w . 13-15). Essa intros- pecção de Jó foi tão cuidadosa que incluiu até mesmo sua forma de tratar os servos. A maioria dos senhores de seu tempo teria ig­ norado esse aspecto da vida. Jó tratava seus servos com generosidade e resolvia suas queixas com justiça, pois sabia que, um dia, teria de prestar contas a Deus (v. 14; Ef 6:9). Também sabia que ele e seus servos haviam sido criados pelo mesmo Deus e vindo ao mundo do mesmo modo. Como membro da sociedade (w. 16-23, 29-32). Em resposta às falsas acusações de Elifaz (22:6-9), Jó havia relatado anteriormen­ te como havia cuidado dos pobres e neces­ sitados (29:12-17); mas repetiu esses fatos como parte de seu juramento. Não estava se vangloriando, mas sim se defendendo diante dos homens e buscando a justificação de Deus. Se havia levantado sua mão contra qualquer homem num tribunal, Jó esperava que Deus arrancasse fora aquele braço. Jó se preocupara com as necessidades das viúvas, dos órfãos e dos pobres. Suprira 0 alimento e as roupas de que precisaram e os defendera na justiça. Tratara-os como membros da família e cuidara deles até se­ rem capazes de tomar conta de si mesmos. Deus havia dado a Jó sua riqueza e podia tomá-la de volta, se não a compartilhasse com outros (31:23). Jó também tratava bem seus inimigos (vv. 29-31) e forasteiros de pas­ sagem pela cidade (v. 32). Uma vez que ele era um xeique rico e poderoso, por certo havia muita gente que o odiava e invejava, e, no entanto, Jó usava de bondade para com essas pessoas. Não se alegrava com o infor­ túnio delas (Êx 23:4, 5; Pv 24:17, 18; Mt 5:43-47), nem pedia a Deus que as amaldi­ çoasse (Rm 12:1 7-21). Jó também era generoso para com os forasteiros, dando-lhes comida e um lugar para passar a noite. Nenhum dos servos de Jó poderia acusar seu senhor de ser um ho­ mem egoísta (Jó 31:31). Seu lar estava aber­ to a todos, e ele era generoso com seus presentes. Como adorador (w. 24-28). Jó adorava a Deus com um coração sincero. Não adorava sua riqueza nem depositava nela sua segu­ rança, como também não assumia o crédito por tê-la conquistado (Dt 8:17, 18). Elifaz havia acusado Jó de idolatrar o ouro (Jó 22:24, 25), mas Jó negou essa acusação. Não adorava o ouro e nem os corpos celestes, nem lhes prestava culto secretamente (ver 1 Rs 19:18). Se Jó tivesse cometido tal peca­ do, é possível que os homens não vissem, JÓ 32 - 33 67 de educação interromper os discursos de outros mais velhos do que ele. Em segundo lugar, desejava ouvir toda a discussão e considerar todos os argumentos ív. 11; Pv 18:13). O fato de Eliú citar pala­ vras dos discursos indica que havia escuta­ do com atenção e se lembrava daquilo que cada homem havia dito (Jó 32:12). Como tantos "jovens teólogos", pode-se notar certa presunção juvenil em seus conceitos ("De­ clararei minha opinião", "Dai-me ouvidos" - ver vv. 6, 10, 17; 33:1-3); mas, de um modo geral, ele se mostra um rapaz sincero que pensa ser capaz de ajudar Jó a encontrar as respostas para suas perguntas. Depois de se inserir na discussão, Eliú dispõe aos presentes quatro motivos pelos quais é importante que ele fale e que os demais ouçam. Afinal, é apenas um "joão- ninguém" e deve convencê-los de que suas palavras são dignas de atenção. Indignado (w. 1-3, 5). Em quatro oca­ siões nestes versículos, o texto diz que Eliú estava irado. Sua indignação era contra os três amigos por não refutarem Jó e também contra o próprio Jó por justificar a si mesmo, não a Deus. De acordo com Jó, Deus estava errado, e os três amigos não foram capazes de provar que Jó estava enganado! Bildade, Zofar e Elifaz haviam desistido de discutir (v. 15) e estavam esperando que Deus vies­ se tratar pessoalmente de Jó (vv. 12, 13). Eliú mostrou-se desgostoso com o insucesso deles. "É fácil encher-se de furor - qualquer um pode fazer isso", escreveu Aristóteles. "Mas saber irar-se com a pessoa certa, na medida certa, no momento certo, com o objetivo certo e da maneira certa - isso não é fácil, e nem todos são capazes de fazê-lo." Inspirado (w. 8-10). A idade deve trazer consigo a sabedoria, mas não há garantia al­ guma de que isso acontecerá (Pv 1 6:31). In­ felizmente, há insensatos de todas as idades! Como um homem mais jovem, Eliú não po­ dia afirmar que tinha grande experiência nos assuntos de Deus e dos homens; mas decla­ rou que possuía algo melhor: o discernimento do Espírito de Deus. O Espírito Santo havia instruído o espírito de Eliú (1 Co 2:11) e lhe revelado as verdades de Deus. Não preci­ sava da sabedoria decorrente da experiên­ cia, pois havia sido ensinado por Deus (SI 1 19:97-100). Isso explica por que Eliú exortou Jó e seus amigos repetidamente a ouvi-lo (Jó 32:10; 33:1, 31, 33; 34:2, 10, 16; 37:14). Também explica por que enfatizou expres­ sões como "minha opinião" (32:6, 10, 1 7) e "minhas palavras" (33:1-3). Não é todo dia que se tem a oportunidade de ouvir um ho­ mem inspirado por Deus, de modo que é melhor escutá-lo com atenção! Imparcial (w. 14, 21, 22). "Ora, ele não me dirigiu palavra alguma, nem eu lhe retor- quirei com as vossas palavras" (v. 14). Eliú havia deixado claro que não tinha motivo algum para tomar partido, uma vez que nem Jó e nem algum dos três amigos o havia ata­ cado pessoalmente. Eliú também disse que evitaria repetir os mesmos argumentos que haviam usado, apesar de não ter cumprido inteiramente essa promessa. Talvez Eliú fosse imparcial, mas de ma­ neira alguma foi neutro. Estava irado demais para isso! Prometeu tratar apenas das ques­ tões em si, mas algumas das coisas que dis­ se em seu discurso foram mais pessoais do que filosóficas. Porém, cumpriu sua promes­ sa e não adulou ninguém (vv. 21, 22). Ao lermos seu discurso, veremos que seis vezes ele se dirigiu a Jó usando o nome dele (33:1; 34:5, 7, 35, 36; 35:16), algo que nem mes­ mo os amigos mais íntimos de Jó haviam fei­ to em seus vários discursos. Não era comum no Oriente um homem mais jovem dirigir-se aos mais velhos com tanta intimidade. Impelido (w. 16-20). Eliú havia esperado muito tempo por uma oportunidade para falar e, enquanto esperava, a pressão dentro dele havia se tornado insuportável. Estava cheio de palavras, como um odre cheio de vinho. A medida que o vinho novo fermenta, produz gases que fazem o odre inchar, levan­ do um odre velho e ressecado a romper-se (Mt 9:1 7). Eliú teria se ofendido caso alguém insinuasse que o discurso dele era insubs- tancial como os gases acumulados num odre; afinal, era o Espírito de Deus que o estava compelindo a falar. Eliú havia recebido de 68 JÓ 32 - 33 Deus a incumbência de falar a todos aquilo que sabia. Mas o que ele não sabia era que, quando Deus finalmente entrasse em cena, nem sequer tomaria conhecimento de Eliú e de tudo o que o jovem tinha dito. 2. D eus é b o n d o s o ( J ó 33 ) Trata-se de um discurso extraordinário, pois introduz na discussão um novo insight sobre o propósito do sofrimento. Os amigos de Jó haviam argumentado que seu sofrimento era prova de que Deus o estava castigando por seus pecados, mas Eliú argumenta que, por vezes, Deus permite que soframos a fim de evitar que pequemos. Em outras palavras, o sofrimento pode ser preventivo e não puni­ tivo (ver a experiência de Paulo relatada em 2 Co 12:7-10). Deus faz todo o possível para nos guardar do pecado e da cova da morte - o que comprova sua graça e bondade para conosco (Jó 33:24). Antes de entrar nessa parte da argumen­ tação, Eliú havia garantido a Jó que suas pa­ lavras eram sinceras e vinham do Espírito de Deus, de modo que Jó não tinha motivo al­ gum para temer (vv. 1-7). Eliú não afirmou ter um relacionamento privilegiado com Deus, pois era formado de barro, exatamen­ te como Jó. Prometeu não pesar a mão so­ bre Jó com seu discurso e convidou Jó a responder. Eliú não desejava fazer um mo­ nólogo, mas foi exatamente o que acabou acontecendo. Talvez Jó tenha sido calado pelas palavras de Eliú, ou o jovem não lhe deu a oportunidade de falar (ver vv. 31, 33), ou, ainda, Jó não achou que valesse a pena responder. Depois de garantir a Jó que suas palavras seriam proveitosas e não dolorosas, Eliú pros­ seguiu citando o que Jó havia dito a respeito de si mesmo (vv. 8-11). As palavras de Jó seriam a premissa da argumentação de Eliú. Em primeiro lugar, Eliú afirmou que Jó havia se declarado irrepreensível (v. 9), quan­ do na verdade não era isso o que jó havia dito. Essa não foi a declaração de Jó, mas sim a interpretação de Zofar (11:4). De fato, Jó disse que não mentia (6:30), que não era perverso (10:7), que era justo e reto (12:4) e que não havia desobedecido a Deus (23:11, 12); mas, em momento algum, afirmou ser irrepreensível. Persistiu em asseverar sua in­ tegridade (2:3; 27:4, 5), mas nunca declarou ser perfeito. Na verdade, negou que o fosse (9:20, 21). A premissa de Eliú era equivoca­ da, pois confundiu as palavras de Jó com as de Zofar. Talvez Jó tivesse dado a impressão de estar declarando ser impecável, mas, na verdade, estava dizendo apenas que era inculpável, algo totalmente diferente. Em segundo lugar, Eliú afirmou que, de acordo com jó, Deus estava sendo injusto e o traatava como um inimigo (33:10, 11), ci­ tação verdadeira (1 3:24, 27; 16:9; 19:7, 11). Em seus discursos, Jó havia perguntado a Deus repetidamente por que o estava ata­ cando e por que não lhe dava um julgamen­ to justo. A grande preocupação de Eliú não era discutir o que Jó dissera a respeito de si mesmo, mas sim refutar o que Jó dissera so­ bre Deus. Esse "jovem teólogo" sabia falar em pú­ blico, pois Jó 33 é um discurso exemplar. Primeiro, Eliú declarou sua tese nos versí­ culos 12 a 14: Deus é maior do que o homem e fala com ele de maneiras que nem sempre o ser humano é capaz de reconhecer. Em seguida, descreveu três maneiras diferentes através das quais Deus pode falar com os seres humanos: sonhos e visões (vv. 15-18), sofrimento (vv. 19-22) e o ministério de um anjo mediador (vv. 23-33). Refere-se à "cova" cinco vezes nos versí­ culos 14 a 33. O propósito de Deus com a disciplina é salvar as pessoas da morte (Tg 5:19, 20), quebrando seu orgulho e trazen­ do-as de volta a uma posição de obediência (Jó 33:17, 18). Deus procura guardá-las da cova (v. 18), mas os pecadores rebeldes vão se aproximando da cova (v. 22) e, em segui­ da, descem à cova (v. 24) e entram na cova (v. 28). Quando é quase tarde demais, o Me­ diador as traz de volta da cova (v. 30) e as resgata. "Eis que tudo isto é obra de Deus, duas e três vezes para com o homem, para reconduzir da cova a sua alma e o alumiar com a luz dos viventes" (vv. 29, 30). Deus "não [quer] que nenhum pereça" (2 Pe 3:9). Sonhos e visões (w. 15-18). Nos tempos bíblicos, por vezes, Deus falava com seu JÓ 32 - 33 69 povo por meio de sonhos e visões, enquanto hoje seu Espírito nos dirige principalmente por meio de sua Palavra (Hb 1:1, 2). Se os pecadores têm visões ou sonhos assusta­ dores, pode acontecer de ficarem impressio­ nados o suficiente para não cometerem os pecados que planejavam. Os sonhos do pró­ prio Jó eram aterrorizantes (Jó 7:13, 14), e Elifaz teve uma visão noturna inesquecível (4:12-21). Deus envia sonhos e visões a fim de "abrir os ouvidos" dos homens e levá-los a escutar a Palavra de Deus e lhe obedecer. Caso não se humilhem, podem descer à cova da morte. Um homem parou um desconhecido na rua em Nova York e disse: "Você pode me contar um dos seus sonhos? Não durmo há uma semana e, agora, estou a caminho do psiquiatra. Preciso desesperadamente de um sonho para contar a ele!" Nem todos os sonhos possuem significa­ dos ocultos e nem todos eles são mensagens especiais de Deus. Não são poucos os pesa­ delos causados por um jantar um tanto farto demais! As pessoas que planejam a vida de acordo com o que descobrem em seus so­ nhos não estão procurando orientação, mas sim confusão. Deus pode usar os sonhos para abalar a segurança de um pecador or­ gulhoso, mas essa não é sua abordagem ha­ bitual nos dias de hoje. Sofrimento (w. 19-22). Em sua obra O Problema do Sofrimento, C. S. Lewis diz: "Deus sussurra em nossos prazeres, fala em nossa consciência, mas grita em nosso sofri­ mento: ele é o seu megafone para despertar um mundo surdo".1 Por vezes, Deus usa a dor para nos adver­ tir, humilhar e desenvolver em nós uma atitude de submissão (Hb 12:1-11). Eliú des­ creve um homem doente, sofrendo e de­ finhando em seu leito, pois não tem mais apetite algum. (Seria um retrato de Jó? Ver 6:7; 7:3-6; 16:8; 17:7; 19:20.) Porém, esse homem está sofrendo porque Deus quer cha­ mar sua atenção e guardá-lo de transgredir a lei de Deus. É um grande equívoco dizer que todo sofrimento vem de Deus, pois nós mesmos podemos ser a causa de parte de nossa dor. Dirigir com imprudência pode provocar um acidente que fará muitas pessoas sofrerem. Comer de modo incorreto pode afetar o orga­ nismo e levá-lo a reagir com dor. O pecado dá prazer (Hb 11:25), mas também causa o sofrimento. "O caminho dos pérfidos é in­ transitável" (Pv 13:15). Sempre há um preço a pagar por desprezar a lei de Deus. Também não devemos dizer que todo o sofrimento é um castigo pelo pecado. Eliú argumenta que, em certas ocasiões, Deus permite o sofrimento, a fim de evitar que pe­ quemos e que desçamos à cova. Deus deu a Paulo um "espinho na carne" para guardá-lo do orgulho, e Paulo aprendeu a agradecer a Deus por isso (2 Co 12:7-10). Eliú esperava que Jó se sujeitasse a Deus, aceitasse sua situação dolorosa e, com isso, obtivesse as bênçãos que Deus havia reservado para ele. Ninguém deseja ficar doente, e todos oram pedindo cura. Mas, de acordo com o teólogo inglês P. T. Forsyth: "É muito mais formidável orar pela transformação da dor do que por sua remoção". Foi isso o que Paulo aprendeu a fazer com seu espinho na carne. Aquilo que poderia ter sido uma arma para destruí-lo transformou-se, pela graça de Deus, num instrumento para edificá-lo! Se Paulo tivesse ignorado esse mensageiro da dor, poderia ter se orgulhado de suas con­ quistas espirituais, e esse orgulho poderia tê-lo feito pecar. Eliú apresentou duas formas que Deus emprega para falar ao povo a fim de guardá- los da cova: as visões e os sonhos; a enfermi­ dade e a dor. Em seguida, ele apresenta a terceira forma. O ministério de um anjo mediador (w. 23-33). O Livro de Jó começa com uma des­ crição da corte celestial de Deus, em que os anjos (os "filhos de Deus") apresentam-se para receber suas incumbências (Jó 33; 1:6ss; 2:1 ss). Elifaz menciona os anjos em 4:18 e em 5:1 e também são mencionados em 38:7 como se regozijando com a criação do mun­ do. Com exceção dessa passagem em ques­ tão, as outras mencionadas acima são as únicas referências a anjos no Livro de Jó. Eliú faz uma descrição impressionante. O pecador foi advertido por meio de sonhos 72 JÓ 34 - 37 Eliú enfatizou que Deus é soberano e, como tal, não pode ser acusado por lei algu­ ma nem julgado em qualquer tribunal que seja. E impossível o rei ser injusto. Deus não foi nomeado para seu trono e, portanto, não pode ser deposto dele (Jó 34:13). Afirmar que Deus é injusto é dizer que ele não é Deus e, portanto, não tem direito de estar assentado em seu trono. Porém, Deus con­ trola até mesmo nossa respiração e pode nos tirar a vida num instante (vv. 14, 1 5; At 1 7:25, 28). "As misericórdias do S e n h o r são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim" (Lm 3:22). O Livro de Jó exalta a soberania de Deus. Desde o primeiro capítulo, fica evidente que Deus está no controle, pois diz até mesmo a Satanás o que ele pode ou não fazer. Temos a impressão de que, ao longo da discussão, Deus está ausente, mas, na verdade, sabe muito bem como Jó está se sentido e o que Jó e seus amigos estão dizendo. Deus é cha­ mado de "Todo-Poderoso" trinta e uma vezes no Livro de Jó. Eliú estava absolutamente certo: Deus é soberano e não pode cometer injustiça alguma. Seu segundo argumento é que, se Deus fosse injusto, não seria possível haver qualquer governo justo sobre a terra (Jó 34:16-20). Como ancião respeitado, Jó havia participa­ do do governo local ajudando a fazer justiça aos aflitos (29:7-1 7). Porém, todo governo humano é estabelecido por Deus (Gn 9:1-7; Rm 13:1-7); de modo que, se o ser humano mortal pode fazer justiça na terra, então, por que um Deus santo e soberano não poderia fazer justiça do céu? Deus pode destronar reis e remover nobres e não mostra qual­ quer parcialidade (Dn 4:25, 32, 35). Se o Deus que governa o mundo não fosse justo, não haveria ordem nem harmonia e tudo se desintegraria. Porém, Eliú cometeu o erro crasso de destacar e enfatizar apenas um atributo di­ vino - a justiça de Deus -, quando, na ver­ dade, Deus também é amoroso e bondoso (Bildade cometera o mesmo erro em seus discursos). Em sua sabedoria, Deus criou um plano de redenção que satisfaz tanto sua justiça quanto seu amor (Rm 3:21-31). Por causa da cruz, Deus pode redimir os pecadores e, ainda assim, exaltar a própria retidão e guardar sua santa lei. De acordo com o terceiro argumento de Eliú, para ser injusto, Deus não poderia ver o que se passava no mundo (Jó 34:21-30). Mas Deus é onisciente e vê todas as coisas! Um juiz humano, com suas limitações, ouve uma causa e toma a melhor decisão possível e, por vezes, comete erros. Deus, por sua vez, vê cada passo que damos, e não temos onde nos esconder dele (SI 139:7-12). Jó queria que Deus se encontrasse com ele no tribunal a fim de poder apresentar sua causa, mas o que Jó poderia dizer que Deus já não sou­ besse? "Pois Deus não precisa observar por muito tempo o homem antes de o fazer ir a juízo perante ele" (Jó 34:23). Ao contrário dos oficiais humanos, Deus não tem obriga­ ção de realizar uma investigação nem de jun­ tar provas. Ele conhece todas as coisas e pode julgar com sabedoria perfeita. Uma das queixas de Jó era que Deus se calara e escondera seu rosto dele (9:11; 23:1- 9), mas Eliú tinha uma resposta para isso: "Se ele aquietar-se, quem o condenará? Se encobrir o rosto, quem o poderá contem­ plar, seja um povo, seja um homem?" (34:29). No capítulo 24, Jó acusa Deus de ignorar os pecados dos seres humanos, mas com que direito poderia julgar o Juiz? Deus esperou quatro séculos para julgar as nações perver­ sas de Canaã (Gn 15:13-16) e 120 anos para mandar o dilúvio (6:3). Os pecadores de­ vem ser gratos a Deus por lhes dar tempo a fim de se arrependerem (2 Pe 3:9). Deus governa sobre as nações e indiví­ duos (Jó 34:29), mas não é responsável por seus pecados, pois lhes dá a liberdade de tomar as próprias decisões. Também lhes dá liberdade de deixar seus pecados e de crer no Senhor. Por isso, Eliú encerra essa parte de seu discurso com um apelo para que Jó confesse seus pecados e se arrependa (vv. 31-33). "Peça a Deus para lhe ensinar aquilo que você não sabe", aconselha, "e prometa não pecar desse modo outra vez" (ver v. 32). Deus nos recompensa nos termos dele e não nos nossos, e um dos seus requisitos é que nos arrependamos e deixemos nossos pecados. JÓ 34 - 37 73 Eliú fez uma pausa a fim de dar a Jó a oportunidade de falar (v. 33), mas Jó per­ maneceu calado. E possível que isso tenha deixado Eliú ainda mais irado, pois ele termi­ nou essa parte de seu discurso com uma acusação terrível. Afirmou que faltava a Jó conhecimento e discernimento, que era re­ belde e falava com arrogância contra Deus. Hoje em dia, bater palmas é um sinal de apro­ vação, mas, naquele tempo, era um gesto de zombaria e de desprezo (27:23; Lm 2:15). Eliú concluiu que Jó precisava ser ainda mais provado! (Jó 34:36). Talvez isso o fizesse recobrar seu juízo. Tendo se livrado da primeira queixa de Jó, Eliú voltou-se para sua segunda reclamação. "Não há proveito algum em obedecer a Deus” (34:7-9; 35:1-16). Mais uma vez, Eliú tenta usar as palavras do próprio Jó contra ele: "Sou inocente" (ver 10:7; 12:4; 27:6) e "O que ganhei obedecendo a Deus?" (9:29- 31; 21:15). De fato, Jó fez a primeira decla­ ração, mas a pergunta seguinte não é uma citação exata de suas palavras. Em momen­ to algum jó negociou com Deus como Sata­ nás havia dito que ele faria (1:9, 21; 2:9, 10). Elifaz discutira esse assunto (jó 22) e chega­ ra à conclusão de que nem a piedade nem a iniqüidade humanas fariam qualquer diferen­ ça para o caráter de Deus. Porém, Eliú achou importante voltar a tratar desse tema. Eliú pediu a seus ouvintes que olhassem para os céus, observassem como as nuvens estavam distantes e, então, que imaginassem quão longe o trono de Deus ficava da Terra (35:5-7). Podem os pecados ou as boas obras de um indivíduo na Terra exercer tanto poder a ponto de atravessar toda essa dis­ tância e mudar o Todo-Poderoso no céu? Em seguida, Eliú pediu que consideras­ sem a sociedade humana (vv. 8-16). Nossos pecados ou boas obras podem afetar aque­ les que se encontram a nosso redor (v. 8), mas não a Deus. Sem dúvida, Deus se entristece com os pecados do ser humano (Gn 6:6) e se deleita com a obediência dos fiéis (Sl 37:23); mas nossas boas obras não podem suborná-lo e nossos delitos não podem amea- çá-lo. O caráter de Deus é o mesmo, quer o ser humano lhe obedeça quer não. Deus não pode mudar para melhor, pois já é perfeito e não pode mudar para pior, pois é santo. Deus cuida das aves e dos animais, e eles confiam no Senhor (Jó 35:11; Mt 6:25-34); mas os seres humanos, criados à imagem de Deus, só clamam a ele quando se encontram sob um jugo terrível de opressão (Jó 35:9). Lembram-se de Deus apenas quando enfren­ tam dificuldades. Porém, Deus sabe que suas orações não são sinceras, de modo que não lhes responde (vv. 12, 13). Isso explica por que as orações de Jó não foram respondi­ das: seu coração não estava em ordem com Deus (v. 14). Porém, mesmo que Deus não alivie o far­ do, pode dar ao sofredor que confia nele "can­ ções de louvor durante a noite" (v. 10; Sl 42:8; 77:6). "Qualquer um é capaz de can­ tar durante o dia", disse Charles Spurgeon. "É fácil cantar quando conseguimos ler as notas à luz do Sol. Porém, o cantor compe­ tente é capaz de cantar quando não há um único raio de luz para iluminar sua partitu­ ra". O Senhor deu "canções de louvor duran­ te a noite" a Jesus, antes de ele ir para cruz (Mt 26:30) e a Paulo e Silas na prisão em Filipos (At 16:25). Se Deus não considera apropriado remover nossos fardos, sempre nos dá forças para carregá-los - e um cântico para entoarmos enquanto o fazemos! Eliú descarta a queixa de Jó de que ele não é capaz de ver Deus. O importante é que Deus vê jó e conhece sua causa nos mí­ nimos detalhes (Jó 35:14). A situação de Jó não mudará com seu falatório e seu amon­ toado de palavras (v. 16), de modo que, para Jó, só resta esperar e confiar (v. 14). Deus é bondoso (Jó 33) e é justo (Jó 34 - 35); mas também é grande e poderoso (Jó 36 - 37), e, para Eliú, Jó precisava reconhe­ cer essa grandeza de Deus. 2. Deus é grande (Jó 36 - 37) "Eis que Deus é mui grande" (jó 36:5). "Eis que Deus se mostra grande em seu poder!" (v. 22). "Eis que Deus é grande" (v. 26). Nes­ tes dois capítulos, Eliú exalta a grandeza de Deus em seus propósitos misericordiosos para com o ser humano (vv. 1-25) e em seu imen­ so poder sobre a natureza (36:26 - 37:13). 74 JÓ 34 - 37 Conclui seu discurso fazendo um último apelo para que Jó tema ao Senhor e se arre­ penda (vv. 14-24). Os propósitos misericordiosos de Deus para com o ser humano (36:1-25). A presun­ ção de Eliú cresce ainda mais quando ele apresenta o último terço de seu discurso (vv. 1-4). Ao que parece, seus ouvintes estão fi­ cando irriquietos; do contrário, por que ele precisaria dizer: "Mais um pouco de paciên­ cia" (v. 2)? A declaração "De longe trarei o meu conhecimento" (v. 3) indica que estava se vangloriando de seu amplo conhecimen­ to ou que seu conhecimento procedia do céu. Dificilmente se pode considerar um si­ nal de humildade ele chamar a si mesmo de "senhor do assunto" (v. 4)! (?) Explicação (vv. 5-15). O fato de Deus ser grande e poderoso não significa que ig­ nore o que o ser humano faz ou que não se preocupe com os indivíduos. "Eis que Deus é mui grande; contudo a ninguém despreza; é grande na força da sua compreensão" (v. 5). O que vem a ser essa "força de sua compre­ ensão"? Trata-se de seu propósito, que é de castigar os justos e ajudar os aflitos (vv. 6, 15). Eliú faz um contraste entre a forma de Deus tratar com os perversos arrogantes e seu modo de lidar com os justos aflitos. "Não poupa a vida ao perverso, mas faz justiça aos aflitos" (v. 6). Jó acreditava que Deus o estava ignoran­ do, mas Deus não tira os olhos de sobre os justos (v. 7; 1 Pe 3:12) e, no devido tempo, transforma suas circunstâncias. Ele os exalta do monte de cinzas e os assenta no trono (Lc 1:52, 53), libertando-os de suas cadeias (Jó 36:7, 8). Ele nos disciplina a fim de nos corri­ gir e ensinar a maneira correta de viver. Se aprendermos nossas lições e obedecermos, ele volta a nos abençoar. Porém, se nos rebe­ larmos, ele'nos destrói (vv. 9-12). A chave está na resposta do coração. Quando os hipócritas ("ímpios de coração") se endurecem contra o Senhor, não fazem outra coisa senão amontoar sobre si a ira de Deus. Não importa quanto Deus os discipli­ ne, eles se recusam a clamar por socorro. Mas os humildes de coração compreendem a mensagem de Deus ("Ao aflito livra por meio da sua aflição e pela opressão lhe abre os ouvidos", v. 15) e deixam seus pecados. A expressão "prostitutos cultuais", no versí­ culo 14, se refere aos homens que se prosti­ tuíam nos santuários idólatras (Dt 23:17). Eliú escolheu essa mensagem como um re­ trato das profundezas da vergonha e do pecado. Os perversos não apenas morrem jovens (Jó 36:14; 20:5, 11) como também em desonra. (2) Ap//cação (vv. 16-25). Jó precisa to­ mar uma decisão. "[Deus] procura tirar-te das fauces da angústia para um lugar espa­ çoso" (v. 16; Sl 18:19). A mesa de Jó estava repleta de sofrimento quando poderia estar coberta das iguarias mais finas. O que Jó pre­ tendia fazer? Eliú via vários perigos adiante no cami­ nho de Jó e tentou avisá-lo. O primeiro era que Jó procurasse um "atalho" para sair das dificuldades e, desse modo, perdesse a men­ sagem que Deus estava lhe transmitindo. Jó talvez achasse aceitável que alguém pagas­ se para se livrar das angústias, mas não havia dinheiro que bastasse para isso (Jó 36:18, 19). O Wall Street Journal fez uma excelente colocação: "O dinheiro é um artigo que pode ser usado como um passaporte universal para qualquer lugar, exceto para o céu, e como provedor universal de todas as coisas, exceto a felicidade". O segundo perigo era que Jó pensasse em tirar a própria vida (v. 20). A "noite" e a "escuridão" são imagens de morte e, em vá­ rias ocasiões, Jó expressou forte desejo de morrer (3:1-9, 20-23; 7:21; 10:18-22). Muitos sofredores cometeram suicídio para escapar de sua situação desesperadora, mas não havia muito perigo que Jó tomasse esse rumo. Era um homem de fé e não estava pres­ tes a entrar na presença de Deus sem ser convidado. Eliú viu ainda outro perigo: que desistis­ se de toda esperança e se entregasse a uma vida de pecado (36:21). Em meu ministério pastoral, aconselhei pessoas tão amargura­ das com Deus que haviam abandonado sua profissão de fé voltando para o mundo. "Se a vida vai ser assim tão difícil", diziam, "é melhor aproveitar enquanto podemos". Interlúd io Com toda a sua verbosidade e falta de humildade, Eliú acabou dizendo al­ gumas coisas que Jó precisava ouvir. O uso que Eliú fez das perguntas retóricas em Jó 37:14-18 preparou Jó para a série de perguntas que Jeová lhe faria em Jó 38 - 41. Ao contrário dos três amigos, Eliú avaliou o problema de Jó com maior pre­ cisão: o proceder de Jó talvez estivesse certo - não era o pecador que seus três amigos haviam descrito -, mas sua atitude estaria errada. Não era um "santo", como ele próprio se considerava. Aos poucos, Jó caminhava para uma atitude hostil e pre­ sunçosa, de modo algum saudável. Foi essa atitude de "sabe-tudo" que Deus des­ mascarou e destruiu quando apareceu a Jó e o interrogou. Assim, apesar de Deus não dizer coisa alguma sobre Eliú, esse homem ministrou a Jó de maneira proveitosa. Infelizmente, Jó se recusou a aceitar essa ministração. O Interrogatório F inal Jó 38 - 42 Pensei em um milhão de perguntas para fazer a Deus; mas, quando o encontrei, todas elas sumiram de minha mente e perderam a importância. (Christopher Morley) A tempestade que Eliú descreveu final­mente desabou, e foi do meio dela que Deus falou a Jó. A resposta para os proble­ mas de Jó não era uma explicação sobre Deus, como os três amigos e Eliú haviam apresentado, mas sim uma revelação de Deus. Os quatro homens haviam asseverado e defendido a grandeza de Deus, mas não conseguiram convencer Jó. Quando Deus mostrou sua majestade e grandeza, Jó se humilhou e se calou em submissão diante dele. Esse foi o ponto crítico a partir do qual tudo mudou. O psicólogo suíço Paul Tournier escre­ veu: "A resposta de Deus não é uma idéia, uma proposição como a conclusão de um teorema; ele próprio é a resposta. Jó rece­ beu a revelação de Deus e encontrou um relacionamento pessoal com ele".1 Preferimos que Deus nos fale por meio do brilho do Sol, mas, por vezes, ele precisa nos falar por meio da tempestade. Foi assim que ele falou no monte Sinai (Êx 19:16-19; Hb 12:18). Ezequiel viu a glória de Deus numa tempestade e ouviu a voz do Senhor lhe falando (Ez 1 - 2). Ao experimentar essa demonstração majestosa do poder de Deus, Jó abriu-se para a mensagem que Deus dese­ java lhe transmitir. O discurso de Deus a Jó concentra-se em suas obras na natureza e é constituído de 77 perguntas intercaladas de comentários. 13 O propósito desse interrogatório é levar Jó a perceber sua inadequação e incapacidade de se encontrar com Deus de igual para igual e defender sua causa. Jó havia desafiado Deus, dizendo: "Inter- pela-me, e te responderei ou deixa-me falar e tu me responderás" (Jó 13:22). Deus havia aceitado o desafio de Jó. O discurso de Deus pode ser resumido em três perguntas: 1. "Você é capaz de explicar minha cria­ ção?" (38:1-38). 2. "Você é capaz de supervisionar mi­ nha criação?" (38:39 - 39:30) A primeira resposta de jó (40:1-5) 3. "Você é capaz de subjugar minha cria­ ção?" (40:6 - 41:34) A segunda resposta de jó (42:1-6). A primeira pergunta refere-se ao poder de Deus e a sua sabedoria ao criar o universo; a segunda, ao seu cuidado providencial com suas criaturas; e a terceira, a duas criaturas (provavelmente o hipopótamo e o crocodi­ lo) que desafiam a capacidade do ser huma­ no de dominá-las. E quando Jó se arrepende de sua presunção que Deus o restaura (vv. 7-17). Deus passa a ser chamado de "o S e n h o r " , ou seja, o Deus Jeová, um nome que (exceto em 12:9) não havia sido usado no Livro de Jó desde os dois primeiros capítulos. Em seus discursos, os homens o haviam chamado de "Deus" e de "Todo-Poderoso", mas não de "Jeová". Esse foi o nome que Deus revelou a Israel séculos depois (Êx 3:13ss), o nome que se referia a sua auto-existência ("EU SOU O QUE SOU") e a sua relação pessoal de alian­ ça com seu povo. 1. " V o c ê é ca pa z de explica r m in h a c r ia ç ã o ? " ( Jó 38:1-38) Jó estava certo de que seus discursos ha­ viam sido repletos de sabedoria e de conhe­ cimento, mas a primeira pergunta de Deus pôs fim a essa ilusão: "Quem é este que es­ curece os meus desígnios com palavras sem conhecimento?" (Jó 38:2), ou seja: "Por que está usando sua ignorância para negar minha JÓ 38 - 42 79 providência?" Deus não questionou nem a integridade nem a sinceridade de Jó, mas apenas sua capacidade de explicar como o Senhor opera no mundo. Jó havia falado a verdade a respeito de Deus, mas não per­ cebeu quanto não sabia sobre Deus (42:7). Ter conhecimento de nossa própria igno­ rância é o primeiro passo para a verdadeira sabedoria. Deus começou com a criação da terra i38:4-7) e se comparou a um construtor que faz um levantamento do local, demarca suas dimensões, lança os alicerces, coloca a pe­ dra angular e ergue um edifício. A criação foi tão maravilhosa que as estrelas cantaram em coro e os anjos (Jó 38:7; ver 1:6; 2:1) se reju- bilaram, mas jó não estava lá! Então, como poderia afirmar saber tanta coisa sobre as obras de Deus? Desde o princípio, Deus planejou sua criação para que fosse um jardim de beleza jubilosa, mas o pecado a transformou num campo de batalha repleto de feiúra e misé­ ria. Em seu egoísmo, o ser humano está des­ perdiçando os recursos naturais, poluindo a terra, o ar, a água e o espaço e, assim, devas­ tando a criação de Deus de tal modo que os cientistas se perguntam por quanto tempo nosso planeta ainda será capaz de sustentar a vida como o faz nos dias de hoje. Mahatma Chandi estava certo: "O mundo possui re­ cursos suficientes para as necessidades dos homens, mas não para a sua cobiça". Em seguida, o Senhor passou a refletir sobre os mares (38:8-11). Não se trata de uma imagem de construção, mas sim de nas­ cimento: o mar "irrompeu da madre" (v. 8; ver Sl 139:13), como uma criança que vem ao mundo. As águas estavam envoltas em nuvens e escuridão e foram delimitadas por Deus. "Quem fez tudo isso?", Deus pergun­ tou, e Jó sabia muito bem a resposta. O aspecto seguinte da criação que Deus mencionou foi o Sol (Jó 38:12-15). Nessa passagem, Deus se descreveu como um ge­ neral comandando seus soldados (as hostes celestiais). Em alguma ocasião, Jó havia orde­ nado ao Sol que se levantasse e dissipasse as trevas? À medida que a luz se espalha pelo mundo, revela detalhes da paisagem, como a impressão de um selo sobre a argila ou o desdobramento de um lindo traje tirado de um armário escuro. Porém, a luz também dá cabo das perversidades realizadas nas tre­ vas (jo 3:19-21) e impede o criminoso de atacar sua vítima. As 11 perguntas seguintes (Jó 38:16-24) são relacionadas às vastas dimensões da cria­ ção. Hoje em dia, qualquer criança sabe mais sobre as alturas e as profundidades do universo do que Jó e seus amigos jamais poderiam ter imaginado. Por acaso, Jó havia caminhado pelas profundezas do mar e visi­ tado "as portas da morte"? Sabia até onde ia o fundo do oceano? (A maior profundidade medida até hoje se situa no Oceano Pacífico - quase 11 mil metros.) E, quanto à vastidão do espaço, a sonda Voyager 2 passou 12 anos percorrendo mais de 7 bilhões de quilôme­ tros e, em 1 989, passou a quase 5 mil quilô­ metros das nuvens de Netuno! Nos versículos 1 9 a 21, Deus perguntou a Jó se ele era capaz de calcular os limites a leste e a oeste ou se os horizontes eram vas­ tos demais para ele medir. Em seguida, Deus perguntou se Jó sabia das alturas onde se armazenava a neve e o gelo até que Deus precisasse deles (vv. 22, 23; Êx 9:18-26; Js 10:11) ou os lugares onde Deus guardava os relâmpagos e os ventos (jó 38:24). Sem dúvida, as palavras de Deus são repletas de ironia, mas era isso que Jó precisava para rebater seu orgulho e dobrar os joelhos em arrependimento. O que Jó conhecia sobre a chuva (vv. 25-28)? Acaso sabia como demarcar seu curso de modo a cumprir os propósitos de Deus? Podia dizer ao relâmpago onde e quando relampejar? Era capaz de "gerar" a chuva como se fosse seu pai e criar o orva­ lho para que a terra recebesse a água de que precisava? Podia explicar por que Deus envia a chuva a lugares onde ninguém vive? Então, Deus passou das chuvas de prima­ vera e de outono para o ge/o e a geada do inverno (vv. 29, 30). Se Jó não sabia como a chuva era "gerada", acaso entendia como o gelo "nascia"? A essa altura, é bem provável que Jó qui­ sesse uma trégua; mas o Senhor prosseguiu. 82 JÓ 38 - 42 e que "treinasse" com duas de suas mais excelentes criaturas: o hipopótamo (vv. 15- 24) e o crocodilo (41:1-34). Caso Jó conse­ guisse subjugá-los, se mostraria qualificado para executar o julgamento contra o mundo pecador. O hipopótamo (40:15-24). A maioria dos estudiosos concorda que o animal descrito nessa passagem é o hipopótamo, apesar de alguns preferirem o elefante ou o búfalo da índia. O termo "beemote” usado em algu­ mas versões é uma transliteração da palavra hebraica que significa uma "super-fera". Hoje em dia, é provável que os caçadores bem equipados, com suas armas modernas, não sejam intimidados pelo tamanho nem pela força do hipopótamo, mas nos tempos das lanças e flechas, tratava-se de um inimigo descomunal. Deus lembrou Jó de que havia criado tan­ to o hipopótamo quanto o homem (v. 1 5) e, no entanto, havia feito um diferente do ou­ tro. O hipopótamo come capim e é forte e poderoso; Jó se alimentava de várias igua­ rias e era fraco e incapaz de lutar com aque­ le animal. O hipopótamo possuía um corpo vigoroso, com músculos fortes e ossos resis­ tentes como bastões de ferro. Em termos comparativos, o corpo do homem era fraco e fácil de ferir. O hipopótamo passa os dias vagando pelo rio - seu corpo escondido debaixo da água - e se alimenta da vegeta­ ção carregada dos morros pelas chuvas; o homem, por sua vez, precisa trabalhar ardua­ mente para ganhar seu pão de cada dia. Um rio de águas agitadas não assusta o hipo­ pótamo, tampouco os caçadores o ame­ drontam. No tempo de Jó, era praticamente impossível capturar o hipopótamo, mas como é fácil capturar um homem! Em seguida, o Senhor pergunta a Jó: "Será que você é capaz de capturar e subjugar essa criatura descomunal? Caso consiga, então acreditarei que é capaz de julgar o mundo com justiça". O crocodilo (Jó 41:1-34). O termo "leviatã" é a transliteração de uma palavra hebraica, cujo radical significa "envergar, re­ torcer". O termo era usado para descrever os "monstros marinhos" que, supostamente, habitavam o Mediterrâneo. É possível que Salmos 104:25, 26 seja uma referência a baleias ou a golfinhos. Os israelitas usavam essa palavra para descrever os inimigos (Is 27:1), especialmente o Egito (Sl 74:13,14). Apocalipse 12:9 refere-se a Satanás como "a antiga serpente". Na mitologia, o leviatã era um monstro com várias cabeças que domina­ va sobre as águas e não temia homem algum. "Você é capaz de apanhar o crocodilo?", perguntou o Senhor. "E se conseguir, o que fará com ele?" (ver Jó 41:1-11). O que se po­ de fazer com um crocodilo depois de capturá-lo? Por mais dócil que pareça ser, é impossível transformá-lo num animal de esti­ mação (vv. 3-5). Os comerciantes não vão querer comprá-lo (v. 6). Se tentar treiná-lo, não tardará a desistir e nunca mais fará outra tentativa (vv. 8, 9)! Assim, Deus inferiu uma conclusão prática: "Se você nem sequer con­ segue lidar com um crocodilo, como imagi­ na ser capaz de ficar diante de mim algum dia?" (ver vv. 10, 11). Nos versículos 12 a 24, Deus apresenta uma descrição poética dos membros fortes dessa grande criatura, de seus dentes amea­ çadores, de suas mandíbulas poderosas e de sua carapaça impenetrável (vv. 12-17). Quando o crocodilo agita as águas do rio e expele água, o sol reflete no vapor e parece fogo e fumaça saindo da boca de um dragão (vv. 18-21). Sua armadura é tão forte que pode ir a qualquer parte sem temer coisa alguma (vv. 22-24). Este capítulo encerra com uma descrição da ira e da coragem do crocodilo (vv. 25- 34). As pessoas fogem dele amedrontadas (v. 25), mas ele não se esquiva delas. Nos versículos 26 a 29, Deus cita o nome de oito armas distintas das quais o crocodilo se ri e trata como se fossem pedaços de palha ou madeira podre. Assim como essa criatura não teme coisa alguma a seu redor, também não se preocupa com coisa alguma debaixo dela, pois sua parte inferior é protegida por um revestimento semelhante a cacos afiados de cerâmica (v. 30). Não teme inimigo algum na terra nem na água (vv. 31, 32), pois faz a água espumar como ingredientes na vasilha de um farmacêutico. E quando corta as águas, JÓ 38 - 42 83 as ondas parecem os cabelos grisalhos de um homem idoso! 5. A SEGUNDA RESPOSTA DE Jó (Jó 42:1-6) Jó sabia que havia sido derrotado. Não ha­ via meio de pleitear sua causa diante de Deus. Usando as palavras do próprio Deus (Jó 42:3, 4), Jó humilhou-se diante do Senhor e reconheceu o poder e a justiça de Deus na execução de seus planos (v. 2). Então, Jó admitiu que havia falado sobre coisas que não compreendia (v. 3). Retirou suas acusa­ ções de que Deus não o havia tratado com justiça. Percebeu que tudo o que Deus fazia era certo e que o ser humano deveria aceitar pela fé todas as coisas das mãos de Deus. Disse Jó ao Senhor: "Não sou capaz de responder a suas perguntas! Só me resta con­ fessar meu orgulho, me humilhar e me arre­ pender". Até então, o conhecimento de Jó acerca de Deus havia sido indireto e im­ pessoal, mas isso havia mudado. Jó havia se encontrado com Deus pessoalmente e se dado conta de que ele próprio não passava de pó e cinzas (v. 6; 2:8, 12; Gn 18:27). Nas palavras de Charles Spurgeon: "A porta do arrependimento abre-se para o salão da alegria", e foi exatamente o que acon­ teceu com Jó. No auge do livro, Jó, o peca­ dor, torna-se Jó, o servo de Deus (jó 42:7-9). Em quatro ocasiões nesses versículos, Deus usa um título especial do Antigo Testamen­ to: "Meu servo" (1:8; 2:3). De que maneira Jó serviu ao Senhor? Suportando o sofrimen­ to sem amaldiçoar a Deus e, portanto, calan­ do o diabo! O sofrimento que ocorre dentro da vontade de Deus é um ministério que Deus concede a uns poucos escolhidos. Porém, o servo Jó torna-se também o intercessor. Deus estava irado com os três amigos, pois eles não haviam dito a Jó a ver­ dade sobre Deus (42:7) e precisavam se re­ conciliar com Jó para que ele pudesse orar pelos três. jó se transformou no mediador entre Deus e seus três amigos! Ao perdoar os amigos e orar por eles, Jó trouxe de volta as bênçãos para a própria vida (v. 10). Quando nos recusamos a perdoar a outros, provoca­ mos nosso próprio sofrimento. No final, Jó ficou com o dobro do que antes possuíra. Teve vinte filhos: dez que es­ tavam com Deus e dez em sua casa. (jó e sua esposa se reconciliaram.) Os amigos e parentes trouxeram dinheiro para um "fun­ do de restauração" que Jó deve ter usado para comprar animais reprodutores, e logo seus rebanhos estavam duas vezes maiores que os primeiros. Voltou a ser um homem rico. Se essa mesma fórmula também se apli­ cou à idade de Jó, no começo da história ele deveria ter 70 anos de idade (Sl 90:10), e Deus permitiu que Jó vivesse mais duas ve­ zes esse tanto (Jó 42:16). No Oriente, os pais orgulhavam-se de maneira especial das filhas bonitas, e Jó teve três filhas assim: Jemima ("pomba"), Quezia ("canela") e Quéren-Hapuque ("recipiente de tinta para os olhos"). Jemima possuía tran­ qüilidade, Quezia possuía perfume e Qué­ ren-Hapuque tinha os cosméticos! Falecer "velho e farto de dias" era o obje­ tivo de toda pessoa. Trata-se de um conceito que vai além de uma vida longa. Significa uma vida rica e plena que termina bem. Foi assim que Abraão e Isaque morreram (Cn 25:8; 35:29), e também o rei Davi (1 Cr 29:28). 1. T ourn ier, Paul. Gu/ít and Grace (Culpa e Graça]. Harper & Row, p. 86. POSLÚDIO Não devemos interpretar equivocada- mente esse último capítulo e concluir que toda provação terminará com todos os problemas solucionados, todas as mágoas perdoadas e todos "vivendo felizes para sem­ pre". Não é assim que acontece! Esse texto garante que, não importa o que venha a acon­ tecer conosco, Deus sempre escreve o último capítulo. Portanto, não precisamos ter medo. Podemos crer que Deus fará aquilo que é cer­ to, por mais dolorosa que seja nossa situação. Porém, a maior bênção de Jó não foi rea­ ver sua riqueza nem reconstruir sua família e seu círculo de amigos. Sua maior bênção foi conhecer melhor a Deus e compreender seu modo de agir de maneira mais profunda. Como Tiago escreve: "Eis que temos por feli­ zes os que perseveraram firmes. Tendes ouvi­ do da paciência de Jó e vistes que fim o Senhor lhe deu; porque o Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo" (Tg 5:11). E Hebreus 12:11 lembra que: "Toda discipli­ na, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao de­ pois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça". G. Campbell Morgan escreveu: "Em toda a história de Jó, vemos a paciência de Deus e a persistência do ser humano. Quando essas duas coisas agem de maneira solidária, o re­ sultado é inequívoco. O ouro sai do fogo e a coroa da vida é entregue".1 Não importa o que Deus permita que aconteça em nossa vida, sempre existe seu "depois". Ele escreve o último capítulo, e isso faz com que todo o resto valha a pena. Portanto, seja paciente! 1. M o rg an , G. Campbell. The A nsw ers o f jesus to lo b [As Respostas de )esus a ]ó]. Baker, p. 117. L ivro I Sa lm os 1—41 SALMO 1 O editor que colocou esta preciosidade no começo de Salmos agiu com sabe­ doria, pois as palavras desse cântico indi­ cam o caminho para a bênção e advertem sobre o julgamento divino - dois temas fre­ qüentes nos Salmos. As imagens desse salmo lembram o leitor dos ensinamentos anterio­ res do Antigo Testamento. Em Gênesis, ve­ mos pessoas caminhando com Deus (5:21, 24; 6:9; 1 7:1), o rio que dá vida (2:10-14) e também árvores e frutos (2:8-10). A lei do Senhor relaciona o salmo ao êxodo por meio de Deuteronômio. Ser bem-sucedido pela meditação dessa lei e obediência a ela nos faz lembrar Josué 1:8. O salmo apresenta dois caminhos: o da bênção e o do julga­ mento; e Israel deveria escolher um deles (Dt 30:1 5, 19). Jesus usa uma imagem semelhan­ te (Mt 7:13, 14). A história da Bíblia parece desenvolver-se em torno do conceito de "dois homens": o "primeiro Adão" e o "último Adão" (Rm 5; 1 Co 15:45) - Caim e Abel, Ismael e Isaque, Esaú e Jacó, Davi e Saul - e chega a seu ápice em Cristo e o Anticristo. Dois homens, dois caminhos, dois destinos. O Salmo 1 é um salmo de sabedoria e trata da Palavra de Deus, das bênçãos de Deus sobre aqueles que meditam sobre essa Palavra e lhe obedecem e do julgamento fi­ nal de Deus sobre os rebeldes. Os salmos de sabedoria também lidam com o problema do mal no mundo e a questão de Deus per­ mitir a prosperidade dos perversos que rejeitam sua lei. Os outros salmos de sabe­ doria são: 10, 12, 15, 19, 32, 34, 37, 49, 50, 52, 53, 73, 78, 82, 91, 92, 94, 111, 112, 119, 127, 128, 133 e 139. Apesar de esse primeiro salmo retratar dois caminhos, na verdade descreve três pessoas diferentes e como se encontram relacionadas às bênçãos do Senhor. 1. A PESSOA QUE RECEBE UMA BÊNÇÃO DE D eus ( S l 1:1, 2 ) A aliança de Deus com Israel deixava claro que ele abençoaria a obediência e julgaria a desobediência (Lv 26; Dt 28). O termo "bem- aventurado" é asher, nome de um dos filhos de Jacó ("Aser"; Cn 30:12). Trata-se de um termo plural: "O, as alegrias! Ó, as bem- aventuranças!" A pessoa descrita nesse sal­ mo cumpria os pré-requisitos e, portanto, era abençoada por Deus.1 Se desejamos as bênçãos de Deus, também precisamos preencher certas condições. Devemos ser dirigidos pela Palavra (v. 1). Israel era um povo singular e separado; esta­ va no meio das nações, mas não devia ser contaminado por elas (Nm 23:9; Êx 19:5, 6; Dt 32:8-10; 33:28). O mesmo se aplica ao povo de Deus hoje: estamos no mundo mas não somos do mundo (Jo 17:11-17). Deve­ mos nos guardar de ter amizades com o mun­ do (Tg 4:4) que nos levem a ser maculados por ele (Tg 1:27) e até mesmo a amar o mun­ do (1 Jo 2:1 5-1 7). O resultado será a confor­ mação com o mundo (Rm 12:1, 2) e, se não nos arrependermos, seremos condenados com o mundo (1 Co 11:32). Ló olhou em direção a Sodoma; em seguida, levantou sua tenda voltada para Sodoma e não tardou a mudar-se para lá (Gn 13:10-12; 14:12). Ape­ sar de ser um homem salvo (2 Pe 2:7, 8), Ló perdeu tudo o que tinha quando o Senhor destruiu as cidades da planície (Gn 18 - 19; 1 Co 3:11-23). E aos poucos que mudamos para uma situação de pecado e de desobe­ diência (ver Pv 4:14, 15 e 7:6ss). Se seguir­ mos os conselhos errados, ficaremos com as companhias erradas e, por fim, nos assen­ taremos com as pessoas erradas. Quando Jesus foi preso, Pedro não seguiu o conselho de Cristo para que fugisse do jardim (Mt 26:31; Jo 16:32; 18:8). Em vez disso, seguiu Jesus e entrou no pátio do sacerdote. Lá, ele ficou com os inimigos (Jo 18:15-18) e, por fim, se assentou com eles (Lc 22:55). 88 SALMOS 1 - 41 Em decorrência disso, negou Cristo três ve­ zes. Os "ímpios" são pessoas deliberada e persistentemente perversas; os "pecadores" são aqueles que erram os alvos determina­ dos por Deus, mas não se importam com isso; os "escarnecedores" fazem pouco das leis de Deus e ridicularizam aquilo que é sagrado (ver Pv 1:22; 3:24; 21:24).2 Quan­ do rir das coisas sagradas e desobedecer às leis se torna uma forma de entretenimento, é porque, de fato, as pessoas chegaram ao fun­ do do poço. Devemos ter prazer na Palavra (v. 2). Pas­ samos do aspecto negativo, no versículo 1, para o positivo. O prazer na Palavra e a meditação sobre a Palavra devem andar juntos (119:15, 16, 23, 24, 47, 48, 77, 78), pois pensamos sobre aquilo que nos dá pra­ zer, e essas são as coisas que buscamos. No hebraico, "meditar" significa "dizer em voz baixa e suave", pois é o que os judeus ortodoxos fazem quando lêem as Escritu­ ras, meditam e oram. A Palavra de Deus está em sua boca (Js 1:8). Se falarmos com o Senhor sobre a Palavra, a Palavra falará conosco sobre o Senhor. E isso o que si­ gnifica "permanecer" na Palavra (1 Jo 2:14, 24). Como povo de Deus, devemos prefe­ rir a Palavra aos alimentos (119:103; Jó 23:12; Jr 15:17; Mt 4:4; 1 Pe 2:2), ao sono (1 19:55, 62, 147, 148, 164), às riquezas (1 1 9:1 4, 72, 1 27, 1 62) e aos amigos (1 19:23, 51, 95, 1 19). A maneira de tratar­ mos a Bíblia é a maneira de tratarmos Jesus Cristo, pois a Bíblia é a Palavra dele para nós. No original, os verbos do versículo 1 encontram-se no tempo perfeito e se refe­ rem a um modo de vida determinado, en­ quanto no versículo 2, "meditar" está no tempo imperfeito e indica uma prática cons­ oante. "Ele fica meditando".3 2. A PESSOA QUE É UMA BÊNÇÃO (Sl 1:3) Deus nos abençoa para que possamos aben­ çoar a outros (Cn 12:2). Se as bênçãos ficam conosco, as dádivas tornam-se mais impor­ tantes do que o Doador, e isso é idolatria. Devemos nos tornar canais das bênçãos de Deus para outros. É uma alegria receber uma bênção, mas alegria maior ainda é ser uma bênção. "Mais bem-aventurado é dar do que receber" (At 20:35). A imagem da árvore aparece com freqüên­ cia nas Escrituras e simboliza tanto um reino (Ez 17:24; Dn 4; Mt 13:32) quanto um indi­ víduo (52:8; 92:12-14; Pv 11:30; Is 44:4 e 58:11; Jr 17:5-8; Mt 7:15-23). Balaão consi­ derou o povo de Israel "como cedros junto às águas" (Nm 24:6). Assim como uma árvo­ re, a pessoa temente a Deus é cheia de vida, beleza e frutos e é proveitosa e duradoura. A parte mais importante de uma árvore são suas raízes que ficam dentro do solo e reti­ ram dele a água e os nutrientes. Assim tam­ bém, a parte mais importante da vida de um cristão são suas "raízes espirituais", que se alimentam dos recursos ocultos que pos­ suímos em Cristo (Ef 3:17; Cl 2:7). É isso o que significa "permanecer em Cristo" (Jo 15:1-9). Nas Escrituras, a água potável é uma fi­ gura do Espírito de Deus (Jo 7:37-39; 1 Co 10:4), enquanto a água para se lavar retrata a Palavra de Deus (Sl 119:9; Jo 15:3; Ef 5:26). A sede de água é uma imagem da sede de Deus (42:1; 63:1; 143:6; Mt 5:6; Ap 22:17), e, com freqüência, um rio retrata a provisão divina de bênçãos espirituais e de ajuda para seu povo (36:8; 46:4; 78:16; 105:41; Êx 17:5, 6; Nm 20:9-11; Ez 47; Ap 22:1, 2). Não somos capazes de nos nutrir nem de nos sustentar por nossa própria conta; pre­ cisamos estar arraigados em Cristo e nos alimentar de seu poder espiritual. Uma das fontes de energia é a meditação na Palavra (v. 2); as outras são a oração e a comunhão com o povo de Deus. Como escreveu Ale- xander Maclaren: "A religião não tem volume nem profundidade, pois não é alimentada por mananciais ocultos". As árvores podem secar e morrer, mas aquele que permanece em Cristo mantém- se sempre verde e dá muitos frutos (ver 92:12-14). Os "frutos" se referem aqui a vá­ rias bênçãos: ganhar pessoas para Cristo (Rm 1:13), ter um caráter piedoso (Rm 6:22, Cl 5:22, 23), contribuir financeiramente para a obra do Senhor (Rm 1 5:28), servir e realizar boas obras (Cl 1:10) e louvar ao Senhor (Hb 13:15). É triste quando um cristão não dá SALMOS 1 - 41 89 atenção a suas raízes e começa a secar. Lem­ bre que a árvore não come os frutos: eles são para outros. Também não podemos es­ quecer que frutos não são a mesma coisa que "resultados", pois os frutos têm dentro de si as sementes para mais frutos. São de­ correntes da vida de Deus fluindo por nós. O justo descrito nos versículos 1 a 3 é, sem dúvida, um retrato de Jesus Cristo, que, de acordo com João 14:6, é o caminho (v. 1), a verdade (v. 2) e a vida (v. 3). 3. A PESSOA QUE PRECISA DE UMA BÊNÇÃO (Sl 1:4-6) A primeira metade do salmo descreve uma pessoa temente a Deus, enquanto a segunda metade concentra-se nos ímpios - aqueles que os cristãos elevem procurar alcançar com o evangelho. Como essas pessoas precisam co­ nhecer a Deus e receber suas bênçãos em Cristo! As Escrituras descrevem os perver­ sos de várias maneiras, sendo que, nesse caso, a imagem usada é a da palha. Ao con­ trário dos justos, que são como árvores, os ímpios são mortos, sem raízes, espalhados por toda parte e destinados ao fogo. A palha não tem valor algum. Quando os grãos são selecionados, o vento leva a palha embora e toda a palha que ainda resta é queimada. João Batista usou essas mesmas imagens de árvore, fruto e palha para advertir os peca­ dores e chamá-los ao arrependimento (Mt 3:7-12). Os perversos deste mundo parecem ricos e fortes, mas do ponto de vista de Deus, são desprezíveis, frágeis e destinados ao jul­ gamento. (Ver Sl 73.) Não é de se admirar que Jesus usasse o depósito de lixo do lado de fora de Jerusalém (conhecido como sehena) como uma figura do inferno, pois era lá que os restos sem valor iam para o fogo (Mc 9:43-48). A palha fica muito pró­ xima dos grãos, mas no final, os dois são separados, e a palha é levada pelo vento ou queimada. Até que isso aconteça, porém, temos a oportunidade de testemunhar aos ímpios e de levá-los para Cristo. Quando o dia do julgamento chegar, o Senhor, o Justo Juiz, separará o trigo do joio, as ovelhas dos bodes e os grãos da palha, e nenhum incrédulo poderá reunir-se com os justos. O verbo conhecer, no versículo 6, não quer dizer que Deus está apenas ciente da existência dos justos em nível intelectual e que se lembra deles. Antes, significa que os escolheu e que os guardou providencialmen- te, conduzindo-os, por fim, a sua glória. Co­ mo no caso de Amós 3:2, o termo conhecer é usado com o sentido de "escolher, entrar numa relação de aliança, ter um relacio­ namento pessoal".4 No dia do julgamento final, Jesus dirá aos perversos: "Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade" (Mt 7:23). Este salmo começa com a idéia de ser "bem-aventurado" e encerra com o conceito de ser "destruído". Os verdadeiros cristãos são abençoados em Cristo (Ef 1:3ss). Rece­ beram a bênção de Deus e podem ser uma bênção para outros, especialmente para a palha que um dia será lançada ao fogo. Esfor- cemo-nos para ganhar o máximo de pessoas para Cristo. SALMO 2 O Salmo 1 enfatiza a lei de Deus, enquanto o Salmo 2 concentra-se na profecia. As pes­ soas no Salmo 1 se comprazem com a lei, mas as pessoas do Salmo 2 desafiam a lei. O Salmo 1 começa com uma bem-aventurança e o Salmo 2 termina com uma bem- aventurança. O Novo Testamento não cita o Salmo 1 em momento algum, mas cita ou faz mais alusões ao Salmo 2 do que a qual­ quer outro salmo - usando-o em pelo me­ nos dezoito ocasiões (ver Mt 3:17; 7:23; 17:5; Mc 1:11; 9:7; Lc 3:22; 9:35; Jo 1:49; At 4:25, 26; 13:33; Fp 2:12; Hb 1:2, 5; 5:5; Ap 2:26, 27; 11:18; 12:5; 19:1 5). Trata-se de um salmo messiânico, assim como os Sal­ mos 8, 16, 22, 23, 40, 41, 45, 68, 69, 102, 110 e 118. Para que um salmo seja consi­ derado messiânico, ele deve ser citado no Novo Testamento com referência a Jesus (Lc 24:27, 44). No entanto, o Salmo 2 também é um salmo real, pois trata da coroação de um rei de Israel e da rebelião de algumas nações vassalas que desejavam se libertar. Os Sal­ mos 18, 20, 21, 45 (um casamento real), 72, 89, 101, 110 e 144 também são salmos reais. De acordo com Atos 4:25, este salmo 92 SALMOS 1 - 41 ao mesmo tempo, de alegria. O amor pelo Senhor lança fora todo o medo pecaminoso (1 Jo 4:18), mas aperfeiçoa o temor piedo­ so. Amamos nosso Pai, mas, ainda assim, res­ peitamos sua autoridade. O terceiro apelo é dirigido ao coração e pede amor submisso pelo Rei. No mundo antigo, os governantes vassalos demonstravam submissão a seu rei beijando a mão ou a face dele. Judas beijou Jesus no jardim, mas foi um gesto sem qual­ quer significado verdadeiro. Trata-se aqui do beijo da submissão e, até mesmo, da recon­ ciliação. O Espírito encerra com uma pala­ vra de advertência e uma palavra de bênção. A advertência é que esse Rei amoroso tam­ bém pode irar-se e revelar seu santo furor súbita e inadvertidamente (1 Ts 5:1-4). O tema da ira é relacionado ao Pai (v. 5) e ao Filho (vv. 9, 12).5 O Salmo 1 começa com a designação "bem-aventurado", e o Salmo 2 encerra com a bem-aventurança prometida a todos os que crêem no Filho de Deus, promessa que con­ tinua em vigor (Jo 3:16-18; 20:31). SALMO 3 Esta é a primeira vez que encontramos a palavra salmo no livro. O termo hebraico é mizmor e significa "tanger cordas". Também é a primeira oração de Salmos e o primeiro salmo atribuído a Davi. Todos os salmos do Livro I (Sl 1 - 41) são atribuídos a Davi, com exceção dos Salmos 1, 10 e 33. (O Sl 2 é atribuído a ele em At 4:25.) O Salmo 3 é considerado um "lamento pessoal", uma ca­ tegoria que inclui vários outros salmos: (3 - 7; 1 3, 1 7, 22, 25 - 28, 35, 38 - 40, 42 - 43, 51, 54 - 57, 59, 61, 63, 64, 69 - 71, 86, 88, 102, 109, 120, 130, 140 - 143).6 Davi escreveu esse salmo depois de fugir de Je­ rusalém, quando seu filho Absalão tomou o trono (2 Sm 1 5 - 1 8). O rei e os membros de sua corte haviam atravessado o rio Jordão e acampado em Maanaim. Esse é um salmo matutino (v. 5); o Salmo 4 foi escrito du­ rante os mesmos acontecimentos e é um salmo vespertino (4:8). E possível que o Sal­ mo 5 também seja desse período, bem como os Salmos 42, 43, 61, 62, 63, 143 (ver 5:3, 8-10). 1. C o n fl it o : ele r ec o n h ec e suas DIFICULDADES (Sl 3:1, 2) A oração começa de forma bastante abru­ pta, com " S e n h o r " . Como Pedro afundando no mar (Mt 14:30), Davi não tem tempo de passar por uma extensa liturgia, pois sua vida está em perigo, bem como o futuro do reino. Ele sabe que Deus é "socorro bem presente nas tribulações" (46:1). Absalão havia de­ morado a formar um grupo para apoiá-lo em seu golpe, e o número de partidários do usurpador crescia a cada dia (2 Sm 15:12, 13; 16:7, 8; 17:11; 18:7). Absalão era bem apessoado, cheio de palavras agradáveis e um hábil mentiroso que sabia agradar o povo e conquistar seu coração (2 Sm 15:1-6). O estadista inglês James Callaghan disse: "Uma mentira pode estar quase do outro lado do mundo, mas a verdade está sempre pronta para alcançá-la". Existe alguma coisa no co­ ração do ser humano que lhe da prazer em se alimentar de mentiras. Não apenas o número de inimigos de Davi aumentou, como também as notícias pioraram. O povo diz: "Não há mais salva­ ção para o rei" (ver 31:13; 38:19; 41:4-9; 55:18; 56:2; 69:4 e 71:10, 11.) O termo "sal­ vação", yeshua em hebraico, é traduzido por "salva-me", no versículo 7, e por "salvação", no versículo 8, e é dessa palavra, usada 136 vezes em Salmos, que vêm os nomes "Jesus" (Mt 1:21) e Josué. Por que Deus permitiu essa rebelião infa­ me e perigosa? Fazia parte da disciplina de Davi por seus pecados de adultério e homi­ cídio (2 Sm 12:1-12). Em sua graça, Deus perdoou Davi quando o rei confessou seus pecados (2 Sm 12:13, 14; Sl 32 e 51), mas, em sua soberania, permitiu que Davi colhesse as conseqüências amargas desses pecados. Davi teve problemas familiares que acarre­ taram grande sofrimento (2 Sm 12 - 14), in­ clusive a morte de seu filho com Bate-Seba, o estupro de sua filha Tamar e o assassinato de seus filhos Amnom, Absalão e Adonias. Essa é a primeira vez que o termo "Selá" aparece nas Escrituras (vv. 2, 4, 8), sendo usa­ do 71 vezes nos Salmos e três vezes em Habacuque 3. Os hebraístas não apresentam um consenso quanto às origens desse termo, SALMOS 1 - 41 93 que pode ser decorrente de palavras que sig­ nificam "elevar" ou "calar". No primeiro caso, trata-se de um sinal para que o cântico seja entoado em voz bem alta, ou para que se­ jam erguidas e tocadas as trombetas, ou, ain­ da, para que as mãos sejam levantadas ao Senhor. No segundo caso, pode ser um sinal para uma pausa, um momento de silêncio e de meditação. 2. C erteza : ele a f ir m a su a c o n f ia n ç a n o S en h o r (Sl 3:3, 4) Mas Davi não se deixa abater com facilidade. Sem ignorar os problemas, ergue seus olhos da situação ameaçadora a seu redor e olha para o Senhor pela fé. Davi sabe que está em perigo, mas Deus é seu escudo (ver Gn 15:1). O rei de Israel era chamado de "escudo", pois protegia a nação (84:9; 89:18), mas Davi de­ pendia de Deus para ser seu escudo (7:10; 18:2; 47:9; 59:11; 84:11; Dt 33:29). Davi encontra-se numa situação vergonhosa por causa de seus próprios pecados e da traição de seu filho, mas Deus é a fonte da glória de Davi. Absalão transformou a "glória [de Davi] em vexame" (4:2), mas um dia essa glória se­ ria restaurada. A situação é desanimadora, mas o rei sabia que Deus levantaria sua cabe­ ça e lhe restauraria seu trono (27:6; 2 Sm 15:30). Confiava nas promessas que Deus lhe fez na aliança relatada em 2 Samuel 7 e sabia que Deus não o abandonaria. O templo ainda não havia sido construído no "santo monte" de Sião, mas a arca estava iá (ver 2 Sm 15:25) e era o trono de Deus 80:1). Davi podia ter sido forçado a deixar seu trono, mas Jeová ainda estava assentado no trono e continuava no controle. Absalão havia atacado o rei ungido de Deus (2:2), algo perigoso de se fazer. Davi continua cla­ mando ao Senhor em oração, sabendo que Deus não o havia abandonado no passado e que não o abandonaria agora. "Clamou este aflito, e o S e n h o r o ouviu e o livrou de todas as suas tribulações" (Sl 34:6). 3. C elebr a ç ã o : ele antevê a v it ó r ia (Sl 3:5-8) Quando Davi acorda na manhã seguinte, a primeira coisa que lhe vem à mente é o Senhor e a maneira como ele protegeu o rei e seus servos durante a noite. Para Davi, esse é um sinal de que o Senhor está com eles e de que os acompanhará até o final dessa crise. Isso nos faz lembrar de Jesus adormecido no meio da tempestade (Mc 4:39) e de Pedro dor­ mindo na prisão (At 12). Se cremos nele e buscamos sua vontade, Deus trabalha por nós mesmo enquanto dormimos (121:3, 4; 127:2). Davi declara que não temerá as de­ zenas de milhares de pessoas organizadas em formação de batalha contra ele, pois Deus lhe dará a vitória (Dt 32:30). A manhã era a parte mais importante do dia para Davi, como também o deve ser para nós hoje. Era pela manhã que ele se encontrava com o Senhor e que o adorava. Esse era seu horário de orar (5:3), de cantar (57:7, 8; 59:16) e de se satisfazer com a misericórdia de Deus (90:14). "Porque não passa de um momento a sua ira; o seu favor dura a vida inteira. Ao anoitecer, pode vir o choro, mas a alegria vem pela manhã" (30:5). Abraão le­ vantava cedo (Gn 1 9:27; 21:14; 22:3), como também o fazia Moisés (Êx 24:4; 34:4), Josué (Js 3:1; 6:12; 7:16; 8:10), Samuel (1 Sm 15:12), Jó (Jó 1:5) e Jesus (Mc 1:35). Deus não apenas deu descanso a Davi, como também o salvou. A oração de Davi no versículo 7 - "Levanta-te, S e n h o r ! " - re­ mete ao tempo em que, assim como Davi nessa ocasião, o povo de Israel encontrava- se no deserto. Quando a nuvem de glória que os conduzia começava a se mover e o povo levantava acampamento e partia, Moisés costumava dizer (ou cantar): "Levan- ta-te, S e n h o r , e dissipados sejam os teus inimi­ gos, e fujam diante de ti os que te odeiam" (Nm 10:35). Davi havia enviado a arca de volta para Jerusalém (2 Sm 15:24-29), mas sabia que a presença de um objeto sagrado não era garantia alguma da presença do Se­ nhor (ver 1 Sm 4). Davi não tinha acesso ao tabernáculo nem ao ministério dos sacerdo­ tes, mas era espiritual o suficiente para saber que o amor e a obediência de seu coração eram tudo o que Deus queria. Não tinha consi­ go a arca do Senhor, mas tinha consigo o Se­ nhor da arca! Não podia oferecer sacrifícios 94 SALMOS 1 - 41 de animais nem incenso, mas podia levantar as mãos para adorar a Deus (141:2). A glória de Deus estava com ele (v. 3), como tam­ bém a bênção de Deus (v. 8). O inimigo que se levantasse! (v. 1). Deus também se levan­ taria e lhe daria a vitória! Algumas traduções colocam os verbos do versículo 7 no passado, indicando que Davi faz uma retrospectiva das muitas vi­ tórias que Deus havia lhe dado em outros tempos. "O Senhor salvou minha vida tantas vezes no passado, então por que me abando­ naria agora?" Outras versões, como a Nova Versão Internacional, consideram essa oração como um pedido por vitórias no presente e no futuro. De qualquer modo, Davi tinha fé para crer que Deus iria adiante dele e que derrotaria o exército de Absalão - e foi exa­ tamente o que Deus fez. Acertar o rosto do inimigo ("feres nos queixos") era um ato de humilhação. Davi considera o exército rebel­ de um bando de animais que devem ter seus dentes quebrados (7:2; 22:12, 13, 16, 20, 21; 10:9; 17:12; 35:17; 57:4; 58:6). Jonas citou o versículo 8 quando estava dentro do grande peixe (Jn 2:9) e foi salvo. Apesar de ter usado uma estratégia brilhan­ te para fazer frente aos planos de Absalão, Davi recusou-se a assumir o crédito. Somen­ te o Senhor receberia a glória. Davi também se recusou a cultivar qualquer tipo de res­ sentimento contra seu povo, pedindo em vez disso que o Senhor os abençoasse. Isso nos lembra a oração de Jesus na cruz (Lc 23:34) e a oração de Estêvão quando estava sendo apedrejado (At 7:60). Deus restaurou Davi a seu trono e permitiu que preparasse Salo­ mão para sucedê-lo. Davi também conseguiu juntar sua riqueza de modo que Salomão tivesse todos os recursos necessários para construir o templo (ver 1 Cr 22 - 29). SALMO 4 Quando comparamos as palavras deste sal­ mo com as do salmo anterior, é inevitável chegar à conclusão de que ambos tratam da mesma situação na vida de Davi: adversários / angústia (v. 1), muitos (vv. 6, 2), glória (vv. 2, 3), voz / clamor (vv. 1, 4), deitar-se / dormir (vv. 8, 5). O Salmo 3 é um salmo matutino (v. 5), enquanto o Salmo 4 é vespertino (v. 8). O contexto histórico encontra-se na in­ trodução do Salmo 3. O "mestre de canto" é mencionado pela primeira vez e volta a apa­ recer no título de 53 salmos. Ele era o "minis­ tro do louvor" e o responsável por guardar os salmos sagrados do tabernáculo e do tem­ plo (1 Cr 6:31, 32; 15:16-22; 25:1, 7). O termo hebraico neginoth significa "acompa­ nhado por instrumentos de corda" (4, 6, 54, 55, 61, 67, 76) e se refere à harpa e à lira (1 Cr 23:5; 25:1, 3, 6). Como é maravilhoso ver como Davi podia transformar sua aflição em cântico para a glória de Deus! Seu exemplo mostra qual deve ser nossa atitude em tem­ pos de crise. 1. O lh e para o Sen h o r ( S l 4:1) O imperativo "ouve" é um clamor ardente e aflito que significa: "Responde-me!". Davi orou pedindo o socorro de Deus e esperava uma resposta (ver 18:6; 50:15; 55:16; 145:18). Quando ainda era jovem e enfren­ tou o exílio, tinha consigo um sacerdote para consultar o Urim e o Tumim e descobrir a von­ tade de Deus, mas não na rebelião de Absa­ lão. A expressão "Deus da minha justiça"7 indica não apenas que Deus é justo e fará o que é melhor, mas também que a justiça do rei é proveniente de Deus e, portanto, Deus deve justificá-lo. Por certo, Davi estava sen­ do disciplinado por sua desobediência, mas Deus havia perdoado seus pecados. Deus havia chamado Davi para ser rei, e somente Deus podia justificá-lo. Davi lembra o Senhor do livramento que lhe concedeu em várias ocasiões do passa­ do, de modo que pode fazê-lo novamente. O termo "angústia" refere-se a uma situa­ ção sem saída, "estar encurralado num lu­ gar apertado". Mas Deus o tem "aliviado" ou "colocado num lugar espaçoso", pois Davi crescia quando se encontrava em si­ tuações difíceis (18:19, 36; 25:17; 31:8; 118:5; 11 9:32). Davi sabe que não merece ajuda alguma do Senhor, mas ora com base na misericórdia e no favor de Deus. Em sua graça, o Senhor nos dá aquilo que não me­ recemos e, em sua misericórdia, não nos dá aquilo que merecemos. SALMOS 1 - 41 97 terem sido feitas contra eles, mas também de serem explicitamente erradas e abominá­ veis tanto para Deus quanto para a vítima".9 Aqueles que têm dificuldade em aceitar as "imprecações" dos Salmos também se de­ param com elas em Jeremias (11:1 8ss; 15:15; 17:18; 18:19ss; 20:1 Iss) e nas prega­ ções de João Batista (Mt 3) e de Jesus (Mt 23), bem como nos pedidos dos mártires no céu (Ap 6:9-11). Porém, ninguém pode ne­ gar que esses servos de Deus eram cheios do Espírito e desejavam que a vontade do Senhor se cumprisse. Talvez nosso problema nos dias de hoje seja exatamente o que C. S. Lewis ressaltou: não abominamos o pecado o suficiente para nos perturbarmos com a perversidade e impiedade a nosso redor. Diante do bombardeio de violência e de maldade pela mídia, acabamos nos acostu­ mando com a escuridão. Se esse salmo nasceu no tempo em que Davi estava no deserto fugindo de Absalão, então ele ensina uma lição importante: ne­ nhum perigo ou desconforto deve nos impe­ dir de ter nossa comunhão matutina com o Senhor. Nesse salmo, Davi nos dá três instru­ ções valiosas a fim de encorajar nossa comu­ nhão diária com Deus. 1. D evem o s n o s preparar para n os en co n trarm o s c o m o S en h o r (Sl 5:1-3) Se recebêssemos um convite pessoal para nos encontrarmos com o presidente da Re­ pública ou, quem sabe, com algum rei ou rainha, sem dúvida nos prepararíamos para esse encontro. No entanto, muitos cristãos começam apressadamente suas devocionais matutinas como se não fosse necessário fa­ zer qualquer preparativo. Davi foi sincero com o Senhor e reconheceu sua dor interior ("gemido"), e sua oração foi uma súplica por socorro. Davi era o rei de Israel, mas para ele somente o Senhor era seu Rei (Êx 15:18). Era um homem com um coração quebrantado, mas sabia que o Senhor compreendia seus suspiros e gemidos (ver Rm 8:26). Podemos nos aproximar do trono da graça de Deus com "liberdade de expressão" ("confiada- mente" em Hb 4:16, ver também 10:19, 35), pois o Pai conhece nosso coração e nossas necessidades e nos recebe de braços aber­ tos. Assim como Jesus Cristo (Mc 1:35), Davi era fiel a esse compromisso "a cada manhã" e não permitia que coisa alguma interferisse (ver 55:18; 59:17; 88:14 e 92:3). Davi não apenas era fiel em suas ora­ ções matutinas como também era organi­ zado e sistemático. O termo traduzido por "apresentar", no versículo 3,.era usado para descrever a disposição ordenada dos peda­ ços do sacrifício animal sobre o altar (Lv 1:8). Também descrevia a disposição da le­ nha sobre um altar (Cn 22:9), a colocação dos pães sobre a mesa do tabernáculo (Lv 24:8) e o ato de arrumar a mesa e servir uma refeição para convidados (Sl 23:5). Davi não era desleixado em suas orações; antes, ele as apresentava de maneira organi­ zada. Esse termo também possui conotação militar: um soldado apresentando-se a seu comandante para receber ordens e um exér­ cito em formação de combate no campo de batalha. Ao longo dos anos, muitos sol­ dados haviam se apresentado a Davi para receber ordens, mas, antes de tudo, Davi se apresentava ao Senhor. A fim de exercer autoridade, os líderes devem estar sujeitos a ela. "Fico esperando" dá a idéia de aguar­ dar com ansiedade, olhando para o alto, para que Deus venha e o abençoe. Em nossos encontros matutinos diários com o Senhor, devemos nos aproximar como sacerdotes le­ vando os sacrifícios ao altar e como solda­ dos nos apresentando para receber ordens de nosso capitão. 2. D ev em o s pr o c u r a r a g ra d a r a o S en h o r (Sl 5:4-6) Deus não tem prazer algum na perversidade e não pode permanecer neutro diante do pe­ cado. Portanto, os pecadores rebeldes não podiam entrar na sua presença (1 5:1 ss; 24:3- 6). Deus se agrada daqueles que o temem (147:11) e que lhe oferecem louvores since­ ros (69:31). A fim de agradar a Deus, deve­ mos ter fé (Hb 11:6) e nos identificar com seu Filho, do qual ele se compraz (Mt 3:1 7). Ao lermos os versículos 5 a 6 e 9 a 10, ve­ mos uma porção de pessoas que desobe­ decem a Deus deliberada e repetidamente e 98 SALMOS 1 - 41 que não se preocupam com as conseqüên­ cias. É essa gente que João descreve em Apocalipse 21:8, as pessoas que vão para o inferno. Deus ama o mundo de pecadores perdidos (Jo 3:16) e enviou seu único Filho "como Salvador do mundo" (1 Jo 4:14, ver 1 Tm 2:3, 4; 2 Pe 3:9). Jesus morreu na cruz pelos pecados do mundo (1 Jo 2:1, 2), e seu convite à salvação estende-se a todos os que crerem e aceitarem (Mt 11:28-30; Ap 22:1 7). Essas são as vastas dimensões da graça e do amor de Deus (Ef 3:18, 19). Porém, a verdade gloriosa do amor de Deus não muda o fato de que Deus abomina o pecado e castiga os pecadores. Ele não tem prazer algum nessas pessoas, e elas não podem habitar com ele (v. 4), nem se colocar diante dele no estado em que se encontram (v. 5; ver 1:5, 6). Ele aborrece os homicidas e mentirosos e, se não crerem em seu Filho, ele os destrói (v. 6). Não é necessário ameni­ zar o termo "aborrecer", no versículo 5, pois essa idéia de detestar, aborrecer ou abomi­ nar volta a aparecer em 11:5 e 45:7 (ver 7:11). Na verdade, o Senhor espera que aque­ les que o amam também amem e aborreçam as mesmas coisas que ele (97:10; 119:113; 139:21; Pv 6:16, 17; Am 5:15; Rm 12:9). Não existe algo que possa ser chamado de "mal abstrato", exceto nos dicionários e livros de filosofia. O mal não é uma abstração; é uma força terrível operando no mundo, des­ truindo vidas e capturando pessoas para o inferno. A abominação de Deus contra o mal não é emocional, mas sim judicial, consti­ tuindo uma expressão de sua santidade. Se desejamos ter comunhão com Deus em seu altar santo, precisamos sentir essa mesma angústia (um misto de ira e amor), quando nos deparamos com o mal neste mundo caído. 3. D evem o s n o s su jeitar a o S en h o r (Sl 5:7-12) Quando escreve, "porém eu", Davi contras­ ta a si mesmo com os perversos que se rebe­ laram contra o rei. Davi está lá para orar e tem três pedidos. Orientação (w. 7, 8). Pelo fato de não ser membro da tribo de Levi, na verdade, Davi não podia entrar no tabernáculo como os sacerdotes faziam, mas usa essa expressão para descrever seu modo de abordar o Se­ nhor. Davi está no deserto, mas se aproxima de Deus com o tipo de reverência que os sacerdotes e levitas demonstravam no taber­ náculo. Na adoração de nosso Deus magnífi­ co, não há espaço para gracejos nem para frivolidades, isso porque o preço pago para que o cristão pudesse entrar na presença de Deus a fim de adorar e orar foi a vida de Jesus (Hb 10:19, 20), e tratar esse privilégio com leviandade é fazer pouco desse sacrifí­ cio. Davi sabe que precisa da orientação de Deus, pois deve reorganizar seu reino (ver Tg 1:5)._ Justiça (w. 9, 10). Davi nao ordena que seus oficiais saiam e exterminem seus ini­ migos; antes, entrega seus adversários ao Senhor. Durante a trágica batalha em que Absalão foi morto, "o bosque, naquele dia, consumiu mais gente do que a espada" (2 Sm 18:8). A oração de Davi é respondida: "caiam por seus próprios planos" (v. 10). Mas a der­ rota desses inimigos não se deve a sua re­ belião contra Davi; seu grande pecado foi terem se rebelado contra Deus. "Ele [o Se­ nhor] ama a justiça e o direito" (Sl 33:5; 36:6; 58:11; 97:2; Is 30:18; Lc 18:7, 8; Rm 1:32). Qualquer um que se ofende com esse tipo de oração não pode orar com sinceridade: "santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu" (Mt 6:9, 10). Em Romanos 3:13, Paulo cita as palavras: "a garganta de­ les é sepulcro aberto" como parte de sua argumentação de que o mundo todo é cul­ pado diante de Deus (Rm 3:19) - e isso in­ clui todos nós! Em vez de nos aborrecermos com a forma de Deus tratar os inimigos de Davi, devemos examinar nosso relaciona­ mento pessoal com o Senhor! A bênção de Deus (w. 11, 12). Davi não se regozija pelo fato de alguns do povo da aliança de Deus serem perversos e terem sido julgados pelo Senhor, mas sim porque o Deus de Israel foi glorificado e seu rei foi justifica­ do. O futuro do plano maravilhoso de salva­ ção elaborado por Deus dependia de Israel, e, se a dinastia davídica fosse destruída, o SALMOS 1 - 41 99 que seria da aliança que, em sua graça, Deus havia feito com Davi (2 Sm 7:1-17)? Nossa comunhão com o Senhor deve nos levar a nos alegrar com seu caráter, suas promessas e suas respostas bondosas a nossas orações. Apesar de alguns de seu próprio povo terem se voltado contra ele, Davi ora pedindo que Deus os abençoe e proteja! Essas palavras parecem as orações de Jesus na cruz (Lc 23:34) e de Estêvão quando estava sendo apedrejado (At 7:60). Observe que o versí­ culo 11 enfatiza a fé e o amor, e o versículo 12 garante a esperança. O escudo ao qual o versículo 12 se refere é grande e retangular, j semelhante a uma porta, não o escudo me­ nor e redondo citado em 3:3. Davi começa sua devocional buscando ajuda para si mesmo, mas acaba buscan­ do bênçãos para seu povo, inclusive para J seus inimigos. E assim que nosso tempo de devocional deve terminar. SALMO 6 O subtítulo diz que Davi escreveu este salmo, mas não sabemos ao certo em que ocasião. Pode tê-lo redigido no tempo da rebelião de Absalão, quando Davi era idoso, estava en­ fermo e não era mais capaz de lidar com todas as responsabilidades complexas do rei­ no. O fracasso gradativo de Davi como um líder destacado foi parte da "campanha pu­ blicitária" de Absalão para conquistar o co­ ração dos israelitas (2 Sm 15:1-6). Porém, é possível, ainda, que esse salmo tenha sido escrito em qualquer ocasião ao longo do rei­ nado de Davi em que ele adoeceu e foi ataca­ do por seus inimigos. Descreve sua situação - "inimigos o cercando por fora e os temores o corroendo por dentro" - e clama a Deus por misericórdia. Está certo de que se vê diante da morte (v. 5), o que indica tratar-se de uma experiência real, de modo que não está usando a enfermidade e a guerra apenas como metáforas para seus problemas pes­ soais. O termo neginoth, no original, significa "instrumentos de cordas" e sheminith quer dizer "oitava", referindo-se, possivelmente, a uma melodia conhecida, uma oitava mais baixa para as vozes masculinas, ou ao núme­ ro de cordas do instrumento a ser tocado. Também encontramos sheminith no título do Salmo 12 (ver 1 Cr 15:21). O Salmo 6 é o primeiro de sete "salmos de penitência", nos quais os escritores estão sendo disciplina­ dos por Deus e passando por sofrimentos. Os outros salmos desse tipo são 32, 38, 51, 102, 130 e 143, e todos eles podem ser de ajuda para nós quando sentimos a necessi­ dade de confessar nossos pecados e de nos aproximar do Senhor. Neste salmo, Davi re­ gistra os estágios de sua experiência difícil de passar, pela fé, da tribulação para o triunfo. 1. A DOR DA DISCIPLINA (Sl 6:1-3) No texto original deste salmo, Davi se dirige a Deus oito vezes como " S e n h o r - Jeová", o nome de Deus relacionado à aliança. A de­ signação no versículo 1 se repete em 38:1 (ver também Jeremias 10:24). Quando Deus trata de seus filhos, normalmente ele os re­ preende e, em seguida, os disciplina, assim como os pais primeiro advertem os filhos desobedientes e, só depois, os disciplinam (Hb 12:5, 6; Pv 3:11, 12). De acordo com Hebreus 12:1-1 3, a disciplina não é um cas­ tigo imposto por um juiz irado, mas sim a instrução dada por um Pai amoroso para aju­ dar seus filhos a amadurecer (ver Ap 3:19). Por vezes, Deus nos disciplina a fim de tratar de nossa desobediência, mas em outras oca­ siões, ele o faz a fim de nos preparar para o que nos espera no futuro. E como o treina­ mento de um atleta para uma corrida. Davi acredita que Deus está irado com ele, mas não é, necessariamente, o caso. Porém, quan­ do consideramos que ele está cercado de adversários (v. 7), malfeitores (v. 8) e inimigos (v. 10), e que seu corpo está fraco e dolorido e sua alma perturbada, podemos entender por que ele sente como se tivesse um alvo nas costas. Emprega três vezes o termo hebraico bahal, que significa "desfalecido, fraco, perturbado, aterrorizado". Os tradutores do Antigo Testamento grego usaram tarasso, a palavra usada no grego de João 12:27: "Ago­ ra, está angustiada a minha alma" (ver tam­ bém Mt 26:38 e Mc 14:34). Sabendo que merece sofrimentos muito maiores do que aqueles que está recebendo, Davi suplica
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