Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O Andarilho das Estrelas - Jack London (1), Notas de estudo de Física

Obra de Ficção

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 10/02/2017

dilsonei-rigotti-2
dilsonei-rigotti-2 🇧🇷

1 documento

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O Andarilho das Estrelas - Jack London (1) e outras Notas de estudo em PDF para Física, somente na Docsity! EIA Esitado dos Livros Jack London O ANDARILHO DAS ESTRELAS Tradução de Merle Scoss Prefácio de Michel Sokoloff PREFÁCIO DE MICHEL SOKOLOFF Jack London, nascido em 1876, morto em 1916, atravessou a vida como um cometa. Marinheiro, correspondente de guerra, vagabundo, especialista em prospecção, agitador socialista, fazendeiro, ele foi o escritor americano mais conhecido na Europa. As reedições de seus livros se multiplicam, mesmo em nossos dias, na Itália, no Japão, na Rússia e na França, pois sua personalidade marcante toca os homens de nosso tempo nos seus questionamentos mais íntimos e revela esse conflito permanente entre a razão, o pensamento conceitual, de um lado, e o vivido, o sentido, do outro. O que significa essa representação do mundo das idéias criada pela ciência para o homem que vive na sua carne o sofrimento e o enigma de estar no mundo? Numa reação contra sua mãe, espírita e médium bem conhecida, Jack London toma-se decididamente materialista e se engaja, a título pessoal, na luta para melhorar a condição dos oprimidos pelo sistema capitalista. Inscrito no partido socialista, ele pede sua demissão no final de sua vida. E resume sua posição na dedicatória de seu último grande livro, O Andarilho das Estrelas, que endereça a sua mãe: “Minha querida mamãe, aqui está todo o argumento da tua postura segundo a qual apenas o espírito persiste enquanto a matéria perece. Sinto-me bastante culpado de tê-lo escrito, porque não acredito em nada disso. Acredito que o espírito e a matéria estão tão intimamente ligados que ambos desaparecem juntos quando a luz se apaga. Teu filho, afetuosamente, em 21 de outubro de 1915.” E, no entanto, toda a sua obra é habitada pelo mistério da vida que a transpassa. Ele prefigura esta humanidade do século vinte, dividida entre o homem de razão prisioneiro da armadura social e o ser humano que vive o drama de uma vida precária e limitada. Para entrar no mundo de Jack London é preciso vibrar na sua mesma amplitude de onda. É a abertura à vida que permite o encontro com o Outro, você, seu semelhante, e o maior dos estranhos... Essa estranheza de ser outro, Jack London a cultivou em sua obra, quando dizia: “Preferiria ser um soberbo meteoro, cada um de meus átomos irradiando um brilho magnífico a ser um planeta adormecido. A função do homem é a de viver, e não a de existir. Não desperdiçarei meus dias na tentativa de prolongar minha vida, quero queimar todo o meu tempo.” Por qual misterioso jogo de circunstâncias encontrava-me em Marrakesh, no Marrocos, durante o Congresso Internacional sobre o Transe, em companhia de Luis Pellegrini? Estávamos num pequeno restaurante árabe dominante sobre a grande praça que fervilhava de vida intensa e tradicional. Memórias de infância retornam... no mercado iluminado por lampiões a gás, milhares de atores acendem a lâmpada de Aladim... o espírito desceu sobre a vida. Luis começa a falar: que surpreendente personagem saído da Renascença italiana e do sonho veneziano. Ele fala de um livro de Jack London que quer editar no Brasil. Sinto subir em mim o sentimento radiante da minha infância... olho para Luis e digo a ele: “Com certeza é O Andarilho das Estrelas.” “Sim” responde Luis, “como você adivinhou?” Não, não se trata de adivinhação, mas simplesmente do reencontro entre Um e o Outro, este ser conjunto no calor de um olhar que vê a invisível Presença daquilo que não se diz: a consciência me leva ao mais profundo de mim mesmo. Once upon a time... (era uma vez...) Saint-Jean-Cap-Ferrat, em pleno verão. Um bebê acorda, abre seus olhos e sente-se invadido por uma luz que o inunda. Ele vê o sol aparecer e fundir-se nele, sobre um fundo de céu azul. Pela primeira vez, ele tem consciência de ser ao mesmo tempo sol, luz, céu, numa alegre evidência de si mesmo. Foi assim que encontrei, pela primeira vez, a criança solar. Essa cena primitiva ficara impressa na minha realidade de ser, como o reconhecimento de uma segurança interior, vivida pela primeira vez de modo consciente. Eu tinha oito meses quando meus pais mudaram de casa, o que me permitiu situar esta experiência no tempo. Luis me observa. Saberá ele ou não que o espaço da criança solar, este achado essencial do meu ser no mundo, é a pequena morte descrita por Jack London, tal como a carrego preciosamente em mim? A lâmpada de Aladim iluminou-se entre nós; tenho de esclarecer isso através de algumas palavras, traços de um passado que pede para se incorporar lá, agora, diante da Grande Praça de Marrakesh, o verbo toma corpo... Acontece meu segundo encontro com a criança solar. Eu tinha sete anos, a idade da razão despontava! No meu foro íntimo inscreveu-se o meu encontro com aquele que chamo “o Antiquário”. Eu vivia em Menton, uma pequena cidade à beira do Mediterrâneo. Num canto da rua havia uma loja mágica que me fazia sonhar. O dono do lugar era um homem velho, de barbas brancas, que portava um pequeno boné para dissimular a calvície. Essa loja se chamava “Antigüidades”. Quando eu não tinha aulas, gostava de parar diante dessa loja no caminho que descia para o mar, aquele mar onde, cada vez que mergulhava, reencontrava a criança solar como anos antes a vira no meu berço. Lançava olhares furtivos sobre todos aqueles objetos bizarros que parecia conhecer desde sempre, mas que eu não ousava ainda olhar de frente, como se uma certa timidez ainda me impedisse de as reencontrar. Era um lugar mágico do qual eu me tornava o mágico. Um dia, ao observar a vitrine, vi, entre outros livros, um livro. Foi bem depois que vi o título aparecer na minha tela mental — O Andarilho das Estrelas, de Jack London —, pois naquele momento, absorvido pela presença desse livro, mal pude ouvir uma voz ao mesmo tempo rude e carinhosa atrás de mim que me dizia: “'Então, garoto... o que é que tanto te atrai...?” Tomei o livro: ele era para mim, e apenas a mim dizia respeito. Mas o livro possuía tanta força que me caiu das mãos. Olhei para trás, um tanto inquieto com a minha falta de jeito, e percebi vagamente, como num nevoeiro, o velho antiquário barbudo, com seu boné, que me observava com muita simpatia: “É esse livro que te atrai, garoto...? Você sabe, os livros, quando a gente os encontra, não nos abandonam nunca mais. Fique com esse livro. Dou para você. É um presente. E cada vez que você sentir vontade, pode vir aqui no meu reino, onde você descobrirá todos os objetos que testemunham a tua presença no mundo.” Naquele instante um pacto se estabeleceu entre mim e aquele velho que chamei “o Antiquário”. E cada dia em que sentia o coração pesado, ia naquela loja e fazia meus todos aqueles objetos vindos de longe. Durante todo o tempo, quando eu me prolongava através daqueles objetos, como num ritual preestabelecido entre nós, o velho sentava-se numa poltrona de estilo colonial. O silêncio tomava-se mais e mais denso com as nossas presenças, e eu sentia crescer em mim uma sensação de bem-estar, de ressonância de um com o outro. Ao final de um tempo, eu estava pacificado, feliz, eu e o antiquário, ambos presentes numa mesma qualidade de silêncio. Ele jamais interferia com uma palavra qualquer que pudesse quebrar a magia do indizível. Lembro-me com precisão da cena que segue... O mar estava a 500 metros do antiquário. A margem da água havia uma gruta, iluminada do alto por uma fenda que deixava passar a luz. Eu me escondia lá para escutar o murmúrio das ondas. Naquele dia, o barulho do mar era muito forte... eu começava a leitura do livro e, enquanto todo o meu ser se prolongava até o próprio espírito que animava esse livro, eu me identifiquei com seu herói aprisionado por toda a vida por um crime passional. Esse homem, vítima de um de seus companheiros de cativeiro, estava encerrado dentro de uma pequena cela. A cada dia, o diretor da prisão vinha vesti-lo com uma camisa-de-força cada vez mais apertada, para obrigar o protagonista da história a admitir um crime que ele teria cometido contra a instituição e que só tinha realidade no seu próprio delírio. Um dia, quando o diretor apertava mais e mais a camisa-de-força, esse homem sentiu seu corpo Continuo, portanto. Aos dez anos, novamente, o estranho cruzou meu caminho. Depois de um período em que por dois anos só cursei a escola da vagabundagem, pedi a meus pais para começara trabalhar. Chegara para mim o tempo de enfrentar a armadura social. Tempos mais tarde, minha mãe encontrou um novo companheiro, e eu, enfim, encontrei um pai, quer dizer, alguém que tinha autoridade para sê-lo. Por três anos pude desfrutar da sua presença, e então os fados o levaram para o Leto, o mundo do espírito. Deus meu! O quanto chorei! Como é estranha a presença da ausência! Três meses após a sua morte, eu desperto; são quatro horas da madrugada e seu fantasma está ali, a poucos metros do meu leito, vestido com uma longa camisola de dormir feita de nuvens, como um holograma vaporoso, imóvel, que lenta- mente se dissolve. Às oito horas da manhã, não percebo mais que três pequenos pontos brancos no lugar dos olhos e do coração. Mas onde eu estava durante todo esse tempo? Sou inca-paz de me recordar, salvo que escondia a cabeça sob os lençóis e depois olhava de novo, e ele estava sempre lá, indiscutivelmente real para mim. Foi depois dessa aparição que tive a convicção de que aquele a quem chamava “o tio Jean” iria me acompanhar na viagem iniciática da existência. Os umbandistas diriam que eu tinha encontrado o meu “preto-velho”. Tudo a seguir correu muito depressa — meu pai continuou a beber para esquecer, minha mãe encontrou um outro protetor, e eu me perdi, arrastado pelo turbilhão da guerra. A lenta descida aos infernos começara: 1939, 40, 41, 42, minha prisão e condenação por um tribunal especial de guerra alemão a 12 anos de encarceramento quando eu tinha apenas 18 anos; e depois aconteceu minha fuga, e minha luta contra o nazismo na Alemanha. Uma noite, meus companheiros colocavam explosivos plásticos numa ferrovia enquanto eu estava de tocaia; ouvi alguém que engatilhava uma arma para atirar. Volto-me naquela direção e atiro num soldado alemão; corro e percebo que a arma dele estava emperrada. Tomara que eu não o tenha matado! Não, eu não sou um matador, eu não tenho nada a ver com esse pesadelo. E preciso sair desse turbilhão absurdo e insensato. Fujo. Fui preso na fronteira alemã, enviado a Berlim e torturado pela Gestapo. Foi nesse exato momento que vasculhei atrás do espelho, no intemporal. Eu era ao mesmo tempo a criança solar no seu berço, o andarilho das estrelas na sua gruta, o jovem adolescente vibrando com seu pai surreal... todos esses espaços-tempos estavam ao redor de mim como um gigantesco caleidoscópio. Segundo a velocidade com a qual eu me deslocava sobre esse eixo vertical ao centro da esfera, as imagens rodavam num turbilhão de velocidade maior ou menor. Em certos momentos, a velocidade era tão grande que simplesmente não mais existiam imagens. Na realidade, é impossível descrever; é como um perfume que vem de longe e, ao mesmo tempo, eu era esse longe, observando meu corpo torturado e ouvindo o oficial alemão dizer: “Das ist zweck loss, in diese zustand er wird nicht mehr sprechen” (No estado em que ele se encontra, não dirá mais nada). Era um paradoxo bem real. O andarilho das estrelas e a criança solar que eu havia imaginado estavam fora do alcance desse universo carcerário que outros homens haviam criado em seu delírio. Jack, um irmão no intemporal, tinha me oferecido o seu livro como prefácio à minha vida; o tio Jean me assinalara esse mesmo espaço imaginário e eu fora maravilhado sem nada compreender. E se esse mundo de antimatéria, surgindo às vezes na minha realidade material, fosse justamente aquilo que a ciência chama de acaso, essa misteriosa carícia que escapa às leis imutáveis da razão, então tudo se tomaria possível, mesmo o fantasma coerente, aquilo que a ciência chama de milagre sem nele acreditar. E se os homens, um dia, ousassem viver assim, passando da causalidade á finalidade de si próprios? Como no tempo dos gregos, essa mudança de paradigma passa pela descida aos infernos e a necessidade de cortar a cabeça de Górgona para descobrir desse modo o caminho da liberdade. Por que o preço a pagar por esta liberdade é tão caro no mundo dos homens? Como o herói de Jack London, estou vivendo a pequena morte, observo meu corpo entregue à tortura e, subitamente, uma luz extraordinária me invade e desmaio numa claridade infinita. Novamente a criança solar dança com o mar e o céu da sua infância. 1943, 1944, como Perseu, a Górgona me agarra por todos os lados e, como refúgio, resta-me apenas o espelho da criança solar onde são projetados meus encontros com o futuro. Cada passagem do meu devir tinha o poder de aniquilar as trevas do grande encerramento nazista. Vinte e oito de abril de 1945. Estou paralisado sobre um colchão no salão dos moribundos do campo da morte. Os alemães me quebraram a coluna vertebral, enquanto lá fora tudo se move. Procuro me erguer na medida do possível e vejo através das grades, os soldados russos uniformizados, no meio de uma multidão de mãos estendidas para a vida que re-nasce. Meus companheiros de miséria desfilam, cuidam de mim, e, levada pela solidariedade humana, a criança solar desperta em mim. Sim, danço novamente; apesar do sofrimento e da paralisia das minhas pernas, eu sou a certeza viva de que tudo aquilo que existe pode ser transformado. Agora é a noite da liberação, sinto vibrar a presença da vida que renasce em toda a Europa. A criança solar está lá agora, e isso significa alguma coisa a mais. A esquerda do meu leito, uma freira está sentada, um véu branco cobre o seu rosto, eu lhe faço perguntas, ela responde e depois desaparece. Alucino? Não, ela está lá de novo, e depois novamente desaparece. Por um bom tempo jogamos esconde-esconde, não me lembro de nada e no entanto ela respondeu a todas as minhas perguntas. A única coisa de que me lembro é desta mensagem: “Agora tu és livre para dispor de ti mesmo; você ousou, você está livre para descobrir o universal”. Foi nesse momento que compreendi que tio Jean partira na direção do seu devir. Eu iria renascer e descobrir o mundo como no primeiro dia da criação... Neste 22 de fevereiro de 1993 completei 69 anos e sinto a mesma força que me impulsiona a descobrir a estranheza do Outro, meu semelhante. Retorna-me à memória a explosão de riso interior quando, por ocasião do meu retomo da deportação, em 1945, o médico-chefe me anunciou que eu ficaria para-lítico por toda a vida. E me vi projetado no meu futuro, respondendo-lhe: “Doutor, estamos juntos no momento da festa de Natal de 1949 e o senhor pode ver que eu caminho e danço com o senhor.” Depois aparece na minha memória minha experiência em Lourdes, em 1947, ao retornar da peregrinação do rosário. Aquele despertar na estação ferroviária de Nice, quando minhas pernas estão direitas, todas as análises revelam-se normais, enquanto oito dias antes elas estavam dobradas a 90 graus e as análises clínicas eram catastróficas. No caminho da liberdade encontrei seres humanos que me acompanharam e que transformaram aquele deserto do Éden em Paraíso do desejo satisfeito. A criança solar ainda e sempre dança em mim, com meus companheiros de viagem e meus velhos amigos de outrora, o andarilho das estrelas, o Antiquário, o tio Jean, a gruta da minha infância, o mar e minha mãe no meio das árvores. Jack London, como eu, conheceu a miséria de uma infância solitária passada num mundo hostil, e um ponto nos reuniu: nós dois ousamos, com toda nossa força vital, assumir o risco de modificar a implacável realidade a partir da nossa subjetividade, a mais íntima e a mais secreta. Por que e como, através do meu reencontro com o Brasil, o Templo Guaracy de São Paulo e Luis Pellegrini, meti-me a vagabundear com vocês no coração da memória, traçando de novo aqueles instantes de fulgor onde passado e futuro fundem-se numa mesma luz? Viver e deixar viver é a expressão mais direta da liberdade face às trevas que nos escondem o dia e a noite do mundo. Estas poucas palavras surgem de algo distante que vocês me permitiram evocar, e por isso eu lhes agradeço da mesma forma que a meu companheiro de sempre, Jack London. pelos ares. Sim. E suportávamos o tormento e a tortura dos assustadores pesadelos com coisas vagas e monstruosas. Nós, bebês recém-nascidos, sem experiência, nascemos com medo, com a memória do medo; e memória é experiência. Quanto a mim, mal comecei a falar — um período tão frágil da minha vida que eu ainda emitia os ruídos da fome e do sono — eu já sabia que tinha sido um andarilho das estrelas. Sim, eu, cujos lábios nunca haviam formado a palavra “rei”, eu lembrava ter sido uma vez o filho de um rei. E lembrava ter sido uma vez um escravo e um filho de escravo, com um anel de ferro em volta do pescoço. E ainda mais. Quanto eu tinha três, quatro, cinco anos de idade, eu ainda não era eu. Eu era um mero vir a ser, um fluxo de espírito ainda cristalizado no molde daquela carne, daquele tempo, daquele lugar. Naquela época, tudo o que eu tinha sido em dez mil vidas anteriores lutava dentro de mim e perturbava o fluxo do meu ser, no esforço de incorporar-se a mim e tomar-se eu. Parece tolo, não é? Mas lembre-se, leitor que espero ter ao meu lado na longa viagem pelo tempo e espaço, lembre-se, por favor, meu leitor, que eu pensei muito sobre essas coisas; que passei longas e sombrias noites de sofrimento, que duraram anos, a sós com meus muitos eus, consultando e contemplando meus muitos eus. Passei pelos infernos de todas as existências para trazer-lhe a mensagem que você compartilhará comigo, na página impressa, por um par de horas. Repito que quando eu tinha três, quatro, cinco anos, eu ainda não era eu. Eu estava apenas me tomando, enquanto tomava forma no molde do meu corpo e todo aquele passado poderoso e indestrutível se forjava na mistura do meu ser para determinar qual a forma que tomaria meu vir a ser. Não era minha a voz que gritava no meio da noite com medo de coisas conhecidas — que eu, na verdade, não conhecia e nem poderia conhecer. Não eram minhas as raivas infantis, os amores e as risadas. Outras vozes gritavam através da minha voz, as vozes de homens e mulheres de tempos passados, de todas as obscuras hostes de antepassados. E o rosnar da minha raiva se misturava ao rosnar de feras mais velhas que as montanhas; os gritos loucos da minha histeria infantil, com todo o sangue de sua fúria, harmonizavam-se com os gritos desumanos das bestas pré- adâmicas de eras pré-geológicas. E eis que revelei meu segredo: a fúria sanguinária! Ela me arruinou nesta vida, nesta minha vida presente. Por causa dela, daqui a poucas semanas serei levado desta cela para um estrado com um alçapão e serei pendurado pelo pescoço até morrer. A fúria sanguinária foi a minha ruína em todas as minhas vidas; a fúria sanguinária é a herança desastrosa e fatídica que recebi dos tempos das coisas viscosas antes da aurora do mundo. Já é hora de eu me apresentar. Não sou um louco nem um lunático. Quero que você saiba disso para que acredite nas coisas que vou contar. Meu nome é Darrell Standing. Algum leitor talvez me identifique de imediato. Mas para a maioria que me desconhece, deixe-me contar um pouco sobre mim mesmo. Há oito anos, eu era professor de agronomia na Escola de Agricultura da Universidade da Califórnia. Há oito anos, a pacata cidadezinha universitária de Berkeley foi abalada pelo assassinato do Professor Haskell num dos laboratórios da Mineração. Darrell Standing foi o assassino. Eu sou Darrell Standing. Fui apanhado em flagrante. Não vou discutir aqui os detalhes desse caso com o Professor Haskell. Não passou, em absoluto, de um assunto particular. O fato é que, numa onda de raiva, obcecado pela fatídica fúria sanguinária que me amaldiçoa ao longo dos tempos, matei meu colega. Os registros do tribunal mostram que eu o matei; e eu concordo com os registros do tribunal. Não, não serei enforcado por esse assassinato; recebi como punição a sentença de prisão perpétua. Eu tinha trinta e seis anos na época; tenho, agora, quarenta e quatro. Passei esses oito anos na Prisão Estadual da Califórnia, San Quentin. Cinco desses anos, eu os passei na escuridão. Confinamento solitário, é como eles chamam. Os homens que o sofreram chamam-no de morte em vida. Mas, nesses cinco anos de morte em vida, eu consegui alcançar uma liberdade que poucos homens já conheceram. Mesmo sendo o mais confinado dos prisioneiros, eu não apenas percorri o mundo, eu também percorri o tempo. Os homens que me emparedaram por tantos anos me deram, contra sua vontade, a largueza dos séculos. Na verdade, graças a Ed Morrell, eu tive cinco anos de peregrinação pelas estrelas. Mas Ed Morrell é uma outra história; falarei dele mais tarde. Tenho tanto a dizer que mal sei por onde começar. Bem, pelo começo. Nasci na zona rural de Minnesota. Minha mãe era filha de um imigrante sueco. Seu nome era Hilda Tonnesson. Meu pai era Chauncey Standing, de velha estirpe americana. Ele descendia de Alfred Standing, um servo — ou escravo, tanto faz — degredado da Inglaterra para as plantações da Virgínia em dias que já pertenciam ao passado quando o jovem George Washington pôs-se a explorar as vastidões da Pensilvânia. Um filho de Alfred Standing lutou na Guerra da Revolução; um neto, na guerra de 1812. Desde então, não houve uma guerra em que os Standing não estivessem representados. Eu, o último dos Standing, que logo vou morrer sem deixar descendência, lutei como soldado raso nas Filipinas; e para poder ir à guerra, abandonei minha promissora cátedra na Universidade de Nebraska. Santo Deus, quando me demiti eu estava para ser nomeado diretor da Escola de Agricultura daquela universidade — eu, o andarilho das estrelas, o aventureiro sanguinário, o Caim vagabundo dos séculos, o sacerdote guerreiro de tempos remotos, o poeta sonhador de eras esquecidas e não registradas na história humana do homem! E aqui estou, com as mãos tintas de sangue, no Corredor da Morte da Prisão Estadual de Folsom, esperando o dia decretado pela máquina do Estado para que os servidores do Estado me levem para aquilo que eles acreditam ser as trevas — as trevas que eles temem; as trevas que lhes despertam fantasias de medo e superstição; as trevas que os arrastam, balbuciantes e soluçantes, aos altares dos deuses antropomórficos criados pelo medo. Não, nunca serei diretor de nenhuma escola de agricultura. E eu conheço agricultura. Era a minha profissão. Nasci para ela, fui educado para ela, treinado nela; e era um mestre dela. Era o meu dom. Posso escolher a olho nu qual a vaca que tem a mais alta porcentagem de gordura no leite; os testes Babcock apenas confirmarão, no laboratório, a sabedoria do meu olho. Não preciso examinar o solo, basta-me olhar a paisagem para avaliar as virtudes e os defeitos do solo. Não preciso de papel tornassol para determinar a acidez ou alcalinidade de um solo. Repito, a administração agrícola em seus mais altos termos científicos era o meu dom... e é o meu dom. E no entanto o Estado, que inclui todos os cidadãos do Estado, acredita que pode lançar nas trevas finais toda essa minha sabedoria através de uma corda em volta do meu pescoço e do solavanco abrupto da gravidade — essa minha sabedoria que foi incubada ao longo de milênios e que já estava bem urdida antes mesmo que os campos de Tróia servissem de pastagem aos rebanhos de pastores nômades! Milho? Quem mais conhece milho? Veja minha demonstração em Wistar: através dela aumentei em meio milhão de dólares a produtividade anual do milho em cada condado de Iowa. Já faz parte da história. Muitos fazendeiros que hoje andam de carro sabem quem lhes possibilitou ter aquele carro. Muitas meninas em flor e muitos rapazinhos aplicados, debruçados sobre seus livros escolares, mal imaginam que fui eu, com minha demonstração do milho em Wistar, quem lhes possibilitou acesso à educação superior. E a administração das fazendas! Eu conheço o desperdício do movimento supérfluo sem precisar estudar registros detalhados, seja de uma fazenda ou de um peão, seja de um projeto de construção ou da programação do trabalho agrícola. Veja meu manual, veja meus gráficos sobre o assunto. Não tenho a menor dúvida de que, neste exato momento, cem mil fazendeiros estão laboriosamente estudando o meu manual antes de darem a última cachimbada e irem para a cama. Mas eu fui muito além das minhas tabelas: bastava-me um simples olhar a um homem para conhecer sua predisposição, sua coordenação e seu índice de desperdício de movimentos. Agora preciso encerrar este primeiro capítulo da minha narrativa. Já são nove horas; no Corredor da Morte, isso significa luzes apagadas. Já ouço os passos do guarda, com suas macias solas de borracha, que vem me censurar por ainda escrivaninha, que lutei a Guerra Hispano-Americana. Portanto, não foi por ser um lutador, mas por ser um pensador que me rebelei contra o desperdício de movimentos nas salas de fiação e fui pressionado pelos guardas a me tomar um “incorrigível”. Qualquer coisa que acontecia, o punido era eu. Como eu disse ao Diretor Atherton quando minha incorrigibilidade tornou-se tão notória que ele me chamou ao seu escritório para discutir o assunto comigo; como lhe disse, então: — Ora, meu caro Diretor, é um absurdo o senhor pensar que esses guardas esganadores de rato podem arrancar do meu cérebro as coisas que estão claras e definidas no meu cérebro. A organização desta prisão é estúpida. O senhor é um político. O senhor soube tramar intrigas com os cavalheiros de São Francisco, soube tecer uma rede de influências para chegar a esse cargo que ocupa... mas o senhor não sabe fiar juta. Suas salas de fiação estão 50 anos atrasadas... Mas por que continuar o sermão? Pois foi um sermão. Mostrei-lhe o tolo que ele era e, como resultado, ele decidiu que eu era um incorrigível irrecuperável. Dê má fama a um cachorro e... — você conhece o provérbio. Muito bem. O Diretor Atherton sancionou minha má fama. Ficou fácil jogar a culpa de tudo em cima de mim. Eu levava a culpa das faltas dos outros presidiários e pagava por elas no calabouço a pão e água ou sendo pendurado pelos polegares por longas horas — e cada uma dessas horas era mais longa do que a lembrança de qualquer vida que eu tivesse vivido. Homens inteligentes são cruéis. Homens estúpidos são monstruosamente cruéis. Os guardas e todos os homens acima de mim, incluindo o Diretor, eram monstros estúpidos. Ouça e você saberá o que eles me fizeram. Havia na prisão um poeta, um prisioneiro, um poeta degenerado de queixo fraco e cabeça chata. Era um falsário. Um covarde. Um alcagüete. Um dedo-duro — estranhas palavras para um professor de agronomia usar num livro, mas um professor de agronomia pode aprender estranhas palavras quando é confinado numa prisão pelo resto de sua vida natural. O nome do poeta-falsário era Cecil Winwood. Ele tivera condenações anteriores mas, por ser um covarde cachorro choramingão, sua última sentença foi de apenas sete anos. Sua pena poderia ser reduzida por bom comportamento. Minha pena era perpétua. E mesmo assim esse miserável degenerado, para ganhar alguns míseros anos de liberdade, conseguiu acrescentar uma parcela de eternidade à minha pena de toda a vida. Vou contar o que aconteceu do fim para o começo, pois só fiquei sabendo de tudo bem mais tarde. Esse Cecil Winwood, para ganhar os favores do Capitão da Guarda — e, em decorrência, do Diretor, da Junta Diretora da Prisão, da Junta de Apelação e do Governador da Califórnia — tramou uma fuga da prisão. Repare agora em três pontos: a) Cecil Winwood era tão odiado pelos outros prisioneiros que eles não lhe permitiriam sequer apostar cem gramas de tabaco Bull Durham numa corrida de percevejos — e olhe que corrida de percevejos era um grande esporte entre os presos; b) eu era o cão que tinha má fama; c) para sua trama, Cecil precisava dos cães com má fama, os condenados à prisão perpétua, os desesperados, os incorrigíveis. Mas os condenados à prisão perpétua odiavam Cecil Winwood, e quando ele os abordou com seu plano de uma fuga em massa, riram dele e o repeliram amaldiçoando o dedo-duro que ele era. Mas no fim ele os enganou, quarenta dos mais empedernidos homens da penitenciária. Ele os abordou outra e outra vez. Falou do poder que tinha na prisão por gozar da confiança do Diretor e administrar a enfermaria. — Prova isso pra gente — disse Long Bill Hodge, um montanhês cumprindo prisão perpétua por assalto a trem e cujo único pensamento era escapar para matar o comparsa que o tinha traído. Cecil Winwood aceitou o teste. Ele afirmava que poderia drogar os guardas na noite da fuga. — Falar é fácil — disse Long Bill Hodge. — O que a gente quer é prova. Você dopa um guarda essa noite. O Barnum. Ele não presta. Ele bateu no coitado do Chink ontem no Hospício e nem estava de serviço. Ele vai estar de guarda essa noite. Você dopa ele hoje e faz ele perder o emprego. Prova pra gente, que daí a gente trata o negócio com você. Tudo isso Long Bill me contou mais tarde, no calabouço. Cecil Winwood hesitou diante da urgência da demonstração. Reclamou que precisava de tempo para roubar a droga da enfermaria. Eles lhe concederam tempo e, uma semana mais tarde, ele anunciou que estava pronto. Quarenta homens endurecidos, condenados à prisão perpétua, esperaram para ver se o guarda Barnum adormecia durante seu turno. E Barnum adormeceu. Foi flagrado dormindo e demitido por dormir em serviço. Isso, é claro, convenceu os quarenta condenados. Mas ainda era preciso convencer o Capitão da Guarda. Cecil Winwood relatava-lhe, diariamente, o andamento do plano de fuga — um plano totalmente criado e montado na sua própria imaginação. O Capitão da Guarda exigiu provas. Winwood deu-lhe as provas; eu só vim a conhecer os detalhes um ano mais tarde, pois os segredos das intrigas da prisão vazam muito devagar. Winwood disse ao Capitão da Guarda que os quarenta homens envolvidos na fuga, que depositavam confiança nele, já detinham um tal poder dentro da prisão que haviam subornado um dos guardas para lhes contrabandear pistolas automáticas. — Quero provas — exigiu, certamente, o Capitão da Guarda. E o poeta-falsário deu-lhe a prova. Na padaria, o trabalho noturno era coisa normal. Um prisioneiro, padeiro de profissão, estava no primeiro turno da noite. Era um alcagüete do Capitão da Guarda; e Winwood sabia disso. — Essa noite — disse Winwood ao Capitão da Guarda —Summerface vai trazer uma dúzia de pistolas 44 automáticas. Na próxima folga ele traz a munição. Hoje ele vai me entregar as automáticas na padaria. O senhor tem um homem de confiança lá dentro, não tem? Ele conta tudo pro senhor amanhã. O guarda Summerface era um roceiro grandalhão, vindo do Condado de Humboldt. Não passava de um pobre-diabo de mente simples e natureza confiante, que gostava de ganhar um níquel honesto contrabandeando tabaco para os prisioneiros. Naquela noite, voltando da folga em São Francisco, ele trouxe sete quilos de tabaco de primeira qualidade. Ele já tinha isso feito antes e geralmente entregava o fumo a Cecil Winwood. E foi assim que naquela noite Summerface, sem saber de nada, entregou o tabaco a Winwood na padaria. Era um pacote grande e sólido, envolto em papel de embrulho, de inocente tabaco. O padeiro dedo-duro, escondido, viu o pacote ser entregue a Winwood; e foi isso que ele relatou ao Capitão da Guarda na manhã seguinte. Mas a imaginação demasiado viva do poeta-falsário foi longe demais. Ele cometeu um erro que me custou cinco anos de confinamento solitário e me colocou nessa cela da morte onde ora escrevo. E o tempo todo eu não sabia de nada. Eu nem sequer sabia da fuga que ele induziu os quarenta condenados a planejar. Eu não sabia de nada, absolutamente nada. E os outros, pouco sabiam. Os quarenta condenados não sabiam que ele os estava traindo. O Capitão da Guarda não sabia que estava tomando parte numa trama forjada. Summerface era o mais inocente de todos. Quando muito, sua consciência poderia acusá-lo de ter contrabandeado um pouco de inocente tabaco. E o erro estúpido, o erro tolo e melodramático de Cecil Winwood. Na manhã seguinte, quando se encontrou com o Capitão da Guarda, ele estava triunfante. Sua imaginação fervilhava. — E, a muamba chegou, do jeito que você disse — observou o Capitão da Guarda. — E bastante que dá pra mandar pelos ares metade da prisão — confirmou Winwood. — Bastante o quê? — perguntou o Capitão da Guarda. — Ora, dinamite e detonadores — cacarejou o idiota do Winwood. — Quinze quilos de dinamite. O padeiro viu o Summerface me entregar. O Capitão da Guarda deve ter quase morrido de susto. Posso até compreender CAPITULO 3 Passei todo aquele dia no calabouço espremendo meu cérebro em busca de uma razão para esse novo e inexplicável castigo. Tudo o que eu podia concluir era que algum dedo-duro tinha jogado em mim a culpa de alguma infração, para cair nas boas graças dos guardas. Enquanto isso, um nervoso Capitão Jamie preparava-se para a noite e Winwood avisava os quarenta condenados para ficarem prontos para a fuga. E duas horas depois da meia-noite todos os guardas da prisão estavam de prontidão, incluindo o pessoal do turno do dia (que deveria estar dormindo). Quando bateram as duas horas, eles invadiram as celas ocupadas pelos quarenta. A invasão foi simultânea. As celas foram escancaradas ao mesmo tempo e, sem exceção, os homens indicados por Winwood foram encontrados fora de seus beliches, completamente vestidos, acocorados atrás das portas. É claro que essa foi a comprovação absoluta da trama de mentiras que o poeta-falsário tinha impingido ao Capitão Jamie. Os quarenta condenados foram pegos na mais flagrante prontidão para a fuga. E o que aconteceu quando eles todos confirmaram que a fuga tinha sido planejada por Winwood? A Junta Diretora da Prisão acreditou, por unanumdade, que os quarenta homens estavam mentindo para se salvar. A Junta de Apelação também acreditou: antes de se passarem três meses, Cecil Winwood, falsário e poeta, o mais desprezível dos homens, foi indultado. Ah, a prisão — ou “a gaiola”, na gíria dos condenados — é uma escola de treinamento filosófico. Nenhum prisioneiro consegue sobreviver a anos de prisão sem que suas mais caras ilusões e suas mais preciosas especulações metafísicas se esfacelem. A verdade sempre aparece, é o que nos ensinam; o crime não compensa. Bem, esta é uma demonstração de que não é sempre que o crime não compensa. O Capitão da Guarda, o Diretor Atherton, a Junta Diretora da Prisão, todos eles ainda acreditam até hoje na existência daquela dinamite que nunca existiu exceto no cérebro traiçoeiro e fantasioso do degenerado falsário e poeta Cecil Winwood. E Cecil Winwood ainda vive, enquanto eu, o mais inocente de todos os homens envolvidos naquele caso, vou para a forca dentro de poucas semanas. E agora vou contar como os quarenta condenados quebraram o silêncio dos calabouços. Eu estava dormindo quando a porta do corredor abriu-se com estrondo e me acordou. “Algum pobre-diabo”, foi o que pensei; e meu pensamento seguinte foi que o tal pobre-diabo deveria estar passando por um mau momento, pois ouvi o arrastar de pés, o impacto surdo de golpes na carne, os gritos de dor, os palavrões e o som de corpos sendo arrastados. É claro que cada um daqueles homens foi arrastado à força por todo o caminho. Uma após outra abriam-se as portas dos calabouços e, um após outro, os corpos eram empurrados, jogados ou arrastados para dentro. E mais grupos de guardas continuavam a chegar com mais prisioneiros espancados que continuavam a ser espancados, e mais portas de calabouços se abriam para receber as carcaças ensangüentadas de homens culpados de ansiar pela liberdade. Sim, quando penso nisso, um homem precisa ser um grande filósofo para sobreviver por anos a fio ao impacto contínuo de tais experiências brutais. Eu sou um filósofo. Agüentei oito anos desse tormento e agora, por fim, não conseguindo livrar-se de mim por outros meios, eles invocaram a máquina do Estado para pôr uma corda em volta do meu pescoço e fazer o peso do meu corpo cortar minha respiração. Ah, eu sei que os especialistas sustentam a abalizada opinião de que a queda pelo alçapão quebra o pescoço da vítima. E as vítimas, como o viajante de Shakespeare, nunca voltam para afirmar o contrário. Mas nós que vivemos na prisão ouvimos falar de muitos casos, murmurados nas criptas da prisão, em que o pescoço da vítima não estava quebrado. É engraçado, isso de enforcar um homem. Eu nunca assisti a um enforcamento, mas algumas testemunhas oculares contaram-me os detalhes de uma dúzia de enforcamentos e eu sei, portanto, o que acontecerá comigo. De pé sobre o alçapão, pernas amarradas, braços amarrados, o nó no pescoço, o capuz preto na cabeça, eles me farão cair até que o ímpeto do meu peso em queda livre seja abruptamente detido pelo retesamento da corda. Então os médicos se agruparão à minha volta e farão rodízio sobre um banquinho, com seus braços passados ao redor do meu corpo para impedir que eu balance como um pêndulo e a orelha colada de encontro ao meu peito para contar as batidas do meu coração, as batidas que irão aos poucos se apagando. Às vezes passam-se 20 minutos, depois que o alçapão se abre, até que o coração pare de bater. Ah, acredite em mim, eles ficam cientificamente certos de que um homem está morto, depois que o penduram numa corda. Vou me desviar da minha narrativa para fazer uma ou duas perguntas à sociedade. Eu tenho o direito de me desviar e de perguntar, porque eles vão me levar e fazer isso comigo muito em breve. Se o pescoço da vítima quebra por causa do modo (pretensamente inteligente) como são feitos o nó e o laço; se o pescoço da vítima quebra por causa do cálculo (pretensamente inteligente) entre o peso de seu corpo e o comprimento da corda — então por que eles amarram os braços da vítima? A sociedade, como um todo, é incapaz de dar uma resposta a essa pergunta. Mas eu conheço a resposta; e também a conhece qualquer carrasco amador que já tenha participado de um linchamento e visto a vítima levantar as mãos, agarrar a corda e afrouxar o laço em volta do pescoço para poder respirar. E quero fazer outra pergunta ao bom e pacato membro da sociedade, cuja alma nunca se desgarrou nos infernos sanguinários: por que eles cobrem a cabeça e o rosto da vítima com um capuz preto antes de fazê-la cair pelo alçapão? Lembre- se, por favor, de que muito em breve eles colocarão o capuz preto sobre a minha cabeça. Tenho, portanto, o direito de perguntar. Seus carrascos, meu bom cidadão, será que esses seus carrascos têm medo de olhar a face horrorosa do horror que eles perpetram por você, por ordem sua? Lembre-se, por favor, de que eu não estou fazendo essa pergunta no século doze depois de Cristo, nem na época de Cristo, nem milhares de anos antes de Cristo. Eu, que serei enforcado neste ano de 1913 — mil novecentos e treze anos depois de Cristo — faço essa pergunta a você, que se diz seguidor de Cristo, a você, cujos carrascos irão me levar e esconder meu rosto sob um pano negro porque não se atrevem a olhar o horror que fazem a mim enquanto ainda estou vivo. E agora, de volta à situação nos calabouços. Quando o último guarda saiu e a porta externa se fechou, todos os quarenta homens, espancados e frustrados, começaram a falar e a fazer perguntas. Mas de imediato, urrando como um touro para ser ouvido, Skysail Jack, um gigantesco marinheiro condenado à prisão perpétua, exigiu silêncio para poder fazer um recenseamento. Os calabouços estavam lotados e, uma por uma, na ordem, cada cela foi respondendo à chamada. Ficou confirmado que cada cela estava ocupada por homens de confiança e que não havia, portanto, nenhum dedo-duro escondido à escuta. Os quarenta condenados só tinham dúvidas a meu respeito, pois fui o único que não participou da trama. Interrogaram-me. A única coisa que eu tinha a dizer era que mal acabara de sair do calabouço e da camisa-de-força naquela manhã quando, sem razão alguma que eu pudesse perceber, fui jogado de volta no calabouço após ficar fora dele umas poucas horas. Minha fama de incorrigível pesou a meu favor e logo eles começaram a falar. Enquanto eu lá estava deitado, escutando-os, ouvi mencionar pela primeira vez o plano de fugir. “Quem nos delatou?” era a única pergunta daqueles homens e, ao longo da noite, eles a debateram. Cecil Winwood não estava ali; a suspeita contra ele era geral. — Só mais uma coisa, rapazes — disse finalmente Skysail Jack. — Logo é de manhã e eles vão tirar a gente daqui e vai ser o diabo. Eles pegaram a gente direitinho, todo mundo vestido. Winwood traiu a gente, foi ele que dedurou. Eles vão nos pegar, um por um, e vão bater pra valer. A gente é quarenta. Qualquer mentira eles descobrem logo. Por isso, cada um de nós, quando eles interrogarem, vai dizer a verdade, toda a verdade, com a bênção de Deus. E ali, naquele buraco sombrio da desumanidade humana, de cela em cela, com a boca colada às grades, os quarenta condenados à prisão perpétua juraram solenemente diante de Deus dizer a verdade. CAPITULO 4 Enquanto isso, eu sofria o horror dos calabouços depois da descoberta do plano de fuga. E em instante algum, durante aquelas eternas horas de espera, deixei de ter presente em minha consciência a certeza de que eu seguiria os outros prisioneiros, suportaria o inferno de interrogatório que eles suportaram e seria trazido de volta como uma ruína e atirado sobre o chão de pedra da minha cela com paredes de pedras e porta de ferro. Eles vieram me buscar. Empurrando-me com violência, com pancadas e palavrões, levaram-me diante do Capitão Jamie e do Diretor Atherton; a seu serviço, esses dois tinham a força de meia dúzia de brutos comprados pelo Estado e pagos com o dinheiro dos impostos, e que vagavam pela sala à espera de ordens. Mas eles não seriam necessários. — Sente-se — disse o Diretor Atherton, indicando-me uma cadeira. Eu, espancado e cheio de dores, sem água já há uma noite e um dia, quase a desmaiar de fome, enfraquecido pelas pancadas que foram acrescentadas aos cinco dias no calabouço e às 80 horas na camisa-de-força, oprimido pela calamidade do destino humano, temeroso do que estava para acontecer comigo depois do que tinha visto acontecer aos outros — eu, um trêmulo rebotalho de homem, um ex-professor de agronomia numa pacata universidade, eu hesitei em aceitar o convite para me sentar. O Diretor Atherton era um homem robusto e extremamente forte. Suas mãos agarraram meus ombros como um relâmpago. Eu era uma mísera palha diante de sua força. Ele me levantou do chão e me atirou sobre a cadeira. — Agora — disse ele, enquanto eu ofegava e engolia minha dor — conte tudo, Standing. Vomite tudo, absolutamente tudo, se sabe o que é bom para sua saúde. — Não sei de nada do que aconteceu... — comecei. Não passei disso. Com um rosnado, ele saltou em cima de mim. Levantou-me novamente no ar e me atirou sobre a cadeira. — Deixe de bobagem, Standing — avisou. — Confesse tudo. Onde está a dinamite? — Não sei nada de nenhuma dinamite... — protestei. Mais uma vez fui levantado no ar e esmagado contra a cadeira. Suportei torturas de vários tipos, mas hoje, quando penso nelas na quietude desses meus últimos dias, acho que nenhuma outra tortura foi igual à tortura da cadeira. Aquela cadeira sólida foi batida contra o meu corpo até deixar de se parecer com uma cadeira. Trouxeram outra cadeira e, depois de algum tempo, ela também foi destruída. Mas trouxeram mais cadeiras enquanto continuavam as eternas perguntas sobre a dinamite. Quando o Diretor Atherton se cansou, o Capitão Jamie o substituiu; depois o guarda Monohan assumiu o lugar do Capitão Jamie para me atirar sobre a cadeira. E sempre a dinamite, a dinamite, “onde está a dinamite?” e não havia dinamite alguma. Ora, pelo final da sessão, eu teria vendido minha alma imortal por um pouco de dinamite que eu pudesse confessar. Não sei quantas cadeiras foram quebradas contra o meu corpo. Desmaiei diversas vezes e, pelo final da sessão, a coisa toda tomou-se um pesadelo. Fui meio carregado, meio empurrado, meio arrastado de volta à escuridão. Lá, quando recobrei os sentidos, encontrei um dedo-duro na minha cela. Um viciado, um homenzinho descorado com uma sentença de poucos anos, que faria qualquer coisa para obter a droga. Logo que o reconheci, arrastei-me até as grades e gritei para o corredor: — Ei, rapazes, tem um dedo-duro aqui na minha cela! É o Ignatius Irvine. Cuidado com o que vocês falam! A explosão de imprecações que se seguiu teria abalado até mesmo um homem mais valente que Ignatius Irvine. Dava pena ver seu terror enquanto à sua volta, urrando como feras, os prisioneiros arrebentados pela dor berravam as coisas horríveis que fariam com ele no futuro. Se houvesse algum segredo, a presença de um dedo-duro nos calabouços teria mantido os homens em silêncio. Como estavam as coisas, tendo todos jurado dizer a verdade, eles falaram abertamente diante de Ignatius Irvine. O único grande enigma era a dinamite; a esse respeito, eles sabiam tanto quanto eu. Apelaram para mim. Se eu soubesse qualquer coisa sobre a dinamite, pediram- me que confessasse e os salvasse de mais misérias. E tudo o que eu podia lhes dizer era a verdade: eu nada sabia sobre a dinamite. Uma coisa que o dedo-duro me disse antes que os guardas o tirassem dali mostrou como era sério esse assunto da dinamite. E claro que eu informei aos outros: nem uma roda tinha sido movida na prisão o dia todo. Os milhares de trabalhadores-prisioneiros ficaram trancados em suas celas; a previsão era de que nenhuma das várias fábricas da prisão voltaria a funcionar até que fosse descoberta alguma dinamite escondida por alguém em algum lugar da prisão. E os interrogatórios continuaram. Sempre, um de cada vez, os prisioneiros eram arrancados da cela e arrastados ou carregados de volta. Eles contaram que o Diretor Atherton e o Capitão Jamie, exaustos pelo esforço, faziam turnos de duas horas cada um. Enquanto um dormia, o outro interrogava. E eles dormiam vestidos na própria sala onde, um depois do outro, homens fortes iam sendo quebrados. E hora após hora nas trevas dos calabouços, aumentava a loucura do nosso tormento. Ah, acredite em mim, pois eu sei, o enforcamento não é nada comparado ao modo como homens vivos podem ser feridos e ainda continuar a viver. Eu também sofri, como eles, de dor e sede; mas somava-se ao meu sofrimento o fato de que eu permanecia consciente do sofrimento dos outros. Eu já era um incorrigível havia dois anos e meus nervos e meu cérebro haviam se endurecido ao sofrimento. É terrível ver um homem forte ser quebrado. A minha volta, de uma única vez, quarenta homens fortes estavam sendo quebrados. Bastava elevar-se um grito por água e o lugar se transformava num hospício com os gritos, os soluços, os balbucios e a fúria dos homens delirantes. Você não vê? A nossa verdade, a própria verdade que contamos, foi a nossa danação. Quando quarenta homens contaram a mesma coisa com tanta unanumdade, o Diretor Atherton e o Capitão Jamie só puderam concluir que esse testemunho era uma mentira decorada que cada um dos quarenta repetia como um papagaio. Do ponto de vista das autoridades, sua própria situação era tão desesperadora quanto a nossa. Conforme vim a saber mais tarde, a Junta Diretora da Prisão foi convocada pelo telégrafo e duas companhias da Milícia Estadual foram mandadas às pressas para a prisão. Era inverno, e a geada pode ser cortante até mesmo no inverno da Califórnia. Não tínhamos cobertores nos calabouços. Você sabia que a pedra gelada é muito fria para que a carne humana machucada se estenda sobre ela? E eles, por fim, nos deram água. Zombando de nós e gritando palavrões, os guardas puxaram as mangueiras de incêndio e lançaram o jato forte sobre nós, cela após cela, hora após hora, até nossa carne machucada ser arrancada pela violência da água, até ficarmos com água pelos joelhos, a água pela qual tínhamos delirado e que agora delirávamos para que acabasse. Vou omitir o resto do que aconteceu nos calabouços. Só de passagem, quero dizer que nenhum daqueles quarenta condenados nunca foi mais o mesmo. Luigi Polazzo nunca recuperou a razão. Long Bill Hodge aos poucos perdeu a sanidade e, um ano depois, também foi removido para o Hospício. Ah, e outros seguiram Hodge e Polazzo; e outros, cujo vigor físico foi abalado, foram vitimados pela tuberculose. Dez daqueles quarenta homens morreram nos seis anos seguintes. Depois dos meus cinco anos na solitária, quando me tiraram de San Quentin para o julgamento, eu vi Skysail Jack. Eu mal podia enxergar e piscava como um morcego à luz do sol, depois de cinco anos na escuridão; mas vi o suficiente de Skysail Jack para confranger meu coração. Foi quando cruzava o pátio da prisão que eu o vi. Seu cabelo estava branco. Ele estava prematuramente envelhecido. O peito afundado. As bochechas murchas. As mãos tremiam como se ele estivesse doente. Caminhava cambaleante. E seus olhos se encheram de lágrimas encerrado na Cela 1. Na Cela 5 estava Ed Morrell. Na Cela 12, Jake Oppenheimer; e ele ali estava já faziam dez anos. Ed Morrell estava em sua cela havia apenas um ano; ele cumpria uma pena de 50 anos. Jake Oppenheimer era um condenado à prisão perpétua. Como eu. A previsão, portanto, era de que nós três fossemos ficar ali por um longo tempo. Mas apenas seis anos se passaram e nenhum de nós está na solitária. Jake Oppenheimer foi enforcado. Ed Morrell tomou-se o encarregado-chefe de San Quentin e foi indultado há poucos dias. E eu estou aqui em Folsom esperando o dia marcado pelo Juiz Morgan, que será meu último dia. Os tolos! Como se eles pudessem estrangular minha imortalidade com seus patéticos arranjos de cordas e cadafalsos! Eu ainda caminharei, ah, eu ainda caminharei vezes sem conta sobre esta bela terra. E caminharei feito carne, seja príncipe ou camponês, sábio ou louco, sentado num trono ou gemendo sob a roda. CAPITULO 5 De início, era muito solitário no calabouço e as horas passavam vagarosas. O tempo era marcado pela troca regular da guarda e pela alternância entre o dia e a noite. O dia não passava de uma vaga luminosidade, mas era melhor que a escuridão total da noite. Na solitária, o dia se infiltrava, uma sutil infiltração da luz do luminoso mundo exterior. A luz nunca era forte o suficiente para que eu pudesse ler. Além disso, nada havia para ler. A única coisa a fazer era ficar deitado e pensar e pensar. E eu estava condenado à prisão perpétua; parecia certo que, a menos que eu operasse o milagre de fazer surgir do nada 15 quilos de dinamite, todos os anos do resto da minha vida seriam passados nessa silenciosa escuridão. Minha cama era uma braçada de palha desfiada e apodrecida, espalhada sobre o chão da cela. Um cobertor puído e sujo era minha coberta. Não havia cadeira, não havia mesa; não havia nada a não ser a braçada de palha e o velho cobertor puído. Eu sempre fui um homem de sono leve e cérebro ativo. Na solitária, um homem cansa de pensar em si mesmo e o único modo de escapar a si mesmo é dormindo. Durante anos, eu dormi uma média de cinco horas por noite. Agora, eu cultivava o sono. Transformei-o numa ciência. Tomei-me capaz de dormir dez horas, depois 12 horas e, mais tarde, 14 ou 15 horas por dia. Mas não conseguia passar disso e era obrigado a ficar acordado e pensar e pensar. Para um homem de cérebro ativo, esse é o caminho para a loucura. Procurei meios mecânicos que me permitissem suportar minhas horas de vigília. Elevei ao quadrado e ao cubo longas séries de números e, pela força da concentração e da vontade, elaborei as mais admiráveis progressões geométricas. Cheguei a flertar com a quadratura do círculo... até que me encontrei começando a acreditar que tal impossibilidade poderia ser alcançada. Quando percebi que esse caminho também levava à loucura, abandonei a quadratura do círculo; mas eu lhe asseguro que isso exigiu de mim um sacrifício considerável, pois o exercício mental envolvido era um esplêndido passatempo. Através de pura visualização sob as pálpebras entrecerradas, construí tabuleiros de xadrez e joguei longas partidas, com as brancas e as pretas, até o xeque-mate. Mas quando me tomei um especialista nesse jogo visualizado da memória, o exercício perdeu o interesse. Não passava de um exercício; pois que competição poderia haver com um único jogador jogando pelos dois lados? Tentei, mas tentei em vão, dividir minha personalidade em duas e colocar uma em oposição à outra. Eu continuava a ser sempre um único jogador, e não havia armadilha ou estratégia num lado que o outro lado não percebesse de imediato. E o tempo pesava, se arrastava. Eu brincava com as moscas; as comuns moscas domésticas que, como a vaga luz cinzenta do dia, também se infiltravam na solitária. E descobri que elas tinham instinto de jogador. Por exemplo, deitado no chão da cela, tracei uma linha horizontal imaginária ao longo da parede a um metro do chão. Quando elas pousavam na parede acima dessa linha, eu as deixava em paz. No instante em que se animavam a cruzar essa linha, eu tentava pegá-las. Eu tinha o máximo cuidado em jamais machucá-las e, com o tempo, elas sabiam tão bem quanto eu por onde passava a linha imaginária. Quando queriam brincar, elas cruzavam a linha; muitas vezes, uma única mosca ficava brincando comigo por mais de uma hora. Quando ela se cansava, ia repousar no território seguro acima da linha. Dentre a dúzia de moscas que conviveu comigo naquela época, só uma não ligava para o jogo. Ela se recusava a brincar e, tendo aprendido a penalidade por cruzar a linha, evitava cuidadosamente o território perigoso. Essa mosca era uma criatura carrancuda e mal-humorada. Como diriam os presidiários, ela era “anti- social”. Ela tampouco brincava com as outras moscas. Era forte e saudável; eu a estudei por longo tempo. Sua falta de disposição para brincadeiras era temperamental, não física. Acredite-me, eu conhecia todas as minhas moscas. Era surpreendente a infinidade de diferenças que eu distinguia entre elas. Ah, cada uma era distintamente um ser individual; não apenas quanto ao tamanho e sinais característicos, força e velocidade de vôo, modo e jeito de voar e brincar, de fugir e avançar, de voar em círculos numa só direção ou de voar em círculos e inverter a direção, de tocar e caminhar sobre a zona proibida ou de fingir tocá-la e então ir pousar na zona de segurança. Elas também se diferenciavam profundamente nas menores particularidades de mentalidade e temperamento. Eu conhecia as nervosas, eu conhecia as fleumáticas. Havia uma pequenina que voava em acessos de fúria, às vezes contra mim, às vezes contra suas companheiras. Você já viu um potro ou um novilho escoicear e correr feito louco pelo pasto, de puro excesso de vitalidade e energia? Bem, havia aquela mosca — a melhor jogadora de todas, por falar nisso — que, depois de tocar a parede proibida três ou quatro vezes em rápida sucessão e sempre conseguindo escapar à concha aveludada e cuidadosa da minha mão, ficava tão excitada e jubilante que voava em círculos velozes sobre minha cabeça, girando, virando e voando no sentido oposto, mas sempre se mantendo dentro dos limites do estreito círculo no qual celebrava seu triunfo sobre mim. Ora, eu até podia antecipar quando alguma das moscas tomava a decisão de começar a brincar. Há mil detalhes só desse único ponto, mas não vou aborrecê- lo com eles; esses detalhes evitavam, porém, que eu me aborrecesse demais durante aqueles primeiros tempos na solitária. Só quero contar um episódio. Foi, para mim, o mais memorável: aquela mosca “anti-social”, aquela que nunca que Oppenheimer ocupava havia dez anos. Eu tinha muito a lhes contar dos acontecimentos da prisão e do mundo além dos calabouços. O plano de fuga dos quarenta condenados, a busca da dinamite inexistente, a armadilha traiçoeira de Cecil Winwood, tudo isso era novidade para eles. Conforme me contaram, as notícias às vezes chegavam à solitária pelos guardas, mas eles nada ouviam já havia um par de meses. Os guardas atualmente de serviço na solitária eram um grupo especialmente cruel e vingativo. Muitas e muitas vezes naquele dia fomos amaldiçoados pelo guarda de plantão por nossa conversa com os nós dos dedos. Mas não conseguíamos parar. Os dois homens da morte em vida tinham se tomado três e tínhamos muito a dizer uns aos outros — embora a forma de expressão fosse exasperadoramente lenta e eu ainda não tivesse a fluência deles no jogo das pancadinhas com os nós dos dedos. — Espere até o Pie-Face pegar o turno essa noite — bateu Morrell para mim. — Ele dorme quase o tempo todo e a gente pode conversar à vontade. Como conversamos aquela noite! O sono nunca esteve mais longe dos nossos olhos. Apesar de gordo, Pie-Face Jones era um homem mesquinho e amargo; mas abençoamos aquela gordura que o obrigava a tirar freqüentes sonecas. Mesmo assim, nossas batidas incessantes atrapalharam seu sono e o irritaram e ele nos advertiu várias vezes. E os outros guardas do plantão noturno também praguejaram contra nós. De manhã, todos deram parte de muitas batidas durante a noite e pagamos pelo nosso pequeno feriado: às nove horas, chegou o Capitão Jamie com seus guardas para nos amarrar no tormento da camisa-de-força. Até às nove da manhã seguinte, por 24 ininterruptas, amarrados e indefesos no chão, sem comida nem água, pagamos o preço da palavra. Ah, nossos guardas eram brutos. E sob seu tratamento, precisávamos endurecer ao ponto da brutalidade para continuarmos vivos. O trabalho duro cria mãos calosas. Guardas duros criam prisioneiros duros. Continuamos a conversar e, volta e meia, a ser punidos com a camisa-de-força. A noite era o melhor momento; quando acontecia de haver guardas substitutos no plantão, conversávamos durante todo o turno. A noite e o dia eram uma coisa só para nós que vivíamos nas trevas. Podíamos dormir a qualquer hora; conversar, só de vez em quando. Cada um de nós contou aos outros grande parte da história de sua vida. Durante longas horas, Morrell e eu ficamos deitados em silêncio, ouvindo as vagas batidas distantes e incessantes de Oppenheimer a nos contar a história de sua vida, desde os primeiros anos numa favela de São Francisco até sua entrada numa gang, até sua iniciação no mundo das depravações aos 14 anos de idade quando trabalhou como mensageiro noturno na zona do meretrício, o bairro da luz vermelha, até sua primeira prisão e continuando, por roubos e assaltos, até a traição de um comparsa e os assassinatos sanguinários dentro dos muros da prisão. Eles chamavam Jake Oppenheimer o “Tigre Humano”. Um repórter cunhou essa expressão e ela sobreviverá ao homem ao qual se aplicava. Mas eu sempre vi em Jake Oppenheimer todos os traços essenciais da humanidade. Ele era leal, era confiável. Sei que ele, muitas vezes, preferiu ser punido a denunciar um companheiro. Era bravo. Era paciente. Ele era capaz de se sacrificar — eu poderia contar uma história a esse respeito, mas não o farei. E a justiça era, para ele, uma paixão. Os assassinatos que ele cometeu na prisão foram inteiramente devidos ao seu extremo senso de justiça. E ele tinha uma mente esplêndida. Uma vida toda na prisão, dez anos dela na solitária, não embaçou seu cérebro. Morrell, sempre um verdadeiro companheiro, também tinha um cérebro esplêndido. Na verdade — e eu, que vou morrer logo, tenho direito de fazer essa afirmação sem risco de falta modéstia —, as três melhores mentes de San Quentin, incluindo o Diretor, eram as três que apodreciam juntas ali na solitária. E agora, no fim dos meus dias, revendo tudo o que conheci da vida, sou obrigado a concluir que as mentes fortes jamais são dóceis. Os homens estúpidos, os homens medrosos, os homens desprovidos de um senso apaixonado de justiça e de impávido desafio: esses são os homens que se tornam prisioneiros-modelo. Agradeço a todos os deuses que Jake Oppenheimer, Ed Morrell e eu não fôssemos prisioneiros-modelo. CAPITULO 6 Há mais do que um grão de verdade no erro contido na definição infantil de memória: memória é a coisa com a qual a gente esquece. Ser capaz de esquecer significa sanidade. Lembrar incessantemente significa obsessão e loucura. O problema que enfrentei na solitária (onde as lembranças incessantes lutavam para tomar conta de mim) foi o problema de esquecer. Quando brincava com as moscas, quando jogava xadrez comigo mesmo, quando conversava através de pancadinhas com os nós dos dedos, eu esquecia parcialmente. O que eu desejava era esquecer completamente. Havia as lembranças infantis de outros tempos e lugares — aquele “trilhar as nuvens da glória” de Wordsworth. Se um garoto teve essas lembranças, estarão elas irremediavelmente perdidas quando ele se toma um homem? Poderia esse conteúdo específico do seu cérebro de garoto ser totalmente eliminado? Ou haveria ainda resíduos dessas lembranças de outros tempos e lugares, adormecidas, emparedadas em confinamento solitário nas células do cérebro — do mesmo modo que eu estava emparedado numa cela em San Quentin? Sabemos de condenados a uma vida na solitária que ressuscitaram e viram novamente a luz do sol. Por que não poderiam também ressuscitar essas lembranças infantis de outros mundos? Mas como? Na minha opinião, ao alcançarmos o completo esquecimento do presente e do passado humanos. Mas, ainda assim, como? O hipnotismo poderia ser o caminho. Se o hipnotismo pudesse adormecer a mente consciente e despertar a mente subconsciente, então nós o conseguiríamos, então as portas dos calabouços do cérebro se escancarariam, então os prisioneiros emergeriam para a luz do sol. Assim pensava eu — e o resultado você logo verá. Antes preciso contar como eu, quando garoto, tinha essas lembranças de outros mundos. Eu flamejei nas nuvens de glória que trilhei em vidas anteriores. Como qualquer garoto, fui assombrado pelos outros seres que fui em outros tempos. Isso ocorreu durante o meu processo de vir a ser, antes que o fluxo de tudo aquilo que eu tinha sido se cristalizasse no molde dessa personalidade única que os homens conheceriam, durante alguns anos, como Darrell Standing. Vou contar apenas um incidente. Aconteceu na velha fazenda em Minnesota. Eu tinha uns seis anos. Um missionário que esteve na China voltou aos Estados Unidos e foi enviado pela Ordem das Missões para coletar fundos entre os fazendeiros; ele passou a noite em nossa casa. O incidente aconteceu na cozinha, após o jantar, quando minha mãe me ajudava a vestir o pijama e o missionário bem grande! — Os dez leprosos que Cristo curou antes de entrar em Jericó a caminho de Jerusalém — explicou o missionário aos meus pais. — O garoto viu gravuras de quadros famosos em algum espetáculo de lanterna mágica. Mas nem o pai nem a mãe podiam lembrar-se de que eu algum dia tivesse visto um espetáculo de lanterna mágica. — Teste o garoto com outra fotografia — sugeriu o pai. — Está tudo diferente — reclamei enquanto estudava a fotografia que o missionário me passou. — Aqui não tem nada, só aquela colina e as outras colinas. Aqui devia ter uma estrada. E ali devia ter os jardins e as árvores e as casas por trás dos muros altos de pedras. E ali do outro lado tinha os buracos nas pedras onde eles enterravam a gente que morria. O senhor está vendo esse lugar aqui? Era aqui que eles jogavam pedras nas pessoas até matarem elas. Eu nunca vi eles fazendo isso, não. Só que me contaram que eles faziam. — E a colina? — perguntou o missionário, apontando para a parte central da fotografia, que parecia ser a razão pela qual a foto foi batida. — Você pode nos dizer o nome dessa colina? Sacudi a cabeça. — Nunca teve nome, não. Eles matavam gente ali. Eu vi eles matando gente ali muitas vezes. — Desta vez o garoto está de acordo com a maioria das autoridades — anunciou o missionário com enorme satisfação. — Esta colina é o Gólgota, o Monte das Caveiras, que ganhou esse nome porque parece com uma caveira. Notem a semelhança. Foi aqui que eles crucificaram... — ele parou e virou-se para mim. — Quem foi que eles crucificaram ali, hein, meu sábio jovenzinho? Conte pra nós tudo o que você sabe. Ah, eu vi... meu pai disse mais tarde que meus olhos estavam esbugalhados; mas sacudi a cabeça com teimosia e disse: — Eu não vou dizer mais nada pro senhor porque o senhor está rindo de mim. Eu vi eles matarem uma pilha de gente ali. Eles pregavam as pessoas e demorava um tempão. Eu vi... mas não vou contar nada pro senhor, não. Eu não conto mentira. O senhor pergunte pro pai e pra mãe se eu conto mentira. O pai me tirava o couro se eu contasse mentira. Pergunte pra eles. E depois disso o missionário não conseguiu tirar de mim mais nenhuma palavra, embora continuasse a me lançar como isca mais fotografias — que fizeram minha cabeça girar numa explosão de lembranças e trouxeram à ponta da minha língua torrentes de palavras que eu, obstinado, segurei e engoli. — O garoto com certeza vai dar um bom estudioso da Bíblia — disse o missionário ao pai e à mãe depois que lhes dei o beijo de boa-noite e fui para a cama. — Ou talvez, com essa imaginação toda, ele vai ser um bom romancista. O que vem mostrar como as profecias podem dar errado. Estou aqui no Corredor da Morte, escrevendo estas linhas nos meus últimos dias — ou melhor, nos últimos dias de Darrell Standing, antes que eles o levem e tentem atirá-lo às trevas na ponta de uma corda — e sorrio para mim mesmo. Não me tomei um estudioso da Bíblia nem um romancista. Pelo contrário, até ser enterrado nas celas do silêncio por meia década, fui tudo aquilo que o missionário não previu: um especialista em agricultura, um professor de agronomia, um especialista na ciência da eliminação de movimentos supérfluos, um mestre de eficiência agrícola, um cientista de laboratório onde a precisão e fidelidade ao fato microscópico são exigências absolutas. E aqui estou, nesta tarde quente, no Corredor da Morte; deixo de escrever minhas memórias para ouvir o zumbido hipnótico das moscas no ar modorrento; ouço frases esparsas de uma discussão em voz baixa entre Josephus Jackson (o negro assassino à minha direita) e Bambeccio (o italiano assassino à minha esquerda) — de uma porta gradeada para outra porta gradeada, de lá para cá da minha porta gradeada — sobre as virtudes anti-sépticas e as excelências do fumo de mascar na cura de feridas. Minha mão está suspensa no ar, segurando a caneta; e ao lembrar que outras mãos minhas, em tempos há muito passados, seguraram o pincel, a pena e o estilo, também encontro um espaço imaginário no tempo para me perguntar se aquele missionário, quando criança, trilhou nuvens de glória e lançou um olhar ao brilho dos velhos dias de peregrinação pelas estrelas. Bem, de volta à solitária — depois de aprender o código da conversa com os nós dos dedos e continuar achando as horas de consciência insuportavelmente longas. Por meio da auto-hipnose, que comecei a praticar com sucesso, fui capaz de adormecer minha mente consciente e despertar e libertar minha mente subconsciente. Mas minha mente subconsciente era indisciplinada e sem leis. Ela vagueava por uma loucura de pesadelo, sem coerência e sem continuidade de cenas, eventos ou pessoas. Meu método de hipnose mecânica era a essência da simplicidade. Sentado com as pernas cruzadas no meu colchão de palha, eu olhava fixamente um fragmento brilhante de palha que prendi à parede da cela perto da porta, onde havia mais luz. Eu olhava para o ponto brilhante com os olhos próximos dele e me inclinava até meus olhos ficarem tensos. Ao mesmo tempo, relaxava toda a minha vontade e me abandonava à tontura que sempre acabava por se apoderar de mim. E quando sentia estar perdendo o equilíbrio, eu fechava os olhos e me deixava cair de costas e inconsciente sobre o colchão. E então por dez minutos, meia hora, uma hora ou até mais, eu vagueava errática e loucamente pelas lembranças armazenadas da minha eterna recorrência à Terra. Mas os tempos e lugares mudavam depressa demais. Eu sabia mais tarde, ao despertar, que eu, Darrell Standing, era a personalidade que formava o elo de conexão entre o bizarro e o grotesco. Mas isso era tudo. Eu jamais conseguia reviver por completo uma experiência inteira, um ponto de consciência no tempo e espaço. Meus sonhos — se de sonhos podem ser chamados — não tinham nexo nem lógica. Como exemplo das minhas peregrinações: num único intervalo de quinze minutos de subconsciência, eu rastejei e rosnei no lodo do mundo primitivo e cortei os ares do século XX num monoplano ao lado de Haasfurther. Desperto, lembrei que eu, Darrell Standing, nesta carne, no ano anterior ao meu encarceramento em San Quentin, voei com Haasfurther sobre o Pacífico, em Santa Mônica. Desperto, eu não lembrava o rastejar e o rosnar no lodo antigo. No entanto, desperto, compreendi que, de certo modo, eu me lembrava daquela aventura imemorial no lodo e que ela era um fato real de uma experiência muito anterior, quando eu ainda não era Darrell Standing mas sim um outro alguém — ou algo — que rastejava e rosnava. Uma experiência era mais remota que a outra, nada mais. Ambas as experiências eram igualmente reais — caso contrário, como poderia eu lembrá-las? Ah, que alvoroço de imagens e ações luminosas! Nuns poucos minutos de liberação do subconsciente, freqüentei os salões dos reis, comandei marinheiros e fui comandado por marinheiros, fui o louco e o bobo da corte, o homem de armas, o escrivão e o monge. Fui o governante supremo à cabeceira da mesa: poder temporal no meu braço que segura a espada, na espessura das muralhas do meu castelo e no meu exército de homens finshing {1}; poder espiritual comprovado pelos padres encapuçados e os gordos abades sentados aos meus pés, bebendo meu vinho e se empanturrando da minha comida. Em regiões gélidas, usei o colar de ferro do escravo em volta do pescoço. Em perfumadas noites tropicais amei princesas de casas reais, com os escravos negros a abanar o ar sufocante com seus leques de penas de pavão, enquanto ao longe, através de palmeiras e fontes, ouvia-se o rugido do leão e o grito do chacal. Em gélidas noites do deserto, acocorei-me e aqueci minhas mãos no fogo aceso com estrume de camelo. Refugiei-me sob a magra sombra de arbustos torrados pelo sol ao lado de poços secos e, com a língua ressecada, suspirei por um gole d'água enquanto à minha volta, desmembrados e dispersos na areia, estavam os ossos de homens e bestas que também suspiraram e morreram. Fui marujo e mercenário, erudito e recluso. Estudei as páginas manuscritas de enormes volumes na quietude escolástica e na luz crepuscular de monastérios em topos de montanha, enquanto lá embaixo, nas encostas, os camponeses CAPITULO 7 Este era o meu dilema. Eu sabia que dentro de mim havia uma Golconda, uma mina de diamantes de lembranças de outras vidas, mas eu era incapaz de fazer mais do que esvoaçar como um louco através daquelas lembranças. Eu tinha a minha Golconda, mas não conseguia explorá-la. Lembrei o caso de Stainton Moses, o clérigo que foi possuído pelas personalidades de Santo Hipólito, Plotino, Atenodoro e do amigo de Erasmo, Grocy n. E quando considerei os experimentos do Coronel de Rochas (que li como mero passatempo em outros e mais ocupados dias), fiquei convencido de que Stainton Moses tinha sido, em vidas anteriores, aquelas personalidades que às vezes pareciam possuí-lo. Na verdade, elas eram ele, eram os elos da cadeia de recorrência. Dediquei-me com maior interesse aos experimentos do Coronel de Rochas. Através do condicionamento hipnótico adequado, ele afirmava ter regredido no tempo até os ancestrais de seus pacientes. Ele descreveu o caso de Josephine, moça de dezoito anos que vivia em Voiron, departamento de Isre. Sob hipnotismo, o Coronel de Rochas fez Josephine regredir aos dias da adolescência, à infância, à primeira infância, aos dias de bebê de colo e à escuridão silenciosa do útero materno; e regredir ainda mais, através do silêncio e das trevas do tempo em que ela ainda não tinha nascido, até a luz e a vida de uma existência anterior, na qual ela foi um velho rude, desconfiado e amargurado chamado Jean-Claude Bourdon, que serviu na Sétima Artilharia em Besançon e morreu entrevado aos setenta anos. Sim, e o Coronel de Rochas não hipnotizou, por sua vez, essa sombra de Jean-Claude Bourdon para que regredisse no tempo, através da infância e do nascimento e das trevas do não-nascido, até encontrar mais uma vez luz e vida quando ele foi Philoméne Carteron, uma velha perversa? Porém, por mais que tentasse com meu pedacinho brilhante de palha na luz filtrada da solitária, eu não conseguia alcançar qualquer definição de uma personalidade anterior. Convenci-me, com o fracasso dos meus experimentos, de que só através da morte eu poderia ressuscitar com clareza e coerência as lembranças dos meus eus anteriores. Mas a maré da vida corria forte dentro de mim. Eu, Darrell Standing, estava tão resolutamente decidido a não morrer que me recusava a deixar que o Diretor Atherton e o Capitão Jamie me matassem. A pressão para viver sempre foi tão inata em mim que às vezes acho que é por isso que ainda estou aqui, comendo e dormindo, pensando e sonhando, escrevendo esta narrativa dos meus vários eus e esperando a corda incontestável que dará um fim transitório a um dos elos da minha longa existência. E então veio a morte em vida. Aprendi o segredo. Ed Morrell ensinou-o para mim, como você vai ver. Tudo começou através do Diretor Atherton e do Capitão Jamie. Eles devem ter sentido o pânico crescer ao pensar na dinamite que acreditavam estar escondida. Vieram a mim na minha cela escura e me disseram, sem rodeios, que me poriam numa camisa-de-força até a morte se eu não confessasse o esconderijo da dinamite. E me garantiram que fariam tudo de modo oficial, sem qualquer risco para suas carreiras: minha morte seria registrada como devida a causas naturais. Ah, caro e pacato cidadão, por favor acredite em mim quando lhe digo que homens são mortos nas prisões, hoje — do mesmo modo como sempre foram mortos desde que as primeiras prisões foram construídas pelos homens. Eu conhecia bem o terror, a agonia e o perigo da camisa-de-força. Ah, os homens cujo espírito foi quebrado pela camisa-de-força! Eu os vi. Eu vi homens aleijados para o resto da vida pela camisa-de-força. Eu vi homens, homens fortes, homens tão fortes que seu vigor físico resistia a todos os ataques de tuberculose — depois de uma sessão prolongada na camisa-de-força, sua resistência se quebrava e se dissolvia e eles morriam de tuberculose em seis meses. Houve o Slant-Eyed Wilson, com seu fraco coração cheio de um medo insuspeitado, que morreu na primeira hora dentro da camisa-de-força enquanto aquele ineficiente e cético médico da prisão só olhava e ria. E eu vi um homem, depois de meia hora na camisa-de-força, confessar verdades e mentiras que lhe custaram muitos anos a mais na prisão. Eu tive as minhas próprias experiências. Mil cicatrizes hoje marcam o meu corpo. Elas me acompanharão ao cadafalso. E se eu vivesse cem anos, essas mesmas cicatrizes iriam comigo para o túmulo. Caro cidadão que permite e paga os carrascos que amarram a camisa-de-força, talvez você não conheça a camisa-de-força. Deixe-me descrevê-la para que você entenda o método pelo qual alcancei a morte em vida, tomei-me um mestre temporário do tempo e espaço e saltei os muros da prisão para peregrinar entre as estrelas. Você já viu encerados de lona ou borracha, com ilhoses de metal por toda a borda? Pois imagine um pedaço de lona grossa, com cerca de um metro e meio de comprimento, com fortes ilhoses de metal em ambas as bordas. A largura da lona é sempre um pouco menor do que o diâmetro do corpo humano que ela vai envolver. E essa largura é irregular: a lona é mais larga nos ombros, um pouco mais estreita nos quadris e bem mais estreita na cintura. A camisa-de-força é estendida no chão. Eles mandam o homem que vai ser punido — ou torturado para confessar alguma coisa — deitar-se de bruços sobre a lona. Se ele recusa, é espancado. Depois disso, ele se deita sob a força de uma vontade que é a vontade dos carrascos, que é a sua vontade, caro cidadão que alimenta e paga os carrascos para fazerem isso por você. O homem está deitado de bruços. As bordas da camisa-de-força são puxadas, juntando-se o máximo possível ao longo de sua coluna vertebral. E então uma corda, seguindo os mesmos princípios dos cadarços de sapatos, é passada pelos ilhoses e, do mesmo modo que se amarra o sapato, o homem é amarrado dentro da lona. Só que ele é amarrado com muito mais força do que qualquer pessoa amarraria os cadarços dos seus sapatos. Eles chamam isso uma “apertada”, na gíria da prisão. Às vezes, quando os guardas são cruéis e vingativos ou quando a ordem vem de cima, o guarda pressiona os pés contra as costas do homem enquanto vai apertando os nós, para garantir uma severa compressão. Você alguma vez já apertou demais os cadarços do sapato e, depois de uma meia hora, sentiu uma dor lancinante causada pelo corte da circulação no peito do pé? E você lembra que depois de alguns minutos dessa dor você simplesmente não conseguia dar mais um passo e precisou afrouxar os cadarços para aliviar a pressão? Pois bem. Então tente imaginar todo o seu corpo amarrado desse jeito, só que muito mais apertado; e o aperto, em vez de ser apenas no peito de um de seus pés, é em todo o seu tronco, comprimindo até quase a morte seu coração, seus pulmões e todos os seus órgãos vitais. Lembro a primeira vez que me amarraram na camisa-de-força, lá no calabouço. Foi no começo dos meus tempos de incorrigível, pouco depois que entrei na prisão, quando eu fiava minha quota diária de dez metros de juta nas salas de fiação e terminava duas horas antes do tempo médio. Sim, e minha produção de sacos de juta estava bem acima da média exigida. Fui mandado para a camisa-de-força aquela primeira vez, conforme mostram os registros da prisão, por causa de “pontos pulados” e “malhas perdidas” na minha tecelagem; em suma, porque meu trabalho era defeituoso. E claro que essa alegação era ridícula. Na verdade, fui mandado para a camisa-de-força porque eu, um preso recém-chegado, um mestre da eficiência, um especialista treinado na eliminação de movimentos supérfluos, resolvi ensinar ao estúpido tecelão-chefe algumas coisas que ele desconhecia sobre seu trabalho. E o tecelão-chefe, na presença do Capitão Jamie, chamou-me à mesa onde uma tecelagem atroz, que nunca poderia ter saído do meu tear, foi exibida contra mim. Por três vezes fui chamado à mesa. O terceiro chamado significava punição, conforme as regras das salas de fiação. Minha punição foi 24 horas na camisa-de-força. Levaram-me para o calabouço. Mandaram-me deitar de bruços sobre a lona esticada no chão. Recusei. Um dos guardas, Morrison, apertou-me a garganta com os polegares. Mobins, o encarregado dos calabouços, ele próprio um presidiário, socou-me várias vezes. Deitei-me por fim, como me ordenavam. E eles, irritados com a minha resistência, me amarraram com força adicional. E comportamento. Hoje ele é um homem de meia-idade e ainda está em San Quentin. Se ele sobreviver, será um velho quando o soltarem. Eu vivi as minhas 24 horas e nunca mais fui o mesmo homem. Ah, não quero dizer fisicamente; embora eu estivesse semiparalisado quando me desamarraram na manhã seguinte e em tal estado de prostração que os guardas tiveram de me chutar as costelas para me pôr de pé. Mas mentalmente, moralmente, eu era um homem mudado. A brutal tortura física era uma humilhação e uma afronta ao meu espírito e ao meu senso de justiça. Tal disciplina não amacia um homem. Eu saí daquela primeira sessão na camisa-de- força cheio de uma amargura e de um ódio apaixonado que só fizeram aumentar ao longo dos anos. Meu Deus! Quando penso nas coisas que os homens me fizeram! Vinte e quatro horas na camisa-de-força! Mal podia eu pensar, naquela manhã em que me chutaram para me pôr de pé, que chegaria um tempo em que 24 horas na camisa-de-força nada significariam; em que cem horas na camisa- de-força me deixariam sorrindo quando me desamarrassem; em que 240 horas na camisa-de-força deixariam o mesmo sorriso em meus lábios. Sim, duzentas e quarenta horas. Caro e pacato cidadão, você percebe o que isso significa? Significa dez dias e dez noites na camisa-de-força. Ah, claro, tais coisas não são feitas em parte alguma da Cristandade mil e novecentos anos depois de Cristo. Não lhe peço para acreditar em mim. Nem eu acredito em mim mesmo. Só sei que fizeram isso comigo em San Quentin e que eu vivi para rir deles e os obriguei a se livrarem de mim me enforcando porque fiz sangrar o nariz de um guarda. Escrevo estas linhas hoje, no Ano de Nosso Senhor de 1913 e hoje, no Ano de Nosso Senhor de 1913, homens estão amarrados numa camisa-de-força nos calabouços de San Quentin. Nunca esquecerei, enquanto viver e enquanto outras vidas me forem concedidas, minha despedida de Philadelphia Red naquela manhã. Ele já estava havia 74 horas na camisa-de-força. — Bom, irmão, você continua vivo e de boa saúde — disse-me ele enquanto eu cambaleava da minha cela para o corredor. — Cala a boca, Red — rosnou o sargento para ele. — Vê se me esquece — foi a resposta. — Ainda te pego, Red — ameaçou o sargento. — Pega, é? — perguntou Philadelphia Red com doçura, e depois sua voz tomou- se selvagem. — Seu lixo, você não pega droga nenhuma. Você não pega nem comida de graça, quanto mais esse empreguinho aí se não é pela ajuda do teu irmão. E todo mundo sabe a fedentina do lugar onde o teu irmão arruma ajuda. Foi admirável; o espírito humano elevando-se além dos seus limites, sem temer os castigos que qualquer bruto do sistema poderia lhe infligir. — Bom, irmão, até a vista — continuou Philadelphia Red, dirigindo-se a mim — Até a vista. Seja bonzinho e ame o Diretor. E quando encontrar com eles, diga que você me viu mas que não me viu quebrado. O sargento estava vermelho de raiva e eu, recebendo vários pontapés e pancadas, paguei o gracejo de Red. CAPITULO 8 Na solitária, na Cela 1, o Diretor Atherton e o Capitão Jamie continuaram a me interrogar. Como me disse o Diretor Atherton: — Standing, você vai me confessar onde está essa dinamite ou vou te matar na camisa-de-força. Já liquidei gente mais dura que você. Pode escolher: dinamite ou ponto final. — Se é assim, acho que é ponto final — respondi, — porque eu não sei nada de dinamite nenhuma. Irritado, o Diretor partiu para ação imediata. — Deita aí — ordenou-me. Obedeci, pois já tinha aprendido a loucura de lutar contra três ou quatro brutamontes. Amarraram-me bem apertado e me deram cem horas. Uma vez a cada 24 horas eu recebia um gole d'água. Eu não sentia vontade de comer, e tampouco me ofereceram qualquer alimento. Perto do final das cem horas, Jackson, o médico da prisão, examinou-me diversas vezes. Mas eu já tinha me acostumado à camisa-de-força, durante meus dias de incorrigível, para deixar que uma única sessão me afetasse. É claro que ela me enfraquecia e quase me tirava a vida; mas eu tinha aprendido algumas manobras musculares para ganhar certa folga enquanto me amarravam. Ao fim da primeira sessão de cem horas eu estava esgotado e cansado, mas isso era tudo. Depois de um dia e uma noite para me recuperar, deram-me outra sessão de cem horas. E então me deram 150 horas. A maior parte desse tempo eu estava fisicamente entorpecido e mentalmente delirante. Mas, por um esforço da vontade, consegui dormir longas horas. A seguir, o Diretor Atherton tentou uma variação. Recebi intervalos irregulares de camisa-de-força e recuperação. Eu nunca sabia quando iria para a camisa- de-força. Assim, teria dez horas de recuperação e 20 de camisa-de-força; ou apenas quatro horas de descanso. Nas horas mais inesperadas da noite minha porta se abria com estrondo e os guardas me amarravam. Às vezes instituíam um ritmo. Assim, por três dias e noites eu alternei oito horas na camisa-de-força e oito horas fora dela. E então, quando eu estava me acostumando a esse ritmo, ele foi subitamente alterado e recebi dois dias e duas noites direto. E sempre, sempre me faziam a eterna pergunta: Onde está a dinamite? Às vezes o Diretor Atherton ficava furioso comigo. Uma vez, quando suportei uma sessão extremamente severa na camisa-de-força, ele quase me suplicou para confessar. Uma vez ele chegou a me prometer três meses no hospital, com repouso absoluto e boa comida, e o cargo de encarregado da biblioteca. nas patas traseiras; o deslocamento dos pastos que se seguiu à limpeza feita pelas cabras. Sim, o encanto desse sonho era a sua continuidade. E chegou o dia em que homens com machados derrubaram a vegetação mais alta, para dar às cabras acesso às folhas e brotos e cascas. Chegou o dia de inverno em que os esqueletos nus e secos de todas essas árvores foram empilhados e queimados. Chegou o dia em que movi minhas cabras para outras encostas cheias de um matagal impenetrável, com meu gado seguindo-as e pastando, afundados até os joelhos na grama suculenta que crescia onde antes só havia o matagal. E chegou o dia em que movi meu gado para diante enquanto meus lavradores percorriam os contornos das encostas, arando a terra rica em húmus vivo na qual seriam lançadas as sementes das minhas futuras colheitas. Sim, e nos meus sonhos muitas vezes desembarquei do trem de bitola estreita na aldeia esparramada ao lado do riacho seco e subi na minha carroça puxada por cavalos da montanha e dirigi, hora após hora, passando pelos velhos marcos familiares, até os meus campos de alfafa e minhas pastagens, onde minhas plantações alternadas de milho, cevada e trevo estavam prontas para ser colhidas e onde vi meus homens ocupados com a colheita enquanto além, mais para cima, minhas cabras comiam o mato das encostas mais altas e as transformavam em campos limpos e aráveis. Mas esses eram sonhos, puros sonhos, aventuras fantasiosas da minha mente subconsciente dedutiva. Diferentes deles, como você verá, foram minhas outras aventuras quando ultrapassei os portais da morte em vida e mais uma vez vivi a realidade das outras vidas que foram minhas em outros tempos. Nas longas horas de vigília na camisa-de-força, descobri que eu pensava muito em Cecil Winwood, o poeta-falsário que, por capricho, fez desabar sobre mim todo esse tormento e que já estava de volta, em liberdade, ao mundo dos homens livres. Não, eu não o odiava. A palavra ódio é muito fraca. Não existe, na nossa língua, nenhuma palavra suficientemente forte para descrever meus sentimentos. Só posso dizer que conheci o martírio de uma vontade de vingar-me dele que chegava a ser dolorosa e excedia todos os limites da linguagem. Não falarei das muitas horas que dediquei a planejar torturas para ele, nem dos meios e instrumentos diabólicos de tortura que inventei. Só um exemplo: fiquei fascinado pela antiga tortura de amarrar uma gaiola de ferro, contendo um rato, ao corpo de um homem; o único jeito do rato escapar era roendo o corpo do homem. Como eu disse, fiquei fascinado por essa tortura até que percebi que seria uma morte rápida demais; e então pus-me a pensar longamente sobre a tortura moura de... mas não, prometi não falar mais desse assunto. Basta dizer que muitas das minhas horas de vigília, enlouquecido pelas dores, foram devotadas a sonhos de vingança contra Cecil Winwood. CAPITULO 9 Uma coisa de grande valor que aprendi nas longas e dolorosas horas de vigília foi o domínio do corpo pela mente. Aprendi a sofrer passivamente como, sem dúvida, aprenderam todos os homens que passaram pelo curso de pós-graduação da camisa-de-força. Ah, não é fácil manter o cérebro em sereno repouso, tão sereno que ele esquece os intensos e palpitantes queixumes dos nervos torturados. E foi exatamente esse domínio da carne pelo espírito que me permitiu praticar com tanta facilidade o segredo que Ed Morrell me ensinou. — Você acha que é ponto final? — perguntou-me Ed Morrell uma noite, por batidas. Eu acabava de ser libertado de cem horas na camisa-de-força e estava mais fraco do que nunca. Tão fraco que, embora todo o meu corpo fosse uma massa de ferimentos e miséria, eu mal percebia que tinha um corpo. — Parece que é — bati em resposta. — Eles me liquidam se continuarem assim por mais tempo. — Não deixe — aconselhou ele. — Tem um jeito. Eu aprendi aqui na cela uma vez que o Massie e eu entramos numa pior. Deu certo comigo. Mas o Massie estourou. Se eu não tivesse aprendido esse truque tinha estourado que nem ele. Você tem que estar bem fraco antes de tentar. Se você tentar quando ainda está forte, não dá certo e daí você fica com medo de tentar de novo. O meu erro foi que contei o truque para o Jake quando ele estava forte. É claro que não funcionou com ele e, depois, quando chegou a hora que ele precisou, já era tarde demais, o primeiro fracasso deu medo nele. Agora ele não acredita. Ele acha que estou brincando com ele... Não é verdade, Jake? Da Cela 13, Jake respondeu com suas batidas: — Não engula essa, Darrell. É um conto de fadas. — Vai, me conta — pedi a Morrell. — É por isso que eu esperei até você estar bem fraco de verdade — continuou ele. — Agora você está precisando e eu vou te contar. Fica por tua conta. Se você quiser, você consegue. Eu já fiz três vezes e sei como é. — Bom, e o que é, afinal? — perguntei ansioso. — O truque é morrer dentro da camisa-de-força, é querer morrer. Eu sei que você ainda não está me entendendo, mas espere. Você sabe como a gente fica entorpecido na camisa, o jeito que o braço ou a perna adormecem. Agora, você não pode evitar isso, mas dá para entender a idéia e ir trabalhando nela. Você não espera até as pernas ou outra parte irem ficando adormecidas. Você se deita de costas, o mais confortável que der, e começa a usar a vontade. — E é nessa idéia que você precisa ficar pensando e você precisa acreditar nela o tempo todo. Se você não acreditar, não dá certo. O que você precisa pensar e acreditar é que o teu corpo é uma coisa e o teu espírito é outra .coisa. Você é você, e o teu corpo é uma outra coisa que não vale nada. O corpo não conta. Você é que manda. Você não precisa do corpo. E quando pensar e acreditar nisso, você vai em frente usando a vontade. Você faz o corpo morrer. — Você começa com os dedos do pés, um de cada vez. Você faz cada dedo morrer. Você quer que o dedo morra. E se você acreditar e quiser, os dedos vão morrer. Esse é o ponto mais importante: começar a morrer. Depois que você fizer o primeiro dedo morrer, o resto é fácil, aí você não precisa mais ficar acreditando. Aí você sabe. E aí você põe toda a vontade em fazer o resto do corpo morrer. Estou te dizendo, Darrell, eu sei. Já fiz três vezes. — Depois que você começa a morrer, tudo segue direto. E o engraçado é que você está aí, você está aí o tempo todo. Quando um dedo morre, não é como você estar morto. Vai indo devagar, a perna morre até o joelho e depois até a coxa e você é exatamente o mesmo que sempre foi. É o corpo que está saindo da jogada, um pedaço de cada vez. E você é exatamente você, o mesmo que você era antes de começar. — E daí o que acontece? — perguntei. — Bom, quando o corpo está todo morto, mas você ainda está todo aí, você simplesmente sai da pele e abandona o corpo. E quando você abandona o corpo, você abandona a cela. Parede de pedra e porta de ferro servem para prender o corpo. Elas não podem prender o espírito. Olha, isso já está provado. Você é espírito fora do teu corpo. Você pode olhar para o teu corpo de fora dele. Eu te digo, eu sei, porque eu já fiz três vezes: eu olhei para o meu corpo lá deitado e eu estava fora dele. — Há-há-há! — Jake Oppenheimer enviou sua gargalhada, de uma distância de trezes celas. — Olha, esse é o problema do Jake — continuou Morrell. — Ele não acredita. Aquela vez que ele tentou, ele ainda estava muito forte e não funcionou. E ele agora acha que eu estou brincando. — Quando você morre você está morto, e um morto fica morto — replicou Oppenheimer. — Estou te dizendo que eu já morri três vezes — argumentou Morrell. — E viveu pra nos contar — zombou Oppenheimer. — Não esqueça uma coisa, Darrell — avisou-me Morrell — A coisa é difícil. O tempo todo você tem uma sensação de que está indo longe demais. Não dá pra CAPITULO 10 E na manhã seguinte, o Diretor Atherton entrou na minha cela com intenções homicidas. Com ele vieram o Capitão Jamie, o Doutor Jackson, Pie-Face Jones e Al Hutchins. Al Hutchins cumpria uma pena de 40 anos e esperava ser indultado. Já fazia quatro anos que ele era o encarregado-chefe de San Quentin. Você entenderá o valor desse cargo se eu lhe disser que o rendimento dos subornos recebidos pelo encarregado-chefe era estimado em três mil dólares por ano. Portanto, Al Hutchins, com dez ou 12 mil dólares no bolso e uma promessa de indulto, podia ser confiado para cumprir cegamente as ordens do Diretor. Eu disse que o Diretor Atherton entrou na minha cela com intenções homicidas. Seu rosto o mostrava. Suas ações o provaram. — Examine-o — ordenou ao Doutor Jackson. Aquele arruinado projeto de gente arrancou-me a camisa incrustada de sujeira que eu usava desde minha entrada na solitária e expôs meu pobre corpo devastado, a pele estirada como um pergaminho pardacento sobre as costelas, coberta pelas feridas causadas nas muitas sessões na camisa-de-força. O exame foi desavergonhadamente superficial. — Ele agüenta? — quis saber o Diretor. — Sim — respondeu o Doutor Jackson. — E o coração? — Excelente. — O senhor acha que ele agüenta dez dias. Doe? — Claro. — Não acredito que agüente — anunciou o Diretor brutalmente — Mas vamos tentar assim mesmo. Deita aí, Standing. Obedeci, estirando-me de bruços sobre a lona aberta no chão. O Diretor pareceu pensar por um instante. — Vire de costas — ordenou-me. Fiz várias tentativas para virar-me, mas estava fraco demais e, na minha fraqueza, só conseguia me torcer e retorcer. — Fingindo — foi o comentário de Jackson. — Bom, ele não vai precisar fingir quando eu tiver acabado com ele — disse o Diretor. — Dá uma mão. Não posso perder mais tempo com ele. E assim eles me viraram de costas e olhei o rosto do Diretor Atherton. — Standing — disse ele pausadamente —, já te dei toda a corda que era para te dar. Estou cansado e cheio da tua teimosia. Minha paciência acabou. O Doutor Jackson aqui diz que você pode agüentar dez dias na camisa-de-força. Você pode avaliar as tuas chances. Mas vou te dar uma última chance agora. Diga onde está a dinamite. Na hora que eu tiver a dinamite tiro você daqui. Você toma um banho e faz a barba e bota uma roupa limpa. Te deixo seis meses engordando com a comida do hospital e depois te faço encarregado da biblioteca. Você não podia pedir para eu ser mais justo. Além disso, você não vai estar denunciando ninguém. Você é a única pessoa em San Quentin que sabe onde está a dinamite. Você não vai fazer mal a ninguém se desistir e vai estar numa boa na hora que desistir. E se você não desistir... Ele fez uma pausa e encolheu os ombros significativamente. — Bem, se você não desistir, começa os dez dias agora mesmo. A perspectiva era aterrorizante. Eu estava tão fraco que cheguei a compartilhar da certeza do Diretor de que a morte me esperava na camisa-de-força. E então lembrei o truque de Morrell. Agora, mais do que nunca, ele seria necessário; agora, mais do que nunca, haveria o tempo de praticá-lo com fé. Sorri na cara do Diretor Atherton. E pus toda a minha fé naquele sorriso, pus toda a minha fé na proposta que lhe fiz. — Diretor — disse —, o senhor está vendo como estou sorrindo? Bom, se eu lhe sorrir assim quando me desamarrarem depois de dez dias, o senhor dá um pacote de Bull Durham e papel de cigarro para Morrell e Oppenheimer? — Pois não é que são todos uns malucos, esses caras de faculdade? — bufou o Capitão Jamie. O Diretor Atherton era um homem colérico e tomou minha proposta como puro braggadocio, pura bravata. — Por causa dessa você vai levar uma “apertada” extra — avisou-me. — Eu fiz uma proposta esportiva, Diretor — disse calmamente. — O senhor pode me amarrar o mais apertado que quiser, mas se eu sorrir daqui a dez dias o senhor dá o Bull Durham para o Morrell e o Oppenheimer? — Você está muito seguro de si — respondeu ele. — É por isso que fiz a proposta — respondi. — Virando religioso, é? — zombou ele. — Não — foi a minha resposta. — Só que acontece que a minha vida é mais longa do que o teu braço alcança. Faça cem dias se quiser e vou sorrir quando acabar. — Acho que dez dias são o bastante para acabar com você, Standing. — Essa é a tua opinião — eu disse. — O senhor acredita mesmo nisso? Se acredita, por que é que não arrisca os cinco centavos de um pacote de tabaco? Tem medo do quê? — Por cinco centavos te chuto a cara agora mesmo — rosnou ele. — Não se acanhe por minha causa — minha voz estava insolentemente suave. — Chute quanto quiser e eu ainda vou ter cara suficiente para sorrir. E enquanto o senhor fica na dúvida, que tal aceitar a minha proposta? Em tais circunstâncias, um homem precisa estar terrivelmente fraco e profundamente desesperado para ser capaz de desafiar o Diretor. Talvez ele esteja fraco e desesperado e, além disso, talvez ele tenha fé. Hoje eu sei que tinha fé e que agi baseado nessa fé. Eu acreditava naquilo que Morrell tinha me dito. Eu acreditava no domínio da mente sobre o corpo. Eu acreditava que nem mesmo cem dias na camisa-de-força poderiam me matar. O Capitão Jamie deve ter sentido essa fé que me sustentava, pois disse: — Me lembra um sueco que ficou louco uns 20 anos atrás. Foi antes do seu tempo. Diretor. Ele matou um homem numa briga por causa de 25 centavos e pegou perpétua. Era um cozinheiro. Aí ele virou religioso. Disse que uma carruagem de ouro estava vindo para levar ele para o céu e sentou em cima do fogão aceso e ficou lá assando e cantando hinos e hosanas. Tiraram ele de lá, mas ele morreu no hospital dois dias depois. Estava assado até o osso. E jurava que não tinha sentido o calor do fogo. Não deu um guincho. — Nós vamos fazer o Standing dar uns guinchos — disse o Diretor. — Já que o senhor tem tanta certeza, por que não aceita a minha proposta? — desafiei. O Diretor ficou tão furioso que eu teria achado engraçado se não estivesse numa situação tão desesperada. Seu rosto ficou convulsionado. Ele cerrou os punhos e por um momento parecia estar prestes a se atirar sobre mim e me espancar. Então, com esforço, ele se controlou. — Tudo bem, Standing — rosnou —, trato feito. Mas pode apostar que você vai ter que dar um belo dum sorriso daqui a dez dias. Virem ele, rapazes, e apertem até ouvir as costelas estalando. Hutchins, mostre para ele que você conhece o ofício. E eles me viraram de bruços e me amarraram como eu nunca tinha sido amarrado antes. O encarregado-chefe certamente demonstrou suas habilidades. Tentei roubar um pouco de folga. E foi só um pouquinho, pois havia muito eu tinha perdido a carne e meus músculos estavam reduzidos a meros cordéis. Eu não tinha nem a força nem a massa para roubar mais do que um pouquinho de espaço, e juro que o pouco que roubei foi conseguido por pura expansão das morrer. Tudo aquilo que era eu foi devotado àquela única tarefa. Desempenhei o trabalho com tanto rigor quanto um pedreiro a assentar tijolos e encarei o trabalho como algo rotineiro, assim como o pedreiro encara seu trabalho. Ao fim de uma hora meu corpo estava morto até a altura dos quadris e, dos quadris para cima, junta após junta, continuei a querer a morte. Foi quando cheguei à altura do coração que minha consciência começou a se enevoar e sentir vertigens. Com medo de perder a consciência, quis suspender a morte que já tinha alcançado e transferi minha concentração para os dedos. Meu cérebro clareou-se novamente e a morte, dos braços até os ombros, foi alcançada com extrema rapidez. Nesse estágio, no que se referia a mim o meu corpo todo estava morto, exceto minha cabeça e uma pequena região do meu peito. As batidas e o esmagamento do coração comprimido não mais ecoavam em meu cérebro. Meu coração batia, fraca mas firmemente. A alegria, se eu ousasse sentir alegria num tal momento, teria sido a extinção de toda sensação. Nesse ponto minha experiência difere da de Morrell. Continuando a impor minha vontade de modo automático, comecei a sentir-me sonhador — como acontece naquela terra fronteiriça entre o sono e o despertar. Também me parecia ocorrer uma prodigiosa ampliação do meu cérebro, dentro do próprio crânio que não se ampliava. Houve ocasionais cintilações e lampejos de luz como se eu, o mestre supremo, tivesse me extinguido por um momento e no momento seguinte fosse novamente eu mesmo, ainda o ocupante do receptáculo de carne que eu fazia morrer. O mais desconcertante era a aparente ampliação do cérebro. Mesmo sem ter ultrapassado as paredes do meu crânio, parecia-me que a periferia do meu cérebro já estava fora do meu crânio e continuava a se expandir. Junto com esta, ocorreu uma das mais admiráveis sensações ou experiências que já encontrei. Tempo e espaço, enquanto substância da minha consciência, passaram por um enorme alargamento. Assim, sem abrir os olhos para verificar, eu sabia que as paredes da minha cela estreita tinham recuado até que a cela se tomasse um imenso salão. Enquanto contemplava, eu sabia que as paredes continuavam a recuar. Por um momento, assaltou-me uma fantasia: se uma expansão semelhante estivesse ocorrendo com toda a prisão, então os muros de San Quentin estariam distantes no Oceano Pacífico, por um lado, e no outro lado tocariam o deserto de Nevada. Uma outra fantasia: já que a matéria podia permear a matéria, então as paredes da minha cela poderiam perfeitamente permear os muros da prisão, ultrapassar os muros da prisão e assim colocar minha cela fora da prisão e colocar-me em liberdade. É claro que tudo isso não passava de fantasias da minha imaginação — e eu sabia, naquele instante, que assim era. O alargamento do tempo também era admirável. Meu coração só batia a longos intervalos. Outra fantasia me ocorreu e contei os segundos, lentos e certos, entre as batidas do meu coração. De início, como notei com clareza, mais de cem segundos se passavam entre cada batida. Mas, conforme continuei a contagem, os intervalos se alongaram tanto que me cansou contá-los. E enquanto essa ilusão de alargamento do tempo e espaço persistia e aumentava, refleti sonhadoramente sobre um novo e profundo problema. Morrell me disse que se libertou de seu corpo matando seu corpo — ou eliminando-o de sua consciência; o que, é claro, é a mesma coisa. Meu corpo estava agora tão perto de estar inteiramente morto que eu soube, do modo mais absoluto, que a rápida concentração da vontade na região ainda viva do meu tronco faria com que ela também deixasse de existir. Mas aqui estava o problema... e Morrell não me alertou sobre ele: deveria eu também querer que minha cabeça morresse? Se eu o fizesse — não importa o que acontecesse ao espírito de Darrell Standing — não estaria o corpo de Darrell Standing morto para sempre? Tentei o peito, tentei o coração com suas batidas vagarosas. A rápida compulsão da minha vontade foi recompensada. Eu não tinha mais peito nem coração. Eu era apenas uma mente, uma alma, uma consciência — chame-a como quiser — incorporada a um cérebro nebuloso que, embora ainda centrado dentro do meu crânio, estava expandido e continuava a se expandir além do meu crânio. E então, com lampejos de luz, eu estava fora, eu estava longe. Num salto, pulei o teto da prisão e o céu da Califórnia e estava entre as estrelas. Digo “estrelas” deliberadamente. Caminhei entre as estrelas. Eu era uma criança Eu vestia uma túnica diáfana de algodão, de tons delicados, que tremeluzia à gélida luz estelar. Essa túnica, é claro, baseava-se nas minhas observações infantis dos atores circenses e na minha concepção infantil das roupas dos anjos. Assim vestido pisei o espaço interestelar, exaltado pelo conhecimento de que meu destino era a aventura infinita e que, em seu final, eu encontraria todas as fórmulas cósmicas e esclareceria o segredo último do universo. Em minha mão, eu levava uma varinha de cristal. Eu sabia que, ao passar pelas estrelas, devia tocá-las com a ponta da varinha. E eu sabia, com absoluta certeza, que se deixasse escapar uma única estrela, eu seria precipitado num abismo insondável de punição e culpa eternas. Por longo tempo continuei minha busca estelar. Quando digo “longo”, você não deve esquecer o enorme alargamento do tempo que ocorreu no meu cérebro. Durante séculos eu pisei o espaço, mirando cuidadosamente com a ponta da varinha cada estrela pela qual passava. E o caminho tomava-se mais cada vez mais luminoso. E o inefável objetivo da infinita sabedoria aproximava-se cada vez mais. Mas não enganei a mim mesmo. Esse não era um outro “eu”. Essa não era uma experiência que um dia foi minha. Eu sabia o tempo todo que era eu, Darrell Standing, quem caminhava entre as estrelas e as tocava com uma varinha de cristal. Em suma, eu sabia que aqui nada era real, nada que já tivesse me acontecido ou que viesse a me acontecer. Eu sabia que essa experiência nada mais era do que uma delirante orgia da imaginação — como os delírios das drogas, da febre ou do sono. E então, quando tudo era alegria e felicidade na minha busca celestial, a ponta da minha varinha errou uma estrela e eu soube, de imediato, que era culpado de um grande crime. De imediato uma pancada me atingiu — vasta e compulsiva, inexorável e mandatória como a batida dos tacões de ferro da desgraça — e reverberou através do universo. Todo o sistema sideral coruscou, oscilou e tombou em chamas. Fui rasgado por uma intensa e lacerante agonia. E num instante, eu era Darrell Standing, o condenado à prisão perpétua, amarrado na camisa-de-força na solitária. E percebi a causa imediata daquele chamado. Eram as batidas dos dedos de Ed Morrell, na Cela 5, começando a soletrar uma mensagem. Eu gostaria de explicar o alargamento de tempo e espaço que eu experimentava. Muitos dias mais tarde, perguntei a Morrell o que ele tinha tentado me transmitir. Era uma simples mensagem: “Standing, você está aí?” Ele a bateu rapidamente, enquanto o guarda estava na outra extremidade do corredor. Como eu disse, ele bateu a mensagem com muita rapidez. E agora veja só! Entre a primeira e a segunda batida, eu estava viajando entre as estrelas, vestido com a singela túnica de algodão, tocando cada estrela ao passar em busca das fórmulas que explicariam o mistério último da vida. E prossegui nessa busca por séculos. Então veio o chamado, a pancada dos tacões da desgraça, a intensa agonia lacerante... e eu estava novamente na minha cela em San Quentin. Era a segunda batida dos dedos de Ed Morrell. O intervalo entre ela e a primeira batida não poderia ter sido mais longo do que um quinto de segundo. No entanto, tão imponderavelmente vasto foi o alargamento do tempo para mim que, no decurso daquele quinto de segundo, peregrinei entre as estrelas por longas eras. Eu sei, meu leitor, que tudo o que relatei mais parece um amontoado de coisas sem nexo. Concordo com você. É um amontoado de coisas sem nexo. Mas foi experiência. Foi tão real para mim como a cobra que um homem vê no delirium tremens. E possível que Ed Morrell tenha levado dois minutos, no máximo, para transmitir sua pergunta. Mas muitas eras transcorreram para mim entre a primeira batida e a última das batidas dos seus dedos. E eu receava continuar a seguir meu caminho estelar com a inefável alegria da inocência; pois temia o chamado inevitável que iria me dilacerar quando me arrastasse de volta para o inferno da camisa-de-força. Assim, minhas eras de peregrinação nas estrelas foram eras de medo. marta sobre o encosto da cadeira. E desdenhou: — Oitocentos ducados. Mil cabras e cem bois gordos numa capa para manter-vos aquecido. Uma dúzia de ricas fazendas nas belas costas do meu senhor. — E nisto aqui, uma centena de belas fazendas, com um castelo ou dois de entremeio e até, quem sabe, um palácio — disse eu, estendendo a mão e tocando o florete que ele colocava sobre a cadeira. — Que vosso pai ganhou com seu poderoso braço direito —retrucou Pons. — Mas o que vosso pai ganhou, ele conservou. Pons fez uma pausa para levantar nas mãos e zombar do meu novo gibão de cetim escarlate; uma maravilha, uma das minhas extravagâncias. — Sessenta ducados por isto — acusou Pons. — Vosso pai teria feito todos os alfaiates e judeus da Cristandade assarem no fogo do inferno antes de pagar tal preço. E enquanto nos vestíamos — ou melhor, enquanto Pons me ajudava a vestir-me — continuei a gracejar dele. — Está evidente, Pons, que ainda não soubestes das novas — disse eu com malícia. E ele, grande apreciador de boatos que era, apurou os ouvidos. — Novas? — perguntou. — Da Corte inglesa, por acaso? — Não — sacudi a cabeça. — Novas talvez para vós, embora já conhecidas há muito tempo. Então não ouvistes? Os filósofos da Grécia já comentavam essa notícia há uns dois mil anos. É por causa dessa notícia que visto o valor de vinte ricas fazendas sobre minhas costas, que vivo na Corte e me transformei num dândi. Vede, Pons, o mundo é van lugar muito mau, a vida é muito triste, todos os homens devem morrer e, uma vez mortos... bem, mortos estão. Portanto, para escapar ao mal e à tristeza, os homens de hoje, como eu, buscam o aturdimento, a insensibilidade e a loucura da frivolidade. — Mas e as novas, mestre? O que diziam os filósofos há tanto tempo? — Que Deus está morto, Pons — respondi com voz solene. — Não sabíeis? Deus está morto e logo eu estarei morto e, mesmo assim, visto o valor de vinte ricas fazendas sobre minhas costas. — Deus vive — afirmou Pons com fervor. — Deus vive e seu reino está ao nosso alcance. Digo-vos, mestre, está ao nosso alcance. O fim do mundo pode chegar amanhã. — Assim gritavam eles na velha Roma, Pons, quando Nero fazia deles archotes para iluminar os jogos do Circo. Pons olhou-me cheio de piedade. — Aprender demais é uma doença — queixou-se. — Eu sempre fui contra. Mas quereis fazer tudo a vosso modo e arrastais meu velho corpo convosco. Estudar astronomia e numerologia em Veneza, poesia e todas essas frivolidades italianas em Florença, astrologia em Pisa e sabe Deus o que naquelas terras doidas da Alemanha. Bolas para os filósofos. Digo-vos, mestre, eu, Pons, vosso servo, um pobre velho que não distingue uma carta de um bordão, eu vos digo que Deus vive e que se aproxima o momento de vos apresentardes diante dEle. — Ele fez uma pausa, com uma lembrança repentina e acrescentou: — Ele está aqui, o padre de que me falastes. Lembrei-me, de súbito, do meu compromisso. — Por que não me dissestes antes? — perguntei furioso. — E que diferença faria? — Pons encolheu os ombros. — Pois ele já não vos espera faz duas horas? — E por que não me acordastes? Ele me olhou com um olhar pensativo e cheio de censura. — Ah, sim, depois que vos arrastastes para o leito a cantar como aquele galo da fábula: Canta o cuco, canta o cuco, cuco cuco cuco, canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco, canta o caco. E ele, num falsetto desafinado, me imitava a cantar esse refrão absurdo. Na véspera, sem dúvida, achei o caminho da minha cama a berrar essa tolice. — Tendes boa memória — comentei secamente, enquanto experimentava sobre os ombros as dobras da minha nova capa de marta, antes de atirá-la a Pons para que a guardasse. Ele sacudiu a cabeça com amargura. — Não é preciso memória quando o berrastes por tantas vezes que metade da hospedaria esteve a nos esmurrar a porta e a vos amaldiçoar por tirardes o sono a todos. E quando afinal consegui instalar-vos decentemente na cama, pois não é que me chamastes para me ordenar que se o diabo aparecesse lhe dissesse que minha senhora estava a dormir? E não me chamastes ainda outra e outra vez e agarrastes meu braço, vede, ainda está arroxeado, e não me ordenastes, por amor à vida, à carne gorda e ao fogo quente, para não vos acordar esta manhã exceto por um único motivo? — E qual seria esse motivo? — perguntei, incapaz de imaginar o que eu poderia ter dito. — O coração de um corvo negro, dissestes, de nome Martinelli, seja lá quem for, pelo coração desse Martinelli a fumegar numa bandeja de ouro. A bandeja há que ser de ouro, dissestes, e eu devia acordar-vos cantando Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco. E começastes a me ensinar a cantar Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco. E quando Pons mencionou o nome, eu soube de imediato que se tratava do padre, Martinelli, que estava a bater os calcanhares por duas longas horas no salão da hospedaria. Quando Martinelli recebeu permissão para entrar e me saudou por meu título e nome, fiquei sabendo quem eu era. Eu era o Conde Guillaume de Sainte-Maure. (Veja, naquele momento eu só podia saber — e lembrar mais tarde — o que estava na minha mente consciente.) O padre era italiano, baixo, de pele escura; sua magreza parecia causada pelo jejum ou por uma fome devastadora que não era deste mundo; suas mãos eram pequenas e finas como as de uma dama. Mas seus olhos! Seus olhos eram astutos e desconfiados, duas estreitas fendas sob as pálpebras pesadas; agudos como os olhos de um furão e indolentes como os de um lagarto a dormitar ao sol. — Tem havido muita demora. Conde de Sainte-Maure — começou ele de imediato, assim que Pons deixou o aposento obedecendo a um olhar meu. — Aquele a quem sirvo fica mais e mais impaciente. — Mudai vosso tom, padre — interrompi furioso. — Lembrai-vos de que não estais em Roma. — Meu augusto mestre... — começou ele. — Reina augustamente em Roma, talvez — interrompi mais uma vez. — Aqui é França. Martinelli encolheu os ombros com paciência e mansidão, mas seus olhos, a brilhar como os olhos de um basilisco, desmentiam o movimento dos ombros. — Meu augusto mestre preocupa-se com as questões de França — disse ele com suavidade. — A dama não se destina a vós. Meu mestre tem outros planos... — Umedeceu os lábios finos com a língua — outros planos para a dama... e para vós. E claro que eu sabia que a dama a quem ele se referia era a Duquesa Philippa, viúva de Geoffroy, último Duque da Aquitânia. E, embora duquesa e viúva, Philippa era mulher, jovem e alegre, bela e, por minha fé, gostava de mim. — Quais são os planos de vosso mestre? — perguntei bruscamente. — São profundos e amplos. Conde de Sainte-Maure, demasiado profundos e amplos para que eu possa presumir imaginá-los, muito menos conhecê-los ou discuti-los convosco ou com qualquer outro homem. — Ah, eu sei que grandes coisas estão em andamento mas sei também que vermes pegajosos estão a se retorcer por debaixo delas — foi meu comentário. — Disseram-me que éreis obstinado. Mas, em todo caso, obedeci às ordens que certeza de poder matar uma dúzia de Fortinis e tratar com desprezo uma dúzia de anciãos em Roma. Jean de Joinville ofereceu o braço a Philippa e conduziu-a em meio à multidão, enquanto Fortini e eu completávamos nossos arranjos num instante. Separamo- nos; ele para buscar seus padrinhos e eu para buscar meus padrinhos, ficando de nos encontrar no local combinado além do tanque dos peixes. Arregimentei Robert Lanfranc e Henry Bohemond. Mas antes de localizá-los, defrontei-me com uma biruta que me mostrou de que lado soprava o vento e prometia um furacão. Eu conhecia essa biruta dos ventos, Guy de Villehardouin, um provinciano rústico e recém-chegado à Corte mas que era, apesar de tudo, um fogoso galinho de briga. O cabelo ruivo; o azul dos olhos, pequenos e juntos, rodeado por um branco avermelhado; a pele, como sempre acontece com esse tipo, vermelha e sardenta: sua aparência lembrava, decididamente, carne crua. Quando eu passava a seu lado, ele, com um movimento súbito, me acotovelou. Ah, é claro, a coisa foi deliberada. E ele inflamou-se para cima de mim enquanto sua mão descia para o punho do florete. “Por minha fé”, pensei, “o ancião tem muitas e estranhas armas”, enquanto me inclinava diante do galo de briga e murmurava: — Peço-vos perdão por minha falta de jeito. A culpa foi toda minha. Peço-vos perdão, de Villehardouin. Mas ele não se satisfaria tão facilmente. E enquanto ele espumava e bravateava, vislumbrei Robert Lanfranc, acenei-lhe para que se aproximasse e expliquei-lhe o ocorrido. — Sainte-Maure reparou a ofensa — foi sua opinião. — Ele vos pediu desculpas. — Na verdade, sim — interrompi com a minha voz mais suave. — E peço-vos perdão mais uma vez, de Villehardouin, por minha imensa falta de jeito. Peço- vos mil perdões. A culpa foi minha, embora sem intenção. Em minha pressa para um compromisso fui desajeitado, terrivelmente desajeitado, mas sem intenção. O que mais poderia aquele tolo fazer exceto aceitar, embora de má vontade, as desculpas que eu lhe apresentava tão profusamente? Mas eu sabia, ao apressar- me em companhia de Lanfranc, que não se passariam muitos dias, ou muitas horas, até que o jovem de cabelos de fogo achasse um meio de medirmos o aço sobre a relva. A Lanfranc, disse apenas que precisava dele como padrinho; ele não estava interessado nos detalhes do assunto. Era um rapaz brilhante, não mais de vinte anos de idade mas treinado nas armas, lutou em Espanha e tinha um registro honroso na relva. Seus olhos negros luziram quando soube que ia haver um duelo, e tal era sua impetuosidade que ele próprio chamou Henry Bohemond para unir- se a nós. Quando nós três chegamos à clareira além do tanque dos peixes, Fortini e dois amigos já estavam à nossa espera. Um deles era Felix Pasquini, sobrinho do Cardeal Pasquini e tão íntimo do tio quanto o tio era íntimo do ancião em Roma. O outro era Raoul de Grouncort ; sua presença me surpreendeu, pois ele era um homem digno e nobre demais para andar em tal companhia. Saudamo-nos conforme as regras e, conforme as regras, colocamo-nos em posição. Não era novidade para nenhum de nós. O solo estava bom, conforme prometido. Não havia orvalho. A lua brilhava. O florete de Fortini e o meu foram desembainhados e se entrechocaram. Eu sabia que, embora eu fosse reconhecido como um bom espadachim em França, Fortini estava entre os melhores. Mas eu também sabia que tinha comigo, esta noite, o coração da minha dama; e que esta noite, por minha causa, haveria um italiano a menos no mundo. Digo que eu sabia. Na minha mente, não havia dúvidas. E enquanto nossos floretes se entrecruzavam, pensei no modo como o mataria. Eu não pretendia manter uma luta prolongada. Rapidez e brilho: esse sempre foi meu estilo. E depois desses últimos meses passados em alegres deboches, cantando Canta o cuco, canta o cuco, canta o cuco em horas ímpias da madrugada, eu sabia que não tinha condições físicas para uma luta prolongada. Rapidez e brilho: foi minha decisão. Mas descobri que rapidez e brilho seriam difíceis, tendo como oponente um espachadim consumado como Fortini. E quis a sorte que Fortini — sempre, como reportam as crônicas, um duelista frio, de punho incansável e com preferência pelos duelos demorados — nessa noite também optasse por rapidez e brilho. Foi um duelo nervoso e enervante pois, tão certo quanto eu percebi sua intenção de ser rápido, ele também percebeu a minha. Duvido que eu pudesse ter executado minha manobra se o duelo fosse à luz do dia e não à luz do luar. A vaga luminosidade ajudou-me. E também me ajudou conseguir intuir, um instante antes, o que ele tinha em mente. Era o ataque sincronizado — uma manobra comum, mas perigosa, conhecida por todos os iniciantes e que já lançou por terra muitos bons duelistas que a tentaram; e que oferece tanto perigo para seu executante que os espadachins não a apreciam. Estávamos a duelar mal fazia um minuto quando percebi que, sob toda aquela ofensiva ousada e brilhante, Fortini planejava exatamente o ataque sincronizado. Ele esperava de mim uma estocada e um avanço; não para deter minha estocada, mas sim para apanhá-la no momento exato e desviá-la com uma torção do punho, mantendo a ponta de seu florete dirigida para a frente, para me encontrar quando meu corpo seguisse o impulso do meu avanço. Uma manobra arriscada — ah, sim, uma manobra muito arriscada mesmo com a melhor das luzes. Se ele desviasse minha estocada uma fração de segundo cedo demais, eu seria avisado e me salvaria. Se ele desviasse minha estocada uma fração de segundo tarde demais, meu florete se alojaria em seu corpo. “Rapidez e brilho, não é?”, pensei. “Muito bem, meu amigo italiano, pois há de ser rápido e brilhante. E em especial, rápido há de ser.” De certo modo, era um ataque sincronizado contra outro, mas eu o enganaria na sincronização ao ser muito rápido. E fui rápido. Como eu disse, estávamos a duelar mal fazia um minuto quando aconteceu. Rápido? A minha estocada e o meu avanço foram uma coisa só. Foi um relâmpago de ação, foi uma explosão, foi uma instantaneidade. Juro que minha estocada e meu avanço foram uma fração de segundo mais rápidos do que se esperaria de qualquer espadachim. Eu ganhei uma fração de segundo. Nessa fração de segundo tarde demais, Fortini tentou desviar minha lâmina e trespassar-me com a sua. Mas foi a sua a lâmina que foi desviada. Ela passou raspando pelo meu peito e eu estava dentro — dentro de sua arma, que se estendia no ar vazio atrás de mim — e minha lâmina estava dentro dele, e através dele, na altura do coração, da direita para a esquerda e saindo por suas costas. Que coisa estranha de se fazer, espetar um homem vivo com uma lâmina de aço. Estou aqui na minha cela e deixo de escrever por um instante, pensando no assunto. Pensei com freqüência naquela noite enluarada na França de muito anos passados, quando ensinei rapidez e brilho ao cão italiano. Foi tão fácil, aquela perfuração de um tronco humano. Eu teria esperado mais resistência. Teria havido resistência se a ponta do meu florete tivesse encontrado o osso. Como aconteceu, encontrei apenas a maciez da carne. Mas, mesmo assim, ela foi tão fácil de perfurar. Tenho a sensação daquela perfuração agora, na minha mão, no meu cérebro, enquanto escrevo. Um alfinete não atravessaria um pudim com mais facilidade do que minha lâmina atravessou o italiano. Ah, não havia nisso nada de perturbador na época de Guillaume de Sainte-Maure; mas é perturbador para mim, Darrell Standing, quando relembro e penso no caso através dos séculos. É fácil, é espantosamente fácil matar um homem forte, vivo e cheia de energia com uma arma tão crua como uma lâmina de aço. Pois os homens não são como os caranguejos, tão tenros, tão frágeis, tão vulneráveis? De volta ao luar sobre a relva. Minha estocada penetrou em seu corpo, houve uma pausa perceptível. Fortini não caiu de imediato. Não retirei a lâmina de imediato. Durante todo um segundo ficamos numa pausa; eu, com as pernas abertas, corpo arqueado e tenso lançado para a frente, braço direito esticado na horizontal; Fortini, sua lâmina tão distante atrás de mim que o punho de seu florete tocava o lado esquerdo do meu peito, seu corpo rígido, seus olhos esbugalhados. Villehardouin para mim. Mas acenei a meus bons amigos para retrocederem. — Eles estão aqui cumprindo ordens — expliquei-lhes. — Sou eu que eles desejam... e com tanto empenho que, por minha fé, fui contagiado por esse desejo e agora eu os quero e eu os terei. Observei que Pasquini enervava-se com a demora de toda essa conversa e resolvi enervá-lo ainda mais. — Quanto a vós, Pasquini — anunciei —, resolverei rapidamente o assunto convosco. Não vos farei demorar, pois Fortini está à vossa espera. Quanto a vós, Raoul de Grouncort, eu vos punirei como mereceis por estardes em tão má companhia. Estais a engordar e respirais como um fole. Dedicarei alguns minutos a vós, enquanto vossa banha derrete e vossos pulmões ofegam e arquejam como foles furados. E vós, de Villehardouin, ainda não decidi de que modo vos matarei. E então saudei Pasquini e começamos. Ah, eu pretendia agir como um demônio extraordinário esta noite. Rapidez e brilho: assim haveria de ser. E eu estava consciente da enganadora luz do luar. Assim como fiz com Fortini, eu liquidaria Pasquini se ele ousasse o ataque sincronizado. Se ele não o tentasse, e depressa, eu o faria. Apesar do nervosismo que lhe provoquei, ele estava cauteloso. Mas forcei um duelo rápido e, naquela luz indefinida onde dependíamos mais do instinto que da visão, nossas lâminas entrechocavam-se continuamente. Mal se passou um minuto de duelo quando executei minha manobra. Fingi escorregar e, ao recuperar o equilíbrio, fingi ter perdido contato com a lâmina de Pasquini. Hesitante, ele deu uma estocada e dessa vez fingi abrir a guarda para deter sua lâmina. Meu corpo ficou totalmente exposto: essa foi a isca que lancei para atraí-lo. E ela o atraiu. Como um relâmpago, ele se aproveitou daquilo que lhe pareceu ser uma exposição involuntária. Sua estocada foi direta e certeira; sua vontade e seu corpo acompanharam de todo coração o ímpeto do seu avanço. Mas eu estava apenas fingindo, eu estava pronto para ele. Sutil, meu aço encontrou seu florete quando nossas lâminas se entrechocaram. E com apenas a firmeza necessária e nada mais, torci o punho e desviei sua lâmina com o punho do meu florete. Ah, que sutil desvio, um par de centímetros, apenas o suficiente para fazer com que a ponta de seu florete passasse por mim perfurando as dobras da minha capa de cetim. Seu corpo, é claro, acompanhou o avanço do seu florete; e na altura do coração, pelo lado direito, a ponta do meu florete encontrou seu corpo. E meu braço esticado estava tão rijo quanto o aço no qual se prolongava e, por trás do braço e do aço, meu corpo estava firme e sólido. Na altura do coração, eu disse, meu florete encontrou o lado direito de Pasquim; mas não saiu pelo lado esquerdo, porque, bem, em algum lugar através do seu corpo, meu aço encontrou uma costela (ah, matar um homem é ofício de açougueiro!) com tal ímpeto que a violência do golpe o desequilibrou e ele caiu, meio de costas, meio de lado. E enquanto ele caía e antes que atingisse a relva, arranquei meu florete de seu corpo com um repelão. De Grouncort correu para ele, mas Pasquini lhe fez sinais para que viesse me enfrentar. Pasquini não morreu rápido, como Fortini. Ele tossiu e cuspiu e, ajudado por de Villehardouin, apoiou-se num cotovelo, descansou a cabeça na mão e continuou a tossir e a cuspir. — Desejo-vos uma boa viagem, Pasquini — gargalhei na minha fúria sanguinária. — Apressai-vos, pois a relva onde descansais ficou molhada assim de repente e se ficardes aí deitado pegareis uma pneumonia. Quando me aprestei a duelar com de Groncourt, Bohemond protestou que eu deveria descansar um pouco. — Não — respondi-lhe. — Mal comecei a me aquecer. E para de Groncourt: — Agora vamos fazer-vos dançar e ofegar. Salute! O coração de de Grouncort não estava nessa missão. Ficou evidente que ele lutava em obediência a uma ordem. Seu estilo era fora de moda, como há de ser o estilo de um homem de meia-idade, mas ele não era um espadachim a ser desprezado. Era frio, determinado, tenaz. Mas não era brilhante e estava oprimido pela previsão da derrota. Uma dúzia de vezes, por minha rapidez e brilho, ele foi meu. Mas me refreei. Eu disse que estava demoníaco. E realmente estava. Cansei-o. Obriguei-o a se afastar da luz do luar e ele mal podia me ver, pois eu lutava na minha própria sombra. E enquanto eu o cansava até ele começar a arquejar, como eu tinha predito, Pasquini observava com a cabeça apoiada na mão, tossindo e cuspindo fora sua vida. — Agora, de Groncourt — anunciei finalmente. — Estais à minha mercê. Posso matar-vos de uma dúzia de maneiras. Aprontai-vos e firmai-vos, pois é assim que eu quero. E assim dizendo, passei de carte para tierce e enquanto ele se recuperava em desespero e abria a guarda, voltei a carte, aproveitei a abertura, atingi-o na altura do coração e atravessei-o de lado a lado. Diante desse resultado, Pasquini abandonou seu apego à vida, enterrou o rosto na relva, estremeceu por um instante e ficou imóvel. — Vosso mestre terá quatro servos a menos esta noite — assegurei a de Villehardouin, um instante antes de começarmos nosso encontro. E que encontro! O rapaz era ridículo. Impossível imaginar em que rústica escola de esgrima ele teria sido ensinado. Era um palhaço perfeito. “Trabalho rápido e simples”, pensei, enquanto seu cabelo ruivo encrespava-se com sua própria raiva e ele se lançava sobre mim como um louco. Ai de mim! Pois essa palhaçada foi minha ruína. Depois de alguns segundos de duelo, ridicularizando-o e rindo dele por não passar de um rústico desajeitado, ele estava tão enfurecido que esqueceu o quase nada de esgrima que conhecia. Com um giro amplo do braço, como se portasse um machado, ele fez seu florete assobiar no ar e abateu-o sobre o alto da minha cabeça. Fiquei estupefato. Nunca tinha me acontecido uma coisa tão absurda. Ele ficou com a guarda totalmente aberta e eu poderia tê-lo atravessado. Mas como eu disse, fiquei estupefato; a única coisa que percebi foi a dor do aço entrando em minha carne quando esse provinciano desajeitado me atravessou e se lançou para a frente, como um touro, até que o punho de seu florete bateu no meu peito e me atirou para trás. Ao cair, vi a preocupação no rosto de Lanfranc e Bohemond; e vi o brilho de satisfação no rosto de Villehardouin enquanto ele apertava sua lâmina contra mim. Eu estava caindo... mas jamais cheguei a atingir a relva. Atingiu-me uma névoa de luzes coruscantes, um estrondo em meus ouvidos, a escuridão, o vislumbre de uma luz fraca surgindo aos poucos, um repelão, uma dor torturante além de qualquer descrição e então ouvi a voz de uma pessoa que dizia: — Não estou sentindo nada. Eu conhecia a voz. Era a voz do Diretor Atherton. E reconheci a mim mesmo como Darrell Standing, acabando de retomar através dos séculos para o inferno da camisa-de-força de San Quentin. E eu sabia que os dedos que tocavam meu pescoço eram os dedos do Diretor Atherton. E eu sabia que os dedos que afastaram os dedos do Diretor eram os dedos do Doutor Jackson. E era a voz do Doutor Jackson que dizia: — Parece que o senhor não sabe tomar o pulso de um homem pelo pescoço. Aqui, olhe, bem aqui, bote o dedo bem aqui. Sentiu? Ah, bem como eu pensei. O coração está fraco, mas está regular como um relógio. — Só faz 24 horas — disse o Capitão Jamie — e ele nunca ficou nesse estado antes. — Fingindo, ele está é fingindo, o senhor pode apostar — exclamou Al Hutchins, o encarregado-chefe. — Não sei, não — insistiu o Capitão Jamie. — Quando o pulso fica fraco desse jeito, é preciso um especialista para encontrar o pulso... — Ora, eu sou diplomado na camisa-de-força — zombou Al Hutchins. — Lembra que eu fiz o senhor me soltar, Capitão, quando o senhor pensou que eu CAPITULO 12 Uma vez aprendido o truque, o caminho foi fácil. E eu sabia que ele se tomaria cada vez mais fácil quanto mais eu o trilhasse. Uma vez estabelecida a linha de menor resistência, cada jornada subseqüente ao longo desse caminho encontraria ainda menos resistência. E assim, como você vai ver, com o passar do tempo minhas jornadas da vida de San Quentin para outras vidas foram alcançadas de um modo quase automático. Depois que o Diretor Atherton e seus asseclas me deixaram a sós, foi uma questão de minutos querer que a porção ressuscitada do meu corpo retomasse à pequena morte. Era morte em vida, mas era apenas uma pequena morte, semelhante à morte temporária causada por um anestésico. E assim, de tudo que era sórdido e vil, da solitária brutal e do inferno da camisa- de-força, das moscas amigas e dos suores das trevas e da conversa com os nós dos dedos dos mortos-vivos, eu saltei no tempo e no espaço. Um instante de escuridão... e cresce a lenta percepção de outras coisas e de um outro eu. Antes de tudo, nessa percepção, havia o pó. O pó nas minhas narinas, seco e irritante. O pó na minha boca. O pó que cobre meu rosto e minhas mãos, e eu o noto principalmente nas pontas dos dedos, quando as esfrego com o polegar. Depois percebo o movimento incessante. Tudo à minha volta balança e dá solavancos. Há vibrações, embates e ouço algo que reconheço, com naturalidade, como o ranger das rodas sobre o eixo e a fricção e impacto dos aros de ferro contra a areia e a pedra. E chegam até mim as vozes cansadas de homens a praguejar e a gritar com os animais exaustos que avançam vagarosos. Abro os olhos, inflamados pela poeira, e imediatamente eles se enchem de pó. Sobre os cobertores ásperos onde estou deitado, a camada de pó tem cinco centímetros. Acima da minha cabeça, através da teia de pó, vejo um toldo abaulado de lona a sacolejar e se balançar e milhares de partículas de poeira a pairar, pesadas, nos raios de sol que entram pelos buracos na lona. Eu era uma criança, um garoto de oito ou nove anos, e estava cansado; e cansada estava a mulher macilenta e empoeirada sentada ao meu lado, a ninar um bebê que chorava em seus braços. Ela era minha mãe; isso eu sabia naturalmente, assim como soube, quando olhei pelo túnel de lona do carroção, que os ombros do homem na boléia eram os ombros do meu pai. Quando comecei a rastejar pelas trouxas e pacotes que atravancavam o carroção, minha mãe disse numa voz cansada e lamurienta: — O Jesse, por que você não fica quieto um pouco, menino? Esse era meu nome, Jesse. Eu não sabia meu sobrenome, mas ouvi minha mãe chamar meu pai de John. Eu tinha uma vaga lembrança de ter ouvido os outros homens tratarem meu pai por capitão. Eu sabia que ele era o chefe dessa caravana e que todos obedeciam às suas ordens. Rastejei pela abertura na lona e sentei na boléia ao lado do meu pai. O ar estava sufocante com o pó levantado pelos carroções e pelos muitos cascos de animais. Tão espessa era a nuvem de pó que mais parecia neblina ou nevoeiro, e o sol poente brilhava vagamente através dela com um halo avermelhado. Não só a luz desse crepúsculo era sinistra, mas tudo à minha volta me parecia sinistro — esse lugar, o rosto do meu pai, o choro do bebê nos braços de minha mãe que não conseguia acalmá-lo, os seis cavalos que meu pai conduzia e que tinham de ser continuamente chicoteados e que já não tinham cor alguma, tão espessa era a camada de pó sobre eles. O lugar era uma desolação dolorosa que feria os olhos. Colinas se estendiam sem fim em ambos os lados. Apenas aqui e ali, em suas encostas, crescia às vezes um matagal enfezado e ressecado pelo calor. A maior parte das colinas era seca e nua e feita de areia e rocha. Nosso caminho seguia o sopé arenoso das colinas. E os sopés arenosos eram áridos, exceto pelas manchas de matagal com, aqui e ali, pequenos tufos de grama seca e murcha. Água não havia nenhuma, nenhum sinal d'água, exceto por ravinas cavadas por antigas chuvas torrenciais. Meu pai era o único que tinha cavalos puxando o carroção. Os carroções seguiam em fila indiana e quando a caravana serpenteou e fez uma curva vi que os outros carroções eram puxados por bois. Três ou quatro parelhas de bois lutavam e puxavam cansadas cada carroção, e ao lado delas, na areia funda, caminhavam homens com aguilhões a incitar os animais relutantes. Numa curva contei os carroções à frente e atrás. Eu sabia que havia quarenta, incluindo o nosso; já tinha contado muitas vezes antes. E enquanto contava agora, num desejo infantil de espantar o tédio, lá estavam todos os quarenta, todos eles cobertos de lona, grandes e sólidos, toscos, rodando e vibrando, rangendo e gemendo sobre a areia, a artemísia e as pedras. A direita e à esquerda, espalhados ao longo da caravana, cavalgavam uns doze ou quinze homens e rapazes. Atravessados nos arções das selas, os rifles de cano longo. Sempre que algum deles se aproximava do nosso carroção, eu podia ver que seu rosto sob a poeira estava tenso e ansioso como o do meu pai. E meu pai, como eles, dirigia com um rifle ao alcance da mão. E também a um lado se arrastavam uns vinte bois muito magros, machucados pela canga, com as patas feridas, que volta e meia paravam para pastar tufos de grama murcha e que eram sempre aguilhoados pelos meninos de rosto cansado que os guardavam. Às vezes um ou outro desses bois parava e mugia, e seu mugido parecia tão sinistro como todo o resto em volta de mim. Longe, muito longe, tenho uma lembrança de ter vivido, garotinho mais novo, às margens arborizadas de um riacho. E conforme o carroção vibra e sou sacudido na boléia com meu pai, volto continuamente e demoro a lembrança naquela água agradável a correr entre as árvores. Tenho a sensação de estar há um tempo interminável num carroção, viajando, viajando sempre, com essa caravana. Mas a impressão mais forte sobre mim é aquela que também atinge toda a caravana: a sensação de estar caminhando para a morte. Nossa marcha é como uma marcha fúnebre. Nunca uma gargalhada. Nunca uma voz alegre. A paz e a espontaneidade não viajavam conosco. O rosto dos homens e rapazes que cavalgavam ao lado dos carroções eram sombrios, fechados, desesperados. E enquanto abríamos caminho pela poeira sinistra do crepúsculo, muitas vezes esquadrinhei o rosto de meu pai buscando inutilmente alguma mensagem de alegria. Não vou dizer que o rosto de meu pai, com toda aquela tensão sob a poeira, era desesperado. Era um rosto perseverante, mas, ah, tão sombrio e principalmente tão ansioso. Uma comoção pareceu percorrer a caravana. A cabeça de meu pai se levantou. Também a minha. E nossos cavalos levantaram suas cabeças cansadas, cheiraram o ar com um resfolegar profundo e pela primeira vez puxaram com vontade. Os cavalos dos batedores apressaram o passo. E a manada de bois- espantalhos partiu num tropel vigoroso. Chegava a ser quase engraçado. Os coitados eram tão desajeitados na sua fraqueza e na sua pressa. Eram esqueletos galopantes envoltos em couro sarnento e se distanciaram dos meninos que os guardavam. Mas isso foi só no começo. Logo eles afrouxaram o passo, mas ainda um passo apressado e cheio de sede, arrastado e dolorido; e não se interessaram mais pelos magotes de grama ressecada. — O que foi?—perguntou minha mãe de dentro do carroção. — Água — foi a resposta de meu pai..— Deve ser Nephi. E minha mãe: — Graças a Deus! Tomara que eles vendam comida. E em Nephi, através do pó vermelho-sangue, com rangidos e fricções e vibrações e embates, entraram nossos enormes carroções. Uma dúzia de casas ou cabanas espalhadas compunha o lugar. A paisagem era bem a mesma que atravessamos. Não tinha árvores, só arbustos e a aridez da areia. Mas aqui havia sinais de campos arados, com uma cerca aqui e ali. E também havia água. No rio não corria água, mas seu leito estava úmido, com um e outro olho-d'água onde os bois desatrelados e os cavalos de sela batiam os cascos e enfiavam os focinhos até os olhos. Aqui também crescia um e outro salgueiro mirrado. — Aquele deve ser o moinho do Bill Black de que falaram — disse meu pai, — Tal pai, tal filho — disse ele. — A nova geração é tão ruim como a velha. A raça toda é degenerada e amaldiçoada. Não há salvação, nem para os jovens, nem para os velhos. Não há expiação. Nem o sangue de Cristo pode lavar suas iniqüidades. — Maldito mórmon! — foi tudo que consegui soluçar para ele. — Maldito mórmon! Maldito mórmon! Maldito mórmon! E continuei a amaldiçoá-lo e a pular em volta do fogo, fugindo da mão punitiva de minha mãe, até que ele se foi a passos largos. Quando meu pai e os homens que o acompanhavam voltaram, o trabalho no acampamento parou e todos se reuniram ansiosos à sua volta. Ele sacudiu a cabeça. — Eles não vão vender? — perguntou uma mulher. Ele sacudiu de novo a cabeça. Um homem falou, um gigante de 30 anos, de olhos azuis e suíças louras, que abriu caminho abruptamente até o centro do grupo. — Eles dizem que têm farinha e provisões para três anos, Capitão — disse ele. — Antes eles sempre vendiam para os imigrantes. Mas agora não querem vender. O problema não é nós. A briga deles é com o governo e eles estão jogando a culpa em nós. Não está certo, Capitão. Não está certo, a gente aqui com as mulheres e crianças e a Califórnia a meses de viagem e o inverno chegando e nada a não ser deserto no meio. A gente não tem comida pra enfrentar o deserto. Ele parou por um instante e se dirigiu ao grupo todo. — Amigos, vocês não sabem o que é o deserto. Isso aqui não é o deserto. Estou dizendo, isso aqui é o paraíso e os campos do céu e aqui corre leite e mel perto do que vocês vão ter de enfrentar. — Estou dizendo. Capitão, a gente precisa conseguir farinha primeiro. Se eles não quiserem vender, vamos lá tirar deles. Muitos dos homens e mulheres começaram a gritar em aprovação, mas meu pai os calou levantando a mão. — Concordo com tudo que você disse, Hamilton — começou ele. Mas os gritos abafavam sua voz e ele levantou novamente a mão. — Fora uma coisa que você se esqueceu de levar em conta, Hamilton, uma coisa que você e todos nós temos de levar em conta. Brigham Young declarou lei marcial aqui e Brigham Young tem um exército. A gente pode destruir Nephi enquanto uma cabra pisca um olho e pegar todas as provisões que der pra carregar. Mas a gente não vai carregar até muito longe, não. Os Santos de Brigham vão partir pra cima de nós e vão nos destruir enquanto a cabra pisca o outro olho. Eu sei. Eu sei e vocês todos sabem. Suas palavras traziam convicção a ouvintes já convencidos. O que ele dizia era coisa sabida. Só que esquecida num instante de excitação e no desespero da necessidade. — Ninguém ia mais rápido lutar pelo que é direito do que eu — continuou o pai. — Mas o que acontece é que a gente não pode se dar ao luxo de lutar agora. Se chegar a ter luta, não temos a menor chance. E todos tem de lembrar que tem as mulheres e as crianças. Temos de manter a paz a qualquer preço e agüentar o que der e vier. — Mas o que é que a gente vai fazer com esse deserto pela frente? — gritou uma mulher com um bebê no colo. — Tem muito povoado antes da gente chegar no deserto — respondeu papai. — Fillmore é cem quilômetros ao sul. Depois tem Corn Creek. E Beaver fica a outros 80 quilômetros. O seguinte é Parowan. Depois tem 30 quilômetros até Cedar City. Quando mais longe a gente estiver de Salt Lake, é mais provável que eles vendam provisões. — E se não venderem? — insistiu a mesma mulher. — Então a gente fica sem — disse meu pai. — Cedar City é o último povoado. O que a gente tem é que ir em frente e agradecer nossa boa estrela por estar indo pra longe deles. Dois dias de viagem adiante tem bom pasto e água. Eles chamam o lugar de Montes Meadows. Ali não vive ninguém, e nesse lugar a gente faz o gado descansar e deixa ele bem alimentado antes de se meter no deserto. Talvez a gente consiga caçar alguma carne. E se a coisa piorar, a gente continua enquanto der, daí abandona os carroções, empilha o que puder nos animais e faz a última parte da viagem a pé. A gente pode comer o gado enquanto vai andando. E melhor chegar na Califórnia sem um trapo em cima do lombo do que deixar a ossada aqui. E é aqui que ela fica se a gente começar numa luta. Com novas advertências contra violência de palavra ou ato, a reunião improvisada se encerrou. Demorei para pegar no sono aquela noite. Minha raiva contra o mórmon tinha deixado meu cérebro em tal estado de agitação que eu ainda estava acordado quando meu pai rastejou para dentro do carroção depois de uma última inspeção dos vigias noturnos. Eles pensavam que eu dormia, mas ouvi mamãe lhe perguntar se ele achava que os mórmons nos deixariam partir em paz de suas terras. Ele estava de costas para ela, tirando as botas, e respondeu com voz confiante que tinha certeza de que os mórmons nos deixariam partir se ninguém da nossa caravana começasse a criar problema. Mas vi seu rosto naquele momento à luz da vela de sebo e nele nada havia da confiança que havia em sua voz. E foi assim que adormeci, oprimido pelo destino terrível que parecia estar suspenso sobre nós e pensando em Brigham Young, que crescia na minha imaginação infantil como um ser temível e mau, o próprio demônio com chifres e rabo e tudo. E despertei para a velha dor da camisa-de-força na solitária. A minha volta estavam os quatro de sempre: o Diretor Atherton, o Capitão Jamie, o Doutor Jackson e Al Hutchins. Rasguei o rosto com o sorriso da minha vontade e lutei para não perder o controle sob o agudo tormento da volta da circulação. Bebi a água que me trouxeram, abanei a cabeça diante do pão oferecido e me recusei a falar. Fechei os olhos e lutei para voltar ao círculo fechado dos carroções em Nephi. Mas enquanto meus visitantes ficavam ao meu redor e falavam, eu não podia escapar. Um fragmento de conversa não pude deixar de ouvir. — O mesmo que ontem — dizia o Doutor Jackson. — Nenhuma mudança, nem para melhor nem para pior. — Quer dizer que ele pode continuar? — perguntou o Diretor Atherton. — Sem se abalar. As próximas 24 horas tão fácil como as últimas. Ele é um louco, estou dizendo, um louco perfeito. Se eu não soubesse que era impossível, eu ia pensar que ele está dopado. — Conheço a droga que ele toma — disse o Diretor. — É essa maldita vontade dele. Aposto que se ele quisesse, podia caminhar descalço em cima de pedras em brasa como aqueles sacerdotes kanaka dos Mares do Sul. Foi talvez a palavra “sacerdotes” que levei comigo pelas trevas de um outro vôo no tempo. Ela foi, talvez, a deixa. O mais provável é que tenha sido uma mera coincidência. De qualquer modo, despertei sobre um áspero chão de pedras, deitado de costas, meus braços cruzados de tal maneira que cada cotovelo repousava na palma da mão oposta. Enquanto ali estava, olhos fechados, semidesperto, esfreguei os cotovelos com as mãos e descobri que esfregava enormes calosidades. Não houve surpresa nisso. Aceitei os calos como coisas antigas e naturais. Abri os olhos. Meu abrigo era uma pequena caverna, não mais que um metro de altura e quatro de comprimento. Estava muito quente na caverna. Gotas de suor cobriam toda a superfície do meu corpo. De vez em quando, várias gotas se uniam e formavam pequenos regatos. Eu não vestia roupa alguma, exceto um trapo imundo em volta dos quadris. Minha pele estava queimada até um marrom de mogno. Eu era muito magro e contemplei minha magreza com uma estranho sensação de orgulho, como se fosse um feito heróico ser assim tão magro. Eu sentia um amor especial pelas minhas costelas dolorosamente salientes. A simples vista das cavidades entre elas dava-me um sentimento de solene exaltação — ou antes, para usar uma palavra melhor, de santificação.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved