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A Bussola De Ouro - Philip Pullman, Notas de estudo de Engenharia Civil

Livre muito legal hjhh

Tipologia: Notas de estudo

2018

Compartilhado em 27/02/2018

iago-borba-3
iago-borba-3 🇧🇷

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Baixe A Bussola De Ouro - Philip Pullman e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia Civil, somente na Docsity! PHILIP PULLMAN À BÚSSOLA DE OURO Tradução Eliana Sabino © 1995, Philip Pullman Todos os direitos reservados, incluindo o direito de qualquer tipo de reprodução completa ou parcial, à EDITORA OBJETIVA LTDA. Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro — RJ — CEP: 22241-090 Tel.: (21) 2199-7824 — Fax: (21) 2199-7825 www.objetiva.com.br Título original Northern Lights Capa ô de casa sobre ilustração de Dominic Harman/Arena Copidesque Ana Kronemberger Revisão Rita Godoy Izabel Cristina Aleixo Umberto Figueiredo Pinto Raquel Corrêa Conversão para e-book Abreu’s System Ltda. CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ P983b Pullman, Philip, A bússola de ouro [recurso eletrônico] / Philip Pullman ; tradução Eliana Sabino. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2011. recurso digital (Fronteiras do universo ; 1) Tradução de: Northern lights Formato: ePub Requisitos do sistema: Modo de acesso: 259p. ISBN 978-85-390-0197-2 (recurso eletrônico) 1. Romance inglês. 2. Livros eletrônicos. I. Sabino, Eliana Valadares. II. Título. III. Série. 10-5729. CDD: 823 CDU: 821.111-3 Para dentro desse abismo agreste, Ventre da natureza e talvez tumba, Nem de mar, nem praia, ar ou fogo Mas de todos esses misturados em suas causas prenhes Confusamente, e em constante luta A não ser que o poderoso criador lhes ordene Seus materiais obscuros para criar mais mundos, Para dentro desse abismo agreste o demônio cauteloso Postou-se à beira do inferno e olhou por algum tempo, Refletindo sobre a sua viagem... John Milton: “Paraíso perdido”, Livro II Primeira Parte OXFORD 1 A GARRAFA DE TOKAY LYRA e seu dimon atravessaram o Salão, já bastante escuro, tomando cuidado para seguirem junto à parede, fora de vista da Cozinha. As três mesas grandes ao longo do Salão já estavam arrumadas e os bancos compridos estavam afastados, esperando os comensais. No alto, ao longo das paredes, os retratos de antigos Reitores estavam na penumbra. Lyra chegou ao tablado e se voltou para olhar a porta aberta da Cozinha; não vendo ninguém, subiu para junto da mesa principal. Ali os talheres eram de ouro, não de prata, e os 14 lugares não eram num banco de carvalho, mas em cadeiras de mogno com almofadas de veludo. Lyra parou junto à cadeira do Reitor e deu um peteleco de leve na taça maior; o som percorreu todo o Salão. — Você está de brincadeira. Comporte-se! — cochichou o dimon. O nome do dimon era Pantalaimon, e, no momento, ele tinha a forma de uma mariposa marrom, para não se destacar na penumbra do Salão. — Lá na cozinha estão fazendo muito barulho — Lyra cochichou de volta. — E o Administrador só aparece depois do primeiro sino. Deixe de ser ranzinza. Em todo caso, ela colocou a palma da mão sobre o cristal que vibrava; Pantalaimon esvoaçou à frente dela, atravessando o tablado, e entrou pela porta entreaberta da Sala Privativa, no outro extremo. Logo depois tornou a aparecer. — Está vazia — sussurrou. — Mas temos que ser rápidos. Quase agachada, escondida pela mesa, Lyra foi até a porta e entrou na Sala Privativa, onde tornou a ficar de pé e olhou em volta. A única luz vinha da lareira; a pilha de lenha em brasa desabou enquanto ela estava olhando, fazendo subir uma coluna de faíscas pela chaminé. Ela havia passado a maior parte da vida na Faculdade, mas nunca tinha visto a Sala Privativa; só os Catedráticos e seus convidados podiam entrar ali, e nunca uma mulher. Nem as criadas entravam para limpar; esse trabalho só quem fazia era o Mordomo. Pantalaimon acomodou-se no ombro dela. — Está satisfeita agora? Podemos ir? — cochichou. — Não seja medroso! Ainda quero dar uma espiada! Era uma sala ampla, com uma mesa oval de jacarandá envernizada e sobre ela várias garrafas e taças de cristal, além de uma tabaqueira de prata com um pequeno porta-cachimbo. o arrastar de pés. — Ainda bem que não escutei — ela cochichou em resposta. — Senão não teríamos visto o Reitor colocar veneno no vinho. Pan, era o Tokay que ele tinha pedido ao Mordomo! Vão assassinar Lorde Asriel! — Você não sabe se aquilo é veneno. — Claro que é! Você não se lembra? Ele esperou o Mordomo sair da sala; se fosse inocente, não se importaria que o Mordomo visse. E eu sei que está acontecendo alguma coisa. Alguma coisa política. Os criados só falam sobre isso. Pan, nós podíamos impedir um assassinato! — Nunca ouvi tamanha bobagem — cortou ele. — Como você acha que vai conseguir ficar quatro horas imóvel neste armário apertado? Deixe que eu vá vigiar o corredor; quando estiver vazio, eu aviso. Ele voou do ombro dela, e ela viu a sombra minúscula aparecer na fresta de luz. — Não adianta, Pan, vou ficar aqui — declarou. — Há outra beca ou sei lá o quê aqui dentro; vou colocar isto no chão do armário e me acomodar. Tenho que ver o que eles fazem! Até então ela estava agachada; ficou em pé com cuidado, tateando à procura dos cabides para não fazer barulho, e descobriu que o armário era maior do que pensara. Havia várias becas acadêmicas e capuzes, alguns com a borda de pele, a maioria com forro de seda. — Será que são todos do Reitor? — ela sussurrou. — Quando ele recebe diplomas honorários de outros lugares, talvez eles lhe deem becas que ele guarda aqui para usar... Pan, você acha mesmo que aquilo no vinho não é veneno? — Não; assim como você, eu acho que é veneno. E acho que isso não é da nossa conta. E acho que interferir seria a mais idiota de todas as coisas idiotas que você já fez na sua vida. Não temos nada a ver com isso. — Não seja idiota! — Lyra exclamou. — Não posso ficar aqui sentada vendo ele ser envenenado! — Então vamos para outro lugar. — Você é um covarde, Pan. — Claro que sou. Posso perguntar o que você pretende fazer? Vai dar um salto e arrancar a taça dos dedos trêmulos dele? Qual é o seu plano? — Não tenho plano nenhum, e você sabe muito bem — ela respondeu em voz baixa. — Mas agora que vi o que o Reitor fez, não tenho escolha. Pensei que você conhecesse a existência da consciência. Sabendo o que vai acontecer, como é que eu posso ir me sentar na Biblioteca ou em qualquer outro lugar e ficar de braços cruzados? Isso eu não pretendo fazer, juro! — Era isso que você queria o tempo todo — ele disse depois de um momento. — Queria se esconder aqui e assistir a tudo. Por que eu não percebi antes? — Está certo, eu quero mesmo — ela confessou. — Todo mundo sabe que eles vêm fazer uma coisa secreta. Têm um ritual, ou alguma coisa assim. E eu só queria saber o que é. — Não é da nossa conta! Se eles querem ter seus segredinhos, você devia apenas se sentir superior e deixar pra lá. Se esconder, espiar, tudo isso é coisa de criança boba. — Sabia que você ia dizer isso. Agora pare de resmungar. Os dois ficaram em silêncio por algum tempo, Lyra desconfortável no chão duro do armário e Pantalaimon pousado num cabide, com ar contrariado, mexendo suas antenas temporárias. Lyra sentia vários pensamentos brigando dentro da sua cabeça e queria muito poder se abrir com o seu dimon, mas era também orgulhosa e achou melhor tentar clarear os pensamentos sem a ajuda dele. O que predominava era a aflição, e não por si própria — de tanto passar por situações difíceis, já estava acostumada. Dessa vez, estava aflita por causa de Lorde Asriel e pelo que aquilo tudo queria dizer. Ele não costumava visitar a Faculdade, e o fato de estarem numa época de alta tensão política significava que ele não estava vindo simplesmente para comer, beber e fumar com alguns velhos amigos. Ela sabia que tanto Lorde Asriel quanto o Reitor eram membros do Conselho do Gabinete, que era o órgão especial de assessoria ao Primeiro- ministro, de modo que a visita podia ter alguma coisa a ver com isso; mas as reuniões do Conselho do Gabinete eram feitas no Palácio, não na Sala Privativa da Faculdade Jordan. Além disso, havia um boato que estava provocando cochichos entre os criados da Faculdade: diziam que os tártaros tinham invadido Moscóvia e estavam avançando rumo ao Norte para São Petersburgo, de onde poderiam dominar o Mar Báltico e acabar conquistando todo o Oeste da Europa. E Lorde Asriel estivera no Extremo Norte: na última vez em que ela o vira, ele estava preparando uma expedição para a Lapônia... — Pan... — ela cochichou. — Que é? — Você também acha que vai haver guerra? — Ainda não. Lorde Asriel não estaria jantando aqui se a guerra fosse explodir na semana que vem. — Também acho. Mas depois... — Psiu. Vem vindo alguém. Ela se endireitou e olhou pela fresta da porta. Era o Mordomo, entrando para aparar o pavio da lamparina, como o Reitor mandara. A Sala de Estar e a Biblioteca eram iluminadas por luz anbárica, mas, na Sala Privativa, os Catedráticos preferiam as lâmpadas de nafta, mais antigas e mais suaves. Isso não mudaria enquanto o Reitor estivesse vivo. O Mordomo aparou o pavio e colocou outra tora de lenha na lareira, depois escutou cautelosamente junto à porta antes de surrupiar um punhado de folhas da tabaqueira. Mal tinha recolocado a tampa quando a maçaneta da outra porta girou e ele deu um pulo, sobressaltado. Lyra tentou não rir. O Mordomo enfiou às pressas as folhas de fumo no bolso e se virou para o recém-chegado. — Lorde Asriel! — exclamou. Um arrepio de surpresa gelou as costas de Lyra. Ela não conseguia vê-lo e tentou dominar a vontade de mudar de posição para isso. — Boa noite, Wren — disse Lorde Asriel, com aquela voz áspera que Lyra sempre escutara com uma mistura de prazer e apreensão. — Cheguei atrasado para o jantar. Vou esperar aqui. O Mordomo parecia constrangido; só se entrava na Sala Privativa a convite do Reitor, e Lorde Asriel sabia disso. Mas o Mordomo viu também o olhar de Lorde Asriel fixo em seu bolso estufado e resolveu não dizer nada. — Devo avisar ao Reitor que o senhor chegou? — Não seria mau. Pode me trazer um café. — Muito bem, senhor. O Mordomo saiu apressado, seu dimon trotando obedientemente atrás. O tio de Lyra foi até a lareira e estendeu os braços por cima da cabeça, se espreguiçando e bocejando como um leão. Estava usando roupas de viagem. Como sempre acontecia quando tornava a vê-lo, Lyra se lembrou de quanto ele a assustava. Agora estava fora de questão sair sem ser percebida: ela teria que esperar e torcer. O dimon de Lorde Asriel, uma pantera branca, se postou logo atrás dele. — Vai mostrar as projeções aqui? — ele perguntou em voz baixa. — Vou. Vai ser menos confuso do que irmos para o Auditório. Vão querer ver os espécimes também; daqui a pouco vou mandar chamar o Porteiro. São tempos difíceis, Stelmaria. — Você devia descansar. Ele se esticou numa das poltronas, de modo que Lyra não podia ver seu rosto. — Devia, sim. E também mudar de roupa; com certeza, existe algum regulamento que permite que eles me multem em uma dúzia de garrafas por entrar aqui sem estar vestido adequadamente. Eu precisava dormir uns três dias. Mas o caso é que... Houve uma batida na porta e o Mordomo entrou, trazendo um bule de café e uma xícara numa bandeja de prata. — Obrigado, Wren — disse Lorde Asriel. — Aquilo ali na mesa é Tokay? — O Reitor mandou separar este especialmente para o senhor — informou o Mordomo. — Restam só três dúzias de garrafas do 98. — Não há bem que sempre dure. Deixe a bandeja aqui ao meu lado. Ah, peça ao Porteiro para mandar as duas caixas que deixei na Portaria. — Para cá, senhor? — Sim, para cá, ora. E vou precisar de uma tela e uma lanterna de projeção, também aqui, também agora. O Mordomo mal conseguia segurar o queixo de surpresa, mas conseguiu engolir a pergunta ou o protesto. — Wren, você está esquecendo o seu lugar — disse Lorde Asriel. — Não me questione; apenas faça o que eu mando. — Muito bem, senhor — replicou o Mordomo. — Se posso dar uma sugestão, senhor, talvez seja melhor avisar o Sr. Cawson do que o senhor está planejando, senhor, senão ele ficará um tanto surpreso, se é que me entende. — Está bem. Avise a ele, então. O Sr. Cawson era o Administrador. Havia uma rivalidade antiga e permanente entre ele e o Mordomo; o Administrador tinha mais autoridade, porém o Mordomo tinha mais oportunidades de se fazer notar pelos Catedráticos, e aproveitava cada uma delas. Ele ia adorar a oportunidade de mostrar ao Administrador que sabia mais do que ele sobre o que acontecia na Sala Privativa. Fez uma reverência e saiu. Lyra observou o tio se servir de uma xícara de café, bebê-la mariposa — ... e pode ser que não — completou. Lorde Asriel ficou parado perto da lareira bebericando o resto do café e observando com ar sério enquanto Thorold abria a caixa da lanterna de projeção e desencapava a lente antes de verificar o tanque de óleo. — Há bastante óleo, senhor — disse. — Quer que eu mande chamar um técnico para fazer a projeção? — Não, eu mesmo farei isso. Obrigado, Thorold. Eles já terminaram o jantar, Wren? — Creio que estão quase terminando, senhor — respondeu o Mordomo. — Se entendi direito o que o Sr. Cawson disse, o Reitor e seus convidados vão se apressar quando souberem que o senhor está aqui. Posso levar a bandeja do café? — Pode levar. — Muito bem, senhor. Com uma reverência leve, o Mordomo pegou a bandeja e saiu, e Thorold foi com ele. Assim que a porta se fechou, Lorde Asriel olhou diretamente para o armário no outro lado da sala, e Lyra sentiu a força daquele olhar quase como se ele tivesse uma forma física, como se fosse uma flecha ou uma lança. Então ele desviou os olhos e falou baixinho com seu dimon. A pantera veio se sentar calmamente ao lado dele, alerta, elegante e perigosa, os olhos verdes examinando o aposento antes de se voltarem, como os olhos negros dele, para a porta que dava para o Salão, no momento em que a maçaneta girou. Lyra não conseguia ver a porta, mas escutou uma respiração profunda quando o primeiro homem entrou. — Estou de volta, Reitor — disse Lorde Asriel. — Por favor, traga os seus convidados; tenho algo muito interessante para mostrar. 2 A IDEIA DO NORTE — LORDE Asriel! — o Reitor exclamou em tom alto, e avançou para lhe apertar a mão. De seu esconderijo, Lyra observava os olhos do Reitor, e de fato, por um segundo, eles foram até a mesa onde o Tokay estivera. Lorde Asriel falou: — Reitor, cheguei tarde demais, não quis atrapalhar seu jantar, então me acomodei aqui. Olá, Vice-reitor. Está com ótima aparência. Me perdoem os trajes, acabei de chegar. Sim, Reitor, o Tokay se foi. Acho que o senhor está pisando em cima dele. O Porteiro o derrubou, mas a culpa foi minha. Olá, Capelão. Li seu último artigo com grande interesse... Ele se afastou com o Capelão, deixando a Lyra uma visão perfeita do rosto do Reitor. Este estava impassível, mas o dimon em seu ombro arrepiava as penas e se movia sem parar de um pé para o outro. Lorde Asriel já estava dominando o ambiente, e, embora tivesse o cuidado de ser educado com o Reitor no território do próprio Reitor, era óbvio onde estava o poder. Os Catedráticos saudaram o visitante e se espalharam pela sala, alguns indo se sentar em volta da mesa, outros procurando as poltronas, e logo o zumbido das conversas enchia o ar. Lyra percebia que eles estavam muito intrigados com a caixa de madeira, a tela e a lanterna de projeção. Conhecia muito bem os Catedráticos: o Bibliotecário, o Vice-reitor, o Inquiridor e o resto. Durante toda a vida, ela convivera com esses homens; eles a ensinavam, a castigavam, a consolavam, lhe davam presentinhos, proibiam que chegasse perto das frutas no Pomar; eram o que ela tinha de família. Ela podia até gostar deles como se fossem mesmo a sua família, se soubesse o que era uma família, embora nesse caso fosse mais provável que ela sentisse isso pelos criados da Faculdade; os Catedráticos tinham coisas mais importantes a fazer do que se importar com uma garota meio selvagem, meio civilizada, que o acaso colocara entre eles. O Reitor acendeu o pavio sob a panelinha de prata e aqueceu um pouco de manteiga antes de abrir com uma faca meia dúzia de botões de papoula e jogar lá dentro. Depois de um jantar, sempre se servia papoula; ela clareava a mente e estimulava a língua, favorecendo a riqueza da conversa. A tradição era o próprio Reitor refogá-las. Sob o chiado da manteiga no calor e o zumbido das conversas, Lyra se mexeu, procurando uma posição mais confortável. Com enorme cuidado, ela tirou do cabide uma das becas — uma túnica de pele que ia até o chão — e a estendeu no chão do armário. — Você devia ter escolhido uma velha e áspera — sussurrou Pantalaimon. — Se ficar confortável demais, vai pegar no sono. — Se isso acontecer, você tem obrigação de me acordar — ela respondeu. Sentou-se e ficou ouvindo a conversa. Uma conversa bastante chata, por sinal; quase toda sobre política, e ainda por cima política de Londres, nenhum assunto excitante como os tártaros. O cheiro agradável de papoula fritando na manteiga e de folha de tabaco penetrava agradavelmente pela fresta da porta do armário, e mais de uma vez Lyra percebeu que estava quase cochilando. Finalmente, ouviu que alguém dava tapinhas na mesa. As vozes silenciaram, e então o Reitor falou. — Cavalheiros, tenho certeza de que falo por todos ao dar as boas-vindas a Lorde Asriel. As visitas dele são raras, mas imensamente preciosas, e sei que esta noite ele tem algo muito interessante para nos mostrar. Como todos sabemos, estamos numa época de grande tensão política; Lorde Asriel tem que estar amanhã cedo em White Hall, e há um trem esperando com a caldeira cheia de vapor para levá-lo a Londres assim que tivermos terminado esta conversa; portanto, devemos utilizar o tempo com sabedoria. Imagino que quando ele terminar de falar haverá algumas perguntas; por favor, que sejam breves e relevantes. Lorde Asriel, gostaria de começar? — Obrigado, Reitor — disse Lorde Asriel. — Para começar, tenho alguns fotogramas para lhes mostrar. Vice-reitor, acho que vai enxergar melhor daqui. Talvez o Reitor queira se sentar ali perto do armário. Lyra admirou a habilidade de seu tio. O velho Vice-reitor era quase cego, de modo que era uma questão de cortesia arranjar para ele um lugar perto da tela, e isso fez com que o Reitor acabasse sentado ao lado do Bibliotecário, a menos de um metro do armário onde Lyra estava. Ela ouviu o Reitor murmurar enquanto se acomodava na poltrona: — Esse demônio! Ele sabia do vinho, tenho certeza. O Bibliotecário cochichou de volta: — Ele vai pedir dinheiro. Se forçar uma votação... — Se ele fizer isso, temos que nos opor, com toda a eloquência que pudermos. A lanterna começou a chiar enquanto Lorde Asriel a bombeava com força. Lyra mudou ligeiramente de posição para poder enxergar a tela, onde agora brilhava um círculo branco. Lorde Asriel pediu: — Alguém pode diminuir a luz da lamparina? Um dos Catedráticos se levantou para fazer isso, e a sala escureceu. Lorde Asriel começou: — Como alguns de vocês já sabem, há 12 meses parti para o Norte numa visita diplomática ao Rei da Lapônia. Pelo menos foi o que eu fingi que ia fazer. Minha verdadeira intenção era chegar ainda mais ao norte, até o gelo, para tentar descobrir o que aconteceu com a expedição Grumman. Uma das últimas mensagens de Grumman para a Academia em Berlim falava de um certo fenômeno natural que só é visto nas terras do Norte. Eu estava decidido a investigar isso, e também a descobrir o que pudesse sobre Grumman. Mas a primeira figura que vou lhes mostrar não se refere a nenhuma dessas coisas. Ele colocou o primeiro slide na armação e deslizou-o para trás da lente. Um fotograma — Uma cidade em outro mundo, sem dúvida — o Decano falou, em tom de desprezo. Lorde Asriel o ignorou. Havia um tremor de excitação entre alguns Catedráticos, como se, tendo escrito tratados sobre a existência do unicórnio sem jamais terem visto um, lhes fosse apresentado um exemplar vivo, recém-capturado. — É aquele negócio do Barnard-Stokes? — quis saber o Catedrático de Palmeriano. — É, sim, não é? — É isto que eu quero descobrir — disse Lorde Asriel. Ele se posicionou ao lado da tela iluminada. Lyra via seus olhos escuros observando os Catedráticos, que contemplavam o slide da Aurora; ela via também, ao lado dele, o brilho verde dos olhos de seu dimon. Todas as cabeças veneráveis estavam eretas, os óculos brilhando; apenas o Reitor e o Bibliotecário estavam recostados em suas poltronas, com as cabeças muito juntas. O Capelão estava dizendo: — O senhor diz que estava procurando notícias da expedição Grumman, Lorde Asriel. O Dr. Grumman também estava investigando este fenômeno? — Acredito que sim, e acredito também que conseguiu bastante informação sobre isso. Mas ele não vai poder nos contar, porque está morto. — Não! — exclamou o Capelão. — Infelizmente sim, e eu tenho a prova aqui comigo. Uma onda de nervosa apreensão percorreu a Sala Privativa enquanto, sob ordens de Lorde Asriel, dois ou três Catedráticos mais jovens carregaram a caixa de madeira para a frente da sala. Lorde Asriel retirou o último slide, mas deixou a lanterna acesa e, no brilho teatral do círculo de luz, inclinou-se para abrir a caixa com um pé de cabra. Lyra ouviu o rangido de pregos saindo de madeira úmida. O Reitor ficou de pé para poder ver, tapando a visão de Lyra. O tio dela tornou a falar: — Se vocês se lembram, a expedição de Grumman desapareceu há 18 meses. A Academia Alemã o mandou avançar para o norte até chegar ao polo magnético, e ali fazer várias observações astronômicas. Foi durante essa viagem que ele observou o curioso fenômeno que acabamos de ver. Logo depois, ele desapareceu; se supõe que tenha sofrido um acidente, e seu corpo esteja todo esse tempo caído numa fenda qualquer. Na verdade, não houve acidente algum. — O que você tem aí? — perguntou o Decano. — É um recipiente a vácuo? Lorde Asriel não respondeu logo. Lyra ouviu o estalido de presilhas de metal e um assobio de ar penetrando num receptáculo, e depois houve silêncio. Mas o silêncio não durou muito; depois de um instante, Lyra ouviu uma explosão de exclamações confusas: gritos de horror, protestos veementes, vozes alteadas de raiva e medo. — Mas o que... — ... não é humano... — ... aquilo foi... — Mas o que foi que aconteceu com aquilo? A voz do Reitor calou todas as outras: — Lorde Asriel, em nome de Deus, o que o senhor tem aí? — Esta é a cabeça de Stanislaus Grumman — a voz de Lorde Asriel disse. Acima do ruído de vozes, Lyra ouviu alguém ir tropeçando até a porta e sair, soltando gemidos incoerentes. Ela queria poder ver o que eles estavam vendo. Lorde Asriel continuou: — Encontrei o corpo dele conservado no gelo perto de Svalbard. Os assassinos fizeram isto na cabeça dele. Reparem no padrão de escalpelo característico. Acho que o senhor deve estar familiarizado com isto, Vice-reitor. A voz do ancião era firme ao responder: — Já vi os tártaros fazerem isso. É uma técnica encontrada entre os aborígines da Sibéria e do Tungusk. De lá, naturalmente, essa prática se espalhou para as terras dos escraelingues, embora eu acredite que ela agora esteja proibida na Nova Dinamarca. Posso examinar de perto, Lorde Asriel? Depois de um silêncio breve, ele tornou a falar. — Minha visão não é muito nítida, e o gelo está sujo, mas me parece que há um buraco no alto do crânio. Estou certo? — Está, sim. — Uma trepanação? — Exatamente. Isso provocou um murmúrio de excitação. O Reitor saiu da frente, e Lyra tornou a enxergar a cena. O velho Vice-reitor, no círculo de luz do lampião, segurava um pesado bloco de gelo bem perto dos olhos, e Lyra conseguiu ver o objeto dentro dele: uma bola sanguinolenta quase irreconhecível como uma cabeça humana. Pantalaimon esvoaçou em volta de Lyra, e sua aflição a perturbou. — Quieto, escute — ela sussurrou. — O Dr. Grumman já foi Catedrático nesta Faculdade — disse o Decano em tom veemente. — Cair nas mãos dos tártaros... — Mas tão ao norte? — Eles devem ter penetrado mais do que se imaginava! — Será que ouvi o senhor dizer que o encontrou perto de Svalbard? — perguntou o Decano. — Isso mesmo. — Então está querendo dizer que os panserbjornes têm algo a ver com isto? Lyra não reconheceu aquela palavra, mas obviamente os Catedráticos sim. — Impossível — disse o Catedrático de Cassington com firmeza. — Eles nunca se comportariam assim. — Então não conhece Iofur Raknison — retrucou o Catedrático de Palmeriano, que tinha feito ele próprio várias expedições às regiões árticas. — Não me surpreenderia que ele tivesse começado a escalpelar as pessoas à moda dos tártaros. Lyra tornou a olhar para o tio, que observava os Catedráticos com um brilho de satisfação maldosa, sem nada dizer. — Quem é Iofur Raknison? — alguém perguntou. — O rei de Svalbard — esclareceu o Catedrático de Palmeriano. — Sim, é isso mesmo, um dos panserbjornes. Ele é uma espécie de impostor; chegou ao trono através de trapaças, pelo que sei; mas é uma figura poderosa, nem um pouco tolo, apesar de suas afetações ridículas: construir um palácio de mármore importado, criar o que ele chama de uma universidade... — Para quem? Para os ursos? — comentou outra pessoa, e todos riram. Mas o Catedrático de Palmeriano prosseguiu: — Eu lhes digo que Iofur Raknison seria capaz de fazer isso a Grumman. Ao mesmo tempo, com bajulação, é possível fazer com que ele se comporte de maneira bem diferente, se for preciso. — E o senhor sabe fazer isso bem, não é, Trelawney? — comentou o Decano com zombaria. — Claro que sei. Quer saber o que ele deseja acima de tudo? Até mais do que um diploma honorário? Ele quer um dimon! Se alguém descobrir um meio de lhe dar um dimon, ele fará qualquer favor. Os Catedráticos riram com vontade. Lyra acompanhava isso tudo sem compreender: o que o Catedrático de Palmeriano tinha dito não fazia sentido. Além disso, ela estava impaciente para ouvir mais sobre o escalpelamento, e as Luzes do Norte, e aquele Pó misterioso. Mas ficou decepcionada, pois Lorde Asriel havia terminado de mostrar suas relíquias e suas fotos, e a conversa logo se transformou num debate acadêmico sobre a conveniência ou não de lhe dar dinheiro para equipar uma outra expedição. Os argumentos eram disparados de um lado para outro, e Lyra sentiu os olhos pesarem. Logo estava dormindo a sono solto, com Pantalaimon enrolado em seu pescoço, na sua forma de dormir favorita: como um arminho. Ela despertou com um susto quando alguém a sacudiu pelo ombro. — Quieta! — ordenou o tio. A porta do armário estava aberta, e ele estava agachado na frente da luz. — Foram todos embora, mas ainda há alguns criados por aí. Vá para o seu quarto agora, e trate de não falar a ninguém sobre isso. — Eles votaram para lhe dar o dinheiro? — ela perguntou com voz sonolenta. — Sim. — O que é Pó? — ela continuou, se esforçando para ficar de pé depois de passar tanto tempo num lugar tão pequeno. — Não lhe interessa. — Interessa, sim — ela retrucou. — Se queria que eu fosse uma espiã no armário, devia me contar sobre o que eu estou espionando. Posso ver a cabeça do homem? A alva pelagem de arminho de Pantalaimon se arrepiou; ela sentiu cócegas no pescoço. Lorde Asriel soltou uma risada curta. — Não seja mórbida — disse, e começou a guardar os slides e a caixa de espécimes. — Vigiou o Reitor? — Foi, sim. Lyra tem um papel importante nessa história. A ironia é que ela tem que fazer tudo sem saber o que está fazendo. Mas pode ser ajudada, e se meu plano com o Tokay tivesse dado certo, ela ficaria em segurança por mais algum tempo. Eu gostaria de lhe poupar uma viagem para o Norte. Acima de tudo, eu queria poder explicar a ela... — Ela não ia prestar atenção — contrapôs o Bibliotecário. — Conheço muito bem o jeito dela. Se alguém tentar lhe dizer qualquer coisa séria, ela mal escuta por cinco minutos e aí começa a se distrair. E não adianta lhe fazer perguntas depois, porque ela terá esquecido tudo. — E se eu conversasse com ela sobre o Pó? Não acha que ela iria prestar atenção? O Bibliotecário fez um ruído indicando até que ponto achava isso improvável. — Por que ela iria prestar atenção? — perguntou. — Por que um enigma teológico distante interessaria a uma criança saudável e irresponsável? — Por causa do que ela terá que viver. Inclusive uma grande traição... — Quem é que vai traí-la? — Não, não, essa é que é a coisa mais triste: ela é quem vai trair, e a experiência será terrível. É claro que ela não pode saber disso, mas não há nenhuma razão para ela não saber sobre o problema do Pó. E você pode estar enganado, Charles; ela pode muito bem se interessar, se lhe for explicado de maneira simples. E pode ser que isso a ajude depois. Certamente ajudaria a diminuir a minha ansiedade. — Este é o dever dos velhos: ter ansiedade por causa dos jovens — comentou o Bibliotecário. — E o dever dos jovens é fazer pouco caso da ansiedade dos velhos. Depois de algum tempo, os dois se despediram, pois era tarde e eles eram velhos e ansiosos. 3 A JORDAN DE LYRA A Faculdade Jordan era a mais grandiosa e mais rica faculdade de Oxford. Era provavelmente a maior, também, embora ninguém tivesse certeza disso. Os prédios, agrupados ao redor de três quadriláteros irregulares, datavam de todas as épocas, do início da Idade Média até meados do século XVIII. Sua arquitetura não tinha sido planejada; a faculdade crescera aos poucos, com o passado e o presente se misturando a cada esquina, e o efeito final era de uma imponência confusa e decadente. Sempre havia uma parte querendo desabar, e, durante cinco gerações, a mesma família — os Parslow — trabalhava para a Faculdade em tempo integral, como pedreiros e especialistas em andaimes. O Sr. Parslow atual estava ensinando a profissão ao filho; os dois, com mais três empregados, subiam como formigas diligentes pelos andaimes que estavam montados no canto da Biblioteca, ou ficavam sobre o telhado da Capela, e puxavam para cima novos blocos de pedra, rolos de chumbo brilhante, ou vigas de madeira. A Faculdade era dona de fazendas e propriedades por toda a Inglaterra. As pessoas diziam que era possível caminhar de Oxford a Bristol, numa direção, ou de Oxford a Londres, em outra, e nunca sair das terras da Jordan. Em toda parte do reino, havia olarias e tanques de tintura, florestas e oficinas de naves atômicas que pagavam aluguel à Jordan, e todo primeiro dia de cada trimestre o Tesoureiro e seus funcionários somavam tudo, anunciavam o total ao Conselho e encomendavam um par de cisnes para o Banquete. Parte do dinheiro ia para novos investimentos — o Conselho acabara de aprovar a compra de um prédio de salas das conversas em Manchester —, e o que sobrava era usado para pagar os modestos salários dos Catedráticos e dos criados (e dos Parslow, e de mais de uma dúzia de famílias de artesãos e comerciantes que serviam à Faculdade), para manter a adega bem provida de vinhos, para comprar livros e anbarógrafos para a imensa Biblioteca — que ocupava um lado inteiro do Quadrilátero Melrose e se estendia, como a toca de uma toupeira, por vários andares no subsolo — e também para comprar o equipamento filosófico mais moderno para a Capela. Era importante manter a Capela equipada com o que havia de mais moderno, porque a Faculdade Jordan não tinha concorrentes, na Europa ou na Nova França, como centro de teologia experimental. Lyra sabia disso, pelo menos. Tinha orgulho do destaque de sua Faculdade e gostava de se gabar disso com os vários moleques com quem brincava junto ao Canal ou nos Barreiros; e olhava para os eruditos e professores visitantes com desprezo e piedade, porque eles não pertenciam à Jordan, e sendo assim deviam saber menos, coitados, — E onde mais? — Nos Barreiros, às vezes. — E? — Em Jericó e Port Meadow. — Mais algum outro lugar? — Não. — Está mentindo. Ontem mesmo vi você no telhado. Ela mordeu o lábio e ficou calada. Ele a observava ironicamente. — Quer dizer que brinca no telhado também? — continuou. — Costuma entrar na Biblioteca? — Não. Mas encontrei uma gralha no telhado da Biblioteca. — Foi mesmo? E a pegou? — Ela estava com uma pata machucada. Eu ia matar e assar ela, mas Roger disse que tínhamos que cuidar dela. Então lhe demos sobras de comida e um pouco de vinho, e ela melhorou e voou para longe. — Quem é Roger? — Meu amigo. O ajudante de cozinha. — Entendo. Então você andou pelo telhado inteiro... — Não o telhado inteiro. Não dá para chegar no Prédio Sheldon porque é preciso dar um pulo da Torre do Peregrino, por cima de um espaço. Há uma claraboia que se abre ao telhado, mas não consigo alcançar. — Você andou pelo telhado inteiro, menos o Prédio Sheldon; e lá embaixo? — Embaixo? — Para baixo do chão a Faculdade é tão grande quanto para cima. Estou surpreso de ver que você ainda não descobriu isso. Bem, já estou de partida. Você parece bastante saudável. Tome aqui. Tirou do bolso um punhado de moedas, de onde separou e entregou a ela cinco dólares de ouro. — Não lhe ensinaram a agradecer? — perguntou. — Muito obrigada — ela murmurou. — Você obedece ao Reitor? — Ah, sim. — E respeita os Professores? — Sim. O dimon de Lorde Asriel riu baixinho. Era o primeiro som que ele fazia, e Lyra enrubesceu. — Então vá brincar — disse Lorde Asriel. Lyra se virou e disparou para a porta, aliviada, se lembrando de parar e dizer até logo. Assim tinha sido a vida de Lyra antes do dia em que ela resolveu se esconder na Sala Privativa e pela primeira vez ouviu falar no Pó. E, naturalmente, o Bibliotecário estava enganado ao dizer ao Reitor que ela não prestaria atenção; ela teria ouvido com muita atenção quem quer que pudesse lhe falar do Pó. Nos meses seguintes, iria ouvir muita coisa sobre o assunto, e finalmente iria saber mais sobre o Pó do que qualquer outra pessoa no mundo; mas, enquanto isso, havia toda aquela fascinante vida da Jordan acontecendo bem à sua volta. De qualquer maneira, havia outra coisa para se pensar. Nas últimas semanas, um boato vinha se espalhando pelas ruas — um boato que fazia algumas pessoas rirem e outras silenciarem, assim como algumas pessoas riem de fantasmas e outras têm medo deles: sem que qualquer pessoa pudesse imaginar o motivo, crianças estavam começando a desaparecer. Acontecia assim: ao longo da margem oriental da grande rodovia que é o rio Ísis, repleto de barcaças de tijolos, asfalto ou milho navegando devagar, até abaixo de Henley e Maidenhead chegando em Teddington, onde a maré do Oceano Germano alcança, e ainda bem mais abaixo até Mortlake, passando pela casa do grande mago Dr. Dee, por Falkeshall, onde os parques-jardins ostentam seus chafarizes e suas bandeirolas durante o dia, e seus lampiões nas árvores e seus fogos de artifício à noite; e passando pelo Palácio de White Hall, onde o Rei comanda semanalmente o Conselho de Estado; pela Torre Shot, pingando seu infindável chuvisco de chumbo derretido em barris de água escura; e ainda mais abaixo, até onde o rio, agora largo e imundo, faz uma grande curva para o sul. Ali fica o bairro de Limehouse, e lá está a criança que vai desaparecer. É um menino chamado Tony Makarios. A mãe pensa que ele tem 9 anos, mas ela tem memória fraca, destruída pela bebida; ele pode ter 8, ou 10. Seu sobrenome é grego, mas, assim como a idade, pode ser apenas um palpite da mãe dele, porque ele parece mais chinês que grego, e pelo lado da mãe ele tem sangue irlandês, escraelingue e lascar. Tony não é muito inteligente, mas tem uma espécie de ternura desajeitada que às vezes o leva a dar um abraço meio bruto na mãe e plantar um beijo pegajoso em seu rosto. A pobre mulher geralmente está tonta demais para tomar uma iniciativa dessas, mas corresponde com carinho, quando percebe o que está acontecendo. No momento, Tony está vagando pelo mercado na rua Pie. Está com fome; é de noitinha e ele não vai encontrar comida em casa. Tem no bolso um xelim que um soldado lhe deu para levar um recado à sua garota favorita, mas Tony não vai desperdiçar seu dinheiro com comida, quando se pode conseguir tanta coisa de graça. De modo que ele fica vagando pelo mercado com seu pequeno dimon — uma pardoca — no ombro observando tudo, por entre as barracas de roupas usadas e as de papéis da sorte, os vendedores de fruta e o vendedor de peixe frito; e quando uma barraqueira e seu dimon estão ambos olhando para o outro lado, a pardoca dá o sinal, e as mãos de Tony vão à frente e voltam para dentro da camisa larga com uma maçã ou um punhado de castanhas, e finalmente com um pastelão quentinho. A barraqueira o vê e dá um grito, e seu dimon-gato salta, mas a pardoca de Tony está voando, e o próprio Tony já está quase na esquina. Palavrões e pragas o acompanham, mas não até muito longe; ele para de correr junto à escada do Oratório de Santa Catarina, onde se senta e pega seu troféu quente e amassado, deixando um rastro de molho na camisa. E ele está sendo observado; uma dama usando um casaco longo de pele de raposa amarela e vermelha, uma linda jovem, cujos cabelos castanhos brilham delicadamente dentro da sombra de seu capuz forrado de pele, está parada à porta do Oratório, alguns degraus acima do garoto. Talvez o ofício esteja terminando, pois pela porta atrás dela jorra luz, lá dentro um órgão está tocando, e a dama está segurando um livro de orações enfeitado com pedras preciosas. Tony nada percebe. Feliz, com o rosto enterrado no pastelão, os dedos dos pés curvados para dentro e as solas descalças juntas, ele mastiga e engole enquanto seu dimon se transforma numa ratinha e alisa os bigodes. O dimon da jovem dama está se destacando do casaco de pele de raposa. Ele tem a forma de um macaco, mas não um macaco comum: tem os pelos compridos e sedosos, de um tom dourado forte e lustroso. Com movimentos sinuosos, ele desce lentamente a escadaria na direção de Tony e se senta no degrau acima do garoto. Então a ratinha percebe alguma coisa e se transforma outra vez em pardoca, virando a cabecinha de lado e saltando um ou dois passos pela pedra. O macaco observa a pardoca; a pardoca observa o macaco. O macaco estende a mão devagar. Tem a mão pequena e preta, as unhas são garras perfeitas, os movimentos são suaves e convidativos. A pardoca não consegue resistir; se aproxima com mais alguns saltos e então esvoaça para a mão do macaco. O macaco a ergue e a estuda de perto antes de se levantar e voltar para junto do seu ser humano, levando consigo o dimonpardoca. A dama abaixa a cabeça perfumada para lhe sussurrar alguma coisa. E então Tony se vira; não consegue evitar. — Rateira! — chama, de boca cheia, com certo susto. — Olá! — diz a linda dama. — Qual é o seu nome? — Tony. — Onde é que você mora, Tony? — Na alameda Clarice. — Este pastelão é de quê? — De carne. — Gosta de chocolatl? — Gosto! — Por acaso tenho mais chocolatl do que poderia beber. Quer vir me ajudar a acabar com ele? Tony já está perdido — desde o momento em que seu dimon insensato saltou para a mão do macaco. Ele acompanha a jovem e o macaco dourado ao longo da rua Dinamarca, passando pelo Cais do Algoz e descendo a Escadaria do Rei George, até uma portinhola verde na parede de um armazém de teto alto. Ela bate, a porta é aberta; eles entram, a porta se fecha. Tony nunca mais sairá — pelo menos por aquela entrada; e nunca mais vai ver a mãe; e ela, pobre bêbada, vai pensar que o filho fugiu, e, quando pensar nele, vai achar que a culpa foi sua e vai se desmanchar em lágrimas. O pequeno Tony Makarios não foi a única criança raptada pela mulher com o macaco — Claro que não falaram. Eles não iam contar esse tipo de coisa aos criados. E eu estive na Sala Privativa, sim. De qualquer modo, ele está sempre fazendo isso. Fez com uns tártaros que o pegaram uma vez. Amarraram o meu tio e iam cortar as tripas dele, mas, quando o primeiro chegou com a faca, meu tio olhou bem para ele, e ele caiu morto, então veio outro, e meu tio fez a mesma coisa com ele, e no final só sobrou um. Tio Asriel disse que ia deixar o homem vivo se ele o desamarrasse, e foi o que ele fez, e então meu tio matou ele mesmo assim, para lhe dar uma lição. Roger duvidava dessa história ainda mais do que dos Gobblers, mas era boa demais para ser desperdiçada, de modo que os dois se revezaram sendo Lorde Asriel e os tártaros que iam morrer; em vez de espuma, os dois usaram bicarbonato adocicado. Mas isso foi uma distração. Lyra ainda queria brincar de Gobblers e convenceu Roger a descer para as adegas, onde eles entraram com o chaveiro de reserva do Mordomo. Juntos atravessaram as grandes câmaras onde o Tokay e o Canary da Faculdade, o Burgundy e o brantwijn descansavam sob as teias de aranha de muitos anos. Os antigos arcos de pedra se erguiam acima deles, apoiados em colunas grossas como dez árvores juntas; o chão era de pedras irregulares, e por toda parte havia garrafas arrumadas em prateleiras e barris. Era fantástico. Esquecendo-se dos Gobblers, as duas crianças foram de uma ponta à outra, cautelosamente, segurando uma vela com dedos trêmulos, tentando enxergar em cada canto escuro, com uma única pergunta cada vez mais forte na mente de Lyra: qual era o gosto do vinho? Havia um modo fácil de saber. Lyra — apesar de Roger ser totalmente contra — escolheu a garrafa mais velha, retorcida e verde que conseguiu encontrar, e, não tendo nada com que pudesse tirar a rolha, quebrou a garrafa no gargalo. Encolhidos no canto mais escondido, os dois bebericaram o líquido púrpura, curiosos para ver quando ficariam bêbados e como saberiam que estavam. Lyra não gostou muito do sabor, mas tinha que admitir que tinha algo de solene e de complexo. O mais engraçado era observar os dois dimons, que pareciam ficar cada vez mais tontos: caíam, davam risadinhas sem motivo e mudavam de forma imitando monstros, cada um tentando ficar mais feio que o outro. Finalmente, e quase ao mesmo tempo, as crianças descobriram como era ficar bêbado. — Eles gostam disso? — ofegou Roger, depois de vomitar muito. — Gostam, sim — disse Lyra, nas mesmas condições. — E eu também — acrescentou teimosamente. A única coisa que Lyra aprendeu nesse episódio foi que brincar de Gobblers levava a lugares interessantes. Lembrou-se das palavras do tio na última conversa que tiveram e começou a explorar o porão, pois o que havia acima do solo era apenas uma pequena fração do todo; como um enorme fungo cujas raízes se estendem por muitos quilômetros, a Jordan, ao se ver brigando por espaço com a Faculdade St. Michael’s de um lado, a Faculdade Gabriel do outro e a Biblioteca da Universidade atrás, começara, ainda na Idade Média, a se espalhar por baixo da terra. Túneis, poços, câmaras, porões, escadarias — tudo isso tinha escavado tanto a terra abaixo da Jordan e por centenas de metros ao redor dela que havia quase tanto ar debaixo da terra quanto acima dela; a Faculdade Jordan ficava sobre uma espécie de espuma de pedra. Tendo provado o gostinho de explorar o subsolo, Lyra abandonou seu território de costume, os Alpes irregulares que eram os telhados da Faculdade, e mergulhou com Roger neste mundo subterrâneo. Brincar de Gobblers virou caçar Gobblers, pois o que seria mais provável do que haver tais criaturas escondidas no subsolo, à espreita? De modo que certo dia ela e Roger desceram para a cripta sob o Oratório. Era ali que as gerações de Reitores vinham sendo enterradas, cada um em seu caixão de carvalho forrado de chumbo. Os caixões ficavam dentro de nichos ao longo das paredes de pedra. Uma placa de pedra abaixo de cada um dava os nomes deles: Simon Le Clerc, Reitor 1765-1789 Cerebaton Requiescant in pace — Que quer dizer isso? — Roger perguntou. — A primeira linha é o nome dele, e a segunda é romano. E as datas no meio da linha são o tempo que ele foi Reitor. E o outro nome deve ser o dimon dele. Saíram caminhando ao longo da cripta silenciosa, lendo mais inscrições: Francis Lyall, Reitor 1748-1765 Zohariel Requiescant in pace Ignatius Cole, Reitor 1745-1748 Musca Requiescant in pace Lyra achou interessante constatar que, em cada caixão, havia uma placa de bronze com uma imagem diferente: num era um basilisco; no outro, uma mulher loura; no outro, uma serpente; no outro, um macaco. Percebeu que eram imagens dos dimons dos mortos. Quando as pessoas chegavam à idade adulta, seus dimons perdiam o poder de se transformar e ficavam com uma forma única e permanente. — Esses caixões têm esqueletos dentro! — Roger sussurrou. — Carne em putrefação — Lyra sussurrou de volta. — E vermes e lombrigas se retorcendo nos buracos dos olhos deles... — Deve ter fantasmas por aqui... — disse Roger, com um arrepio de prazer. Depois da primeira cripta, eles encontraram um corredor cujas paredes eram cobertas de prateleiras de pedra. Cada prateleira era dividida em quadrados, e em cada quadrado descansava uma caveira. O dimon de Roger, com o rabo entre as pernas, estremeceu junto ao corpo dele e soltou um uivo breve e fraco. — Quieto! — mandou Roger. Lyra não podia ver Pantalaimon, mas sabia que, em sua forma de mariposa, ele estava descansando em seu ombro e com certeza tremendo também. Estendendo a mão, ela pegou a caveira mais próxima e a tirou do lugar. — O que está fazendo? Não é para tocar nelas! — Roger protestou. Sem lhe dar atenção, ela ficou girando a caveira nas mãos. De repente alguma coisa saiu pelo buraco na base do crânio, passou entre os dedos dela e caiu no chão ruidosamente. Com o susto, ela quase deixou cair a caveira. — É uma moeda! — Roger exclamou, tateando no chão. — Pode ser um tesouro! Ele ergueu o objeto à luz da vela e ambos o contemplaram de olhos arregalados. Não era uma moeda, e sim um pequeno disco de bronze com um entalhe grosseiro representando um gato. — Como os dos caixões — disse Lyra. — É o dimon dele. Só pode ser. — É melhor botar de volta — Roger, inquieto, aconselhou. Lyra girou a caveira e deixou o disco cair de volta em seu lugar imemorial antes de recolocá-la na prateleira. Os dois descobriram então que cada um dos crânios tinha sua moeda-dimon representando o companheiro da vida do dono ainda perto dele na morte. — O que você acha que estes eram quando estavam vivos? — Lyra perguntou. — Provavelmente Catedráticos, imagino. Só os Reitores ganham caixões. Com certeza, foram tantos Catedráticos durante todos esses séculos que não haveria lugar para enterrar todos, de modo que eles cortam a cabeça e guardam. É mesmo a parte mais importante deles... Não encontraram Gobblers, mas as catacumbas sob o Oratório mantiveram Lyra e Roger ocupados durante muitos dias. Certa vez, ela inventou de fazer uma brincadeira com alguns dos Catedráticos mortos, trocando os discos dentro dos crânios, dando a eles dimons errados; Pantalaimon ficou tão nervoso com isso que se transformou num morcego e começou a voar para cima e para baixo soltando gritos agudos e batendo as asas no rosto dela, mas ela não deu atenção; a brincadeira era boa demais. Porém ela pagou por isso mais tarde. Na cama, em seu quartinho apertado no topo da Escadaria Doze, ela foi visitada por uma assombração e acordou gritando por causa das três figuras de túnica paradas ao lado da cama apontando os dedos ossudos antes de jogar para trás os capuzes e mostrar os tocos sangrentos onde deveriam estar as cabeças. Só quando Pantalaimon se transformou num leão e rugiu foi que eles recuaram, fundindo-se à matéria da parede até que só restaram de fora os braços, depois as mãos secas, cinzentas-amarelas, depois os dedos convulsivos, depois nada. De manhã, a primeira coisa que ela fez foi correr para as catacumbas e devolver as moedas-dimons aos seus verdadeiros donos, sussurrando “Perdão! Perdão!” às caveiras. As catacumbas eram muito maiores do que a adega, mas também tinham um limite. Depois que Lyra e Roger exploraram cada canto delas e se certificaram de que não havia Gobblers por lá, voltaram a atenção para outra coisa — mas não antes de terem sido vistos saindo da cripta pelo Intercessor, que os chamou ao Oratório. O Intercessor era um ancião gorducho conhecido como Padre Heyst. Sua função era dirigir todos os ofícios da Faculdade, pregar, orar e ouvir confissões. Tinha se interessado pelo bem-estar espiritual de Lyra quando ela era menorzinha, mas foi desencorajado pela indiferença e pelos falsos arrependimentos dela. Finalmente chegara à conclusão de que espiritualmente ela não era promissora. Ouvindo o chamado dele, Lyra e Roger se viraram com relutância e foram, arrastando os pés, para dentro do Oratório escuro, cheirando a mofo. Aqui e ali tremulavam chamas de velas sobressaltado. — O que está acontecendo? — Lyra perguntou a um menino gípcio que a tudo assistia, boquiaberto. — Por que ela está com tanta raiva? — É o filho dela — explicou o menino. — Billy. Com certeza, ela acha que os Gobblers pegaram o garoto. E pode ser verdade, mesmo. Eu não vejo o Billy desde... — Os Gobblers? Então eles chegaram a Oxford? O menino gípcio se virou para o outro lado para gritar para os amigos, que estavam observando Mãe Costa: — Ela não sabe de nada! Nem sabe que os Gobblers tão aqui! Meia dúzia de moleques olharam para ela com expressão de desprezo, e Lyra jogou fora o cigarro, reconhecendo a deixa para uma boa briga. No mesmo instante, os dimons de todos se prepararam para a guerra: cada criança era acompanhada por dentes, ou garras, ou pelos eriçados, e Pantalaimon, desprezando a imaginação limitada daqueles dimons gípcios, se transformou num dragão do tamanho de um cão veadeiro. Mas antes que a batalha começasse, Mãe Costa se intrometeu, empurrando dois gípcios e confrontando Lyra como se fosse uma lutadora profissional. — Você sabe dele? — ela interpelou Lyra. — Viu o Billy? — Não. Acabamos de chegar. Não vejo o Billy há meses. O dimon de Mãe Costa fazia círculos no ar acima da cabeça dela — um falcão de olhos amarelos e ferozes que olhavam para todos os lados sem piscar. Lyra ficou com medo; ninguém se preocupava quando uma criança sumia por algumas horas, principalmente uma gípcia: no mundinho dos barcos gípcios, todas as crianças eram preciosas e intensamente amadas, e cada mãe sabia que, se seu filho estivesse longe de sua vista, não estaria longe da vista de outra mãe, que o protegeria instintivamente. No entanto, ali estava Mãe Costa, rainha entre os gípcios, aterrorizada pela ausência de uma criança. O que estava acontecendo? Mãe Costa olhou sem ver o grupinho de crianças, saiu tropeçando por entre a multidão, indo na direção do ancoradouro, sempre gritando pelo filho. No mesmo instante, as crianças esqueceram a briga, diante daquele sofrimento. — Esses Gobblers são o quê, afinal? — perguntou Simon Parslow, amiguinho de Lyra. O primeiro menino gípcio respondeu: — Você sabe. Eles estão roubando crianças por toda parte. São piratas... — Eles não são piratas — corrigiu outro gípcio. — São canorbais. É por isso que o nome deles é Gobblers, papões. — Eles comem crianças? — perguntou outro amigo de Lyra, Hugh Lovat, ajudante de cozinha na St. Michael’s. — Ninguém sabe — disse o primeiro menino. — Levam a criança e ninguém mais tem notícia dela. — Isso nós todos sabemos — disse Lyra. — Há meses estamos brincando de crianças e Gobblers, antes de vocês, aposto. Mas duvido que alguém já tenha visto um Gobbler. — Já viram — disse um garoto. — Quem? — Lyra insistiu. — Você já viu? Como é que sabe que não é só uma pessoa? — Charlie viu eles em Banbury — disse uma menina gípcia. — Eles ficaram falando com uma mulher enquanto outro homem tirou o filho dela do jardim. — É, eu vi eles fazerem isso! — confirmou Charlie, um menino gípcio. — Como é que eles eram? — Lyra quis saber. — Bom, eu não vi direito — Charlie confessou. — Mas vi o caminhão deles — acrescentou. — Eles chegam num caminhão branco. Colocam o menino no caminhão e saem disparados. — Mas por que chamam eles de Gobblers? — Lyra insistiu. — Porque eles papam as crianças — disse o primeiro garoto gípcio. — Nos contaram lá em Northampton. Eles estiveram por lá e tudo mais. Tinha uma garota em Northampton, levaram o irmão dela e ela disse que os homens que levaram ele disseram que iam comer ele. Todo mundo sabe disso. Eles papam as crianças todinhas. Uma menina gípcia começou a chorar alto. — É a prima de Billy — Charlie informou. Lyra perguntou: — Quem viu o Billy por último? — Eu! — uma dúzia de vozes exclamou. — Eu vi o Billy segurando aquele pangaré do Johnny Fiorelli. — Eu vi ele perto do vendedor de maçã caramelada. — Eu vi ele se balançando no guindaste... Depois que conseguiu entender tudo aquilo, Lyra ficou sabendo que Billy tinha sido visto não mais de duas horas antes. — Então, nas últimas duas horas, os Gobblers estiveram por aqui... Todos olharam em volta, estremecendo, apesar do sol quente, do porto apinhado, do cheiro familiar de alcatrão, cavalos e folha-de-fumo. O problema era que, já que ninguém sabia como eram esses Gobblers, qualquer pessoa podia ser um Gobbler, como Lyra declarou ao bando de crianças perplexas, todas elas — as das faculdades e as gípcias — já agora sob o seu domínio. — Eles têm que parecer pessoas comuns, senão seriam logo descobertos — ela explicou. — Se só aparecessem à noite, podiam ter qualquer aparência. Mas, se aparecem à luz do dia, têm que parecer gente normal. Então qualquer pessoa aqui pode ser um Gobbler... — Não pode, não — disse um gípcio em tom hesitante. — Conheço elas todas. — Está certo, não estas aqui, mas qualquer outra — disse Lyra. — Vamos procurar os Gobblers! E o caminhão branco também! Aquilo provocou um estouro de boiada. Outros logo se juntaram aos primeiros, e, em pouco tempo, havia umas trinta ou mais crianças gípcias correndo de uma ponta à outra dos ancoradouros, entrando e saindo dos estábulos, subindo pelos guindastes e gruas no estaleiro, saltando por cima da cerca para dentro do pasto, 15 crianças ao mesmo tempo agarradas à corda que se usava para atravessar o rio de águas verdes, e correndo a toda pelas ruas estreitas de Jericó, por entre as casinhas de tijolos, e entrando no grande oratório de St. Barnabas, o Químico, com sua torre quadrada. Metade delas não sabia o que estavam procurando e achava que se tratava apenas de uma brincadeira, porém as mais próximas a Lyra sentiam medo e aflição de verdade cada vez que avistavam uma figura solitária num beco ou na meia-luz do Oratório: seria um Gobbler? Mas, naturalmente, não era. Finalmente, sem sucesso e com a sombra do desaparecimento verdadeiro de Billy pesando sobre todo mundo, o entusiasmo foi diminuindo. Quando Lyra e os dois jovens das faculdades saíam de Jericó perto da hora do jantar, viram os gípcios reunidos no ancoradouro vizinho àquele em que o barco dos Costa estava atracado. Algumas mulheres choravam bem alto, e os homens, furiosos, formavam grupinhos; todos os seus dimons estavam agitados, voando nervosos ou rosnando para as sombras. — Aposto que os Gobblers não teriam coragem de vir aqui — Lyra disse a Simon Parslow quando os dois atravessavam a soleira do grande saguão da Jordan. — Não... — ele concordou sem muita firmeza. — Mas sei que sumiu uma garota do Mercado. — Quem? Lyra conhecia a maioria das crianças do Mercado, mas não sabia que alguma tinha desaparecido. — Jessie Reynolds, da selaria. Ontem ela saiu só para buscar um pedaço de peixe para a janta do pai, mas na hora de fechar ainda não tinha aparecido. E ninguém viu ela. Procuraram no Mercado inteiro e em toda parte. — Ninguém me contou isso! — disse Lyra indignada. Achava uma falha imperdoável de seus súditos não a manterem sempre informada de tudo. — Bom, foi ontem que aconteceu. Ela pode já ter aparecido. — Vou perguntar — disse Lyra, se virando para tornar a sair. Mas ainda não tinha passado pelo portão quando o Porteiro a chamou. — Venha cá, Lyra! Você não pode sair esta noite. Ordens do Reitor. — Por que não? — Já disse, ordens do Reitor. Ele disse que se você voltasse, para não sair de novo. — Então me pegue — ela o desafiou, e saiu correndo. Atravessou em disparada a rua estreita e entrou no beco onde as camionetes descarregavam mercadoria para o Mercado Coberto. Como era hora de fechar, havia poucas camionetes por ali, mas um grupinho de jovens fumava e conversava perto da porta central, em frente ao alto muro de pedra da Faculdade St. Michael’s. Lyra conhecia um deles, um rapaz de 16 anos, que ela admirava porque ele conseguia cuspir mais longe que qualquer outra pessoa que ela ouvira falar; foi até lá e ficou esperando humildemente que ele a percebesse. — Ei, o que você quer? — ele finalmente perguntou. — A Jessie Reynolds sumiu? — Foi. Por quê? — Porque um menino gípcio também sumiu hoje, e tudo mais. — Estão sempre sumindo, esses gípcios. Depois de toda Feira de Cavalos eles somem. — Os cavalos também — comentou um dos amigos dele. — Mas é diferente — Lyra protestou. — Era um garotinho. Ficamos procurando ele a tarde toda, e as outras crianças disseram que os Gobblers pegaram ele. — Os quê? — O que foi? — Alguma coisa sobre uma criança lá no Ártico. Aquela que não estava atraindo o Pó. — Disseram que era uma criança completa... E daí? — Pode ser isso que vão fazer com o Roger, os gípcios e as outras crianças. — Como é? — Bom, o que completa quer dizer? — Sei lá. Com certeza, cortam elas no meio. Acho que elas viram escravas. Isso seria mais útil. Com certeza, eles têm minas por lá. Minas de urânio para as naves atômicas. Aposto que é isso. Se mandassem adultos para o fundo das minas, eles morreriam, então usam crianças porque elas são mais baratas. Foi isso que fizeram com ele. — Eu acho... Mas a opinião de Pantalaimon teve que esperar, porque uma voz que vinha de baixo começou a gritar: — Lyra! Lyra! Desça daí neste instante! Alguém batia na janela. Lyra reconheceu a voz e a impaciência: era a Sra. Lonsdale, a Governanta. Impossível se esconder dela! Com o rosto tenso, Lyra escorregou pelo telhado até a calha e tornou a entrar pela janela. A Sra. Lonsdale estava enchendo de água uma pequena bacia descascada, com o acompanhamento de gemidos e batidas que o sistema hidráulico produzia. — Quantas vezes já lhe disseram para não ir ao telhado... Veja o seu estado! Veja esta saia: está imunda! Tire a roupa imediatamente e se lave enquanto eu procuro alguma coisa decente que não esteja rasgada. Não sei por que você não consegue ficar limpa e arrumada... Lyra estava aborrecida demais até para perguntar por que tinha que se lavar e se vestir, e nenhum adulto fornecia uma razão por iniciativa própria. Ela puxou o vestido pela cabeça e o deixou cair sobre a cama estreita, e começou a se lavar com má vontade enquanto Pantalaimon, agora um canário, saltava cada vez mais para perto do dimon da Sra. Lonsdale, um impassível cão de caça, tentando em vão implicar com ele. — Veja o estado deste guarda-roupa! Faz semanas que você não pendura um vestido! Veja como este está amassado... Veja isso, veja aquilo... Lyra não queria ver. Ela fechou os olhos enquanto esfregava o rosto com a toalha fina. — Vai ter que usar este assim mesmo. Não dá tempo de passar. Deus me perdoe, menina, veja os seus joelhos, veja o estado deles... — Não quero ver nada — Lyra resmungou. A Sra. Lonsdale lhe deu um tapa na perna. — Lave — ordenou com ferocidade. — Tire toda essa sujeira. — Por quê? — Lyra finalmente perguntou. — Eu nunca lavo os joelhos. Ninguém vai olhar para os meus joelhos. Por que tenho que fazer isso tudo? A senhora também não liga para o Roger, igual ao Cozinheiro Chefe. Eu sou a única que... Outro tapa, na outra perna. — Chega dessa bobagem. Sou uma Parslow, como a mãe do Roger. Ele é meu primo em segundo grau. Aposto que não sabia disso, porque aposto que você nunca perguntou, Srta. Lyra. Aposto que isso nunca lhe passou pela cabeça. Não me acuse de não me importar com o menino. Deus sabe que eu me importo até mesmo com você, que me dá poucos motivos para isso e nenhuma gratidão. Ela pegou a flanela e esfregou os joelhos de Lyra com tanta força que deixou a pele rosada e ardendo, mas limpa. — O motivo disso é que você vai jantar com o Reitor e os convidados dele. Peço a Deus que você se comporte. Fale somente quando falarem com você, seja discreta e educada, sorria e nunca diga “Sei lá” quando lhe perguntarem alguma coisa. Ela enfiou o melhor vestido de Lyra no corpo magro da menina, ajeitou-o, pescou na confusão de uma gaveta uma fita vermelha e escovou os cabelos dela com uma escova de cerdas duras. — Se tivessem me avisado antes, eu podia ter lavado direito os seus cabelos. Bom, é uma pena. Tomara que não olhem muito de perto... Pronto. Agora fique direito. Onde estão aqueles sapatos bons, de verniz? Cinco minutos mais tarde, Lyra estava batendo na porta da Residência do Reitor, a casa imponente e um pouco triste que se abria para o Quadrilátero Yaxley e cujos fundos davam para o Jardim da Biblioteca. Pantalaimon, que por educação se transformara num arminho, se esfregou na perna dela. A porta foi aberta por Cousins, criado do Reitor e velho inimigo de Lyra; mas ambos sabiam que aquilo era uma trégua. — A Sra. Lonsdale disse para eu vir — Lyra explicou. — Sim — fez Cousins, chegando para o lado. — O Reitor está na Sala de Estar. Ele a levou para o aposento amplo que dava para o Jardim da Biblioteca. Os últimos raios de sol entravam ali através do vazio entre a Biblioteca e a Torre Palmer, e iluminavam os quadros pesados e a prataria severa que o Reitor colecionava. Iluminavam também os convidados, e Lyra entendeu por que não iam jantar no Salão: três deles eram mulheres. — Ah, Lyra! Que bom que pôde vir! — exclamou o Reitor. — Cousins, arranje uma coisa que ela possa beber. Dama Hannah, acho que não conhece Lyra... A sobrinha de Lorde Asriel, a senhora sabe. Dama Hannah Relf, Diretora de uma das faculdades femininas, era uma senhora de cabelos grisalhos cujo dimon era um sagui. Lyra a cumprimentou com toda educação e depois foi apresentada aos outros convidados, que eram, como Dama Hannah, estudiosos de outras Faculdades e bastante desinteressantes. Então o Reitor chegou ao último. — Sra. Coulter, esta é a nossa Lyra. Lyra, venha cumprimentar a Sra. Coulter. — Olá, Lyra — disse a Sra. Coulter. Era linda e jovem. Os cabelos negros e lisos emolduravam o rosto dela, e seu dimon era um macaco dourado. cara. Acho que tem sido feliz. Não foi fácil para você nos obedecer, mas gostamos muito de você, e você nunca foi uma criança má. Há muita bondade e ternura na sua natureza, e muita determinação. Você vai precisar de tudo isso. No mundo lá fora, estão acontecendo coisas das quais eu gostaria de proteger você, prendendo-a aqui na Jordan, porém isso não é mais possível. Ela o encarou sem falar. Então ela ia embora? — Você sabia que um dia teria que ir para a escola — o Reitor continuou. — Nós aqui lhe ensinamos algumas coisas, mas não muito bem, nem de maneira organizada. Nosso conhecimento é de outro tipo. Você precisa aprender coisas que homens idosos não têm condições de lhe ensinar, principalmente na sua idade. Você certamente sabia disso. Não é filha de criados, não poderíamos entregar você para ser adotada por uma família da cidade. Eles poderiam cuidar de você em certas coisas, mas as suas necessidades são diferentes. O que estou querendo dizer, Lyra, é que esta parte da sua vida dentro da Faculdade Jordan está chegando ao fim. — Não, não! — ela protestou. — Não quero sair da Jordan! Gosto daqui. Quero ficar aqui para sempre! — Quando a gente é jovem, pensa que as coisas duram para sempre. Infelizmente, elas não duram. Lyra, não falta muito tempo, no máximo poucos anos, para você se tornar uma moça, não mais uma criança. Uma senhorita. Pode acreditar, aí você vai achar a Faculdade Jordan um lugar muito difícil para se morar. — Mas é o meu lar! — Tem sido o seu lar. Mas agora você precisa de outra coisa. — Escola, não. Eu não vou para a escola. — Você precisa de companhia feminina. De orientação feminina. A expressão “orientação feminina” fez Lyra pensar nas Catedráticas, e ela fez uma careta involuntária. Ser exilada da imponência da Jordan, do esplendor e fama de seu ensino, para uma faculdade num prédio de tijolos parecendo uma pensão no subúrbio de Oxford, com Catedráticas desmazeladas que cheiravam a repolho e naftalina, como aquelas duas! O Reitor percebeu a expressão dela e viu piscarem em vermelho os olhos de gambá de Pantalaimon. Perguntou: — E se por acaso fosse a Sra. Coulter? No mesmo instante, o pelo de Pantalaimon mudou de marrom-escuro para puro branco. Lyra arregalou os olhos. — De verdade? — Ela é conhecida de Lorde Asriel. O seu tio, naturalmente, está muito preocupado com o seu bem-estar, e quando a Sra. Coulter ouviu falar de você, no mesmo instante se ofereceu para ajudar. Aliás, ela é viúva. O marido morreu num acidente muito triste há alguns anos; então, se lembre disso antes de perguntar alguma coisa. Lyra assentiu ansiosamente e perguntou: — E ela vai mesmo... tomar conta de mim? — Você gostaria? — Sim! Lyra mal conseguia ficar sentada. O Reitor sorriu. Isso acontecia tão raramente que ele tinha perdido a prática, e quem estivesse prestando atenção (coisa que Lyra não estava em condições de fazer) pensaria que se tratava de uma careta de desagrado. — Bem, então é melhor convidá-la para vir conversar sobre isso — disse. Ele saiu da sala das conversas e quando voltou, um minuto depois, com a Sra. Coulter, Lyra estava de pé, excitada demais para ficar sentada. A Sra. Coulter sorriu, e seu dimon mostrou os dentes brancos numa expressão travessa e satisfeita. Ao passar por Lyra a caminho de uma poltrona, a Sra. Coulter tocou de leve seus cabelos e Lyra sentiu uma onda de carinho cobri-la, e enrubesceu. Depois que o Reitor serviu brantwijn à Sra. Coulter, ela disse: — Bem, Lyra, quer dizer que vou ter uma assistente? — Sim — disse Lyra simplesmente. Teria dito “sim” a qualquer coisa. — Preciso de ajuda em muita coisa. — Posso trabalhar! — E talvez tenhamos que viajar. — Não me importo. Vou a qualquer lugar. — Mas pode ser perigoso. Podemos ter que ir para o Norte. Lyra ficou sem fala. Finalmente conseguiu perguntar: — Logo? A Sra. Coulter riu e disse: — Talvez. Mas sabe que vai ter que trabalhar muito. Vai ter que aprender matemática, navegação, geografia celeste. — A senhora vai me ensinar? — Vou. E você vai ter que me ajudar tomando notas, arrumando meus papéis, fazendo vários cálculos básicos e coisas assim. E como vamos visitar algumas pessoas importantes, temos que arrumar roupas bonitas para você. Há muito que aprender, Lyra. — Não me importo. Quero aprender tudo. — Tenho certeza de que vai conseguir. Quando voltar à Jordan, será uma viajante célebre. Agora, vamos partir muito cedo amanhã de manhã, pelo zepelim da madrugada, então é melhor você ir dormir. Vejo você no café da manhã. Boa noite! — Boa noite — retribuiu Lyra. Depois, se lembrou do pouco de bons modos que conhecia, se virou da porta e disse: — Boa noite, Reitor. Ele assentiu. — Durma bem. — E obrigada — acrescentou Lyra, dirigindo-se à Sra. Coulter. Ela finalmente conseguiu dormir, embora Pantalaimon não tivesse sossegado até ela ralhar com ele, e ele então se transformou em porco-espinho de pura má-criação. Ainda estava escuro quando alguém a sacudiu. — Lyra... psiu... Não se assuste... acorde, garota! Era a Sra. Lonsdale. Estava segurando uma vela; ela se inclinou e falou baixinho, segurando Lyra com a mão livre. — Escute. O Reitor quer falar com você antes de você se encontrar com a Sra. Coulter no café da manhã. Se levante depressa e corra até a Residência. Entre no jardim e bata na porta-janela da sala das conversas. Entendeu? Completamente acordada e fervendo de curiosidade, Lyra assentiu e enfiou os pés nos sapatos que a Sra. Lonsdale colocou no chão para ela. — Não precisa se lavar agora. Pode fazer isso depois. Vá direto e volte direto. Vou começar a arrumar sua bagagem e separar alguma coisa para você usar. Vamos, vá logo. O Quadrilátero escuro ainda estava cheio do ar frio da noite. No céu as últimas estrelas ainda estavam visíveis, mas a luz que vinha do leste gradualmente ocupava o céu acima do Salão. Lyra correu para o Jardim da Biblioteca e ficou por um momento parada na imensa quietude, olhando as pontinhas de pedra da Capela, a cúpula verde-perolada do Prédio Sheldon, o lampião pintado de branco da Biblioteca. Agora que ia deixar aquele lugar, estava se perguntando se sentiria muita saudade. Alguma coisa se moveu na porta-janela da sala das conversas e um brilho de luz cintilou por um instante. Ela se lembrou do que tinha que fazer e bateu na porta de vidro, que se abriu de imediato. — Muito bem. Entre depressa. Não temos muito tempo — disse o Reitor, fechando a cortina sobre a janela assim que ela entrou. Ele estava inteiramente vestido de preto, como de costume. — Quer dizer que eu não vou, afinal? — Lyra perguntou. — Vai, sim. Não posso impedir — disse o Reitor, sem que Lyra percebesse na ocasião que aquilo era algo estranho de se dizer. — Lyra, quero lhe dar uma coisa, mas você vai ter que prometer que não vai contar a ninguém. Você jura? — Juro — disse Lyra. Ele foi até a escrivaninha e tirou de uma gaveta um pacotinho embrulhado em veludo preto. Quando ele abriu o pano, Lyra viu uma coisa como um relógio de pulso grande, ou um relógio de parede pequeno: um disco espesso de ouro e cristal. Podia ser uma bússola ou algo assim. — O que é isso? — ela perguntou. — É um aletiômetro. Só existem seis no mundo, Lyra, e novamente eu aviso: guarde segredo. Seria melhor se a Sra. Coulter não soubesse. O seu tio... — Mas o que isso faz? — Diz a verdade. Mas como ele funciona, você vai ter que descobrir sozinha. Agora vá, está clareando. Corra de volta ao seu quarto antes que alguém a veja. Ele dobrou o veludo sobre o instrumento e o colocou nas mãos dela. Era surpreendentemente pesado. Então ele colocou as mãos de cada lado da cabeça da menina e a segurou de leve por um instante. Ela tentou erguer os olhos para ele e perguntou: — O que o senhor ia dizer do meu tio Asriel? — O seu tio deu isso de presente à Faculdade Jordan há alguns anos. Ele podia... Antes que ele pudesse terminar a frase, ouviram uma batida leve na porta. Ela sentiu as mãos dele estremecerem. roupas lindas, onde as pessoas deixam a gente experimentar, onde a gente se olha nos espelhos... E as roupas eram tão bonitinhas... As roupas de Lyra tinham vindo através da Sra. Lonsdale, e muitas delas eram usadas e bastante remendadas. Ela raramente teve alguma coisa nova, e quando tinha, era uma roupa escolhida pela durabilidade, não pela aparência; e ela mesma nunca escolhera nada. E agora, com a Sra. Coulter sugerindo isto, elogiando aquilo e pagando tudo, e mais ainda... Quando terminaram, Lyra estava corada e tinha os olhos brilhantes de cansaço. A Sra. Coulter pediu que a maior parte das roupas fosse embalada e entregue em sua casa, mas levou uma ou duas coisas consigo quando ela e Lyra caminharam de volta para o apartamento. Depois, um banho com espuma espessa e perfumada. A Sra. Coulter entrou no banheiro para lavar os cabelos de Lyra, e ela não esfregava e arranhava como a Sra. Lonsdale. Ela era delicada. Pantalaimon observava com intensa curiosidade até que a Sra. Coulter olhou para ele, que entendeu o que ela queria dizer e se virou de costas, desviando timidamente o olhar daqueles mistérios femininos, como o macaco dourado estava fazendo. Antes disso ele nunca tinha precisado desviar os olhos de Lyra. Então, depois do banho, um leite quente com ervas, uma camisola nova de flanela com estampado de flores e bainha recortada, e chinelos de lã de carneiro tingida de azul-claro; após isso, cama. Tão macia, aquela cama! Tão delicada, a luz anbárica na mesa de cabeceira! E o quarto tão aconchegante, com os pequenos armários e a penteadeira e a cômoda onde seriam guardadas suas roupas novas, e um tapete de uma parede à outra, e lindas cortinas cobertas de estrelas, luas e planetas! Lyra, tensa, estava cansada demais para dormir, encantada demais para questionar qualquer coisa. Depois que a Sra. Coulter lhe desejou uma boa noite e saiu do quarto, Pantalaimon quis chamar sua atenção e puxou seu cabelo. Ela o empurrou de leve, mas ele sussurrou: — Onde está o negócio? Ela soube logo o que ele queria dizer. O casaco velho e humilde estava pendurado no armário; segundos depois ela estava de volta na cama, sentada de pernas cruzadas à luz da luminária, com Pantalaimon observando atentamente enquanto ela desdobrava o veludo preto e contemplava aquilo que o Reitor lhe dera. — Como foi que ele chamou? — ela cochichou. — Aletiômetro. Não adiantava perguntar o que isso significava. O objeto pesava nas mãos dela, a face de cristal brilhando, o corpo de ouro muito benfeito. Era muito parecido com um relógio, ou uma bússola, pois havia ponteiros apontando para lugares em volta do mostrador, mas em vez de horas ou pontos cardeais havia várias figuras pequeninas, todas pintadas com precisão extraordinária, como se fosse em marfim, com o mais fino e delicado pincel de visom. Ela girou o mostrador nas mãos para observar todas elas. Havia uma âncora; uma ampulheta encimada por uma caveira; um camaleão, um touro, uma colmeia... Ao todo eram 36 desenhos, e ela nem imaginava o que significavam. — Há um botão, olhe — Pantalaimon mostrou. — Veja se consegue dar corda nele. Na verdade, havia três pequenos pinos giratórios facetados, e cada um movimentava um dos três ponteiros menores, que se moviam em volta do mostrador com uma série de pequenos estalidos. Podiam ser apontados para qualquer uma das figuras; e uma vez entrando em posição, apontando exatamente para o centro de cada uma, eles não podiam ser movidos. O quarto ponteiro era mais comprido e fino, e parecia ser feito de metal menos brilhante do que os outros três. Lyra não conseguiu controlar o movimento dele; ele ia para onde queria, como a agulha de uma bússola, mas não parava. — O final “metro” significa “medida” — Pantalaimon declarou. — Como termômetro. O Capelão nos ensinou isso. — É, mas essa é a parte fácil — ela respondeu num cochicho. — Para que será que serve? Nenhum dos dois conseguiu adivinhar. Lyra passou muito tempo movendo os ponteiros para apontar para um ou outro símbolo (anjo, elmo, golfinho; globo, bandolim, bússolas; vela, raio, cavalo) e observando o ponteiro grande se mover sem uma lógica aparente e sem parar; embora não tenha entendido coisa alguma, ela ficou intrigada e deliciada com a complexidade e o detalhamento. Pantalaimon se transformou num camundongo para poder chegar mais perto e descansou as patas minúsculas na borda, os olhinhos redondos negros de curiosidade enquanto ele observava os movimentos do ponteiro. — O que você acha que o Reitor quis dizer sobre o tio Asriel? — ela perguntou. — Talvez a gente tenha que manter isto em segurança e depois entregar a ele. — Mas o Reitor ia envenenar tio Asriel! Talvez seja o contrário. Talvez ele fosse dizer: não entregue ao seu tio. — Não — contradisse Pantalaimon. — É dela que temos que manter isto escondido... Ouviram-se batidas leves na porta. A Sra. Coulter disse: — Lyra, se eu fosse você, apagava a luz. Você está cansada, e teremos muito trabalho amanhã. Lyra tinha enfiado depressa o aletiômetro debaixo das cobertas. — Está certo, Sra. Coulter — disse. — Então, boa noite. — Boa noite. Ela se acomodou e apagou a luz. Antes de adormecer, enfiou o aletiômetro debaixo do travesseiro, por medida de segurança. Quando já havia cerca de seis semanas que Lyra morava lá, a Sra. Coulter resolveu dar uma festa. Lyra tinha a impressão de que havia uma coisa a ser comemorada, embora a Sra. Coulter não dissesse o que era. Ela encomendou flores, debateu drinques e canapés com a firma do bufê, passou horas com Lyra decidindo quem convidar. — Temos que chamar o Arcebispo. Não posso deixá-lo de fora, embora ele seja um velho odiento e esnobe. O Lorde Boreal está na cidade; ele é divertido. E a Princesa Postnikova. Acha que seria correto convidar Erik Andersson? Não sei se já está na hora de admiti-lo... Erik Andersson era o mais recente dançarino da moda. Lyra não tinha ideia do que significava “admitir”, mas mesmo assim gostava de dar sua opinião. Anotou todos os nomes que a Sra. Coulter sugeriu, com muitos erros de ortografia, depois os rabiscava quando a Sra. Coulter mudava de ideia. Quando Lyra foi para a cama, Pantalaimon cochichou: — Ela nunca irá para o Norte! Vai nos prender aqui para sempre. Quando é que vamos fugir? — Vai, sim — Lyra cochichou de volta. — É que você não gosta dela. Bem, azar o seu; eu gosto. E por que ela ia nos ensinar navegação se não quisesse mesmo nos levar para o Norte? — Para que você não fique impaciente, só por isso. Não acredito que você vai querer ficar nessa festa toda simpática e bonitinha. Ela está fazendo de você um bichinho de estimação. Lyra virou para o outro lado e fechou os olhos. Mas o que Pantalaimon tinha dito era verdade: ela vinha se sentindo presa e oprimida por aquela vida de boas maneiras, por mais luxuosa que fosse. A garota daria qualquer coisa por um dia com seus amigos moleques de Oxford, com uma batalha nos Barreiros e uma corrida ao longo do canal. A única coisa que lhe fazia ser educada e atenciosa com a Sra. Coulter era a tentadora esperança de ir para o Norte — talvez encontrassem Lorde Asriel, talvez ele e a Sra. Coulter se apaixonassem, se casassem e adotassem Lyra, e salvassem Roger dos Gobblers. Na tarde da festa, a Sra. Coulter levou Lyra a um cabeleireiro da moda, onde seus rebeldes cachos louros foram amaciados e penteados, e suas unhas foram lixadas e pintadas; aplicaram-lhe até um pouco de maquilagem nos olhos e nos lábios, para ensinar como fazer isso. Depois elas foram buscar o vestido que a Sra. Coulter tinha mandado fazer para Lyra, e compraram sapatos de verniz; então chegou a hora de voltar para o apartamento, verificar as flores e se vestir. Lyra saiu do quarto radiante com a sensação da sua própria formosura. — A bolsa a tiracolo, não, querida — disse a Sra. Coulter. Lyra tinha o hábito de levar sempre com ela uma bolsinha a tiracolo de couro branco, para ter o aletiômetro sempre perto. A Sra. Coulter, ajeitando um buquê de rosas que tinha sido mal colocado dentro de um vaso, viu que Lyra não se movia e olhou fixamente para a porta. — Ah, por favor, Sra. Coulter, eu adoro esta bolsa! — Não dentro de casa, Lyra. É absurdo usar uma bolsa a tiracolo em sua própria casa. Vá guardar isso imediatamente e venha me ajudar a verificar essas taças... Não foi apenas o tom irritado como também as palavras “dentro de casa” que fizeram Lyra resistir com teimosia. Pantalaimon voou para o chão e imediatamente virou um gambá, arqueando as costas contra as meias soquetes brancas que ela usava. Assim encorajada, Lyra disse: — Mas ela não vai atrapalhar. E é a única coisa que eu gosto mesmo de usar. Acho que ela realmente combina com... Ela não terminou a frase, pois o dimon da Sra. Coulter saltou do sofá como um raio dourado e prendeu Pantalaimon no tapete antes que ele pudesse se mover. Lyra soltou uma exclamação de susto, depois de medo e dor, enquanto Pantalaimon se contorcia, guinchando e rosnando, sem conseguir se soltar das garras do macaco dourado. Poucos segundos depois, o macaco o havia dominado: tinha uma das patas negras em volta da garganta de Pantalaimon e as duas patas traseiras prendendo as pernas do gambá; com a outra pata dianteira o macaco agarrou uma das orelhas de Pantalaimon e começou a puxá-la como se quisesse arrancá-la. Não parecia fazer aquilo com raiva, mas com uma força fria que era horrível de ver e ainda pior de sentir. Lyra soluçava de terror. — Não! Por favor! Pare de nos machucar! A Sra. Coulter ergueu os olhos das flores. — Então faça o que eu mando — disse. — Eu prometo! O macaco dourado largou Pantalaimon, como se de repente se sentisse entediado. Pantalaimon voou para Lyra, que o pegou no colo para acariciá-lo e beijá-lo. — Agora, Lyra — disse a Sra. Coulter. Lyra foi para seu quarto e bateu a porta, mas não demorou nem um instante e a porta estava aberta novamente e a Sra. Coulter estava parada a menos de um metro. — Lyra, se você se comportar desta maneira grosseira e vulgar, vamos brigar, e eu vou vencer. Largue esta bolsa imediatamente. Desmanche esta careta desagradável. Nunca mais bata uma porta, na minha presença ou longe dela. Agora, os primeiros convidados vão chegar em poucos minutos, e vão achar você simpática, encantadora, inocente, educada, de comportamento impecável. Este é o meu desejo, está me entendendo, Lyra? — Sim, Sra. Coulter. — Então me dê um beijo. Ela se inclinou e ofereceu a face; Lyra teve que ficar na ponta dos pés para beijá-la. Notou a maciez da pele e o cheiro leve e curioso da carne da Sra. Coulter: perfumado, mas um pouco metálico. Ela se afastou e colocou a bolsa sobre a penteadeira, antes de seguir a Sra. Coulter de volta à sala. — O que está achando das flores, querida? — a Sra. Coulter perguntou como se nada tivesse acontecido. — Escolher rosas é garantia de não errar, mas o exagero pode ficar feio... Será que o pessoal do bufê trouxe gelo suficiente? Por favor, vá verificar. Bebida quente é horrível... Lyra achou muito fácil fingir estar alegre e ser simpática, embora o tempo todo estivesse consciente da aversão de Pantalaimon e do ódio dele pelo macaco dourado. Em poucos minutos, soou a campainha da porta, e logo a sala estava repleta de senhoras vestidas com elegância e cavalheiros atraentes ou distintos. Lyra andava entre eles oferecendo canapés ou sorrindo com doçura e dando respostas bonitinhas quando falavam com ela. Ela se sentia um bichinho de estimação universal; e no instante em que pensou isso, Pantalaimon estendeu suas asas de pintassilgo e piou bem alto. Ela sentiu a satisfação dele ao ter acertado, e ficou um pouco mais retraída. — E onde estuda, querida? — perguntou uma dama idosa, examinando Lyra através de um pincenê. — Não vou para a escola — respondeu Lyra. — É mesmo? Pensei que sua mãe teria matriculado você na antiga escola dela. Um lugar bastante satisfatório... Lyra ficou perplexa, até entender o engano da velha senhora. — Ah, ela não é minha mãe! Eu sou só a assistente dela. Sou a secretária — disse, em tom importante. — Entendo. E quem são seus pais? Mais uma vez Lyra precisou de um tempo para entender o que ela queria dizer, antes de responder: — Um conde e uma condessa. Morreram num acidente aeronáutico no Norte. — Que conde? — O Conde Belacqua. Ele era irmão de Lorde Asriel. O dimon da dama, uma espécie de papagaio vermelho, mudou de um pé para o outro, como se estivesse irritado. A velha senhora estava começando a mostrar forte curiosidade, de modo que Lyra sorriu com doçura e seguiu em frente. Estava passando por um grupo de homens e uma mulher jovem perto do sofá grande quando ouviu a palavra “Pó”. A essa altura, ela já conhecia suficientemente a sociedade para perceber quando homens e mulheres estavam paquerando, e observava o processo com fascínio, embora ficasse mais fascinada pela menção do Pó, e ficou por ali para escutar. Os homens pareciam ser Catedráticos; pelo modo como a moça os interrogava, Lyra concluiu que ela era estudante. — Quem descobriu foi um moscovita, um homem chamado Rusakov — dizia um homem de meia-idade, enquanto a moça o contemplava com admiração. — Se já souber dessas coisas, me avise. Bom, elas costumam ser chamadas de Partículas de Rusakov, por causa dele. Partículas elementares que não interagem com outras de maneira alguma. Muito difíceis de serem detectadas. Mas o extraordinário é que parece que elas são atraídas pelos seres humanos. — É mesmo? — disse a jovem, arregalando os olhos. — Ainda mais extraordinário: por alguns seres humanos mais do que por outros — prosseguiu ele. — Os adultos as atraem, mas não as crianças. Pelo menos não muito, e mesmo assim só depois da adolescência. Aliás, foi exatamente por isso... — Ele baixou a voz e chegou mais perto da moça, colocando a mão no ombro dela. — Foi exatamente por isso que o Conselho de Oblação foi criado. Aliás, como a nossa boa anfitriã poderia lhe contar. — É mesmo? Ela está envolvida com o Conselho de Oblação? aquilo. Ela sentia novamente o perfume da Sra. Coulter, e as rosas, e a fumaça da cigarrilha, e o perfume das outras mulheres. A Sra. Coulter deu a Lyra um sorriso que parecia dizer “Você e eu compreendemos essas coisas, não é?”, e se afastou para conversar com os convidados. Pantalaimon cochichou no ouvido de Lyra: — Enquanto ela estava aqui, o dimon dela estava saindo do nosso quarto. Andou espionando por lá. Ele sabe do aletiômetro! Lyra sentiu que isso provavelmente era verdade, mas nada podia fazer a respeito. O que aquele Catedrático estava dizendo sobre os Gobblers? Olhou em volta à procura dele, mas, no mesmo instante em que o avistou, o porteiro (usando nessa noite um traje de criado) e outro homem tocaram no ombro do Professor e falaram com ele em voz baixa; ele empalideceu e os seguiu para fora da sala. Aquilo não levou mais que dois segundos, e foi feito de forma tão discreta que quase ninguém percebeu. Mas deixou Lyra aflita e se sentindo exposta. Ela ficou andando pelas duas amplas salas onde a festa estava acontecendo, mal ouvindo as conversas à sua volta, meio interessada no sabor dos coquetéis que não tinha permissão de experimentar, e cada vez mais preocupada. Não havia percebido que alguém a estava observando até que o porteiro surgiu ao seu lado e se inclinou para dizer: — Srta. Lyra, o cavalheiro perto da lareira gostaria de conversar com você. Se você não sabe, ele é o Lorde Boreal. Lyra olhou para o outro lado da sala. O homem grisalho de aparência poderosa olhava diretamente para ela; quando os olhares se encontraram, ele assentiu e a chamou com um gesto. De má vontade, mas agora bastante interessada, ela atravessou a sala. — Boa noite, filha — disse ele. Sua voz era suave e cheia de autoridade. A cabeça escamosa e os olhos cor de esmeralda do seu dimon-serpente cintilavam à luz da luminária de cristal na parede vizinha. — Boa noite — respondeu Lyra. — Como vai meu velho amigo, o Reitor da Jordan? — Muito bem, obrigada. — Imagino que todos tenham ficado tristes quando você partiu. — Ficaram, sim. — E a Sra. Coulter está mantendo você ocupada? O que ela está lhe ensinando? Por estar se sentindo revoltada e inquieta, Lyra não respondeu a esta pergunta paternalista com a verdade, ou com um dos costumeiros produtos da sua imaginação, mas disse: — Estou aprendendo tudo sobre as Partículas Rusakov e sobre o Conselho de Oblação. Ele imediatamente pareceu se concentrar, como se pode concentrar o facho de uma lanterna anbárica. Toda a atenção dele jorrava sobre ela com força. — E se você me contar o que sabe? — disse ele. — Estão fazendo experiências no Norte — Lyra contou. Agora estava se sentindo ousada. — Como o Dr. Grumman. — Continue. — Eles têm uma espécie de fotograma especial onde se pode ver o Pó, e quando a gente vê um homem, parece que a luz toda está indo para ele, e nenhuma para uma criança. Pelo menos, não muita. — A Sra. Coulter lhe mostrou um fotograma assim? Lyra hesitou, pois isso não era mentir, e sim outra coisa, em que ela não tinha prática. — Não — respondeu depois de um instante. — Eu vi na Faculdade Jordan. — Quem foi que lhe mostrou? — Ele não estava mostrando para mim — Lyra admitiu. — Eu estava passando e vi. E então meu amigo Roger foi levado pelo Conselho de Oblação. Mas... — Quem lhe mostrou o fotograma? — O meu tio Asriel. — Quando? — Na última vez que ele esteve na Faculdade Jordan. — Entendo. E que mais você andou aprendendo? Será que ouvi você mencionar o Conselho de Oblação? — Foi, sim. Mas não ouvi isso dele, ouvi aqui. O que era a pura verdade, ela pensou. Ele a estudava com os olhos apertados. Ela devolveu o olhar com toda a inocência que possuía. Finalmente ele assentiu. — Então a Sra. Coulter deve ter resolvido que você está pronta para ajudá-la nesse trabalho. Interessante. Você já tomou parte? — Não — disse Lyra. Ela pensava: de que ele está falando? Pantalaimon, com esperteza, tinha a sua forma mais inexpressiva, uma mariposa, e não poderia delatar os sentimentos dela; e ela estava certa de que conseguiria manter a expressão inocente. — E ela lhe contou o que acontece com as crianças? — Não, isso ela não me contou. Eu só sei que tem a ver com o Pó, e elas são uma espécie de sacrifício. Também isso não era exatamente uma mentira, ela pensou; afinal, não tinha dito que a Sra. Coulter lhe contara isso. — “Sacrifício” é uma palavra meio forte. O que é feito é para o bem delas, assim como para o nosso. E é claro que todas acompanham a Sra. Coulter por vontade própria. É por isso que ela é tão preciosa. Elas têm que querer fazer parte, e que criança poderia resistir a ela? E se ela vai usar você também para trazê-las, melhor ainda. Estou muito contente. Ele deu um sorriso como o da Sra. Coulter: como se ambos compartilhassem um segredo. Ela sorriu de volta educadamente, e ele se virou para conversar com outra pessoa. Ela e Pantalaimon podiam sentir o horror um do outro. Ela queria ficar sozinha e conversar com ele; tinha vontade de ir embora; queria voltar para a Faculdade Jordan e para seu quartinho humilde na Escadaria Doze; queria encontrar Lorde Asriel... E como em resposta a esse desejo, ela ouviu o nome dele ser mencionado, e com o pretexto de se servir de um canapé numa bandeja sobre a mesa, se aproximou do grupo que conversava ali perto. Um homem com a púrpura de bispo estava dizendo: — ... Não, eu não acho que Lorde Asriel vai nos incomodar por bastante tempo. — E onde mesmo ele está preso? — Na fortaleza de Svalbard, me disseram. Vigiado pelos panserbjornes, sabem, os ursos de armadura. Criaturas formidáveis! Ele não vai conseguir escapar nem em mil anos. O fato é que eu realmente acho que o caminho está bem aberto... — As últimas experiências confirmaram o que eu sempre acreditei: que o Pó é uma emanação do próprio princípio das trevas e... — Será que estou detectando a heresia zoroastriana? — O que costumava ser uma heresia... — E se pudéssemos isolar o princípio das trevas... — Você disse Svalbard? — Ursos de armadura... — O Conselho de Oblação... — As crianças não sofrem, tenho certeza disso... — Lorde Asriel prisioneiro... Lyra tinha ouvido o suficiente. Ela se virou, e silenciosa como a mariposa Pantalaimon, foi para o seu quarto e fechou a porta, abafando o barulho da festa. — E então? — cochichou, e Pantalaimon se tornou um pintassilgo no ombro dela. — Vamos fugir? — ele cochichou em resposta. — Claro. Se formos agora, com toda essa gente, ela pode demorar a perceber. — Mas ele vai perceber. Pantalaimon estava falando do dimon da Sra. Coulter. Quando Lyra pensava naquela figura dourada e esguia, ela sentia náuseas de medo. — Desta vez vou lutar com ele — afirmou Pantalaimon corajosamente. — Eu posso mudar, e ele não pode; vou mudar tão depressa que ele não vai conseguir me segurar. Desta vez eu vou vencer, você vai ver. Lyra concordou distraidamente. Que roupa deveria vestir? Como poderia sair sem ser vista? — Você vai ter que ir espiar — cochichou. — Assim que o caminho estiver livre nós teremos que correr. Seja mariposa — acrescentou. — Não esqueça, quando ninguém estiver olhando... Ela abriu uma fresta da porta, e ele saiu, um pontinho escuro contra a luz quente e rósea do corredor. Enquanto isso, ela vestia as roupas mais quentes que possuía e enfiava mais algumas numa das bolsas de seda carbonífera comprada na loja elegante que elas haviam visitado naquela mesma tarde. A Sra. Coulter tinha lhe dado dinheiro como se, em vez de moedas, fossem bombons, e embora Lyra tivesse gastado muito, ainda sobraram vários soberanos, que ela colocou no bolso do seu casaco de pele de lobo. Finalmente ela guardou o aletiômetro dentro do pedaço de veludo preto. Teria aquele macaco abominável encontrado o aparelho? Certamente que sim; com certeza tinha contado à Sra. Coulter; ah, se o tivesse escondido melhor... Foi na ponta dos pés até a porta. Por sorte seu quarto dava para o final do corredor mais perto da entrada, e a maioria dos convidados estava nas duas salas mais distantes. Havia o som de vozes conversando em voz bem alta, risos, o ruído abafado de uma descarga sanitária, atenção do proprietário. — Um café e um sanduíche de presunto — pediu. — Está na rua até tarde, minha cara — disse um cavalheiro de cartola e cachecol de seda. — É — disse ela, virando de costas para observar o movimentado cruzamento. Num teatro ali perto, o espetáculo terminara e grupos de pessoas ocupavam a calçada iluminada, chamando os táxis aos gritos, vestindo os sobretudos. Na outra direção ficava a entrada de uma Estação de Trem Ctônico, com muita gente subindo e descendo a escada. — Pronto, meu bem — disse o dono da barraca. — São dois xelins. — Deixe que eu pago — ofereceu o homem de cartola. Lyra pensou: por que não? Consigo correr mais depressa que ele, e mais tarde posso precisar de todo o meu dinheiro. O homem de cartola jogou uma moeda no balcão e sorriu para ela. Seu dimon era uma lêmure; agarrada à lapela dele, ela encarava Lyra de olhos arregalados. Lyra mordeu o sanduíche, com os olhos voltados para o movimento da rua. Não tinha ideia de onde estava, porque nunca havia visto um mapa de Londres e sequer sabia o tamanho da cidade e se teria que caminhar muito para chegar ao campo. — Qual é o seu nome? — o homem perguntou. — Alice. — Que lindo nome. Me deixe colocar uma gotinha disso no seu café... Para esquentar... Ele estava tirando a tampa de um frasco de prata. — Não gosto — protestou ela. — Gosto só de café. — Aposto que nunca tomou conhaque assim antes. — Tomei, sim. Vomitei tudo. Tomei uma garrafa inteira, ou quase. — Como quiser — disse o homem, colocando o conhaque em seu próprio café. — Aonde está indo, assim sozinha? — Vou me encontrar com meu pai. — E quem é ele? — É um assassino. — Ele é o quê? — Já disse, um assassino. É a profissão dele. Está fazendo um trabalho esta noite. Estou trazendo roupas limpas para ele, porque em geral ele fica coberto de sangue no final de um trabalho. — Ah, você está brincando. — Não estou, não. A lêmure soltou um miado baixo e passou para trás da cabeça do homem, de onde ficou espiando Lyra. Sem se perturbar, a menina bebeu o café e comeu o resto do sanduíche. — Boa noite — disse finalmente. — Estou vendo papai chegando. Ele parece meio zangado. O homem de cartola olhou em volta, e Lyra partiu na direção da multidão em frente ao teatro. Por mais que tivesse vontade de conhecer o Trem Ctônico (que a Sra. Coulter tinha dito que não era para pessoas de sua classe social), ela estava com medo de ficar presa debaixo da terra; melhor ficar ao ar livre, onde poderia correr se precisasse. Prosseguiu em sua caminhada pelas ruas cada vez mais escuras e desertas. Estava garoando, mas, mesmo se não houvesse nuvens no céu da cidade, as luzes não iam deixar ver as estrelas. Pantalaimon achava que estavam indo para o norte, mas quem poderia ter certeza? Ruas e mais ruas, de casinhas de tijolos idênticas, com quintais onde só cabia uma lata de lixo; grandes e sombrias fábricas atrás de cercas de arame, com uma única luz anbárica no alto de um muro e um vigia noturno cochilando junto ao seu braseiro; de vez em quando um oratório desolado, que só se diferenciava de um armazém pelo crucifixo na fachada. Ela experimentou a porta de um deles, e ouviu um gemido vindo de um banco a um metro dela, na escuridão. Percebeu que a entrada do oratório estava repleta de vultos adormecidos, e fugiu. — Onde é que vamos dormir, Pantalaimon? — ela perguntou, enquanto desciam uma rua de lojas fechadas. — Numa soleira qualquer. — Mas não quero que me vejam, e elas são tão abertas... — Há um canal ali embaixo... Ele estava olhando para uma rua lateral à esquerda. Realmente, uma mancha de brilho escuro denunciava água, e quando os dois foram cautelosamente até lá, encontraram um porto na margem de um canal onde cerca de uma dúzia de balsas estavam amarradas aos ancoradouros, algumas altas na água, outras mais afundadas sob o peso da carga, perto dos guindastes que mais pareciam forcas. Uma luz fraca brilhava na janela de uma cabana de madeira, e um fio de fumaça subia da chaminé de metal; fora isso, as únicas luzes ficavam no alto — na parede de um armazém ou na cabine de um guindaste —, deixando as partes mais baixas na escuridão. Nos ancoradouros, havia pilhas de barris com álcool de carvão, pilhas de grandes troncos redondos, rolos de cabos cobertos de borracha. Lyra foi na ponta dos pés até a cabana e olhou pela janela. Um velho estava lendo com dificuldade um jornal de história em quadrinhos e fumando um cachimbo, com seu dimon- spaniel dormindo enrodilhado sobre a mesa. Enquanto Lyra espiava, o homem se levantou e foi buscar no fogão de ferro uma chaleira escurecida, e colocou um pouco de água numa caneca rachada, antes de tornar a se acomodar com o jornal. — Será que devemos pedir para ele nos deixar entrar, Pan? — ela sussurrou. Mas ele estava ocupado, se transformando em morcego, depois em coruja, depois novamente em gato-do-mato; ela olhou em volta, sentindo o pânico dele, e então os viu ao mesmo tempo que ele: dois homens correndo para ela, um de cada lado, o mais próximo segurando uma tarrafa. Pantalaimon soltou um grito agudo e se transformando em leopardo pulou sobre a raposa de aparência feroz que era o dimon do homem mais próximo, jogando-a para trás, de modo que a raposa caiu sobre as pernas do homem. O homem xingou e se desviou para o lado, e Lyra passou correndo por ele, na direção da área aberta do ancoradouro; o que não podia era ficar encurralada num canto. Pantalaimon, agora uma águia, mergulhou sobre ela e gritou: — À esquerda! À esquerda! Ela se desviou para aquele lado e viu um espaço aberto entre os barris de álcool de carvão e o final de um barracão de chapas de ferro, e disparou para lá. Mas aquelas tarrafas! Ela ouviu um assobio no ar, e alguma coisa caiu sobre ela como um chicote, picando dolorosamente no rosto, e cordões imundos de piche ficaram enrolados por sua cabeça, seus braços, suas mãos, prendendo-a; ela caiu no chão, rosnando e lutando em vão. — Pan! Pan! Mas o dimon-raposa atacou o Pantalaimon-gato, e Lyra sentiu a dor em sua própria carne, e soltou um grito forte e soluçado quando ele caiu. Um homem começou a enrolar a rede em volta das pernas dela, da garganta, do corpo, da cabeça, rolando-a de um lado para outro no chão. Ela estava indefesa, exatamente como uma mosca sendo enrolada pelo fio da aranha. O coitado do Pan estava se arrastando em sua direção, com o dimon-raposa lhe atacando as costas, e não tinha forças sequer para mudar de forma; e o outro homem estava deitado numa poça, com uma flecha atravessada no pescoço... O mundo inteiro ficou imóvel quando o homem que a enrolava na rede também viu. Pantalaimon se levantou até ficar sentado e pestanejou, e então houve um ruído baixo e seco, e o homem da tarrafa caiu, engasgado e ofegante, bem por cima de Lyra, que gritou de horror: havia sangue jorrando de dentro dele! Passos apressados, e alguém arrastou o homem para longe e se inclinou sobre ele; então outras mãos colocaram Lyra em pé, uma faca cortou e puxou, e os fios da tarrafa caíram um por um, e ela se soltou, cuspindo, e correu para se ajoelhar junto a Pantalaimon. Nessa posição, ela virou a cabeça para olhar os recém-chegados. Três homens morenos, um deles armado com um arco, os outros com facas; quando a viu, o arqueiro levou um susto. — Não é a Lyra? A voz era familiar, mas ela não a reconheceu até que ele avançou um passo, e uma luz próxima mostrou seu rosto e o dimon-falcão no ombro dele. Então ela o reconheceu: um gípcio! Um gípcio de Oxford! — Sou Tony Costa — ele explicou. — Lembra? Você brincava com meu irmãozinho Billy nos barcos em Jericó, antes de os Gobblers pegarem ele. — Ah, meu Deus, Pan, estamos salvos! — ela soluçou. Mas então um pensamento lhe veio à cabeça: tinha sido dos Costa o barco que ela roubara; e se ele se lembrasse? — É melhor vir com a gente — ele disse. — Está sozinha? — Estou. Eu fugi... — Tá bem, não fale agora. Fique quieta. Jaxer, leve os corpos para um lugar escuro. Kerim, fique de olho. Lyra se levantou, Pantalaimon-gato-do-mato no colo. Ele tentava girar o corpo para ver alguma coisa; ela seguiu o olhar dele, compreendendo e de repente curiosa também: o que tinha acontecido aos dimons dos mortos? Eles estavam esmaecendo, essa era a resposta; se apagando e se dispersando no ar como átomos de fumaça, embora se esforçassem para ficar agarrados aos homens. Pantalaimon desviou o olhar, e Lyra correu às cegas atrás de Tony Costa. para o Norte tanto quanto o resto, por causa do álcool de carvão e das minas de fogo, e os boatos de guerra começaram antes dos Gobblers. E achamos que os Gobblers estivessem usando as crianças para subornar os chefes tártaros, porque os tártaros comem crianças, não é? Assam e comem. — Essa não! — Comem, sim. Têm muitas outras coisas para contar. Você já ouviu falar nos Nälkäinens? — Não, nunca. Nem pela Sra. Coulter. Quem são eles? — Um tipo de fantasma que existe lá em cima naquelas florestas. São do tamanho de uma criança, mas não têm cabeça. De noite se guiam pelo tato, e se a pessoa está dormindo na floresta eles pegam e não soltam por nada neste mundo. Essa palavra, nälkäinen, vem do Norte. E os chupadores de ar também são perigosos. Ficam deslizando pelo ar. Às vezes a gente encontra um monte deles boiando, ou presos nos galhos. Assim que eles tocam na pessoa, ela perde toda a força. A gente não consegue ver esses fantasmas, só uma espécie de ondulação no ar. E os sem-ar... — Quem são eles? — São guerreiros semimortos. Estar vivo é uma coisa, estar morto é outra, mas estar meio-morto é pior que tudo. Eles não conseguem morrer e não podem mais viver. Ficam vagando para sempre. São chamados de sem-ar por causa do que fazem a eles. — O quê? — perguntou Lyra de olhos arregalados. — Os tártaros do norte abrem as costelas deles e tiram os pulmões. Fazer isso é uma arte; os guerreiros não morrem, mas seus pulmões só trabalham quando seus dimons os bombeiam manualmente, de modo que o resultado é que estão sempre no meio do caminho entre respirar e não respirar, entre a vida e a morte. Estão meio-mortos, entende? E os dimons deles têm que bombear dia e noite, para não morrerem junto com os guerreiros. Dizem que às vezes na floresta a gente encontra um pelotão inteiro de sem-ar. E existem também os panserbjornes, já ouviu falar? Significa ursos de armadura. São uma espécie de ursos polares, só que... — É, já ouvi falar deles! Ontem à noite um dos homens disse que o meu tio, o Lorde Asriel, está preso numa fortaleza vigiado pelos ursos de armadura. — É mesmo? E o que seu tio estava fazendo por lá? — Explorando. Mas pelo jeito que o homem estava falando, acho que meu tio não está do lado dos Gobblers. Acho que estavam felizes por ele estar preso. — Bom, ele não vai conseguir fugir se os ursos de armadura estiverem vigiando. São como mercenários, sabe o que isso quer dizer? Vendem sua força para quem pagar. Têm mãos como os homens, e há muito tempo aprenderam o segredo de trabalhar o ferro, principalmente o ferro meteórico, e fazem grandes folhas e chapas para se cobrirem. Há séculos eles atacam os escraelingues. São assassinos ferozes, absolutamente impiedosos. Mas respeitam a palavra dada. Quem faz um acordo com um panserbjorne pode confiar. Lyra pensou nesses horrores com temor. — Mamãe não gosta de ouvir falar no Norte — Tony acrescentou depois de alguns minutos. — Por causa do que pode ter acontecido com o Billy. Sabemos que eles levaram o Billy para o Norte, entende? — Como sabem disso? — Pegamos um dos Gobblers e o obrigamos a falar. Foi assim que soubemos um pouco do que eles fazem. Aqueles dois ontem à noite não eram Gobblers; eram desajeitados demais. Se fossem Gobblers, a gente ia pegar eles vivos. Sabe, nós, o povo gípcio, nós fomos os mais atingidos por esses Gobblers, e estamos nos juntando para resolver o que vamos fazer. Era o que a gente estava fazendo naquele porto essa noite, abastecendo, porque vamos fazer uma grande reunião nos Pântanos, o que a gente chama de Encontro. E o que eu acho é que vamos mandar um grupo de resgate, depois que ouvirmos o que os outros gípcios sabem, depois que juntarmos nossos conhecimentos. É o que eu faria, se fosse o John Faa. — Quem é John Faa? — O rei dos gípcios. — E vocês vão mesmo salvar as crianças? E quanto ao Roger? — Quem é Roger? — O ajudante de cozinha da Faculdade Jordan. Ele foi levado no mesmo dia que o Billy, na véspera de eu vir embora com a Sra. Coulter. Aposto que se eu fosse presa ele ia me salvar. Se vocês vão salvar o Billy, eu quero ir também e salvar o Roger. “E o tio Asriel também”, ela pensou, mas não falou sobre isso. 7 JOHN FAA AGORA que tinha uma missão pela frente, Lyra se sentia muito melhor. Ajudar a Sra. Coulter tinha sido muito bom, mas Pantalaimon tinha razão: ela não estava trabalhando de verdade, era apenas um bichinho de estimação. No barco gípcio, havia trabalho de verdade a fazer, e a Mãe Costa fazia com que ela trabalhasse: Lyra limpava e varria, descascava batatas e fazia chá, lubrificava os rolamentos do eixo da hélice, mantinha limpa a grade protetora da hélice, lavava pratos, abria comportas, amarrava o barco nos trapiches, e em poucos dias estava tão à vontade nessa vida nova como se tivesse nascido gípcia. O que ela não percebia era que os Costa estavam o tempo todo alertas, observando se as pessoas nas margens demonstravam sinais de interesse em Lyra. Embora não tivesse consciência disso, ela era importante, e a Sra. Coulter e o Conselho de Oblação certamente estariam procurando por ela em toda parte. Realmente, Tony ouviu, nas fofocas dos bares ao longo do caminho, que a polícia estava revistando casas, fazendas, canteiros de obras e fábricas sem qualquer explicação, embora houvesse um boato de que estavam procurando uma menina sumida. E isso era estranho, considerando que tantas crianças tinham sumido sem terem sido procuradas. Tanto os gípcios quanto as pessoas de terra estavam ficando cada vez mais nervosos e agitados. E havia outra razão para o interesse dos Costa em Lyra, mas ela só saberia disso alguns dias depois. Assim, mantinham a menina na cabine sempre que passavam pela casa de um guardador de comporta ou por um porto de canal, ou onde quer que pudesse haver gente. Uma vez passaram por uma cidade onde a polícia estava revistando todos os barcos que vinham pelo canal, prendendo o trânsito em ambas as direções. Mas os Costa sabiam como enfrentar esse tipo de coisa: havia um compartimento secreto debaixo da cama de Mãe Costa, onde Lyra ficou apertada durante duas horas, enquanto a polícia percorria o barco de uma ponta a outra, inutilmente. — Mas por que os dimons deles não me encontraram? — ela perguntou depois. Mamãe mostrou o forro do esconderijo: cedro, que tinha um efeito sonífero nos dimons; e era verdade, pois Pantalaimon tinha passado o tempo todo dormindo tranquilamente junto à cabeça de Lyra. Lentamente, com muitas paradas e muitos desvios, o barco dos Costa se aproximava dos Pântanos, aquela vasta extensão nunca inteiramente desbravada, com céus imensos e pântanos Alguém está levando essas crianças. É verdade que os da terra também estão perdendo crianças. Nesse ponto nossa situação não é muito diferente. Fez uma pausa e continuou: — Ora, andam falando de uma criança e de uma recompensa. Eis a verdade, para acabar com as fofocas: o nome da criança é Lyra Belacqua, e ela está sendo procurada pela polícia terrestre. Há uma recompensa de mil soberanos para quem entregar a garota. Ela é uma criança dos terrestres, está sob os nossos cuidados e assim vai continuar. Qualquer pessoa que se sentir tentada por esses mil soberanos é melhor que vá encontrar um lugar para se esconder que não seja nem na terra, nem na água. Não vamos entregar a criança. Lyra sentiu que estava ficando vermelha desde a raiz dos cabelos até a sola do pé; Pantalaimon virou uma mariposa marrom para se esconder. Todos os olhos estavam voltados para eles, e ela só conseguiu olhar para Mãe Costa em busca de segurança. Mas John Faa estava falando novamente: — Por mais que a gente converse, não vai mudar nada. Se quisermos mudar as coisas, vamos ter que agir. Eis mais um fato para vocês: os Gobblers, esses ladrões de crianças, estão levando seus prisioneiros para uma cidade no extremo Norte, bem lá dentro da terra das trevas. Não sei o que fazem com elas lá. Algumas pessoas dizem que matam, outras dizem outra coisa. Não sabemos. O que sabemos é que eles fazem isso com a ajuda da polícia terrestre e dos padres. Todos os poderes em terra estão ajudando. Não esqueçam disso: eles sabem o que está acontecendo e ajudam sempre que podem. Depois de outra pausa, ele continuou: — Então o que estou propondo não é fácil. Preciso da autorização de vocês. Estou propondo que a gente mande um bando de guerreiros para o Norte para libertar as crianças e trazer todas de volta vivas. Estou propondo que a gente use o nosso ouro e toda a esperteza e a coragem que conseguirmos juntar. Sim, Raymond van Gerrit? Um homem na plateia havia levantado a mão, e John Faa se sentou para deixá-lo falar. — Com licença, Lorde Faa. Lá tem crianças terrestres também, além das gípcias. Está dizendo que a gente vai salvar essas também? John Faa ficou de pé para responder. — Raymond, você está dizendo que a gente devia passar por todo tipo de perigo para chegar a um grupinho de crianças assustadas e então dizer para algumas delas que elas vão voltar para casa e dizer para as outras que elas têm que ficar? Não, você é bondoso demais para isso. Bem, temos a aprovação de todos, meus amigos? A pergunta pegou todo mundo de surpresa, pois houve um instante de hesitação; mas então um rugido encheu o salão, e as pessoas começaram a bater palmas de braços estendidos, sacudir o punho fechado, levantar a voz num clamor excitado. As traves do Zaal estremeceram, e de seus poleiros lá em cima na escuridão um bando de pássaros que dormiam despertaram apavorados e bateram asas, provocando uma pequena precipitação de poeira. John Faa deixou o clamor prosseguir por um minuto, depois ergueu a mão pedindo silêncio. — Vai levar algum tempo para organizar isso tudo. Quero que os chefes das famílias façam uma coleta e reúnam homens. Tornaremos a nos reunir daqui a três dias. Enquanto isso, vou conversar com a criança e com Farder Coram, e fazer um plano para apresentar a vocês. Boa noite para todos. Sua presença forte, simples e imponente teve o poder de acalmar a multidão. As pessoas começaram a sair pelos grandes portões para o frio da noite, voltando para seus barcos ou indo encher os bares do pequeno povoado. Lyra perguntou a Mãe Costa: — Quem são os outros homens no tablado? — Os chefes das seis famílias, e o outro homem é Farder Coram. Era fácil entender o que ela queria dizer com “o outro homem”, porque ele era o mais idoso ali. Caminhava com uma bengala e durante todo o tempo que estivera sentado atrás de John Faa ele tremera como se tivesse febre. — Venha, é melhor levar você para cumprimentar John Faa. Você deve chamá-lo de Lorde Faa. Não sei o que ele vai perguntar, mas trate de dizer a verdade. Pantalaimon era um pardal agora, cheio de curiosidade, empoleirado no ombro de Lyra, as garras cravadas no casaco de pele de lobo, enquanto ela acompanhava Tony através da multidão até o tablado. Foi ele que a suspendeu e colocou em cima do tablado. Sentindo que todos que ainda estavam no salão olhavam para ela, e consciente daqueles mil soberanos que de repente ela passara a valer, Lyra ficou vermelha e hesitou. Pantalaimon saltou para o colo dela e se transformou num gato-do-mato, sibilando baixinho enquanto olhava em volta com expressão vigilante. Lyra sentiu um empurrão e caminhou na direção de John Faa. Ele era sério, enorme, sem expressão no rosto, era mais como uma coluna de pedra do que um homem, mas se abaixou e estendeu a mão para ela apertar. Quando ela colocou a mão na dele, sua mãozinha quase desapareceu. — Seja bem-vinda, Lyra — disse ele. De perto ela sentia a voz dele ressoar como a própria terra. Teria ficado amedrontada se não fosse por Pantalaimon, e pelo fato de que a expressão pétrea de John Faa tinha se amenizado um pouco. Ele estava sendo delicado com ela. — Obrigada, Lorde Faa — ela respondeu. — Agora venha à sala das conversas e vamos ter uma conversa — disse John Faa. — Estão alimentando você direito, os Costa? — Ah, estão, sim. Comemos enguias no jantar. — As verdadeiras enguias dos Pântanos, eu imagino. A sala das conversas era um lugar confortável, com uma grande lareira acesa, prateleiras carregadas de prata e porcelana e uma mesa pesada escurecida pelos anos, tendo em volta 12 cadeiras. Os outros homens no tablado não estavam ali, mas o ancião trêmulo estava. John Faa o ajudou a se sentar. — Agora você se sente aqui à minha direita — John Faa disse a Lyra. Ele se sentou à cabeceira, e Lyra ficou bem em frente a Farder Coram. Sentia um pouco de medo do rosto encaveirado e do tremor contínuo dele. O dimon dele era uma linda gata com as cores do outono, enorme, que atravessou a mesa com andar elegante, de cauda erguida, e examinou Pantalaimon, encostando o focinho no dele antes de se acomodar no colo de Farder Coram, entrecerrar os olhos e começar a ronronar baixinho. Uma mulher que Lyra não tinha notado saiu das sombras com uma bandeja cheia de copos que deixou junto a John Faa, fez uma leve reverência e saiu. John Faa serviu pequenos cálices de aguardente de cereais de um frasco de pedra para si mesmo e para Farder Coram, e vinho para Lyra. — Quer dizer, Lyra, que você fugiu — disse John Faa. — Foi. — E quem era a dama de quem você fugiu? — O nome dela é Sra. Coulter. E eu achava que ela era boa, mas descobri que ela é dos Gobblers. Ouvi alguém dizendo o que os Gobblers eram, eles eram chamados de Conselho Geral de Oblação, e ela estava encarregada de tudo, era tudo ideia dela. E todos eles estavam planejando uma coisa, sei lá o que era, só sei que iam me fazer ajudar a pegar as crianças para ela. Mas eles não sabiam... — O que eles não sabiam? — Bom, primeiro, não sabiam que eu conhecia umas crianças que eles roubaram. Meu amigo Roger, que era ajudante de cozinha na Jordan, e Billy Costa, e uma menina do Mercado Coberto em Oxford. E outra coisa... o meu tio, sabe, o Lorde Asriel, eu ouvi quando falaram das viagens dele para o Norte, e não acho que ele tenha alguma coisa a ver com os Gobblers. Porque eu espionei o Reitor e os Catedráticos da Jordan, sabe, me escondi na Sala Privativa onde ninguém pode entrar além deles, e ouvi quando ele contou a todos sobre a expedição para o Norte, e o Pó que ele viu, e ele trouxe de volta a cabeça de Stanislaus Grumman, os tártaros tinham feito um buraco nela. E agora os Gobblers prenderam ele em algum lugar. Os ursos de armadura estão vigiando ele. E eu quero ir salvar ele. Ali sentada, pequenina contra o encosto alto da cadeira entalhada, ela parecia feroz e decidida. Os dois anciãos não conseguiram reprimir um sorriso, mas, enquanto o sorriso de Farder Coram era uma expressão hesitante, rica e complicada que tremulou pelo seu rosto como um raio de sol perseguindo sombras num dia ventoso de final de inverno, o sorriso de John Faa era lento, cálido, simples e bondoso. — É melhor você nos contar o que ouviu seu tio dizer naquela noite — pediu John Faa. — Não deixe nada de fora, está ouvindo? Conte tudo para nós. Lyra assim fez, mais lentamente do que tinha contado aos Costa, porém com mais franqueza; tinha medo de John Faa, e o que mais temia nele era a bondade. Quando ela terminou, Farder Coram falou pela primeira vez. Tinha a voz rica e musical, com tantos tons quantas eram as cores do pelo de seu dimon. — Esse Pó, eles alguma vez usaram outro nome para ele, Lyra? — Não, só Pó. A Sra. Coulter me contou o que era, partículas elementares, foi o que ela falou. — E eles acham que fazendo alguma coisa com crianças eles vão conseguir descobrir mais sobre isso? — É. Mas não sei o que é. Meu tio... Esqueci de contar uma coisa. Quando ele estava nós, gípcios, somos pouco considerados pela lei. O tribunal decidiu que você seria colocada num Convento, e assim você foi para as Irmãs da Obediência em Watlington. Você não se lembra. “Mas Lorde Asriel não permitiu isso. Ele odiava abades, monges e freiras, e sendo um homem impulsivo, ele um dia apareceu e levou você embora de lá. Não para cuidar ele mesmo, nem para dar aos gípcios; levou você para a Faculdade Jordan e desafiou a lei a tirar você de lá. “Bem, a lei deixou as coisas por isso mesmo. Lorde Asriel voltou para as suas explorações, e você cresceu na Faculdade Jordan. A única coisa que ele, seu pai, disse, a única condição que impôs, foi que sua mãe não podia visitar você. Se alguma vez tentasse, teria que ser impedida, e ele teria que ser informado, porque toda a raiva que havia em sua natureza tinha se voltado contra ela. O Reitor prometeu fazer isso. E o tempo passou. “Então começou toda essa aflição por causa do Pó. E no país inteiro, no mundo inteiro, sábios e sábias começaram também a se preocupar. Para nós, gípcios, isso não tinha a menor importância, até que começaram a levar nossas crianças. Foi quando começamos a nos interessar. E temos ligações em lugares que você nem imaginaria, inclusive na Faculdade Jordan. Você não sabia, mas havia uma pessoa tomando conta de você e nos contando tudo desde que você foi para lá. Porque temos interesse em você, e aquela mulher que a criou, ela nunca deixou de se preocupar com você.” — Quem é que tomava conta de mim? — Lyra quis saber. Ela estava se sentindo imensamente importante e estranhava que os seus atos pudessem preocupar pessoas tão afastadas dela. — Era um criado da cozinha. Bernie Johansen, o confeiteiro. Ele é meio gípcio. Você não sabia disso, aposto. Bernie era um homem bondoso, solitário, uma das raras pessoas que têm o dimon do mesmo sexo. Foi com Bernie que ela havia gritado em desespero quando Roger tinha sido levado. E Bernie contava tudo aos gípcios! Ela ficou impressionada. John Faa continuou: — Bem, nós ouvimos dizer que você ia sair da Faculdade Jordan, e que nessa mesma ocasião Lorde Asriel estava preso e não poderia impedir. E nos lembramos do que ele dissera ao Reitor para jamais fazer, e nos lembramos que o homem com quem sua mãe tinha se casado, o tal político que Lorde Asriel matou, se chamava Edward Coulter. — A Sra. Coulter... — disse Lyra, sem querer acreditar. — Ela não é a minha mãe, é? — É, sim. E se o seu pai estivesse livre, ela jamais teria a ousadia de desafiá-lo, e você ainda estaria na Jordan sem saber de nada. Mas o que o Reitor pretendia, deixando você ir embora, é um mistério que não consigo explicar. Ele estava encarregado de tomar conta de você. Só posso imaginar que ela tenha algum poder sobre ele. Lyra entendeu de repente o curioso comportamento do Reitor na manhã da sua partida. — Mas ele não queria... — ela começou, tentando se lembrar exatamente. — Ele... ele mandou me chamar de manhã bem cedo, e eu não podia contar à Sra. Coulter... era como se ele quisesse me proteger da Sra. Coulter... Ela se interrompeu e olhou atentamente para os dois homens; então resolveu contar toda a verdade sobre a Sala Privativa. — Sabem, tem outra coisa. Naquela noite que me escondi na Sala Privativa, vi o Reitor tentar envenenar Lorde Asriel. Vi quando ele colocou um pozinho no vinho, e eu contei ao meu tio e ele derrubou a garrafa da mesa e derramou o vinho. Quer dizer que eu salvei a vida dele. Nunca entendi por que o Reitor queria envenenar Lorde Asriel, que sempre foi tão bom. Então, na manhã em que fui embora, ele me chamou cedinho à sala das conversas, eu tive que ir escondido para que ninguém ficasse sabendo, e ele disse... — Lyra se concentrou para tentar recordar exatamente o que o Reitor tinha dito, mas não adiantou. Ela sacudiu a cabeça. — A única coisa que consegui entender foi que ele me deu uma coisa que eu tinha que esconder dela, da Sra. Coulter. Acho que não tem problema contar para vocês... Lyra enfiou a mão no bolso do casaco de pele de lobo e tirou o embrulho de veludo. Ela o colocou sobre a mesa e sentiu sobre ele, como um holofote, a curiosidade simples e sólida de John Faa e a inteligência cintilante de Farder Coram. Quando ela desembrulhou o aletiômetro, foi Farder Coram quem falou primeiro: — Nunca pensei que ia tornar a ver um desses. É um leitor de símbolos. Ele lhe contou alguma coisa sobre isso, filha? — Não. Só disse que eu ia ter que descobrir sozinha como fazer isso funcionar. E chamou de aletiômetro. — Que quer dizer isso? — John Faa perguntou, se voltando para o companheiro. — Acho que vem do grego alétheia, que quer dizer “verdade”. É um medidor de verdade. E você descobriu como é que se usa? — perguntou à menina. — Não. Consigo fazer os três ponteiros menores apontarem para figuras diferentes, mas não consigo controlar o ponteiro grande. Ele se mexe para toda parte. A não ser às vezes, é, sim, às vezes, quando estou bem concentrada, consigo fazer o ponteiro grande ir para um lado ou outro só pensando. — O que ele faz, Farder Coram? E como é que se lê? — John Faa perguntou. Farder Coram segurou delicadamente o instrumento na direção do olhar forte de John Faa e disse: — Todas essas figuras ao redor da borda são símbolos, e cada um deles tem vários significados. A âncora, por exemplo: o primeiro significado dela é esperança, porque a esperança nos prende como uma âncora, de modo que a gente não cede. O segundo significado é firmeza. O terceiro significado é impedimento, ou prevenção. O quarto é o mar. E assim por diante, com dez, 12, talvez uma série infinita de significados. — E você conhece todos? — Conheço alguns, mas para ler tudo eu precisaria do livro. Já vi o livro e sei onde ele está, mas não está comigo. — Depois falaremos sobre isso; continue a explicar como se lê — pediu John Faa. — Existem esses três ponteiros que podemos controlar, e são usados para fazermos uma pergunta. Apontando para três símbolos, se pode fazer qualquer pergunta, porque cada uma tem muitos níveis. Depois de feita a pergunta, o ponteiro grande gira e aponta para outros símbolos, que darão a resposta. — Mas como ele sabe em qual nível a gente está pensando quando faz a pergunta? — John Faa quis saber. — Ah, ele sozinho não sabe. Só funciona se quem pergunta pensar nesses níveis. Primeiro é preciso conhecer todos os significados, e deve haver mais de mil. Depois tem que conseguir manter os níveis na mente sem perder a paciência, e ficar observando os movimentos do ponteiro grande. Quando ele tiver dado uma volta completa, a pessoa saberá qual é a resposta. Sei como isso funciona porque já vi um sábio em Uppsala mexendo com um desses, e foi a única vez que vi. Sabe que eles são raríssimos? — O Reitor me disse que só seis foram fabricados — Lyra contou. — Sejam quantos forem, são pouquíssimos. — E você guardou segredo da Sra. Coulter, como o Reitor pediu? — John Faa perguntou. — Guardei, sim. Mas o dimon dela, sabem, ele costumava entrar no meu quarto. E ele descobriu, eu tenho certeza. — Entendo. Bem, Lyra, não sei se algum dia vamos chegar a compreender tudo, mas tenho um palpite, nada mais que isso: Lorde Asriel encarregou o Reitor de tomar conta de você e não deixar sua mãe chegar perto. E foi o que ele fez, por mais de dez anos. Então os amigos da Sra. Coulter na Igreja ajudaram sua mãe a criar esse tal de Conselho de Oblação, ainda não sabemos com que intenção, e ela ficou tão poderosa quanto Lorde Asriel. Seus pais, os dois poderosos, os dois ambiciosos, e o Reitor da Jordan mantendo você no meio entre eles. “Bom, o Reitor tem mil coisas para cuidar; sua primeira preocupação é a faculdade e o aprendizado lá, de modo que se surgir uma ameaça, ele tem que agir contra ela. E a Igreja, ultimamente, Lyra, tem ficado mais autoritária. Criaram conselhos disso e daquilo; estão falando em reviver o Ofício da Inquisição, Deus me livre. E o Reitor tem que pisar com cuidado entre todos esses poderes. Tem que manter a Faculdade Jordan nas graças da Igreja, senão ela não vai sobreviver. “Outra preocupação do Reitor é você, minha filha. Bernie Johansen sempre foi muito claro sobre isso: o Reitor da Jordan e os outros Catedráticos amam você como se fosse filha. Fariam qualquer coisa para que você fique em segurança, não só porque prometeram a Lorde Asriel, mas por sua causa também. Então, se o Reitor entregou você à Sra. Coulter depois de prometer a Lorde Asriel que não faria isso, ele deve ter achado que você estaria mais segura com ela do que na Faculdade Jordan, apesar das aparências. E quando ele resolveu envenenar Lorde Asriel, deve ter achado que as coisas que Lorde Asriel estava fazendo iam colocar todos eles em perigo, e talvez todos nós também; talvez o mundo inteiro. Considero o Reitor um homem que tem que fazer escolhas terríveis; seja qual for a sua escolha, isso vai causar dano; mas, talvez, se ele fizer a coisa certa, o dano será um pouco menor do que se ele escolher de maneira errada. Deus me livre de ter que fazer esse tipo de escolha. “E quando as coisas chegaram ao ponto de ter que deixar você partir, ele lhe deu o leitor de símbolos e pediu que você o guardasse. Fico me perguntando o que ele pretendia que você fizesse com o instrumento; como você não sabe fazer a coisa funcionar, não entendo o que ele estava querendo.” — Ele disse que tio Asriel deu o aletiômetro de presente à Faculdade Jordan há muitos anos — Lyra contou. — Ia dizer mais alguma coisa, mas bateram na porta, e ele teve que 8 FRUSTRAÇÃO LYRA tinha que digerir aquela nova história da sua vida, e para isso precisava de tempo. Ver Lorde Asriel como seu pai era uma coisa, mas aceitar a Sra. Coulter como sua mãe não era assim tão fácil. Alguns meses antes, ela teria gostado, sabia disso também, e ficava confusa. Mas, sendo Lyra, não se preocupou muito tempo com isso, pois havia a cidade do Pântano para explorar e muitas crianças gípcias para impressionar. Antes de passado o prazo de três dias, ela era especialista — pelo menos se considerava — em manejar a vara que impulsionava os barcos e tinha reunido um bando de crianças contando histórias de seu pai poderoso que fora preso injustamente. — E então uma noite o Embaixador da Turquia foi convidado para jantar na Jordan. E ele tinha ordens do próprio Sultão para matar o meu pai, certo, e tinha no dedo um anel com uma pedra oca cheia de veneno. E quando chegou o vinho, ele esticou o braço por cima da taça do meu pai e deixou o veneno cair dentro dela. Fez isso tão depressa que ninguém viu, mas... — Que tipo de veneno? — quis saber uma menina de rosto magro. — Veneno de uma serpente turca muito especial, que eles atraem tocando flauta e depois jogam em cima uma esponja encharcada de mel; a serpente morde e não consegue desprender os dentes, eles então tiram o veneno dela. De qualquer maneira, meu pai tinha visto o que o turco fez e disse: “Senhores, quero fazer um brinde pela amizade entre a Faculdade Jordan e a Faculdade de Izmir” (que era a faculdade do Embaixador turco). “E para mostrar nossa boa vontade de sermos amigos, vamos trocar de taças, cada um bebendo o vinho do outro.” O Embaixador ficou enrascado, porque não podia recusar sem cometer uma ofensa mortal, e não podia beber porque sabia que o vinho estava envenenado. Ele ficou pálido e desmaiou ali mesmo. Quando voltou a si, eles estavam ainda todos sentados, esperando e olhando para ele. E então ele tinha que beber o veneno ou então confessar tudo. — Então que foi que ele fez? — Ele bebeu. Levou cinco minutos inteiros para morrer, e sofreu o tempo todo. — Você viu isso tudo acontecer? — Não, porque meninas não têm permissão para se sentar na Mesa Principal. Mas vi o corpo dele, depois. A pele estava toda enrugada, como uma maçã velha, e os olhos tinham saltado. Tiveram que enfiar eles para dentro... E assim por diante. Enquanto isso, na periferia da região dos Pântanos, policiais batiam nas portas, revistavam porões e latrinas, inspecionavam documentos e interrogavam todos que dissessem ter visto uma menininha loura. Em Oxford, a busca foi ainda mais severa: vasculharam a Faculdade Jordan desde o mais empoeirado quarto de entulhos até o porão mais escuro, e fizeram o mesmo com Gabriel e St. Michael’s, até que os reitores de todas as faculdades fizeram um protesto coletivo invocando seus direitos. A única ideia que Lyra tinha de que a procuravam era o incessante zumbido dos motores a gás das aeronaves cruzando o céu. Elas não eram visíveis porque as nuvens estavam baixas, e pelo regulamento as aeronaves tinham que manter uma certa altura acima da região do Pântano, mas quem sabia que instrumentos de espionagem elas poderiam estar carregando? Era melhor ir se esconder quando ouvia os motores, ou usar uma capa de chuva para cobrir seus cabelos louros. E ela interrogou Mãe Costa sobre cada detalhe da história do seu nascimento. Teceu esses detalhes formando uma tapeçaria mental mais clara do que as histórias que tinha inventado, e revivia vezes sem conta a fuga do casebre, o esconderijo no armário, o desafio, o choque de espadas... — Espadas? Meu Deus, garota, você está sonhando? — perguntou Mãe Costa. — O Sr. Coulter tinha uma pistola, e Lorde Asriel a tirou da mão dele e o derrubou com um único soco. Depois houve dois tiros. Não sei como você não se lembra; devia lembrar, embora fosse pequena. O primeiro tiro foi de Edward Coulter, que conseguiu pegar a arma e disparou, e o segundo foi de Lorde Asriel, que tornou a arrancar a arma do outro e atirou bem no meio dos olhos dele, espalhando os miolos. Então, com a maior calma, ele disse: “Pode sair, Sra. Costa, e traga o bebê”, porque você estava berrando tanto, você e esse dimon; ele pegou você, brincou com você e carregou você nos ombros de um lado para o outro, com ótimo humor, com o morto estendido ali, e me pediu para trazer vinho e para limpar o chão. No final da quarta repetição, Lyra estava firmemente convencida de que se lembrava de tudo, e até mesmo ofereceu detalhes da cor do casaco do Sr. Coulter e dos mantos e das peles penduradas no armário. Mãe Costa riu. E sempre que estava sozinha Lyra pegava o aletiômetro e ficava olhando para ele como se fosse o retrato de um namorado. Então cada imagem tinha vários significados? Por que ela não conseguiria entender todos eles? Afinal, não era filha de Lorde Asriel? Lembrando-se do que Farder Coram tinha dito, ela tentou focalizar a mente em três símbolos escolhidos ao acaso e moveu os ponteiros para cada um deles. Descobriu que, se segurasse o aletiômetro de uma certa maneira na palma das mãos e olhasse para ele de um jeito especial, meio preguiçoso (como ela chamava), o ponteiro maior começava a se movimentar. Em vez de passear pelo mostrador, ele ia de uma figura para outra. De vez em quando, parava em três delas, às vezes em duas, às vezes em cinco ou mais, e embora ela nada compreendesse, aquilo lhe dava uma calma agradável e profunda, diferente de tudo que ela conhecia. Pantalaimon ficava debruçado sobre o mostrador, às vezes em forma de gato, às vezes de rato, acompanhando o ponteiro grande com a cabeça; e, uma ou duas vezes, os dois compartilharam um vislumbre de significado que parecia como um raio de sol que tivesse atravessado as nuvens para iluminar uma majestosa silhueta de grandes montes a distância — alguma coisa muito além e jamais suspeitada. E Lyra sentia, nessas ocasiões, o mesmo arrepio que sentira durante toda a sua vida ao ouvir a palavra Norte. Assim se passaram os três dias, com muitas idas e vindas entre a grande quantidade de barcos e o Zaal. E então chegou a noite da segunda reunião do Encontro. O Salão estava mais cheio do que antes, se isso fosse possível. Lyra e os Costa chegaram a tempo de se sentar na frente, e assim que as luzes trêmulas mostraram que o Salão estava repleto, John Faa e Farder Coram apareceram na plataforma e se sentaram atrás da mesa. John Faa não precisou pedir silêncio; apenas colocou as mãos enormes sobre a mesa e olhou para a plateia, e o burburinho cessou. Ele então falou: — Bom, vocês fizeram o que eu pedi, e melhor do que eu esperava. Agora vou chamar os chefes das seis famílias para subirem aqui, entregar seu ouro e oferecer suas possibilidades. Nicholas Rokeby, você vem primeiro. Um homenzarrão de barbas pretas subiu para a plataforma e colocou sobre a mesa uma pesada sacola de couro. — Este é o nosso ouro, e nós oferecemos 38 homens. — Obrigado, Nicholas — disse John Faa. Farder Coram estava tomando notas. O primeiro homem ficou parado nos fundos da plataforma enquanto John Faa chamava o seguinte, e o seguinte; e cada um deles subia, colocava uma sacola na mesa e anunciava o número de homens que tinha para oferecer. Os Costa faziam parte da família Stefanski, e naturalmente Tony tinha sido um dos primeiros a se oferecer como voluntário. Lyra percebeu o dimon-falcão dele se mexendo de uma pata para outra e estendendo as asas enquanto o ouro dos Stefanski e 23 homens eram oferecidos a John Faa. Depois que os chefes das seis famílias tinham sido chamados, Farder Coram mostrou suas anotações a John Faa, que ficou de pé e falou para que todos ouvissem. — Amigos, conseguimos 170 homens. Agradeço a todos com muito orgulho. Quanto ao ouro, não duvido, pelo peso, que todos vocês rasparam seus cofres, e meus agradecimentos são também por isso. O que vamos fazer é o seguinte: vamos arrendar um navio e velejar para o Norte, encontrar as crianças e libertar todas elas. Pelo que sabemos, pode haver luta. Não será a primeira nem a última vez que lutamos, mas nunca tivemos que lutar com pessoas que roubam crianças, e vamos precisar ter uma esperteza fora do comum. Mas não vamos voltar sem as nossas crianças. Sim, Dirk Vries? Um homem se levantou e perguntou: — Lorde Faa, o senhor sabe por que levaram nossos filhos? — Ouvimos dizer que é um assunto teológico. Estão fazendo uma experiência, mas não sabemos qual. Para dizer a verdade a vocês, nem sequer sabemos se o que estão fazendo com elas é bom ou ruim. Mas, seja como for, eles não têm o direito de aparecer de noite e roubar criancinhas de suas casas. Sim, Raymond van Gerrit? O homem que tinha falado na primeira reunião se levantou e disse: — Essa criança, Lorde Faa, essa que o senhor disse que estava sendo procurada, essa que está agora sentada na primeira fila. Ouvi dizer que as casas de todas as pessoas na beira dos Pântanos estão sendo revistadas e reviradas de cabeça para baixo por causa dela. Ouvi
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