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Caderno de Hist. e Filosofia da Ciência, Notas de estudo de Atualidades

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Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 19/08/2008

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Baixe Caderno de Hist. e Filosofia da Ciência e outras Notas de estudo em PDF para Atualidades, somente na Docsity! ISBN 85-99229-01-X Alex Calazans, Alexandre Dittrich, César Augusto Battisti, Claudemir RoqueTossato, Claudiney José de Sousa, Eduardo Salles O. Barra, Emerson Vizzotto de Barros, Felipe Ribas, Fernando Tula Molina, Gelson Liston, Gustavo Piovezan, Irinéa de Lourdes Batista, Ivan Ferreira da Cunha, João Carlos M. Magalhães, José Borges Neto, José Carlos Cifuentes, Joyce Mayumi Shimura, Júlio C. R. Vasconcelos, Leônia Gabardo Negrelli, Marcelo Moschetti, Márcio Augusto Damin Custódio, Marisa C. de O. F. Donatelli, Marlene Perez, Maurício de Carvalho Ramos, Max Rogério Vicentini, Michel Paty, Osvaldo Pessoa Jr, Pablo Mariconda , Patricia Coradim Sita, Paulo Tadeu da Silva, Renato Rodrigues Kinouchi, Robinson Guitarrari, Rosana Figueiredo Salvi, Simone Luccas, Veronica Ferreira Bahr Calazans. III ENCONTRO DA REDE PARANAENSE DE PESQUISA EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência (UEL, UEM, UNIOESTE e UFPR) Projeto Temático “Estudos de Filosofia e História da Ciência” (USP e UNICAMP) GT História da Filosofia da Natureza – ANPOF ANAIS DO III ENCONTRO DA REDE PARANAENSE DE PESQUISA EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ Curitiba, 16 a 18 de março de 2005 Eduardo S. O. Barra Alex Calazans Veronica F. B. Calazans (organizadores) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes UFPR 2005 AS MANCHAS SOLARES DE GALILEU GALILEI ................................................................................... 242 Felipe Ribas EIXO TEMÁTICO 2: TELEOLOGIA NA BIOLOGIA ALGUNS PRESSUPOSTOS SUBJACENTES ÀS TEORIAS SOBRE A NATUREZA E ORIGEM DA VIDA ............. 249 João Carlos M. Magalhães TELEOLOGIA E CIÊNCIAS DA VIDA NA ÉPOCA DAS LUZES: O FINALISMO NA TEORIA DA GERAÇÃO DE MAUPERTUIS................................................................................................................................. 262 Maurício de Carvalho Ramos NOTAS SOBRE EVOLUÇÃO E TELEOLOGIA NO PENSAMENTO DE CHARLES S. PEIRCE.......................... 273 Max Rogério Vicentini SOBRE A IMPORTÂNCIA DO OBJETO EM DESCARTES, O NÚMERO E A ORDEM DAS PAIXÕES NA II PARTE DAS PAIXÕES DA ALMA .................................................................................................................. 283 Gustavo Piovezan EIXO TEMÁTICO 3: CIÊNCIA: CRITÉRIOS E VALORES; PÓS-MODERNISMO NA CIÊNCIA COMPLEJO DE VALORES, CAMBIO SOCIAL Y ESTRATEGIA COGNITIVA: LA PROPUESTA DE HUGH LACEY REVISADA...................................................................................................................................... 296 Fernando Tula Molina SENTENÇAS PROTOCOLARES E A CONSTRUÇÃO DE UM SISTEMA CIENTÍFICO. .................................... 303 Gelson Liston RACIONALIDADE E INCOMENSURABILIDADE CIENTÍFICA: UMA REFLEXÃO SOBRE O RELATIVISMO COGNITIVO .................................................................................................................................... 305 Robinson Guitarrari A VISÃO KUHNIANA DE CIÊNCIA APLICADA A GEOGRAFIA FÍSICA, SUA HISTÓRIA E EPISTEMOLOGIA: DO RENASCIMENTO À NOVA GEOGRAFIA ............................................................................................... 318 Emerson Vizzotto de Barros Rosana Figueiredo Salvi EIXO TEMÁTICO 4: ESTUDOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS EM HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA; EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E MATEMÁTICA O ENSINO DE TEORIAS FÍSICAS MEDIANTE UMA ESTRUTURA HISTÓRICO-FILOSÓFICA .......................... 337 Irinéa de Lourdes Batista ABORDAGEM HISTÓRICO-FILOSÓFICA E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: UMA PROPOSTA DE INTERAÇÃO ENTRE DOMÍNIOS DE CONHECIMENTO.............................................................................................. 361 Irinéa de Lourdes Batista Simone Luccas O PRAGMATISMO E A FILOSOFIA DA CIÊNCIA .................................................................................... 396 Renato Rodrigues Kinouchi RUDOLF CARNAP: TEORIAS CIENTÍFICAS E PREDIÇÕES .................................................................... 411 Ivan Ferreira da Cunha O PROJETO CARTESIANO NAS REGRAS PARA A ORIENTAÇÃO DO ESPÍRITO ...................................... 419 Joyce Mayumi Shimura SESSÃO DE ABERTURA: MESA-REDONDA “A CIÊNCIA COMO OBJETO” As questões Pablo Mariconda Departamento de Filosofia/USP Ao tomar a ciência como objeto de investigação é possível tomá-la sob uma perspectiva científica, como se fosse possível uma ciência da ciência? Ou tomá-la como objeto seria olhá-la necessariamente de uma perspectiva externa, alheia a sua própria natureza investigativa, num movimento de pensamento que não é o seu? Não seria necessariamente tomá-la como objeto de reflexão filosófica, mesmo quando esse olhar exterior fosse histórico ou sociológico? A ciência como conhecimento em movimento Michel Paty Centre National de la Recherche Scienfique (CNRS); Equipe REHSEIS; Université Paris 7; Departamento de Filosofia/USP 1. A minha questão é a seguinte: Quando se considera uma ciência através de um processo histórico, mesmo localizado, sempre constatam-se mudanças e até progresso: aponta este movimento para uma diferença entre conhecimento (relacionado à idéia de movimento e de procura) e saber (conjunto de conteúdos considerados estaticamente)? O que se chama ciência é este saber, ou é também este conhecimento em movimento? Deve-se considerar a racionalidade somente nas proposições estabelecidas ao final, ou ela participa do próprio movimento que elabora a ciência? A ciência em elaboração é um campo de problemas filosóficos? Em que sentido? 2. Devo comentar um pouco sobre esta questão, seus porquês e como. Trata-se, com a formulação aqui proposta, de especificar um aspecto da ciência considerada de maneira geral como objeto de investigação pelo pensamento. Tal aspecto é que a ciência se transforma, muda, nas suas formas e nos seus conteúdos de significação: ela varia e se modifica com o tempo, com a história dos homens no tempo; ela é histórica, porém contínua, BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005. As questões 9 nem se podia fazer, da mesma forma, como este uso particular da matemática no pensamento da mecânica. Mas a matemática dava uma grande lição até para os outros conhecimentos, sendo ela, segundo Kant, um exemplo nítido da “razão pura”. Era assim possível, baseando-se nos resultados mais seguros da ciência do seu tempo, delinear uma teoria crítica da razão pura, que permita entender como é que a ciência (na variedade dos seus ramos) é possível. 5. Encontramos aqui uma lição do programa kantiano de justificação racionalista do conhecimento, que é este de tomar o conhecimento, na forma e nos modos que ele tem, como um fato, e sendo este um fato, como os demais fatos, é legítimo tentar entendê-lo (como ele é, e, sobretudo, como ele é possível). Ao contrário do empirismo, a perspectiva kantiana é de entender o conhecimento racionalmente, e por isto, de estabelecer racionalmente a sua possibilidade. Tal é um aspecto importante, talvez o mais importante, da questão “a ciência como objeto”. Temos que entender como é que a ciência é possível, a ciência considerada como sendo um conhecimento seguro (pelo menos bastante seguro) e inteligível, isto é, captado pela estruturação racional do pensamento do sujeito humano transcendental. Esta estruturação racional era concebida por Kant (das “formas puras da sensibilidade”, que enquadram e condicionam a percepção, até as categorias do entendimento que permitem a apreensão analítica e sintética, incluindo o “sintético a priori”, nó da elaboração kantiana) como intangível, adquirida uma vez por todas1. Se não fosse o caso, estimava ele, recairíamos nas perspectivas do empirismo, sem possibilidade de entender porque se entende a ciência: ela seria simplesmente dada, e deixaria de ser a ciência, se ela não fosse enquadrada pela razão (pura). Em princípio, o conhecimento segundo Kant pode se modificar e crescer. Mas, basicamente, ele teria que ficar dentro dos moldes da razão pura, os quais, por abrangentes que estejam, estavam, como nós sabemos hoje, marcados pelos limites da ciência mais segura do tempo, elaborada em tôrno da mecânica clássica. 6. Ora, a ciência muda, sem entretanto deixar por isso de ser ciência. A ciência mudou desde o tempo do iluminismo e da filosofia kantiana, sem deixar de ser ciência, e na continuação daquela precedente, mas sem 1 Kant [1781-1787]. Michel Paty 10 mais se deixar adequar aos requisitos da filosofia kantiana que devia, pelo menos, sofrer alterações e ser adaptada. Tais tentativas foram feitas pelos neo- kantianos: por exemplo por Ernst Cassirer, que propôs superar os limites da concepção kantiana do espaço e do tempo, inadequada para dar conta da teoria da relatividade, substituindo estas formas da intuição pura por uma “função de espacialidade” permitindo a construção de conceitos de espaço e de tempo mais físicos e adequados às exigências da física contemporânea2. Mas este tipo de adaptação sofre de uma falta de generalidade, quando se necessita repensar as grandes linhas da filosofia racionalista. Em particular, era necessário reconsiderar o sintético a priori, que Kant colocava no centro do seu edifício. Os empiristas e positivistas lógicos, propunham uma pura e simples “dissolução do sintético a priori”, mas esta seria também a dissolução da racionalidade. Pois, com a rejeição do sintético a priori, rejeita-se a sua função, que é a da organização racional dos elementos de conhecimento. 7. Se nós compartilhamos da perspectiva racionalista, no sentido kantiano da superação do empirismo, nós temos que manter a idéia de uma função de racionalidade, que teria de ser concebida diferentemente do sintético a priori kantiano no sentido estrito, isto é, no seu caráter intangível, inerente, na sua forma proposta, ao pensamento humano3. Da nossa perspectiva racionalista, pretendemos, como Kant, tomar a ciência como um dado, sem com isso nos satisfazer com a sua simples aceitação à maneira dos empiristas, mas tentando entendê-la com a razão. Só que nós sabemos agora que este objeto da nossa investigação, o conhecimento científico, transforma-se historicamente de tal maneira a colocar em jogo até as noções que nos pareciam as mais bem estabelecidas e fundadas (espaço, tempo, uma certa acepção da causalidade etc.). Tomando como objeto de investigação a ciência tal como é dada, temos que levar em conta esta lição dos fatos do conhecimento: a ciência muda, nossas formas de conhecimento mudam também. A nossa concepção das condições de possibilidade também vão ter que mudar, se mantemos o programa de uma inteligibilidade racional do objeto 2 Cassirer [1922]; veja Paty [1993], cap . 7. 3 Veja, a este respeito: Paty [1992] As questões 11 científico mesmo. Há indícios de que tal programa não só é legítimo, mas também é conformado aos fatos (a ciência e sua história). É possível pensar que a razão seja capaz de dar conta destas mudanças, pois ela fornece de fato conhecimentos teóricos, que estão bem longe de todo empirismo, e que são pelos menos tão adequados quanto na época de Kant (em verdade, eles são mais adequados, e mais diversificados). São conhecimentos inteligíveis que por sua firmeza parecem bem fundados na razão. Tais índices sugerem o rumo a tomar para nossa investigação: temos que empreender novamente, como Kant o fez no seu tempo, o estudo das estruturas da razão, mas numa perspectiva transformada pelo fato de mudanças radicais do conhecimento e da estruturação do conhecimento terem ocorrido e, portanto, serem possíveis. O guia a seguir será considerar a racionalidade não como uma forma fixa e fechada, mas como sendo definida essencialmente por sua função: como a função do pensamento que integra os conhecimentos de tal modo que nos tornam inteligíveis. 8. Há outros aspectos das mudanças no “objeto ciência”. Mencionamos apenas alguns: a questão de fundamentos racionais do conhecimento não sofre da impossibilidade lógica encontrada no século xx pela questão dos fundamentos lógicos, mas se se fala de fundamentos, não pode ser no mesmo sentido que previamente, e a noção de fundamentos ou de fundação deve ser repensada. Em particular, se se pode pensar em atribuir fundamentos racionais ao conhecimento científico, é claro que estes fundamentos não podem ser concebidos como já presentes no início, como uma base estática que conteria em potência o conhecimento, atual e futuro. Seria no melhor dos casos uma base provisória, considerada como numa parada no caminho, para avaliar onde estamos e o que temos obtido em matéria de conhecimento assegurado. Aqui aparece uma distinção necessária a ser feita entre conhecimento (relacionado com a idéia de movimento e de procura) e saber (como conjunto de conteúdos considerados estaticamente). O que se chama ciência não se limita a um saber considerado parado, mas é também e sobretudo este conhecimento em movimento. Uma questão de fundamentos de uma ciência em movimento só pode ser considerada dinamicamente: o saber atual não é o fim da ciência, a ciência de hoje está As respostas A atividade científica como objeto da ciência: uma perspectiva contextualista behaviorista radical Alexandre Dittrich Departamento de Psicologia/UFPR Resumo: O behaviorismo radical, enquanto filosofia contextualista, considera a atividade científica como objeto de estudo legítimo para a análise do comportamento. Para o behaviorista radical, o comportamento do cientista deve ser compreendido como atividade-em-contexto. Através do modelo de seleção por conseqüências, o behaviorismo radical procura compreender as características peculiares da atividade científica a partir das conseqüências que as selecionam – especialmente, aquelas estabelecidas pela cultura na qual está inserido o cientista, incluindo a comunidade científica da qual faz parte. O behaviorismo radical afasta-se de doutrinas epistemológicas essencialistas ou relativistas. As leis científicas são analisadas enquanto regras, sendo julgadas por sua utilidade como guias para a ação diante de certos objetivos, e não por sua correspondência com a realidade. Para o behaviorista radical, além disso, ciência e ética são indissociáveis. A atividade científica, enquanto instrumento de modificação do mundo, gera conseqüências de ordem ética e política. A própria “neutralidade” do pesquisador é assegurada a partir de regras éticas adotadas pelas comunidades científicas. Palavras-chave: ciência, contextualismo, behaviorismo radical, epistemologia. Psicologia, Behaviorismo Radical e Contextualismo Via de regra, caracteriza-se o objetivo da ciência como sendo o de “construir conhecimento sobre o mundo”, ou sentença que o valha. Obviamente, cada comunidade científica elegerá um “mundo” particular ao qual direcionar seu interesse: física, química, biologia, psicologia, etc. circunscrevem certas classes de fenômenos como seus objetos privilegiados, demarcando fronteiras mais ou menos nítidas entre as diversas ciências de acordo com tal circunscrição. Contudo, embora seja o primeiro passo para a construção de teorias científicas, a demarcação de objetos de estudo pode revelar-se uma tarefa bastante complexa e controversa. A psicologia – que BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005. As respostas 15 caracteriza-se, assim como as demais ciências denominadas “humanas”, por uma notável pluralidade epistemológica – encontra, já neste momento, a raiz de muitas de suas divergências internas. Pode-se definir, por exemplo, o objeto privilegiado de estudo da psicologia como a mente, a consciência ou o inconsciente – e a mera opção por uma dessas designações não esgota o problema, pois cada uma delas presta-se, ainda, a definições subseqüentes. O behaviorismo radical é uma filosofia que visa sustentar um método específico de produção de conhecimento em psicologia, denominado análise do comportamento (Skinner, 1974). A análise do comportamento explicita, já em sua denominação, qual o seu objeto de estudo. Contudo, assim como ocorre com as demais palavras que visam definir objetos de estudo em psicologia, também a palavra “comportamento” está sujeita a diferentes definições. A definição adotada pelo behaviorismo radical, como veremos adiante, traz implicações importantes para a análise desenvolvida por essa filosofia sobre a atividade científica. A filosofia behaviorista radical encontra sua principal fonte na obra do psicólogo norte-americano B.F. Skinner (1904-1990). Para esta filosofia, a relação de conhecimento entre o cientista e seu objeto de investigação é, por si mesma, um objeto de estudo legítimo no âmbito de uma ciência do comportamento (Abib, 1993b; Skinner, 1945/1972, p. 380; 1963/1969, p. 228; 1974, p. 234-237; Zuriff, 1980). Conhecer o mundo é comportar-se de certas formas em relação a ele – e, portanto, a atividade científica faz parte do campo de interesses do analista do comportamento. É o desenvolvimento dessa premissa que confere à epistemologia behaviorista radical certas características originais em relação às epistemologias fundamentadas exclusivamente na argumentação filosófica. O behaviorismo radical é uma filosofia psicológica: uma filosofia informada por dados produzidos pela análise do comportamento. Uma filosofia psicológica pode ser acusada de circularidade. Ela apóia sua reflexão filosófica em dados científicos, mas estes dados foram produzidos através de um método, cuja escolha deve-se, por sua vez, a opções de ordem Alexandre Dittrich 16 filosófica.1 O behaviorismo radical reconhece tal circularidade, bem como a possibilidade de escolha de outros métodos em psicologia, a partir de outros pressupostos filosóficos. Escolhas filosóficas sempre precedem práticas científicas – ao menos sob o aspecto lógico, ainda que nem sempre sob o aspecto histórico.2 Contudo, mesmo que se reconheça a especificidade epistemológica do behaviorismo radical e dos métodos dele derivados, isso não desqualifica suas possíveis contribuições enquanto filosofia psicológica. Como afirma Zuriff (1980), “Uma ciência do comportamento inevitavelmente volta-se para dentro de si mesma” (p. 337) – isto é, inevitavelmente analisa, em algum momento, o próprio comportamento dos cientistas. O procedimento é comum também em filosofia, como dão prova as análises filosóficas “meta”. Poderíamos afirmar, diante do exposto, que o behaviorismo radical é, no sentido epistemológico, um naturalismo? Uma resposta adequada exigiria o aprofundamento em diversas questões que não concernem ao presente trabalho. Pode-se, porém, afirmar o seguinte: para o behaviorista radical, problemas filosóficos podem ser cientificamente investigados de forma proveitosa.3 O contínuo intercâmbio entre filosofia e ciência é uma característica marcante da comunidade dos analistas do comportamento. Demarcar fronteiras rígidas entre filosofia e ciência não constitui, para o behaviorista radical, uma estratégia produtiva. A circularidade, porém, permanece: a análise do comportamento é um saber sobre o saber, uma ciência da ciência. Contudo, de acordo com Skinner, se as escolhas do behaviorismo radical são arbitrárias e circulares, não o são mais do que qualquer outra escolha filosófica ou metodológica: (...) falar sobre o falar não é mais circular do que pensar sobre o pensar ou saber sobre o saber. Estejamos ou não nos elevando através de nossos próprios recursos, o simples fato é que nós podemos fazer progresso em uma análise científica do comportamento verbal (1945/1972, p. 380). 1 Usaremos o termo “escolha” por conveniência, mas entendemos que uma “escolha” filosófica não implica, necessariamente, qualquer deliberação ou opção consciente por parte de quem a realiza. 2 Tais escolhas, contudo, também integram o campo comportamental – e, portanto, a realização de escolhas filosóficas também figura entre os objetos de interesse para a análise do comportamento. 3 Contudo, nem todos os problemas filosóficos admitem soluções científicas. O aspecto prescritivo da ética é um exemplo digno de nota. As respostas 19 produzem “verdades” – isto é, porque tais métodos permitiram, em muitas ocasiões passadas, a formulação de leis científicas que serviram como regras úteis na interação dos membros da cultura com seus ambientes. O cientista, por sua vez, pode ser ensinado por uma comunidade científica a valorizar a simples aplicação de um método científico, por sua capacidade de produzir “verdades”, ou de revelar “o mundo como ele é”. As conseqüências da aplicação do método podem, a partir disso, ser suficientes para explicar porque o cientista o aplica. Tecnicamente, os analistas do comportamento diriam que os operantes que integram as práticas denominadas “método científico” foram reforçados no repertório comportamental do cientista. Denomina-se “reforço” qualquer conseqüência de uma resposta operante que aumente a probabilidade subseqüente de emissão das respostas pertencentes a um operante, diante de situações similares. Esta “similaridade”, por sua vez, é definida pela presença dos chamados “estímulos discriminativos” – isto é, características do ambiente em cuja presença uma resposta pertencente a certo operante é reforçada ou punida. Um “operante” é uma classe de respostas operantes que produzem determinadas conseqüências sob certas circunstâncias. “Respostas operantes” são instâncias do comportamento de um organismo que modificam seu ambiente, produzindo certas conseqüências. Tais conseqüências apresentam efeito seletivo sobre o repertório de operantes de um organismo – isto é, podem aumentar (conseqüências reforçadoras) ou diminuir (conseqüências punitivas) a probabilidade de ocorrência posterior dos operantes que as produziram. Denomina-se “contingência de reforço” (ou punição) a relação entre estímulos discriminativos, respostas operantes e conseqüências seletivas. Quando um analista do comportamento fala em comportamento operante, refere-se à relação entre comportamento e ambiente definida pelo conceito de contingências de reforço. Ciência, Utilidade e Verdade O comportamento operante é útil quanto é reforçado, positivamente ou negativamente. Um reforçador positivo é um objeto ou evento que aumenta a probabilidade de ocorrência de um operante cujas respostas ocasionem sua Alexandre Dittrich 20 apresentação ou aumento. Um reforçador negativo é um objeto ou evento que aumenta a probabilidade de ocorrência de um operante cujas respostas ocasionem sua remoção ou diminuição. Contudo, objetos ou eventos não possuem valor reforçador universal. Através do processo denominado “condicionamento operante”, objetos e eventos adquirem valor reforçador diferenciado para diferentes organismos. Em linguagem vulgar, diríamos que isso explica porque cada ser humano gosta (aprecia, valoriza, estima, etc.) de objetos ou eventos diferentes – ou ainda, porque diferentes seres humanos possuem diferente objetivos, ou diferentes valores. Sob uma perspectiva contextualista, a consideração desta diversidade de objetivos é fundamental para a discussão do significado da palavra “utilidade”. O que é algo útil? É algo que permite a um ser humano alcançar certos objetivos. Contudo, os objetivos dos seres humanos são os mais diversos. Assim, é impossível definir o que é “essencialmente” útil ou inútil, de forma abstrata. Só podemos definir se algo é útil ou não em relação a determinado objetivo ou conjunto de objetivos. A verdade – científica ou não – é algo útil: algo que permite aos seres humanos alcançar certos objetivos. Comunidades científicas possuem certos objetivos; outras comunidades possuem outros objetivos: “É uma distinção entre os tipos de vantagens obtidas pela comunidade que permite-nos distinguir entre subdivisões literárias, lógicas e científicas” (Skinner, 1957, p. 429). O comportamento literário, por exemplo, gera conseqüências reforçadoras para o indivíduo e para os demais membros de sua cultura – e, por isso, é reforçado pela cultura. Mas essas conseqüências não são, necessariamente, “práticas” no sentido usual. Não obstante, as regras que governam o comportamento literário podem ser mais ou menos reforçadoras – isto é, mais ou menos úteis ou “verdadeiras”. O grau dessa utilidade depende não só da execução do comportamento adequado diante das contingências estabelecidas pela comunidade literária, mas também das práticas adotadas por esta comunidade e pela cultura na qual esta se insere no sentido de reforçar o comportamento literário de seus membros. O contextualismo, contudo não se identifica com o relativismo. Ainda além, o behaviorismo radical evita os jogos de linguagem típicos da oposição As respostas 21 objetivismo-relativismo, introduzindo uma descontinuidade no discurso que configura tal oposição (Abib, 2001). O “vale-tudo” do relativismo é estranho ao contextualista. As práticas científicas são mais úteis, ou mais verdadeiras, conquanto vise-se alcançar certos objetivos estabelecidos pelas ciências. Práticas literárias são menos úteis ou verdadeiras diante de tais objetivos – mas são mais úteis ou verdadeiras diante dos objetivos de comunidades literárias. Uma perspectiva contextualista desautoriza concepções essencialistas de utilidade e verdade. Tampouco interessa ao contextualismo adotar os jogos de linguagem típicos da oposição realismo-idealismo. O behaviorista radical não vê interesse em discutir qual dentre as possíveis descrições do mundo – mesmo as científicas – é mais ou menos “verdadeira”, no sentido realista da palavra: qual delas, se alguma, “reflete” o mundo de forma mais acurada. A antiga definição de “verdade” como adequação entre a mente (ou o discurso) e a realidade é antitética ao contextualismo. Suponhamos que duas pessoas queiram, de acordo com essa definição, decidir qual dentre duas afirmações sobre o mundo (quaisquer que sejam) é a mais verdadeira – qual descreve a realidade de forma mais verossímil. Seria possível a algum dos contendores exceder sua própria subjetividade e lançar um rápido olhar sobre o mundo “como ele realmente é”, retornando em seguida para contar as novas? Para o contextualista, visões de mundo – científicas ou não – são necessariamente subjetivas: subjetividade é comportamento de um sujeito-em-contexto, e é interagindo com o mundo de formas particulares que um sujeito o conhece. Poder-se-ia denominar tal postura como “idealista” – mas, lembremo- nos, a discussão realismo-idealismo é estranha ao contextualista. Um idealista (ao menos em sua versão “pura” ou “radical”) assume que o mundo com o qual temos contato é uma criação subjetiva: um sujeito só tem contato com o que lhe informam seus sentidos ou seu intelecto, e isso impede qualquer afirmação sobre a existência de um mundo externo ao sujeito. Nenhuma dessas posturas coaduna-se com o behaviorismo radical. A definição de subjetividade como comportamento de um sujeito-em-contexto vai além de considerações sobre o Alexandre Dittrich 24 Ciência, Ética e Política O behaviorismo radical é uma filosofia conseqüencialista do comportamento. O comportamento humano, de acordo com esta filosofia, só pode ser integralmente compreendido através da conjugação de variáveis seletivas de ordem filogenética, ontogenética e cultural. Assim, analisar as conseqüências da atividade científica é fundamental a partir de uma perspectiva contextualista da ciência. As conseqüências da atividade científica – como as de toda atividade humana – não são apenas conseqüências reforçadoras ou punitivas. A ciência é uma prática cultural – e, como as demais práticas culturais, a ciência produz conseqüências de longo prazo, que afetam as possibilidades de sobrevivência das culturas e, em última análise, da própria espécie humana. A ciência é uma atividade com conseqüências éticas: conseqüências reforçadoras e punitivas, mas também conseqüências com certo valor de sobrevivência para as culturas. Enquanto prática cultural, a ciência visa certos objetivos valorizados pelas culturas – em especial, visa permitir ou facilitar a previsão e a intervenção sobre certos fenômenos. No horizonte das técnicas científicas, encontraremos sempre conseqüências de ordem ética – o que impede-nos de isolar técnicas “puras”, sem matizes políticos. Técnicas com objetivos éticos são políticas – e não existem técnicas sem objetivos éticos (ou, pelo menos, sem conseqüências éticas, mesmo que não planejadas). Técnica e política são indissociáveis – visto que uma técnica posta em uso sempre produz conseqüências de ordem ética, planejadas ou não. O que dizer, porém, do cientista enquanto pesquisador? Não estará ele produzindo um saber objetivo, a partir de uma visão eticamente neutra sobre seu objeto de estudo? As possíveis relações entre ideologia e ciência são assunto controverso – porém, via de regra, o cientista aprende que não deve permitir que seus próprios pressupostos éticos ou políticos interfiram sobre a produção e apresentação de dados científicos. De forma aparentemente paradoxal, a comunidade científica – pelo menos no campo das ciências naturais – possui uma ética interna que pune desvios como a personalização ou politização dos dados científicos. O cientista aprende, em suma, a descrever o mundo “como ele realmente é”, e não como ele supõe que seja, ou gostaria As respostas 25 que fosse. A rigorosa obediência a esta regra traz valiosos dividendos: ela contribui para a efetividade das leis científicas. Retomando as famosas palavras de Bacon, “(...) a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática” (1620/1999, p. 33). “Obedecer à natureza”, contudo, é um aprendizado, sujeito a uma ética particular – e, ao menos nesse sentido, o pesquisador está tão sujeito a influências éticas quanto qualquer ser humano. Conclusão Sob uma perspectiva contextualista e behaviorista radical, a compreensão da atividade científica exige a análise do comportamento do cientista enquanto membro de comunidades verbais inseridas em culturas. A atividade científica gera conseqüências que explicam sua manutenção enquanto prática cultural, e o comportamento do cientista, como o de qualquer ser humano, também é explicado, pelo behaviorista radical, a partir das conseqüências que produz. Produzir conhecimento é sempre atividade-em- contexto – e, considerando a variabilidade de contextos epistemológicos possíveis, as práticas de controle da produção de conhecimento também variam entre as diferentes comunidades verbais. As regras estabelecidas pelas comunidades científicas buscam possibilitar a produção de leis que permitam manipular certos fenômenos visando certos objetivos. Estes objetivos, porém, não se esgotam no aspecto tecnológico. Sob a perspectiva contextualista do behaviorismo radical, ciência e ética não podem ser dissociadas, pois as conseqüências geradas pelas técnicas científicas são também conseqüências de ordem ética e política – conseqüências que transformam o mundo visando certos objetivos. Bibliografia ABIB, J.A.D. “’A psicologia é ciência?’ Ciência é articulação de discursos da filosofia, da história da ciência e da psicologia”. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 9, 1993, p. 465-486. ABIB, J.A.D. Teorias do comportamento e subjetividade na psicologia. São Carlos, SP: EDUFSCar, 1997. Alexandre Dittrich 26 ABIB, J.A.D. “Behaviorismo radical como pragmatismo na epistemologia”. In: Guilhardi, H.J., Madi, M.B.B.P., Queiroz, P.P. & Scoz, M.C. (orgs.). Sobre comportamento e cognição – vol. 8: Expondo a variabilidade. Santo André, SP: ESETec, 2001. p. 158-161. BACON, F. Novum Organum. Trad. J.A.R. de Andrade. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores). (Trabalho original publicado em 1620). CARRARA, K. “Implicações do contextualismo pepperiano no behaviorismo radical: Alcance e limitações”. In: Guilhardi, H.J., Madi, M.B.B.P., Queiroz, P.P. & Scoz, M.C. (orgs.). Sobre comportamento e cognição – vol. 8: Expondo a variabilidade. Santo André, SP: ESETec, 2001. p. 234-242. MORRIS, E.K. “Contextualism: The world view of behavior analysis”. Journal of Experimental Child Psychology, v. 46, 1988, p. 298-323. PEPPER, S.C. World hypotheses: A study in evidence. Berkeley: University of California Press, 1970. (Trabalho original publicado em 1942). SKINNER, B.F. Verbal behavior. New York: Appleton-Century-Crofts, 1957. SKINNER, B.F. Science and human behavior. New York: Macmillan, 1965. (Trabalho original publicado em 1953). SKINNER, B.F. “Behaviorism at fifty”. In: __________. Contingencies of reinforcement: A theoretical analysis. New York: Appleton-Century- Crofts, 1969. p. 221-268. (Trabalho original publicado em 1963). SKINNER, B.F. “An operant analysis of problem solving”. In: __________. Contingencies of reinforcement: A theoretical analysis. New York: Appleton-Century-Crofts, 1969. p. 133-171. (Trabalho original publicado em 1966). SKINNER, B.F. “The operational analysis of psychological terms”. In: __________. 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O diagnóstico de ambos era o mesmo: a ciência está muito bem estabelecida – exceto talvez pela ingerência espúria de uma metafísica que, nas palavras de Kant, "falsamente procurasse compreender a si mesma" – e, em virtude disso, realizou progressos tão extraordinárias naqueles anos recentes; ao passo que a filosofia, pelo contrário, ainda não trilhou o caminho de uma ciência e, por conseguinte, não parece ter avançado uma linha sequer do legado dos antigos. Ora, essa cena muda radicalmente na segunda metade do séc. XX. Não que se julgasse a filosofia em melhor estado do que estivera no tempo de Hume e Kant. Talvez muito pouco se alterou na auto-imagem que filósofos nutriam da sua atividade profissional. O surpreendente era que a ciência passou a ser objeto do mesmo tipo de desconfiança que há séculos assolava a filosofia. Como sugeri acima, essa nova situação pode ter sido precipitada pelo declínio da crença nas credenciais epistêmicas de um presumido "método científico". Invoco novamente Sir Karl Popper para fornecer um retrato dessa época: "... a primeira tarefa da lógica do conhecimento é propor um conceito de ciência empírica de modo a chegar a um uso lingüístico, que atualmente é um tanto incerto, tão definido quanto possível, e de modo a traçar uma linha clara de demarcação entre a ciência e as idéias metafísicas..." (1980, p. 13) Talvez como a maioria dos seus predecessores, Popper compreendeu o problema de articular um "conceito de ciência empírica" como um problema de metodologia; tanto que acreditou que uma mesma solução serviria ao problema (conceitual) da demarcação e ao problema (metodológico) da indução, a saber, o falseacionismo. Todavia, por mais desinteressante que possa ser a solução proposta por Popper para o problema por ele batizado de "problema da demarcação", o seu modo de colocar a questão nos interessa sobremaneira. Popper demanda por um conceito de ciência, reconhecendo que esse termo tem atualmente um uso muito incerto ou, o que parece ser o mesmo, ambíguo. A conseqüência disso é que, na falta de um emprego uniforme do termo "ciência", não se pode nem ao menos cogitar "uma linha clara de demarcação entre a ciência e as idéias metafísicas..." A solução do problema da Eduardo Salles O. Barra 30 demarcação pressupõe, portanto, um conceito ou uma definição adequada de ciência. Os predecessores mais imediatos de Popper na filosofia da ciência foram pródigos em propor soluções para esse último problema. Os positivistas lógico fiaram-se em métodos semânticos – teorias do significado – para determinar as formas genuínas da enunciação, admitindo de antemão que elas se encontravam exclusivamente no domínio das proposições científicas. A metafísica – nome genérico dado a toda filosofia refratária a reduzir-se a um mero instrumento da análise lógica da linguagem –, por outro lado, deveria concentrar as formas abusivas de emprego da linguagem, isto é, as pseudo- proposições. Tudo parecia muito bem projetado e coerente com a convicção de que deve haver "uma linha clara de demarcação entre a ciência e as idéias metafísicas..." Todavia, por décadas, as diversas tentativas feitas pelos positivistas lógico no sentido de identificá-la enredaram-se à mesma dificuldade: a impossibilidade de articular um critério de significação (genericamente, chamado de verificabilidade) capaz de excluir todas as idéias metafísicas do domínio da ciência e apenas elas. Por vezes, um determinado critério que se mostrava capaz de excluir explicações neo-vitalistas, por exemplo, do domínio da biologia, tinha como conseqüência indesejável nos obrigar a excluir também explicações evolucionistas amplamente aceitas pelos biólogos. Essas e muitas outras dificuldades solaparam não apenas os esforços dos positivistas do último século, mas também os do próprio Popper, predispondo ao fracasso qualquer tentativa de articular critérios de demarcação com base num presumido conceito de ciência. É duvidoso que esse tipo de dificuldade seja suficiente para despachar qualquer nova tentativa de articular um conceito de ciência como ociosa e fadada ao fracasso. O fato é, no entanto, que, após o adeus ao método científico, a filosofia da ciência contemporânea parece também disposta a dar adeus ao conceito de ciência. Na possibilidade de que isso venha efetivamente a ocorrer, toda pretensão de que a ciência possui uma natureza sui generis, distinta da metafísica ou da filosofia de uma maneira geral, não significará mais do que uma alegação sem qualquer sustentação conceitual, isto é, sem que em seu favor possam ser alegadas razões derivadas das credenciais epistêmicas As respostas 31 exclusivas da ciência. Nas palavras de um dos mais destacados defensores atuais dessa posição, Larry Laudan, "a evidente heterogeneidade das atividades e crenças habitualmente encaradas como científicas alerta-nos para a provável futilidade de buscar uma versão epistêmica para o critério de demarcação." (1996, p. 221) Antes de prosseguir, convém demorarmos um pouco mais na análise das idéias de Laudan sobre o problema da demarcação – ou, no entender desse autor, sobre a sua necessária extinção. Conforme vimos na citação anterior, um dos pontos de partida de Laudan é "a evidente heterogeneidade epistêmica das ciências", que ele descreve como o fato de que se aceitam tanto teorias bem-testadas quanto teorias que não o são, que há ramos da ciência com altas taxas de progresso enquanto outros nem tanto, que algumas teorias fazem muitas predições surpreendentes enquanto outras não fazem nenhuma etc. Isso significa que nenhum desses supostos critérios – testabilidade, progressividade ou fazer predições surpreendentes, entre outros – valem como características distintivas da ciência com respeito às demais atividades culturais. Na visão de Laudan, o que contam são as credenciais empíricas e conceituais das crenças acerca do mundo, "o status 'científico' dessas crenças é totalmente irrelevante." (1996, p. 222) Essa última afirmação é suficiente para mostrar que Laudan compartilha de convicções similares às que caracterizam um ponto de vista ainda mais extremo sobre a necessidade de abandonar nossas as preocupações com o problema da demarcação. Refiro-me a um autor em particular: Williard Quine. Quine foi quem, num artigo clássico de 1950, intitulado "Os Dois Dogmas do Empirismo", anunciou "o esfumar-se da suposta fronteira entre a metafísica especulativa e a ciência natural" (1980:231), antecipando em algumas décadas o quadro que viria a se consolidar com o fracasso das mais sofisticadas tentativas de esclarecer conceitualmente o estatuto científico das crenças intuitivamente tidas como tais. A dissolução da venerada fronteira entre a metafísica especulativa e a ciência natural outra coisa não é que um mero corolário da proposta quineana de supressão de outra fronteira mais ampla e inclusiva, qual seja, a fronteira entre o empírico e o a priori – ou, do modo como Quine mais constantemente se refere a ela, a distinção entre analítico e Eduardo Salles O. Barra 34 mais natural que assumi-la como objeto da especulação filosófica. A dúvida é como a ciência em elaboração pode revelar tais indícios de racionalidade ou como a razão pode estar presente na ciência enquanto essa se encontra em pleno processo de mudança. Tudo leva a crer que as dúvidas retóricas do prof. Paty não fariam muito sentido se encaradas da perspectiva proposta por Quine. Em primeiro lugar, para o tipo de resposta afirmativa que o prof. Paty pretende para as suas questões, deveria haver uma instância externa e anterior à "ciência em elaboração" capaz de determinar ou ao menos delimitar o que deve ser a razão ou um padrão de racionalidade. Em segundo lugar, essa instância externa e anterior à "ciência em elaboração" não poderia ser outra senão a filosofia e, por conseguinte, retornamos inevitavelmente a antigas crenças demarcatórias. Por fim, o caráter progressivo de qualquer "ciência em elaboração" deveria ser avaliado pela satisfatibilidade daquele padrão de racionalidade e não apenas pelo critério pragmático-empirista de antecipação da nossa experiência futura. Os últimos dois pontos parecem reverberar as conclusões de Putnam as tentativas de tipo quineana de naturalizar a razão ou, em outros termos, de eliminar o caráter normativo da filosofia – algo que, segundo ele, equivale a um "suicídio mental" (cf. Putnam, p. 437). As respostas afirmativas esperadas por Paty, assim como a externalidade reivindicada por Pablo, dependem de que a filosofia possa dispor de uma região do pensamento inacessível ou, no mínimo, incompatível com a natureza das práticas científicas. A dificuldade de admitir essa possibilidade – independentemente da sua factividade – é que ela parece exigir a reabilitação do entulho dogmático banido por Quine. Em particular, ela exige que a empresa filosófica seja concebida como uma forma genuína de conhecimento a priori, sustentado talvez pelo venerável método da análise conceitual. A solução para esse impasse pode estar em algum ponto intermediário entre ambos os extremos, em algo que poderíamos chamar como fez Laudan de "naturalismo normativo". Esse naturalismo normativo deveria ter como característica central a crença na continuidade entre ciência e filosofia, mas sem prejuízo da irredutibilidade mútua das regiões situadas nos pontos extremos de cada um dos dois lados. Quiçá desse modo propriedades antes As respostas 35 tidas como exclusividades da ciência e, em linhas gerais, motivadoras das antigas doutrinas demarcatórias possam também ser identificadas na filosofia, sem que isso signifique uma capitulação com respeito à sua natureza. Refiro- me em particular ao progresso. A tese da continuidade entre ciência e filosofia permite distinguir regiões dessa última – precisamente, aquelas que se mantêm mais indistintamente ligadas à primeira – em que o progresso poderia ser inequivocamente apontado – tão inequivocamente apontado quanto o pudesse ser na ciência. Bibliografia: LAUDAN, L. (1996) "The Demise of the Demarcation Problem" in ___________. Beyond Positivism and Relativism; Theory, Method and Evidence. Oxford: Westview Press, pp. 210-222. QUINE, W. V. (1980) "Dois dogmas do empirismo" in PORCHAT, O. (org.) Ensaios/Ryle, Austin, Quine, Strawson. São Paulo : Abril Cultural. 2. ed., pp. 231-248. (Col. Os Pensadores) POPPER, K. (1980) A Lógica da Investigação Científica. São Paulo : Abril Cultural (Col. Os Pensadores). João Carlos M. Magalhães 36 “A ciência como objeto” João Carlos M. Magalhães Departamento de Genética, SCB/UFPR Agradeço à organização deste evento pelo convite para participar da mesa de abertura. É uma honra e uma temeridade, pois não tenho formação regular em história ou filosofia. Tenho, entretanto, grande interesse no assunto. Em meu doutorado em biologia, tive o privilégio de ser orientado pelo Dr. Décio Krause, que trabalha com lógico e filosofia da ciência. O trabalho teve, portanto, caráter interdisciplinar. Investigamos alguns aspectos da estrutura lógica de partes da biologia evolutiva. Ao contrário do que se faz comumente em ciências, onde as teorias são desenvolvidas e utilizadas para a investigação da natureza, tomamos as próprias teorias biológicas como objeto de investigação. Isto é exatamente o que é colocado pelas perguntas formuladas pelos Profs. Pablo Mariconda e Michel Paty. A idéia surgiu da constatação de certas dificuldades que surgem quando se integra elementos da genética à teoria da seleção natural de Darwin, particularmente problemas relativos à extensão do conceito de fitness, originalmente aplicado a organismos, para os genes e genótipos. Partimos de questões relativas à biologia evolutiva para a discussão da natureza dos conceitos e estrutura das teorias envolvidas, o que, acredito, caracteriza um interesse filosófico. O que vou falar, entretanto, não deve ser encarado como o desenvolvimento de teses filosóficas originais, mas como um simples depoimento de alguém que, proveniente das fileiras da ciência, aproximou-se deste tipo de problema em decorrência da necessidade de investigar os fundamentos do que fazia. Será, portanto, uma visão muito particular. A primeira constatação foi a grande diversidade de perspectivas possíveis. As diversas disciplinas a partir das quais se pode tomar a ciência por objeto, como a história, sociologia e a lógica, comportam diferentes abordagens. Em cada perspectiva, entretanto, é necessário um certo distanciamento, é preciso usar conceitos e métodos apropriados, nitidamente distintos dos conceitos e métodos de investigação científica, e ainda mais As respostas 39 O progresso da ciência não é linear e contínuo, nem caminha diretamente para o pensamento contemporâneo como único movimento possível. Mesmo quando se estuda o trabalho de um cientista em um período particular da história, é preciso situá-lo no movimento geral das idéias. Como fazer isto depende da vertente teórica adotada pelo historiador. Neste sentido, um aspecto a ser explorado é o papel das teorias em ciência. Como é bem conhecido, de acordo com a concepção tradicional associada ao positivismo lógico, poderíamos pensar nas teorias da ciência como algo passível de ser reconstruído racionalmente, como sistemas lógicos, conjuntos de proposições e suas conseqüências. No caso de ciências da natureza, o teste empírico poderia fornecer, de algum modo, o crivo para se verificar a validade ou adequação das teorias. Não se pode fazer injustiça às formidáveis contribuições propiciadas pela análise da estrutura lógica das teorias científicas realizadas dentro desta concepção, com todos os seus desdobramentos, mas, como se sabe, esta visão tem suas limitações. O modo como se faz a caracterização das teorias científicas não é consensual, cada tentativa representa apenas uma visão possível das mesmas. De qualquer modo, pode-se pensar no progresso científico como uma sucessão de teorias cada vez mais poderosas, no sentido de fornecer melhores explicações para os fatos conhecidos, gerar novos conhecimentos, aplicações e também novos problemas. O que se entende normalmente por “ciência” não é só teoria. Existem experimentos, dados, resultados, aplicações, conclusões, entre outras coisas. Influências externas, isto é, culturais, sociais, econômicas ou políticas, podem ser fundamentais em cada etapa do desenvolvimento da ciência. Aspectos psicológicos também devem ser levados em conta. A distinção entre um “contexto da descoberta” em que o cientista estaria sujeito a todos estes condicionantes, e um “contexto da justificação”, em que ele apresentaria seus resultados re-elaborados, entretanto, pode dar a falsa impressão que a racionalidade intervém apenas após o trabalho científico, como mera justificação do mesmo. Podemos aceitar que, de fato, a ciência não é uma atividade totalmente racional. A maior parte do tempo o cientista trabalha dentro do que Khun João Carlos M. Magalhães 40 chamou de ciência normal, no interior de um paradigma, resolvendo “quebra cabeças”. Estas atividades não são banais, têm suas próprias dificuldades, mas o pesquisador atua principalmente como um técnico, não precisa durante todo o tempo distanciar-se e refletir sobre o conjunto destas atividades nem como elas se inserem no campo maior da ciência. Em diversos momentos, entretanto, precisa questionar o que está fazendo, por exemplo, ao escolher um tema de pesquisa, justificar resultados inesperados, encontrar lacunas ou inconsistências no raciocínio normalmente aceito, etc. Enquanto planeja, discute seu trabalho ou dialoga com outras áreas, o cientista pode questionar coisas que vão além de seu próprio campo de trabalho, como os fundamentos em que se assentam as teorias ou os métodos que utiliza e, ainda que de modo informal, e no sentido comumente apontado para o termo, ele está sendo racional. Deste modo, parece-me que a ciência em elaboração pode ser um campo de problemas filosóficos, na medida em que o cientista tem que tomar posições a respeito de questões que extrapolam os limites do conhecimento científico. Dependendo de como ele se posiciona em questões metafísicas, por exemplo, pode interpretar de diferentes maneiras um conceito ou pode optar por diferentes abordagens em seu trabalho. Tomar consciência clara destas posições pode representar uma influência positiva, e às vezes essencial, para este trabalho. Além disto, o resultado de suas atividades pode ter implicações éticas e políticas, difíceis de serem percebidas a partir de uma perspectiva individual ou tecnicista e sem o recurso a outros campos do saber. Exemplo disto é a discussão atual das normas para regulamentar a pesquisa biotecnológica, as quais devem considerar aspectos técnicos e científicos, mas não se esgotam apenas nisto. Dependendo como a sociedade lida com tais questões, isto também irá influenciar de diversas maneiras o desenvolvimento científico. Por estas razões, insisto, a crítica externa é importante para o cientista. Por outro lado, os avanços da ciência colocam em nova perspectiva conceitos tradicionalmente abordados pela filosofia como as noções de matéria, vida, individualidade e mente, entre uma infinidade de outras, forçando a rediscussão e o aprofundamento de tais temas, dentro e fora da academia. As respostas 41 Ora, o que é ciência? José Borges Neto Departamento de Lingüística/UFPR A questão que o Pablo coloca é muito interessante, porque muito reveladora de pressupostos ideológicos que enviesam a discussão sobre a natureza dos estudos que tomam a ciência, seus produtos e produtores, como objeto. Arrisco dizer que a ciência é uma atividade humana, coletiva, que tem por objetivo a busca do conhecimento seguro, fundamentado. É um “fazer” que existe há muito tempo e que se modifica com o passar do tempo (se modifica na sua forma e se modifica enquanto reflexão sobre si mesma). Bastante importante – mas não essencial, eu diria – é a “tipologia” que se aplica a esse fazer. Com base, particularmente, na delimitação dos domínios (das “áreas de atuação” de diferentes cientistas) distinguem-se tipos diferentes de ciência (Física, Biologia, Lingüística, Antropologia, História) e subtipos desses tipos (física quântica, genética, embriologia, antropologia física, antropologia social, etc.). Ressalto que não considero essencial essa “tipologia” porque ela não é natural (resulta de um certo olhar – histórico e ideológico – sobre esse fazer). Eu diria que são aspectos históricos, sociológicos, lingüísticos, éticos, etc., que fazem com que cientistas se digam geneticistas, ou bioquímicos; mais do que aspectos “objetivos”, propriamente ligados ao objeto (observacional ou teórico). Eu diria que esses diversos tipos de ciência se colocam num grande plano em que todos os tipos têm relações de semelhança e de diferença com os outros: nenhum é igual ao outro e são possíveis n agrupamentos distintos a depender do critério tipológico utilizado. Se eu olhar por um lado, coloco a lingüística junto com a física acústica; se olhar por outro lado, coloco a lingüística junto com a sociologia (e lingüística não é – nem se reduz a – sociologia ou física acústica). Creio que é num quadro como esse que podemos abordar a questão colocada pelo Pablo. José Borges Neto 44 da racionalidade é um movimento que supõe no objeto algo que eventualmente o objeto não tem. Todo cientista – os que estavam certos e os que estavam errados; os que inauguraram paradigmas e os que sumiram nas trevas do esquecimento – acha que está agindo racionalmente. Uma das tarefas do estudioso da ciência – e aqui creio que se trata de uma tarefa própria do filósofo da ciência – é a de dar, estabelecer, definir, construir a racionalidade do sistema sob análise. Finalmente, uma última palavra sobre a questão do Michel. Ele pergunta se a ciência em elaboração é um campo de problemas filosóficos. E eu diria que tudo é campo de problemas filosóficos, não só a ciência em elaboração. EIXO TEMÁTICO 1: MATEMATIZAÇÃO DA NATUREZA; MECANICISMO; FILOSOFIA DA NATUREZA A natureza do mecanicismo cartesiano César Augusto Battisti Professor da Graduação e do Mestrado em Filosofia/UNIOESTE RESUMO: O presente texto começa por apresentar características gerais do mecanicismo clássico para, em seguida, examiná-lo a partir de seu maior representante: Descartes. O mecanicismo cartesiano é exposto em quatro pontos. O primeiro discute a crítica à visão teleológica da natureza e a transposição indevida de propriedades feita do mundo da vontade e humano para o mundo físico. Em seguida, faz-se a discussão do mecanicismo sob o ponto de vista filosófico, físico e fisiológico. Em termos filosóficos, a distinção entre corpo e alma garante a independência do mundo físico em relação ao da alma, bem como lhe atribui, como essência, as qualidades mecânico-matemáticas. Do ponto de vista físico, é garantida a suficiência dessas qualidades para a explicação dos fenômenos naturais, de sorte que não é preciso admitir, aí, a existência das ditas qualidades secundárias. O mecanicismo ocorre também no âmbito interno das sensações ou fisiologicamente, de modo que as qualidades secundárias tampouco se originam ou têm importância nesse processo. E, assim, há uma continuidade plenamente mecânica entre o âmbito físico e fisiológico, não emergindo tais qualidades senão por intervenção ou por "interpretação" da alma. PALAVRAS-CHAVE: Descartes; antifinalismo físico; máquina; matematização; mecanicismo físico; mecanicismo fisiológico. 1. VISÃO GERAL: O mecanicismo foi certamente o grande movimento intelectual do século XVII, do qual, com exceção dos escolásticos remanescentes, fizeram parte praticamente todos os grandes filósofos e cientistas da época. Ele foi uma espécie de mentalidade, de visão de mundo, uma espécie de "paradigma" partilhado pela maioria dos sábios setecentistias, ainda que muitos destes não tenham aceitado essa ou aquela de suas teses centrais. O mecanicismo, em seus aspectos mais gerais, pode ser definido como um modelo explicativo das mais diferentes manifestações do mundo natural a partir de cinco eixos básicos: 1) a uniformização e a redução das entidades e processos existentes na natureza, de modo que todo fenômeno possa ser explicado por meio de elementos simples, tais como a matéria e o movimento, BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005. A natureza do mecanicismo cartesiano 49 confundir imaginação com fantasia. Não se pode confundir o sábio com o poeta, ainda que ambos se assemelhem quanto à sua capacidade criadora. O terceiro fator citado é o da introdução da matemática na estrutura explicativa dos fenômenos naturais. Aqui é preciso distinguir dois tipos de matemática, como dirá Descartes, uma abstrata, que trata de um assunto puramente matemático, e outra, voltada à explicação dos fenômenos físicos. Mas, mesmo neste último caso, não se trata de uma física matemática tal como nós a entendemos hoje. Antes de Newton, a introdução da matemática no conhecimento da natureza não significou plenamente, em muitos casos, a introdução do cálculo e a completa transposição matemática dos fenômenos explicados, nem a introdução de conceitos definidos claramente por relações matemáticas. Ao contrário, a matematização da natureza foi, antes de tudo, a introdução de uma racionalidade matemática. E isso significa: uma oposição à racionalidade ligada à sensibilidade e ao mundo da qualidade; uma racionalidade que pensa com a clareza presente na matemática e com o processo demonstrativo dessa ciência; uma racionalidade que reduz os elementos explicativos a elementos com propriedades quantificáveis e geometrizáveis, mas sem operar necessariamente de modo efetivo quantitativa e geometricamente sobre eles. O discurso permanece ainda, em muitos casos, qualitativo, ainda que feito sobre entidades de natureza quantitativa.1 Quanto ao quarto fator, o da distinção entre mundo da vontade e da liberdade e mundo natural e determinístico, os mecanicistas em geral pretendem se opor à concepção de natureza entendida como manifestação de um princípio vivo ou como algo governado por força vitais ou causas finais. Ao mesmo tempo, ainda que por razões distintas, eles se opõem a todo tipo de antropomorfismo, seja em função da discussão sobre a "infinitude" do mundo frente à "pequenez" humana e sobre a possibilidade da existência de outros seres inteligentes, seja em função do fato de que o antropomorfismo é injustificável por ser uma extrapolação do âmbito humano para o da natureza física e, portanto, por ser uma aplicação de categorias espirituais ou humanas 1 Em outros casos, entretanto, poderíamos dizer que o processo de matematização foi além, mesmo bem antes de Newton. Tal é o caso de fenômenos óticos, que receberam tratamento geométrico desde os gregos, mas também de fenômenos como o da queda dos corpos. César Augusto Battisti 50 ao mundo material. Um universo criado para o homem e, mais do que isso, estruturado de forma análoga ao homem não é mais aceito. Mas, para isso, foi preciso estabelecer a separação entre corpo e alma, entre liberdade do espírito e necessidade física, bem como estabelecer uma teoria do conhecimento e uma teoria da percepção que distinguissem claramente a significação subjetiva do mundo da sua realidade propriamente dita. Nessa perspectiva, vemos como o quinto e último fator está ligado de forma imediata ao anterior: a atribuição de causas finais ao mundo natural, a exemplo do mundo humano, é um desrespeito à distinção entre esses dois mundos. Esse ponto será desenvolvido um pouco mais abaixo, tomando por base o pensamento cartesiano. 2. Antifinalismo cartesiano: Para os mecanicistas em geral, o combate ao finalismo na natureza é o contraponto da defesa da visão mecânico-matemática do mundo físico. Examinaremos esse ponto dentro do pensamento cartesiano e, com isso, deixaremos de tratar do mecanicismo em geral, para nos dedicarmos ao de Descartes, o seu mais radical representante. Quanto ao caráter não-teleológico da natureza, Descartes apresenta um argumento central, desenvolvido em dois tempos. O primeiro trata da incomensurabilidade entre nossa finitude e a infinitude divina. O segundo trata da esterilidade ou da inoperância da causalidade final em vista do conhecimento das coisas, bem como da projeção indevida de características do mundo humano e da vontade sobre o mundo natural. A primeira parte do argumento, que pode ser encontrada nas Meditações2 (Meditação Quarta, § 7) e nos Princípios (Parte I, art. 28), contrapõe finitude humana e infinitude divina, de onde se segue que podemos conhecer a Deus, mas não compreendê-lo. Em outras palavras, ainda que possamos conhecer vários atributos divinos, não podemos conhecer a todos, bem como não podemos determinar os fins pelos quais Ele criou o universo e a 2 As referências à obra cartesiana são dadas a partir da edição standard de Adam e Tannery (AT). A natureza do mecanicismo cartesiano 51 nós mesmos. Há mistérios divinos que permanecerão como tais, e querer desvendá-los é uma atitude indigna e de desrespeito a Deus. Diz a Meditação Quarta: "Pois, sabendo já que minha natureza é extremamente fraca e limitada, e, ao contrário, que a de Deus é imensa e incompreensível e infinita, não mais tenho dificuldade em reconhecer que há uma infinidade de coisas em sua potência cujas causas ultrapassam o alcance de meu espírito. E essa única razão é suficiente para persuadir-me de que todo esse gênero de causas que se costuma tirar do fim não é de uso algum nas coisas físicas ou naturais; pois não me parece que eu possa sem temeridade procurar e tentar descobrir os fins impenetráveis de Deus" (AT, IX-1, p.44). Nos Princípios (Parte I, art. 28), Descartes faz algumas considerações semelhantes à citação dada das Meditações, mas, além disso, estabelece a distinção entre a causa final e a causa eficiente, entre a busca dos fins e a dos meios ou modos pelos quais Deus produziu algo. Diz o texto: "Não se deve examinar o fim pelo qual Deus fez cada coisa, mas somente o meio pelo qual Ele quis que ela fosse produzida" (AT, IX-2, p. 37). A distinção entre causa final e causa eficiente é uma distinção entre o fim, o "em vista do que" algo é feito e a realidade mínima necessária para produzir algo. Essa distinção nos encaminha para a segunda parte do argumento cartesiano contra o finalismo. Ela consiste no seguinte: se, por um lado, os desígnios divinos são insondáveis ao intelecto humano, por outro, eles parecem não deixar rastro algum na criação. A única exceção é talvez a capacidade ilimitada da vontade humana. Afora isso, o produto divino, tal como o humano, não conserva o fim para que fora feito, enquanto conserva de algum modo a sua causa eficiente. Afirma Descartes, na sua Entrevista com Burman: "o conhecimento do fim não nos faz penetrar no conhecimento da coisa mesma, cuja natureza não nos resta menos escondida" (AT, V, p. 158). Em outras palavras, não podemos descobrir a natureza de uma coisa a partir de sua finalidade, ainda que ela tenha sido produzida em função de um fim. E Descartes parece estar disposto a aceitar também o contrário: a natureza ou essência de algo não revela seu César Augusto Battisti 54 A tese da união traz consigo a existência de um terceiro mundo ou de um terceiro conjunto de fenômenos, os fenômenos das sensações e das paixões. Aqui nos interessam exclusivamente as sensações externas, uma vez que nosso objetivo é o mecanicismo do mundo natural, exterior a nós. Dada a distinção categorial entre corpo e alma e dada a união de fato entre ambos, tudo o que no mundo material não se submeter à extensão em sua tridimensionalidade não pode ser legitimamente atribuído a ele. Desse modo, sendo a extensão o atributo essencial dos corpos, todo outro atributo físico deve ser um atributo secundário, decorrente do caráter extenso do mundo material. Por outro lado, o que não puder ser atribuído aos corpos, nem à alma, mas sendo mesmo assim algo, deve ser oriundo da relação do homem com o mundo, cujo significado deve ser buscado nessa relação. Assim, o valor das sensações se determina pelo seu significado para o composto corpo-alma, quanto à sua proteção, comodidades e incomodidades, prazer e desprazer. Mas, para além disso, a sensibilidade humana nada ensina a respeito das coisas exteriores, sem o referendum do espírito, dado de forma cuidadosa e ponderada. Para além da "informação biológica" voltada à utilidade e ao bem- estar, os sentidos não podem ensinar nada de claro e distinto por si mesmos, sem a supervisão do entendimento, sem o julgamento do espírito. As qualidades, portanto, que costumamos atribuir às coisas sem considerá-las de modo adequado – tais como as representadas pela idéia de vazio, de quente, frio, cor, sabor, etc. –, não devem ter correspondente real, ainda que possam ser significativas para o composto corpo-alma (o homem) e possam auxiliar no conhecimento do mundo exterior. A conclusão que se deve extrair disso tudo é a de que a metafísica cartesiana estabelece a existência de um terceiro mundo, o da sensibilidade e das paixões, oriundo da relação entre os dois anteriormente dados. A distinção entre este mundo do sensível e o da objetividade física permitirá a distinção entre as qualidades objetivas e as qualidades subjetivas do mundo físico. Além disso, a distinção entre o mundo humano e o espiritual, de um lado, e o material, de outro, permite evitarmos a aplicação de categorias espirituais ao mundo material – de onde nasce a busca pelas causas finais – ou de A natureza do mecanicismo cartesiano 55 categorias humanas – de onde nasce o antropomorfismo e o antropocentrismo. Por outro lado, se nos mantivermos no âmbito da objetividade física, veremos que legítima é somente a atribuição de propriedades mecânico-geométricas ao mundo físico. b) O mecanicismo do ponto de vista fisiológico: Passando, agora, ao ponto de vista fisiológico, teremos a oportunidade de perceber como Descartes procede para demonstrar a subjetividade das qualidades secundárias e apontar para a realidade das primárias, ao mesmo tempo em que poderemos ver como ele entende o mecanicismo na própria fisiologia e na anatomia. Para examinar esse ponto, utilizarei os Discursos 3 a 6 da Dióptrica, um dos ensaios do método, publicada junto com o Discurso do método e com os outros ensaios em 1637. Como teremos a oportunidade de ver, Descartes, nessa obra, institui uma nova teoria da percepção por meio de sua teoria mecânico-geométrica da visão. A Dióptrica, vista em seu todo, tem por objetivo central fornecer um estatuto científico à técnica da utilização de lentes para o aperfeiçoamento da visão. Em outras palavras, ela pretende legitimar teoricamente o uso de instrumentos que aumentam o poder da visão, como o telescópio, e, portanto, dar cientificidade a tais instrumentos. O texto pode ser dividido em três grandes partes. A primeira (Discursos 1 e 2) apresenta uma reflexão sobre as propriedades da luz e expõe a lei da refração; a segunda (Discursos 3 a 6), que nos interessa aqui, trata da percepção visual e de como ela é produzida; a terceira (Discursos 7 a 10) discute a forma pela qual é possível aperfeiçoar a visão por meio de lentes, legitima seu uso e discute a sua forma mais adequada e seu modo de confecção ou de fabricação. Ao nos atermos aos Discursos 3 a 6, nosso objetivo será o de evidenciar o processo de geometrização da visão e de mecanização do processo sensitivo. Em outros termos, poderemos ver que tudo o que ocorre na visão, enquanto envolve a participação do corpo, é um processo absolutamente mecânico, não havendo nada de qualitativo ou não matemátizável. Ao contrário, o processo sensitivo, sendo absolutamente mecânico, estabelece uma relação causal com o mundo exterior, de modo que ambos se tornem César Augusto Battisti 56 homogêneos. Assim, não haverá interrupção da causalidade mecânica entre o mundo exterior ao corpo e o processo que se passa no próprio corpo. Tudo é questão de movimento, de matéria em movimento. Nos discursos supracitados, portanto, o filósofo pretende geometrizar a visão e explicar essa capacidade humana. Dentro dessa perspectiva, ele retoma o trabalho de Kepler e o leva adiante. Kepler foi responsável pela diferenciação mais adequada das partes do olho, de modo que, determinando o papel refratário do cristalino, descobriu que a formação da imagem não se dá nele, mas no fundo do olho, na retina. Além disso, determinou que essa imagem é algo real, portanto, visível, e não mais um mero fantasma que torna visível as coisas sem ser ela mesma visível. Ao contrário, a imagem na retina é algo real, uma espécie de pintura bidimensional com plena presença física, de tal maneira que poderia ser vista no fundo do olho de um boi dissecado adequadamente, como dirá Descartes, da mesma forma que em um quanto escuro (expediente já utilizado por Della Porta), por meio de um pequeno orifício por onde a luz penetra e dá origem a uma imagem no interior do quarto. Enquanto o cristalino era considerado o receptor do sensível, a imagem era quase como um espírito ou um fantasma, pois não era vista. Ao contrário, sendo ela uma verdadeira pintura, uma verdadeira imagem no fundo do olho, sendo, portanto, uma entidade física, ela não é mais a representante da coisa, a forma mesma da coisa visível presente no olho, mas um efeito da coisa exterior. A imagem na retina deve ser tratada como um efeito, um efeito de natureza ótica, e explicado com tal. Além disso, Kepler sabe muito bem que a investigação ótica propriamente dita para por aí, mas a questão da visão não. Ele distingue claramente o componente ótico da visão e os eventos de natureza nervosa, cerebrais e psicológicos envolvidos na percepção visual. A teoria da percepção visual se submete a um processo causal cujo primeiro passo é de natureza ótica e o segundo de natureza neuro-fisiológica, indo finalizar no interior do cérebro e na consciência perceptiva do homem. Descartes, dando prosseguimento a essa análise, observa primeiramente que quem sente é a alma e não o corpo, e que a relação da alma com o corpo se estabelece em um lugar específico, no senso comum ou A natureza do mecanicismo cartesiano 59 configuração formada pelo conjunto dos movimentos realizados pelos diversos filamentos cuja outra extremidade se localiza no cérebro. Depois disso, essa configuração cinemática é transmitida até o centro das atividades cerebrais, onde se localiza a glândula pineal ou o conário, que é o lugar do senso comum. Nessa glândula se dá a relação entre o corpo e a alma, e é nesse local que a alma recebe as informações provenientes de fora e as interpreta. Mas ela não pode receber informações de natureza cinemática ou outra qualquer que ocorra do ponto de vista material, uma vez que a alma não é material. Evidentemente, há aqui o problema da relação entre corpo e alma, o problema de como essas entidades heterogêneas influenciam-se mutuamente. Mas isso é um outro problema que será deixado de lado. O que importa é o seguinte. Em primeiro lugar, a teoria da percepção visual mostrou – e isso vale, mutais mutandis, para a percepção em geral – que tudo o que ocorre na parte ótica e na parte fisiológica da visão são ações e reações puramente mecânicas, são processos mecânicos, são movimentos corporais numa relação entre causa e efeito. Em segundo lugar, a relação causal se mantém como tal na passagem entre a parte ótica e a parte fisiológica, sem que seja necessário que se mantenha a idéia de semelhança ou imagem-cópia nesse processo. A relação causal é distinta e independente da relação de semelhança entre objeto e percepção do objeto. Em terceiro lugar, não há descontinuidade causal entre o processo que se passa no interior do meu corpo e o que se passa exteriormente, isto é, do objeto exterior até mim. Isso significa que a causalidade se mantém desde o objeto externo, como o Sol, por exemplo, até o fundo do olho e depois até o cérebro, onde a alma interpreta os dados. Não há, portanto, diferença de natureza dos objetos e processos envolvidos nesse percurso todo, sejam internos ou externos a mim. Em quarto lugar, não nos envolvemos com qualidade alguma nesse processo todo; o processo de percepção, dentro do seu percurso restrito ao âmbito corporal, ou seja, até o momento em que a alma entra em cena, nada tem a ver com as supostas qualidades dos objetos exteriores. As supostas qualidades não entram em jogo em momento algum. César Augusto Battisti 60 Agora, nada impede que a alma perceba determinadas qualidades. Ou melhor, que ela interprete o movimento dos nervos no cérebro como significando determinada qualidade sensível, como, por exemplo, a cor. Assim, no caso do sentimento da luz, "é preciso pensar que nossa alma é de tal natureza que a força dos movimentos que se encontram nos lugares do cérebro de onde provêm os filamentos dos nervos óticos lhe faz ter o sentimento da luz; e o modo desses movimentos, aquele das cores" (AT, VI, p. 130-131), da mesma forma como os movimentos dos nervos nos ouvidos lhe fazem sentir os sons e os nervos da língua lhe fazem sentir os sabores, assim por diante. Ademais, a alma procede deste modo sem que seja preciso que haja semelhança entre as idéias que ela concebe e os movimentos que as causam, tal como ocorre com as palavras, com as lágrimas ou outros signos. E, efetivamente, diz Descartes, não há semelhança entre o que ocorre no mundo material e as qualidades que a alma percebe nas coisas. A luz, por exemplo, é uma ação que, seguindo as leis do movimento, é exercida pelo Sol sobre as partículas do ar, que, por sua vez, a transmite ao olho. No nervo ótico, o raio causa um movimento fisiológico que é transmitido ao cérebro. É somente aí que a alma interpreta esse conjunto de movimentos como sendo a sensação da luz. Por sua vez, as cores são oriundas dos movimentos rotacionais diferenciados que as partículas da matéria sofrem ao transmitirem a luz, cada cor representando um movimento diferente. Assim, para cada conjunto de movimentos rotacionais diferentes, a alma sente uma cor. Em outras palavras, a cor é um sentimento que nada corresponde no objeto, sob o ponto de vista da semelhança entre o sentimento da cor e o objeto colorido. É verdade que o autor afirma que a cor possibilita a diferenciação entre as partes de um corpo, uma vez que denuncia a diferença de movimento de uma parte do corpo em relação à outra, uma vez que denuncia uma propriedade real dos corpos. Mas, mesmo assim, a tudo o que há nela, enquanto sentimento, nada de real existe de semelhante nos corpos. Podemos concluir, portanto, que o nosso processo de percepção sensitivo é totalmente mecânico, não negociando em nenhum momento com as A natureza do mecanicismo cartesiano 61 qualidades secundárias dos corpos. Ele denuncia a natureza mecânica de nosso corpo, mas também, por refluxo, a natureza mecânica do mundo exterior e de todos os corpos exteriores. Finalmente, a origem das qualidades se dá na interpretação que a alma faz da configuração mecânica fornecida pelo corpo, cuja significação é apenas subjetiva. c) O mecanicismo do ponto de vista físico: Para terminar essa exposição, seguem abaixo alguns elementos que caracterizam a perspectiva física por meio da qual o mecanicismo é instituído. Para tal, serão usados os capítulos iniciais do Mundo. Os primeiros capítulos do Mundo ilustram magistralmente o modo pelo qual Descartes, aos poucos, deixa emergir sua concepção física e seu mecanicismo. Como eles fazem isso e quais suas etapas principais? A primeira etapa desse processo consiste na desvinculação entre a relação causal existente na origem de nossas percepções sensíveis, por um lado, e a suposta relação de semelhança entre os objetos externos e tais percepções. Como diz Descartes, "embora cada um comumente se persuada de que as idéias que temos em nosso pensamento sejam inteiramente semelhantes aos objetos dos quais procedem, não vejo, contudo, razão alguma que nos assegure de que assim o seja" (AT, XI, p. 3). A relação que há entre a sensação que tenho e o objeto físico que supostamente a causou não é ou não precisa ser uma relação entre original e cópia, ainda que admitamos a relação causal. Ela pode se reduzir apenas a uma relação entre significante e significado. Em outras palavras, a representação que tenho de um objeto físico não me remete necessariamente a algo que lhe seja semelhante, mas estabelece somente uma relação de significação, cujo fundamento, ainda que não seja totalmente arbitrário, ao menos não nos autoriza a querer conhecer imediatamente a realidade física. Da mesma forma que as lágrimas e o riso significam a tristeza e a alegria, do mesmo modo que as palavras significam algo determinado arbitrariamente pelos homens, assim também, afirma Descartes, nossas sensações significam algo, mas não funcionam como cópia do objeto que as causa. E, portanto, da relação causal existente entre objeto exterior e sensação não podemos derivar a relação de semelhança entre César Augusto Battisti 64 Dito isso, Descartes pode concluir que "há um meio de explicar a causa de todas as mudanças que acontecem no mundo e de todas as variedades que aparecem sobre a Terra" (AT, XI, p. 12). A tese exposta acima contém potencialmente, portanto, toda a física; e, assim, da análise da sensação da luz emerge aos poucos as principais teses do mecanicismo cartesiano. A título de exemplo, podemos apresentar algumas delas, como a tese da inexistência do vazio e a da existência de três diferentes tipos de partículas ou de aglomerações mínimas de matéria, das quais outras são concebidas quase que imediatamente, como a da identidade entre matéria e extensão. Quanto à questão do vazio, Descartes não apresenta aqui o seu argumento mais forte sobre a sua inexistência, como fará nos Princípios (Parte II, art. 16): o de que o vazio é um conceito contraditório, uma vez que é uma coisa (substância) que não é nada e que não tem propriedades. Logo, não pode existir. No Mundo, o autor se centra mais no problema da origem do conceito. O vazio é um conceito oriundo do uso indevido dos sentidos: como muitas vezes não sentimos nada, pensamos que não há nada. Mas os sentidos só servem para detectar algo, se este algo se manifestar, isto é, se houver uma alteração externa. Da mesma forma que o ar estático não pode ser detectado, assim também não sentimos o peso de nosso corpo ou de nossas roupas. Desse modo, nasce a noção de vazio, novamente sob a pressuposição da relação de semelhança entre o que sentimos e os objetos externos. Conclui-se disso que o vazio é um conceito infundado e, como tal, não há razão para estipular a sua existência. Admitida a inexistência do vazio, é preciso explicar como o movimento pode ocorrer sem que surja entre as partículas um espaço sem partículas. Como o movimento não necessita de pequenos espaços vazios para ocorrer? A explicação cartesiana – que anuncia a famosa teoria dos turbilhões – consiste na distinção entre a tendência retilínea de cada corpo e seu movimento real circular, de modo que, ainda que toda partícula tenda a percorrer o movimento mais simples (o reto) e ter, portanto, por si mesma, um comportamento inercial, na realidade, seu movimento real é sempre circular; e isso evita a necessidade do vazio, a exemplo do que ocorre com peixes que A natureza do mecanicismo cartesiano 65 nadam em um tanque sem que provoquem um espaço sem água (vazio) ao se deslocarem dentro dela. A tese da existência dos três tipos de partículas está ligada ao que acaba de ser dito. Por um lado, Descartes descreve como os três tipos surgiram imediatamente do choque entre os blocos de matéria inicialmente existentes, de onde surgiram três tipos de corpos no universo: o Sol e as estrelas, de onde provém a luz; os céus, que a transmitem; os planetas e os cometas, que são opacos. Por outro lado, os três tipos de partículas dão conta do movimento sem a necessidade do vazio. Essas partículas não são átomos, mas formas mínimas de agregação da matéria sempre passíveis de divisão. E, finalmente, uma vez tudo isso exposto, não resta senão concluir pela identidade entre matéria e extensão. Não havendo vazio e não podendo a matéria se comprimir ou se rarefazer (para formar corpos mais sólidos e mais líquidos, uma vez que o que determina um corpo ser duro ou líquido é a diferença de movimento existente entre as suas partes componentes), não há espaço que não seja material e, portanto, não há diferença entre extensão e matéria. Estas são algumas características da física cartesiana. E, mais uma vez, na análise da sensibilidade, na sua crítica e ultrapassagem, Descartes descobre o universo mecânico-geométrico que tanto marcou o período moderno e o firmou certamente como o maior representante do que Paolo Rossi chamou de uma "filosofia mecânica". Bibliografia DESCARTES, René. Oeuvres. Publicadas por Charles Adam e Paul Tannery. Paris: Vrin, 1996. 11 vol. KEPLER, J. Les fundaments de l’optique moderne: Paralipomènes à Vitellion. Tradução de Catherine Chevalley. Paris: Vrin, 1980. ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru, SP: EDUSC, 2001. As origens da Óptica de Kepler Claudemir RoqueTossato Pós-doutorando em filosofia/USP Resumo: O texto a seguir, “A óptica de Kepler: o funcionamento do olho humano no ato da visão – Primeira parte: a situação da óptica no final do século XVI” forma, junto com a segunda parte “O modo pelo qual se faz a visão”, uma reconstrução da principal contribuição de Kepler para a ciência óptica, a saber, o seu tratamento acerca do funcionamento do olho humano semelhante a um artefato mecânico, a câmara escura, obtendo, como principal resultado, que a visão se forma na retina. Considerar o olho como um artefato mecânico permitiu a Kepler fundamentar a óptica geométrica, demarcando o campo de atuação da óptica. PALAVRAS-CHAVE: Óptica. Visão. Câmara escura. Kepler. No prefácio à sua primeira obra sobre óptica, Ad Vitelionem paralipomena, quibus astronomiae pars optica traditur, a qual pode ser traduzida para a nossa língua como Suplementos a Vitélio, nos quais a parte óptica da astronomia é ensinada, escrita durante o ano de 1603 e editada no início de 1604, Kepler esboça uma pequena estrutura da ciência astronômica. Esta estrutura é composta basicamente por quatro partes, que são: 1) teórica, 2) prática, 3) óptica e 4) física. As duas primeiras são as mais importantes para a astronomia, pois “a primeira consiste na pesquisa e estudo da forma dos movimentos e revela, sobretudo, o exame filosófico; a segunda, depende da primeira e investe no reparo das posições dos astros para qualquer movimento, satisfazendo a prática ao dar os fundamentos da arte de prognosticar” (Kepler, 1980, p. 99). À primeira parte cabe a utilização da geometria, pois podemos deduzir a partir de primeiros princípios os fenômenos celestes, mais especificamente, os movimentos planetários; quanto à parte prática, a aritmética serve como linguagem condutora para a elaboração de tabelas e auxilia tanto o prognóstico quanto a revisão dos movimentos coligidos. A quarta parte, a parte física da astronomia, reserva-se ao estudo das causas (eficientes, materiais ou formais) envolvido na explicação dos movimentos planetários. Enfim, quanto à terceira parte, acerca da utilização da ciência BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005. As origens da Óptica de Kepler 69 óptica: ela é uma ciência que vem auxiliar a parte prática da astronomia, dando-lhe bons fundamentos para a construção bela e harmônica do mundo. O interesse de Kepler pela óptica não é o de um cientista que trabalha especificamente nesse campo, mas o de um estudioso que, interessado em resolver problemas de uma outra ciência, a astronomia, procura na óptica recursos para melhorá-la. Os estudos ópticos feitos por Kepler inserem-se completamente na construção da sua teoria astronômica, mais especificamente, na obtenção de dados mais seguros para os seus estudos sobre os movimentos planetários. Porém, um ponto que deve ser considerado é que, para Kepler, apesar da óptica ser necessária para a astronomia, ela é uma ciência autônoma, isto é, ela não é simplesmente uma parte da astronomia, voltada unicamente para determinar bons resultados acerca das observações astronômicas, mas uma ciência que contém o seu campo próprio de atuação e seus objetos próprios de pesquisa. Tendo-se isso em vista, pode-se afirmar que Kepler foi importante para a história da óptica pelo estudo de três aspectos básicos, que podem ser apreciados segundo as suas próprias palavras: Pode-se considerar na astronomia óptica tanto os objetos próprios que se apresentam à visão, e dos quais pode-se examinar as espécies, isto é, a luz e as sombras, quanto o meio que a luz atravessa contendo suas espécies e que é a causa da luz nos parecer refratada, quanto também, enfim, o instrumento da visão, o olho (Kepler, 1980, p. 101). O primeiro aspecto é o estudo da natureza da luz e das sombras que se apresentam à visão. O segundo é o estudo da refração e das suas causas. O terceiro é o estudo do funcionamento do olho humano enquanto instrumento que forma imagens do objeto visto. Mas o que se apresenta como mais importante nos trabalhos ópticos keplerianos é a ordem lógica de estudos. Para conhecer como se forma a refração dos objetos e a natureza da luz é necessário, antes, conhecer como se forma a imagem dos objetos na visão, isto é, o estudo sobre o funcionamento do olho humano antecede os estudos acerca da refração e da natureza da luz. Neste sentido, as pesquisas conduzidas nos Paralipomena antecedem não apenas cronologicamente a Dioptrice, de 1611, mas também os temas tratados. O estudo de como se Claudemir RoqueTossato 70 origina a visão torna-se condição necessária para o estudo da refração. Assim, nossa principal preocupação neste texto é a função, segundo Kepler, do olho humano no ato de ver, seu funcionamento e função. Os primeiros interesses de Kepler pela óptica2 deram-se quando da ocorrência de um eclipse solar em 30 de junho de 1600. Sobre tal eclipse, Kepler ficou intrigado com o seguinte problema: o que leva o diâmetro da Lua diminuir quando da ocorrência de um eclipse solar, quando medido à mesma distância durante a Lua cheia? Em outros termos, por que o diâmetro da Lua diminui quando ela passa frente ao Sol, quando há uma conjunção, e, quando estão em oposição, o seu diâmetro é maior? Esse fenômeno abalou os astrônomos da época, tanto que Brahe mediu tal diminuição, utilizando-se de uma câmara escura, e a estipulou em 1/50 partes. Para explicar esse fenômeno, Brahe assegurou que a Lua sofre uma dilatação periódica, e que, quando ela passa pelo Sol durante um eclipse, isso se mostra mais claro para um observador localizado na Terra. Kepler não se satisfez com essa explicação de caráter físico de Brahe, e a negou (cf. Kepler, 1980, p. 152). Portanto, uma nova explicação deveria ser obtida. Mas para se chegar a uma tal explicação, mostrava-se necessário, segundo Kepler, reformular o conjunto explicativo formulado pelas teorias ópticas do final do século XVI, pois essas eram inadequadas, algo a que Kepler se propôs. O resultado foi os Paralipomena a Vitelio. Na verdade, os Paralipomena não foram o projeto inicial de Kepler, sua ambição era maior, a de elaborar uma obra chamada “Hiparcus”, que conteria as suas pesquisas sobre óptica aliadas à astronomia, mas que, contudo, não se realizou plenamente. O resultado foi menor, que é aquele contido nos Paralipomena. As obras completas de Kepler, infelizmente, não contêm uma monografia escrita por Kepler em 1600, na qual são relatados os primeiros estudos keplerianos sobre óptica. Mas, por outro lado, tal monografia foi 2 Acerca das origens das preocupações keplerianas sobre óptica, conferir Chevalley (1980, p. 11- 23) e Caspar (1959, p. 142 –6). Estas duas obras, em especial a primeira, apresentam informações relevantes sobre como Kepler veio a se interessar pela óptica. As origens da Óptica de Kepler 71 descoberta na cidade de Leningrado3 e tornada pública pelo pesquisador Frans Hammer. Esse manuscrito mostra as dúvidas que Kepler passou quando da ocorrência do eclipse solar de 1600. Intrigado pela, como dissemos, diminuição aparente do diâmetro da Lua, quando observado numa câmara escura durante a ocorrência do eclipse, Kepler procurou construir um instrumento de medição astronômica voltado para obter uma melhor definição, tal instrumento é descrito por Hammer do seguinte modo: A peça central era um eixo pivô ao redor de um ponto fixo, no azimute, no ponto máximo de sua altura. Sobre esse eixo, encontram-se discos fixados perpendicularmente, com uma distância determinada um do outro, o mais alto tendo uma abertura circular, enquanto que o mais baixo serve como placa. Se se volta o eixo em direção ao Sol, então a luz tomba circularmente sobre a abertura e a placa. Os movimentos do eixo, o diâmetro da imagem e as grandes características do eclipse são facilmente medidos por essas disposições especiais (Hammer apud Chevallier, 1980, p. 16). Esse instrumento criado por Kepler procurou diminuir um pouco as aberrações das imagens provindas pelo uso da câmara escura. Esta criava uma imagem dos cantos do Sol, da sua circunferência, enfraquecida e arredondada, comparada à observação direta do Sol; assim, o instrumento descrito acima procurava diminuir essas aberrações, permitindo uma melhor medição do diâmetro do Sol e da Lua durante os eclipses. Porém, Kepler não obteve dados satisfatórios quando da utilização do seu invento. Mas, em contrapartida, esse instrumento o levou a questionar as bases teóricas da óptica de sua época. A sua inquietação deu-se quando ele comparou a figura formada na placa do instrumento com a imagem formada quando se observa diretamente o céu (a olho nu), isto é, quando se observa o fenômeno real; dessa comparação, Kepler notou que a superfície iluminada da imagem formada na placa é distorcida e proporcionalmente maior que a imagem real (cf. Chevallier, 1980, p. 16–17). Dessa comparação, Kepler construiu 17 proposições (contidas também no manuscrito de Pulkovo), que formaram a base para os seus futuros desenvolvimentos da óptica contidos nos Paralipomena. Não vamos reproduzi-los aqui, pois essas proposições tratam 33 Esses manuscritos keplerianos foram comprados pela Czarina Catarina II, em 1773, e ficaram guardados na cidade de Leningrado, a partir dessa época. Esses manuscritos ficaram conhecidos como “manuscritos de Pulkovo”. Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII Eduardo Salles O. Barra Departamento de Filosofia/UFPR Resumo: Reconstrução histórica e conceitual das doutrinas ontológicas e epistemológicas acerca da aplicabilidade da matemática ao mundo empírico no período pós-mecanicista, ao longo do séc. XVIII, notadamente nas obras de Leibniz, Berkeley, Hume e Kant. O mecanicismo galileu-cartesiano havia sustentado a aplicabilidade da matemática na identidade substancial entre matéria e extensão, admitindo largamente que o modelo geométrico euclidiano seria suficiente para descrever a natureza intrínseca dos objetos e mecanismos naturais. A pesquisa propõe-se a investigar o quão determinante foram as divergências daqueles autores com os padrões explicativos mecanicistas para que recusassem a sua explicação particular da aplicação da matemática. A hipótese é que um papel mais decisivo foi desempenhado pela revisão das próprias práticas matemáticas, que incorporam progressivamente considerações sobre ordens de grandeza infinitesimais e refinaram a compreensão do contínuo matemático. Se assim o for, a repercussão do surgimento do cálculo infinitesimal poderia ter sido tão importante para as revisões da filosofia mecanicista empreendidas por Leibniz, Berkeley, Hume e Kant quanto o foram os seus respectivos diagnósticos negativos sobre os méritos propriamente metafísicos da identidade entre matéria e extensão. Palavras-Chave: mecanicismo; aplicabilidade da matemática; cálculo infinitesimal. A ciência moderna surgiu da certeza de que "o mundo está escrito em linguagem matemática, e seus caracteres são triângulos, círculos e outras figuras geométricas."1 A máxima de Galileu, que orientou sua revolucionária reconstrução da ciência mecânica, encontrou sólida fundamentação metafísica na identidade entre matéria e extensão sustentada por Descartes.2 Desde que a natureza comporte somente entidades materiais, suas únicas qualidades seriam aquelas suscetíveis ao tratamento matemático.3 Nisso consistiu a filosofia do mecanicismo, que proporcionou às então recentes conquistas da revolução científica do séc. XVII a sustentação metafísica e epistemológica aguardada desde a ruína do aristotelismo escolástico. 1 Galileu, Il Sagiotore (1623), citado por Blay (1998:1). 2 Descartes (1989, Parte I, Arts. 8 e 53). 3 Descartes (1989, Parte IV, Art. 187). BARRA, E. et alii. (orgs.) Anais do III Encontro da Rede Paranaense de Pesquisa em História e Filosofia da Ciência. Curitiba: SCHLA/UFPR, 2005. Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 75 Ao contrário do que normalmente se costuma supor, e apesar de inspirar e promover todas as mais importantes conquistas científicas que se seguiram à era de Galileu e Descartes, a certeza sobre a aplicabilidade da matemática aos problemas da ciência da natureza declinou fortemente nas primeiras décadas do séc. XVIII. A razão mais aparente para esse declínio foi, provavelmente, a crescente vaga de críticas metafísicas ao mecanicismo, ao qual o uso generalizado das matemáticas na ciência da natureza passara a ser freqüentemente associado – embora, bem entendido, os vínculos entre mecanicismo e matemática fossem contingenciais e eletivos, de tal modo que o emprego da última não acarretam formalmente compromissos filosóficos com o primeiro.4 As várias tentativas de formular alternativas ao sistema metafísico cartesiano tiveram que se confrontar com o mesmo problema: como tornar inteligível o sucesso explicativo obtido pela aplicação da matemática aos problemas da ciência da natureza? Se o mundo e, consequentemente, a matéria fossem algo mais que simplesmente extensão geometricamente definida, ele ainda assim poderia ser considerado suscetível a uma genuína descrição numa linguagem matemática? Antigas questões sobre o conhecimento, a linguagem e a ontologia dos objetos e propriedades naturais foram repostas à luz das diferentes tentativas de solucionar esse problema. Para fins desta pesquisa, serão destacadas as contribuições de Berkeley, Hume, Leibniz e Kant. Os dois primeiros – notáveis representantes do empirismo britânico do séc. XVIII – aderiram a um certo nominalismo lingüístico, para o qual nenhum termo geral ou abstrato (cujos exemplos incluem os termos que nomeiam objetos matemáticas) denota propriamente senão meros indivíduos.5 'Triângulo', por exemplo, não é o nome de qualquer objeto, pois o que existe e merece esse nome é um triângulo ou obtuso ou escaleno ou isósceles.6 Berkeley e Hume são particularmente críticos da doutrina do abstracionismo matemático, recusando-se a admitir que os termos gerais ou abstratos refiram-se a genuínas entidades reais ou mentais, resultantes da abstração das características comuns a determinados 4 Ver, por exemplo, Leibniz (1979:171) e Kant (1985b:533). 5 Cf. Berkeley (1989, Introd. §§ 11 e 18) e Hume (1978:17). 6 Cf. Berkeley (1989, Introd. §§ 13 e 16). Eduardo Salles O. Barra 76 indivíduos. Ao contrário, eles defendem que pontos matemáticos, por exemplo, são necessariamente entidades espaciais e, como tais, dotadas de todas as propriedades indispensáveis a qualquer entidade fenomênica (extensão e impenetrabilidade).7 Se a matemática tem qualquer aplicação aos fenômenos, ela deve ter a sua origem e fundamento nos próprios fenômenos. Não deve haver distinção real entre os fundamentos e o uso das matemáticas. Entre as conseqüências do nominalismo berkeley-humeano está o profundo ceticismo acerca do papel desempenhado pelos raciocínios matemáticos e apriorísticos na obtenção e justificação de explicações acerca dos mecanismos e relações entre objetos do mundo real. Berkeley entendeu que os "princípios matemáticos" (como aqueles que fundamentam a ciência newtoniana) jamais poderiam ser considerados explicações verdadeiras do mundo real e fenomênico. O fenomenalismo berkeleyano foi imediatamente recebido como uma defesa radical do anti-realismo científico.8 Hume manteve o mesmo ceticismo a respeito do papel desempenhado pelas evidências demonstrativas e intuitivas na ciência da natureza,9 embora proponha-se também a investigar as fontes alternativas da necessidade que habitualmente associamos às supostas regularidades das operações naturais. Uma segunda linha de reação ao mecanicismo cartesiano foi articulada por Leibniz e Kant. O primeiro articulou uma versão particular do abstracionismo matemático. A metafísica leibniziana incorpora três níveis de análise: monádico, fenomênico e ideal.10 As entidades matemáticas pertencem essencialmente ao terceiro nível, cujos componentes resultam, via de regra, de um processo de abstração do nível fenomênico anterior.11 Muito embora seja apenas o processo inverso da abstração, a aplicação da matemática aos fenômenos nunca seria suficiente para descrever todas as suas propriedades. Os objetos fenomênicos estabelecem entre si determinadas relações dinâmicas 7 "[S]e a idéia de extensão realmente pode existir, como somos conscientes de que realmente ocorre, suas partes também devem existir; e, para isso, elas devem ser consideradas como coloridas e tangíveis." (Hume, 1978:39) 8 Cf. Newton-Smith (1985) e Buchdahl (1988:285). 9 Cf. Hume (1998, §27). 10 A sugestão de distinguir esses três níveis (metafísico, fenomênico e ideal) na metafísica leibniziana do espaço e do tempo é de Hartz & Cover (1988:503-513).Cf. também Buchdahl (1988:407). Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 79 dificuldade comum a todos eles foi encontrar uma explicação alternativa para o fato da aplicabilidade da matemática ao mundo. Isso apenas parecia ser possível se envolvesse uma restrição problemática do estatuto cognitivo e ontológico da matemática, que comprometeria ora o seu caráter apriorístico – e, consequentemente, a necessidade que se confere às suas conclusões – ora a sua própria aplicabilidade. A conseqüência mais imediata dessa atitude foi o abandono das antigas convicções galileu-cartesianas de que a real natureza das coisas pudesse ser descrita e compreendida mediante princípios e raciocínios geométricos. Nas suas interpretações mais extremadas, as soluções empirista berkeley-humeana (a matemática é ontologicamente vácua), abstracionista leibniziana (a matemática é uma mera idealização de relações ou propriedades fenomênicas) e transcendental kantiana (a matemática contém apenas os esquemas transcendentais do nosso modo de representar empiricamente os aspectos quantitativos dos objetos) parecem conformar-se às interpretações formalistas ou instrumentalistas da matemática, que a atribuem a tarefa de apenas construir sistemas coerentes de axiomas, princípios e conceitos a partir dos quais se retiram conclusões a serem confrontadas com a experiência.18 A crítica metafísica ao mecanicismo cartesiano parece responder satisfatoriamente à pergunta pelas razões que levaram a um abandono tão radical do legado galileu-cartesiano. Contudo, a hipótese desta pesquisa é que uma segunda e, talvez, mais decisiva razão deve ser acomodada à resposta anterior. Trata-se de uma mudança ocorrida nos próprios métodos matemáticos empregados pelos cientistas ativos na investigação da natureza. Refiro-me ao cálculo infinitesimal, cujo surgimento provocou o abandono progressivo dos métodos construtivos, geométricos e mecânicos inspirados no modelo geométrico euclideano e sua substituição por métodos algébricos, sujeitos a um procedimento regular e uniforme. Com efeito, as questões que conduziram à progressiva substituição do modelo geométrico do século XVII, em particular no seu caso de aplicação mais fundamental, qual seja, a geometrização do movimento, surgiram de 18 Cf. Steiner (1992). Eduardo Salles O. Barra 80 dificuldades extremas que remontam aos paradoxos que Zenão de Eléia enunciara há mais de dois milênios: em que consiste o começo e o final do movimento? Como eles podem ser explicados geometricamente? Como a continuidade do movimento pode ser apreendida? O movimento é realmente contínuo ou, ao contrário, é uma combinação de movimento e repouso? Como a soma de todas as velocidades (contidas no movimento) deve ser compreendida? Todas essas questões tinham um ponto em comum: para respondê-las, é imprescindível lidar com o infinito, seja na forma de séries ou somas infinitas seja na forma de divisões infinitas – problemas surgidos ao longo dos séculos e parcialmente obscurecidos durante do séc. XVII pela ênfase no processo de geometrização na busca de uma ciência que penetrasse a própria natureza das coisas. Em vista dos propósitos iniciais da geometrização, as investigações sobre indivisíveis e a composição do contínuo, além de impor incontornáveis dificuldades tipicamente matemáticas, implicam um compromisso ou com a introdução do infinito no mundo ou com a presença de um infinito intramundano, mas ambos essenciais para que aqueles propósitos pudessem ser integralmente realizados. Como se poderia conceber um infinito real, presente no mundo, quando é exatamente a concepção do infinito que se supõe estar reservada ao Criador do mundo – quando o atributo da infinitude está reservado somente a Deus, cuja natureza nunca chegamos a compreender inteiramente?19 A finitude do pensamento humano, confrontada com a infinitude do Criador, impede que o projeto de geometrização seja inteiramente realizado, na medida em que se mostra impossível ao mesmo tempo ler e compreender o infinito na natureza – e, portanto, apreender completamente a natureza das coisas. O progressivo abandono da geometria euclideana e a emergência do cálculo infinitesimal – sobretudo com a enorme repercussão dos trabalhos de Newton (1999) e Leibniz (1995) – acarretam revisões dramáticas nas antigas crenças mecanicistas sobre a identidade ontológica entre as entidades matemáticas e objetos naturais e na transparência dos mecanismos naturais a uma mente apta a dominar os métodos construtivos, geométricos e mecânicos 19 Cf. Descartes (1989, Parte I, Arts. 26 e 27). Matemática e realidade no pensamento pós-mecanicista do séc. XVIII 81 inspirados no modelo geométrico euclideano.20 O objetivo central desta pesquisa é investigar a amplitude dessa revisão, em particular averiguar se ela implicou, nas palavras de um importante comentador, "a renúncia de todas as pretensões com respeito a propósitos ontológicos fundacionistas", de tal modo que o projeto de matematização da natureza se tornou "somente um discurso bem-construído" que, por "não falar mais sobre da realidade das coisas e se desprender delas, poderia livremente empregar os procedimentos da geometria infinitesimal e do cálculo integral e diferencial: porque esses procedimentos desde então não eram mais do que métodos, técnicas, meros auxiliares do cálculo e da investigação, cujo reflexo direto não se poderia mais pretender encontrar na realidade."21 Em princípio, poder-se-ia perguntar se, ainda que interpretações como a de Blay apreendam com precisão aquilo que pode ser considerado o consenso pós-newtoniano sobre a atitude própria a cientistas naturais e matemáticos ativos,22 também apreendem o que concomitantemente ocorreu na filosofia do séc. XVIII após o aparecimento dos primeiros prodígios descritivos dos novos métodos infinitesimais? Dito de outro modo: o problema da aplicabilidade da matemática ao mundo, ainda que esvaziado dos seus apelos ao fundacionismo e ao realismo típicos do platonismo matemático, deixou de oferecer material às reflexões filosóficas no campo da ontologia e da epistemologia, reduzindo-se a uma questão pragmática da investigação dos eventos naturais? Esta pesquisa pretende reconstruir as análises que autores como Berkeley, Hume, Leibniz e Kant dedicaram a esse problema. Pergunta-se ainda se mesmo a despretensiosa posição nominalista de Berkeley e Hume com respeito ao estatuto ontológico das entidades matemáticas não deveria ser acomodada à preocupação de seus contemporâneos (entre eles, evidentemente, Leibniz e Kant) de tornar inteligível o modo como os raciocínios matemáticos se ajustam às inferências a partir da experiência. As questões emergidas com surgimento do cálculo infinitesimal poderão sugerir um roteiro talvez ainda pouco 20 Em particular, esse fato parece desempenhar um papel central no tipo de argumentação que conduziu Kant a concluir a não-construtibilidade numa intuição pura das grandezas intensivas (ou qualidades) da matéria (cf. Kant, 1989, A 170/B 211-212; Barra, 2000:225-266). 21 Blay (1998:10). Cf. também Urbaneja (1992:36) e Duhem (1981, p.44). Eduardo Salles O. Barra 84 HODES, H. (1990) "Where Do Natural Numbers Come From?" Synthese 84(3). HUME, D. (1978 [1739]) A Treatise of Human Nature. [ed. L. A. Selby- Bigge and P. H. Nidditch] Oxford: The Claredon Press. HUME, D. (1975 [1748]) An Enquiry Concerning Human Understanding. [ed. L. A. Selby-Bigge and P. H. Nidditch] Oxford: The Claredon Press. HUME, D. (1998 [1748]) Investigação acerca do Entendimento Humano. [trad. José Oscar de Almeida Marques] São Paulo: Editora UNESP. KANT, I. 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Alberti trata de dar uma fundamentação científica à pintura (e à arquitetura) no início de suas obras, no caso da pintura no Della Pittura de 1435, sendo essa forma de pensamento decorrente de seu humanismo renascentista, pois considera a ciência como o melhor fruto da razão humana no estudo da natureza. Como observa Thuillier (1994), Alberti e seus contemporâneos, apesar da mudança de mentalidade já apontada, não podiam se afastar totalmente de uma concepção teológica do mundo, na qual a luz, fonte e fundamento da óptica e da perspectiva, foi a primeira criação divina, como descrita na Bíblia. Segundo esse autor, “... esta geometrização do espaço óptico, de acordo com uma longa tradição, tem um significado religioso. No século XIII, vários teólogos afirmavam o caráter privilegiado da luz: por um lado, ela é uma das mais puras criações de Deus, por outro, evoca a maneira pela qual a Graça divina se propaga no mundo” (Thuillier, 1994, p. 65). E acrescenta: “Analisar as linhas, os ângulos, as superfícies e os volumes, com o auxílio de Euclides, é uma forma de perceber melhor como a sabedoria divina se manifesta no mundo visível” (p. 70). Reparemos que “mundo visível” refere- se ao mundo exterior. Neste artigo é esboçada uma linha de pesquisa desenvolvida pelo primeiro autor em colaboração com doutorandos do Curso de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, mais precisamente da área de Educação Matemática, e encaixa-se em um projeto mais amplo que visa analisar as relações entre o racional e o sensível na matemática ao longo da história. Um dos focos desse estudo é o conceito de “espaço” tal como apresentado em textos relevantes para a história e filosofia da ciência, e ele se dá em duas vertentes: a) as concepções de espaço possíveis de serem identificadas em manifestações artísticas e, principalmente, em trabalhos teóricos do início do Renascimento italiano como os de Filippo Brunelleschi, Leon Battista Alberti, Leonardo da Vinci e Paolo Pino, dentre outros, trabalhos que podem ser considerados antecedentes estéticos da arte e da ciência modernos, José Carlos Cifuentes, Leônica Gabardo Negrelli, Marlene Perez 90 onde a matematização da natureza já é refletida na matematização da pintura, considerada ainda imitação da natureza, através do desenvolvimento da perspectiva. Complementaremos esse estudo com a análise da crítica dessas concepções no século XX em autores como Pierre Francastel e Erwin Panofsky; b) as concepções modernas de espaço, tanto matemáticas (os espaços curvos por exemplo) como psicofisiológicas, e os processos de construção, pelo sujeito, das estruturas subjacentes à noção de espaço e subseqüente geometria, investigados por Poincaré e por Piaget, como uma recuperação do sensível em matemática à luz dos desenvolvimentos modernos da psicologia e da epistemologia. Poremos em evidência, também, seus antecedentes na revolução artística do século XIX iniciada com o impressionismo francês. Este estudo (mais a formulação de um projeto de pesquisa do que um trabalho terminado) tem uma vertente, como em Francastel, na sociologia da ciência, pois vai lidar com a concepção de espaço como parte do imaginário cultural das épocas mencionadas. 2 A Matematização da Natureza na Arte Renascentista O conceito de “espaço” faz parte do desenvolvimento das civilizações e de suas atividades culturais, manifestando-se na criação de sistemas para melhor representá-lo. Já a distinção entre o racional e o sensível a respeito da noção de “espaço” aparece na antigüidade clássica, especialmente em Platão, para quem a idéia de “espacialidade” pode ser expressa por dois termos: chora (espaço como noção independente da matéria que o ocupa) e topos (lugar, dependente da matéria que o ocupa), o segundo com um grau de concretude maior do que o primeiro. O processo da descoberta do espaço levou um longo tempo, não apenas para o ser humano individual, mas para a humanidade que percorreu um longo caminho para descobri-lo, e para descobrir-se como parte integrante desse mesmo espaço. A história da arte como história da ciência 91 O questionamento teórico sobre o que é o espaço está presente em obras de vários autores que estudaram as formas de representação artísticas nas mais diversas perspectivas. Pesquisadores como Francastel (1999), Thuillier (1994) e Crosby (1999) são unânimes em situar o final da Idade Média e o Renascimento como um período em que se desenvolveu um novo modelo de realidade e, ao mesmo tempo, uma nova concepção de espaço, influenciando a arte e a ciência. Interessam-nos particularmente as mudanças, no período citado, quanto às concepções de espaço e de natureza em relação à pintura, pois conforme Thuillier (1994, p. 58), para que as teorias de Galileu e Newton pudessem se desenvolver, “as noções de tempo e espaço já deviam ter adquirido um certo rigor. Só sob esta condição tornava-se possível uma física ao mesmo tempo matemática e experimental”. Assim, pretendemos mostrar nestas linhas que o caminho dos homens de ciência foi aberto pelos artistas e arquitetos do início do Renascimento italiano, que elaboraram, segundo Francastel, um novo sistema transmissível de figuração do mundo. A arte diferencia-se da ciência em relação ao método de matematização da natureza. Os sistemas do mundo, percebido e representado, tem de ser canalizados pelo discurso, e o Renascimento usa um discurso plástico para tal fim. A representação artística é um código e como tal guarda uma informação codificada sobre o mundo ou a natureza. Essa representação é uma forma de matematização, pois envolve uma organização e ordenação das informações. A matemática que a arte usa para representar a natureza é mais de caráter qualitativo que quantitativo, digamos, mais geométrica que algébrica. “As fórmulas são explicações e não fontes de inspiração. A obra viva sai da imaginação e não do cálculo” (Francastel, 1967, p. 37). A linguagem das imagens, ainda insuficientemente estudada segundo Francastel, serve de base ao estudo das condições de figuração plástica do espaço. Os avanços na perspectiva e na anatomia, por exemplo, são instrumentos para esse estudo. A perspectiva refere-se ao processo matemático para obter a profundidade e uma escala quanto às dimensões dos objetos e da distância entre eles, de uma forma lógica. Foi no final da Idade Média, ainda no séc. XIV José Carlos Cifuentes, Leônica Gabardo Negrelli, Marlene Perez 94 somente por seu comprimento, largura e, ainda, por suas qualidades” (p. 76). Esse estudo sobre a geometria, onde as qualidades substituem a profundidade, e algumas noções sobre a óptica, servem-lhe de base para a análise da perspectiva. As qualidades da superfície são divididas em qualidades permanentes e qualidades mutáveis. As qualidades permanentes são as que constituem a superfície propriamente dita tais como as linhas e os ângulos do seu contorno, assim como o seu dorso que a classifica como plana ou esférica (convexa e côncava). As qualidades mutáveis fazem com que as superfícies variem de acordo com a mudança do lugar: mudando o lugar, as qualidades que ficam à superfície parecem maiores, com outro limite ou com cores diferentes. Isto acontece porque as superfícies são medidas por raios visuais que levam aos sentidos a forma daquilo que vemos. Os autores consultados divergem em suas opiniões sobre a importância da perspectiva linear, la construzione legittima, para as artes visuais. Panofsky (1999, p. 58) compara o método de Alberti com o método utilizado pelos Lorenzetti, que tinham preservado, no Trecento, o rigor da convergência matemática das ortogonais, não existindo ainda um método que medisse as distâncias em profundidade, o que apareceu com o método de Alberti. Granger (2002, p. 99-100) se manifesta afirmando que o Quattrocento foi original no sentido de “colocar em destaque a construção de um espaço plano destinado a figurar o espaço tridimensional” e que as soluções geométricas propostas não foram adotadas por todos ou pela maioria dos artistas da época, porque as soluções do problema da representação “são de natureza tecno- estética-matemática”. Essa transposição do espaço para o plano é muito complexa e levou a uma renovação da própria geometria, com Desargues (1591-1661), através do conceito de espaço projetivo. Segundo Francastel (1990, p. 20-24), para os homens do começo do Quattrocento, “a perspectiva dita renascentista – ou seja, a perspectiva linear segundo as fórmulas de Alberti – não era em absoluto a mais difundida, nem, sem dúvida, que melhor parecia dar conta dos aspectos correntes do universo”. A etapa vencida por volta da metade do século XV, por alguns pintores e por A história da arte como história da ciência 95 Alberti, é a da adoção do sistema de representação considerado “verdadeiro” do mundo exterior por meio da perspectiva linear. O método vai exigir daí em diante “que as imagens se inscrevam dentro da janela de Alberti como se fosse o interior de um cubo aberto de um lado” (p. 23). Francastel considera que a idéia de que o Renascimento representa uma abordagem no sentido da representação “verdadeira” em relação ao mundo exterior, é falsa. Admitir essa idéia seria admitir que o espaço, para toda a humanidade, é permanente e que apenas os modos de o representar é que mudam. É como se o universo fosse dado a conhecer de uma vez por todas e o homem apenas precisasse descobri-lo pela intuição ou pela ciência. E completa: “o espaço não é uma realidade em si, da qual somente a representação é variável segundo as épocas” (p. 24). De fato, a questão do verdadeiro na representação é muito complexa. Na arte, mesmo para efeitos de imitação da natureza, há uma escolha de elementos para dotar a obra de beleza. Essa escolha supõe, então, uma abstração, portanto a representação de uma estrutura: a “estrutura bela” da coisa. A ciência descreve a “estrutura racional” da coisa. Representar significa capturar a estrutura de um objeto, seus traços essenciais, o que implica numa abstração. A interpretação individual que cada espectador dá à obra, para Francastel, significa o preenchimento do que falta para tornar, o objeto representado, concreto (Francastel, 1967, p. 37). Para Alberti e também para Leonardo da Vinci, a pintura é uma ciência devido ao seu fundamento na perspectiva matemática e no estudo da natureza. A arte da pintura é um tipo de conhecimento, em particular, para Leonardo, a pintura traz verdade. Para Leonardo, segundo Ernst Cassirer, a arte “é permanentemente um meio autêntico e indispensável para compreender a própria realidade. Em outros termos, a “visão” de Leonardo contribuiu para preparar a “abstração” científica, para tornar possível um conhecimento rigoroso das formas naturais (sejam quais forem) e suas relações” (Thuillier, 1994, p. 110). Terminaremos esta seção nos referindo a um outro autor, menos conhecido, mas que trará uma contribuição enorme na compreensão do período anterior ao século XVI: Paolo Pino. Ele opõe a visão florentina da arte, José Carlos Cifuentes, Leônica Gabardo Negrelli, Marlene Perez 96 profundamente ligada à geometria e a aspectos matemáticos, à visão vêneta, que ele defende, caracterizada por uma outra concepção perspéctica, mais empírica do que a florentina. Em seu Diálogo sobre a Pintura, ele também faz uma discussão entre beleza natural e beleza artística. Tanto a beleza natural quanto a beleza artística obedecem a preceitos geométricos, a primeira é criada pela natureza, a segunda pela abstração do pintor ao imitá-la elegendo, como Alberti, certas porções de beleza. 3 Poincaré e Piaget: Um recomeço na Relação Arte-Ciência a partir do Impressionismo Para Ostrower (1983, p. 30), o espaço começa a ser percebido e ao mesmo tempo ampliado a partir dos primeiros movimentos físicos do corpo, sendo que esta experiência básica é necessária para todos os seres humanos. Dessa forma, o conhecimento do espaço é um processo ligado à possibilidade de percepção e investigação do meio onde vivemos. Assim sendo, “[...] o espaço constitui o único mediador que temos entre nossa experiência subjetiva e a conscientização dessa experiência”. Para Francastel, o espaço é a própria experiência do homem. “Existe aí um mundo imenso de sensações fundamentais, contatos de nossa pele e de nossos músculos com a matéria, humana ou não, que enriquece nossa experiência do espaço. Lembremo-nos que a Psicanálise e a Ciência, simultaneamente, levam-nos a entrar em contato, cada dia mais, com realidades somatomentais [e, portanto, do mundo interior] que desempenham um papel fundamental para nossa compreensão do universo, e que, por outro lado, vemos desenvolver-se o gosto por novos materiais e novas técnicas [...] que nos proporcionam experiências positivas – ópticas e táteis – novas” (Francastel 1967, pp. 49-50). Ainda, segundo Francastel, está se gerando um novo humanismo, e novamente, como no Renascimento, temos os artistas como precursores da ciência que, a partir do Impressionismo, salientaram nas suas obras o mundo interior e a subjetividade na nova visão da natureza. Essas concepções estão na base do pensamento de Poincaré para quem a noção de espaço que nós temos é decorrente da possibilidade de movimento e, portanto, sugerido pela experiência.
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