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Antropologia Estrutural - Claude Levi Strauss, Notas de estudo de Engenharia de Produção

antropoligia

Tipologia: Notas de estudo

2017

Compartilhado em 18/10/2017

daniel-carvalho-x5j
daniel-carvalho-x5j 🇧🇷

4.8

(18)

54 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Antropologia Estrutural - Claude Levi Strauss e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia de Produção, somente na Docsity! Claude Lévi-Strauss , * ANTROPOLOGIA ESTRUTURAL DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Claude Lévi-Strauss Antropologia estrutural Tradução Beatriz Perrone-Moisés Permitam, com este livro a ser publicado em 1958, ano do centenário de Émile Durkheim, que um discípulo inconstante renda homenagem à memória do fundador da Année Sociologique, ateliê prestigioso no qual a etnologia contemporânea recebeu parte de suas armas, e que relegamos ao silêncio e ao abandono, menos por ingratidão do que devido à triste certeza que temos de que a empresa atualmente excederia nossas forças. Prefácio Em estudo recente, Jean Pouillon escreveu uma frase que, espero, não se importará em ver citada por mim no início deste livro, pois corresponde admiravelmente a tudo o que desejei realizar em termos científicos, duvidando constantemente de tê-lo conseguido: “Lévi-Strauss com certeza não é o primeiro, nem o único, a sublinhar o caráter estrutural dos fenômenos sociais, mas sua originalidade está em ser o primeiro a levar isso a sério e daí tirar, imperturbavelmente, todas as consequências”.[1] Eu me sentirei realizado se este livro puder levar outros leitores a compartilhar dessa opinião. Estão aqui reunidos dezessete dentre a centena de textos escritos nos últimos quase trinta anos. Alguns deles se perderam, outros podem cair no esquecimento sem desvantagem. Entre os que me pareceram menos indignos de subsistir, fiz uma seleção, excluindo os trabalhos de caráter puramente etnográfico e descritivo e outros, de alcance teórico, mas cuja substância se encontra incorporada em meu livro Tristes trópicos. Dois textos são aqui publicados pela primeira vez (caps. V e XVI), reunidos com outros quinze que me parecem apropriados para esclarecer o método estrutural em antropologia. Para formar esta coletânea, deparei com uma dificuldade para a qual devo chamar a atenção do leitor. Vários de meus artigos foram escritos diretamente em inglês, e era preciso, portanto, traduzi-los. No decorrer do trabalho, impressionou-me a diferença de tom e de composição entre os textos concebidos em cada uma das línguas. Daí decorre uma heterogeneidade que, temo, pode comprometer o equilíbrio e a unidade da obra. Tal diferença se explica, certamente, pelo menos em parte, por causas sociológicas: não se pensa e não se expõe do mesmo modo quando o público é francês ou anglo-saxão. Mas há também razões pessoais. Por mais que eu esteja habituado à língua inglesa, na qual ensinei durante vários anos, eu a utilizo incorretamente e num registro limitado. Penso em inglês o que escrevo nessa língua, mas, ainda que nem sempre me dê conta disso, digo o que posso com os meios linguísticos de que disponho, não o que quero. O que acarreta em mim uma sensação de estranheza diante de meus próprios textos, quando tento traduzi- los para o francês. Visto ser altamente provável que o leitor compartilhe essa insatisfação, era preciso que eu a justificasse. Tentei minimizar o problema adotando uma tradução bastante livre, resumindo certos trechos e desenvolvendo outros. Artigos em francês também foram ligeiramente remanejados. E, por fim, acrescentei algumas notas aqui e I. História e etnologia[2] Mais de meio século se passou desde que Hauser e Simiand expuseram e opuseram os pontos de princípio e método que, segundo eles, distinguem entre si a história e a sociologia. Lembramos que tais diferenças dizem respeito essencialmente ao caráter comparativo do método sociológico, monográfico e funcional do método histórico.[3] Ambos os autores concordam quanto a essa oposição, discordando apenas quanto ao valor respectivo de cada método. O que aconteceu desde então? Somos obrigados a constatar que a história se ateve ao programa modesto e lúcido que lhe era proposto e que avançou em seu caminho. Do ponto de vista da história, os problemas de princípio e de método parecem estar definitivamente resolvidos. Não acontece o mesmo com a sociologia. Não se pode dizer que ela não se tenha desenvolvido: entre seus ramos, a etnografia e a etnologia, que são aqueles de que trataremos mais especificamente aqui, floresceram durante as últimas três décadas, numa prodigiosa produção de estudos teóricos e descritivos. Isso se fez, porém, à custa de conflitos, divisões e confusões, nos quais se pode reconhecer, transposto ao âmago da própria etnologia, o debate tradicional – muito mais simples nessa forma – que parecia opor a etnologia, como um todo, a uma outra disciplina, a história, também considerada em seu conjunto. Num paradoxo suplementar, veremos que a tese dos historiadores é retomada textualmente entre etnólogos, e justamente por aqueles que se proclamam adversários do método histórico. Para compreender tal situação, é indispensável retraçar brevemente sua origem e, para maior clareza, estabelecer algumas definições. Deixaremos de lado, neste artigo, o termo “sociologia”, que desde o início do século ainda não fez por merecer o sentido geral de corpus do conjunto das ciências sociais, desejado para ele por Durkheim e Simiand. Tomada na acepção que lhe davam, ainda corrente em vários países da Europa e inclusive na França, de reflexão acerca dos princípios da vida social e das ideias que os homens tiveram e têm a esse respeito, a sociologia equivale à filosofia social e se mantém alheia a nosso estudo. E se virmos nela, como ocorre nos países anglo- saxões, um conjunto de pesquisas positivas a respeito da organização e do funcionamento das sociedades do tipo mais complexo, a sociologia se torna uma especialidade da etnografia, sem poder almejar, em razão da própria complexidade de seu objeto, atingir resultados tão precisos e ricos quanto esta última, cuja consideração apresenta, por essa razão, maior valor tópico do ponto de vista metodológico. Resta definir a própria etnografia e a etnologia. Distingui-las-emos, de maneira bastante sumária e provisória, mas suficiente para um início de investigação, dizendo que a etnografia consiste na observação e análise de grupos humanos tomados em sua especificidade (muitas vezes escolhidos entre os mais diferentes do nosso, mas por razões teóricas e práticas que nada têm a ver com a natureza da pesquisa), visando à restituição, tão fiel quanto possível, do modo de vida de cada um deles. A etnologia, por sua vez, utiliza comparativamente (e com finalidades que haveremos de determinar adiante) os documentos apresentados pela etnografia. Com essas definições, a etnografia assume o mesmo sentido em todos os países, e a etnologia corresponde aproximadamente ao que se entende, nos países anglo-saxões (em que o termo “etnologia” está caindo em desuso), por antropologia social e cultural (a antropologia social se dedica basicamente ao estudo das instituições consideradas como sistemas de representação, e a antropologia cultural ao das técnicas, eventualmente também das instituições, consideradas como técnicas a serviço da vida social). Por fim, nem é preciso dizer que se, eventualmente, os resultados do estudo objetivo das sociedades complexas e das sociedades ditas primitivas puderem ser integrados, para fornecer conclusões universalmente válidas do ponto de vista diacrônico ou sincrônico, a sociologia, tendo atingido sua forma positiva, perderá automaticamente o primeiro sentido que apontamos e passará a merecer aquele que sempre almejou, o de realização das ciências sociais. Ainda não chegamos lá. Isso posto, o problema das relações entre as ciências etnológicas e a história, que é ao mesmo tempo seu drama interior revelado, pode ser assim formulado: ou nossas ciências se debruçam sobre a dimensão diacrônica dos fenômenos, isto é, a sua ordem no tempo, e se tornam incapazes de fazer-lhes a história, ou buscam trabalhar como os historiadores, e a dimensão temporal se lhes escapa. Pretender reconstituir um passado cuja história não temos meios de atingir ou querer fazer a história de um presente sem passado, eis o drama, da etnologia num caso, da etnografia no outro. De todo modo, é esse o dilema no qual seu desenvolvimento, ao longo dos últimos cinquenta anos, parece ter frequentemente encurralado uma e outra. I Não é nos termos da oposição clássica entre evolucionismo e difusionismo que essa contradição se afirma, posto que, desse ponto de vista, as duas escolas concordam. A interpretação evolucionista é, na etnologia, a repercussão direta do evolucionismo biológico.[4] A civilização ocidental aparece como a expressão mais avançada da evolução das sociedades humanas, e os grupos primitivos como “sobrevivências” de etapas anteriores, cuja classificação lógica poderá fornecer, automaticamente, a ordem de aparecimento no tempo. Mas a tarefa não é assim tão simples: os Esquimós, grandes técnicos, são sociólogos medíocres e, na Austrália, ocorre o inverso. Poderíamos multiplicar os exemplos. Uma escolha ilimitada de critérios permitiria construir um número ilimitado de séries, todas diferentes. O neo-evolucionismo de Leslie White (1943, 1945, 1947) tampouco se mostra capaz de superar essa dificuldade, pois se o critério por ele proposto – quantidade média de energia disponível, em cada sociedade, por habitante – corresponde a um ideal aceito em certos períodos e em certos aspectos da civilização ocidental, dificilmente se percebe como haveria de ser feita essa determinação para a imensa maioria das sociedades humanas, em que a categoria proposta parece, além disso, não ter significado. Buscar-se-á, assim, recortar as culturas em elementos isoláveis por abstração e estabelecer, não mais entre as próprias culturas, mas entre elementos do mesmo tipo em culturas diferentes, tais relações de filiação e de diferenciação progressiva que os paleontólogos descobrem na evolução das espécies vivas. Para um etnólogo, diz Ty lor, o arco e a flecha constituem uma espécie, o costume de deformar a cabeça das crianças é uma espécie, o hábito de agrupar os números em dezenas é uma espécie. A distribuição geográfica desses objetos e sua transmissão de uma região a outra devem ser estudadas do mesmo modo que os naturalistas estudam a distribuição geográfica de suas espécies animais ou vegetais (1871, v. 1: 7). Nada mais perigoso, porém, do que essa analogia. Embora o desenvolvimento da genética deva permitir a superação definitiva da noção de espécie, o que a tornou – e a torna ainda – válida para os naturalistas é o fato de cavalos gerarem efetivamente cavalos e assim, através de um número suficiente de gerações, o Equus caballus ser verdadeiramente descendente do Hipparion. A validade histórica das reconstruções dos naturalistas é garantida, em última análise, pelo elo biológico da reprodução. Ao contrário, um machado nunca engendra outro machado; entre dois instrumentos idênticos, ou entre dois instrumentos diferentes mas cuja forma de algum modo se assemelha, houve e haverá sempre uma descontinuidade radical, decorrente do fato de que um não provém do outro, e sim, cada um deles, de um sistema de representação. Assim, o garfo europeu e o garfo polinésio, reservado para as refeições rituais, não constituem uma espécie, nem tampouco o canudo pelo qual o cliente sorve uma limonada no terraço de um café, a bombilla para beber mate e os tubos para bebida utilizados, por razões mágicas, por certas tribos americanas. O mesmo ocorre no âmbito das instituições: não é possível juntar num mesmo grupo o costume de matar os na ausência de uma cadeia contínua de fatos do mesmo tipo que permita ligar os fatos das extremidades por uma série de intermediários (id. ibid.: 277). É certo que nunca se obtém certeza cronológica, mas é possível atingir altíssimas probabilidades em relação a fenômenos, ou grupos de fenômenos, limitados em extensão no espaço e no tempo. Foi possível, assim, retraçar a evolução das sociedades secretas dos Kwakiutl num período de meio século; certas hipóteses sobre relações antigas entre as culturas do norte da Sibéria e as do Noroeste americano tomaram forma; os itinerários seguidos por certos temas míticos da América do Norte foram razoavelmente reconstituídos. No entanto, essas investigações rigorosas raramente conseguem captar a história. Em toda a obra de Boas, o resultado delas parece ser mais negativo. Tanto entre os Pueblo do Sudoeste como entre as tribos do Alasca e da Colúmbia Britânica, constata-se que a organização social assume formas extremas nas duas bordas do território considerado e que as regiões intermediárias apresentam uma série de tipos de transição. Assim, os Pueblo ocidentais possuem clãs matrilineares sem metades e os do leste, metades patrilineares sem clãs. A parte norte da costa do Pacífico se caracteriza por clãs pouco numerosos e a proliferação de grupos locais com privilégios claramente afirmados, ao passo que a parte sul tem uma organização bilateral e grupos locais sem privilégios marcados. O que podemos concluir daí? Que há evolução entre um tipo e outro? Para que essa hipótese fosse legítima, seria preciso ser capaz de provar que um dos tipos é mais primitivo do que o outro, que, dado o tipo primitivo, ele evolui necessariamente para a outra forma e, finalmente, que tal lei age com mais rigor no centro da região do que em sua periferia. Na ausência dessa tripla e impossível demonstração, nenhuma teoria de sobrevivências se sustenta e, nesse caso específico, os fatos não autorizam nenhuma reconstrução no sentido de afirmar, por exemplo, a anterioridade histórica das instituições matrilineares em relação às patrilineares: “Só se pode afirmar que fragmentos de desenvolvimentos históricos arcaicos não podem deixar de subsistir”. Mas se é possível, até verossímil, que a instabilidade inerente às instituições matrilineares as tenha muitas vezes levado, onde elas existem, a se transformar em instituições patrilineares ou bilaterais, não decorre disso, de modo algum, que o direito materno tenha sempre e por toda parte constituído a forma primitiva (Boas 1924: 340-44). Essa análise crítica é decisiva, mas, levada ao extremo, conduziria a um total agnosticismo histórico. Entretanto, para Boas, ela se situa mais contra as pretensas leis universais do desenvolvimento humano e as generalizações fundadas naquilo que ele certa vez chamou de “possibilidades de 40%” (id. 1936) do que contra um esforço modesto e consciencioso de reconstrução histórica, com objetivos precisos e limitados. Quais seriam, segundo ele, as condições de tal esforço? Boas reconhece que, em etnologia, “as provas da mudança só podem ser obtidas por métodos indiretos”, ou seja, como em filologia comparada, por uma análise de fenômenos estáticos e um estudo de sua distribuição (id. 1920: 311-22). Mas não podemos esquecer que Boas, geógrafo de formação e discípulo de Ratzel, tomou consciência de sua vocação etnológica no decorrer de seu primeiro trabalho de campo, pela revelação, para ele fulgurante, da originalidade, particularidade e espontaneidade da vida social de cada agrupamento humano. Essas experiências sociais, essas interações constantes do indivíduo sobre o grupo e do grupo sobre o indivíduo, nunca podem ser deduzidas, têm de ser observadas, ou, como ele disse certa vez, “para compreender a história, não basta saber como as coisas são; é preciso saber como vieram a ser o que são” (id. ibid.). Podemos, com isso, determinar o ritmo do pensamento de Boas e captar seu caráter paradoxal. Sendo não apenas geógrafo por sua formação universitária, mas também físico, é sem dúvida um objeto científico e um alcance universal que ele define para as investigações etnológicas: “Ele costumava dizer que o problema era determinar as relações entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo do homem tal como toma forma em sociedades diferentes” (R. Benedict 1943: 27). Porém, ao mesmo tempo que sonhava em aplicar a esse mundo subjetivo os métodos rigorosos que aprendera na prática das ciências naturais, Boas reconhecia a infinita diversidade dos processos históricos pelos quais ele se constitui em cada caso. O conhecimento dos fatos sociais só pode resultar de uma indução, a partir do conhecimento individual e concreto de grupos sociais localizados no espaço e no tempo. Indução que, por sua vez, só pode resultar da história de cada grupo. E o objeto dos estudos etnográficos é tal que essa história permanece inatingível na imensa maioria dos casos. Assim, Boas traz as exigências do físico de fazer a história de sociedades sobre as quais só possuímos documentos que desencorajam o historiador. Quando ele consegue, suas reconstruções atingem realmente a história, mas uma história do instante fugidio, o único que pode ser captado, uma micro-história, que não consegue se ligar ao passado mais do que a macro-história do evolucionismo e do difusionismo.[5] Por esse esforço desesperado para superar, com rigor, labor e gênio, exigências contraditórias, a obra de Boas continua, e continuará por muito tempo, a dominar de sua altura monumental todos os desenvolvimentos ulteriores. Os que foram produzidos ao longo dos últimos anos, pelo menos, não podem ser compreendidos senão como tentativas de escapar do dilema que ele mesmo havia formulado, sem no entanto reconhecer-lhe um caráter inelutável. Assim, Kroeber esforçou-se por afrouxar um pouco os impiedosos critérios de validade que Boas havia imposto às reconstruções históricas, justificando seu método com a observação de que, afinal, os historiadores, embora em situação melhor do que os etnólogos, graças à massa de documentos de que dispõem, estão longe de se mostrar tão exigentes (Kroeber 1935: 539-69). Malinowski e sua escola, com a quase totalidade da escola americana contemporânea, tomaram a orientação oposta: já que a própria obra de Boas demonstra o quanto é vão procurar saber “como as coisas vieram a ser o que são”, renuncia-se a “compreender a história” para fazer do estudo das culturas uma análise sincrônica das relações entre seus elementos constitutivos, no presente. Toda a questão está em saber se, como indicam as profundas observações de Boas, a mais penetrante análise de uma cultura única, incluindo a descrição de suas instituições e de suas relações funcionais, e o estudo dos processos dinâmicos pelos quais cada indivíduo age sobre sua própria cultura, e a cultura sobre o indivíduo, podem adquirir pleno sentido sem o conhecimento do desenvolvimento histórico que levou às formas atuais (Boas 1936). Esse ponto, central, ficará mais claro na discussão de um problema específico. II Designa-se pelo nome de organização dualista um tipo de estrutura social encontrado com frequência na América, na Ásia e na Oceania, caracterizado pela divisão do grupo social – tribo, clã ou aldeia – em duas metades, cujos membros têm, uns com os outros, relações que podem ir da colaboração mais estreita a uma hostilidade latente, geralmente associando os dois tipos de comportamento. O objetivo das metades às vezes parece ser a regulamentação do casamento – são então chamadas de exogâmicas. Às vezes, seu papel se limita a atividades religiosas, políticas, econômicas, cerimoniais ou simplesmente esportivas, ou ainda a apenas algumas dessas atividades. Em certos casos, a afiliação à metade é transmitida por linha materna; em outros, por linha paterna. A divisão em metades pode ou não coincidir com a organização clânica. Pode ser simples ou complexa, caso em que existem diversos pares de metades que se entrecortam, dotados de funções diferentes. Em suma, conhecem-se quase tantas formas de organização dualista quantos são os povos que as possuem. Onde ela começa, então, e onde acaba? Afastemos desde já as interpretações evolucionista e difusionista. A primeira, que tende a considerar a organização dualista como um estágio necessário do desenvolvimento da sociedade, teria antes de determinar uma forma simples de que as formas observadas seriam realizações particulares, sobrevivências ou vestígios e, em seguida, postular a presença dessa forma, no passado, entre povos nos quais nada comprova que uma divisão em metades tenha jamais existido. O difusionismo, por sua vez, escolherá um dos tipos observados, geralmente o mais rico e mais complexo, como representante da do truísmo que ronda a interpretação funcionalista: “Há sempre o perigo de as vastas generalizações que se tiram do estudo da integração cultural se reduzirem a lugares-comuns” (1930: 84-98). Porque são universais, tais características dizem respeito aos biólogos e psicólogos. O papel do etnógrafo é descrever e analisar as diferenças que aparecem no modo como elas se manifestam nas diversas sociedades, e o do etnólogo, de explicá-las. Afinal, o que aprendemos acerca da “instituição da roça” (sic) quando se nos diz que “está universalmente presente, sempre que o meio é favorável à exploração do solo, e o nível social suficientemente elevado para permitir que exista” (Malinowski 1935b, v. IV: 625)? E sobre a canoa de balancim, suas múltiplas formas e as especificidades de sua distribuição, quando ela é definida como aquela cujas “disposições dão a maior estabilidade, navegabilidade e manuseabilidade compatíveis com as limitações materiais e técnicas das culturas da Oceania” (id. ibid.: 627)? E sobre o estado de sociedade em geral, e sobre a infinita diversidade das práticas e costumes, quando somos postos diante da seguinte assertiva: “As necessidades orgânicas do homem [o autor enumera: alimentação, proteção, reprodução] fornecem os imperativos fundamentais que conduzem ao desenvolvimento da vida social”?[7] Essas necessidades são, no entanto, compartilhadas por humanos e animais. Poder-se-ia também pensar que uma das tarefas essenciais do etnógrafo é descrever e analisar as complicadas regras de casamento nas diversas sociedades humanas e os costumes a elas relacionados. Malinowski contesta: Para falar francamente, eu diria que os conteúdos simbólico, representativo ou cerimonial do casamento têm, para o etnólogo, uma importância secundária [...] A verdadeira essência do ato do casamento é que, graças a uma cerimônia muito simples ou muito complicada, ele dá uma expressão pública, reconhecida coletivamente, ao fato de dois indivíduos ingressarem no estado de casamento (id. 1934: 48-49). Se é assim, para que ir a tribos longínquas? E as 603 páginas de Sexual Life of Savages in North-Western Melanesia [A vida sexual dos selvagens no Noroeste da Melanésia] teriam algum valor se fosse esse o seu único ensinamento? Do mesmo modo, deveremos tratar com leviandade o fato de certas tribos praticarem a liberdade e outras a castidade pré-nupcial, alegando que esses costumes se reduzem a uma única função, que é a de garantir a permanência do casamento (id. 1935b, 630)? O que interessa ao etnólogo não é a universalidade da função, que está longe de ser indubitável e que não pode ser afirmada sem um estudo atento de todos os costumes dessa ordem e de seu desenvolvimento histórico, apesar de esses costumes serem tão variáveis. Ora, com efeito, uma disciplina cujo objetivo primeiro, senão o único, é analisar e interpretar as diferenças se poupa de todos os problemas ao se ater apenas às semelhanças. Com isso, porém, ela perde completamente os meios de distinguir o geral a que pretende do banal com que se contenta. *** Poder-se-ia dizer talvez que essas incursões desastradas no campo da sociologia comparada são exceções na obra de Malinowski. Contudo, a ideia de que a observação empírica de uma sociedade qualquer permite chegar a motivações universais aparece ali constantemente, como um elemento de corrupção que corrói e enfraquece registros cuja vivacidade e riqueza são, por outro lado, bem conhecidas. As ideias que os indígenas das ilhas Trobriand têm acerca do valor e do lugar de cada sexo no corpo social são de grande complexidade. Eles se orgulham de ter mais mulheres do que homens em seus clãs e, caso contrário, se sentem amargurados. Ao mesmo tempo consideram a superioridade masculina como um dado: os homens possuem uma virtude aristocrática que falta a suas companheiras. Por que observações tão penetrantes têm de ser embotadas pela afirmação brutal que as introduz, contradizendo-as? “Para que a família se mantenha, e até para que exista, a mulher e o homem são igualmente indispensáveis; consequentemente, os indígenas consideram que ambos os sexos possuem o mesmo valor e a mesma importância” (id. 1929, v. I: 29). A primeira parte é um truísmo, e a segunda não corresponde aos fatos descritos. Poucos estudos retiveram tanto a atenção de Malinowski quanto o da magia, e em toda a sua obra encontra-se a tese, constantemente repetida, de que no mundo inteiro (id. 1935b: 634 ss), como nas ilhas Trobriand, a magia intervém por ocasião de “toda atividade ou empreendimento importante, cujo desenlace o homem não pode controlar” (id. 1929: 40). Deixemos de lado a tese geral e consideremos sua aplicação ao caso particular. Somos informados de que os homens trobriandeses utilizam a magia nas seguintes ocasiões: roça, pesca, caça, construção da canoa, navegação, escultura, feitiçaria, meteorologia; as mulheres, para abortos, cuidados com os dentes e fabricação de saiotes de palha (id. ibid.: 43-45). Não apenas esses trabalhos representam só uma parte daqueles “cujo desenlace o homem não pode controlar”, como não são, desse ponto de vista, comparáveis entre si. Por que os saiotes de palha e não o preparo de cabaças e a cerâmica, que sabemos ser uma técnica altamente arriscada? Podemos decretar de saída que um conhecimento mais aprofundado da história do pensamento religioso na Melanésia, ou fatos registrados em outras tribos, que revelam o papel muitas vezes atribuído à fibra vegetal como símbolo de mudança de estado (Boas 1895; Griaule 1938, 1947), não podem lançar nenhuma luz sobre essa seleção? Citaremos mais dois textos que ilustram as contradições desse método intuitivo. No livro sobre a vida sexual dos Melanésios, aprendemos que um dos principais motivos do casamento é ali, como em toda parte, “a inclinação natural de todo homem após a primeira juventude de ter uma casa e um lar só seu [...] e [...] um desejo natural [natural longing] de ter filhos” (Malinowski 1929, v. I: 81). Porém, em Sex and Repression, que acrescenta um comentário teórico à pesquisa de campo, lê-se o seguinte: “No homem, subsiste ainda a necessidade de um protetor afetuoso e interessado da mulher grávida. Mas os mecanismos inatos desapareceram, como comprova o fato de, na maioria das sociedades [...] o macho recusar qualquer responsabilidade sobre sua prole, a menos que seja obrigado a isso pela sociedade” (id. 1927: 204). Bastante estranha, essa inclinação natural! Os continuadores de Malinowski não estão infelizmente isentos dessa curiosa mistura de dogmatismo e empiricismo que contamina todo o seu sistema. Quando Margaret Mead (1935: 279), por exemplo, caracteriza três sociedades vizinhas da Nova Guiné pelas formas diferentes e complementares que ali assumiriam as relações entre os sexos (homem gentil, mulher gentil; homem agressivo, mulher agressiva; mulher agressiva, homem gentil), é admirável a elegância da construção. Mas ergue-se a suspeita de simplificação e apriorismo diante de outras observações que apontam para a existência de uma pirataria especificamente feminina entre os Arapesh (Fortune 1939). E, ainda, quando a autora classifica as tribos norte-americanas em competitivas, cooperativas e individualistas (Mead 1937: 461), encontra-se tão longe de uma verdadeira taxonomia quanto um zoólogo que definisse as espécies segundo o critério de os animais serem solitários, gregários ou sociais. Na verdade, podemos nos perguntar se todas essas construções apressadas, que só conseguem fazer das populações estudadas “reflexos de nossa própria sociedade” (Boas 1936), de nossas categorias e de nossos problemas, não decorreriam, como Boas percebeu com clareza, de uma superestimação do método histórico, e não da atitude contrária. Pois, afinal, foram historiadores que formularam o método funcionalista. Enumerando o conjunto dos traços que caracterizavam um determinado estado da sociedade romana, Hauser acrescentou, em 1903: “Tudo isso em conjunto forma um complexus inextricável, todos esses fatos se explicam uns pelos outros, muito mais do que a evolução da família romana poderia ser explicada pela da família judaica, ou chinesa, ou asteca” (1903: 414).[8] Malinowski poderia ter sido o autor da afirmação, exceto pelo fato de Hauser acrescentar eventos às instituições. E sua afirmação certamente requer uma dupla restrição: o que vale para a evolução não vale igualmente para a estrutura e, para os etnólogos, os estudos comparativos podem suprir, em certa medida, a ausência de documentos racional, para um costume ou uma instituição: ao ser interrogado, o indígena se contenta em responder que sempre foi assim, que assim ordenaram os deuses, ou os antepassados. Ainda que encontremos explicações, elas sempre têm o caráter de racionalizações ou elaborações secundárias. Não resta dúvida de que as razões inconscientes pelas quais um costume é praticado ou uma crença compartilhada se afastam muito daquelas que são invocadas para justificá-los. Mesmo em nossa sociedade, os modos à mesa, os hábitos sociais, as regras de vestuário e muitas de nossas atitudes morais, políticas e religiosas são escrupulosamente observados por cada um de nós, sem que sua origem ou verdadeira função tenham sido objeto de reflexão demorada. Agimos e pensamos por hábito, e a formidável resistência que se opõe a seu desrespeito, ainda que mínimo, provém mais da inércia do que de uma vontade consciente de manter costumes cuja razão fosse compreendida. O pensamento moderno certamente favoreceu a crítica de costumes, mas tal fenômeno não constitui uma categoria estranha ao estudo etnológico. Na verdade, constitui seu resultado, se de fato sua origem principal se situar na profunda tomada de consciência etnográfica suscitada no pensamento ocidental pela descoberta do Novo Mundo. E, ainda hoje, as elaborações secundárias tendem a retomar a mesma expressão inconsciente imediatamente após terem sido formuladas. Com uma rapidez surpreendente, demonstração clara de que se trata de uma propriedade intrínseca de certos modos de pensar e de agir, o pensamento coletivo assimila interpretações que um dia pareceram extremamente audaciosas, como a prioridade do direito materno, o animismo ou, em tempos mais recentes, a psicanálise, para resolver automaticamente problemas cuja natureza parece ser escapar perpetuamente tanto da vontade como da reflexão. Cabe a Boas o mérito de ter definido, com admirável lucidez, a natureza inconsciente dos fenômenos culturais, nas passagens em que os comparava, nesse aspecto, à linguagem, antecipando assim desenvolvimentos posteriores do pensamento linguístico, bem como um futuro etnológico cujas promessas mal começamos a entrever. Ele mostrou que a estrutura da língua permanece desconhecida pelo falante até o advento de uma gramática científica e que, mesmo então, ela continua a modelar o discurso no exterior da consciência do sujeito, impondo a seu pensamento quadros conceituais que são tomados por categorias objetivas. E acrescentou: A diferença essencial entre os fenômenos linguísticos e os demais fenômenos culturais é que os primeiros jamais se tornam claramente conscientes, ao passo que os outros, embora possuam a mesma natureza inconsciente, frequentemente se elevam ao nível do pensamento consciente, originando assim raciocínios secundários e reinterpretações (Boas 1911, parte I: 67). Essa diferença de nível não esconde, contudo, sua profunda identidade, nem diminui o valor exemplar do método linguístico para as investigações etnológicas. Ao contrário, a grande vantagem da linguística, nesse ponto, é que as categorias da linguagem permanecem, em seu conjunto, inconscientes; por isso, pode- se acompanhar seu processo de formação sem que intervenham, como fontes de equívoco ou obstáculos, as interpretações secundárias, frequentes na etnologia a ponto de poderem obscurecer irremediavelmente a história do desenvolvimento das ideias (id. ibid.: 70-71). Os resultados da fonologia moderna permitem, por si sós, avaliar o imenso alcance de tais teses, formuladas oito anos antes da publicação do Curso de linguística geral de Ferdinand de Saussure, que prepararia seu advento. A etnologia, porém, ainda não as aplicou. Pois Boas, que partiria delas para fundar a linguística americana e que, graças a elas, pôde refutar concepções teóricas incontestadas na época,[9] deu mostras, no tocante à etnologia, de uma timidez que continua freando seus sucessores. Na verdade, a análise etnográfica de Boas, incomparavelmente mais honesta, sólida e metódica do que a de Malinowski, ainda permanece, como esta, no nível do pensamento consciente dos indivíduos. É verdade que Boas não se permite considerar as racionalizações secundárias e reinterpretações que se impõem a Malinowski de tal modo que ele só consegue eliminar as dos indígenas se as substituir pelas próprias. Mas Boas continua a utilizar as categorias do pensamento individual e, em seus escrúpulos científicos, apenas consegue desencarná-las e retirar-lhe as ressonâncias humanas. Ele restringe a extensão das categorias que compara e não as constitui num outro plano; e, quando a operação de fragmentação lhe parece impossível, impede a si mesmo de comparar. Contudo, o que legitima a comparação linguística é mais, e algo diferente, que um recorte: é uma análise real. O linguista extrai das palavras a realidade fonética do fonema e deste, a realidade lógica dos elementos diferenciais (Jakobson 1938). E, tendo reconhecido em várias línguas a presença dos mesmos fonemas ou a utilização dos mesmos pares de oposição, não compara seres individualmente distintos: é o mesmo fonema, o mesmo elemento, que lhe garante nesse novo plano a identidade profunda de objetos empiricamente diferentes. Não se trata de dois fenômenos semelhantes, mas de um único. A passagem do consciente ao inconsciente é acompanhada por um progresso do específico em direção ao geral. Assim, tanto em etnologia como em linguística, não é a comparação que funda a generalização, e sim o contrário. Se, como cremos, a atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a um conteúdo, e se essas formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados[10] (como mostra tão claramente o estudo da função simbólica tal como expressa na linguagem), é necessário e suficiente atingir a estrutura inconsciente, subjacente a cada instituição e a cada costume, para obter um princípio de interpretação válido para outras instituições e outros costumes, contanto, evidentemente, que se avance o suficiente na análise. *** Como chegar a essa estrutura inconsciente? É aí que o método etnológico e o método histórico se juntam. Nem é preciso invocar aqui o problema das estruturas diacrônicas, para o qual os conhecimentos históricos são, evidentemente, indispensáveis. Certos desenvolvimentos da vida social comportam, certamente, uma estrutura diacrônica. Mas o exemplo da fonologia ensina aos etnólogos que tal estudo é mais complexo e levanta outros problemas, diversos daqueles das estruturas sincrônicas, que mal começaram a abordar (Jakobson 1931). Contudo, mesmo a análise das estruturas sincrônicas implica um recurso constante à história. Ao mostrar instituições que se transformam, só ela permite extrair a estrutura subjacente a formulações múltiplas e que permanece através da sucessão de eventos. Retomemos o problema da organização dualista, evocado acima. Se não quisermos decidir ver nela um estágio universal do desenvolvimento da sociedade, nem um sistema inventado num único lugar e momento, e se, ao mesmo tempo, sentirmos com tal força o que todas as instituições dualistas possuem em comum para nos resignarmos a considerá-las como produtos heteróclitos de histórias únicas e incomparáveis, caberá analisar cada sociedade dualista para encontrar, por detrás do caos de regras e costumes, um esquema único, sempre presente e agindo em contextos locais e temporais diferentes. Tal esquema não poderia corresponder nem a um modelo particular da instituição nem ao agrupamento arbitrário de características comuns a várias formas: consiste em relações de correlação e oposição, sem dúvida inconscientes, inclusive para os povos de organização dualista, mas que, sendo inconscientes, devem estar igualmente presentes entre aqueles que jamais conheceram tal instituição. Desse modo, os Mekeo, os Motu e os Koita da Nova Guiné, cuja evolução social Seligman foi capaz de reconstituir para um período de tempo bastante considerável, possuem uma organização de grande complexidade, constantemente posta em questão por fatores históricos múltiplos. Guerras, migrações, cismas religiosos, pressão demográfica e competições por prestígio documentos escritos nas sociedades em que realizam suas pesquisas. A distinção não é falsa, mas não cremos que seja essencial, pois decorre das características profundas que tentamos determinar, em lugar de explicá-las. A ausência de documentos escritos na maior parte das sociedades primitivas obrigou, de fato, a etnologia a desenvolver métodos e técnicas apropriados ao estudo de atividades que permanecem, por isso mesmo, imperfeitamente conscientes em todos os níveis em que se expressam. Porém, além de essa limitação poder ser muitas vezes superada por meio da tradição oral, tão rica entre certos povos da África e da Oceania, não se pode considerá-la como uma barreira rígida. A etnologia se interessa por populações que possuem escrita, como o México antigo, o mundo árabe e o Extremo Oriente; e conseguiu-se fazer a história de povos que jamais a tiveram, como os Zulu, por exemplo. Trata-se, mais uma vez, de uma diferença de orientação, não de objeto, e de dois modos de organizar dados menos heterogêneos do que parecem. Os etnólogos se interessam principalmente pelo que não está escrito, nem tanto porque os povos que estudam não escrevem, e mais porque aquilo que lhes interessa é diferente de tudo o que os homens geralmente pensam em fixar na pedra ou no papel. Até agora, uma repartição de tarefas, justificada por antigas tradições e por necessidades do momento, contribuiu para confundir os aspectos teórico e prático da distinção e, assim, para separar a etnologia da história mais do que convém. Somente quando elas abordarem em conjunto o estudo das sociedades contemporâneas poderemos apreciar plenamente os resultados de sua colaboração e nos convencer de que, nesse caso como nos demais, elas nada podem uma sem a outra. 2. Publicado em Revue de Métaphysique et de Morale (Lévi-Strauss 1949a). 3. H. Hauser 1903; F. Simiand 1903. 4. Isso é verdade no final do século XIX. Mas não podemos esquecer que, historicamente, o evolucionismo sociológico é anterior ao outro. 5. Não nos referimos aqui aos trabalhos arqueológicos de Boas, que dizem respeito à arqueologia e não à etnologia, nem a suas investigações acerca da disseminação de certos temas mitológicos, que são estudos históricos a partir de documentos etnográficos. Do mesmo modo, ao formular suas hipóteses acerca do povoamento primitivo da América, Paul Rivet utiliza documentos arqueológicos, linguísticos e etnográficos, numa pesquisa que é propriamente histórica – é do ponto de vista histórico que tais tentativas devem ser examinadas. Pode-se dizer o mesmo de certos trabalhos de Rivers. 6. Id. 1937: 155. Na página seguinte, fala-se também desses “costumes bizarros e sórdidos” nos quais, apesar de tudo, é possível descobrir “um núcleo de princípios práticos e racionais”. É uma volta ao século XVIII, mas ao ruim. 7. Parece, inclusive, que para Malinowski nenhuma distinção se impõe quando se passa do geral ao específico: “A cultura, tal como a encontramos entre os Masai, é um instrumento destinado à satisfação das necessidades elementares do organismo”. E sobre os Esquimós: “Eles têm, em relação às questões sexuais, a mesma atitude que os Masai. E têm também um tipo mais ou menos semelhante de organização social” (Malinowski 1937: 136, 140). 8. Declarações análogas encontram-se nos trabalhos metodológicos de H. Berr, L. Febvre e H. Pirenne. 9. Numa época em que a linguística indo-europeia ainda acreditava firmemente na teoria da “língua-mãe”, Boas demonstrava que certos traços, comuns a várias línguas americanas, podiam tanto resultar da formação secundária de áreas de afinidade como de uma origem comum. Seria preciso esperar por Troubetzkoy para ver a mesma hipótese aplicada aos fatos indo-europeus. 10. Cf. nosso artigo em Lévi-Strauss 1949d, cap. X deste volume. LINGUAGEM E PARENTESCO ponto. Mas, quando um acontecimento dessa importância ocorre numa das ciências do homem, os representantes das disciplinas vizinhas são, mais do que autorizados, obrigados a verificar imediatamente suas consequências e sua possibilidade de aplicação a fatos de outra ordem. Novas perspectivas então se descortinam. Já não se trata mais de uma colaboração apenas ocasional, em que linguistas e sociólogos, cada qual trabalhando em seu canto, lançam mutuamente, de tempos em tempos, o que creem poder ser de interesse para o outro. No estudo dos problemas de parentesco (e certamente também no estudo de outros problemas), os sociólogos se veem numa situação formalmente análoga à dos linguistas fonólogos: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação; como eles, só adquirem essa significação se integrados em sistemas; os “sistemas de parentesco”, assim como os “sistemas fonológicos”, são elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente; e por fim, a recorrência, em regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de parentesco, regras de casamento e atitudes igualmente prescritas entre certos tipos de parentes etc. leva a crer que, num caso como no outro, os fenômenos observáveis resultam da operação de leis gerais, mas ocultas. O problema pode, portanto, ser formulado do seguinte modo: numa outra ordem de realidade, os fenômenos de parentesco são fenômenos do mesmo tipo que os fenômenos linguísticos. Poderiam os sociólogos, utilizando um método análogo quanto à forma (senão quanto ao conteúdo) ao que é utilizado pela fonologia, levar sua ciência a um progresso análogo ao que acaba de se dar nas ciências linguísticas? Nossa inclinação para tomar essa direção aumenta quando fazemos uma constatação suplementar: o estudo das questões de parentesco apresenta-se, atualmente, nos mesmos termos, e parece enfrentar as mesmas dificuldades, que a linguística às vésperas da revolução fonológica. Existe entre a velha linguística, que buscava essencialmente na história seu princípio de explicação, e certas tentativas de Rivers uma notável analogia. Em ambos os casos, o estudo diacrônico deve dar conta, de modo exclusivo ou quase exclusivo, dos fenômenos sincrônicos. Comparando a fonologia à velha linguística, Troubetzkoy definia a primeira como um “estruturalismo e um universalismo sistemáticos”, opondo-a ao individualismo e ao “atomismo” das escolas anteriores. Ao considerar o estudo diacrônico, ele assume uma perspectiva profundamente modificada: “A evolução do sistema fonológico é, em cada momento dado, dirigida pela tendência em direção a um objetivo. [...] Tal evolução possui, portanto, um sentido, uma lógica interna, que cabe à fonologia histórica evidenciar”(id. ibid.: 245; Jakobson 1931 e 1929). Essa interpretação “individualista”, “atomista”, baseada exclusivamente na contingência histórica, criticada por Troubetzkoy e Jakobson, é de fato exatamente aquela que se costuma aplicar às questões de parentesco (Rivers 1914: passim; 1924, cap. IV). Cada detalhe da terminologia, cada regra específica de casamento é associada a um costume diferente, como consequência ou como vestígio; mergulha-se num oceano de descontinuidades. Ninguém se pergunta como os sistemas de parentesco, tomados em seu conjunto sincrônico, poderiam ser o resultado arbitrário do encontro entre várias instituições heterogêneas (na maior parte hipotéticas, aliás) e, ainda assim, funcionar com alguma regularidade e eficácia.[15] Contudo, uma dificuldade preliminar obsta a transposição do método fonológico aos estudos de sociologia primitiva. A analogia superficial entre os sistemas fonológicos e os sistemas de parentesco é tão grande que conduz imediatamente a um caminho equivocado, que consiste em assimilar os termos de parentesco aos fonemas da língua do ponto de vista de seu tratamento formal. Sabe-se que, para atingir uma lei de estrutura, os linguistas analisam os fonemas em “elementos diferenciais”, que podem então ser organizados em um ou vários “pares de oposições” (Jakobson 1938). Os sociólogos poderiam sentir-se tentados a dissociar os termos de parentesco de um sistema dado seguindo um método análogo. Em nosso sistema de parentesco, por exemplo, a palavra “pai” possui uma conotação positiva no que diz respeito ao sexo, à idade relativa e à geração, mas, por outro lado, possui uma extensão nula e não pode traduzir uma relação de aliança. Poder-se-ia, assim, indagar em relação a cada sistema quais são as relações expressas e, para cada termo do sistema, qual conotação – positiva ou negativa – possui com respeito a cada uma das relações: geração, extensão, sexo, idade relativa, afinidade etc. É nesse estágio “microssociológico” que se poderia esperar perceber as leis de estrutura mais gerais, como os linguistas descobrem as suas no estágio infrafonêmico, e os físicos, no inframolecular, isto é, no nível do átomo. A interessante tentativa de Davis e Warner (1935) poderia ser interpretada nesses termos. Porém, uma tripla objeção se apresenta imediatamente. Uma análise realmente científica deve ser real, simplificadora e explicativa. Assim, os elementos diferenciais que se encontram no termo da análise fonológica possuem existência objetiva do triplo ponto de vista psicológico, fisiológico e até físico; são menos numerosos do que os fonemas formados por sua combinação e, afinal, permitem compreender e reconstruir o sistema. Nada de comparável resultaria da hipótese precedente. O tratamento dos termos de parentesco, tal como acabamos de imaginá-lo, só é analítico na aparência, pois, na verdade, o resultado é mais abstrato do que o princípio. Em vez de caminhar em direção ao concreto, afastamo-nos dele, e o sistema definitivo – se é que há sistema – só poderia ser conceitual. Em segundo lugar, a experiência de Davis e Warner prova que o sistema obtido por esse procedimento é infinitamente mais complicado e difícil de interpretar do que os dados da experiência.[16] E, finalmente, a hipótese não possui nenhum valor explicativo, já que não permite compreender a natureza do sistema e menos ainda reconstituir sua gênese. Qual seria a razão desse fracasso? A fidelidade demasiado literal ao método da linguística, na verdade, trai seu espírito. Os termos de parentesco não possuem uma existência apenas sociológica, são também elementos do discurso. No afã de transpor para eles os métodos de análise dos linguistas, não devemos esquecer que, sendo parte do vocabulário, tais métodos lhes são aplicáveis de modo não analógico, mas direto. E a linguística ensina, justamente, que a análise fonológica não se aplica às palavras, mas apenas às palavras previamente dissociadas em fonemas. Não existem relações necessárias no estágio do vocabulário.[17] Isso vale para todos os elementos do vocabulário, inclusive os termos de parentesco. Vale em linguística e, portanto, deve valer ipso facto para uma sociologia da linguagem. Estamos considerando aqui a possibilidade de uma tentativa que consistiria, portanto, em estender o método fonológico esquecendo seus fundamentos. Kroeber, em artigo já antigo (1909), previu tal dificuldade profeticamente. E, se foi então levado a concluir pela impossibilidade de uma análise estrutural dos termos de parentesco, é porque a linguística se encontrava naquele momento reduzida a uma análise fonética, psicológica e histórica. De fato, as ciências sociais devem compartilhar as dificuldades da linguística, entretanto também podem beneficiar-se de seus progressos. Tampouco se deve esquecer a profundíssima diferença existente entre o quadro dos fonemas de uma língua e os termos de parentesco de uma sociedade. No primeiro caso, não há dúvidas quanto à função. Todos sabemos para que serve uma língua: serve à comunicação. O que os linguistas por muito tempo ignoraram – e que só a fonologia lhes permitiu descobrir – é o meio graças ao qual a linguagem obtém esse resultado. A função era evidente, o sistema permanecia desconhecido. Os sociólogos encontram-se na situação inversa: sabemos perfeitamente, desde Lewis H. Morgan, que os termos de parentesco constituem sistemas, mas continuamos ignorando o uso a que se destinam. O desconhecimento dessa situação inicial reduz a maioria das análises estruturais dos sistemas de parentesco a puras tautologias. Elas demonstram o que é evidente e deixam de lado o que permanece incógnito. Isso não significa que devamos desistir de introduzir ordem e descobrir significado nas nomenclaturas de parentesco. Mas é preciso no mínimo reconhecer os problemas específicos colocados por uma sociologia do vocabulário e o caráter ambíguo das relações que unem seus métodos aos da linguística. Por isso, seria preferível nos limitarmos à discussão de um caso em que a analogia se apresente de modo simples. Felizmente, isso nos é possível. O que costumamos chamar de “sistema de parentesco” recobre, na verdade, duas ordens de realidade distintas. Primeiro, há os termos, pelos quais se expressam os diferentes tipos de relações familiares. Mas o parentesco não se expressa apenas numa nomenclatura: os indivíduos, ou classes de indivíduos, que utilizam os termos se sentem (ou não se sentem, dependendo do caso) obrigados estaríamos confundindo num termo único costumes e atitudes diferentes? E, se de fato existe uma tendência a qualificar todas as atitudes, por que apenas algumas atitudes se veem associadas à relação avuncular e não, em cada grupo considerado, quaisquer atitudes possíveis? Abramos aqui um parêntese para sublinhar a notável analogia que se manifesta entre o encaminhamento de nossa questão e certas etapas da reflexão linguística. A diversidade das atitudes possíveis no âmbito das relações interindividuais é praticamente ilimitada; o mesmo acontece com a diversidade de sons que o aparelho vocal pode articular, e efetivamente produz, nos primeiros meses da vida humana. Contudo, cada língua retém apenas um pequeno número de sons dentre todos os possíveis, e a linguística se propõe duas perguntas a esse respeito: por que certos sons são selecionados? Que relações existem entre um ou vários dos sons escolhidos e todos os demais (Jakobson 1941)? Nosso esboço da história da questão do tio materno encontra-se exatamente no mesmo estágio: o grupo social, assim como a língua, encontra à sua disposição um riquíssimo material psicofisiológico e, também como ela, só retém desse material certos elementos, alguns dos quais pelo menos são sempre os mesmos nas mais diversas culturas, combinados em estruturas sempre diversificadas. Perguntamo-nos, assim, qual seria a razão da escolha e quais são as leis das combinações. No que concerne à questão específica da relação avuncular, é para Radcliffe-Brown que devemos nos voltar. Seu célebre artigo acerca do tio materno na África do Sul (1924) é a primeira tentativa de determinar e analisar as modalidades do que poderíamos chamar de “princípio geral da qualificação das atitudes”. Bastará aqui lembrar as teses fundamentais desse estudo que se tornou um clássico. Segundo Radcliffe-Brown, o termo “avunculado” recobre dois sistemas de atitudes antitéticas. Num caso, o tio materno representa a autoridade familiar; é temido, obedecido e possui direitos sobre o sobrinho. No outro, é o sobrinho que goza em relação ao tio de privilégios de familiaridade e pode tratá-lo mais ou menos como a uma vítima. Em segundo lugar, existe uma correlação entre a atitude para com o tio materno e a atitude para com o pai. Em ambos os casos, encontramos os mesmos dois sistemas de atitudes, mas invertidos: nos grupos em que a relação entre pai e filho é de familiaridade, a relação entre tio materno e sobrinho é marcada pelo rigor, e onde o pai se apresenta como o austero depositário da autoridade familiar, é o tio que é tratado com liberdades. Os dois grupos de atitudes formam, portanto, como diriam os fonólogos, dois pares de oposições. Radcliffe-Brown terminava propondo uma interpretação do fenômeno: a filiação determina, em última análise, o sentido de tais oposições. Em regimes patrilineares, em que o pai e a linhagem paterna representam a autoridade tradicional, o tio materno é considerado como uma “mãe masculina”, geralmente tratado do mesmo modo que ela e às vezes até chamado pelo mesmo termo que a mãe. A situação inversa ocorre em regimes matrilineares: neles, é o tio materno que encarna a autoridade, e as relações de ternura e familiaridade se concentram no pai e em sua linhagem. Essa contribuição de Radcliffe-Brown é importantíssima. Depois da crítica definitiva da metafísica evolucionista, conduzida magistralmente por Lowie, é o esforço de síntese retomado a partir de uma base positiva. Dizer que esse esforço não atingiu imediatamente seu objetivo não significa diminuir a homenagem devida ao grande sociólogo inglês. Reconheçamos, assim, que o artigo de Radcliffe-Brown também deixa em aberto questões consideráveis: primeiro, o avunculado não está presente em todos os sistemas matrilineares e patrilineares e pode ser encontrado em sistemas que não são nem um nem outro.[21] Além disso, a relação avuncular não se dá entre dois, mas entre quatro termos: supõe um irmão, uma irmã, um cunhado e um sobrinho. A interpretação de Radcliffe- Brown isola arbitrariamente certos elementos de uma estrutura global, que deve ser tratada como tal. Alguns exemplos simples tornarão evidente essa dupla dificuldade. A organização social dos indígenas das ilhas Trobriand, na Melanésia, se caracteriza pela filiação matrilinear, relações de liberdade e familiaridade entre pai e filho e um antagonismo marcado entre tio materno e sobrinho (Malinowski 1929). Os Tcherkesse do Cáucaso, que são patrilineares, ao contrário, colocam a hostilidade entre pai e filho, enquanto o tio materno ajuda o sobrinho e o presenteia com um cavalo quando ele se casa (Dubois de Monpereux 1839, apud Kovalevski 1893). Até aqui, permanecemos dentro dos marcos do esquema de Radcliffe-Brown. Mas consideremos as outras relações familiares em causa: Malinowski mostrou que, nas ilhas Trobriand, marido e mulher vivem numa atmosfera de intimidade afetuosa e que suas relações apresentam um caráter de reciprocidade. As relações entre irmão e irmã, em compensação, são marcadas por um tabu extremamente rigoroso. E o que ocorre no Cáucaso? É a relação entre irmão e irmã que é afetuosa, tanto que entre os Pschav filhas únicas “adotam” um “irmão”, que irá desempenhar junto a elas o papel habitual do irmão, de casto companheiro de leito (id. ibid.). A situação entre os cônjuges é totalmente diferente: um tcherkesse não ousa aparecer em público com sua mulher e só a visita em segredo. Segundo Malinowski, não há insulto mais grave em Trobriand do que dizer a um homem que ele se parece com sua irmã; o Cáucaso apresenta um equivalente dessa proibição na interdição de perguntar a um homem sobre a saúde de sua mulher. Quando se consideram sociedades do tipo “Tcherkesse” ou do tipo “Trobriand”, não basta, portanto, estudar a correlação entre as atitudes pai/filho e tio/filho da irmã. Tal correlação é apenas um aspecto do sistema global, em que quatro tipos de atitude estão presentes, e organicamente inter-relacionados, a saber: irmão/irmã, marido/mulher, pai/filho e tio materno/filho da irmã. Os dois grupos que nos serviram de exemplo fornecem aplicações de uma lei que pode ser formulada assim: em ambos os grupos, a relação entre tio materno e sobrinho está para a relação entre irmão e irmã assim como a relação entre pai e filho está para a relação entre marido e mulher. De modo que, uma vez conhecido um par de relações, sempre será possível deduzir o outro. Consideremos agora outros casos. Em Tonga, na Polinésia, a filiação é patrilinear como entre os Tcherkesse. As relações entre marido e mulher parecem ser públicas e harmoniosas, as brigas domésticas são raras e, embora seja geralmente de status superior ao do marido, a mulher “nem pensa em rebelar-se contra ele [...] em todas as questões domésticas, ela se submete de bom grado à autoridade dele”. Analogamente, grande liberdade reina entre o tio materno e o sobrinho, que é fahu, acima da lei, em relação ao tio, com quem se podem permitir todos os atrevimentos. Opõem-se a essas relações livres aquelas entre filho e pai. Esse último é tapu, o filho está proibido de tocar-lhe a cabeça ou os cabelos, de tocar nele enquanto ele come, de dormir em sua cama ou sobre seu travesseiro, de compartilhar sua bebida ou comida e de manipular os objetos que lhe pertencem. Mas o tapu mais rigoroso é o que prevalece entre irmão e irmã, que não devem nem mesmo ficar juntos sob o mesmo teto (Gifford 1929: 16-22). Embora sejam igualmente patrilineares e patrilocais, os indígenas do lago Kutubu, na Nova Guiné, apresentam uma estrutura inversa à precedente: “Nunca vi maior proximidade entre pai e filho”, escreve a respeito deles F. E. Williams. As relações entre marido e mulher são caracterizadas pelo baixíssimo estatuto atribuído ao sexo feminino, pela “marcada separação entre os centros de interesse masculino e feminino”. As mulheres, diz Williams, “devem trabalhar duro para seus senhores [...] às vezes, protestam e recebem uma surra”. Contra seus maridos, as mulheres sempre podem contar com a proteção de seus irmãos, junto a quem buscam refúgio. Quanto às relações entre o sobrinho e o tio materno: “‘Respeito’ é o termo que melhor as resume [...] com um quê de medo”, pois o tio materno tem o poder (como entre os Kipsigi da África) de maldizer o sobrinho e causar-lhe uma doença grave (Williams 1940-41: 265-80, 1941-42, 1941). Essa última estrutura, presente numa sociedade patrilinear, é contudo do mesmo tipo que a dos Siuai de Bougainville, de filiação matrilinear. Entre irmão e irmã, “relações amigáveis e generosidade mútua”. Entre pai e filho, “nada indica uma relação de hostilidade, de autoridade rígida ou de respeito temeroso”. Mas as relações do sobrinho com seu tio materno se situam “entre a disciplina rígida e uma interdependência espontaneamente reconhecida”. No entanto, “os informantes dizem que todos os meninos sentem certo medo de seus tios maternos e que obedecem a eles mais do que aos seus pais”. Entre marido e mulher, por sua vez, não parece reinar o bom entendimento: “Poucas jovens Lago Kutubu – patrilinear Figura1 A lei sincrônica de correlação assim sugerida pode ser verificada diacronicamente. Se resumirmos a evolução das relações familiares na Idade Média, tal como se depreendem da descrição de Howard (1904), obteremos o seguinte esquema aproximado: o poder do irmão sobre a irmã diminui, o do futuro marido aumenta e, simultaneamente, o laço entre pai e filho se enfraquece e aquele entre tio materno e sobrinho se reforça. Essa evolução parece ser confirmada pelos documentos coligidos por L. Gautier (1890), pois nos textos “conservadores” (Raoul de Cambrai, Geste des Loherains etc.), a relação positiva se estabelece entre pai e filho e só paulatinamente vai se deslocando em direção àquela entre tio materno e sobrinho.[22] *** Vemos, assim,[23] que, para ser compreendido, o avunculado deve ser tratado como uma relação inserida num sistema, e que é o sistema que deve ser considerado, em seu conjunto, para perceber sua estrutura. Essa estrutura se funda em quatro termos (irmão, irmã, pai, filho), unidos entre si por dois pares de oposições correlativas, de tal modo que em cada uma das duas gerações em questão sempre há uma relação positiva e uma relação negativa. Se nos perguntarmos o que é essa estrutura, e qual sua razão de ser, a resposta é a seguinte: essa é a estrutura de parentesco mais simples que se pode conceber e que pode existir. É, na verdade, o elemento de parentesco. Em favor dessa afirmação, pode-se invocar um argumento de ordem lógica: para que exista uma estrutura de parentesco, é necessário que nela se encontrem os três tipos de relação familiar que sempre são dados na sociedade humana, isto é, uma relação de consanguinidade, uma relação de aliança e uma relação de filiação, ou, em outras palavras, uma relação entre germanos, uma relação entre cônjuges e uma relação entre pais e filhos. É fácil perceber que a estrutura aqui considerada é aquela que permite satisfazer a essa tripla condição segundo o princípio da maior economia. Mas essas considerações possuem um caráter abstrato, e uma prova mais direta pode ser invocada para nossa demonstração. O caráter primitivo e irredutível do elemento de parentesco tal como o definimos decorre, imediatamente, da existência universal da proibição do incesto. Esta equivale a dizer que, na sociedade humana, um homem só pode obter uma esposa de um outro homem, que a cede na pessoa de uma filha ou irmã. De modo que não é preciso explicar como o tio materno surge na estrutura de parentesco: ele não surge, é nela prontamente dado, é sua condição. O erro da sociologia tradicional, e da linguística tradicional, estava em considerar os termos, e não as relações entre os termos. Antes de avançarmos, afastemos rapidamente algumas objeções que poderiam surgir. Em primeiro lugar, se a relação entre “cunhados” forma o eixo inevitável em torno do qual se constrói a estrutura de parentesco, por que fazer a criança gerada pelo casamento figurar na estrutura elementar? Deve-se ter em mente que a criança representada pode tanto ser uma criança nascida como por nascer. Isso posto, a criança é indispensável para atestar o caráter dinâmico e teleológico do procedimento inicial, que funda o parentesco na e por meio da aliança. O parentesco não é um fenômeno estático; existe apenas para perpetuar- se. Não nos referimos ao desejo de perpetuar a raça, mas ao fato de que, na maioria dos sistemas de parentesco, o desequilíbrio inicial que se produz, numa dada geração, entre aquele que cede uma mulher e aquele que a recebe só pode ser estabilizado pelas contraprestações que ocorrem nas gerações seguintes. Até mesmo a mais elementar das estruturas de parentesco existe simultaneamente na ordem da sincronia e na da diacronia. Em segundo lugar, não se poderia conceber uma estrutura simétrica, igualmente simples, mas na qual os sexos estariam invertidos, isto é, uma estrutura envolvendo uma irmã, seu irmão, a mulher deste e a filha nascida de sua união? Certamente. Mas tal possibilidade teórica pode ser imediatamente eliminada com base na experiência: na sociedade humana, são os homens que trocam mulheres, e não o contrário. Resta saber se algumas culturas não teriam tendido a realizar uma espécie de imagem fictícia dessa estrutura simétrica. Casos assim hão de ser raros. Chegamos então a uma objeção mais séria. É possível que, na verdade, apenas tenhamos conseguido inverter a questão. A sociologia tradicional obstinou- se em explicar a origem do avunculado, e nós nos livramos dessa busca tratando o irmão da mãe não como um elemento extrínseco, mas como um dado imediato da mais simples das estruturas familiares. Por que razão, então, não encontramos o avunculado sempre e por toda parte? Pois, embora possua uma distribuição bastante frequente, ele não é universal. Teria sido inútil evitar a explicação dos casos em que ele existe para fracassar diante de sua ausência. Observemos inicialmente que o sistema de parentesco não possui a mesma importância em todas as culturas. Ele fornece a algumas o princípio ativo que regula todas as relações sociais, ou a maior parte delas. Em outros grupos, como a nossa sociedade, essa função está ausente ou muito atenuada. Em outras ainda, como as sociedades dos índios das planícies norte-americanas, ela é apenas parcialmente cumprida. O sistema de parentesco é uma linguagem; não é uma linguagem universal, e outros modos de expressão e ação podem lhe ser preferidos. Do ponto de vista dos sociólogos, isso equivale a dizer que, diante de uma determinada cultura, propõe-se sempre uma questão preliminar: o sistema é sistemático? A pergunta, absurda à primeira vista, só o seria, na verdade, em relação à língua, que é o sistema de significação por excelência. Ela não pode não significar, e toda a sua existência está na significação. A questão deve, ao contrário, ser examinada com rigor crescente à medida que nos afastamos da língua para considerarmos outros sistemas, que possuem igualmente a intenção de significar, mas cujo valor de significação permanece parcial, fragmentário ou subjetivo, como a organização social, a arte etc. Além disso, interpretamos o avunculado como um traço característico da estrutura elementar. Esta, resultante de relações definidas entre quatro termos, é, de nosso ponto de vista, o verdadeiro átomo de parentesco.[24] Não há existência que possa ser concebida ou dada aquém das exigências fundamentais de sua estrutura e, por outro lado, ele é a única matéria-prima de construção dos sistemas mais complexos. Pois sistemas mais complexos existem; ou, para formular mais precisamente, todo sistema de parentesco é elaborado a partir dessa estrutura elementar que se repete, ou se desenvolve mediante a integração de novos elementos. É preciso, assim, considerar duas hipóteses: a de que o sistema de parentesco em foco procede por justaposição simples de estruturas elementares, nos quais, consequentemente, a relação avuncular permanece sempre aparente; e a de que a unidade de construção do sistema já é de ordem mais complexa. Neste último caso, a relação avuncular, embora esteja presente, pode ser submergida num contexto diferenciado. Pode-se conceber, por exemplo, um sistema que tome por ponto de partida a estrutura elementar e agregue, à direita do tio materno, a mulher deste e, à esquerda do pai, primeiro a irmã do pai, e em seguida o marido desta. Seria fácil demonstrar que um desenvolvimento dessa ordem acarreta, na geração seguinte, um desdobramento paralelo: a criança deverá, nesse caso, ser diferenciada em filho e filha, cada um mostrou, em estudos hoje clássicos, que até os sistemas aparentemente mais rígidos e mais artificiais, como os sistemas australianos de classes matrimoniais, levam em conta o parentesco biológico. Mas essa sua indiscutível observação deixa de lado o fato que, para nós, é decisivo: na sociedade humana, o parentesco só pode se estabelecer e se perpetuar por meio de, e graças a, relações de aliança. Ou seja, as relações que Radcliffe-Brown define como de “primeira ordem” são função daquelas que ele considera secundárias e derivadas e delas dependem. O caráter primordial do parentesco humano está em requerer, como condição de existência, o estabelecimento de relações entre o que Radcliffe- Brown chama de “famílias elementares”. Assim, o que é de fato “elementar” não são as famílias, termos isolados, e sim a relação entre esses termos. Nenhuma outra interpretação pode dar conta da universalidade da proibição do incesto, de que a relação avuncular, em seu aspecto mais geral, é apenas um corolário, ora manifesto, ora encoberto. Porque são sistemas de símbolos, os sistemas de parentesco fornecem ao antropólogo um campo privilegiado, no qual seus esforços quase (e insistimos no quase) atingem os da ciência social mais desenvolvida, isto é, a linguística. Mas a condição desse encontro, de que se pode esperar uma melhor compreensão do homem, é jamais perder de vista o fato de que, tanto no caso do estudo sociológico como no do estudo linguístico, estamos em pleno simbolismo. E se é legítimo, até inevitável, em certo sentido, recorrer à interpretação naturalista para tentar compreender o surgimento do pensamento simbólico, uma vez dado este, a explicação deve mudar radicalmente de natureza, tanto quanto o fenômeno recém-surgido difere de todos os que o precederam e prepararam. A partir de então, qualquer concessão ao naturalismo ameaçaria pôr em risco os imensos progressos já realizados no campo da linguística e que começam a despontar na sociologia da família, condenando esta última a um empirismo sem inspiração nem fecundidade. 11. Publicado em Word, Journal of the Linguistic Circle of New York (Lévi-Strauss 1945a). 12. “Rapports réels et pratiques de la psychologie et de la sociologie”, in Mauss 1950. 13. Ver também, a esse respeito, as obras mais recentes de G. Thomson, favorável à hipótese de sobrevivências matrilineares. 14. Entre 1900 e 1920, os fundadores da linguística moderna, Ferdinand de Saussure e Antoine Meillet, situavam-se decididamente sob a égide dos sociólogos. Foi apenas depois de 1920 que Marcel Mauss começou a reverter a tendência, como dizem os economistas. 15. No mesmo sentido, ver S. Tax 1937. 16. Assim, ao término da análise desses autores, o termo “marido” se vê substituído pela fórmula: C2a/2d/o S U1a 8/Ego (Davis & Warner 1935). Aproveitamos para mencionar dois estudos recentes que utilizam um aparelho lógico muito mais refinado e que apresentam grande interesse quanto ao método e quanto aos resultados: “A Semantic Analy sis of the Pawnee Kinship Usage” (Lounsbury 1956) e “The Componential Analy sis of Kinship” (Goodenough 1956). 17. Como poderá perceber o leitor no cap. V, atualmente eu adotaria uma formulação mais nuançada. 18. Devemos notar a exceção da obra notável de W. L. Warner (1930-31) “Morphology and Functions of the Australian Murngin Ty pe of Kinship”, em que a análise do sistema de atitudes, ainda que discutível em princípio, inaugura uma nova fase no estudo das questões de parentesco. 19. Em inglês no original. [N.T.] Essa fórmula de Radcliffe-Brown parece-nos muito mais satisfatória do que sua afirmação de 1935 de que as atitudes apresentam “um grau razoavelmente alto de correlação com a classificação terminológica” (id. ibid.: 53). 20. Em inglês no original. [N.T.] 21. Como entre os Mundugomor da Nova Guiné, em que a relação entre tio materno e sobrinho é sempre de familiaridade, enquanto a filiação é alternadamente patrilinear e matrilinear. Cf. Mead 1935: 176-85. 22. Consultar também, acerca desse tema, Gummere 1901 e Farnsworth 1913. 23. Os parágrafos precedentes foram escritos em 1957, substituindo o texto original, em resposta à judiciosa observação feita por meu colega Luc de Heusch, da Universidade Livre de Bruxelas, de que um de meus exemplos era materialmente incorreto. Registro aqui meu agradecimento a ele. 24. Nem é preciso lembrar que o atomismo, tal como o criticamos em Rivers, é o da filosofia clássica, e não a concepção estrutural do átomo como a encontramos na física moderna. 25. Citação em inglês no original. [N.T.] tipos de estrutura conhecidos em fonologia, o repertório de sons que o aparelho fonador humano pode produzir e os menores limites diferenciais entre tais sons, previamente determinados por métodos psicofisiológicos (com base em um inventário e em uma análise dos fonemas mais próximos) poderia fornecer um quadro exaustivo das estruturas fonológicas de n oposições (n podendo ser determinado com o valor mais alto que se desejar). Obter-se-ia, desse modo, uma espécie de tabela periódica das estruturas linguísticas, comparável à dos elementos, que a química moderna deve a Mendeleiev. Bastaria então localizar na tabela as línguas já estudadas, marcar a posição e as relações com as demais línguas, daquelas cujo estudo direto ainda é insuficiente para nos fornecer um conhecimento teórico a seu respeito, e seria inclusive possível descobrir a localização de línguas extintas, futuras ou simplesmente possíveis. Um último exemplo. Jakobson (1948) propôs recentemente uma hipótese segundo a qual uma única língua poderia comportar várias estruturas fonológicas diferentes, cada uma delas envolvida num certo tipo de operação gramatical. Deve haver uma relação entre todas essas modalidades estruturais da mesma língua, uma “metaestrutura”, que pode ser considerada como a lei do grupo formado pelas estruturas modais. Se pedíssemos a uma calculadora que analisasse cada uma das modalidades, certamente chegaríamos, através de métodos matemáticos conhecidos, à “metaestrutura” da língua, que deveria ser em geral complexa demais para que fosse possível restituí-la com métodos empíricos de observação. A questão aqui levantada pode então ser definida como segue. De todos os fenômenos sociais, a linguagem é o único que parece atualmente prestar-se a um estudo realmente científico, que explique o modo como se formou e preveja certas modalidades de sua evolução futura. Tais resultados foram obtidos graças à fonologia e na medida em que ela foi capaz de atingir, para além das manifestações conscientes e históricas da língua, sempre superficiais, realidades objetivas. Estas consistem em sistemas de relações, que são o produto da atividade inconsciente do espírito. De onde as perguntas: seria possível realizar uma redução desse tipo em relação a outros tipos de fenômenos sociais? Em caso afirmativo, um método idêntico conduziria aos mesmos resultados? E, por fim, se respondêssemos afirmativamente à segunda pergunta, poderíamos admitir que diversas formas de vida social são substancialmente de mesma natureza, sistemas de comportamento, cada um dos quais uma projeção no plano do pensamento consciente e socializado, das leis universais que regem a atividade inconsciente do espírito? Evidentemente, não nos é possível responder de um só golpe a todas essas questões. Assim, apenas indicaremos algumas balizas e esboçaremos os principais caminhos que a investigação poderia tomar com proveito. Começaremos evocando alguns trabalhos de Kroeber que possuem importância metodológica inegável para nosso debate. Em seu estudo acerca da evolução do estilo do vestuário feminino, Kroeber investigou a moda, isto é, um fenômeno social intimamente ligado à atividade inconsciente do espírito. Raramente sabemos com exatidão por que um determinado estilo nos agrada ou por que sai de moda. Kroeber mostrou que essa evolução, aparentemente arbitrária, obedece a leis, que não são acessíveis à observação empírica nem tampouco a uma apreensão intuitiva dos fatos da moda. Manifestam-se apenas quando se mede um certo número de relações entre os vários elementos do vestuário. Tais relações podem ser expressas na forma de funções matemáticas, cujos valores, calculados num determinado momento, fornecem uma base para a previsão (Kroeber e Richardson 1940). Assim, a moda, que se poderia supor como o aspecto mais arbitrário e contingente dos comportamentos sociais, é passível de estudo científico. O método delineado por Kroeber, além de se parecer com o da linguística estrutural, pode ser aproximado de certas investigações das ciências sociais, notadamente as de Teissier a respeito do crescimento dos crustáceos. Este autor mostrou que é possível formular leis de crescimento, contanto que se considerem as dimensões relativas dos elementos que compõem os membros (as pinças, por exemplo) em lugar de suas formas. A determinação dessas relações leva ao estabelecimento de parâmetros com os quais leis de crescimento podem ser formuladas (Teissier 1936). Portanto, o objeto da zoologia científica não é a descrição das formas animais, tais como são intuitivamente percebidas; trata-se essencialmente de definir relações abstratas mas constantes, nas quais aparece o aspecto inteligível do fenômeno estudado. Apliquei um método análogo ao estudo da organização social, principalmente das regras de casamento e dos sistemas de parentesco. Foi assim possível estabelecer que as regras de casamento observáveis nas sociedades humanas não devem ser classificadas – como se costuma fazer – em categorias heterogêneas e diversamente intituladas: proibição do incesto, tipos de casamento preferencial etc. Todas elas representam modos de garantir a circulação das mulheres no seio do grupo social, isto é, de substituir um sistema de relações consanguíneas, de origem biológica, por um sistema sociológico de aliança. Uma vez formulada essa hipótese de trabalho, restaria apenas empreender o estudo matemático de todos os tipos de troca concebíveis entre n parceiros para daí deduzir as regras de casamento operantes nas sociedades existentes. Outras seriam, ao mesmo tempo, descobertas, correspondendo a sociedades possíveis. Finalmente, poderíamos compreender sua função, seu modo de operação e a relação entre formas diferentes. Pois bem, a hipótese inicial foi confirmada pela demonstração – obtida de maneira puramente dedutiva – de que todos os mecanismos de reciprocidade conhecidos pela antropologia clássica (isto é, aqueles fundados numa organização dualista e o casamento por troca entre parceiros em número de 2, ou de um múltiplo de 2) constituem casos particulares de uma forma de reciprocidade mais geral, entre um número qualquer de parceiros. Tal forma geral de reciprocidade tinha permanecido oculta, porque os parceiros não dão uns aos outros (e não recebem uns dos outros): não se recebe daquele a quem se dá e não se dá àquele de quem se recebe. Cada qual dá a um parceiro e recebe de outro, no interior de um ciclo de reciprocidade que opera num único sentido. Esse gênero de estrutura, tão importante quanto o sistema dualista, já tinha sido observado e descrito algumas vezes. Alertados pelas conclusões da análise teórica, reunimos e compilamos os documentos esparsos que mostram a considerável extensão do sistema. Ao mesmo tempo, foi possível interpretar as características comuns de um grande número de regras de casamento, como a preferência pelos primos cruzados bilaterais, ou por um tipo unilateral, em linha paterna ou materna. Costumes que pareciam ininteligíveis aos etnólogos tornaram-se claros, a partir do momento em que foram reduzidos a modalidades diversas das leis da troca. Estas, por sua vez, puderam ser reduzidas a certas relações fundamentais entre o modo de residência e o modo de filiação. Toda a demonstração, cujas principais articulações recapitulamos, acima pode ser levada a bom termo com uma condição: tomar as regras de casamento e os sistemas de parentesco como uma espécie de linguagem, ou seja, um conjunto de operações destinadas a garantir um certo tipo de comunicação entre os indivíduos e os grupos. O fato de aqui a “mensagem” ser constituída pelas mulheres do grupo que circulam entre os clãs, linhagens ou famílias (e não, como na linguagem em si, pelas palavras do grupo circulando entre indivíduos) não altera em nada a identidade do fenômeno, considerado em ambos os casos. Seria possível ir mais longe? Ao alargarmos a noção de comunicação para nela incluir a exogamia e as regras que decorrem da proibição do incesto, podemos lançar algumas luzes sobre uma questão ainda misteriosa, a da origem da linguagem. Comparadas à linguagem, as regras do casamento formam um sistema complexo do mesmo tipo que ela, porém mais tosco, e no qual um bom número de traços arcaicos, comuns a ambos, se encontra preservado. Todos reconhecemos que as palavras são signos, mas os poetas são ainda, entre nós, os últimos a saber que as palavras também foram valores. Em compensação, o grupo social considera as mulheres como valores de um tipo essencial, contudo temos dificuldade em compreender que tais valores possam se integrar em sistemas significativos, qualidade que mal começamos a atribuir aos sistemas de parentesco. Tal equívoco fica evidente numa crítica algumas vezes feita às Estruturas elementares do parentesco: “livro antifeminista”, disseram alguns, porque as mulheres nele são tratadas como objetos. É legítima a surpresa diante do fato de se atribuir às mulheres o papel de elementos num sistema de signos. No entanto, vale lembrar que, se as palavras e os fonemas perderam (de modo garante a coesão social ao custo mínimo, e é ao mesmo tempo extensível a qualquer número de parceiros. Enunciando tais afirmações numa forma suficientemente geral para torná- las utilizáveis por linguistas, diríamos portanto que a estrutura é complexa, ao passo que os elementos em si são pouco numerosos. Fórmula que aliás parece bastante apropriada para expressar um aspecto característico das línguas tonais. 3. Área africana – Os sistemas de parentesco africanos possuem uma tendência comum de desenvolvimento da instituição do “preço da noiva”, associada à frequente proibição do casamento com a esposa do irmão da mulher. Resulta disso um sistema de troca generalizada mais complexo do que aquele fundado exclusivamente no casamento preferencial com a prima cruzada matrilateral. Ao mesmo tempo, o tipo de coesão social ocasionado pela circulação dos bens se aproxima, em certa medida, do tipo estatístico de coesão existente em nossas sociedades. As línguas africanas deveriam, portanto, apresentar diversas modalidades intermediárias entre os tipos examinados nos itens 1 e 2. 4. Área oceânica – Os bem conhecidos traços característicos dos sistemas de parentesco polinésios teriam como equivalente, no plano linguístico, estrutura simples e elementos pouco numerosos. 5. Área norte-americana – Essa região do mundo apresenta um desenvolvimento excepcional dos sistemas de parentesco chamados “crow-omaha”, que é preciso distinguir cuidadosamente de todos os outros que expressam a mesma indiferença em relação aos níveis generacionais.[27] Os sistemas crow-omaha não podem ser definidos simplesmente pela localização dos dois tipos de primos cruzados unilaterais em níveis generacionais diferentes; sua propriedade distintiva (pela qual se opõem ao sistema miwok) está na assimilação dos primos cruzados a parentes, em vez de afins. Os sistemas miwok são igualmente frequentes no Velho e no Novo Mundo, ao passo que os sistemas crow-omaha propriamente ditos, a não ser por umas poucas exceções, só se encontram na América.[28] Pode-se dizer que tais sistemas abolem a distinção entre troca restrita e troca generalizada, isto é, entre duas fórmulas geralmente tidas como incompatíveis. Por esse viés, a aplicação simultânea de duas fórmulas simples permite garantir casamentos entre graus afastados, enquanto a aplicação isolada de uma ou outra teria apenas desembocado no casamento entre tipos diferentes de primos cruzados. Em termos de estrutura linguística, isso equivaleria a dizer que certas línguas americanas poderiam conter elementos, em número relativamente elevado, apropriados para se articularem em estruturas relativamente simples, mas graças a uma assimetria imposta a estas últimas. *** O caráter precário e hipotético dessa reconstrução é inegável. Ao efetuá-la, o antropólogo vai do conhecido para o desconhecido (pelo menos no que lhe diz respeito). Conhece as estruturas de parentesco, mas não as das línguas correspondentes. As características diferenciais enumeradas acima teriam algum sentido no plano linguístico? Somente os linguistas poderão dizer. Como antropólogo social, leigo em matéria de linguística, tentei apenas ligar eventuais propriedades estruturais – concebidas em termos muito genéricos – a certos traços dos sistemas de parentesco. No tocante à justificativa das escolhas específicas que fiz em relação a estes últimos, remeto o leitor a um trabalho cujas conclusões suponho conhecidas (Lévi-Strauss 1949b) e que aqui, por falta de espaço, apenas evoquei brevemente. Terei ao menos indicado certas propriedades gerais dos sistemas de parentesco característicos de várias regiões do mundo. Caberá aos linguistas dizer se as estruturas linguísticas dessas regiões podem ser, ainda que de modo muito aproximativo, formuladas nos mesmos termos ou em termos equivalentes. Se assim for, um grande passo terá sido dado em direção ao conhecimento dos aspectos fundamentais da vida social. Estaria, pois, aberto o caminho para a análise estrutural e comparada dos costumes, instituições e comportamentos aprovados pelo grupo. Estaríamos em condições de compreender certas analogias fundamentais entre manifestações da vida em sociedade aparentemente muito afastadas entre si, como a linguagem, a arte, o direito e a religião. E também poderíamos, afinal, esperar superar um dia a antinomia entre a cultura, coisa coletiva, e os indivíduos que a encarnam, já que, nessa nova perspectiva, a suposta “consciência coletiva” se reduziria a uma expressão, no nível do pensamento e dos comportamentos individuais, de certas modalidades temporais das leis universais em que consiste a atividade inconsciente do espírito. 26. Adaptado do original em inglês, publicado em American Anthropologist (Lévi- Strauss 1951). 27. O que significa que rejeitamos categoricamente a assimilação, proposta por Murdock, dos sistemas crow-omaha ao tipo miwok. Cf. Murdock 1949: 224, 340. 28. Isso deixou de ser verdadeiro. Atualmente, sistemas desse tipo são conhecidos alhures, notadamente na África. [N. da 2ª ed., 1974] Permitam-me abrir aqui um parêntese. Meu papel, nesta sessão de encerramento, é exprimir o ponto de vista dos antropólogos. Gostaria, assim, de dizer aos linguistas o quanto aprendi com eles. E não apenas durante nossas sessões plenárias, mas talvez até mais ao assistir aos seminários linguísticos que ocorriam paralelamente, nos quais pude avaliar o grau de precisão, minúcia e rigor que eles atingiram em estudos que continuam pertencendo às ciências do homem, tanto quanto à própria antropologia. Há mais. Nos últimos três ou quatro anos, temos assistido a um florescimento da linguística no plano teórico e, além disso, a temos visto realizar uma colaboração técnica com os engenheiros dessa nova ciência chamada “da comunicação”. Para tratar de suas questões, vocês já não se contentam com um método teoricamente mais seguro e rigoroso do que o nosso, e vão à procura dos engenheiros, pedindo-lhes que construam dispositivos experimentais aptos a verificar ou infirmar suas hipóteses. Ao longo de um ou dois séculos, as ciências humanas e sociais se resignaram a contemplar o universo das ciências exatas e naturais como um paraíso para elas irremediavelmente inacessível, e eis que a linguística consegue abrir uma pequena porta entre os dois mundos. Salvo engano, os motivos que trouxeram os antropólogos até aqui se encontram em curiosa contradição com os que trouxeram os linguistas. Estes se aproximam de nós esperando tornar seus estudos mais concretos, ao passo que os antropólogos recorrem aos linguistas na medida em que estes se lhes apresentam como guias capazes de tirá-los da confusão a que parece condená-los uma exagerada familiaridade com fenômenos concretos e empíricos. De modo que esta conferência por vezes se apresentou a mim como uma espécie de carrossel diabólico, em que os antropólogos correm atrás dos linguistas e estes, por sua vez, perseguem os antropólogos, cada grupo tentando obter do outro justamente aquilo de que gostaria de se livrar. Demoremo-nos um instante nesse ponto. De onde viria o mal-entendido? Sem dúvida, a princípio, da dificuldade inerente ao objetivo que nos propusemos. Fiquei particularmente impressionado com a sessão durante a qual Mary Haas tentou exprimir em fórmulas, no quadro-negro, os problemas aparentemente muito simples do bilinguismo. Tratava-se da relação entre duas línguas apenas, e já nos víamos diante de um número enorme de combinações possíveis, que a discussão só aumentou. Além das combinações, foi preciso apelar para dimensões que complicaram ainda mais o problema. Aquela reunião ensinou- nos, em primeiro lugar, que todo esforço para formular numa linguagem comum as questões linguísticas e as questões culturais nos coloca imediatamente numa situação extraordinariamente complexa. E não devemos nos esquecer disso. Em segundo lugar, fizemos como se o diálogo se estabelecesse entre dois protagonistas apenas, de um lado a língua, do outro, a cultura. E como se nosso problema pudesse ser integralmente definido em termos de causalidade: a língua exerceria influência sobre a cultura ou, ao contrário, a cultura sobre a língua? Não nos demos suficientemente conta de que língua e cultura são duas modalidades paralelas de uma atividade mais fundamental: refiro-me aqui ao hóspede sempre presente entre nós, embora ninguém tenha pensado em convidá- lo para nossos debates, o espírito humano. O fato de um psicólogo como Osgood ter se sentido constantemente obrigado a intervir na discussão basta para atestar essa presença, como de um terceiro, desse fantasma imprevisto. Ainda que nos situemos num ponto de vista teórico, podemos, a meu ver, afirmar que deve existir alguma relação entre língua e cultura. Ambas levaram vários milênios para se desenvolver e essa evolução transcorreu paralelamente em espíritos de homens. Desconsidero, é evidente, os casos frequentes de adoção de uma língua estrangeira por sociedades que antes falavam outra. No ponto em que estamos, podemos nos limitar aos casos privilegiados nos quais a cultura e a língua evoluíram lado a lado durante algum tempo, sem a intervenção marcada de fatores externos. Será que concebemos o espírito humano como algo compartimentado por divisórias tão estanques que nada pode atravessá-las? Antes de responder a essa pergunta, dois problemas devem ser examinados: o do nível em que devemos nos colocar para buscar as correlações entre as duas ordens, e o dos próprios objetos entre os quais podemos estabelecer tais correlações. Nosso colega Lounsbury propôs, há alguns dias, um exemplo notável da primeira dificuldade. Os Oneida, nos disse ele, utilizam dois prefixos para denotar o gênero feminino e, embora tenha se mantido muito atento, em campo, para os comportamentos sociais que acompanham o emprego de um e outro, não conseguiu determinar atitudes diferenciais significativas. Talvez o problema tenha sido mal colocado de saída. Como teria sido possível estabelecer uma correlação no nível dos comportamentos? Estes não se situam no mesmo plano que as categorias inconscientes do pensamento, a que teria sido preciso chegar primeiro analiticamente, para compreender a função diferencial dos dois prefixos. As atitudes sociais remetem à observação empírica. Não pertencem ao mesmo nível que as estruturas linguísticas, e sim a um nível diferente, mais superficial. Entretanto, parece-me difícil encarar como mera coincidência o aparecimento de uma dicotomia própria ao gênero feminino numa sociedade como a dos Iroqueses, em que o direito materno foi levado a seu ponto extremo. Talvez fosse o caso de dizer que uma sociedade que atribui às mulheres uma importância que noutras partes lhes é negada tem de pagar de outra forma o preço dessa opção. Esse preço, no caso, consistiria na incapacidade de pensar o gênero feminino como categoria homogênea. Uma sociedade que, ao contrário de quase todas as outras, reconhece plenas capacidades às mulheres teria, em compensação, de assimilar uma fração de suas mulheres – as muito jovens, ainda incapazes de desempenhar seu papel – a animais, e não a seres humanos. Porém, ao propor essa interpretação, não postulo uma correlação entre linguagem e atitudes, e sim entre expressões homogêneas, já formalizadas, da estrutura linguística e da estrutura social. Lembrarei um outro exemplo. Uma estrutura de parentesco realmente elementar – um átomo de parentesco, digamos – consiste de um marido, uma mulher, uma criança e um representante do grupo de que o primeiro recebeu a segunda. A proibição universal do incesto nos impede de fato de constituir o elemento de parentesco apenas com uma família consanguínea; ele resulta, necessariamente, da união de duas famílias, ou grupos consanguíneos. A partir dessa base, tentemos realizar todas as combinações das atitudes possíveis no seio da estrutura elementar, postulando (unicamente para efeito de demonstração) que as relações entre indivíduos podem ser definidas como positivas e negativas. Perceberemos que certas combinações correspondem a situações empíricas, efetivamente observadas por etnógrafos em determinadas sociedades. Quando as relações entre marido e mulher são positivas, e aquelas entre irmão e irmã negativas, verifica-se a presença de duas atitudes correlativas: positiva entre pai e filho e negativa entre tio materno e sobrinho. É também conhecida uma estrutura simétrica, em que todos os sinais são invertidos, de modo que, com frequência, se encontram disposições do tipo ou isto é, duas permutações. Por outro lado, disposições do tipo Figura 3 Consideremos agora um terceiro tipo pueblo, o de Acoma e Laguna, grupos que pertencem a uma outra família linguística, o Keresan. Esses sistemas se caracterizam por um notável desenvolvimento dos termos ditos “recíprocos”: dois indivíduos que ocupam uma posição simétrica em relação a um terceiro designam um ao outro pelo mesmo termo. Ao passarmos dos Hopi para Acoma, observamos, portanto, várias transformações dos sistemas de parentesco. Um modelo tridimensional dá lugar a um modelo bidimensional. Um sistema de referência com três ordenadas, representáveis sob a forma de contínuos temporais, altera-se em Zuñi e se torna, em Acoma, um contínuo espaço-temporal. De fato, um observador membro do sistema só pode pensar sua relação com outro membro por intermédio de um terceiro que, portanto, tem de ser dado simultaneamente. Pois bem, tais transformações correspondem às que é possível extrair do estudo dos mitos, quando se comparam versões dos mesmos mitos entre os Hopi, os Zuñi e em Acoma. Tomemos o exemplo do mito de emergência. Os Hopi o concebem a partir de um modelo genealógico: as divindades formam uma família, em que são marido, mulher, pai, avô, filha etc. uns dos outros, um pouco como no panteão dos antigos gregos. Essa estrutura genealógica está longe de ser tão clara em Zuñi, onde o mito correspondente é antes organizado de modo histórico e cíclico. Em outras palavras, a história é subdividida em períodos, cada um dos quais reproduzindo aproximadamente o precedente, e cujos protagonistas possuem entre si relações de homologia. E finalmente, em Acoma, a maior parte dos protagonistas, concebidos entre os Hopi e em Zuñi como indivíduos, se encontram desdobrados, sob a forma de pares cujos termos se opõem por atributos antitéticos. Assim, a cena da emergência, colocada em primeiro plano nas versões hopi e zuñi, tende a ser eclipsada em Acoma por outra cena, a da criação do mundo pela ação conjugada de duas forças, a do alto e a do baixo. Em lugar de progressão contínua, ou periódica, o mito se apresenta como um conjunto de estruturas bipolares, análogas às que compõem o sistema de parentesco. Que conclusão se pode tirar disso? Sendo possível constatar uma correlação entre sistemas ligados a âmbitos aparentemente tão afastados quanto o parentesco e a mitologia, a hipótese de uma correlação do mesmo tipo com o sistema linguístico nada tem de absurdo. Caberá aos linguistas dizer de que tipo de correlação se trata. Surpreenderia aos antropólogos que nenhuma correlação fosse extraída, de um tipo qualquer, pois isso significaria que correlações manifestas entre campos muito afastados – parentesco e mitologia – se desfazem quando se comparam outros campos como a mitologia e a língua, certamente mais próximos. Esse modo de expor a questão nos aproxima dos linguistas, que estudam o que chamam de aspectos, entre os quais o do tempo, preocupando-se, assim, com as diversas modalidades que a noção de tempo pode assumir numa dada língua. Quem sabe essas modalidades pudessem ser comparadas, tais como se manifestam no plano linguístico e no plano do parentesco. Sem pretender antever o resultado de tal tentativa, parece-me que pelo menos é legítimo propô-la, de modo que a questão levantada possa ser respondida por um sim ou por um não. Passo agora para um exemplo mais complexo, mas que me permitirá mostrar com maior clareza como a antropologia deve conduzir sua análise se quiser tomar a dianteira sobre a linguística e encontrá-la num terreno comum. Proponho-me considerar dois tipos de estruturas sociais observáveis em regiões afastadas entre si, uma que vai aproximadamente da Índia até a Irlanda, e outra do Assam até a Manchúria. Que não me entendam mal: não estou afirmando que cada uma dessas regiões ilustra exclusivamente um único tipo de estrutura social. Postulo apenas que os exemplos mais bem definidos e mais numerosos de cada um dos sistemas se encontram nas duas regiões mencionadas, cujas fronteiras deixamos imprecisas, mas que correspondem grosso modo à área das línguas indo-europeias e à das línguas sino-tibetanas, respectivamente. Caracterizarei as estruturas em questão por meio de três critérios: regras de casamento, organização social e sistema de parentesco. Área indo- europeia Área sino- tibetana REGRAS DE CASAMENTO Sistemas circulares, resultado direto de regras explícitas, ou indireto, do fato de a escolha do cônjuge ser determinada por leis de probabilidade Sistemas circulares coexistem com sistemas de troca simétrica tipos de regras matrimoniais. Um corresponde ao que foi descrito acima para a área indo-europeia, e o outro pode ser definido, em sua forma mais simples, como um casamento por troca, caso particular do tipo precedente. Em lugar de integrar um número qualquer de grupos, esse segundo sistema funciona com um número par (2, 4, 6, 8) e os trocadores sempre se encontram agrupados dois a dois. A organização social, por sua vez, se caracteriza por formas clânicas, simples ou complexas. Contudo, a complexidade nunca é realizada de modo orgânico (como ocorre com as famílias extensas). Antes, resulta mecanicamente da subdivisão dos clãs e linhagens, ou seja, a quantidade dos elementos pode aumentar, mas a estrutura em si permanece simples. Os sistemas de parentesco costumam possuir muitos termos. No sistema chinês, por exemplo, há centenas de termos, e novos termos podem ser indefinidamente criados pela combinação dos termos elementares. De tal maneira que qualquer grau de parentesco, por mais afastado que seja, sempre pode ser descrito com a mesma precisão que os graus mais próximos. Trata-se, nesse sentido, de um sistema completamente objetivo. Como observou Kroeber há tempos, é difícil imaginar dois sistemas mais diferentes um do outro do que o chinês e o europeu. Somos, assim, levados às seguintes conclusões. Na área indo-europeia, a estrutura social (regras de casamento) é simples, mas os elementos (organização social) destinados a compor a estrutura são numerosos e complexos. Na área sino-tibetana, a situação se inverte. A estrutura é complexa, porque justapõe, ou integra, dois tipos de regras matrimoniais, mas a organização social, de tipo clânico ou equivalente, permanece simples. Por outro lado, a oposição entre estrutura e elementos se traduz, no nível da terminologia (isto é, já num nível linguístico), por características antitéticas, tanto no que diz respeito à armação (subjetiva ou objetiva) como aos termos em si (numerosos ou pouco numerosos). Quando descrevemos desse modo a estrutura social, não podemos pelo menos encetar um diálogo com os linguistas? Durante uma sessão anterior, Roman Jakobson destacou as características fundamentais das línguas indo- europeias. Observam-se nelas, dizia ele, uma defasagem entre a forma e a substância, múltiplas exceções às regras, grande liberdade quanto à escolha dos meios para expressar a mesma ideia... Esses traços não se assemelham aos que apontamos a respeito da estrutura social? Para definir adequadamente as relações entre linguagem e cultura, é preciso, parece-me, excluir de saída duas hipóteses. Uma, de que não haveria relação alguma entre as duas ordens. E a hipótese inversa, de uma correlação total em todos os níveis. No primeiro caso, seríamos colocados diante da imagem de um espírito humano desarticulado e parcelado, dividido em compartimentos e níveis entre os quais nenhuma comunicação é possível, situação bastante estranha, e sem relação com o que se constata em outros campos da vida psíquica. Mas, se a correspondência entre a língua e a cultura fosse absoluta, os linguistas e os antropólogos já se teriam dado conta disso, e não estaríamos aqui para debater. Minha hipótese de trabalho reivindica, portanto, uma posição intermediária: certas correlações podem provavelmente ser extraídas entre determinados aspectos e em determinados níveis, e cabe a nós descobrir quais são esses aspectos e onde estão esses níveis. Antropólogos e linguistas podem colaborar nessa tarefa. Mas a principal beneficiária de nossas eventuais descobertas não será nem a antropologia nem a linguística, tal como as concebemos atualmente. Essas descobertas serão proveitosas para uma ciência ao mesmo tempo muito antiga e muito nova, uma antropologia entendida no sentido mais amplo, isto é, um conhecimento do homem associando diversos métodos e diversas disciplinas, e que um dia irá nos revelar as forças secretas que movem esse hóspede presente em nossos debates sem ter sido convidado, o espírito humano. 29. Traduzido e adaptado do original em inglês Conference of Anthropologists and Linguists (Bloomington, Indiana, 1952), publicado em Supplement to International Journal of American Linguistics, a partir de uma transcrição da gravação em fita magnética (Lévi-Strauss 1953a). 30. Cf., para ilustrações de uma análise mais detalhada, Lévi-Strauss 1945a, cap. II deste volume. V. Posfácio aos capítulos III e IV[31] No mesmo número dos Cahiers Internationaux de Sociologie em que foi publicado um artigo de Gurvitch que me é em parte consagrado, encontra-se outro, de Haudricourt e Granai, mais bem informado e que expressa um pensamento mais nuançado.[32] Estaríamos mais facilmente de acordo se eles tivessem, antes de escrever seu artigo, tomado conhecimento de meus dois artigos acerca das relações entre língua e sociedade, em vez de se aterem apenas ao primeiro. Na verdade, os dois artigos formam um todo, já que o segundo responde às objeções levantadas nos Estados Unidos pela publicação do primeiro. Por esse motivo, foram reunidos neste volume.[33] Devo admitir, diante de Haudricourt e Granai, que, como o primeiro artigo foi escrito e o segundo falado, diretamente em inglês (o segundo é a transcrição de uma gravação magnética), sua expressão é por vezes imprecisa. Talvez eu seja mais responsável do que meus adversários por certos equívocos por eles cometidos a respeito de meu pensamento. No conjunto, porém, a principal crítica que lhes faço é por adotarem uma posição extraordinariamente tímida. Aparentemente preocupados diante do rápido desenvolvimento da linguística estrutural, eles tentam introduzir uma distinção entre ciência da linguagem e linguística. A primeira, dizem, “é mais ampla do que a linguística, mas nem por isso a contém; desenvolve-se num nível diferente; elas não empregam os mesmos conceitos e, em consequência, os mesmos métodos que a ciência das línguas”. Isso é verdadeiro até certo ponto. Mas tal distinção consistiria, antes, em fundamento para o direito dos etnólogos (que não se percebe bem até que ponto é aqui contestado) de se dirigirem diretamente à ciência da linguagem quando estudam (como dizem com excelência nossos autores) “o conjunto indefinido dos sistemas de comunicação reais ou possíveis”, esses “sistemas simbólicos que não são o sistema da língua”, que compreendem “os campos dos mitos, dos rituais, do parentesco, que aliás podem ser considerados como outras tantas linguagens específicas” (Haudricourt e Granai 1955: 127). E já que nossos autores afirmam, em seguida, que nessa qualidade, e em graus diversos, eles são passíveis de uma análise estrutural análoga à que se aplica ao sistema da língua. Nesse espírito, são bem conhecidos os notáveis estudos de Lévi-Strauss acerca dos “sistemas de parentesco”, que incontestavelmente aprofundaram e esclareceram questões de enorme complexidade (id. ibid.), uma determinada sociedade, cometeríamos um erro lógico que forneceria um argumento mais simples e mais forte do que os empregados por Haudricourt e Granai: de fato, o todo não pode ser equivalente às partes. Tal erro de julgamento estaria por vezes presente na metalinguística americana, com a qual Haudricourt e Granai tentam tendenciosamente me confundir? É possível. Mas, salvo engano meu, a palavra e a coisa ficaram na moda, nos Estados Unidos, posteriormente à minha comunicação no Congresso Internacional dos Americanistas realizado em Nova York em 1949 (Lévi-Strauss 1951, cap. III deste volume) e esta buscava alhures sua inspiração.[37] As críticas que eu mesmo fiz à pretensa metalinguística, desde 1952, são mais técnicas e se situam em outro plano. O erro de Whorf e de seus discípulos decorrem de compararem dados linguísticos muito elaborados, resultantes de uma análise prévia, com observações etnográficas situadas num nível empírico ou no plano de uma análise ideológica que implica um recorte arbitrário da realidade. Comparam, assim, elementos que não são de mesma natureza, e correm o risco de desembocar em truísmos ou hipóteses frágeis. Haudricourt e Granai cometem o mesmo erro quando escrevem: O objeto da linguística é constituído por línguas (no sentido corrente da palavra: língua francesa, língua inglesa etc.). Em sociologia, objetos comparáveis seriam o que chamamos sociedades ou estruturas globais (nação, povo, tribo etc.). Com efeito, é necessário que o objeto cuja natureza se quer estudar seja o mais independente possível dos demais objetos (1955: 126). Nesse caso, estamos de fato sem rumo e a crítica não tem dificuldade nenhuma em triunfar. Nos dois estudos que correspondem aos caps. III e IV deste volume, proponho algo totalmente diferente. O objeto da análise estrutural comparada não é a língua francesa ou a língua inglesa, e sim um certo número de estruturas que um linguista pode atingir a partir desses objetos empíricos que são, por exemplo, a estrutura fonológica do francês, ou sua estrutura gramatical, ou sua estrutura lexical, ou ainda a do discurso, que não é totalmente indeterminado. Não comparo a essas estruturas a sociedade francesa, nem mesmo a estrutura da sociedade francesa, como supõe ainda Gurvitch (para quem uma sociedade enquanto tal possui uma estrutura), mas um certo número de estruturas, que busco onde é possível encontrá-las, e não alhures: no sistema de parentesco, na ideologia política, na mitologia, no ritual, na arte, no “código” de boas maneiras e – por que não? – na culinária. É entre essas estruturas, que são todas expressões parciais – porém privilegiadas para o estudo científico – dessa totalidade que chamamos de sociedade francesa, inglesa ou outra, que busco saber se há propriedades comuns. E, também nesse caso, não se trata de substituir um conteúdo original por outro, de reduzir este àquele, mas de saber se as propriedades formais apresentam entre si homologias, e quais homologias, ou contradições, e quais contradições, ou relações dialéticas expressáveis sob forma de transformações. Finalmente, não afirmo que tais comparações sempre serão produtivas, apenas que o serão às vezes, e que essas confluências serão de grande importância para compreendermos não só a posição de uma determinada sociedade em relação a outras do mesmo tipo mas também as leis que regem sua evolução no tempo. Daremos aqui um exemplo diferente dos que se encontram nos artigos em questão. Como a língua, creio que a culinária de uma sociedade é analisável em elementos constitutivos que poderíamos chamar, no caso, de “gustemas”, que estão organizados segundo determinadas estruturas de oposição e correlação. Poderíamos, assim, distinguir a culinária inglesa e a francesa por meio de três oposições: endógeno/exógeno (isto é, matérias-primas nacionais ou exóticas), central/periférico (base da refeição e acompanhamentos), marcado/não marcado (isto é, saboroso ou insípido). Teríamos então um quadro, no qual os sinais [+] e [–] correspondem ao caráter pertinente ou não pertinente de cada oposição no sistema considerado: culinária inglesa culinária francesa endógeno/exógeno + – central/periférico + – marcado/não marcado – + Ou seja, a culinária inglesa compõe os pratos principais da refeição com produtos nacionais preparados de modo insípido e os acompanha de preparados de base exótica em que todos os valores diferenciais são fortemente marcados (chá, bolo de frutas, geleia de laranja, vinho do Porto). Na culinária francesa, inversamente, endógeno/exógeno torna-se muito fraco ou desaparece, e gustemas igualmente marcados são combinados entre si, em posição tanto central como periférica. Essa definição poderia ser igualmente aplicada à culinária chinesa? Sim, se nos limitarmos às oposições acima, mas não se introduzirmos outras, como acre/doce, mutuamente exclusivas na culinária francesa, à diferença da chinesa (e da alemã), e se atentarmos para o fato de que a culinária francesa é diacrônica (oposições diferentes são acionadas nos diversos momentos da refeição, como, por exemplo, o caso dos hors d’oeuvre, construídos sobre a oposição preparo máximo/preparo mínimo, do tipo embutidos/folhas,[38] que não se encontra em sincronia nos pratos seguintes), ao passo que a culinária chinesa é concebida em sincronia, isto é, as mesmas oposições valem para construir todas as partes da refeição (que, talvez por isso mesmo, é servida de uma só vez). Seria necessário recorrer a outras oposições para atingir uma estrutura exaustiva, como entre assado e cozido, que desempenha um papel importante na culinária popular do interior do Brasil (sendo o assado o modo sensual, e o cozido o modo nutritivo, mutuamente exclusivos, de preparar as carnes). Existem, finalmente, certas incompatibilidades, que são conscientes no grupo social e que possuem valor normativo: alimento aquecedor/alimento refrescante, bebida láctea/bebida alcoólica, fruta fresca/fruta fermentada etc. Uma vez definidas essas estruturas diferenciais, não há nada de absurdo em se perguntar se elas pertencem exclusivamente ao campo considerado, ou se se encontram (de modo geral transformadas, aliás) em outros campos da mesma sociedade ou de sociedades diferentes. E se descobríssemos que são comuns a vários campos, teríamos razões para concluir que atingimos um valor significativo das atitudes inconscientes da sociedade, ou sociedades, em questão. Escolhi deliberadamente esse exemplo um tanto tênue porque diz respeito a sociedades contemporâneas, pois que Haudricourt e Granai, que parecem por vezes reconhecer o valor de meu método no que diz respeito a sociedades primitivas, se empenham em distingui-las radicalmente das sociedades mais complexas. Nestas, dizem, a apreensão da sociedade global é impossível. Ora, mostrei que jamais se trata de apreender a sociedade global (empresa, de qualquer modo, irrealizável stricto sensu), mas sim de nela discernir níveis que sejam comparáveis e assim se tornem significativos. Hei de reconhecer que tais níveis são mais numerosos, e cada um deles em si mais difícil de estudar em nossas enormes sociedades modernas do que em pequenas tribos selvagens. Contudo, a diferença é de grau, não de natureza. Também é fato que, no mundo ocidental moderno, as fronteiras linguísticas raramente coincidem com as fronteiras culturais, porém a dificuldade não é intransponível. Em lugar de comparar certos aspectos da língua e certos aspectos da cultura, podem-se saiba muito bem, sendo etnógrafo e tecnólogo, que nem a técnica é tão natural nem a linguagem tão arbitrária quanto ele diz. Nem mesmo os argumentos linguísticos invocados em favor dessa oposição são satisfatórios. Será que o nome pomme de terre[39] resulta realmente de uma convenção arbitrária, que “designa um objeto que não é uma maçã e não está na terra”, e que o caráter arbitrário do conceito é evidenciado quando se constata que, em inglês, batata é potato? Na verdade, a escolha em francês de um termo largamente inspirado por considerações didáticas traduz as condições técnicas e econômicas bastante particulares que marcaram a aceitação definitiva desse produto alimentício em nosso país. Reflete também as formas verbais correntes nas principais regiões em que a planta foi importada. E, finalmente, a solução pomme de terre era, se não necessária, pelo menos viável em francês, porque a palavra pomme, que na origem significava todo fruto arredondado com sementes ou caroço, já tinha um alto rendimento funcional, atestado por formações anteriores como pomme de pin [= pinha], pomme de chêne [= bugalho], pomme de coing [= marmelo], pomme de grenade [= romã] etc. Uma escolha em que se exprimem fenômenos históricos, geográficos, sociológicos, ao mesmo tempo que tendências propriamente linguísticas, pode realmente ser considerado arbitrário? Digamos, antes, que pomme de terre não se impunha à língua francesa, mas existia como uma das soluções possíveis (produzindo, inclusive, por oposição, pomme de l’air [= pomo do ar], frequente na linguagem dos cozinheiros, e que substitui o termo, corrente em francês arcaico, pomme vulgaire [= pomo vulgar] para o fruto da árvore, já que é o outro “pomo” que se vê dotado de maior coeficiente de vulgaridade). A solução resulta de uma escolha entre possíveis preexistentes. Arbitrária no plano dos conceitos, a língua o seria igualmente no das palavras: “Não existe [...] nenhuma relação inteligível entre a pronúncia de uma palavra e o conceito que representa. Por exemplo, que relação pode haver entre o fato de fechar os lábios no início e no fim da palavra pomme e o fruto arredondado que conhecemos?” (Haudricourt e Granai 1955: 127). O princípio saussuriano aqui invocado por nossos autores é incontestável se nos mantivermos estritamente no plano da descrição linguística. Desempenhou um papel considerável na ciência das línguas, ao permitir que a fonética se emancipasse das interpretações metafísicas naturalistas. Representa, porém, apenas um momento do pensamento linguístico, e, assim que se tenta apreciar as coisas de um ponto de vista mais geral, seu alcance se limita e sua precisão se perde. Para simplificar meu pensamento, direi que o signo linguístico é arbitrário a priori, mas deixa de sê-lo a posteriori. Nada há, a priori, na natureza de certos preparados à base de leite fermentado que imponha a forma sonora fromage [= queijo], ou melhor, from-, já que a desinência está presente em outras palavras. Basta comparar o francês froment [= fermento], cujo conteúdo semântico é totalmente diferente, e o inglês cheese, que significa o mesmo que fromage, com outro material fonético. Até aí, o signo linguístico se apresenta como arbitrário. Em compensação, não há por que ter certeza de que tais opções fonéticas, arbitrárias em relação ao designatum, não reverberam imperceptivelmente, em seguida, talvez não no sentido geral das palavras, mas sobre sua posição num meio semântico. Determinação a posteriori que se produz em dois níveis, o fonético e o do vocabulário. No plano fonético, os fenômenos de sinestesia foram bastante descritos e estudados. Praticamente todas as crianças e vários adultos, ainda que em geral não o reconheçam, associam espontaneamente os sons, fonemas ou timbres de instrumentos musicais a cores e formas. Essas associações também existem no plano do vocabulário, em certos campos fortemente estruturados, como os termos do calendário. Embora as cores associadas não sejam sempre as mesmas para cada fonema, ao que parece os sujeitos constroem, com termos variáveis, um sistema de relações que corresponde, de modo analógico e num outro plano, às propriedades fonológicas estruturais da língua considerada. Assim, um sujeito cuja língua materna é o húngaro verá as vogais do seguinte modo: i, í, branco; e, amarelo; é, um pouco mais escuro; a, bege; á, bege escuro; o, azul-escuro; ó, preto; u, ú, vermelho como sangue. E Jakobson registra, a respeito dessa observação: O cromatismo crescente das cores claras e escuras é paralelo à oposição entre vogais anteriores e posteriores, exceto no tocante às vogais u, cuja percepção parece anormal. O caráter ambivalente das vogais anteriores arredondadas está claramente indicado: ö, o˝, base azul bem escuro com manchas claras, difusas, espalhadas; ü, u˝, base vermelho intenso com pintinhas rosa (Reichard, Jakobson & Werth 1949: 226). Não se trata, portanto, de particularidades explicáveis pela história pessoal ou pelos gostos de cada um. Como dizem os autores que acabamos de citar, não só o estudo desses fenômenos “pode revelar aspectos importantíssimos da linguística, do ponto de vista psicológico e teórico” (id. ibid.: 224), como também nos leva diretamente à consideração das “bases naturais” do sistema fonético, isto é, a estrutura do cérebro. Retomando a questão num número posterior da mesma revista, David I. Mason conclui sua análise assim: Existe provavelmente, no cérebro humano, um mapa de cores pelo menos em parte similar, do ponto de vista topológico, ao mapa das frequências sonoras que também deve ali existir. Se existir, como sugere Martin Joos, um mapa cerebral das formas da cavidade bucal [...] ele deve ser o inverso, de algum modo, tanto do mapa das frequências como do mapa das cores (Mason 1952: 41, citando Joos 1948). Assim, se admitirmos, em conformidade com o princípio saussuriano, que nada predestina a priori certos grupos de sons a designar determinados objetos, isso não torna menos provável que, uma vez adotados, esses grupos de sons produzam nuances específicas no conteúdo semântico que lhes foi associado. Observou-se nos poetas ingleses uma preferência pelas vogais de alta frequência (de i a ε) para sugerir tons pastéis ou pouco luminosos, ao passo que as vogais de baixa frequência (de u a a) são ligadas às cores fortes ou escuras (id. ibid., apud McDermott 1940). Mallarmé lamentava que as palavras francesas jour [= dia] e nuit [= noite] tivessem o valor fonético inverso de seu respectivo sentido. A partir do momento em que o francês e o inglês atribuem valores fonéticos heterogêneos ao mesmo alimento, a posição semântica do termo já não é absolutamente a mesma. Para mim, que só falei inglês em alguns períodos de minha vida, sem por isso ser bilíngue, fromage e cheese de fato querem dizer a mesma coisa, mas com nuances diferentes: fromage evoca certa espessura, uma matéria pastosa e pouco friável, um sabor denso. É uma palavra particularmente apropriada para designar o que os queijeiros chamam de “pâtes grasses” [= pastas gordas ou gordurosas]. Ao passo que cheese, mais leve, fresco, um pouco ácido e se escamoteando sob o dente (cf. forma do orifício bucal), me faz imediatamente pensar no queijo branco. O “queijo arquetípico” não é portanto o mesmo para mim, quando penso em francês ou em inglês. Quando consideramos o vocabulário a posteriori, isto é, já constituído, as palavras perdem muito de sua arbitrariedade, pois o sentido que lhes damos deixa de ser somente função de uma convenção. Depende do modo como cada língua recorta o universo de significação a que a palavra pertence, é função da presença ou ausência de outras palavras para exprimir sentidos próximos. Assim, time e temps [= tempo] não podem ter o mesmo sentido em francês [ou português] e inglês, pelo simples fato de o inglês dispor também de weather, que nos falta. Inversamente, chair e armchair se encontram, retrospectivamente, num ambiente semântico mais restrito do que chaise [= cadeira] e fauteuil [= poltrona]. As palavras são contaminadas, ainda, por suas homófonas, apesar das diferenças de sentido. Se convidássemos um grande número de pessoas a fornecer associações livres suscitadas pela série quintette [= quinteto], sextuor [= sexteto] e septuor [= septeto], me espantaria muito que elas só remetessem ao número de instrumentos e que o sentido de quintette não fosse, até certo ponto, influenciado por quinte [= acesso violento] (de tosse) e o de sextuor por sexe [= estrutura fonológica da linguagem” (id. ibid.: 28). 35. Cf. Lévi-Strauss 1953b, cap. XV deste volume. 36. Arte, cap. XIII; mito, caps. X e XI; rito, cap. XII deste volume. 37. Por exemplo, em certos artigos de Sapir. Cf. Sapir 1949. 38. “Crudités” no original, que corresponde sobretudo a legumes e frutas crus. Optou-se aqui por “folhas” para remeter imediatamente às saladas, apenas lavadas, ou seja, objeto de “preparo mínimo”. [N.T.] 39. Batata, literalmente “maçã/pomo de terra”. A partir daqui, as traduções dos termos em francês e em inglês figurarão no próprio texto, entre colchetes. [N.T.] 40. Tanto que eu mesmo tenho dificuldade em não empregar em francês o termo sextette (que seria um anglicismo), certamente em razão da desinência feminina. ORGANIZAÇÃO SOCIAL VI. A noção de arcaísmo em etnologia[41] Apesar de todos os seus defeitos, e em que pesem críticas merecidas, o termo “primitivo”, por falta de um melhor, parece ter definitivamente se instalado no vocabulário etnológico e sociológico contemporâneo, de modo que estudamos sociedades “primitivas”. Mas o que exatamente entendemos por isso? Em termos gerais, a expressão é bem clara. Sabemos que “primitivo” designa um vasto conjunto de populações que permaneceram desprovidas da escrita e alijadas, por essa razão, dos métodos de investigação propriamente históricos; atingidas, apenas recentemente, pela expansão da civilização mecânica e portanto alheias, por sua estrutura social e sua concepção de mundo, às noções que a filosofia e a economia políticas consideram fundamentais quando se trata de sua própria sociedade. Mas onde passa o divisor? O México antigo satisfaz ao segundo critério, mas muito imperfeitamente ao primeiro. O Egito e a China arcaicos abrem-se para a investigação etnológica, evidentemente não porque desconheçam a escrita, mas porque a massa de documentos preservados é insuficiente para tornar desnecessário o emprego de outros métodos; e nenhum dos dois está fora da área da civilização mecânica, apenas a precederam no tempo. Inversamente, o fato de folcloristas trabalharem no presente e no interior da civilização mecânica de forma alguma os afasta dos etnólogos. Temos assistido, há uma década, nos Estados Unidos, a uma sensacional evolução que é certamente reveladora, em primeiro lugar, da crise espiritual por que passa a sociedade americana contemporânea (que começa a duvidar de si mesma e que só consegue se apreender por intermédio desse autoestranhamento que tem aumentado a cada dia), mas que, ao abrir para os etnólogos as portas das fábricas, dos serviços públicos nacionais e municipais, até mesmo do estado- maior, proclama implicitamente que, entre a etnologia e as demais ciências do homem, a diferença está no método e não no objeto. Por isso, é apenas o objeto que queremos considerar aqui. É impactante a constatação de que, ao perder o sentimento do objeto que lhe é próprio, a etnologia americana deixe dissolver-se o método – demasiado empírico, mas preciso e cuidadoso – com que a tinham armado seus fundadores, em favor de uma metafísica social não raro simplista e de procedimentos de investigação duvidosos. Um método não pode se firmar, menos ainda se ampliar, sem um conhecimento cada vez mais exato de seu objeto particular, de seus caracteres específicos e de seus elementos distintivos. Estamos longe disso. Sem dúvida, o termo “primitivo” parece estar definitivamente fora do alcance das confusões decorrentes de seu sentido etimológico e alimentadas por um evolucionismo pelas pesquisas do saudoso Curt Nimuendaju entre várias tribos da suposta família Jê, que habitam o cerrado compreendido entre a cadeia costeira e o vale do Araguaia, no leste e no nordeste brasileiros. Entre os Ramkokamekrã, os Kay apó, os Xerente e os Apinay é, Nimuendaju descobriu primeiro uma agricultura mais original do que se supunha: algumas dessas tribos cultivam espécies (Cissus sp.) desconhecidas alhures. Mas, sobretudo no campo da organização social, esses supostos primitivos revelavam sistemas de uma espantosa complexidade: metades exogâmicas entrecortando metades esportivas ou rituais, sociedades secretas, associações masculinas e classes de idade. Tais estruturas normalmente acompanham níveis de cultura muito mais elevados. Conclui-se disso que ou tais estruturas não são exclusivas desses níveis, ou o arcaísmo dos supostos Jê não é tão incontestável quanto parece. Os intérpretes das descobertas de Nimuendaju, sobretudo Lowie e Cooper, se inclinaram mais pela primeira explicação. Assim, Lowie escreve que “a presença de metades matrilineares em culturas tais como a dos Canela e a dos Bororo prova que essa instituição pode surgir localmente entre caçadores-coletores ou, na melhor das hipóteses, entre povos que permaneceram na primeira fase da agricultura” (1941: 195). Mas será que os Jê e seus correspondentes no planalto ocidental, Bororo e Nambikwara, merecem plenamente tal definição? Não seria igualmente possível ver neles regressivos que, havendo partido de um nível mais alto de vida material e de organização social, teriam dele conservado certos traços como vestígios de antigas condições? A essa hipótese, sugerida em correspondência privada, Lowie teve a amabilidade de responder que a alternativa era concebível, mas que seus termos permaneceriam igualmente duvidosos, enquanto não se tivesse produzido “um modelo preciso tal que se pudesse demonstrar que a organização social dos Canela e dos Bororo constitui sua réplica atenuada” (id. ibid.). Há vários modos de responder a essa exigência, e a primeira é certamente enganosa em sua simplicidade. Contudo, as altas culturas pré-colombianas do Peru e da Bolívia tiveram algo que se assemelhava à organização dualista: os habitantes da capital dos Incas estavam repartidos em dois grupos, alto Cuzco e baixo Cuzco, cujo significado não era meramente geográfico, já que nos rituais as múmias dos antepassados eram solenemente colocadas em duas fileiras correspondentes, como ocorria na China dos Chu (Vega 1787, t. 1: 167; Maspero 1927: 251-52). E foi o próprio Lowie que, comentando nossa descrição de uma aldeia bororo, cujo esquema reflete a complexa estrutura social, evoca nesse sentido o plano de Tiahuanaco tal como foi reconstituído por Bandelier (Nimuendaju e Lowie 1927: 578). O mesmo dualismo, ou pelo menos seus temas fundamentais, se prolonga até a América Central, no antagonismo ritual entre as ordens astecas da Águia e do Jaguar. Ambos os animais são personagens da mitologia dos Tupi e de outras tribos sul-americanas, como comprovam o motivo do “jaguar celeste” e o engaiolamento ritual de uma águia-harpia nas aldeias indígenas do Xingu e do Machado. Tais semelhanças entre as sociedades tupi e asteca se estendem a outros aspectos da vida religiosa. Talvez o modelo concreto de que as culturas primitivas do cerrado são a réplica atenuada se encontre nos altiplanos andinos. A resposta é simples demais. Entre as grandes civilizações do planalto e os bárbaros do cerrado certamente houve contato: intercâmbios comerciais, reconhecimentos militares, escaramuças de fronteira. Os indígenas do Chaco sabiam da existência dos Incas e descreviam para os primeiros viajantes, por ouvirem dizer, seu prestigioso reino. Orellana encontrou objetos de ouro no médio Amazonas, e machados de metal de proveniência peruana foram desenterrados até no litoral de São Paulo. Contudo, o ritmo extremamente acelerado de expansão e declínio das civilizações andinas não pode ter permitido mais do que encontros esporádicos e de curta duração. Por outro lado, a organização social dos Astecas e dos Incas chegou até nós por intermédio de descrições de conquistadores encantados com a própria descoberta, com um caráter sistemático que certamente não possuíam. Em ambos os casos, estamos diante do encontro efêmero de culturas muito diversas, em muitos casos bastante antigas e heterogêneas. O fato de uma determinada tribo entre tantas outras ter ocupado temporariamente um lugar proeminente não basta para nos levar à conclusão de que seus costumes específicos foram adotados em toda a extensão do território sobre o qual exerceu sua influência, ainda que seus dignitários tivessem interesse em difundir tal ficção, sobretudo junto aos recém-chegados europeus. Nem no Peru nem no México, jamais se tratou verdadeiramente de um império, cujo modelo os povos colonizados, clientes ou simplesmente testemunhas deslumbradas, teriam buscado reproduzir com seus humildes meios. As analogias entre altas e baixas culturas decorrem de razões mais profundas. Na verdade, a organização dualista é apenas um traço entre outros comuns aos dois tipos. Traços que se distribuem de modo muito confuso, desaparecem e reaparecem, indiferentes à distância geográfica ou ao nível de cultura considerado. Parecem como que espalhados ao acaso por toda a extensão do continente. Ora se encontram presentes, ora estão ausentes, ora agrupados, ora isolados, luxuosamente desenvolvidos numa grande civilização ou parcimoniosamente preservados na mais baixa. De que maneira se poderia dar conta de cada uma dessas ocorrências por fenômenos de difusão? Seria preciso determinar, para cada caso, um contato histórico, datá-lo com precisão, traçar um itinerário de migração, tarefa não apenas irrealizável, mas que além disso não corresponderia à realidade, a qual nos apresenta uma conjuntura global, que é preciso compreender enquanto tal. Trata-se de um vasto fenômeno de sincretismo, cujas causas históricas e locais são bem anteriores ao início do que chamamos de história pré-colombiana da América, e que por sensatez metodológica devemos aceitar como situação inicial, a partir da qual nasceram e se desenvolveram as altas culturas do México e do Peru. Seria possível encontrar a imagem dessa situação inicial no estado atual das baixas culturas do cerrado? Impossível. Não existe transição concebível ou etapas que possam ser reconstituídas entre o nível cultural dos Jê e os primórdios da cultura maia ou os níveis arcaicos do vale do México. De modo que tanto umas quanto outras derivam de uma base certamente comum, mas que deve ser buscada num plano intermediário entre as atuais culturas do cerrado e as antigas civilizações dos altiplanos. Várias indicações confirmam essa hipótese. Primeiro, a arqueologia, que encontra, inclusive num passado recente, centros de civilização relativamente evoluída por toda a América tropical, nas Antilhas, em Marajó, em Cunani, no baixo Amazonas, na foz do Tocantins, na planície de Mojos, em Santiago del Estero, e também os grandes petroglifos do vale do Orinoco e de outras regiões, que supõem um trabalho de equipe de que encontramos, até hoje, notáveis aplicações entre os Tapirapé, para a abertura e o cultivo de roças (Baldus 1944- 1946). No início do período histórico, Orellana admirava ao longo do Amazonas culturas variadas, numerosas e desenvolvidas. Seria lícito supor que, na época de seu apogeu, as tribos inferiores não participassem, pelo menos em certa medida, dessa vitalidade cujos indícios acabamos de evocar? A própria organização social dualista não constitui um traço diferencial das populações do cerrado. Foi localizada, na floresta, entre os Parintintin e os Mundurucu, é provável entre os Tembé e os Tukuna e certa nos dois extremos do Brasil, entre os Palikur e os Terena, Aruak de alta qualidade. Eu mesmo a encontrei, em estado de vestígio, entre os Tupi-Kawahib do alto Machado, de modo que, em suas modalidades matrilinear e patrilinear, pode-se circunscrever uma área de organização dualista que vai da margem direita do Tocantins até o Madeira. É impossível definir a organização dualista na América do Sul como um traço típico dos níveis mais primitivos, já que é compartilhado por vizinhos da floresta, hábeis agricultores e caçadores de cabeças, que possuem culturas muito mais elevadas. Não devemos dissociar a organização social dos povos do cerrado da de seus vizinhos dos vales de mata e das margens de rios. E, inversamente, às vezes tribos de cultura muito diferente são situadas nos níveis supostamente arcaicos. O exemplo dos Bororo apresenta uma demonstração particularmente impressionante dessas falsas analogias. Para fazer deles “verdadeiros primitivos” ou quase, invoca-se um texto de Von den Steinen: As mulheres, habituadas a arrancar raízes selvagens na mata, começaram a cortar brotos (de mandioca), revolvendo cuidadosamente o solo na esperança de encontrar raízes comestíveis. Essa tribo de
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