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O que é semiótica, Notas de estudo de Design

O QUE É SEMIÓTICA

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Compartilhado em 20/01/2010

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carlos-bonfante-7 🇧🇷

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Baixe O que é semiótica e outras Notas de estudo em PDF para Design, somente na Docsity! 1 SUMÁRIO Primeiro passos para a Semiótica................... .......................... O legado de C. S. Peirce............................................................ Para se ler o mundo como linguagem........................................ Abrir as janelas: olhar para o mundo.......................................... Para se tecer a malha dos signos ............................................. Outras fontes e caminhos........................................................... Indicações para leitura ............................................................... PRIMEIROS PASSOS PARA A SEMIÓTICA Semi-ótica — ótica pela metade? ou Simiótica — estudo dos símios? Essas são, via de regra, as primeiras traduções, a nível de brincadeira, que sempre surgem na abordagem da Semiótica. Aí, a gente tenta ser sério e diz: — "O nome Semiótica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo. Semiótica é a ciência dos signos.". Contudo, pensando esclarecer, confundimos mais as coisas, pois nosso interlocutor, com olhar de surpresa, compreende que se está querendo apenas dar um novo nome para a Astrologia. Confusão instalada, tentamos desenredar, dizendo: — "Não são os signos do zodíaco, mas signo, linguagem. A Semiótica é a ciência geral de todas as linguagens". Mas, assim, ao invés de melhorar, as coisas só pioram, pois que, então, o interlocutor, desta vez com olhar de cumplicidade — segredo desvendado —, replica: — "Ah! Agora compreendi. Não se estuda só o português, mas todas as línguas". Nesse momento, nós nos damos conta desse primordial, enorme equívoco que, de saída, já ronda a Semiótica: a confu- são entre língua e linguagem. E para deslindá-la, sabemos que temos de começar as coisas de seus começos, agarrá-las pela raiz, caso contrário, tornamo-nos presas de uma rede em cuja tessitura não nos enredamos e, por não nos termos enredado, não saberemos lê-la, traduzi-la. Aqui encontro a função deste pequeno volume sobre Semiótica: juntos perseguirmos as questões desde seus começos, para que, por fim, cheguemos a um patamar que torne possível ao meu leitor prosseguir, caso queira, livre no seu próprio caminho de investigação e de descoberta. Uma definição ou um convite? Alguns anos atrás, em um seminário sobre Semiótica, realizado em uma das cidades do Brasil, um aluno que perma- necia ainda muito curioso, apesar de já ter assistido a algumas palestras, subitamente me perguntou: — "Mas, afinal, o que é Semiótica?". Assim, de chofre, tomada de surpresa no corredor de passagem de uma sala a outra, devo ter respondido algo parecido com isto: — "Quando alguma coisa se apresenta em estado nascente, ela costuma ser frágil e delicada, campo aberto a muitas possibilidades ainda não inteiramente consu- madas e consumidas. Esse é justamente o caso da Semiótica: algo nascendo e em processo de crescimento. Esse algo é uma ciência, um território do saber e do conhecimento ainda não sedimentado, indagações e investigações em progresso. Um processo como tal não pode ser traduzido em uma única definição cabal, sob pena de se perder justo aquilo que nele vale a pena, isto é, o engajamento vivo, concreto e real no caminho da instigação e do conhecimento. Toda definição acabada é uma espécie de morte, porque, sendo fechada, mata justo a inquietação e curiosidade que nos impulsionam para as coisas que, vivas, palpitam e pulsam". Sei que, em vez de dar uma resposta direta e positiva (função que provavelmente me cabia na ocasião), estava ten- tando armar uma estratégia de sedução. Em lugar de saciar ã sua curiosidade, só queria aumentá-la. Contudo, o peso das certezas ó sempre mais forte que o das dúvidas. Recebi, por isso, uma segunda pergunta que, aliás, não era mais uma pergunta, mas uma crítica só levemente velada: — "Que impor- tância pode ter isso para nós? Nós que temos a resolver um problema muito mais. prioritário e urgente, o da miséria e da fome?". Acenei, então, mais uma vez com uma sugestão de resposta: — "Há duas espécies de fome: a da miséria do corpo, esta, mais fundamental e determinante, visto que interceptadora de quaisquer outras funções, necessidades e realizações humanas; mas há também a carência de conhecimento, este, outro tipo de fome. Nossa luta tem de ser travada sempre simultaneamente em ambas as direções. A Semiótica está rapidamente se desenvolvendo em todas as partes do mundo. Por que haveremos nós de cruzar os braços, ficando à espera dos restos de sopa científica que os outros poderão, porventura, nos deixar de sobra?" Linguagens verbais e não-verbais Antes de tudo, cumpre alertar para uma distinção neces- sária: o século XX viu nascer e está testemunhando o cresci- mento de duas ciências da linguagem. Uma delas é a Lingüís- tica, ciência da linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem. As principais relações funda- mentais de semelhança e oposição entre ambas são problemas que tentaremos ir focalizando oportunamente no decorrer do percurso que iremos efetuar neste livro. Como ponto de partida, porém, que tentemos desatar o nó de um equívoco de base: a diferença entre língua e lingua- gem em conexão com a diferença, quê buscaremos discriminar, entre linguagens verbais e não-verbais. Tão natural e evidente, tão profundamente integrado ao nosso próprio ser é o uso da língua que falamos, e da qual fazemos uso para escrever — língua nativa, materna ou pátria, como costuma ser chamada —, que tendemos a nos desaper- ceber de que esta não é a única e exclusiva forma de 01 03 05 07 11 15 18 2 linguagem que somos capazes de produzir, criar, reproduzir, transformar e consumir, ou seja, ver-ouvir-ler para que possamos nos comunicar uns com os outros. É tal a distração que a aparente dominância da língua provoca em nós que, na maior parte das vezes, não chegamos a tomar consciência de que o nosso estar-no-mundo, como indivíduos sociais que somos, é mediado por uma rede intrin- cada e plural de linguagem, isto é, que nos comunicamos também através da leitura e/ou produção de formas, volumes, massas, interações de forças, movimentos; que somos também leitores e/ou produtores de dimensões e direções de linhas, traços, cores... Enfim, também nos comunicamos e nos orientamos através de imagens, gráficos, sinais, setas, núme- ros, luzes...Através de objetos, sons musicais, gestos, expres- sões, cheiro e tato, através do olhar, do sentir e do apalpar. Somos uma espécie animal tão complexa quanto são comple- xas e plurais as linguagens que nos constituem como seres simbólicos, isto é, seres de linguagem. Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e meio de comunicação privilegia- dos, é muito intensamente devida a um condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de conhecimento, de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela língua, na sua manifestação como linguagem verbal oral ou escrita. O saber analítico, que essa linguagem permite, conduziu à legitimação consensual e insti- tucional de que esse é o saber de primeira ordem, em detrimento e relegando para uma segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, que as outras linguagens, as não-verbais, possibilitam. No entanto, em todos os tempos, grupos humanos constituídos sempre recorreram a modos de expressão, de manifestação de sentido e de comunicação sociais outros e diversos da linguagem verbal, desde os desenhos nas grutas de Lascaux, os rituais de tribos "primitivas", danças, músicas, cerimoniais e jogos, até as produções de arquitetura e de objetos, além das formas de criação de linguagem que viemos a chamar de arte: desenhos, pinturas, esculturas, poética, cenografia etc. E, quando consideramos a linguagem verbal escrita, esta também não conheceu apenas o modo de codificação alfabética criado e estabelecido no Ocidente a partir dos gregos. Há outras formas de codificação escrita, diferentes da linguagem alfabeticamente articulada, tais como hieróglifos, pictogramas, ideogramas, formas estas que se limitam com o desenho. Em síntese: existe uma linguagem verbal, linguagem de sons que veiculam conceitos e que se articulam no aparelho fonador, sons estes que, no Ocidente, receberam uma tradução visual alfabética (linguagem escrita), mas existe simulta- neamente uma enorme variedade de outras linguagens que também se constituem em sistemas sociais e históricos de representação do mundo. Portanto, quando dizemos linguagem, queremos nos re- ferir a uma gama incrivelmente intrincada de formas sociais de comunicação e de significação quê inclui a linguagem verbal articulada, mas absorve também, inclusive, a linguagem dos surdos-mudos, o sistema codificado da moda, da culinária e tantos outros. Enfim: todos os sistemas de produção de sentido aos quais o desenvolvimento dos meios de reprodução de linguagem propiciam hoje uma enorme difusão. De dois séculos para cá (pós-revolução industrial), as invenções de máquinas capazes de produzir, armazenar e difundir linguagens {a fotografia, o cinema, os meios de impres- são gráfica, o rádio, a TV, as fitas magnéticas etc.) povoaram nosso cotidiano com mensagens e informações que nos espreitam e nos esperam. Para termos uma idéia das transmu- tações que estão se operando no mundo da linguagem, basta lembrar que, ao simples apertar de botões, imagens, sons, palavras (a novela das 8, um jogo de futebol, um debate político...) invadem nossa casa e a ela chegam mais ou menos do mesmo modo que chegam a água, o gás ou a luz. E claro que no sistema social em que vivemos estamos fadados a apenas receber linguagens que não ajudamos a produzir, que somos bombardeados por mensagens que ser- vem à inculcação de valores que se prestam ao jogo de interesses dos proprietários dos meios de produção de lingua- gem e não aos usuários. Contudo, a discussão dessas contra- dições seria assunto para um outro livro que, aliás, já consta desta coleção Primeiros Passos (cf. O que é Indústria Cultural). Assim, que passemos aqui para a observação mais cui- dadosa da extensão que um conceito lato de linguagem pode cobrir. Considerando-se que todo fenômeno de cultura só funciona culturalmente porque é também um fenômeno de comunicação, e considerando-se que esses fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, pode-se concluir que todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade ou prática social constituem-se como práticas sígnificantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido. Iremos, contudo, mais além; de todas as aparências sensíveis, o homem — na sua inquieta indagação para a compreensão dos fenômenos — desvela significações. E no homem e pelo homem que se opera o processo de alteração dos sinais (qualquer estímulo emitido pelos objetos do mundo) em signos ou linguagens {produtos da consciência). Nessa medida, o termo linguagem se estende aos sistemas aparentemente mais inumanos como as linguagens binárias de que as máquinas se utilizam para se comunicar entre si e com o homem (a linguagem do computador, por exemplo}, até tudo aquilo que, na natureza, fala ao homem e é sentido como linguagem. Haverá, assim, a linguagem das flores, dos ventos, dos ruídos, dos sinais de energia vital emitidos pelo corpo e, até mesmo, a linguagem do silêncio. Isso tudo, sem falar do sonho que, desde Freud, já sabemos que também se estrutura como linguagem. Até onde vai a Semiótica Aqui tocamos um ponto que nos permite retornar à questão de onde partimos. As linguagens estão no mundo e nós estamos na linguagem, A Semiótica é a ciência que tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido. Seu campo de indagação é tão vasto que chega a cobrir o que chamamos de vida, visto que, desde a descoberta da estrutura química do código genético, nos anos 50, aquilo que chamamos de vida não é senão uma espécie de linguagem, isto é, a própria noção de vida depende da existência de informação no sistema biológico. Sem informação não há mensagem, não há planejamento, não há reprodução, não há processo e mecanismo de controle e comando. No caso da vida, estes são necessariamente ligados a uma linguagem, a uma ordenação obtida a partir de um compartimento armazenador da informação como a DNA (substância universal portadora do código genético). Portanto, os dois ingredientes fundamentais da vida são: energia (que torna possíveis os pro- cessos dinâmicos) e informação (que comanda, controla, co- ordena, reproduz e, eventualmente, modifica e adapta o uso da energia). Sem a linguagem seria impossível a vida, pelo menos como a conceituamos agora: algo que se reproduz, que tem um comportamento esperado e certas propensões. Nessa medida, não apenas a vida é uma espécie de linguagem, mas também todos os sistemas e formas de lingua- gem tendem a se comportar como sistemas vivos, ou seja, eles reproduzem, se readaptam, se transformam e se regeneram como as coisas vivas. Caracterizado o campo de abrangência da Semiótica, podemos repetir que ele é vasto, mas não indefinido. O que se 5 PARA SE LER O MUNDO COMO LINGUAGEM Embora Peirce considerasse toda e qualquer produção, realização e expressão humana como sendo uma questão semiótica, isto não significa que a ciência semiótica tenha sido por ele concebida como uma ciência onipotente, ou toda suficiente, visto que, para ele, qualquer todo suficiente é neces- sariamente insuficiente. Nessa medida, dentro do conjunto do seu sistema filosó- fico, a Semiótica é apenas uma parte e, como tal, só se toma explicável e definível em função desse conjunto. Além disso, o próprio sistema filosófico por ele criado localiza-se como parte de um sistema ainda maior, tal como aparece na sua gigantes- ca arquitetura classificatória das diferentes ciências e das rela- ções que elas mantêm entre si. Assim sendo, há que se considerar primeiramente três tipos de ciência: 1) ciências da descoberta, 2) ciências da digestão (as que digerem e divulgam essas descobertas, criando a partir delas uma nova filosofia da ciência) e 3) ciências aplicadas. As ciências da descoberta são: Matemática, Filosofia e Ideoscopia ou ciências especiais. Esta última divide- se em dois ramos: ciências físicas e ciências psíquicas. Entretanto, este termo "psíquico" tem, na acepção peirceana, um caráter tão vasto que, para evitarmos maiores equívocos, melhor seria tomá-lo aqui como sinônimo de ciências humanas. Na sua classificação, os dois ramos científicos (físicos e psíquicos) vão se desmembrando, então, em uma enorme quantidade de ciências, desde as ciências mais gerais às classificatórias, passando pelas descritivas até chegar às ciências aplicadas. Evidentemente, não vem ao caso entrarmos aqui nos meandros dessas divisões. Cumpre, apenas, localizarmos o lugar do seu sistema filosófico nessa arquitetura maior e, dentro do seu sistema, o lugar ocupado pela Semiótica. Sua construção filosófica, concebida como ciência e sob o caráter das ciências da descoberta, localiza-se entre a Matemática e a Ideoscopia. Apesar de serem essas três as mais abstratas de todas as ciências, um nível de generalidade tal que as torne capazes de fornecer princípios para as ciências mais particulares, tratam-se, no entanto, todas elas, inclusive a Matemática, de ciências da observação. A Matemática é observativa na medida em que monta construções na imaginação de acordo com preceitos abstratos, passando, então, a observar esses objetos imaginários para neles encontrar relações entre partes que não estavam especificadas no preceito da construção. No entanto, a Matemática estuda o que é e o que não é logicamente possível, sem se fazer responsável pela existência atual desse possível. Nesse sentido, é a ciência que fornece subsídios e encontra aplicação em todas as outras ciências, inclusive a Fenomenologia e a Lógica. A Filosofia, por seu turno, é também uma ciência positiva, não no sentido que comumente damos a positivismo, visto que segundo Peirce os positivistas são os metafísicos modernos, mas no sentido de se descobrir o que ó realmente verdadeiro. Ela se limita, porém, ao tanto de verdade que pode ser inferido da experiência comum. É uma ciência fundamentalmente observativa pois que visa colocar em ordem aquelas observações que estão ao aberto para todo homem, todo dia e hora. A diferença dessas duas primeiras ciências (Matemática e Filosofia) em relação às ciências especiais reside no fato de que estas últimas requerem instrumentos e métodos especiais para que suas observações sejam levadas a efeito. Os métodos de investigação de que elas se utilizam, queiram ou não, são sempre importados de princípios matemáticos e filosóficos, especialmente dos lógicos. O universo está em expansão Alertamos neste momento para uma questão. Peirce era um evolucionista de tipo muito especial, nem mecanicista tal como Spencer, nem estritamente materialista, pois, para ele, "materialismo sem idealismo é cego: idealismo sem materialismo é vazio". Isto não significa que professasse, por outro lado, um evolucionismo idealista. Ele próprio se autodenominou idealista objetivo. O que Peirce na realidade postulava, como base do seu pensamento, era a teoria do crescimento contínuo no universo e na mente humana. "O universo está em expansão", dizia ele, "onde mais poderia ele crescer senão na cabeça dos homens?". Esse crescimento contínuo se alicerça, contudo, em bases lógicas radicalmente dialéticas, visto que o pensamento humano gera produtos concretos capazes de afetar e transformar materialmente o universo, ao mesmo tempo que são por ele afetados. Segundo Peirce, não sendo nem as leis da natureza absolutas, mas evolutivas, daí o caráter estatístico dessas leis, os princípios científicos, por seu turno, não chegam a ser senão fórmulas rigorosas, mas sempre provisórias, no sentido de estarem sujeitas a mudanças contínuas. Não há, portanto, princípios absolutos, nem na Matemática. Cada investigador individual, por mais sistemático e rigoroso que possa ser seu pensamento, é essencialmente falível. Daí Peirce ter batizado sua teoria de Falibilismo. Isso nos dá uma idéia de sua concepção da ciência e Filosofia como processos que amadurecem gradualmente, produtos da mente coletiva que obedecem a leis de desenvolvimento interno, ao mesmo tempo que respondem a eventos externos (novas idéias, novas experiências, novas observações), e que dependem, inclusive, do modo de vida, lugar e tempo nos quais o investigador vive. O próprio sistema peirceano assim cresceu. Todo o passado filosófico e científico era por ele tomado como imprescindível material de trabalho. Sua arquitetura teórica não foi, desse modo, construída a priori, mas só chegou a ser divisada depois de mais de trinta anos de infatigáveis investigações. Ouçamos Peirce: "O desenvolvimento das minhas idéias tem sido a indústria de trinta anos. Eu não sabia se um dia chegaria a publicá-las. Seu amadurecimento parecia tão vagaroso. Mas o tempo da colheita chegou, afinal. Em meio a um contrito falibilismo, combinado com uma elevada fé na realidade do conhecimento e um intenso desejo de descobrir as coisas, é que toda a minha filosofia parece ter crescido". Isso foi pronunciado aos 58 anos de idade, momento em que Peirce se deu conta da importância de algumas de suas descobertas para a história da filosofia. Só então seus extensos trabalhos sobre lógica, matemática, teoria do conhecimento, pragmatismo, doutrina dos signos, metafísica científica etc. apareceram a ele como constitutivos da construção de um sistema consistente e coerente. Só então passou a estruturar sua classificação das ciências na qual seu sistema se encaixa. Mas também, foi apenas a partir da localização da Semiótica, no conjunto do seu próprio sistema, isto é, a partir da posição de dependência que esta mantém em relação às ciências que devem necessariamente antecedê-la, que Peirce passou a pôr em ordem suas formulações anteriores e a dar prosseguimento a sua doutrina formal de todos os tipos possíveis de signos, ou seja, a Lógica ou Semiótica. Uma arquitetura filosófica 6 Vejamos, primeiramente, num gráfico a configuração do edifício filosófico peirceano: I— Fenomenologia II — Ciências Normáticas 1 — Estética 2 — Ética 3 — Semiótica ou Lógica 3.1 — Gramática pura 3.2 — Lógica Crítica 3.3. — Retórica pura III —Metafísica Embora o termo fenomenologia ou phaneroscopia, con- forme Peirce preferia chamar, só tenha sido por ele empregado por volta de 1902, quando da construção arquitetônica de seu sistema, a preocupação fenomenológica constituiu-se na base fundamental de toda sua filosofia, e já comparecia como inves- tigação primordial desde seus escritos em 1867. Para ele, a primeira instância de um trabalho filosófico é a fenomenológica. A tarefa precípua de um filósofo é a de criar a Doutrina das Categorias, que tem por função realizar a mais radical análise de todas as experiências possíveis. Insatisfeito com as categorias aristotélicas, consideradas como categorias mais lingüísticas do que lógicas, profundamente influenciado por Kant, mas considerando suas categorias, extraídas da análise lógica da proposição, como sendo materiais e particulares e não formais e universais, Peirce dedicou grande parte de sua existência à elaboração, aperfei- çoamento e ampliação do campo de aplicação das suas cate- gorias universais, categorias estas que não brotaram nem de pressupostos lógicos, nem da língua, mas do exame atento e perscrutante da "experiência" ela mesma. Com Hegel, Peirce manteve relações contraditórias. Desprezava seu idealismo absoluto ao mesmo tempo que o considerava "o mais grandioso dentre todos os filósofos que já existiram". Via as categorias hegelianas como puramente ma- teriais e também particulares mas enxergava, nos três estágios do pensamento formulados por Hegel, profundas semelhanças com suas categorias fenomenológicas universais. Isso não pode nos levar a apressadamente afirmar, con- tudo, que o pensamento peirceano tenha qualquer débito para com Hegel. É Peirce quem diz: "Embora meu método apresente uma similaridade muito geral com o de Hegel, seria histori- camente falso considerá-lo uma modificação do método hegeliano. Ele veio à luz através do estudo das categorias kantianas e não das hegelianas". Foi só depois de ter elaborado sua própria doutrina das categorias é que Peirce veio a se dar conta de suas semelhan- ças genéticas com os estágios hegelianos, o que, para ele, só servia como mais uma comprovação de que suas categorias estavam no caminho certo. Delineados esses pressupostos, voltemos à sua arquite- tura filosófica. A Fenomenologia, como base fundamental para qualquer ciência, meramente observa os fenômenos e, através da análise, postula as formas ou propriedades universais des- ses fenômenos. Devem nascer daí as categorias universais de toda e qualquer experiência e pensamento. Numa recusa cabal a qualquer julgamento avaliativo a priori, a Fenomenologia é totalmente independente das ciências normativas. É, porém, sob a base da Fenomenologia que as ciências normativas se desenvolvem obedecendo à seqüência seguinte: Estética, Ética e Semiótica ou Lógica. Tendo todas elas por função "distinguir o que deve e o que não deve ser", a Estética se define como ciência daquilo que é objetivamente admirável sem qualquer razão ulterior. É a base para a Ética ou ciência da ação ou conduta que da Estética recebe seus primeiros princípios. Sob ambas, e delas extraindo seus princípios, estrutura-se em três ramos a ciência Semiótica, teoria dos signos e do pensamento deliberado. Por fim, como última ciência desse edifício aparece a Metafísica ou ciência da realidade. Definindo realidade ou real como sendo precisamente aquilo que é de modo independente das nossas fantasias, pois que "vivemos num mundo de forças que atuam sobre nós, sendo essas forças, e não as transformações lógicas do nosso próprio pensamento, que determinam em que devemos, por fim, acreditar", fica claro por que a Metafísica comparece como resultante e não antecedente de toda sua filosofia. A Semiótica ou Lógica, por outro lado, tem por função classificar e descrever todos os tipos de signos logicamente possíveis. Isso parece dotá-la de um caráter ascendente sobre todas as ciências especiais, dado que essas ciências são linguagens. Não era assim, contudo, que Peirce a concebia. Para ele, as ciências têm de ser deixadas a cargo de seus praticantes, o que o conduz, como lógico, apenas à elucidação dos métodos e tipos de pensamento utilizados pelas diversas ciências. Como filósofo, no entanto, Peirce era muito mais ambi- cioso. Através de sua fenomenologia, pretendia gerar uma fundamentação conceituai para uma filosofia arquitetônica, baseada em uns poucos conceitos simples e suficientemente vastos a ponto de dar conta do "trabalho inteiro da razão humana". Esses conceitos, a partir dos 58 anos, Peirce estava certo de tê-los atingido com as suas categorias. Nessa medida, sem uma inteligibilidade cuidadosa e acurada das categorias peirceanas, assim como de sua phaneros-copia (descrição dos Phanerons ou fenômenos), muito pouco pode toda sua teoria ser compreendida, principalmente a Semiótica, que da Fenomenologia extrai todos os seus princípios. Aproximar-se, assim, da Semiótica peirceana na ignorância ou desprezo por essa viagem fenomenológica (longa viagem que exige de nós a paixão paciente pela decifração dos conceitos) redundará, sem escapatória, numa utilização anê- mica e tecnicista de suas classificações e definições de signos. Não por acaso estou aqui pondo tanta ênfase nas fundações fenomenológicas da Semiótica, único meio de se evitar o uso leviano e mecanicista de seus conceitos. Peirce era adepto da criação de novas palavras para designar significados científicos novos. Sua terminologia é, nessa medida, estranhíssima. Contudo, mais estranha, porque vazia, é a apropriação mera- mente terminológica e redutora dos seus conceitos semióticos, sem o lento escrutínio de seus meandros. Por outro lado, só a partir da Fenomenologia é que se pode extrair a possibilidade por nós enunciada no título deste capítulo (Para se ler o mundo como linguagem), que não se constitui em mera frase de efeito, mas num fruto efetivo que o estudo fenomenológico está habilitado a nos oferecer. Que passemos, pois, a ele. Sem qualquer pretensão, contudo, de podermos aqui explorar com detalhes um campo que se desenvolveu por muito mais de mil e uma páginas dos escritos de Peirce. Daí que nossa opção seja, a par da transmissão de alguns conceitos certos fundamentais, também aquela de distribuir certos semáforos no caminho dos que, no futuro, se dispuserem a percorrer com mais vagar as veredas da Fenomenologia e Semiótica peirceanas. 7 ABRIR AS JANELAS: OLHAR PARA O MUNDO Não há nada, para nós, mais aberto ã observação do que os fenômenos. Entendendo-se por fenômeno qualquer coisa que esteja de algum modo e em qualquer sentido presente à mente, isto é, qualquer coisa que apareça, seja ela externa (uma batida na porta, um raio de luz, um cheiro de jasmim), seja ela interna ou visceral (uma dor no estômago, uma lembrança ou reminiscência, uma expectativa ou desejo), quer pertença a um sonho, ou uma idéia geral e abstrata da ciência, a fenomenologia seria, segundo Peirce, a descrição e análise das experiências que estão em aberto para todo homem, cada dia e hora, em cada canto e esquina de nosso cotidiano. A fenomenologia peirceana começa, pois, no aberto, sem qualquer julgamento de qualquer espécie: a partir da experiência ela mesma, livre dos pressupostos que, de antemão, dividiriam os fenômenos em falsos ou verdadeiros, reais ou ilusórios, certos ou errados. Ao contrário, fenômeno é tudo aquilo que aparece à mente, corresponda a algo real ou não. Suportada por esse modo de partir em estado de liberdade, a fenomenologia tem por tarefa, contudo, dar à luz as categorias mais gerais, simples, elementares e universais de todo e qualquer fenômeno, isto é, levantar os elementos ou características que pertencem a todos os fenômenos e partici- pam de todas as experiências. A tarefa não é fácil. As coisas, quando nos aparecem, surgem numa miríade de formas, enoveladas numa multiplica- ção de sensações, além de que tendem a se enredar às malhas das interpretações que inevitavelmente fazemos das coisas. Dizia Peirce: "A fenomenologia ou doutrina das categorias tem por função desenredar a emaranhada meada daquilo que, em qualquer sentido, aparece, ou seja, fazer a análise de todas as experiências é a primeira tarefa a que a filosofia tem de se submeter. Ela é a mais difícil de suas tarefas, exigindo poderes de pensamento muito peculiares, a habilidade de agarrar nuvens, vastas e intangíveis, organizá-las em disposição ordenada, recolocá-las em processo". Trata-se, portanto, de um estudo que, suportado pela observação direta dos fenômenos, discrimina diferenças nesses fenômenos e generaliza essas observações a ponto de ser capaz de sinalizar algumas classes de caracteres muito vastas, as mais universais presentes em todas as coisas que a nós se apresentam. Nessa medida, são três as faculdades que devemos desenvolver para essa tarefa: 1) a capacidade contemplativa, isto é, abrir as janelas do espírito e ver o que está diante dos olhos; 2) saber distinguir, discriminar resolutamente diferenças nessas observações; 3) ser capaz de generalizar as observa- ções em classes ou categorias abrangentes. A princípio, Peirce tentou estabelecer suas categorias a partir da análise material dos fenômenos (por exemplo : como coisas de madeira, de aço, de carne e osso etc), mas a diversidade infinita da materialidade das coisas fê-lo abandonar este ângulo de sua empresa, empreendendo seu caminho pelo lado formal ou estrutural dos fenômenos. O que quer isso dizer? Apesar de apresentar uma atitude de retorno à experiência mesma que temos do mundo, apesar de partir da observação acurada dos próprios fenômenos, Peirce chega às suas categorias através da análise e do atento exame do modo como as coisas aparecem à consciência. Que razão pode haver para que um cientista, treinado em laboratório, cuja aptidão para as ciências positivas era de um raro teor, devesse começar pela análise dos fenômenos mentais? Foi só através da observação direta dos fenômenos, nos modos como eles se apresentam à mente, que as categorias universais, como elementos formais do pensamento, puderam ser divisadas. Pela acurada e microscópica observação de tudo o que aparece, Peirce extrai os caracteres elementares e gerais da experiência que tornam a experiência possível. Desse modo, sua pequena lista de categorias consiste de concepções simples e universais. Elementares porque são constituintes de toda e qualquer experiência, universais porque são necessárias a todo e qualquer entendimento que possamos ter das coisas, reais ou fictícias. A 14 de maio de 1867, depois de três anos que, muito mais tarde, Peirce confessou, em várias cartas, terem sido os anos de maior esforço intelectual de toda sua vida, esforço mal interrompido sequer para o sono, vieram à luz, num artigo intitulado "Sobre uma nova lista de categorias", suas três categorias universais de toda experiência e todo pensamento. Considerando experiência tudo aquilo que se força sobre nós, impondo-se ao nosso reconhecimento, e não confundindo pensamento com pensamento racional (deliberado e auto-controlado), pois este é apenas um dentre os casos possíveis de pensamento, Peirce conclui que tudo que aparece à consciência, assim o faz numa gradação de três propriedades que correspondem aos três elementos formais de toda e qualquer experiência. Em 1867, essas categorias foram denominadas: 1) Qualidade,- 2) Relação e 3) Representação. Algum tempo depois, o termo Relação foi substituído por Reação e o termo Representação recebeu a denominação mais ampla de Mediação. Mas, para fins científicos, Peirce preferiu fixar-se na terminologia de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, por serem palavras inteiramente novas, livres de falsas associa- ções a quaisquer termos já existentes. Mais à frente, demonstraremos, através de várias exemplificações, o caráter e funcionamento dessas categorias na consciência. Antes porém, que alertemos para alguns pontos que nos parecem importantes. O resultado a que Peirce chegou nesse estudo de 1867 não foi imediatamente visto com bons olhos nem mesmo por seu próprio autor. Parecia-lhe fantasia absurda e detestável reduzir toda a multiplicidade e diversidade dos fenômenos ao número três e, sobretudo, a uma gradação de 1, 2, 3. Apesar dos três anos mal interrompidos para o sono que esse estudo havia lhe exigido, apesar de seu profundo conhecimento de grande parte da história da filosofia, apesar de saber a Crítica da Razão Pura de cor, nada naquele momento parecia demo- vê-lo do descrédito em que ele próprio havia colocado suas categorias. Categorias do pensamento e da natureza Dezoito anos mais tarde, Peirce escreveu um outro artigo, até hoje parcialmente inédito, com o seguinte título: "1, 2, 3, Categorias do Pensamento e da Natureza". Com isso, as categorias universais ou elementos do pensamento, dezoito anos antes descobertas pela análise lógica do fenômeno mental, eram agora estendidas para toda a natureza. Isso significa que aquelas mesmas categorias, por ele desmerecidas muitos anos antes, voltavam agora com maior vigor. Ou Peirce permaneceu fiel à sua obsessão ou sua obsessão lhe permaneceu fiel. Entre 1867 e 1885, repetidamente Peirce encontrou, nas ciências da natureza e do pensamento, confirmações inde- pendentes que corroboravam suas três idéias. A tríade estava continuamente aparecendo na lógica e nas ciências especiais, primeiro na psicologia, então na fisiologia e na teoria das células, finalmente na evolução biológica e no cosmos físico 10 Impossível, pois, capturar o que está em sua mente tal como está, visto que tento capturar justamente a consciência In totum de uma presentidade. Pela natureza mesma do pensamento e da linguagem, sou obrigada a quebrar sua consciência em pedaços para descrevê-la. Isso requer reflexão e a reflexão ocupa tempo. A consciência de um momento, contudo, como ela está naquele exato momento, não é reflexionada nem quebrada em pedaços. Como eles estão naquele vero momento, todos os elementos de impressão estão juntos e são um único sentimento indivisível e sem partes. O que foi destilado pela fragmentação descritiva, como sendo partes do sentimento, não são realmente partes desse sentimento como ele está no exato momento em que está presente; elas são o que aparece como tendo estado lá, quando refletimos sobre o sentimento, depois que ele passou. Como ele é sentido, no momento em que lá está, essas partes não são reconhecidas e, portanto, essas partes não existem no sentimento ele mesmo. Nessa medida, o primeiro (primeiridade) é presente e imediato, de modo a não ser segundo para uma representação. Ele é fresco e novo, porque, se velho, já é um segundo em relação ao estado anterior. Ele é iniciante, original, espontâneo e livre, porque senão seria um segundo em relação a uma causa. Ele precede toda síntese e toda diferenciação; ele não tem nenhuma unidade nem partes. Ele não pode ser articuladamente pensado; afirme-o e ele já perdeu toda sua inocência característica, porque afirmações sempre implicam a negação de uma outra coisa. Pare para pensar nele e ele já voou. O que é o mundo para uma criança em idade tenra, antes que ela tenha estabelecido quaisquer distinções, ou se tornado consciente de sua própria existência? Isso é primeiro, presente, imediato, fresco, novo, iniciante, original, espontâneo, livre, vivido e evanescente. Mas não se esqueça: qualquer descrição dele deve necessariamente falseá-lo. Mas o que quer isso dizer? Que não existe para nós, adultos, senão a nostalgia de uma experiência de primeiridade? Estamos para sempre fadados à perda irrecuperável desse sabor do viver? Não, em termos. O fato de que essa experiência não possa ser descrita não significa, em primeiro lugar, que não possa ser indicada ou imaginativamente criada. Em segundo lugar, e isto é o mais importante, de qualquer coisa que esteja na mente em qualquer momento, há necessa- riamente uma consciência imediata e conseqüentemente um sentimento. Qualidades de sentimento estão, a cada instante, lá, mesmo que imperceptíveis. Essas qualidades não são nem pensamentos articulados, nem sensações, mas partes consti- tuintes da sensação e do pensamento, ou de qualquer coisa que esteja imediatamente presente em nossa consciência. Há instantes fugazes, entretanto, e nossa vida está prenhe da possibilidade desses instantes, em que a qualidade de sentir assoma como um lampejo, e é como se nossa consciência e o universo inteiro não fossem, naquele lapso de instante, senão uma pura qualidade de sentir. Embora qualidade de sentimento só possa se dar no instante mesmo de uma impressão não analisável e incapturável, ou seja, num simples átimo, esse momento de impressão, dependendo do estado em que a consciência se encontra, pode se prolongado. Levantemos, por exemplo, algumas instâncias de quali- dades de sentir ao imaginarmos um estado mental caracterizado por uma simples qualidade positiva: o sabor do vinho, a qualidade de sentir amor, perfume de rosas, uma dor de cabeça infinita que não nos permite pensar nada, sentir nada, a não ser a qualidade da dor. Um instante eterno, sem partes, indiscernível de prazer intenso ou a sutil qualidade de sentir quando vamos gentilmente acordando, dóceis, ao som de uma música. Tratam-se de estados de disponibilidade, percepção cân- dida, consciência esgarçada, desprendida e porosa, aberta ao mundo, sem lhe opor resistência, consciência passiva, sem eu, liberta dos policiamentos do autocontrole e de qualquer esforço de comparação, interpretação ou análise. Consciência as- somada pela mera qualidade de um sentimento positivo, sim- ples, intraduzível. Note-se, contudo, que Peirce tem aí a precaução de não confundir a qualidade de sentimento de uma cor vermelha, por exemplo, de um som ou de um cheiro, com os próprios objetos percebidos como vermelhos, sonantes ou cheirosos. Cons- ciência em primeiridade é qualidade de sentimento e, por isso mesmo, é primeira, ou seja, a primeira apreensão das coisas, que para nós aparecem, já é tradução, finíssima película de mediação entre nós e os fenômenos. Qualidade de sentir é o modo mais imediato, mas já imperceptivelmente medializado de nosso estar no mundo. Sentimento é, pois, um quase-signo do mundo: nossa primeira forma rudimentar, vaga, imprecisa e indeterminada de predicação das coisas. Esse estado-quase, aquilo que é ainda possibilidade de ser, deslancha irremediavelmente para o que já é, e no seu ir sendo, já foi. Entramos no universo do segundo. Secundidade Há um mundo real, reativo, um mundo sensual, inde- pendente do pensamento e, no entanto, pensável, que se caracteriza pela secundidade. Esta é a categoria que a aspereza e o revirar da vida tornam mais familiarmente proeminente. É a arena da existência cotidiana. Estamos continuamente esbarrando em fatos que nos são externos, tropeçando em obstáculos, coisas reais, factivas que não cedem ao mero sabor de nossas fantasias. Enfim: "a pedra no meio do caminho" de que nos fala Carlos Drummond de Andrade. O simples fato de estarmos vivos, existindo, significa, a todo momento, consciência reagindo em relação ao mundo. Existir e sentir a ação de fatos externos resistindo à nossa vontade. É por isso que, proverbialmente, os fatos são denominados brutos: fatos brutos e abruptos. Existir ó estar numa relação, tomar um lugar na infinita miríade das determinações do universo, resistir e reagir, ocupar um tempo e espaço particulares, confrontar-se com outros corpos... Certamente, onde quer que haja um fenômeno, há uma qualidade, isto é, sua primeiridade. Mas a qualidade é apenas uma parte do fenômeno, visto que, para existir, a qualidade tem de estar encarnada numa matéria. A factualidade do existir (secundidade) está nessa corporificação material. A qualidade de sentimento não é sentida como resistindo num objeto material. É puro sentir, antes de ser percebido como existindo num eu. Por isso, meras qualidades não resistem. É a matéria que resiste. Por conseguinte, qualquer sensação já é pivô do pensamento, aquilo que move o pensar, retirando-o do círculo vicioso do amortecimento. Falar em pensamento, no entanto, é falar em processo, mediação interpretativa entre nós e os fenômenos. É sair, portanto, do segundo como aquilo que nos impulsiona para o universo do terceiro. Antes de penetrarmos no devir incessante do pensamento como representação interpretativa do mundo, que fique claro que nossas reações à realidade, interações vivas e físicas com a materialidade das coisas e do outro, já se constituem em respostas sígnicas ao mundo, marcas materiais perceptíveis em maior ou menor grau que nosso existir histórico e social, circunstancial e singular vai deixando como pegadas, rastros de nossa existência. Agir, reagir, interagir e fazer são modos marcantes, con- cretos e materiais de dizer o mundo, interação dialógica, ao nível da ação, do homem com sua historicidade. Terceiridade Três elementos constituem todas as experiências. Eles são 11 as categorias universais do pensamento e da natureza. Primeiridade é a categoria que dá à experiência sua qualidade distintiva, seu frescor, originalidade irrepetível e liber- dade. Não a liberdade em relação a uma determinação física, pois que isso seria uma proposição metafísica, mas liberdade em relação a qualquer elemento segundo. O azul de um certo céu, sem o céu, a mera e simples qualidade do azul, que poderia também estar nos seus olhos, só o azul, é aquilo que é tal qual é, independente de qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, primeiridade é um componente do segundo. Secundidade é aquilo que dá à experiência seu caráter factual, de luta e confronto. Ação e reação ainda em nível de binariedade pura, sem o governo da camada mediadora da intencionalidade, razão ou lei. Finalmente, terceiridade, que aproxima um primeiro e um segundo numa síntese intelectual, corresponde à camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo. Por exemplo: o azul, simples e positivo azul, é um primeiro. O céu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul, é um segundo. A síntese intelectual, elaboração cognitiva — o azul no céu, ou o azul do céu —, é um terceiro. Algumas das idéias de terceiridade que, devido à sua importância na filosofia e na ciência, requerem estudo atento são: generalidade, infinitude, continuidade, difusão, crescimento e inteligência. Mas a mais simples idéia de terceiridade é aquela de um signo ou representação. E esta diz respeito ao modo, o mais proeminente, com que nós, seres simbólicos, estamos postos no mundo. Diante de qualquer fenômeno, isto é, para conhecer e compreender qualquer coisa, a consciência produz um signo, ou seja, um pensamento como mediação irrecusável entre nós e os fenômenos. E isto, já ao nível do que chamamos de percepção. Perceber não é senão traduzir um objeto de percepção em um julgamento de percepção, ou melhor, é interpor uma camada interpretativa entre a consciência e o que é percebido. Nessa medida, o simples ato de olhar já está carregado de interpretação, visto que é sempre o resultado de uma elaboração cognitiva, fruto de uma mediação sígnica que pos- sibilita nossa orientação no espaço por um reconhecimento e assentimento diante das coisas que só o signo permite. O homem só conhece o mundo porque, de alguma forma, o representa e só interpreta essa representação numa outra representação, que Peirce denomina interpretante da primeira. Daí que o signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende do signo, isto é, aquilo que é representado pelo signo. Daí que, para nós, o signo seja um primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um terceiro. Para conhecer e se conhecer o homem se faz signo e só interpreta esses signos traduzindo-os em outros signos. Em síntese: compreender, interpretar é traduzir um pen- samento em outro pensamento num movimento ininterrupto, pois só podemos pensar um pensamento em outro pensamento. É porque o signo está numa relação a três termos que sua ação pode ser bilateral: de um lado, representa o que está fora dele, seu objeto, e de outro lado, dirige-se para alguém em cuja mente se processará sua remessa para um outro signo ou pensamento onde seu sentido se traduz. E esse sentido, para ser interpretado tem de ser traduzido em outro signo, e assim ad infinitum. O significado, portanto, é aquilo que se desloca e se esquiva incessantemente. O significado de um pensamento ou signo é um outro pensamento. Por exemplo: para esclarecer o significado de qualquer palavra, temos que recorrer a uma outra palavra que, em alguns traços, possa substituir a anterior. Basta folhear um dicionário para que se veja como isto, de fato, é assim. Eis aí, num mesmo nó, aquilo que funda a miséria e a grandeza de nossa condição como seres simbólicos. Somos no mundo, estamos no mundo, mas nosso acesso sensível ao mundo é sempre como que vedado por essa crosta sígnica que, embora nos forneça o meio de compreender, transformar, programar o mundo, ao mesmo tempo usurpa de nós uma existência direta, imediata, palpável, corpo a corpo e sensual com o sensível. Contudo, repensemos o problema. Se nossa condição de tradutores de um pensamento em outro pensamento fundar natureza mesma do que chamamos consciência interpretativa, então as categorias de primeiridade (sentimento) e de secundidade (conflito) estariam fadadas ao evanescimento irreversível, sempre embolsadas dentro da categoria do terceiro ou interpretação? Em primeiro lugar, esses três possíveis estados da mente não podem ser entendidos como dados estanques. Disse Peirce: "Nenhuma linha firme de demarcação pode ser dese- nhada entre diferentes estados integrais da mente, isto é, entre estados tais como sentimento, vontade e conhecimento. É claro que estamos ativamente conhecendo em todos os nossos minutos de vigília e realmente sentindo também. Se não estamos sempre querendo, estamos pelo menos, a todo mo- mento, com a consciência reagindo em relação ao mundo externo". Em suma: "o que em mim sente está pensando", diria depois Fernando Pessoa. Em segundo lugar, a camada do pensamento interpretativo, pensamento sob autocontrole, é apenas a camada mais superficial, mais à tona da consciência. Essa camada, no entanto, pode, a qualquer momento, ser quase que fendida, subvertida pela pregnância dê uma mera qualidade de sentir ou pela invasão de um conflito: instâncias de um lampejo ou lapso- de-tempo que fissuram a remessa incessante de signo a Signo da racionalidade interpretadora. Tratam-se de instâncias, portanto, em que a abstração cognitiva é quase fendida e a consciência encontra um ponto tangencial em que é corpo do mundo e no mundo, instante indiscernível e intraduzível de maior proximidade física e viva da consciência com o fenômeno apreendido. Nessa medida, para nós tudo é signo, qualquer coisa que II produz na consciência tem o caráter de signo. No entanto, Peirce leva a noção de signo tão longe a ponto de que um signo não tenha necessariamente de ser uma representação mental, mas pode ser uma ação ou experiência, ou mesmo uma mera qualidade de impressão. O sentimento ou qualidade de impressão é um quase-signo porque já funciona como um primeiro, vago e impreciso predicado das coisas que a nós se apresentam. A ação ou experiência também pode funcionar como signo porque se apresenta como resposta ou marca que deixamos no mundo, aquilo que nossa ação nele inculca. Aí estão enraizadas na fenomenologia as bases para a Semiótica, pois é justo na terceira categoria fenomenológica que encontramos a noção de signo genuíno ou triádico, assim como é nas segunda e primeira categorias que emergem as formas de signos não genuínos, isto é, as formas quase- sígnicas da consciência ou linguagem. PARA SE TECER A MALHA DOS SIGNOS A Semiótica peirceana, concebida como Lógica, não se confunde com uma ciência aplicada. O esforço de Peirce era o de configurar conceitos sígnicos tão gerais que pudessem servir de alicerce a qualquer ciência aplicada. Confiramos com suas palavras: "A tarefa que inauguro é fazer uma filosofia como aquela de Aristóteles, quer dizer, esboçar uma teoria tão compreensiva que, por longo tempo, todo o trabalho da razão humana — na filosofia de todas as escolas e espécies, na matemática, na psicologia, na ciência 12 física, na histórica, na sociologia e em qualquer outro departa- mento que possa haver—deve aparecer como preenchimento de seus detalhes. O primeiro passo para isso é encontrar conceitos simples aplicáveis a qualquer assunto". Isso não quer dizer que sua teoria tenha nascido para tirar o lugar das outras ciências. Pelo contrário, para fornecer a elas fundações lógicas para suas construções como linguagens que são. Apesar de ter insistido muito na sua definição de Lógica como Semiótica formal, ou seja, Lógica como configuração de conceitos abstrato-formais, ao definir esses conceitos, tinha, na maior parte das vezes, de singularizá-los, para torná-los compreensíveis às mentes empíricas. Numa carta em 1908, Peirce escreveu: "Minha definição de signo foi tão generalizada que, ao fim e ao cabo, desesperei-me ao tentar fazê-la compre- ensível às pessoas. Assim, para me fazer entendido, eu agora a limitei". Originalmente, contudo, Peirce tinha em mente o seguinte: "Devemos começar por levantar noções diagramáticas dos signos, das quais nós retiramos, numa primeira instância, qual- quer referência à mente, e depois que tivermos feito aquelas noções tão distintas como o é a nossa noção de número primitivo, ou a de uma linha oval, podemos então considerar, se for necessário, quais são as características peculiares de um signo mental e, de fato, podemos dar uma definição matemá- tica de uma mente, no mesmo sentido que podemos dar uma definição matemática de uma linha reta... Mas não há nada que obrigue o objeto de tal definição formal a ter o sentimento peculiar da consciência. Esse sentimento peculiar não tem nada a ver com a logicalidade do raciocínio. É bem melhor, portanto, deixá-lo fora da jogada". Num outro trecho, Peirce escreve: "Se um lógico for falar das operações da mente, ele deve significar por mente algo bem diferente do objeto de estudo do psicólogo. A lógica será aqui definida como Semiótica formal. Uma definição de signo será dada, sem se referir ao pensamento humano...". Hoje, quase 100 anos transcorridos, essa insistência de Peirce em generalizar a noção de signo a-ponto de não ter de referi-la à mente humana não mais soa como formalismo ex- cêntrico, mas soa mais como antecipação, visto que, com o advento da Cibernética, tal necessidade se patenteou histórica e concretamente. Para falarmos dos processos de comunicação entre máquinas, não temos necessariamente de nos referir às peculiaridades da consciência humana. Isso, para não men- cionarmos as descobertas da Biologia que estenderam a noção de signo (linguagem e informação) para o campo das configurações celulares. Ainda em 1909, Peirce escreveu: "A grande necessidade é a de uma teoria geral de todas as possíveis espécies de signo, seus modos de significação, de denotação e de informação; e o todo de seu comportamento e propriedades, desde que estas não sejam acidentais. A tarefa de suprir essas necessidades deve ser tomada por algum grupo de investigadores. Quase tudo que até agora foi realizado nessa direção foi trabalho dos lógicos. Nenhum grupo esteve tão bem preparado para tocar esta tarefa à frente, ou que poderia fazê-la com menos desvios de suas preocupações originais". Infelizmente, no entanto, poucos lógicos seguiram Peirce na sua insistência sobre os signos. Isto continua por mantê-lo solitário na aproximação do Simbolismo, que ele teria preferido chamar Semiosis (ação do signo), pelo lado da Lógica. Assim sendo, as definições e classificações de signo formuladas por Peirce são logicamente gerais, quase matemá- ticas. O nível de abstração exigido para compreendê-las é, sem dúvida, elevado. Entretanto, uma vez assimilado esse campo de relações formais, essa assimilação passa a funcionar para nós como uma espécie de visor ou lente de aumento que nos permite perceber uma multiplicidade de pontos e distinguir sutis diferenciações nas linguagens concretas pelas quais estamos perpassados e com as quais convivemos. Definição de signo Há uma enorme quantidade de definições de signo distri- buídas pelos textos de Peirce, umas mais detalhadas, outras mais sintéticas. Dentre elas, escolhemos uma que, para os nossos propósitos, parece exemplar: "Um signo intenta representar, em parte pelo menos, um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determi- nante do signo, mesmo se o signo representar seu objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determine naquela mente algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou deter- minante é o signo, e da qual a causa mediata é o objeto, pode ser chamada o Interpretante". Esclareçamos: o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta baixa de uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa, são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a idéia geral que temos de casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma fotografia não é a mesma de uma planta baixa. Ora, o signo só pode representar seu objeto para um intérprete, e porque representa seu objeto, produz na mente desse intérprete alguma outra coisa (um signo ou quase-signo) que também está relacionada ao objeto não diretamente, mas pela mediação do signo. Cumpre reter da definição a noção de interpretante. Não se refere ao intérprete do signo, mas a um processo relacionai que se cria na mente do intérprete. A partir da relação de representação que o signo mantém com seu objeto, produz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado do primeiro (é o interpretante do primeiro). Portanto, o significado de um signo é outro signo — seja este uma imagem mental ou palpável, uma ação ou mera reação gestual, uma palavra ou um mero sentimento de alegria, raiva... uma idéia, ou seja lá o que for — porque esse seja lá o que for, que é criado na mente pelo signo, é um outro signo (tradução do primeiro). Mas, para que a definição de signo fique melhor divisada, convém esclarecer que o signo tem dois objetos e três interpretantes. Vejamos, primeiro num gráfico: SIGNO O objeto imediato (dentro do signo, no próprio signo) diz respeito ao modo como o objeto dinâmico (aquilo que o signo interpretante dinâmico (intérprete) objeto dinâmico 15 É evidente também que o símbolo, como lei geral, abstrata, para se manifestar precisa de réplicas, ocorrências singulares. Desse modo, cada palavra escrita ou falada é uma ocorrência através da qual a lei se manifesta. Confiramos com Peirce: "Um símbolo não pode indicar uma coisa particular; ele denota uma espécie (um tipo de coisa). E não apenas isso. Ele mesmo é uma espécie e não uma coisa única. Você pode escrever a palavra estrela, mas isto não faz de você o criador da palavra — e mesmo que você a apague, ela não foi destruída. As palavras vivem nas mentes daqueles que as usam. Mesmo que eles estejam todos dormindo, elas vivem nas suas memórias. As palavras são tipos gerais e não individuais". Daí que os símbolos sejam signos triádicos genuínos, pois produzirão como interpretante um outro tipo geral ou interpretante em si que, para ser interpretado, exigirá um outro signo, e assim ad infinitum. Símbolos crescem e se dissemi- nam, mas eles trazem, embutidos em si, caracteres icônicos e indicais. O que seria de uma frase, por exemplo, sem o diagrama sintático, ordem das palavras, padrão de sua estrutura, isto é, justamente seu caráter icônico que nos leva a compreendê-la? O que seria de uma frase, sem índices de referências? Esses caracteres, contudo, estão embutidos no símbolo, pois o que lhe dá o poder de funcionar como signo é o fato proeminente de que ele é portador de uma lei de representação. Concluindo: se o ícone tende a romper a continuidade do processo abstrativo, porque mantém o interpretante a nível de primeiridade, isto é, na ebulição das conjecturas e na conste- lação das hipóteses (fonte de todas as descobertas); se o índice faz parar o processo interpretativo no nível energético de uma ação como resposta ou de um pensamento puramente constatativo; o símbolo, por sua vez, faz deslanchar a remessa de signo a signo, remessa esta que só não é para nós infinita, porque nosso pensamento, de uma forma ou de outra, em maior ou menor grau, está inexoravelmente preso aos limites da abóbada ideológica, ou seja, das representações de mundo que nossa historicidade nos impõe. Enfim Aí estão explanadas as três grandes tríades dos signos. Como se pode ver, trata-se de uma divisão lógica a mais genérica, espécie de mapeamento panorâmico das grandes matrizes sígnicas e das fronteiras que as definem. A partir disso, por combinação lógica entre essas matrizes, Peirce estabeleceu 10 classes principais de signos que dizem respeito às misturas entre signos que são logicamente possíveis. Como matrizes abstratas, as três tríades definem campos gerais e elementares que raramente serão encontrados em estado puro nas linguagens concretas que estão aí e aqui, conosco e em uso. Na produção e utilização prática dos signos, estes se apresenta/n amalgamados, misturados, interconectados. Por exemplo: todas as linguagens da imagem, produzidos através de máquinas (fotografia, cinema, televisão...), são signos híbridos: trata-se de hipoícones (imagens) e de índices. Não é necessário explicar por que são imagens, pois isso é evldente. São, contudo, também índices porque essas máquinas são capazes de registrar o objeto do signo por conexão física. A respeito da fotografia, Peirce esclarece: "O fato de sabermos que a fotografia é o efeito de radiações partidas do objeto, torna-a um índice e altamente informativo". Embora o processo de captação da imagem televisiva seja diferente da fotografia, o caráter inicial de conexão física, existencial e factual nele se mantém. Poderíamos estender os exemplos de misturas sígnicas indefinidamente. Não o faremos, porém. O que cumpre reter é que as tríades peirceanas funcionam como uma espécie de grande mapa, rigorosamente lógico, que pode nos prestar enorme auxílio para o reconhecimento do território dos signos, para discriminar as principais diferenças entre signos, para aumentar nossa capacidade de apreensão da natureza de cada tipo de signo. Como teoria científica, a Semiótica de Peirce criou conceitos e dispositivos de indagação que nos permitem descrever, analisar e interpretar linguagens. Como tal, os conceitos são instrumentos para o pensamento, lentes para o olhar, amplificadores para a escuta. Portanto, não podem, por si mesmos, substituir a atividade de leitura e desvendamento da realidade. São instrumentos que, quando seriamente decifrados e eficazmente empregados, nos auxiliam nessa atividade. Sozinhos não podem executá-la para nós. Desse modo, o que a Semiótica peirceana (Semiótica geral, teoria dos signos em geral) nos trouxe foram as impres- cindíveis fundações fenomenológicas e formais para o neces- sário desenvolvimento de muitas e variadas Semióticas espe- ciais: Semiótica da linguagem sonora, da arquitetura, da lingua- gem visual, da dança, das artes plásticas, da literatura, do teatro, do jornal, dos gestos, dos ritos, dos jogos...e das linguagens da natureza... Nessas Semióticas especiais, que têm por função descrever e analisar a natureza específica e os caracteres peculiares de cada um daqueles campos, brotam necessariamente as práticas de aplicação, isto é, as atividades de leitura e inteligibilidade dos mais diversos processos e produtos de linguagem: um poema, um teorema, uma peça musical, um objeto utilitário, uma praça pública, um rito, um discurso político, uma peça de teatro, um filme, um programa de televisão, um ponto de luz, uma nota musical prolongada, o silêncio. OUTRAS FONTES E CAMINHOS Embora a opção deste livro tenha sido aquela de fornecer ao leitor uma visão mais rente à teoria peirceana, não poderia estar completo um panorama geral da Semiótica se deixásse- mos de indicar aqui, mesmo que de modo breve, o traçado das outras duas fontes de origem e desenvolvimento dessa ciência. Senão vejamos. Uma dessas fontes começou a germinar na União Sovié- tica, desde o século passado, nos trabalhos de dois grandes filólogos, A. N. Viesse-lovski e A.A. Potiebniá, vindo explodir de modo efervescente na Rússia revolucionária, época de experi- mentação científica e artística que deu nascimento ao estruturalismo lingüístico soviético, aos estudos de Poética formal e histórica e aos movimentos artísticos de vanguarda nos mais diversos domínios: teatro, literatura, pintura, cinema etc. A outra fonte encontra-se no Curso de Lingüística Geral, proferido pelo lingüista F. de Saussure, na Universidade de Genebra, no final da primeira década deste século. Esse curso foi, posteriormente, transformado em livro e publicado postumamente a, partir das notas de aulas extraídas por alguns alunos. Esse livro mereceu, imediatamente, a mais ampla divul- gação pela Europa e, pouco mais tarde, por quase o mundo todo. Os conceitos lingüísticos que ele encerra foram retoma- dos, discutidos e ampliados por uma série de outros lingüistas, especialmente L. Hjelmslev; e seus princípios metodológicos foram aplicados a áreas vizinhas, notadamente a Antropologia e Teoria Literária; suas descobertas, devidamente exploradas, radicalizadas e levadas às últimas conseqüências pelos novos pensadores europeus, particularmente J. Derrida. A mesma sorte de uma divulgação imediata não acolheu, no entanto, os estudos lingüísticos, poéticos e artísticos — marcados por um vocação semiótica — que os russos nos legaram. A maior parte deles não apenas foi retirada de circu- lação durante os expurgos stalinistas, mas foi também com grande dificuldade que esses estudos puderam ser recolocados 16 em pauta, décadas mais tarde. Nessa medida, a recuperação dessas investigações pelo Ocidente tem sido lenta, frag- mentária e só nos últimos anos alguns trabalhos sérios têm conseguido reconstituir esse legado num quadro mais geral e elucidativo. De qualquer modo, tentaremos delinear aqui, em breves lances, as características mais gerais das fontes e do desen- volvimento mais recente que essas fontes têm recebido na União Soviética, remetendo, ao final deste volume, o leitor mais interessado num aprofundamento, para uma pequena biblio- grafia já existente sobre o assunto no Brasil. As fontes soviéticas Começando pelos filólogos citados (Potiebniá e Viesselovski) em cujas obras podem ser encontradas, já no século XIX, algumas raízes das descobertas do estrufuralismo lingüístico no século XX, chegamos ao lingüista N. I. Marr, que, no começo deste nosso século, vinha desenvolvendo, segundo nos informa B. Schneiderman, "uma teoria estadial que ligava intimamente a fase de desenvolvimento da língua com os estádios de desenvolvimento da sociedade". Controvérsias com Stalin, contudo, emudeceram tanto a voz de Marr quanto de seus adeptos por longo tempo na URSS. Embora publicamente ensurdecidos, seus estudos tiveram prosseguimento num trabalho conjunto com o psicólogo L. S. Vigotski e o cineasta S. M. Eisenstein. Esses estudos incluíam relações entre a linguagem e os ritos antigos, assim como entre a linguagem dos gestos e a língua articulada. Mencionar o cineasta Eisenstein, no entanto, significa termos de nos deparar com a mais completa encarnação de um verdadeiro "artista inter-semiótico" surgido na Rússia revo- lucionária e pós-revolucionária. Essa intersemiose está expressa na sua preocupação com a origem dos sistemas de signos, na presença da literatura em suas reflexões sobre o cinema, na sua prática do teatro e nos estudos das diversas artes, notada-mente a pintura em sua relação com o cinema, assim como nos experimentos, ainda no cinema mudo, com os efeitos de som- imagem e na influência de um instigante conhecimento do ideograma japonês e chinês sobre sua técnica de montagem cinematográfica, além do conhecimento do teatro Kabuki e estampa japonesa, tudo isso culminando numa constante preocupação com a síntese entre ciência e arte. A interpenetração das artes e destas com a ciência e técnica que, na obra de Eisenstein, encontrou seu ponto limite, também comparecia, na mesma época, nos trabalhos dos poetas cubofuturistas, em experimentos teatrais ou em projetos no campo da escultura — arquitetura e experiências gráficas que faziam emergir a revolução nas artes em sincronia com a explosão de um espírito revolucionário mais global. Nesse mesmo ambiente efervescente de uma prática semiótica e criativa, irromperam os estudos científicos de Poética que vieram a ser conhecidos sob o título de Formalismo Russo, assim como os fundamentos de uma ciência lingüística que nasceram no Círculo Lingüístico de Praga, além dás inves- tigações em torno de uma Poética histórica e sociológica desenvolvidas pelo chamado Círculo de Bahktine. Esse campo multiforme, ao mesmo tempo prático-criativo e teórico-científico, constitui-se naquilo que poderíamos considerar como sendo as fontes da Semiótica russa. Como se pode ver, não se trata aí de uma construção da ciência semiótica como tal, mas de uma série de ricas contri- buições voltadas para a problemática dos signos na sua relação com a vida social, mais acentuadamente os signos lingüísticos e poéticos, revelando, porém, a maioria desses estudos, principalmente os do Círculo de BahWine, uma acentuada tendência para uma visão globalizadora da cultura, ou seja, a investigação da linguagem na sua relação com a cultura e a sociedade. A recuperação sistemática dessa rica herança, com vista ao desenvolvimento de investigações intencionalmente semióticas, teve início, na União Soviética, a partir de fins dos anos 50, por um número hoje cada vez maior de pesquisadores reunidos quase sempre em torno da figura proeminente de luri Lotman. Tirando proveito das fontes mais estritamente poéticas e lingüísticas legadas pelo passado, esses estudiosos têm estendido suas indagações para todos os sistemas de signos fundamentando-as em ciências mais recentes tais como a Cibernética e a Teoria da Informação, e mesmo a Matemática, consideradas todas elas de grande importância não só para a Semiótica como para todas as demais ciências humanas. Conforme se pode deduzir, apesar de que a intenção desses estudos seja, sem dúvida alguma, a de abrir o leque semiótico de modo a abraçar a totalidade da produção cultural, o que parece faltar, na base dessas investigações, é uma fundamentação teórica, isto é, um corpo científico especial- mente semiótico. Ao contrário, as pesquisas lá se desenvolvem a partir de modelos teóricos emprestados de ciências vizinhas, e que são adaptados com vistas à construção de um corpo metodológico aplicável a todo e qualquer fenômeno de lingua- gem. Cumpre notar que o modelo teórico privilegiado e nuclear é aquele das línguas naturais, quer dizer, o da linguagem verbal. Tomando-se como base os conceitos teóricos criados pela lingüística estrutural para a descrição da língua como sistema, acoplando-se esses conceitos aos pontos de contato que eles apresentam com os da teoria da informação, esses dispositivos são, então, transferidos para o campo de qualquer outra manifestação de linguagem que não a linguagem verbal. A matriz saussureana Durante o curso de Lingüística Geral proferido por Saussure na Universidade de Genebra, mal podia este investigador pressentir a colossal repercussão que seu trabalho teria pelo mundo afora e a aplicabilidade que suas descobertas encon- trariam em outras áreas do saber no território das ciências humanas. Que grande salto à frente representa esse curso na história da Lingüística iniciada, digamos, desde os trabalhos dos gramáticos gregos? Alimentando-se em algumas fontes de avanço no caminho para uma ciência do verbal, já lançadas no século XIX por W. Humboldt, Saussure, na realidade, compõe, em bases precisas, os princípios científicos e metodológicos que fundam as descobertas da economia específica da lingua- gem articulada, fazendo aparecer, no horizonte de nossas indagações, esse novo objeto por ele identificado, ou seja, a língua como sistema ou estrutura regida por leis e regras específicas e autônomas. Mas esclareçamos isso melhor, Se por estrutura formos aí entender categorias gramaticais que se organizam hierarqui- camente e que se conjugam em padrões sintáticos definidos, isso é quase tão antigo quanto os primordiais estudos da linguagem verbal. A grande revolução saussureana instaura-se no centro da noção mesma de estrutura. Isto quer dizer: a interação dos elementos que constituem a estrutura da língua é de tal ordem que a alteração de qualquer elemento, por mínimo que seja, leva à alteração de todos os demais elementos do sistema como um todo. Nesse sentido, a lingüística saussureana não é meramente uma teoria para a descrição de línguas particulares, tais como a francesa, inglesa ou ameríndia, mas uma teoria que tem por objeto os mecanismos lingüísticos gerais, quer dizer, o conjunto das regras e dos princípios de funcionamento que são comuns a todas as línguas. 17 Para Saussure, portanto, a língua é um sistema de valores diferenciais, isto é, a língua é uma forma na qual cada elemento, desde um simples som elementar (f, por exemplo, na palavra fato, ou g, na palavra gato), só existe e adquire seu valor e função por oposição a todos os outros. Cada elemento, portanto, só é o que é por diferença em relação àquilo que todos não são. O valor é, por isso, determinado por suas relações no interior de um sistema. Nessa medida, a linguagem falada, ou a linguagem arti- culada, só pode produzir sentido, só pode significar, sob a condição de dar forma a um certo material, segundo regras combinatórias precisas. A língua é uma bateria combinatória, estabelecida por convenção ou pacto coletivo, armazenada no cérebro dos indivíduos falantes de uma dada comunidade. Somente na medida em que nos submetemos a essas regras, podemos nos integrar numa comunidade lingüística e social. Nascer, portanto, não é senão chegar e encontrar a língua pronta. E aprender a língua materna não é senão ser obrigado, desde a mais tenra idade, a se inscrever nas estruturas da língua. Pode-se concluir: a língua não está em nós, nós é que estamos na língua. Disso se deduz que a língua é um fenômeno social e é este sistema abstrato formal de regras arbitrárias socialmente aceitas que se constitui para Saussure no objeto da ciência lingüística. Daí decorre sua distinção entre língua e fala (langue eparole). A língua é constituída pelo conjunto sistemático das con- venções necessárias à comunicação, é um produto social de cuja assimilação cada indivíduo depende para o exercício da faculdade da linguagem. A fala, por seu lado, é a parte individual da linguagem, diz respeito ao uso e desempenho efetivo e substancial das regras da língua num ato de fala e comunicação particulares. Como se vê, língua e fala são inseparáveis, mas.enquanto a fala é circunstancial e mais ou menos acidental, sempre aqui e agora, a língua é essencial e, por isso mesmo, constitui-se num princípio de organização coerente, num sistema autônomo suscetível de aproximação científica específica. Foram, portanto, conceitos teóricos capazes de descrever e analisar as leis articulatórias da língua o que Saussure pretendeu de- senvolver no seu curso. Desse modo, a preocupação explícita desse pensador era a de fundar uma ciência da linguagem verbal. Em nenhum momento foi por ele demonstrada qualquer iniciativa no sentido de formular conceitos mais gerais que pudessem servir de base para uma ciência mais ampla do que a Lingüística. Ao contrário, consciente disso, Saussure apenas previu a neces- sidade de existência dessa ciência mais vasta que ele batizou de Semiologia. Para Saussure, a Semiologia teria por objeto o estudo de todos os sistemas de signos na vida social. Nessa medida, a Lingüística, ou seja, a ciência que ele tinha por propósito desenvolver, seria uma parte da Semiologia que, por sua vez, seria uma parte da Psicologia Social. Mais de quarenta anos pós-saussureanos precisaram, no entanto, transcorrer para que a Lingüística estrutural fosse devidamente absorvida, divulgada e ampliada, para que seu método fosse aplicado a áreas vizinhas, suas descobertas devidamente exploradas pelos novos pensadores. Assim sendo, só por volta dos anos 50 é que a proposta saussureana de nascimento da Semiologia passou a ser desenvolvida pelos investigadores europeus. Esse desenvolvimento pode ser explicado, entre outras coisas, pela pressão ou exigência que a proliferação crescente dos meios de comunicação de massa criava quanto à necessidade de existência de uma ciência capaz de dar conta da natureza e distinções entre as variadas linguagens veiculadas pelos diferentes meios (jornal, cinema, revistas, rádio, TV etc.) e que desse conta, antes de mais nada, de um instrumental teórico mais apto a desvendar a complexa natureza intersemiótica da arte e da literatura modernas. Contudo, esse instrumental, desde suaorigem, a Semio- logia tomou de empréstimo à Lingüística. Nessa medida, a teoria semiológica de extração lingüística caracteriza-se pela transferência dos conceitos que presidem à análise da lingua- gem verbal-articulada para o domínio de todos os outros pro- cessos de linguagens não-verbais. Assim como ocorre na Semiótica russa, o modelo lingüístico é, na maior parte das vezes, preenchido com aparatos teóricos advindos de áreas vizinhas, tais como teoria da Comunicação e Informação, Se- mântica (ramo da própria Lingüística), Antropologia; estudo dos Mitos, Simbologia, Teoria Literária etc. Fica aí em falta, contudo, uma fundação teórica consistente e homogênea capaz de plantar uma ciência Semiótica a partir de raízes próprias. Dado o fato de que está prevista nesta mesma coleção Primeiros Passos a existência de um volume sobre O que é Semiologia, não pretendemos aqui entrar nos detalhes dos caracteres através dos quais a Semiologia européia tem se desenvolvido. Faz-se necessário, porém, esclarecer que essa distinção entre Semiótica e Semiologia não é apenas terminológica. Apesar de que muito trabalhos façam indiscriminadamente uso dos dois termos, há que diferenciar as árvores da floresta. Os estudos filiados à tradição lingüística terão necessariamente, de saída, postulações profundamente distintas daquelas que a teoria peirceana exige e permite. Isso é o que para nós tem de ficar bem claro, visto que não é tanto o nome Semiótica ou Semiologia o que realmente importa, no caso, mas a nossa capacidade de discriminar as fontes ou instrumentos teóricos que os estudos semióticos estão tomando como base, para que se possa saber em que terreno se está pisando. Alguns confrontos A teoria peirceana foi aquela que primeiramente brotou no tempo, pois que, desde o século XIX, a doutrina geral dos signos estava sendo formulada por Peirce. A primeira década do século XX, por outro lado, corresponde ao período em que Saussure ministrou seu curso na Universidade de Genebra, curso este que deu origem à divulgação mais ampla de uma ciência Lingüística. No entanto, foi apenas em meados do século XX que, tanto na União Soviética quanto na Europa, os estudos mais própria e intencionalmente semióticos começaram a se desenvolver. Não resta a menor dúvida de que foi graças a esse grande influxo de uma preocupação semiótica no mundo que a doutrina dos signos, formulada por Peirce, começou a ser recuperada., Não fosse por isso, essa teoria talvez estivesse até hoje quase totalmente ignorada. Conforme se pode ver, não são lineares os caminhos de uma ciência. É através de estranhas espécies de jogos cruzados que o pensamento humano caminha e responde às necessidades com que a realidade o instiga. Entretanto, a convergência das três fontes da Semiótica para a criação de uma ciência única não pode nos levar a esquecer ou ocultar distinções nas bases dessas fontes. Muitas aproximações, por exemplo, entre a teoria de Peirce e a de Saussure têm aparecido sem levar em conta as raízes de suas diferenças. Durante algum tempo, eu mesma fui levada a esta- belecer apressadas relações de comparação entre ambos. Hoje, já vejo mais claro que esse tipo de comparação só pode ser feito a posteriori, depois de elucidadas pelo menos algumas dentre as abissais diferenças que separam as obras de cada um desses pensadores. A Lingüística saussureana brotou de um primeiro corte abrupto e estratégico nas relações que a linguagem humana
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