Baixe Paul Ricoeur - Memória, história, esquecimento e outras Notas de estudo em PDF para Antropologia, somente na Docsity! ay ar aà o) Po At EN o tio o CSM o Mim E
Paul Ricoeur
A MEMÓRIA, À HISTÓRIA,
Õ ESQUECIMENTO
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
R4z6m Riceeur, Paul, 1913
A memória, a história, o esquecimento / Paul Ricaur — eradução:
Alain François [et al). - Campinas, sp: Editora da UNICAMP, 200-
Tradução de: La memoire, | histoire, "oubli.
1. Memória (Filosofia). 2. História — Filosofia. 1. Tírulo.
CDD 1$31
ISBN 978-85-168-077>=-8 gor
Índices para catálogo sistemárico:
1. Memória (Filosoha) 153.5
2. História — Filosoha gor
Título original: La mémoire, histoire, oubli
Copyright & by Editions du Seuil, 2000
Copyright da tradução & 2007 by Editora da Unicamp
1º reimpressão, 2008
Imagem da capa gentilmente cedida por
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ecannea Dy Camocanner
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
I A herança grega
O problema suscitado pela confusão entre memória e imaginação é tão antigo
quanto a filosofia ocidental. Sobre esse tema, a filosofia socrática nos legou dois to-
poi rivais e complementares, um platônico, o outro aristotélico. O primeiro, centrado
no tema da eikôn, fala de representação presente de uma coisa ausente; ele advoga
implicitamente o envol vimento da problemática da memória pela da imaginação.
O segundo, centrado no tema da representação de uma coisa anteriormente perce-
bida, adquirida ou aprendida, preconiza a inclusão da problemática da imagem na
da lembrança. É com essas versões da aporia da imaginação e da memória que nos
confrontamos sem cessar.
1. Platão: a representação presente de uma coisa ausente
É importante notar, desde o início, que é no âmbito dos diálogos que tratam do
sofista, e por meio dessa personagem da própria sofística e da possibilidade propria-
mente ontológica do erro, que se encontra a noção de eikôn, quer sozinha, quer em
dupla com a de phantasma. É assim que a imagem, mas também a memória, por impli-
cação, trazem, desde a origem, o cunho da suspeita, por causa do ambiente filosófico
de seu exame. Como, pergunta Sócrates, é possível existir o sofista, e com ele, o falar
falso, e finalmente o não-ser implicado pelo não-verdadeiro? É dentro desse quadro
que os dois diálogos intitulados Teeteto e O Sofista formulam o problema. Para compli-
car um pouco mais as coisas, a problemática da cikôn é, além disso, associada, desde
o início, à impressão, à tupos, sob o signo da metáfora do bloco de cera, sendo o erro
comparado a um apagamento das marcas, das sêmeia, ou a um equívoco semelhante
àquele de alguém que pusesse os pés na pegada errada. Vemos, assim, como o proble-
ma do esquecimento é colocado desde o início, e mesmo duplamente colocado, como
apagamento dos rastros e como falta de ajustamento da imagem presente à impressão
deixada como que por um anel na cera. É de se notar que, desde esses textos funda-
dores, a memória e a imaginação partilham o mesmo destino. Essa situação inicial do
problema torna tanto mais memorável a afirmação de Aristóteles, segundo a qual “a
memória é tempo”.
Vamos reler o Teeteto desde 163d!. Estamos no cerne de uma discussão centrada na
possibilidade do julgamento falso e encerrada pela refutação da tese segundo a qual
“a ciência nada mais é do que sensação” (151e-187b)?. Sócrates propõe o seguinte “ata-
1 Texto estabelecido e traduzido por Michel Narcy, Paris, Flammarion, col. “GF”, 1995. Existe tam-
bém uma tradução de Auguste Diês, Paris, Les Belles Lettres, 1926, e uma outra, de Léon Robin,
Paris, Gallimard, col. “Bibliothêque de la Pléiade”, 1950.
Sobre tudo isso, ver David Farrell Krell, Of Memory, Reminiscence and Writing. On the Verge, Bloo-
mington e Indianapolis, Indiana University Press, 1990. Qual pode ser, pergunta o autor, a ver-
dade da memória, uma vez que as coisas passadas estão irrevogavelmente ausentes? Não parece
que a memória nos põe em contato com elas pela imagem presente de sua presença desaparecida?
CR
A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
que”: “Seja a questão: Suponhamos que viemos a saber alguma coisa; que
mo objeto, ainda tenhamos, ainda conservemos a lembrança:
momento, quando nos recordamos dele,
recordando?" — embor.
perguntar é se,
desse mes-
é possível que, naquele
não saibamos aquilo mesmo que estamos
a pareça que estou iniciando um longo discurso, o que quero
uma vez que aprendemos alguma coisa, não o sabemos quando dela
nos lembramos” (163d). Percebemos, de imediato, a forte ligação de toda a problemáti-
ca com a erística. De fato, é preciso ter passado pela longa apologia de Protágoras e seu
livre discurso em favor do homem-medida antes de ver surgir uma solução, e inicial-
mente, uma questão mais incisiva: “Pois, neste caso, acreditas que alguém te concede-
ria que, num sujeito qualquer, a lembrança presente daquilo que ele sentiu Seja, para
ele, que já não a sente mais, uma impressão semelhante àquela que já sentiu uma vez?
De modo algum” (166b). Pergunta insidiosa, que arrasta toda a problemática para
aquilo que nos parecerá uma cilada, isto é, o recurso à categoria de similitude para
resolver o enigma da presença do ausente, enigma comum à imaginação e à memória.
Protágoras tentou confinar a aporia autêntica da lembrança, ou seja, da presença do
ausente, na erística do não-saber (presente) do saber (passado). É munido de uma
confiança nova no pensamento, comparado ao diálogo que a alma mantém consigo
mesma, que Sócrates elabora uma espécie de fenomenologia da confusão: tomar uma
coisa por outra. É para resolver esse paradoxo que ele propõe a metáfora do pedaço de
cera: “Pois bem, concede-me propor, em apoio ao que tenho a dizer, que nossas almas
contêm em si um bloco maleável de cera: maior em alguns, menor em outros, de uma
cera mais pura para uns, mais impura para outros, e bastante dura, mas mais úmida
para alguns, havendo aqueles para quem ela está no meio-termo”. — Teeteto: “Con-
cedo”. — Sócrates: “Pois então, digamos que se trata de um dom da mãe das Musas,
Memória: exatamente como quando, à guisa de assinatura, imprimimos a marca de
nossos anéis, quando pomos esse bloco de cera sob as sensações e os pensamentos,
imprimimos nele aquilo que queremos recordar, quer se trate de coisas que vimos,
ouvimos ou recebemos no espírito. E aquilo que foi impresso, nós o recordamos e o
sabemos, enquanto a sua imagem (eidolon) está ali, ao passo que aquilo que é apagado,
ou aquilo que não foi capaz de ser impresso, nós esquecemos (epilelêsthai), isto é, não o
sabemos” (191d). Observemos que a metáfora da cera conjuga as duas problemáticas, a
da memória e a do esquecimento. Segue uma sutil tipologia de todas as combinações
possíveis entre o momento do saber atual e o da aquisição da impressão; entre essas,
as duas seguintes (no 10 e no 11): “aquilo que sabemos e de que temos a sensação, en-
quanto conservamos sua lembrança (ekhôn to mmêmeion orthôs: Diês traduz 'ter dela a
.. lembrança fiel”), é impossível acreditar que sabemos somente; e o que sabemos e de
que temos a sensação, nas mesmas condições, acreditar que é uma coisa de que temos
O que se passa com a relação da presença com a ausência que os gregos exploraram por meio da
metáfora da impressão (tupos)? São as implicações do vínculo entre tipografia e iconografia que
o autor explora na esteira dos trabalhos de J. Derrida sobre a escrita. Seja qual for o destino dessa
metáfora até a época das neurociências, o pensamento está condenado, pela aporia da presença
da ausência, a permanecer nos limites (on the verge).
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
somente a sensação” (192b-c). Tendo em vista delimitar essa característica veritativa
da fidelidade, retomaremos, mais adiante, toda a discussão. Continuando a analogia
da impressão, Sócrates compara a opinião verdadeira a um encaixe exato e a opinião
falsa, a um defeito de ajustamento: “Então, quando uma sensação é associada a uma
das duas marcas (tôn sêmeiôn), mas não à outra, e quando se faz coincidir a marca
apropriada à sensação ausente com a sensação presente, o pensamento, ao seguir esse
caminho, está totalmente enganado” (194a)*. Não nos deteremos na tipologia das ceras,
tomada como guia de uma tipologia das memórias boas ou ruins. Não omitiremos,
pelo prazer da leitura, a irônica evocação [194e-195a] dos “corações pilosos” (Ilíada 1!)
e dos “corações úmidos”. Reteremos a idéia dominante segundo a qual a opinião falsa
não reside “nem nas sensações relacionadas umas às outras, nem nos pensamentos,
mas na associação (sunapsis) de uma sensação a um pensamento” (195c-d). A referência
ao tempo que eventualmente esperaríamos da expressão “conservar corretamente a
lembrança” não é pertinente no âmbito de uma teoria epistêmica que tem por aposta
o estatuto da opinião falsa, portanto do julgamento, não da memória como tal. Sua
força está em englobar em toda a sua extensão, pelo viés de uma fenomenologia da
confusão, a aporia da presença da ausência”.
É a mesma problemática abrangente, quanto ao impacto sobre uma teoria da ima-
ginação e da memória, que preside à troca de metáfora com a alegoria do pombal”.
De acordo com este novo modelo (o “modelo do viveiro” segundo Burnyeat, tradução
Narcy), pede-se para admitir a identificação entre possuir um saber e utilizá-lo de
forma ativa, do mesmo modo que ter uma ave nas mãos é diferente de tê-la na gaiola.
Passa-se, pois, da metáfora aparentemente passiva da impressão deixada por um sine-
te, a uma metáfora em que se enfatiza a definição do conhecimento em termos de po-
der ou de capacidade. A pergunta epistêmica é esta: a distinção entre uma capacidade
e seu exercício torna concebível que se possa julgar que uma coisa que aprendemos
e da qual temos o conhecimento (as aves que alguém possui) é algo que sabemos (a
ave que se prende na gaiola) (197b-c)? A pergunta diz respeito ao nosso propósito na
medida em que uma memorização inexata das regras leva a um erro de contagem. À
primeira vista, estamos longe dos casos de erro de ajustamento, conforme o modelo
do bloco de cera. Entretanto, não seriam estes comparáveis ao uso errôneo de uma ca-
3 Indico aqui a tradução alternativa de Krell: “Now, when perception is present to me of the imprints but
not the other; when [in other words] the mind applies the imprint of the absent perception to the perception
that is present; the mind is deceived in every such instance” (Krell, Of Memory, Reminiscence and Writ-
ing, op. cit., p. 27).
4 Encontraremos em Myles Burnyeat, The Thactetus of Plato (Hackett Publ. Co, 1990; tradução fran-
cesa de Michel Narcy, Introduction au Théétête de Platon, Paris, PUF, 1998), uma discussão cerrada,
na tradição da filosofia analítica de língua inglesa, da argumentação estritamente epistêmica (“os
mais importantes comentários do Tecteto estão todos em inglês”, escreve o autor). Sobre o “jul-
gamento falso”, a sua possibilidade e a sua eventual refutação, ver tradução francesa, pp. 93-172;
sobre o “bloco de cera”, p. 125 e seg.; sobre o “viveiro”, p. 144 e seg.
5 Omodelo do bloco de cera fracassara quanto ao caso da identificação errônea de um número por
sua soma de dois números; tais erros abstratos escapam à explicação por um erro de ajustamento
entre percepções.
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afirmada. E podemos considerar essa distin
Pleno da problemática que está no centro des
memória e, acrescentemos por antecip
ção como o início de um Teconhecimenk
. o e
te estudo, ou seja, a dimensão Veritativa d,
a
ação, da história. Outrossim, ao longo do debak
em torno da sofística, o estatuto epistemológico e ontológico atribuído à falsidade p :
Tes-
supõe a possibilidade de arrancar o discurso verdadeiro à vertigem da falsidade ed
seu real não-ser. Assim, ficam preservadas as possibilidades de um í é
Mas, se o problema é reconhecido em sua especificidade, existe a questão de saber se a
exigência de fidelidade, de veracidade, contida na noção de arte eicástica, encontra um
quadro apropriado na noção de arte mimética. Dessa classificação, resulta que a relação
com as marcas significantes só pode ser uma relação de similitude. Em Tempo e narrativa,
explorei os recursos do conceito de mimêsis ao qual tentei dar a mais ampla extensão,
mesmo ao preço de uma ruptura crescente entre mimêsis e imitação-cópia. Contudo,
resta a questão de saber se a problemática da similitude não constitui um obstáculo
dirimente ao reconhecimento dos traços específicos que distinguem a memória da ima-
ginação. Poderia a relação com o passado ser apenas uma variedade de mimêsis? Essa
confusão não deixará de nos acompanhar. Se nossa dúvida tem fundamento, existe o
risco de a idéia de “semelhança fiel”, própria da arte eicástica, ter fornecido mais uma
máscara do que uma escala na exploração da dimensão veritativa da memória.
Mas ainda não chegamos ao fundo do impasse. Vimos o Teeteto associar estreita-
mente o exame da cikôn à suposição de uma marca comparável à impressão de um
sinete na cera. Lembramos os termos com os quais o Teeteto opera a ligação entre
eikôn e tupos: “Suponhamos, para fundamentar o argumento, que existe em nossas
cone verdadeiro.
almas uma cera impregnável..” A suposição, presumidamente, deve permitir resolver
o enigma da confusão ou mal-entendido, sem esquecer o da persistência das marcas,
ou, ainda, o de seu apagamento no caso do esquecimento. Isso mostra claramente o
peso que ela carrega. Por sinal, Platão não hesita em colocar a hipótese sob o signo de
Mnemósine, mãe de todas as Musas, dando-lhe assim um tom de acentuada soleni-
dade. Assim, a suposta ligação entre eikôn e impressão é tida como mais primitiva do
que a relação de semelhança com a qual opera a arte mimética. Ou, em outras pala-
vras, há mimética verídica ou mentirosa porque há, entre a eikôn e a impressão, uma
dialética de acomodação, de harmonização, de ajustamento que pode ser bem sucedida
ou fracassar. Com a problemática da impressão e a da relação entre eikôn e impressão,
alcançamos o ponto final de toda análise regressiva. Ora, a hipótese — ou melhor, à
aceitação — da impressão suscitou, no decorrer da história das idéias, um cortejo de
dificuldades que não deixaram de pesar, não somente sobre a teoria da memória, mas
também sobre a da história, com outro nome, o de “rastro”. A história, segundo Marc
Bloch, pretende ser uma ciência por rastros. É possível, desde já, dissipar algumas das
confusões relativas ao emprego da palavra “rastro” na esteira do emprego de “impres-
são”. Aplicando o método platônico de divisão, recomendado — e praticado — por
Platão em O Sofista, vou distinguir três empregos principais da palavra “rastro”.
Por enquanto, deixarei de lado os rastros sobre os quais trabalha o historiador:
são rastros escritos e eventualmente arquivados. São eles que Platão tem em vista nO
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ima st
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
nossa segunda parte. Será então traçada
) . uma linha divisória entre as marcas “exterio-
res”, as da escrita propriamente dita,
as dos discursos escritos, e o componente gráfico
inseparável do componente eicástico da imagem, em razão da metáfora da impressão
da cera. O mito do Fedro transportará o modelo tipográfico, sobre o qual David Farrell
intimidade da alma à exterioridade
rastros escritos só se tornará mais
Krell estabelece sua interpretação do Teeteto, da
da escrita pública dos discursos. A origem dos
misteriosa.
Diferente é a impressão enquanto afecção
mento, que podemos qualificar como notável,
mente sentida. É tacitamente pressuposta pela
da cunhagem do anel na cera, na medida em q
eteto, 1940), É explicitamente reivindicada not
que resulta do choque de um aconteci-
marcante. Essa impressão é essencial-
própria metáfora da tupos no momento
ue é a alma que recebe a impressão (Te-
erceiro texto de Platão que comentamos
aqui. Esse texto está em Filebo 38a-39ciº. Trata-se novamente da opinião,
ora falsa, ora
verdadeira,
desta vez em sua relação com o prazer e com a dor, candidatos ao primeiro
lugar no concurso entre bens rivais, aberto no início do diálogo. Sócrates propõe: “Não
é da memória e da sensação que se forma sempre em nós a opinião espontânea e refle-
tida?” (38c.) Protarco aquiesce. Vem então o exemplo de alguém que quer “discernir”
(krinein) o que, de longe, lhe parece um homem. O que acontece quando é a si mesmo
que ele faz as perguntas? Sócrates propõe: “Imagino que nossa alma se assemelha
a um livro” (38e). “Como?” pergunta Protarco. Segue-se a explicação: “A memória,
sugere Sócrates, no seu encontro com as sensações e com as reflexões (pathêmata) que
esse encontro provoca, parece-me então, se é que posso dizê-lo, escrever (graphein)
discursos em nossas almas e, quando uma reflexão (pathêma) inscreve coisas verda-
deiras, o resultado em nós são uma opinião verdadeira e discursos verdadeiros. Mas,
quando aquele escrevente (grammateus) que há em nós escreve coisas falsas, o resul-
tado é contrário à verdade” (39a)!!. Sócrates propõe então outra comparação, com a
pintura, variante do grafismo: “Admite também que um outro obreiro (demiourgos)
trabalha, nesse momento, em nossas almas” (39b). Qual? “Um pintor (zógraphos), que
vem depois do escrevente e desenha (graphei) na alma as imagens que correspondem
às palavras” (ibid.). Isso ocorre graças a uma separação operada entre, de um lado, as
opiniões e os discursos que acompanhavam a sensação e, de outro, “as imagens das
coisas assim pensadas ou formuladas” (ibid.). É essa a inscrição na alma à qual o Fedro
irá contrapor as marcas externas sobre as quais se estabelecem os discursos escritos.
A questão levantada por essa impressão-afecção é, então, dupla. Por um lado, de
que maneira ela é preservada, como persiste, seja ela rememorada ou não? Por outro
10 Platão, Philêbe, texto estabelecido e traduzido por Auguste Diês, Paris, Les Belles Lettres, 1941.
1 Teve o tradutor razão em traduzir pathêmata por “reflexão”, por causa da comparação, feita na
República 511d, entre pensamento discursivo ou intuição, enquanto estados de alma, e pathêmata?
Continua sendo essencial ao argumento do Filebo, que o grafismo íntimo à alma seja da ordem da
afecção. Caberá a Aristóteles tratar da mnêmê enquanto presença na alma e da lembrança como
um pathos (cf. adiante pp. 34-36).
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lado, que relação de significância ela mantém com respeito ao acontecimento marcante
(o que Platão chama de eidôlon e que ele não confunde com a eikôn presente da marca
ausente, que cria um problema de conformidade com a marca inicial)? Uma fenome-
nologia dessa impressão-signo é possível no limite daquilo que Husserl chama de
disciplina hilética.
Terceiro emprego da marca: a impressão corporal, cerebral, cortical, que interessa
às neurociências. Para a fenomenologia da impressão-afecção, essas impressões cor-
porais são objeto de uma pressuposição relativa à causalidade externa, pressuposição
cujo estatuto é extremamente difícil de estabelecer. Nesse caso, falaremos de substrato,
para designar a conexão de um gênero particular entre as impressões que procedem
do mundo vivido e as impressões materiais no cérebro que são do domínio das neu-
rociências!?, Não me adianto mais por enquanto, limitando-me a indicar a diferença
entre o três empregos da idéia indiscriminada de rastro: rastro escrito num suporte
material, impressão-afecção “na alma”, impressão corporal, cerebral, cortical. Esta é, a
meu ver, a dificuldade incontornável ligada ao estatuto da “impressão nas almas” como
num pedaço de cera. Ora, hoje já não é possível eludir o problema das relações entre
impressão cerebral e impressão vivida, entre conservação-estocagem e perseverança
da afecção inicial. Espero mostrar que esse problema, herdado do velho debate a res-
peito das relações da alma e do corpo, debate audaciosamente assumido por Bergson
em Matéria e Memória, pode ser colocado em outros termos que não aqueles que põem
em confronto materialismo e espiritualismo. Não estamos lidando com duas leituras
do corpo, da corporeidade — corpo-objeto diante de corpo vivido —, com o parale-
lismo se deslocando do plano ontológico para o plano lingiiístico ou semântico?
2. Aristóteles: “A memória é do passado”
É no plano de fundo erístico e dialético herdado de Platão que pode ser colocado
o tratado de Aristóteles Peri mnêmes kai anamneseôs, que chegou a nós com o título
latino De memoria et reminiscentia numa coletânea de nove pequenos tratados que a
tradição denominou Parva Naturalia ”. Por que um título duplo? Para distinguir, não
a persistência da lembrança em relação à sua recordação, mas sua simples presença
no espírito (que chamarei, mais adiante, em meu esboço fenomenológico, de evocação
simples) em relação à recordação enquanto busca.
12 A discussão a respeito do estatuto do rastro cortical está na terceira parte, no âmbito da problemá-
tica do esquecimento (adiante, pp. 428-435).
13 A tradução francesa dos Petits Traités d'histoire naturelle e de nosso tratado De la mémoire et de la
réminiscence é de René Mugnier nas edições Les Belles Lettres. Expresso aqui, depois de tantas ou”
tras, a minha dívida quanto à tradução e ao comentário em língua inglesa oferecidos por Richard
Sorabji, com o título de Aristotle on Memory, Providence, Rhode Island, Brown University Press,
1972. Na sua segiiência, anamnésis poderia ser traduzida por “recordação” (recollection); preferi
“rememoração”, de acordo com a tipologia da lembrança que sucede, no presente trabalho, à ar-
queologia do problema.
Seara oyo arraia
(kinêsis), do qual resulta a impressão; esse movimento remete, por sua vez, a uma
causa exterior (alguém, alguma coisa cunhou a impressão), ao passo que a dupla lei-
tura da pintura, da inscrição, implica um desdobramento interno à imagem mental,
diríamos hoje uma intencionalidade dupla. Parece-me que essa nova dificuldade re-
sulta da concorrência entre os dois modelos, da impressão e da inscrição. O Teeteto
havia preparado sua confrontação ao tratar a própria impressão como uma marca
significante, uma sêmeion; então, era na própria sêmeion que vinham fundir-se a cau-
salidade externa do cunho (kinêsis) e a significância interna da marca (semeion). A
secreta discordância entre os dois modelos ressurge no texto de Aristóteles quando
confrontamos a produção da afecção e a significação icônica que nossos dois tradu-
tores interpretam como cópia, portanto, como semelhança. Essa conjunção entre esti-
mulação (externa) e semelhança (interna) continuará sendo, para nós, o ponto crucial
de toda a problemática da memória.
O contraste entre os dois capítulos do tratado de Aristóteles — mnêmê e anamnê-
sis — é mais evidente do que o fato de pertencerem a uma só e mesma problemática.
A distinção entre mnême e anamnêsis apóia-se em duas características: de um lado,
a simples lembrança sobrevém à maneira de uma afecção, enquanto a recordação?!
consiste numa busca ativa. Por outro lado, a simples lembrança está sob o império
do agente da impressão, enquanto os movimentos e toda a sequência de mudan-
ças que vamos relatar têm seu princípio em nós. Mas o elo entre os dois capítulos
é assegurado pelo papel desempenhado pela distância temporal: o ato de se lem-
brar (mnêmoneuein) produz-se quando transcorreu um tempo (prin khronisthênai)
(451 a 30). E é esse intervalo de tempo, entre a impressão original e seu retorno, que
a recordação percorre. Nesse sentido, o tempo continua sendo a aposta comum à
memória-paixão e à recordação-ação. É verdade que essa aposta perdeu-se um pouco
de vista no detalhe da análise da recordação. A razão disso é que a ênfase recai dora-
vante no “como?”, no método da recordação eficaz.
Num sentido geral, “os atos de recordação se produzem quando uma mudança
(kinêsis) sobrevém após outra” (451 b 10)%. Ora, essa sucessão pode ocorrer conforme
a necessidade ou conforme o hábito; assim, é preservada certa margem de variação, de
que voltaremos a falar mais adiante; dito isso, a prioridade concedida ao lado metódi-
co da busca (termo caro a todos os socráticos) explica a insistência na escolha de um
ponto de partida para o percurso da recordação. Assim, a iniciativa da busca está na
dependência de um “poder buscar” que é nosso. O ponto de partida fica em poder do
explorador do passado, mesmo que o encadeamento que se segue dependa da neces-
24 Mugnier conserva "reminiscência”, Sorabji propõe “recollection”; quanto a mim, digo “recorda-
ção” ou “rememoração”, na perspectiva do esboço fenomenológico que segue as duas “explicações
de textos” de Platão e de Aristóteles. A distinção que Aristóteles faz entre mnêmê e anamnêsis pa-
rece-me antecipar a que é proposta por uma fenomenologia da memória, entre evocação simples
e busca ou esforço de recordação. |
“As reminiscências se produzem quando esse movimento vem naturalmente após
25 Mugnier: / ú
e Sorabji: “Acts of recollection happen because one change is ofa nature to occur after
aquele movimento”;
another” (451 b 10).
e3 e
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A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
sidade ou do hábito. Além disso, durante o trajeto, diversos caminhos permanecem
abertos a partir do mesmo ponto inicial. A metáfora da caminhada é então induzida
pela da mudança. Eis por que à busca pode se perder em falsas pistas e a sorte pode
conservar o seu papel. Mas a questão do tempo permanece à vista no decorrer des-
ses exercícios de memória metódica: “O ponto mais importante é conhecer o tempo”
(452 b 7). Esse conhecimento diz respeito à medida dos intervalos percorridos, medi-
da precisa ou indeterminada; nos dois casos, a estimativa do mais e do menos é parte
integrante desse conhecimento. Ora, essa estimativa depende do poder de distinguir
e comparar grandezas, quer se trate de distâncias ou de dimensões maiores ou me-
nores. Essa estimativa chega até a incluir a noção de proporção. Essa afirmação de
Aristóteles confirma a tese segundo a qual a noção de distância temporal é inerente à
essência da memória e assegura a distinção de princípio entre memória e imaginação.
Ademais, o papel desempenhado pela estimativa dos lapsos de tempo enfatiza o lado
racional da recordação: a “busca” constitui “uma espécie de raciocínio (sullogismos)”
(453 a 13-14). O que não impede que o corpo esteja implicado no lado de afecção que a
caça à imagem (phantasma) também apresenta (453 a 16).
Assim, ao contrário de uma leitura redutora, engendra-se uma pluralidade de tra-
dições de interpretação. Em primeiro lugar, a da ars memorine, que consiste, como dire-
mos no capítulo 2, numa forma de exercício da memória, em que a operação de memo-
rização prevalece sobre a rememoração de acontecimentos singulares do passado. Em
segundo lugar, vem o associacionismo dos Modernos, o qual, como sublinha o comen-
tário de Sorabji, encontra bases sólidas no texto de Aristóteles. Mas o texto dá margem
a uma terceira concepção, que coloca sua ênfase no dinamismo, na invenção dos enca-
deamentos, como o fará Bergson em sua análise do “esforço de rememoração”.
Ao término da leitura e da interpretação do De memoria et reminiscentia de Aristóte-
les, é permitido tentar apreciar a contribuição desse tratado para uma fenomenologia
da memória.
A contribuição maior consiste na distinção entre mnême e anamnêsis. Nós a encon-
traremos mais adiante com outro vocabulário, o da evocação simples e do esforço de
recordação. Ao traçat, então, uma linha entre a simples presença da lembrança e o
ato de recordação, Aristóteles preservou para sempre um espaço de discussão digno
da aporia fundamental trazida à luz pelo Teeteto, a da presença do ausente. O ba-
lanço de sua contribuição para esta discussão apresenta contrastes. De um lado, ele
aguçou a ponta do enigma ao fazer da referência ao tempo a nota distintiva da lem-
brança no campo da imaginação. Com a lembrança, o ausente traz a marca temporal
do anterior. Em contrapartida, ao assumir, por sua vez, como quadro de discussão
a categoria da eikôn, ligada à da tupos, ele se arrisca a manter a aporia num impasse.
O impasse é mesmo duplo. De uma parte, durante toda a nossa investigação, uma
questão delicada será a de saber se, entre a imagem-lembrança e a impressão origi-
nal, a relação é de semelhança, até mesmo de cópia. Platão abordara a dificuldade ao
tomar como alvo o engano inerente a esse gênero de relação, e havia tentado, em o
Sofista, distinguir duas artes miméticas, a arte fantasmática, enganadora por natu-
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
o a pd io pe inor coa
centrada na semelhança. Ao
manter-se afastado das desgraças da imaginação e da memória, ele quis, talvez,
pôr esses fenômenos a salvo das querelas fomentadas pela sofística, à qual reserva
sua réplica e seus ataques no âmbito da Metafísica, principalmente por ocasião do
problema da identidade consigo mesma da ousia. Mas, por não ter levado em conta
os graus de confiabilidade da memória, ele excluiu da discussão a noção de seme-
lhança icônica. Outro impasse: ao considerar inconteste o elo entre eikôn e tupos, ele
acrescenta as dificuldades próprias da noção de impressão às da imagem-cópia. De
fato, o que é feito da relação entre a causa exterior — o “movimento” — que gera a
impressão e a afecção inicial visada por sua lembrança e dentro dela? É verdade que
Aristóteles imprimiu um grande avanço à discussão ao introduzir a categoria de
alteridade no próprio cerne da relação entre a eikôn, reinterpretada como inscrição, e
a afecção inicial. Com isso, ele começou a fazer oscilar o conceito, por outro lado não
contestado, de semelhança. Mas os paradoxos da impressão não deixarão de ressur-
gir mais tarde, principalmente com a questão das causas materiais da perseverança
da lembrança, anterior à sua recordação.
Quanto à anamnêsis, Aristóteles deu, sob esse vocábulo, a primeira descrição ar-
razoada do fenômeno mnemônico da recordação, o qual enfrenta a simples evocação
de uma lembrança que vem ao espírito. A riqueza e a sutileza de sua descrição colo-
cam-no em primeiro lugar na diversidade das escolas de pensamento em busca de
um modelo de interpretação para os modos de encadeamento dependentes da “ne-
cessidade” ou do “hábito”. O associacionismo dos empiristas ingleses é apenas uma
dessas escolas.
Mas o que ainda causa espanto é o fato de Aristóteles ter conservado, para des-
crever a recordação tal como ela funciona nas condições ordinárias da vida, uma das
palavras-chave da filosofia de Platão, desde o Menon e ao longo dos outros grandes
diálogos, aquela mesma de anamnêsis. Como explicar essa fidelidade às palavras? Re-
verência devida ao mestre? Invocação de uma autoridade própria para cobrir uma
análise que, no entanto, naturaliza a grandiosa visão de um saber esquecido no nasci-
mento e recordado pelo estudo? Pior: traição disfarçada de fidelidade? Podemos per-
der-nos em conjeturas. Mas nenhuma das que acabamos de evocar sai do plano da
psicologia do autor. Ora, cada uma extrai sua plausibilidade de uma ligação temática
presumida, que subsistiria entre a anamnésis de Platão e a de Aristóteles. A ligação
temática é dupla: primeiramente, no plano aporético, é a herança da eikôn e da tupos,
vindas do Teeteto e do Sofista. Platão considerava que essas categorias podiam dar
conta da possibilidade da sofística e da própria existência do sofista, portanto, em
a reminiscência que somente consi-
posição de contraponto relativamente à teoria d or
Menon; com Aristóteles, eikôn e
derava a memória bem sucedida do jovem escravo do a
as disponíveis para explicar o funcionamento da memória
enas uma aporia, mas a direção na qual esta deveria
eles permanece um vínculo mais forte do que
tupos são as únicas categori
cotidiana; elas já não designam ap'
ser resolvida. Mas entre Platão e Aristót
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simplesmente identificada a um acontecimento singular, que não se repete, como, por
exemplo, dada leitura do texto memorizado. É sempre esse o caso? Por certo, como
diremos para terminar, a lembrança-acontecimento tem algo de paradigmático, na
medida em que é o equivalente fenomenal do acontecimento físico. O acontecimento
é aquilo que simplesmente ocorre. Ele tem lugar. Passa e se passa. Advém, sobrevém.
É ele a aposta da terceira antinomia cosmológica da dialética kantiana: ou resulta de algo
anterior conforme a causalidade necessária ou procede da liberdade, conforme a cau-
salidade espontânea. No plano fenomenológico, no qual nos situamos aqui, dizemos
que nos lembramos daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em deter-
minada circunstância particular. Mas abre-se um leque de casos típicos entre os dois
extremos das singularidades dos acontecimentos e das generalidades, as quais pode-
mos denominar “estados de coisas”. São também próximas do acontecimento único
as aparições discretas (dado pôr-do-sol numa tarde especial de verão), os semblantes
singulares de nossos parentes e amigos, as palavras ouvidas segundo seu modo de
enunciação a cada vez nova, os encontros mais ou menos memoráveis (que dividire-
mos mais adiante de acordo com outros critérios de variação). Ora, coisas e pessoas
não aparecem somente, elas reaparecem como sendo as mesmas; e é de acordo com
essa mesmidade de reaparecimento que nos lembramos delas. É da mesma forma
que nos lembramos dos nomes, endereços e números de telefone de nossos parentes
e amigos. Os encontros memoráveis prestam-se a ser rememorados, menos de acor-
do com sua singularidade não repetível do que conforme sua semelhança típica, até
mesmo conforme seu caráter emblemático: uma imagem composta dos despertares
matinais na casa de Combray assombra as primeiras páginas da Busca... proustiana.
A seguir, vem o caso das “coisas” aprendidas e, consequentemente, adquiridas. As-
sim, dizemos que ainda nos lembramos do quadro das declinações e das conjugações
gregas e latinas, dos verbos irregulares ingleses ou alemães. Não tê-lo esquecido é ser
capaz de recitá-lo sem ter de reaprendê-lo. É assim que esses exemplos se agrupam
no outro pólo, o dos “estados de coisas” que, na tradição platônica e na neoplatônica
à qual Santo Agostinho também pertence, constituem os exemplos paradigmáticos
da Reminiscência. O texto canônico dessa tradição continua sendo o Menon de Platão
e o famoso episódio da re-descoberta, pelo jovem escravo, de algumas propriedades
geométricas notáveis. Neste nível, lembrar-se e saber coincidem inteiramente. Mas
os estados de coisas não consistem somente em generalidades abstratas, em noções;
submetidos ao crivo da crítica, como diremos mais adiante, os acontecimentos de que
trata a história documentária assumem a forma proposicional que lhes confere o es-
tatuto de fato. Trata-se então do “fato de que...” as coisas tenham se passado assim
e não de outra maneira. Esses fatos podem ser chamados de adquiridos, até mesmo,
1 14: a E ,
segundo o desejo de Tucídides, elevados à posição de “posse vitalícia”. Assim, os pró-
prios acontecimentos tenderão, sob o regime do conhecimento histórico, a alcançar os
“estados de coisas”.
Sendo essa a diversi “coisas”
ersidade das “coisas” passadas, por que traços essas “coisas” —
esses praeterita — se fazem reconhecer como sendo “do passado”? Uma nova série de
420
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
modos de dispersão caracteriza aquele “sendo do passado” comum de nossas lem-
branças. Para guiar nosso percurso do campo polissêmico da lembrança, proponho
uma série de pares oposicionais cuja ordenação constituiria algo como uma tipologia
ordenada. Esta obedece a um princípio de ordem suscetível de uma justificação dis-
tinta de sua utilização, como é o caso dos ideal-types de Max Weber. Se procuro termos
de comparação, penso primeiro na analogia segundo Aristóteles, a meio caminho en-
tre a simples homonímia, remetida à dispersão do sentido, e a polissemia, estruturada
por um núcleo sêmico que seria identificado por uma verdadeira redução semiótica.
Penso também na “semelhança de família” reivindicada por Wittgenstein. A razão da
relativa indeterminação do estatuto epistemológico da classificação proposta aparece
na imbricação entre a experiência pré-verbal — que chamo de experiência viva, que
traduz o Erlebnis da fenomenologia husserliana — e o trabalho de linguagem que
põe inelutavelmente a fenomenologia no caminho da interpretação e, portanto, da
hermenêutica. Ora, os conceitos “de trabalho” que armam a interpretação e regem a
organização dos conceitos “temáticos” que vão ser propostos aqui escapam ao domí-
nio do sentido ao qual corresponderia uma reflexão total. Os fenômenos de memória,
tão próximos do que somos, opõem, mais que outros, a mais obstinada resistência à
hubris da reflexão total?.
O primeiro par de oposições é constituído pela dupla hábito e memória. É ilustra-
do, em nossa cultura filosófica contemporânea, pela famosa distinção proposta por
Bergson entre a memória-hábito e a memória-lembrança. Deixaremos provisoriamen-
te de lado as razões por que Bergson apresenta essa oposição como uma dicotomia.
Preferiremos seguir os conselhos da experiência menos carregada de pressuposições
metafísicas para a qual hábito e memória constituem os dois pólos de uma série contí-
nua de fenômenos mnemônicos. O que faz a unidade desse espectro é a comunidade
da relação com o tempo. Nos dois casos extremos, pressupõe-se uma experiência an-
teriormente adquirida; mas num caso, o do hábito, essa aquisição está incorporada à
vivência presente, não marcada, não declarada como passado; no outro caso, faz-se re-
ferência à anterioridade, como tal, da aquisição antiga. Nos dois casos, por conseguin-
te, continua sendo verdade que a memória “é do passado”, mas conforme dois modos,
um não marcado, outro sim, da referência ao lugar no tempo da experiência inicial.
Se coloco o par hábito/memória no início de nosso esboço fenomenológico, é por-
que ele constitui a primeira oportunidade de aplicar ao problema da memória aquilo
que chamei, desde a introdução, de conquista da distância temporal, conquista situa-
da sob o critério que podemos qualificar de gradiente de distanciamento. A operação
descritiva consiste então em classificar as experiências relativas à profundidade tem-
poral, desde aquelas em que, de algum modo, o passado adere ao presente, até aquelas
em que o passado é reconhecido em sua preteridade passada. Evoquemos, após tantas
28 Estou antecipando aqui considerações que encontram seu lugar na terceira parte deste trabalho,
na transição crítica entre a epistemologia do conhecimento histórico e a hermenêutica de nossa
condição histórica.
243º A
otdrrnea Dy vamocanner
outras, as famosas páginas que Matéria e Memória” dedica, no capítulo 2, à distinção
entre “as duas formas da memória”. Como Santo Agostinho e os retóricos antigos,
Bergson se coloca na situação de recitação de uma lição decorada. Então, a memória.
hábito é a que usamos quando recitamos a lição sem evocar, uma a uma, as leituras su-
cessivas do período de aprendizagem. Nesse caso, a lição aprendida “faz parte de meu
presente do mesmo modo que meu hábito de andar ou escrever; ela é vivida, é “agida”,
mais do que é representada” (Bergson, Matiêre et Mémoire, p. 227). Em compensação, a
lembrança de certa lição particular, de certa fase de memorização não apresenta “ne-
nhum dos caracteres do hábito” (op. cit., p. 226): “É como um acontecimento de minha
vida; sua essência é trazer uma data, e não poder, por conseguinte, repetir-se” (ibid.),
“A própria imagem, considerada em si, era necessariamente, no início, aquilo que será
sempre” (ibid.). E ainda: “A lembrança espontânea é, de imediato, perfeita; o tempo
não poderá acrescentar coisa alguma à sua imagem sem deturpá-la; ela conservará,
para a memória, seu lugar e sua data” (op. cit., p. 229). Em suma: “A lembrança de
uma determinada leitura é uma representação, e somente uma representação” (op.
cit. p. 226); ao passo que a lição aprendida é, como acabamos de dizer, “agida” mais
do que representada, é privilégio da lembrança-representação permitir-nos voltar a
subir “a encosta de nossa vida passada para nela buscar uma determinada imagem”
(op. cit. p. 227). À memória que repete, opõe-se a memória que imagina: “Para evo-
car o passado em forma de imagens, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é
| preciso atribuir valor ao inútil, é preciso querer sonhar. Talvez o homem seja o único
ser capaz de um esforço desse tipo” (op. cit., p. 228).
Esse texto é de uma enorme riqueza. Em sua sobriedade cristalina, expõe o pro-
blema mais amplo da relação entre ação e representação, da qual o exercício de me-
morização é apenas um aspecto, como mostraremos no próximo capítulo. Da mesma
forma, Bergson enfatiza o parentesco entre a lição decorada e “meu hábito de andar
ou de escrever”. O que assim é valorizado é o conjunto a que pertence a recitação,
o das habilidades, que têm, todas, a característica comum de estar disponíveis, sem
exigir o esforço de aprender novamente, de reaprender; assim sendo, todas estão aptas
a ser mobilizadas em múltiplas oportunidades, abertas por sua vez a certa variabili-
dade. Ora, é a essas habilidades que, no amplo leque dos usos da palavra “memória”,
aplicamos uma das acepções admitidas dessa palavra. O fenomenólogo poderá assim
distinguir “lembrar-se como...” de “lembrar-se que...” (expressão essa que irá pres-
tar-se a outras distinções ulteriores). Esse vasto império abrange habilidades de níveis
muito diferentes. Primeiramente, encontramos as capacidades corporais e todas as
modalidades do “eu posso”, que percorro em minha própria fenomenologia do "ho-
mem capaz”: poder falar, poder intervir no curso das coisas, poder narrar, poder dei-
29 Cf. Henri Bergson, Matire et Mémoire. Essai sur la relation du corps à Vesprit (1896), in CEuvres, in-
trodução de H. Gouhier, textos anotados por A. Robinet, edição do centenário, Paris, PUF, 1963,
| pp. 225-235. Um estudo sistemático das relações entre psicologia e metafísica neste trabalho será
l a terceira parte, no âmbito de uma investigação dedicada ao esquecimento (cf. adiante
pp. 445-447).
otdrrnea Dy vamocanner
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊENCIA
da lembrança pertence a uma imensa família de fatos psíquicos: “Quando rememo-
ramos fatos passados, quando interpretamos fatos presentes, quando ouvimos um
discurso, quando acompanhamos o pensamento de outrem e quando nos escutamos
pensar a nós mesmos, enfim quando um sistema complexo de representações ocupa
nossa inteligência, sentimos que podemos tomar duas atitudes diferentes, uma de
tensão e a outra de relaxamento, que se distinguem principalmente pelo fato de que
o sentimento do esforço está presente numa e ausente na outra” (op. cit. p. 930). De
outro lado, a questão precisa é esta: “O jogo das representações é o mesmo nos dois
casos? Os elementos intelectuais são da mesma espécie e mantêm entre si as mesmas
relações?” (op. cit. pp. 9380-931). Como se vê, a questão não poderia deixar de interes-
sar as ciências cognitivas contemporâneas.
Se a questão da recordação encabeça o exame aplicado às diversas espécies de
trabalho intelectual, é porque a gradação “do mais fácil, que é reprodução, ao mais
difícil, que é produção ou invenção” (op. cit., p. 932), é ali mais marcada. Além disso, o
ensaio pode apoiar-se na distinção operada em Matéria e Memória entre “uma série de
“planos de consciência” diferentes, desde a lembrança pura” ainda não traduzida em
imagens distintas, até essa mesma lembrança atualizada em sensações nascentes e
em movimentos iniciados” (ibid.). É em semelhante travessia dos planos de consciên-
cia que consiste a evocação voluntária de uma lembrança. É então proposto um mo-
delo para separar a parte de automatismo, de recordação mecânica, e a de reflexão,
de reconstituição inteligente, intimamente mescladas na experiência comum. Vale
lembrar que o exemplo escolhido é o da recordação de um texto decorado. É, pois, no
momento da aprendizagem que é feita a separação entre dois tipos de leitura; à leitu-
ra analítica, que privilegia a hierarquia entre idéia dominante e idéias subordinadas,
Bergson opõe seu famoso conceito de esquema dinâmico: “Entendemos com isso que
essa representação contém menos as próprias imagens do que a indicação daquilo
que é preciso fazer para reconstituí-las” (op. cit., p. 937). O caso do jogador de xadrez,
capaz de conduzir de cabeça diversas partidas sem olhar os tabuleiros, é nesse as-
pecto exemplar : “o que está presente no espírito do jogador é uma composição de
forças, ou melhor, uma relação entre potências aliadas-hostis” (op. cit., p. 938). Cada
partida é assim memorizada como um todo segundo seu perfil próprio. Portanto, é
no método de aprendizagem que tem de ser buscada a chave do fenômeno de recor-
dação, por exemplo, o da busca inquieta de um nome recalcitrante: “Uma impressão
de estranheza, mas não de estranheza indeterminada” (op. cit., p. 939). O esquema
dinâmico opera à moda de um guia “indicando uma certa direção de esforço” (op. cit.,
p. 40). Neste exemplo, como em muitos outros, “a essência do esforço de memória
parece ser o fato de desenvolver um esquema, se não simples, pelo menos concentrado
numa imagem com elementos distintos, ou mais ou menos independentes uns dos
outros” (ibid.). É esse o modo de travessia dos planos de consciência, de “descida do
esquema para a imagem” (op. cit., p. 941). Diremos então que o “esforço de recordação
consiste em converter uma representação esquemática cujos elementos se interpe-
netram numa representação em imagens cujas partes se justapõem” (ibid.). É nesse
O TT e
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x
A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
aspecto que o esforço de recordação constitui um caso de esforço intelectual ese
aparenta com o esforço de intelecção examinado no capítulo 2 de Matéria e Memória:
“Quer se trate de seguir uma demonstração, de ler um livro, de ouvir um discurso”
(op. cit. p. 942), “o sentimento do esforço de intelecção se produz no trajeto do es-
quema à imagem” (op. cit., p. 946). Resta examinar O que faz do trabalho de memória,
de intelecção ou de invenção um esforço, a saber, a dificuldade que tem por signo um
incômodo experimentado ou o encontro de um obstáculo, enfim, o aspecto Propria-
mente temporal de diminuição de ritmo e de atraso. Combinações antigas resistem
ao remanejamento exigido, tanto do esquema dinâmico como das próprias imagens
nas quais o esquema procura se inscrever. É o hábito que resiste à invenção; Nessa
hesitação toda especial deve encontrar-se a característica de esforço intelectual (op.
cit. p. 954). E “concebe-se que essa indecisão da inteligência se prolongue numa in-
quietude do corpo” (op. cit. p. 949). O próprio caráter penoso tem, pois, a sua marca
temporal sentida afetivamente. Existe pathos na zetêsis, “afecção” na “busca”. Assim
se entrecruzam a dimensão intelectual e a dimensão afetiva do esforço de recorda-
ção, como em qualquer outra forma de esforço intelectual.
No final deste estudo da recordação, gostaria de fazer uma breve menção da re-
lação entre o esforço de recordação e o esquecimento (antes de reexaminar devida-
mente, na terceira parte deste trabalho, problemas a respeito do esquecimento que
aqui encontramos dispersos).
É de fato o esforço de recordação que oferece a melhor ocasião de fazer “memó-
ria do esquecimento”, para falar por antecipação como Santo Agostinho. A busca da
lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, a saber, lutar
contra o esquecimento, arrancar alguns fragmentos de lembrança à “rapacidade” do
tempo (Santo Agostinho dixit), ao “sepultamento” no esquecimento. Não é somente o
caráter penoso do esforço de memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o
temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou
aquela tarefa; porque amanhã será preciso não esquecer... de se lembrar. Aquilo que,
no próximo estudo, chamaremos de dever de memória consiste essencialmente em
dever de não esquecer. Assim, boa parte da busca do passado se encaixa na tarefa de
não esquecer. De maneira mais geral, a obsessão do esquecimento passado, presente,
vindouro, acrescenta à luz da memória feliz a sombra de uma memória infeliz. Para
a memória meditativa — a Gediichtnis —, o esquecimento continua a ser, ao mesmo
tempo, um paradoxo e um enigma. Um paradoxo, tal como o expõe o Santo Agostinho
retórico: como falar do esquecimento senão sob o signo da lembrança do esquecimento,
tal como o autorizam e caucionam o ret
eo reconhecimento da “coisa” esquecida?
Senão, não saberíamos que esquecemo: enigma, por ão sabemos, de saber
fenomenológico, se o esquecimento é ape
trar o “tempo perdido”, ou se resulta do inelutável desgaste, “pelo” tei
que em nós deixaram, sob forma de afecções originárias,
s “o
. os acontecimentos supe:
nientes.
Para resolver o enigma, seria necessário não só desimpedir e liberar o fundo
era
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O COMORIA E DA REMINISCÊNCIA
de esquecimento absoluto sobre o qu
esquecimento”, mas também articular
mento absoluto ao saber exterior — Pp
al se destacam as lembranças “preservadas do
aquele não-saber relativo ao fundo de esqueci-
articularmente o das neurociências e das ciências
s mnésicos. Não deixaremos de evocar, no devido
re saber fenomenológico e saber científico?
cognitivas — concernente aos rastro:
momento, essa difícil correlação ent
Deve ser concedido um lugar à Parte e eminente à distinção introduzida por Hus-
serl, nas Leçons pour une phénomeénologie de la conscience intime du temps?, F x
a É E ps”, entre retenção
ou lembrança primária e Teprodução ou lembrança secundária. Lê-se essa distinção
na segunda seção das Lições de 1905 sobre a consciência íntima de 4 fi ú
. , no intima do tempo, que formam a
a O Fi ue o o iopararletada pelos adendos e complementos do período 1905-
cu ses que se referem efetivamente à face objetal da
memória, como confirma a tradução de Erinnerung por “lembrança”, e de acrescentar
a elas, na continuação deste capítulo, as considerações de Husserl a respeito da relação
entre lembrança e imagem. Ao destacar essa seção do contexto dominante das Lições,
preservo-a da influência do idealismo subjetivista enxertado na vertente reflexiva da
memória (cujo exame postergarei até o capítulo final de nossa fenomenologia da me-
mória). Confesso que essa liberação opera em oposição à dinâmica de conjunto das
Lições de 1905, que, da primeira à terceira seção, as faz percorrer uma série de “degraus
de constituição” (Husserl, Lições, 8 34), em que o caráter objetal da constituição se apa-
ga progressivamente em benefício da autoconstituição do fluxo da consciência; os “ob-
jetos temporais” — ou seja, as coisas que duram — aparecem então como “unidades
constituídas” (op. cit. 8 37) na pura reflexividade da consciência íntima do tempo. Meu
argumento é aqui que a famosa epokhe, sobre a qual se abre o trabalho e de onde resulta
a exclusão do tempo objetivo — aquele tempo que a cosmologia, a psicologia e as ou-
tras ciências humanas consideram uma realidade formal, é certo, mas solidária com o
estatuto realista dos fenômenos que enquadra — não revela, no início, um fluxo puro,
mas uma experiência (Erfahrung) temporal que tem, na lembrança, sua face objetal; a
constituição de primeiro nível é de uma coisa que dura, por menor que seja essa objeti-
vidade, primeiramente sobre o modelo do som que continua a soar, depois, da melodia
que rememoramos posteriormente. Mas, a cada vez, “alguma coisa” dura. A epokhê
revela, certamente, simples vivências, as “vivências do tempo” (op. cit., 52, p. 15). Mas,
nessas vivências, são visados “data 'objetivamente temporais” ” ($ 2). São denominados
“objetividade” (ibid.), e comportam “verdades apriorísticas” que pertencem “aos mo-
mentos constitutivos da objetividade” (ibid.). Se, desde o início da leitura, a referência a
esse aspecto “objetal” parece provisória, é porque se levanta uma questão radical, a da
““origem” do tempo” (ibid.) que se quer subtrair ao reinado da psicologia sem, contudo,
o
recair na órbita do transcendentalismo kantiano. A questão proposta pela experiência
32 Cf adiante, terceira parte, cap. 3 sobre o esquecimento, pp- 428-435.
33 Husserl, Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps, tradução francesa de
H. Dussort, Paris, PUF, col. “Épiméthée”, 1964.
949%
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A MEMORIA, A HISTORIA, U ESQUECIM ix di”
em degradês retencionais” (ibid.), o que Husserl gosta de comparar a uma cauda de
cometa. Falamos, então, de duração “passada” (op. cit. 8 11, p. 45). Esse ponto termina]
é analisado mesmo em continuidade de retenções; mas, enquanto terminal, ele se dá
numa “apreensão de agora” (ibid.), núcleo da cauda de cometa”.
O que acontece, então, com o termo eventual do enfraquecimento que seria o des-
vanecimento? Husserl, que o evoca (op. cit, 8 11), fala de imperceptibilidade, suge-
rindo assim o caráter limitado do campo temporal como do campo de visibilidade. A
observação vale também para o diagrama do 8 10: “não foi previsto nenhum fim da
retenção” (nota de Husserl), o que, segundo alguns autores, daria lugar tanto E confis-
são de um esquecimento inelutável quanto a levar em consideração uma persistência
inconsciente do passado. .
Em resumo, chamar de originário o instante do passado próprio para a retenção, é
negar que esta seja uma figuração por imagem. É essa distinção que reexaminaremos
com base em textos inéditos e pertencentes a outro ciclo de análises apoiadas na opo-
sição posicional/não posicional. Nas Lições de 1905 prevalece a oposição impressio-
nal/retencional. Essa distinção é suficiente para distinguir o agora da consciência do
“que acabou de passar” que dá uma extensão temporal à percepção. Todavia, já está
estabelecida uma oposição ao imaginário: na verdade, ela já estava estabelecida desde
a crítica de Brentano na primeira seção. Quanto à distinção entre impressão/retenção,
sobre a qual nos concentramos aqui, ela procede, segundo Husserl, de uma necessi-
dade eidética. Não se trata de um dado de facto: “professamos que é necessário a priori
que a retenção seja precedida de uma percepção e, portanto, de uma impressão origi-
nária correspondente” (op. cit., 8 13, p. 48). Em outras palavras, para um algo que dura,
continuar pressupõe começar. Podem-se opor reservas “bergsonianas” à equivalência
entre o agora e o ponto, mas não à distinção começar /continuar. Essa distinção é cons-
titutiva da fenomenologia da lembrança — daquela lembrança de que se diz: “o dado
do passado, é a lembrança” (op. cit. 8 13, p. 50). E esse dado engloba necessariamente
um momento de negatividade: a retenção não é a impressão; a continuidade não é o
começo; neste sentido, ela consiste num “não-agora”: “passado e agora se excluem”
(ibid.). Durar é, de certo modo, superar essa exclusão. Durar, é permanecer o mesmo.
É o que significa a palavra “modificação”.
Éem relação a essa exclusão — a esse não-agora primordial — do passado, con-
tudo retido, que se propõe uma polaridade de um novo gênero no próprio interior
do não-agora da lembrança: a polaridade lembrança primária /lembrança secundária,
retenção/reprodução.
A reprodução supõe que a lembrança primária de um objeto temporal como a me-
lodia “desapareceu” e voltou. A retenção ainda estava presa à percepção do momento.
A lembrança secundária não é absolutamente apresentação; é re-(a)presentação; é a
mesma melodia, mas “quase ouvida” (op. cit, 8 14, p- 50). A melodia há pouco ouvida
35 A esse Tespeito, o diagrama que acom;
fo 11, não deve enganar: trata-se de
Presente e o ponto.
panha a descrição do fenômeno de escoamento, no parágra-
uma transcrição espacial sugerida pela equivalência entre o
eso
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
“em pessoa” é agora rememorada, re-(a)presentada. A própria rememoração poderá,
por sua vez, ser retida na forma do que acabou de ser rememorado, representado, re-
produzido. É a essa modalidade da lembrança secundária que se podem aplicar as
distinções propostas ademais entre evocação espontânea e evocação laboriosa, bem
como entre graus de clareza. O essencial é que o objeto temporal reproduzido não
tenha mais, por assim dizer, pé na percepção. Ele se desprendeu. É realmente passa-
do. E, contudo, ele se encadeia, faz sequência com o presente e sua cauda de cometa.
O que está entre os dois é o que denominamos lapso de tempo. Na época das Lições
de 1905 e dos Complementos do período 1905-1910, a reprodução está classificada en-
tre os modos de imaginação (op. cit., Suplemento II, pp. 132-136). Restará distinguir a
imaginação colocante da imaginação irrealizante, sendo a ausência o único elo entre
ambas, ausência de que Platão percebera a importante bifurcação entre fantástico e
icônico, em termos de arte mimética. Falando aqui de “re-dado” da duração, Husserl
evoca implicitamente o caráter tético diferencial da relembrança*. Que a reprodução
seja também a imaginação, é a verdade limitada de Brentano (op. cit. 5 19): em termos
negativos, reproduzir é não dar em pessoa. Ser mais uma vez dado, não é ser apenas
dado. A diferença não é mais contínua, mas descontínua. Surge então, de forma temí-
vel, a questão de saber em que condições a “reprodução” é reprodução do passado. É
da resposta a essa questão que depende a diferença entre imaginação e lembrança. É,
pois, a dimensão posicional da relembrança que faz a diferença: “a lembrança, ao con-
trário, coloca o que é reproduzido e lhe dá, ao colocá-lo, uma situação perante o agora
atual e a esfera do campo temporal originário ao qual pertence a própria lembrança”
(op. cit. 8 23). Aqui, Husserl remete ao Suplemento III: “As intenções de encadeamenr
to da lembrança e da percepção. Os modos da consciência do tempo.” A esse custo,
pode-se dizer do agora reproduzido que “recobre” um agora passado. Essa “segunda
intencionalidade” corresponde ao que, em Bergson e outros, se chama reconhecimen-
to — conclusão de uma busca feliz.
É nesse ponto que uma minuciosa análise dedicada à distinção entre Erinnerung
e Vorstellung e reunida no volume XXIII das Husserliana encadeia-se na da segunda
seção das Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo. Falarei sobre isso
na última seção deste capítulo, no âmbito do confronto entre lembrança e imagem.
Gostaria de terminar este percurso das polaridades pela consideração de um par
de termos opostos embora complementares, cuja importância se revelará plenamente
no momento da transição da memória à história.
Falarei da polaridade entre reflexividade e mundanidade. Não nos lembramos so-
mente de nós, vendo, experimentando, aprendendo, mas das situações do mundo, nas
quais vimos, experimentamos, aprendemos. Tais situações implicam o próprio corpo
e o corpo dos outros, o espaço onde se viveu, enfim, o horizonte do mundo e dos
mundos, sob o qual alguma coisa aconteceu. Entre reflexividade e mundanidade, há
mesmo uma polaridade na medida em que a reflexividade é um rastro irrecusável
36 A palavra Phantasma encontra-se na p. 65 (Husserl, op. cit.).
059
E —
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A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
da memória em sua fase declarativa: alguém diz “em seu coração” que viu, expe.
rimentou, aprendeu anteriormente; sob esse aspecto, nada deve ser negado sobre o
pertencimento da memória à esfera de interioridade — ao ciclo da inwardness, para
retomar o vocabulário de Charles Taylor em Sources of the Self*”. Na da, salvo a so-
brecarga interpretativa do idealismo subjetivista que impede esse momento de re-
flexividade de entrar em relação dialética com o pólo de mundanidade. A meu ver, é
essa “pressuposição” que onera a fenomenologia husserliana do tempo, apesar de sua
vocação para constituir-se sem pressuposição e para escutar apenas o ensinamento
das “próprias coisas”. Aí está um efeito contestável da epokhê que, sob a aparência da
objetivação, afeta a mundanidade. Deve-se acrescentar, é verdade, em defesa de Hus-
serl, que a fenomenologia do Lebensiwelt, exposta no último grande livro de Husserl,
suprime parcialmente o equívoco, restituindo àquilo que chamamos globalmente de
situação mundana seu direito de primordialidade, sem, contudo, romper com o idea-
lismo transcendental das obras do período médio, que culmina em Ideen I, mas já se
anuncia nas Lições para uma fenomenologia da consciência íntima do tempo.
As considerações que vêm a seguir devem muito à obra mestra de Edward Casey,
Remembering *. O único ponto de divergência que me afasta dele concerne à interpre-
tação que deu aos fenômenos que descreveu admiravelmente: ele pensa dever sair
da região balizada pelo tema da intencionalidade e, nesse caso, da fenomenologia
husserliana, sob a pressão da ontologia existencial inaugurada por Heidegger em Sein
und Zeit. Daí a oposição que rege sua descrição dos fenômenos mnemônicos entre
duas grandes massas situadas sob o título de “Keeping memory in Mind” e a segun-
da, intitulada “Pursuing memory beyond Mind”. Mas o que significa Mind — termo
inglês tão difícil de traduzir? Não se refere essa palavra à interpretação idealista da
fenomenologia e de seu tema capital, a intencionalidade? Aliás, Casey leva em conta a
complementaridade entre esses dois grandes conjuntos pois intercala entre eles o que
denomina “mnemonic Modes”, a saber, “Reminding, Reminiscing, Recognizing”. Ademais,
ele não hesita em dar a sua grande obra o título A Phenomenological Study. Permitam-
me acrescentar uma palavra para mostrar minha profunda concordância com o em-
preendimento de Casey: aprecio mais do que tudo a orientação geral do trabalho, que
visa a subtrair ao esquecimento a própria memória (daí o título da introdução, “Re-
membering forgotten. The amnesia of anamnesis” — ao qual responde o da quarta
parte “Remembering re-membered”). Nesse aspecto, o livro é uma apologia daquilo
que chamo a memória “feliz”, em oposição a descrições motivadas pela suspeita ou
pela excessiva preeminência concedida aos fenômenos de deficiência, e mesmo à pa-
tologia da memória.
37 Charles Taylor, Sources of the Self Harvard University Press, 1989; tradução francesa de C. Melan-
son, Les Sources du moi. La formation de Videntité moderne, Paris, Éd. du Seuil, col. “La couleur des
idées”, 1998.
38 Edward S. Casey, Remembering. A Phenomenological Study, Bloomington e Indianapolis, Indiana
University Press, 1987. :
4 s
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
retorno à percepção. Voltaremos ao tema na terceira seção deste capítulo ao tratarmos
da composição em imagens da lembrança.
Terminada a travessia dos “modos mnemônicos”, que a tipologia de Casey põe
a meio caminho entre os fenômenos que a fenomenologia da intencionalidade (so-
brecarregada, no meu entender, pelo idealismo subjetivista) supostamente situa in
Mind, e o que ela vai buscar beyond Mind, defrontamo-nos com uma série de fenôme-
nos mnemônicos que implicam o corpo, o espaço, o horizonte do mundo ou de um
mundo.
A meu ver, tais fenômenos não nos afastam da esfera da intencionalidade, mas
revelam sua dimensão não reflexiva. Lembro-me de ter gozado e sofrido em minha
carne, neste ou naquele período de minha vida passada; lembro-me de ter, por muito
tempo, morado naquela casa daquela cidade, de ter viajado para aquela parte do mun-
do, e é daqui que eu evoco todos esses lás onde eu estava. Lembro-me da extensão
daquela paisagem marinha que me dava o sentimento da imensidão do mundo. E,
quando da visita àquele sítio arqueológico, eu evocava o mundo cultural desapare-
cido ao qual aquelas ruínas remetiam tristemente. Como a testemunha numa investi-
gação policial, posso dizer sobre tais lugares que “eu estava lá”.
Começando pela memória corporal, é preciso dizer que ela se deixa redistribuir ao
longo do primeiro eixo de oposições: do corpo habitual ao corpo dos acontecimentos,
se podemos dizê-lo. A presente polaridade reflexividade/mundanidade recobre par-
cialmente a primeira de todas. A memória corporal pode ser “agida” como todas as
outras modalidades de hábito, como a de dirigir um carro que está em meu poder. Ela
varia segundo todas as variantes do sentimento de familiaridade ou de estranheza.
Mas as provações, as doenças, as feridas, os traumatismos do passado levam a me-
mória corporal a se concentrar em incidentes precisos que recorrem principalmente
à memória secundária, à relembrança, e convidam a relatá-los. Sob esse aspecto, as
lembranças felizes, mais especialmente eróticas, não deixam de mencionar seu lugar
singular no passado decorrido, sem que seja esquecida a promessa de repetição que
elas encerravam. Assim, a memória corporal é povoada de lembranças afetadas por
diferentes graus de distanciamento temporal: a própria extensão do lapso de tempo
decorrido pode ser percebida, sentida, na forma da saudade, da nostalgia. O momento
do despertar, tão magnificamente descrito por Proust no início da Busca..., é particu-
larmente propício ao retorno das coisas e dos seres ao lugar que a vigília lhes atribuíra
no espaço e no tempo. O momento da recordação é então o do Fegeniesimento, Essa
momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus da rememoração tácita à memó-
ria declarativa, mais uma vez pronta para a narração.
A transição da memória corporal para a memória dos lugares é assegurada por
atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se, e, acima de tudo, habitar. É na
superfície habitável da terra que nos lembramos de ter viajado e visitado locais me-
moráveis. Assim, as “coisas” lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E
. ,
ão é i i nteceu, que cla teve lugar. É de
não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aco: , q g
Arm a
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Coco cmd tt da AE DAE EL IM EIN TO
fato nesse nível primordial que se constitui o fenômeno dos
“lugares de memória”,
antes que eles se
em uma referência para o conhecimento histórico.
m principalmente à maneira dos reminder
alternadamente um apoio à memóri
de memória funci
cordação, ao oferec falha, uma luta na
luta contra o esquecimento, até mesmo uma supl
ácita da memória morta.
Os lugares “permane mentos, potencialmente como do-
” como inscriçõ
cumentos”, enquanto
voam as palavras. É tam!
que a espécie de ars mem
estabelecida como métod
itidas unicamente pela voz voam, como
se parentesco entre as lembranças e os lugares
amos evocar no início do próximo estudo pôde ser
loci.
Esse vínculo entre lembrança e lugar levanta um difícil problema que se torna-
rá maior na articulação da memória e da história, a qual também é geografia. Esse
problema é o do grau de originariedade do fenômeno de datação, que tem como para-
lelo o problema de localização. Datação e localização constituem, sob esse aspecto,
fenômenos solidários que comprovam o elo inseparável entre a problemática do tem-
po e a do espaço. O problema é o seguinte: até que ponto uma fenomenologia da da-
tação e da localização pode se constituir sem recorrer ao conhecimento objetivo do
espaço geométrico — euclidiano e cartesiano, digamos — e ao conhecimento objetivo
do tempo cronológico, ele próprio articulado no movimento físico? É a questão levan-
tada por todas as tentativas de reconquista de um Lebenswelt anterior — conceitual-
mente, se não historicamente — ao mundo (re)construído pelas ciências naturais. O
como um aco: i i por essência trazer uma data e, por
conseguinte,
adiante, ao co: aginar duas memórias teoricamente independentes”, ele
observa: “a pri: egistraria, em forma de imagens-lembranças, todos os acon-
tecimentos de nossa vida diária, à medida que eles se desenrolam; ela não deixaria
escapar nenhum detalhe; a cada fato, a cada gesto, deixaria o seu lugar e a sua data”
(op. cit., p. 227). A data, como lugar no tempo, parece assim contribuir para a primeira
polarização dos fenômenos mnemônicos divididos entre hábito e memória propria-
mente dita. Ela também é constitutiva da fase reflexiva ou, como dizem, declarativa
da recordação; esforço de memória é, em grande parte, esforço de datação: quando?
há quanto tempo? quanto durou? Husserl tampouco escapou à pergunta, bem an-
tes do período da Krisis, desde as Leçons... Não posso dizer que um som começa,
dura, termina, sem dizer quanto tempo ele dura. Ademais, dizer “B vem depois de
A”, é reconhecer um caráter primordial à sucessão entre dois fenômenos distintos:
a consciência de sucessão é um dado originário de consciência; é a percepção dessa
40 Sobre a relação entre documento e monumento, ver a segunda parte, cap. 1, p. 186.
988
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
sucessão. Não estamos distantes de Aristóteles, para quem a distinção do antes e do
depois é o discriminante do tempo em relação ao movimento. A consciência íntima
do tempo, enquanto originária, já tem, segundo Husserl, seus q priori que regulam a
sua apreensão.
Voltando à memória dos lugares, podemos, na esteira de Casey, tentar recuperar o
sentido da espacialidade sobre a concepção abstrata do espaço geométrico. Ele reser-
va, para esta, o vocabulário do sítio e reserva o do lugar (place) para a espacialidade
vivida. O lugar, diz ele, não é indiferente à “coisa” que o ocupa, ou melhor, que o
preenche, da forma pela qual o lugar constitui, segundo Aristóteles, a forma escavada
de um volume determinado. São alguns desses lugares notáveis que chamamos de
memoráveis. O ato de habitar, evocado um pouco acima, constitui, a esse respeito, a
mais forte ligação humana entre a data e o lugar. Os lugares habitados são, por ex-
questão de saber se
sem o auxílio de ca
no tempo objetivo e que a epokhê submeteu a uma suspensão
metódica em prol de
Eis novamente leva
mente sustentável da cj
ria das datas e dos lugar: no do conhecimento histórico, é o elo entre memória
corporal e memória dos 1 s que legitima, a título primordial, a dessimplicação do
espaço e do tempo de sua forma objetivada. O corpo constitui, desse ponto de vista,
o lugar primordial, o aqui em relação ao qual todos os outros lugares são lá. Nesse
aspecto, a simetria entre espacialidade e temporalidade é completa: “aqui” e “agora”
”, “ele” e “ela”, entre os dêiticos que
“pura”.
, diversas vezes encontrada, do caráter ultima-
ocupam a mesma posição, ao lado de “eu”, “tu”,
pontuam nossa linguagem. Aqui e agora constituem, em verdade, lugares e datas ab-
solutos. Mas podemos manter por muito tempo essa suspensão do tempo e do espaço
objetivados? Posso evitar ligar meu aqui ao lá delimitado pelo corpo de outrem sem
recorrer a um sistema de lugares neutros? A fenomenologia da memória dos lugares
parece ser apanhada, desde o início, num movimento dialético intransponível de des-
simplicação do espaço vivido em relação ao espaço geométrico e de reimplicação de
um pelo outro em todo processo de relacionamento do próprio com o alheio. Podería-
mos considerar-nos como vizinhos de alguém diferente sem um esboço topográfico?
E o aqui e o lá poderiam destacar-se no horizonte de um mundo comum se a cadeia
das vizinhanças concretas não estivesse presa na grade de um grande cadastro em
que os lugares são mais do que sítios? Os mais memoráveis lugares não pareceriam
capazes de exercer sua função de memorial se não fossem também sítios notáveis no
ponto de interseção da paisagem e da geografia. Em resumo, os lugares de memória
590
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A MEMÓRIA, A HISTÓRIA, O ESQUECIMENTO
De fato, esses textos laboriosos exploram as diferenças específicas que distinguem,
por seus correlatos “objetais” (Gegenstiindlichen), uma variedade de atos de consciên.
cia caracterizados por sua intencionalidade específica. A dificuldade da descrição não
procede apenas do entrelaçamento desses correlatos, mas também do congestiona-
mento da linguagem por usos anteriores, quer sejam altamente tradicionais, como q
emprego do termo Vorstellung, imperativa mas desastrosamente traduzido por “re-
presentação”, quer sejam impostos pela discussão da época. Assim, a palavra Vors-
tellung, incontornável a partir de Kant, agrupava todos os correlatos de atos sensíveis,
intuitivos, distintos do juízo: uma fenomenologia da razão, que Husserl não parou
de projetar, não podia prescindir dela. Mas a comparação com a percepção e com
todos os outros atos sensíveis intuitivos oferecia uma abordagem mais promissora.
É por ela que Husserl optou obstinadamente: ela impôs distinguir uma variedade
de “modos de apresentação” de alguma coisa, a percepção que constitui a apresen-
tação pura e simples”, Gegenwirtigung, todos os outros atos sendo classificados sob
a rubrica presentificação, Vergegenwártigung (sendo o termo traduzido também por
“re-(a)presentação”, com o risco de confundir “re-(a)presentação” e “representação”
-Vorstellung).
O título do volume de Husserl abrange o campo de uma fenomenologia das pre-
sentificações intuitivas. Vemos onde pode ocorrer a imbricação com a fenomenologia
da lembrança: esta é uma espécie de presentificação intuitiva que tem a ver com o
tempo. Husserl coloca muitas vezes seu programa sob a égide de uma “fenomenolo-
gia da percepção, do Bild, da Phantasie, do tempo, da coisa (Ding)”, fenomenologia que
ainda está por fazer. O fato de a percepção e seu modo de apresentação serem tidos
como referência não deve levar a suspeitar prematuramente de uma “metafísica da
presença” qualquer: trata-se da apresentação de alguma coisa com seu caráter distin-
tivo de intuitividade. Por outro lado, todos os manuscritos do volume têm a ver com
os modos objetais, que têm como quinhão a intuitividade, mas que diferem da per-
cepção pela não-apresentação de seu objeto. É o seu traço comum. As diferenças vêm
depois. Quanto ao lugar da lembrança nesse leque, ele permanece determinado de
modo incompleto, enquanto seu elo com a consciência do tempo não é estabelecido;
mas esse elo pode se dar no nível das análises da retenção e da reprodução que per-
manecem na dimensão objetal. É preciso, então, comparar, como pede Husserl, os
manuscritos coligidos no tomo X, “A consciência íntima do tempo”, e os do tomo
XXIII das Husserliana. Neste último, o que importa é o parentesco com as outras mo-
dalidades de presentificação. A aposta da análise, nesse estágio, é a relação entre
lembrança e imagem, sendo que a nossa palavra “imagem” ocupa o mesmo terreno
que a Vergegenwartigung de Husserl. Mas já não era esse o caso com a eikôn dos gregos
e suas querelas com a phantasia? Vamos encontrar estas com Bild e Phantasie. Ora, à
lembrança tem a ver com essas duas modalidades, como lembra a enumeração no ti-
tulo preferido de Husserl, a que se deve acrescentar a espera (Erwartung), colocada do
mesmo lado que a lembrança, mas no extremo oposto da paleta das presentificações
temporais, como vemos também nos manuscritos sobre o tempo.
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
Quando Husserl fala de Bild, ele está pensando nas presentificações que descre-
vem alguma coisa de maneira indireta: retratos, quadros, estátuas, fotografias, etc.
Aristóteles havia dado início a essa fenomenologia ao observar que um quadro, uma
pintura podiam ser lidos como imagem presente ou como imagem que designa uma
coisa irreal ou ausente. A linguagem cotidiana, muito imprecisa, fala, nesse caso,
tanto de imagem como de representação; mas, por vezes, ela se torna precisa, ao per-
guntar o que um quadro representa, do que ou de quem ele é a imagem. Poderíamos,
então traduzir Bild por “dépiction” (representação pictórica), tendo como modelo o ver-
bo “dépeindre” (representar).
Quando fala de Phantasie, Husserl está pensando nas fadas, nos anjos, nos diabos
das lendas: trata-se mesmo de ficção (alguns textos dizem Fiktum). Aliás, Husserl se
interessa por eles em razão de seus vínculos com a espontaneidade, que é uma caracte-
rística de crença (belief, diz ele muitas vezes, segundo o uso da grande tradição de
língua inglesa).
A fenomenologia da lembrança está implicada nessas distinções e nessas ramifica-
ções. Mas os exemplos propostos não poderiam prescindir de uma análise essencial,
eidética. E as intermináveis análises de Husserl são prova da dificuldade em estabili-
zar significações que não param de avançar umas sobre as outras.
Foi a distinção entre Bild e Phantasie que o perturbou desde o início (1898-1906) —
portanto, na época das Pesquisas lógicas, no contexto de uma teoria do juízo e da nova
teoria das significações que trouxe para o primeiro plano a questão da intuitividade
ao título da Erfiihlung, do “preenchimento” das intenções significantes. Mais tarde,
na época das Ideen, é a modalidade de neutralidade própria da Phantasie que passará
para o primeiro plano, diante do caráter posicional da percepção. Intervirá também,
de certo modo indiretamente, a questão da individuação de um algo, operada pelas
variedades de apresentações, como se fosse a intuitividade que periodicamente vol-
tasse a prevalecer na escala do saber. Em outros momentos, é o afastamento extremo
da Phantasie relativamente à apresentação em carne e osso que o intriga. A Phantasie
tende então a ocupar todo o lugar do vocábulo inglês idea, oposto à impression dos
empiristas ingleses, Já não se trata simplesmente de diabruras, mas também de ficções
poéticas ou outras. É a intuitividade não apresentante que delimita o campo. Arriscar-
nos-emos a falar tranquilamente de fantasia, de fantástico, como os gregos? (A grafia
francesa “phantaisie” ou “fantaisie” permanece, então, em aberto.) Para a fenomeno-
logia da lembrança, o que importa é que a nota temporal da retenção pode juntar-se
à fantasia erigida provisoriamente em gênero comum a todas as não-apresentações.
Mas conserva-se o vocabulário da Vorstellung, quando se salienta a intuitividade co-
mum às apresentações e às presentificações no campo de uma lógica fenomenológica
das significações. Então, é unicamente na Phantasie que se devem enxertar as marcas
45 Podemos ler na tradução de Henri Dussort revista por Gérard Granel as Leçons sur la conscience
intime du temps (1905-1928). A partir do original desse texto, R. Bernet editou e prefaciou os textos
complementares das Leçons de 1905 com o título Zur Phiinomenologie des inneren Zeitbewusstseins
(1893-1917), Husserliana X, Hambourg, Meiner, 1985.
66
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temporais da retenção e da reprodução? Sim, quando se enfatiza a não-apresentaçã
Não, quando se enfatiza, no caso da lembrança secundária, a reprodução: então, A
põe-se o parentesco com o Bild que, para além dos exemplos evocados acima, abrange
todo o campo do “representado” (das Abgebildete), ou seja, de uma Presentificação in.
direta apoiada numa coisa, ela própria apresentada. E, quando se enfatiza a “crença
de ser ligada à lembrança” (Seinsglaube an das Erinnerte), a oposição entre lembrança
e fantasia é completa: falta a esta o “como se” presente do passado reproduzido. Em
contrapartida, o parentesco com o “representado” parece mais direto, como ao reco-
nhecermos um ente querido numa foto. O “lembrado” apóia-se então no “representa-
do”. É com esse jogo de afinidades e de repulsões que Husserl lutará continuamente,
restando como único ponto fixo o tema das presentificações intuitivas, com exceção
de seu próprio entrelaçamento com as modalidades conceituais da representação em
geral, tema que abrange apresentações e não-apresentações, portanto, a totalidade das
“apreensões” objetivantes, deixando fora apenas as vivências práticas e afetivas, pre-
sumidamente, é verdade, construídas sobre estas.
Ocamponão pára, assim, ora deampliar-sea todasas Auffassungen (apreensões), ora
de estreitar-se às inumeráveis ramificações das presentificações ou re-(a)presentações.
Impõe-se, então, o jogo entre o lembrado, o fictício (Fiktum) e o representado (Abgebil-
dete), contra o fundo da oposição global à percepção, cujo objeto se apresenta a si
mesmo (Selbsigegeniwiirtige) de forma direta; o representado prevalece sobre o fingido
por seu caráter indireto, pois uma imagem (Bild) física oferece suporte. O corte passa,
então, entre a imagem (Bild) e a coisa (Sache, no sentido de res, pragmata), a coisa em
questão, não a coisa no espaço (Ding).
Ora, se a lembrança é uma imagem nesse sentido, ela comporta uma dimensão
posicional que a aproxima, desse ponto de vista, da percepção. Em outra linguagem,
que eu adoto, falaremos do tendo-sido do passado lembrado, último referente da lem-
brança em ato. Passará, então, para o primeiro plano, do ponto de vista fenomenológi-
co, a divisão entre o irreal e o real (seja ele presente, passado ou futuro). Enquanto a
imaginação pode jogar com entidades fictícias, quando ela não representa o real, mas
se exila dele, a lembrança coloca as coisas do passado; enquanto o representado tem
ainda um pé na apresentação enquanto apresentação indireta, a ficção e o fingido si-
tuam-se radicalmente fora de apresentação. Mas, em razão da diversidade dos pontos
46 Um texto das Husserliana, VIII, Erste Philosophie (1923-1924), texto editado e introduzido por R. Bo-
ehm, Haia, Nijhoff, 1959, conta a angústia de Husserl confrontado com a espantosa imbricação
dos fenômenos considerados: “Aparentemente, a lembrança presentifica, de modo simples, um
passado lembrado, a espera, um futuro esperado, a “representação pictórica” (Abbildung), um ob-
jeto representado, a fantasia, um “fictício” (Fiktum); da mesma forma que a percepção se refere
a um percebido. Mas na verdade não é assim” (op. cit, p. 130; trad. P. Ricoeur). Não é a única vez
que Husserl se acusa de erro. Raymond Kassis, excelente conhecedor do corpus husserliano na
sua íntegra, indica-me as páginas das Husserliana, XXIV, Einleitung in die Logik und Erkenntnistheo-
rie Vorlesungen (1906-1907), texto editado e introduzido por U. Melle, Dordrecht, Boston, Lon-
dres, Nijhoff, 1984, dedicadas à “distinção entre consciência de Phantasie e lembrança primária”
(pp. 255-258) e às “analogias” entre os dois tipos de presentificações. Trata-se sempre de objetos
temporais que implicam uma “extensão temporal”.
eba
DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
Adoto como hipótese de trabalho a concepção bergsoniana da passagem da “lem-
brança pura” à lembrança-imagem. Falo de hipótese de trabalho, não para deixar de
me solidarizar com essa bela análise, mas para marcar, desde o início, minha preo-
cupação em separar, tanto quanto possível, no texto de Matéria e Memória, a descrição
psicológica da tese metafísica (no sentido forte e nobre da palavra) concernente ao
papel conferido ao corpo e ao cérebro e que, consegientemente, afirma a imateriali-
dade da memória. Essa suspensão da tese metafísica equivale a dissociar, na herança
recebida dos gregos, a noção da eikôn da da tupos, da impressão, que lhe foi associada
desde o início. De fato, ambas pertencem ao ponto de vista fenomenológico, com dois
regimes distintos: a eikôn contém em si mesma o outro da afecção original, enquanto a
tupos põe em jogo a causalidade externa da incitação (kinêsis) que dá origem ao cunho
do sinete na cera. Toda a problemática moderna dos “rastros mnésicos” é, de fato, a
herdeira dessa antiga coalizão entre eikôn e tupos. A metafísica de Matéria e Memória se
propõe precisamente a recompor, de maneira sistemática, a relação entre a ação, cujo
centro é o cérebro, e a representação pura que basta a si mesma em virtude da persis-
tência do direito da lembrança das impressões primordiais. É essa relação presumida
que deixo entre parênteses na análise a seguir”.
A distinção que Bergson estabelece entre “lembrança pura” e lembrança-imagem
constitui a radicalização da tese das duas memórias, pela qual inauguramos o esboço
fenomenológico precedente. Portanto, é ela que se encontra, por sua vez, radicalizada
pela tese metafísica sobre a qual está construída Matéria e Memória. É nessa situação
intermediária, quanto à estratégia global da obra, que manteremos a descrição da
passagem da “lembrança pura” à lembrança-imagem.
Admitamos, para pôr em movimento a análise, que exista algo como uma “lem-
brança pura” que ainda não está posta em imagens. Diremos, um pouco mais adiante,
de que maneira é possível falar dela e como é importante poder falar dela de maneira
convincente. Partamos do ponto extremo atingido pela teoria das duas memórias.
“Para evocar o passado sob forma de imagens, é preciso poder abstrair-se da ação
presente, é preciso atribuir valor ao inútil, é preciso poder sonhar. Talvez o homem
seja o único ser capaz de um esforço desse tipo. Ademais, o passado, ao qual assim re-
montamos, é lábil, sempre a ponto de nos escapar, como se aquela memória regressiva
fosse contrariada pela outra memória, mais natural, cujo movimento para a frente nos
leva a agir e a viver” (Bergson, Matitre et Mémoire, p. 228). Nesse estágio da análise,
para falar da “lembrança pura” dispomos somente do exemplo da lição decorada. E
é por uma espécie de passagem ao limite que escrevemos, na esteira de Bergson: “A
lembrança espontânea é, de imediato, perfeita; o tempo nada poderá acrescentar à sua
imagem sem deturpá-la; ela conservará, para a memória, seu lugar e sua data” (op. cit.,
52 Reservo para o capítulo 3 da terceira parte, no âmbito de uma discussão sobre o esquecimento, a
questão do papel do corpo e do cérebro, no ponto de articulação entre uma psicologia no sentido
lato, e uma metafísica concebida fundamentalmente como “metafísica da matéria e baseada na
duração” (F. Worms, Introduction à “Matiêre et Mémoire” de Bergson, Paris, PUF, col. “Les Grands
Livres da philosophie”, 1997).
e 676
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A MEMORIA, À HISTORIA, O ESQUECIMENTO
p. 229). A distinção entre uma “memória que revê” e uma “memória que Tepete”
cit., p. 234) era o fruto de um método de divisão que consiste, em primeiro |
distinguir “duas formas extremas da memória, cada uma encarada no esta.
(op.
Ugar, em
do puro”
ária, como
ibid.). E era no ato do Feconheci-
mento que se operava essa fusão, marcada pelo sentimento de “déja vu”. Logo, é tam.
bém no trabalho da recordação que pode ser reapreendida, em sua origem, a operação
de composição em imagens da “lembrança pura”. Só se pode falar desta como de uma
passagem do virtual ao efetivo, ou ainda como da condensação de uma nebulosa ou
de uma materialização de um fenômeno etéreo. Outras metáforas se apresentam: mo-
vimento do fundo para a superfície, das trevas para a luz, da tensão para o relaxamen-
to, do alto para as camadas mais baixas da vida psíquica. É esse o “próprio movimento
da memória que trabalha” (op. cit. p. 276). Ele traz, de certo modo, a lembrança para
uma área de presença semelhante à da percepção. Mas — e é aqui que alcançamos o
outro lado da dificuldade — não é qualquer tipo de imaginação que é assim mobili-
zada. Ao inverso da função irrealizante que culmina na ficção exilada no que está fora
do texto da realidade inteira, é sua função visualizante, sua maneira de dar a ver, que
é exaltada aqui. Neste ponto, não podemos deixar de evocar o último componente do
muthos que, segundo a Poética de Aristóteles, estrutura a configuração da tragédia e
da epopéia, isto é, a opsis, sobre a qual se diz que consiste em “pôr debaixo dos olhos”,
em mostrar, em deixar ver, É também o que ocorre com a composição em imagens da
(ibid.), depois, em reconstruir a lembrança-imagem como forma intermedi.
“fenômeno misto que resulta de sua coalescência” (
“lembrança pura”: “essencialmente virtual, o passado só pode ser apreendido por nós
como passado quando seguimos e adotamos o movimento pelo qual ele desabrocha
em imagens presentes, que emergem das trevas para a claridade” (op. cit. p. 278). A
força da análise de Bergson está em manter distintas e, ao mesmo tempo, ligadas as
duas extremidades do espectro percorrido. Numa extremidade: “Imaginar não é lem-
brar-se. Uma lembrança, à medida que se atualiza, provavelmente tende a viver numa
imagem; mas a recíproca não é verdadeira, e a imagem pura e simples só me levará
de volta ao passado se eu realmente tiver ido buscá-la no passado, seguindo assim o
progresso contínuo que a trouxe da obscuridade para a luz” (ibid).
Quando seguimos até o fim essa rampa descendente que, da “lembrança pura”,
conduz à lembrança-imagem — e, como veremos, bem além —, assistimos a uma in-
versão completa da função imagificante, que, também ela, desdobra seu espectro des-
de o pólo extremo, que seria a ficção, até o pólo oposto que seria a alucinação.
Era do pólo ficção da imaginação que eu estava tratando em Tempo e Narrativa
quando opunha a narrativa de ficção à narrativa histórica. É em relação ao outro pólo,
O pólo alucinação, que temos de nos situar agora. Do mesmo modo como Bergson
53 Aristóteles, Poética, 1450 a 7-9, faz do “
i , espetáculo”
Tativa trágica. Ele coloca a ordenação (kosmos) exter
dicção (lexis) que diz de sua legibilidade. Retórica, 1
Põe sob os olhos”. Encontrarey
da Tepresentação historiadora
(opsis) uma das partes constitutivas da nar-
ior e visível do poema, da fábula, ao lado da
15,10, 1410 b 33, diz, sobre a metáfora, que ela
mos essa mesma relação entre legibilidade e visibilidade no nível
(segunda parte, cap. 3).
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DA MEMÓRIA E DA REMINISCÊNCIA
aos dois pólos da ficção e da alucinação. Ao
é ' nos dirigirmos para o pólo alucinatório,
trazemos à luz o que constitui,
Para à memória, a cilada do imaginário. De fato, é essa
Para dar conta dessa cilada, pensei que seria apropriado convocar, junto a Berg-
son, outra testemunha, Jean-Paul Sartre em O Imaginário, Esse livro
o caminho dessa virada da problemática d
propósito. Digo livro admirável. De fato,
admirável indica
a memória, embora não seja esse o seu
ele começa por uma defesa de uma fenome-
nologia do irreal, retomando, pela outra vertente, o empreendimento de separação da
imaginação e da memória, que tentamos acima. Como está veementemente afirmado
na conclusão, a despeito da deriva que ressaltaremos: “a tese da consciência imagifi-
cante é radicalmente diferente da tese de uma consciência realizante. Vale dizer que o
tipo de existência do objetoem imagem, enquanto está em imagem, difere, em natureza,
do tipo de existência do objeto apreendido como real. [...] Esse nada essencial do obje-
to em imagem basta para diferenciá-lo dos objetos da percepção” (Sartre, L'Imaginaire,
Pp. 346). Ora, a lembrança está do lado da percepção, quanto à tese de realidade: “existe
[...] uma diferença essencial entre a tese da lembrança e a da imagem. Se me recordo
de um acontecimento de minha vida passada, não o estou imaginando, eu me len-
bro dele, isto é, não o coloco como dado-ausente, mas como dado-presente no passado”
(op. cit. p. 348). É exatamente a interpretação proposta no início deste estudo. Mas
eis agora a reviravolta. Ela se produz no terreno do imaginário. Resulta daquilo que
podemos chamar de a sedução alucinatória do imaginário. É a essa sedução que é
dedicada a quarta parte de O Imaginário sob o título de “A vida imaginária”: “O ato
de imaginação [...] é um ato mágico. É um encantamento destinado a fazer aparecer o
objeto em que estamos pensando, a coisa que desejamos, de modo a podermos tomar
posse dela” (op. cit. p. 239). Esse encantamento equivale a uma anulação da ausência
e da distância. “É uma maneira de encenar a satisfação...” (op. cit. p. 241). O “não estar
ali” (op. cit. pp. 242-243) do objeto imaginado é recoberto pela quase-presença indu-
zida pela operação mágica. A irrealidade se encontra conjurada por essa espécie de
“dança diante do irreal” (op. cit. p. 275). Na verdade, essa anulação estava latente no
“pôr debaixo dos olhos”, em que consiste a composição em imagens, a encenação da
lembrança-imagem. Nesse texto, Sartre não considerou o impacto sobre a teoria da
memória. Mas ele prepara sua compreensão pela descrição que faz do que não tarda
em tornar-se uma “patologia da imaginação” (op. cit. p. 285 e seg.). Esta é centrada na
alucinação e em sua marca distintiva, a obsessão, ou seja, “aquela espécie de vertigem
suscitada em particular pela fuga diante de uma proibição...”. Todo esforço para “não
pensar mais naquilo” transforma-se espontaneamente em “pensamento obsessivo”.
Como, diante desse fenômeno de fascinação pelo objeto proibido, não dar um salto no
54 Jean-Paul Sartre, L'Imaginaire, Paris, Gallimard, 1940; reedição, col. “Folio essais”, 1986. É esta últi-
ma edição que será citada aqui.
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