Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

José de Alencar - Sonhos D'oro, Notas de estudo de Cultura

- - -

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 01/03/2009

leidiane-ewald-1
leidiane-ewald-1 🇧🇷

4.3

(17)

129 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe José de Alencar - Sonhos D'oro e outras Notas de estudo em PDF para Cultura, somente na Docsity! Fonte: ALENCAR, José de. Sonhos D´oro. 2.ed. São Paulo : Ática, 1998 (Série Bom Livro). Texto proveniente de: Algo Sobre Vestibular e Concurso Permitido o uso apenas para fins educacionais. Qualquer dúvida entre em contato conosco pelo email falecom@algosobre.com.br http://www.algosobre.com.br Texto-base digitalizado pela voluntária: Maria Fernanda Amado Morillo de Andrade - São Paulo/SP Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Sonhos D’oro José de Alencar I O sol ardente de fevereiro dourava as lindas serranias da Tijuca. Que formosa manhã! O céu arreava-se do mais puro azul; o verde da relva e da folhagem sorria entre as gotas de orvalho, cambiando aos toques da luz. Frocos de névoa, restos da cerração da noite, cingiam ainda os píncaros mais altos da montanha, como pregas de véu flutuante, ao sopro da brisa, pelas espáduas das lindas amazonas, que durante o verão costumam percorrer aquelas amenas devesas. Seriam sete horas. Um passeador solitário seguia a pé e distraidamente por um dos muitos caminhos que se cruzam em várias direções pela encosta ocidental da montanha. Levava ele embaixo do braço esquerdo um álbum de desenho, naturalmente destinado à cópia das magníficas perspectivas, que oferecem a cada passo as quebradas da serrania. Era moço de 28 anos. Seu rosto de traços nobres não tinha decerto a beleza correta e artística do tipo clássico, nem a faceirice de certos casquilhos, príncipes da moda: apresentava porém uma fisionomia simpática e distinta. O olhar sobretudo, que é o sol d'alma, lhe esclarecia a larga fronte pensativa de reflexos inteligentes. Trajava com extrema simplicidade. Tinha um vestuário completo, ou no jargão parisiense dos alfaiates, um costume ainda bem conservado e decente, apesar de um tanto fanado na gola. Notava-se a ausência completa do ouro: a abotoadura era toda de marfim; e não se via sinal de relógio. Depois de alguns minutos de passeio, o moço, cujos olhos iam percorrendo com indiferença as bordas do caminho, de um e outro lado alternadamente, desviou- se do trilho batido e seguiu por dentro do mato. Mal tivera tempo de sumir-se entre a ramagem do arvoredo, quando ouviu-se o tropel de um cavalo que passou a galope. Enfiando o olhar por entre as folhas, pôde ver o cavaleiro, o qual era rapaz de 21 anos, de belo parecer e maneiras agradáveis. Montava um cavalo castanho. - Fábio! - O cavaleiro colheu prontamente as rédeas, fazendo estacar a montaria, e voltou-se duvidoso para ver se com efeito o haviam chamado, como lhe parecera. A rapidez do galope e a repercussão do solo tinham impedido que ouvisse distintamente a voz do passeador a pé: - Que milagre!... Hoje madrugaste!... - Ah! És tu, Ricardo?! Exclamou o cavaleiro retribuindo o sorriso. Vou à “Vista dos Chins” com uns rapazes que estão aí no hotel do Jourdain. Convidaram-me ontem à noite. É um piquenique! Queres ir também? - Só se partíssemos ao meio o “Galgo”, observou Ricardo, alisando a linda anca do cavalo. - Dou-te garupa! Replicou Fábio gracejando. - Obrigado!... Luisinha teria ciúmes. - Bem; vai romantizar com as flores, que os sujeitos estão à minha espera. Talvez já chegue tarde! Digam lá o que quiserem. Um homem deve se dar a respeito, e não comparar-se com os animais e os carroceiros que deitam de dia e acordam-se de noite. Atirando esse gracejo, Fábio deu de rédeas ao animal e partiu a galope. - Olha o “Galgo”, hem! gritou Ricardo. - Com efeito!... nem de Bela tens tanto cuidado! Ricardo sorriu e, acompanhou com os olhos o amigo até que sumiu-se na volta do caminho. Não era porém o cavaleiro, apesar de elegante, o que prendia a tenção do passeador, e sim o cavalo cuja fina roupagem castanha brilhava aos reflexos do sol. A esbelteza das formas esgalgadas e o garbo dos movimentos fáceis e vivos, lhe tinham merecido o lindo nome dado pelo dono. Quando o vulto airoso do cavalo encobriu-se por detrás da folhagem de uma árvore que interceptou-lhe a vista, Ricardo, abafando um suspiro involuntário, desviou-se novamente do caminho ao qual voltara para falar com o amigo. Às vezes o pensamento do moço vagava de um a outro objeto, desta àquela moita, do ramo ao tronco, da folha à raiz, como se procurasse um ponto qualquer onde se fixasse, distraindo-se das idéias e recordações do íntimo. Outras vezes, depois de adejar como uma borboleta, o espírito do solitário passeador recolhia- se insensivelmente, e abstraía-se de quanto o cercava, para envolver-se nos refolhos d’alma. Alguma coisa porém chamou por momentos sua atenção. Foi a pequena flor silvestre de um arbusto que se encontra nas matas da Tijuca. Não sei o nome do arbusto, nem mesmo se já foi batizado pela ciência. É natural que não tenha escapado às pesquisas dos dois ilustres “freires” da flora brasileira, o Veloso e o Alemão; mas, como apesar de tanto dinheiro esperdiçado pelo governo, as letras andam entre nós abandonadas à indiferença e ao charlatanismo, que são a medusa e o minotauro do talento, não me pude socorrer à ciência dos dois célebres botânicos. A este respeito Ricardo não era menos ignorante. O modo porque ele admirava a pequena flor revelava o tato do artista ou do poeta. Seu exame nada absolutamente se parecia com a fria dissecação que o botanista opera nas diferentes partes de uma planta, para conhecer o seu gênero, classe e família. A flor tem a forma de um junquilho, mas é de uma bela cor de ouro, e aveludada como a açucena. Falta-lhe o perfume, que é o coração da flor, a sua respiração. A corola tubular, com cinco lóbulos agudos de lança, surge de um cálice que parece coralina. Cada haste sustenta comumente três cálices dispostos como as aspas de um leque; aí dentro desses cálices formam-se os botões, como pequenas pontas de ouro no seu róseo engaste. Pelo conhecimento que fizemos, a planta e eu, durante o verão passado, notei-lhe duas particularidades. Talvez recebesse eu dela outras confidências se não nos separássemos tão cedo, e tão no princípio ainda de nossa amizade. Os botões, que despontam em dezembro, por muito tempo se conservam estacionários, sem crescimento aparente. É só dois ou três meses depois, em fevereiro e março, que as gemas d’ouro se elevam como aljôfares, e desabrocham para murchar em um dia. Mas as três flores irmãs não crescem, nem abrem ao mesmo tempo; vêm solitárias, uma depois da outra. Eram estas justamente as observações que fazia Ricardo, examinando a linda corola e os botões nascentes aninhados ainda no fundo do cálice nacarado. Muitas vezes em seus passeios tinha ele notado o arbusto coberto das lindas pérolas douradas. Cansado de esperar o desabrochar, supôs a florescência já passada, e naquilo que via, o embrião do fruto. Depois de olhar a flor agreste com enlevos de artista, o moço, que procurava qualquer modelo, lembrou-se de copiar o arbusto em uma das páginas do álbum. Escolheu a posição, aproveitando os acidentes do terreno em ladeira, para servir-lhe de mesa. De joelhos na grama, debruçado sobre o declive de um barranco, traçou rapidamente a lápis o esboço da planta. Enquanto descansava, examinou de novo a flor do ramo que tinha quebrado: - Que bela cor de ouro! murmurou. Então com as impressões poéticas da flor agreste se enlearam outras cismas que absorveram completamente o espírito de Ricardo. Como a seiva exuberante de uma árvore, que rompe a casca e borbulha aqui e ali pelo tronco em fios de resina, assim os pensamentos que enchiam a alma do mancebo se escapavam de vez em quando nas palavras entrecortadas de um monólogo. - Ouro!... ouro!... És o rei do mundo, rei absoluto, autocrata de todas as grandezas da terra! Tu, sim, tu reinas e governas, sem lei, sem opinião, sem parlamento, sem ministros responsáveis!... Não tens nenhum desses trambolhos que arrastam os soberanos constitucionais. “Lei?... Que lei é a tua, senão o capricho com que escarneces dos homens? Tu dizes ao pobre, cobiça; ao opulento, gasta; ao ladrão, rouba; e a todos, grandes e pequenos, adorai-me... “Opinião?... Quem faz esse rumor que nos atordoa os ouvidos e a que chamam pomposamente opinião pública? Tu, que sustentas os jornais, pagas os jantares, ofereces lindos presentes, estreitas as amizades, e nutres a admiração e o entusiasmo!” O monólogo expirou nos lábios do moço; porém a expressão de seu rosto indicava que o espírito seguia mentalmente o sucessivo desenvolvimento da idéia. - Todos nós, bons ou maus, somos súditos de tua majestade, com a diferença que os maus te bajulam e se arrastam a teus pés para satisfação de ignóbeis instintos; enquanto que os homens honestos te respeitam como um grande poder, te servem para se robustecerem com tua força, mas não te sacrificam a dignidade e a virtude. Um sorriso amargo pairou nos lábios de Ricardo: - Por isso, como todos os reis, tu repeles quase sempre essas almas de rija têmpera, que não se dobram a teus caprichos. Preferes os lisonjeiros, os corações de cortiça, as almas de esponja, que à vontade se embebem ou se encharcam daquilo que te apraz ou te repugna. A sombra de algum pensamento mais desanimador perpassou-lhe na fronte, e derramou-lhe pelo semblante uma expressão de melancolia. As pálpebras cerraram-se como se a luz do sol ofendesse a penumbra d’alma em que dormiam as mágoas íntimas e as queridas reminiscências: - Minha felicidade, a felicidade de uma família inteira, depende de ti, de um teu bafejo!... Vinte contos!... Uma migalha das tuas imensas riquezas. Dizem que milionários já deram mais, muito mais, para terem direito a um nome de cinco letras! Quatro contos cada letra! Há mulheres que levam ao baile algumas noites, durante sua vida, jóias que valem dez vezes mais do que essa quantia! Quanto não custa cada hora daquele prazer! Entretanto não são cinco letras, são oito criaturas, não são horas apenas, são anos, são vidas de amor e ventura, que eu obteria com esta miserável quantia... miserável para os opulentos; para mim um tesouro, um futuro!... Sob a influência da profunda cisma, Ricardo tinha a pouco e pouco mudado a posição, que tomara para desenhar. O corpo debruçado anteriormente sobre o declive, que servira de mesa, inclinou-se insensivelmente para o lado, firmando-se no cotovelo. Assim com a cabeça apoiada na mão esquerda, quase deitado sobre a relva, como sobre um divã, prosseguia o moço nos seus devaneios, com os olhos fitos na flor, que embalançava-se lentamente aos movimentos dos dedos. - Bastava uma tira de papel, um bilhete de loteria, ou uma carta de jogar, para dar-me essa quantia, o preço de minha felicidade, a saúde de minha mãe, o casamento de Luisinha e... Ah! Quantas vezes não me tenho embalado nestas ilusões sedutoras, nestes sonhos d’ouro! São como tu, linda flor, os meus sonhos d’ouro. Brota uma tênue esperança, assim como o teu botão; vai crescendo lentamente, no meio de ânsias e dúvidas; afinal desabrocha em flor; mas é flor do vento, que logo murcha. Também tu não vives mais que um dia!... Nisto nos parecemos bem; constante a preocupação; o sorriso efêmero; tua preocupação é vegetar, a minha, pensar! Decorrido um momento, o semblante de Ricardo expandiu-se: - Há tanto tempo que vejo esta planta, e não lhe conhecia a flor!... Quem sabe? Talvez seja o anúncio do primeiro sorriso da fortuna! Logo zombou de sua lembrança, e da puerilidade daquela superstição. Mas, longe de a repelir, embebeu-se na ilusão. Todos nós temos em nossa alma um cantinho, que, apesar dos anos, da experiência e dos trabalhos, fica menino até que enfim o homem volta à primeira infância. Nesse cantinho dormem as ilusões ingênuas, as esperanças infindas, a fé robusta e sobretudo certos laivos de loucura que tonificam a razão. É aí, é justamente nesse santuário da infância, que a alma viril do homem costuma-se refugiar nos momentos de crise, quando sustenta alguma luta com a fortuna; ou vencedora para fortalecer-se com a seiva primitiva, e renovar o combate; ou vencida para escapar ao desespero, que a invade. Ricardo deixou-se ir à mercê da fantasia, que recortava arabescos em seu espírito. Era um desses sonhos acordados, em que as noções confusas se agitam num claro-escuro do espírito. Esse jogo da luz e das sombras d’alma, junto à extrema volubilidade dos pensamentos, não deixava destacar-se cada uma das idéias. Bilhete de loteria, jogo de cartas, heranças inesperadas, a proteção de um milionário, o trabalho abençoado por Deus, e mil rasgos e acidentes da fortuna; tudo isto misturado com a imagem da flor se baralhava na mente de Ricardo, apagando-se e luzindo alternativamente, como os fogos-fátuos em noite escura. Mas todas essas fosforescências iam derramando n’alma como que uma linda miragem, a abastança, a posse dos vinte contos de réis. - Então!... Como havíamos de ser felizes, Bela! Que beijos, minha querida mãe, que eu te havia de dar para te beber nas faces as lágrimas de prazer! Porque tu havias de chorar de alegria, como choraste de dor. E também a ti, Luisinha! A todos!... A cada uma dessas palavras o moço, completamente possuído e dominado por suas recordações, inclinava-se sobre a flor agreste que tinha na mão, e beijava-a com ardor, vendo naquela gentil criatura da natureza a imagem das pessoas a quem amava. - Oh! então lhes pagaria em beijos as saudades que sentem por mim!.. O trino mavioso de um riso fresco e argentino arrancou subitamente o moço à profunda cogitação. Aturdido um instante pela completa alheação do espírito, que andava bem longe dali, através dos mares, Ricardo voltou-se para ver quem tão bruscamente o havia chamado à realidade. O quadro que tinha diante dos olhos era digno de uma das folhas de seu álbum, ornado de finas aquarelas. II Entre o arvoredo tecido de grinaldas amarelas aparecia uma esfera do azul do céu, como tela fina de um painel, cingido por medalhão de ouro. A sombra de uma nuvem errante infundia ao horizonte suave transparência. Debuxava-se na tela acetinada o vulto airoso de linda moça, que montava com elegância um cavalo isabel. A alvura de sua tez fresca e pura escurecia o mais fino jaspe. Nem os raios do sol, nem o exercício acenderam uma rosa mesmo pálida em sua face, cândida como a pétala do jasmim. A seiva dessa mocidade, o viço dessa alma, não se expandia no rubor da cútis, mas no olhar ardente e esplêndido dos grandes olhos negros, e no sorriso mimoso dos lábios, que eram um primor da natureza. Admirando aquele rosto encantador, ninguém reparava na sua palidez; ao contrário parecia que os tons rosados maculariam a alvura do lírio. A alma que se derrama assim em ondas no olhar e no sorriso, está no íntimo, no coração, donde se desprende em centelhas; não pode tingir as faces. Um roupão de caxemira verde-escura, debruado a cairel de seda preta, com abotoadura de aço, moldava um talhe esbelto, que parecia talhado em mármore, tal era a correção das linhas e a harmonia dos contornos. O gracioso chapéu de castor cor de pérola, em vez de cobrir-lhe a cabeça gentil, pousava como um pombo na rica madeixa negra, que lhe descia caprichosamente pelo pescoço em opulentas cascatas. Calçava luvas de camurça amarela, cujo longo canhão afunilado cobria-lhe uma parte do braço, mas deixava admirar o pulso delicado, cingido por um punho de cambraia lisa, igual ao colarinho rebatido sobre a gola do roupão. - Foi com o doutor... Um dos primeiros médicos da corte... Esquece-me agora o nome... o doutor... - Não importa. - Pois bem. Uma noite, seriam duas horas da madrugada, chovia a cântaros, quando batem-lhe à porta. Era um chamado a toda a pressa para a casa do Soares; a carta era instante; o carro estava à espera. O velho doutor consultou todas as juntas do corpo para ver se não tinha algum travo de reumatismo, que o desculpasse com o capitalista e a consciência. Achando-se perfeitamente lépido, não teve remédio senão erguer-se e partir. - Fez sua obrigação. - Sem dúvida. Chegando o doutor foi recebido pela Guida... - A filha? - Sim; a qual muito aflita comunicou-lhe que o incomodara àquela hora da noite para ver Sofia, que estava muito mal, a decidir, de uma moléstia do coração. O doutor conhecia melhor o dinheiro do que a família do capitalista; não sabia pois de quem se tratava; pensou porém que devia ser uma pessoa importante da casa. Acompanhou a moça a uma alcova frouxamente iluminada por uma lamparina, onde havia um leito envolvido em alvos cortinados de filó. O doente parecia uma criança; estendendo a mão para tomar-lhe o pulso, sentiu o médico um pêlo macio; aproximou a vela e então distinguiu perfeitamente uma cachorrinha, deitada em travesseiros de cetim e coberta com uma colcha de damasco. - Será exato isto? - Asseguro-te que é. Faze idéia de como ficou o doutor, arrancado à sua casa à uma hora da noite, e rebaixado do seu pedestal de médico do que há de mais ilustre e elevado na corte, a médico de cão. Se a graça fosse de qualquer outra pessoa, ele decerto não a suportaria; mas era de uma moça bonita. O velho assentou que o melhor meio de sair-se do caso era levá-lo em tom de galhofa... “Ah! É sua maninha?” disse ele. Examinou com uma gravidade cômica o doente, pediu papel e receitou neste gosto: “Récipe: Uso interno: Maçada –oit. Capricho de criança –1 onça. Misture e faça infusão para tomar às colheradas de hora em hora. Uso externo: Gargalhada –oitavas. Paciência –libra. Faça uma fomentação. Para a Srª. D. Sofia Soares. Dr. F.” Entregou a receita à menina, e assegurou-lhe que D. Sofia se restabeleceria brevemente. - Era pachorrento o doutor. - Que havia ele de fazer; dar a cavaco? Mas escuta o resto. É um romance. A Guida mandou a receita à botica da casa. Podes bem avaliar do como ficaria embaraçado o boticário para aviá-la: nunca na sua vida tinha manipulado semelhantes drogas. Mas a menina fez-lhe saber muito positivamente, que se não mandasse os remédios receitados pelo médico perderia a freguesia. Nestes apertos passou-lhe o doutor pela porta; contou-lhe o que sucedia; o velho desatou a rir. “Olhe; maçada, é qualquer amargo. Capricho de menina, umas cócegas, como as que produz o súlfur. Gargalhada, um pouco de muriato no pêlo da cachorrinha, e verá que boas risadas ela dá. Paciência, isso é um emoliente, farinha de linhaça.” O boticário aproveitou a lembrança e aviou a receita. Se a Sofia tomou o remédio não sei; mas ficou boa. - Então é mais provável que não tomasse. - Estou por isso. Tempos depois aparecendo o doutor em sua casa, a Guida exigiu a conta da visita feita à Sofia. O velho, julgando-se autorizado pelos sessenta anos e pelo gracejo da menina, disse-lhe que o preço era um beijo. Nesse momento chegava à porta a mestra, uma inglesa gorducha e míope. - Naturalmente uma que vi passar... - É a tal. A Guida corre a ela; inventa de repente uma história da chegada imprevista do marido, uma alegre surpresa; e acaba mostrando-lhe o vulto do doutor, que não entendia a conversa por ser em inglês. A mestra precipita-se como uma bala de canhão, agarra-se ao pescoço do velho, e cobre-o de uma chuva de beijos sonoros e cheios, verdadeiros beijos de lei, pesando 24 quilates cada um. - E o doutor? - Quando se pôde desvencilhar dos braços e da boca da gorducha, viu Guida que ria de sua triste figura: “Está vendo, doutor, como eu pago generosamente as minhas dívidas. O senhor pedia um beijo, e leva algumas dúzias deles”. O velho limpava a cara, enquanto a inglesa esfregava os beiços como se lhes quisesse tirar a pele. Não achas engraçada a anedota, Ricardo? - Acho que essa moça tem pouco juízo. - Juízo tem ela; mas é juízo de moça rica, muito diferente do juízo de moça pobre. O velho Soares é uma máquina de fazer dinheiro; vive no escritório. A mulher, esta suporta a sua opulência como um cativeiro. Os outros filhos ainda estão no colégio. Quem há de suar daquela riqueza e da posição que ela dá senão Guida? - Podia usar de uma maneira mais séria e mais útil. - Não seria então uma criança de dezesseis anos? - Mas é justamente por não ser uma criança que eu a censuro. A travessura aos dezesseis anos é inocente; não tem a malícia das comédias de mau gosto representadas por essa moça. Fábio voltara-se cuidando ouvir um rumor. Os dois amigos conversando ao lado um do outro tinham deixado a estrada e tomado um atalho que descia pela encosta da montanha. - No fim das contas, assim deve ser, acrescentou Ricardo. Ela é muito bonita e muito rica; deve ter algum defeito; são os espinhos da rosa, como diria um poeta, ou o azinhavre do ouro, como dirá naturalmente o marido que lhe desfrutar o dote. Conversavam os dois amigos de coração aberto, em voz clara, como quem não se receia de ouvir o eco de seu pensamento; não se lembrando que as folhas das árvores têm olhos, e as brisas ouvidos sutis. Expiravam as últimas palavras quando soaram distintamente no chão batido do caminho, que lhes ficava sobranceiro, passos de animal. Erguendo os lhos viram a linda amazona que passava lentamente de volta de seu passeio. Não abaixou a cabeça nem voltou o rosto; mas um olhar cintilou sob o véu espesso, como a luz de um relâmpago, e caiu sobre os dois moços, apagando-se logo. - Terá ouvido? perguntou Fábio rindo. - É provável! disse Ricardo com indiferença. - Nesse caso estamos comprometidos. - Por que razão? - Tinha uma idéia. O Soares está passando o verão aqui na Tijuca. Sabes, assim no campo, tomam-se relações com muita facilidade. Queria ver se nos apresentavam sua casa. - Que lembrança! Havíamos de fazer uma bonita figura no meio dessa gente que arrota ouro, nós dois pobretões! - Talvez a riqueza pegue como a lepra! - Pega; quando se tem mau sangue. - Mas, fora de graça: é preciso fazermos relações, adquirir amigos, do contrário nada alcançaremos. - Não digo o contrário. Continuando a conversa, chegaram os dois moços a um pequeno vale escondido entre duas pontas da montanha. Um escasso ribeiro descia em cascata rumorejando por entre as pedras, e serpejava à sombra das bananeiras. No meio do vale havia uma pequena casa cercada por algumas fruteiras. IV Por entre duas linhas de cafezeiros aparecia a porta da casa; e em pé na soleira, uma velhinha de cabelos brancos em carrapito, com vestido de chita amarelo e um lenço vermelho de Alcobaça, cruzado ao peito. Era D. Joaquina Sampaio, tia de Fábio e senhora de pequena propriedade. Passava ela entre todos os parentes como rica, porque possuía esses dois palmos de terra e uns três centavos. Com a sua rocinha, como ela lhe chamava, ia vivendo, pobremente sim, mas tranqüila e feliz. Tudo ali era velho: a casa, as árvores, a dona e os escravos. A mocidade só brilhava no renovo das plantas e no semblante dos dois amigos, que passavam habitualmente o domingo em companhia da velha. - Vocês hoje não têm muita fome! disse D. Joaquina apenas avistou os dois moços. - Ao contrário, minha tia, tragos duas fomes em vez de uma, respondeu Fábio. - Pois não parece. Já o sol está entrando pela casa, replicou a senhora mostrando a réstia no pavimento da sala. - É tarde com efeito! disse Ricardo. O moço levara maquinalmente a mão ao bolso do colete para tirar o relógio; mas reprimiu o movimento involuntário, enquanto um sorriso triste lhe fugia dos lábios. Tivera há dias necessidade de pagar algumas dívidas impertinentes. Era preciso vender o cavalo ou o relógio; preferiu desfazer-se deste último traste. Que lhe importava saber com exatidão as horas, se elas não lhe traziam nenhuma felicidade? O almoço era frugal como de costume. Café com leite muito bem feito, três pães, um para cada pessoa, e excelentes bananas-maçãs. Todos os domingos punha- se invariavelmente no meio da mesa uma grande manteigueira de louça azul, como era o resto do aparelho. Fábio nos primeiros tempos destampava sem cerimônia a manteigueira e empastava a fatia; mas acabou-se a primeira porção e só restava a crosta ligeira que fica aderente às paredes da louça. Ricardo fez- lhe compreender que não deviam se tornar pesados à excelente senhora, cuja hospitalidade era oferecida de tão bom coração. Desde esse dia a tampa da manteigueira caiu como a lousa de um túmulo, para não mais se abrir. Posta no meio da mesa ela não era mais do que um símbolo ou um emblema; atestava a decência do almoço, pois na opinião da dona da casa não havia mesa capaz sem manteiga. No domingo em que estamos, D. Joaquina fez uma surpresa a seus hóspedes. Havia quatro ovos quentes. - Oh! exclamou Fábio alegremente. A Nanica brilhou desta vez. - Estes sobraram de uma dúzia que estou guardando para tirar uma ninhada. - É verdade, minha tia. Havemos de fazer uma sociedade para ficarmos ricos de repente. Conheço um americano que inventou uma máquina de chocar ovos... - Já sei; para tirar os pintos sem galinha. - Ora! Isto não vale nada. A minha máquina é coisa mais sublime; olhe, minha tia: mete-se um ovo, um ovo só. Três dias depois abre-se a porta da máquina, e enche-se a capoeira de galos, galinhas e frangos. - Grandes? - Pois então? Manda-se vender à cidade a primeira capoeira. Mas como as galinhas antes de saírem da máquina puseram lá os ovos, e estes já estão feitos galinhas, é um não acabar! A velha ria-se às gargalhadas das pilhérias do sobrinho; e assim iam temperando o almoço com o sal da alegria e do prazer, que é sem dúvida o melhor adubo. A ligação íntima e sincera que havia entre os dois moços era mais do que amizade, era uma afeição fraternal, que o casamento de Fábio e Luisinha devia mais tarde consagrar. Pela idade, como pela gravidade do caráter e superioridade de inteligência, Ricardo exercia sobre o amigo a doce autoridade de um irmão mais velho: a autoridade do exemplo e do conselho. Estas relações tinham começado havia seis anos na cidade de São Paulo, onde habitava Ricardo com sua família. No ano em que o talentoso estudante ia concluir o seu curso e formar-se, Fábio, muito mais moço, matriculou-se na faculdade. Apesar dessa circunstância que os devera separar logo no princípio de seu conhecimento, a amizade estreitou-se entre os dois. O meigo sorriso de Luisinha foi naturalmente o fio dourado que teceu essa mútua afeição. Havia três meses que Fábio se tinha formado. Para ele o prazer que sempre desperta esse dia no coração do estudante, veio travado de saudades. Sua pobreza não lhe permitia realizar o voto mais querido de sua alma; tinha de separa-se de Luisinha, para recolher à corte, ao seio da família. Ia trabalhar na esperança de adquirir uma posição modesta, mas decente, para oferecer à companheira de sua existência. Os dois corações sofreram com a ausência, mas resignaram-se. Ricardo de seu lado reconhecera que em São Paulo não poderia, apesar de seu talento, obter os recursos indispensáveis para assegurar o futuro da numerosa família que pesava sobre ele, depois da morte de seu pai. Aproveitando a ocasião, veio com Fábio para a corte tentar fortuna. Estabeleceram-se ambos como advogados. Obtido o escritório, posto o nome na porta e feitos os anúncios, esperaram pelos clientes. Nos três meses decorridos conseguira Ricardo quatro causas gratuitas, que por grande obséquio lhe arranjara um procurador. Apenas lá de tempos a tempos, uma inquirição, ou algum requerimento, ia ajudando a compensar as despesas. Os dois amigos suportavam sua pobreza nobremente. Às vezes Fábio, mais desabusado, sustentava umas idéias materialistas, como aquelas que exprimira durante o passeio; mas Ricardo, que não transigia em matéria de escrúpulo e honestidade, combatia tais aberrações do espírito de seu amigo, e destruía a influência nociva que o mal poderoso e laureado exerce sobre as almas cuja têmpera não é bastante forte para resistir-lhe. A semana passava-se na expectativa ilusória dos clientes que não vinham, ou na meditação de um estudo obrigado e sem estímulos. No sábado, os dois amigos tomavam a gôndola de Andaraí, com o fim de aceitar de D. Joaquina uma hospitalidade oferecida com o maior gosto e satisfação. Para a excelente senhora, enterrada viva naquele retiro, a chegada de Fábio e seu companheiro era uma visita do mundo àquela solidão, donde não saía senão de ano em ano. O contato daquela mocidade a remoçava; ela escutava com admiração a palavra inspirada do talentoso advogado, ou ria das graças do sobrinho. Ricardo possuía em São Paulo um cavalo, o “Galgo”, ao qual muito se afeiçoara. Mudando-se para o Rio de Janeiro não se animara a vendê-lo; trouxe-o consigo. Ignorava quanto é dispendioso na corte o trato de um animal. Sem dúvida seria obrigado a separar-se do “Galgo”, se Fábio não pedisse à tia para conservá-lo na sua rocinha da Tijuca. Assim pouco se aproveitava o dono do seu cavalo; porém obtinha conservá-lo, esperando melhores tempos. Os dois amigos partilhavam igualmente os serviços do cavalo, e o “Galgo” parecia compreender essa comunidade, porque os considerava a ambos como senhores, embora respeitasse mais a Ricardo. No sábado, quando subiam a serra, um por seu turno montava o “Galgo”, enquanto o outro ia a pé com a fresca, até que o cavalo tendo chegado à casa, vinha- lhe ao encontro para poupar-lhe um resto de caminho. Na segunda-feira pela manhã, voltando para a cidade, revezavam igualmente. O domingo era repartido da mesma forma: um desfrutava o passeio da manhã, o outro o da tarde. Se pois o “Galgo” descansava durante os quatro dias da semana, nos outros fazia sofrível exercício. Fábio, de gênio descuidado e folgazão, às vezes abusava, fazendo proezas com o “Galgo”; mas Ricardo coibia as travessuras, moderando o ardor do amigo. Disto nunca resultava menor desconfiança entre ambos. Nessa boa e verdadeira amizade, um punha em comunhão o sorriso, o outro o conselho; um era a alegria e a esperança, o outro era a consolação e a fé. Depois do almoço, enquanto a velha foi rezar, como de costume, Fábio tomou a espingarda, Ricardo, sentando-se à janela, abriu o álbum e entreteve-se a desenhar. Primeiramente coloriu a figura do pequeno arbusto, parte de memória, e parte à vista do galho que tinha quebrado. Enquanto se ocupava com esse trabalho, a mente repassava as recordações da cena recente e da posição em que o surpreendera a moça a cavalo; com estas lembranças vinham de envolta as saudade das pessoas a quem amava, e de quem se achava ausente. Quando as veria para contar-lhes todos esses pequenos incidentes de sua vida, para referir-lhes essa longa história de uma esperança tão ansiada! Como não se haviam de rir aqueles entes por quem se estremecia, quando soubesses dos beijos ardentes que ele dera na florinha agreste, e da risada desdenhosa que de repente o chamara à realidade! Passou-lhe pela idéia traçar o quadro de Guida como ele vira. Sua família teria curiosidade de conhecer essa moça de que Fábio naturalmente havia de contar as travessuras. Insensivelmente o lápis começou a traçar no papel o primeiro e leve esboço do quadro que lhe ficara gravado no espírito plástico. Ricardo nunca aprendera desenho com mestres de arte. Sentira em si a intuição da forma, e cultivara essa disposição natural, guiado pelas próprias observações. Não teve necessidade de que lhe ensinassem as regras da perspectiva, pois as tinha diante dos olhos nas paisagens que se desdobravam pelas lindas várzeas de São Paulo. Deus criou três linguagens para o artista: a linguagem da forma, a pintura; a linguagem dos sons, a música; e a linguagem da palavra, a poesia, de todas a mais sublime porque fala não só ao coração, como à inteligência. Ricardo era um poeta da forma; ele fazia versos com as cores. Suas impressões, debuxava-as sobre o papel em imagens, retratadas ao vivo. Copiava-as da memória, onde ficavam estampadas como em uma lâmina fotográfica; depois a imaginação bordava a lápis com essas recordações algum soneto ou alguma ode, corretos no desenho, brilhantes no colorido. Os contornos gerais do quadro já estavam delineados; via-se em traço quase desvanecido a moldura da folhagem entrançada de grinaldas amarelas, a estampa do soberbo cavalo isabel, e o lindo perfil da amazona cujo véu se enrolava ao sopro da brisa. Sentindo que Fábio se aproximava, Ricardo voltou a página do álbum e disfarçou esboçando figuras grotescas em uma folha solta. Se o amigo visse o quadro, adivinharia quem era a moça; seria necessário referir a cena dos beijos. Ora, Ricardo tinha vexame de contar essa infantilidade de seu coração; e sobretudo a Fábio, que ele considerava como um irmão mais moço. À sua mãe não duvidaria contar, em um momento de ternura, e depois de decorrido algum tempo. Um coração de mulher compreende certas delicadezas, que parecem ridículas ao espírito de um homem; ainda mais quando esse homem é um moço de gênio prazenteiro, como era Fábio. O resto do dia passou como de costume, repartido entre a conversa, a leitura, o banho, o jantar, e o jogo da paixão de D. Joaquina, a bisca cega. À tarde, Ricardo, a quem tocou a vez, arreou o “Galgo” e foi dar um passeio, enquanto Fábio saía a pé sem destino, em busca de alguma companhia para passar a noite. Seriam 6 ½ horas da tarde. Apenas um doce reflexo de ouro tingia o cume das mais altas montanhas. A suavidade do crepúsculo derramava-se na atmosfera. É encantador esse adeus do dia quando se despede da formosa serraria da Tijuca. O céu, despindo o fulgor da luz, mostra a limpidez e transparência do puro azul, seio infindo onde a alma se embebe, como o filho no colo materno. Ricardo vinha entregue ao enlevo da contemplação da tarde, quando ao dobrar uma volta do caminho achou-se diante de um rancho de moças, que andavam passeando. Entre todas distinguia-se, pelo talhe esbelto e gracioso, uma, vestida de seda escocesa, desde a botina até as fitas do cabelo. Diante dela corria, saltando e latindo, uma cachorrinha felpuda, muito alva, com brincos de ouro e uma coleira de veludo; mas apenas percebeu o cavaleiro, atirou-se ao “Galgo” para mordê-lo no jarrete. Ricardo, tendo reconhecido a Guida, supôs que a cachorrinha era a mesma da história contada por Fábio, a Sofia. Mais aborrecido ficou ainda com o impertinente animal, que investia furioso contra as pernas do cavalo. A situação nada tinha de agradável; o caminho era estreito; de um lado o despenhadeiro, do outro a montanha cortada a pique. O “Galgo”, fogoso e irritado com a insultante ameaça do cão, encrespava-se, lançando fogo pelas narinas. Ricardo, excelente cavaleiro, conseguiu dominar o primeiro ímpeto, e tocando no chapéu, disse para as moças que se tinham posto ao abrigo subindo a ribanceira da montanha: - Acho bom chamar o cãozinho! A Guida deu um estalo com os dedos: - Cá, Sofia. - Deixe! disseram as outras rindo. Pensavam que Ricardo tinha medo do cavalo, e queriam divertir-se com a queda. Não se lembravam, que naquele lugar, à borda de um despenhadeiro, podia ser fatal. Sofia ouvira a voz da senhora; mas, com o seu privilégio de cão mimoso desobedeceu; e investiu contra o “Galgo” com maior sanha. Ela estava acostumada àquele brinquedo; já tinha mordido o jarrete de muitos cavalos, atirando ao chão os cavaleiros, para divertimento da senhora e suas amigas. Ricardo vendo a inutilidade de sua recomendação, deu largas à cólera do “Galgo”. O brioso cavalo juntou, e atirando-se para a frente de um salto, arremessou o coice. A cachorrinha foi cair no fundo do precipício, sem tempo sequer de soltar um gemido de dor. - Sem dúvida morreu! disse uma das moças. Passando pelas senhoras, Ricardo cortejou: - Queiram desculpar, minhas senhoras; este cavalo é um provinciano; ainda não tem maneiras cortesãs. À noite, antes de dormir, Fábio dava risadas gostosas ouvindo o episódio do passeio. V Decorreu mais de um mês. Durante esse tempo Ricardo passou com seu amigo três domingos na Tijuca. De cada vez o acaso o fizera encontrar a Guida quando mal pensava. A primeira vez foi na manhã do domingo que seguiu-se às cenas referidas. Ricardo saíra no “Galgo” a passeio. Tomando para o lado da cascatinha, que as chuvas dos últimos dias tinham enriquecido, lembrou-se o moço de subir até a Floresta, um dos mais lindos sítios da Tijuca. O nome pomposo do lugar não é por ora mais do que uma promessa; quando porém crescerem as mudas de árvores de lei, que a paciência e inteligente esforço do engenheiro Archer têm alinhado aos milhares pelas encostas, uma selva frondosa cobrirá o largo dorso da montanha, onde nascem os ricos mananciais. Viva a imagem da loucura humana! Refazer à custa de anos, trabalho e dispêndio de grande cabedal, o que destruiu em alguns dias pela cobiça de um lucro insignificante! Aquelas encostas secas e nuas, que uma plantação laboriosa vai cobrindo de plantas emprestadas, se vestiam outrora de matas virgens, de árvores seculares, cujos esqueletos carcomidos às vezes se encontram ainda escondidos nalguma profunda grota. Veio o homem civilizado e abateu os troncos gigantes para fazer carvão; agora, que precisa da sombra para obter água, arroja-se a inventar uma selva, como se fosse um palácio. Ontem carvoeiro, hoje aguadeiro; mas sempre a mesma formiga, abandonando a casa velha para empregar sua atividade em construir a nova. Ricardo pensava pouco mais ou menos nesse sentido, enquanto ganhava a ponte da Cascatinha, com intenção de subir até a Floresta. Mas essas preocupações se desvaneceram completamente diante do quadro arrebatador que se oferecera a seus olhos. Brancos lençóis de espuma se desdobravam pelas escarpas do rochedo, como as pregas de alvo manto flutuando sobre as espáduas de Agar, a africana. A vegetação se debruçando de um e outro lado, derrama sobre a cachoeira uma sombra doce, que torna mais negra a pedra e mais cândida a espuma. Há cascatas muito mais ricas e abundantes do que essa, não só na grande massa das águas, como na vastidão e aspereza dos penhascos. Têm, sem dúvida aspecto mais soberbo e majestoso; inspiram n’alma pensamentos mais graves e sublimes. A Cascatinha da Tijuca, porém, prima pela graça; não é esplêndida, é mimosa; em vez da pompa selvagem respira uma certa gentileza de moça elegante; bem se vê que não é uma filha do deserto; está a duas horas da corte, recebe freqüentemente diplomatas, estrangeiros ilustres e a melhor sociedade do Rio de Janeiro. Assim não se despenha ela com a fúria de uma serpente, mas com a indolência com que uma senhora da moda se derreia no recosto do divã. Sua voz não é um trovão, mas um rumorejo que embala docemente o coração. Perto dela sente-se no ar o hálito fresco das águas que se esfrolam, e não a constante neblina produzida pelos borbotões que se desfazem em pó com a violência do choque. O jovem advogado tinha contemplado muitas vezes a Cascatinha, e até já possuía em seu álbum uma aquarela da formosa paisagem; mas nunca a vira tão abundante d’água, tão enfeitada e casquilha. Projetou voltar a pé, depois do almoço, para tirar outra vista. Assim teria a Cascatinha em traje de festa e em desalinho. Uma voz soou a pouca distância: - Oh! beautiful! Very beautiful! Ricardo estava no centro da ponte, com o cavalo atravessado, para ver de frente a Cascatinha. Conhecendo que outras pessoas se aproximavam fez voltar o animal para dar-lhes passagem. Este movimento colocou-o em face de Guida, que chegava. A moça tinha o mesmo traje de amazona que no domingo passado; mas em vez de serem de camurça amarela as luvas eram de peau de Suède cor de castanha e o chapéu de palha arroz com um véu branco. Salvas essas ligeiras modificações do vestuário, que naturalmente escaparam aos olhos do moço, era a cópia viva do quadro, que lhe aparecera à borda do caminho, oito dias antes. A moldura sim, era diferente; os florões dourados dos corimbos da aroeira foram substituídos pela negra e musgosa cercadura do rochedo. Os olhos de Guida e Ricardo se encontraram. Reconhecendo-a, o moço envolveu-a com o olhar, um desses olhares ardentes e profundos, que embebem em si os objetos, como um molde, para depois vazá- los dentro d’alma. Olhar de poeta ou de artista, que esculpe na memória estátuas, os relevos e arabescos da natureza; donde os copia depois a imaginação em poemas, em harmonias, em raios de luz. Esse olhar tem alguma coisa do cinzel que talha, e da lava ardente que se coalha e vitrifica sobre os objetos. Aí, próximo à Restinga, havia então, e talvez ainda exista, uma cabana coberta de palha de sapé, com paredes de emboço. Em muitos lugares porém tinha caído o barro, deixando entre as varas grandes buracos, tapados com ramas secas. Esta choça miserável ficava a algumas braças do caminho. Para chegar à porta, Ricardo tomou uma vereda que rodeava uma quebrada de terreno. Estendida em varas via-se a enxugar alguma roupa de chita e algodão, muito bem lavada, mas aberta em crivo de tão gasta e rasgada que já estava. Sobre o capim do terreiro estava emborcada alguma pouca louça branca de beira azul, uma panela, uma frigideira e uma colher de pau. Esse terreiro era, não chovendo, a lavanderia, a copa, a cozinha e a sala da pobre gente. A choça tinha apenas um compartimento, onde se acomodavam Simão, a mulher, e três crianças. Esse homem sustentava sua família com o produto da pescaria e de uma pequena plantação de bananas; assim iam vivendo pobremente, mas sem grandes privações, quando de repente tudo começou a desandar. O peixe fugia da tarrafa do pobre Simão; as bananeiras começaram a mirrar; e até os ovos da galinha goravam ao menor ronco da trovoada. O pescador era homem ativo, incansável no trabalho, porém caráter débil, que desanimava com os reveses. As contínuas decepções o acabrunharam; caiu em uma prostração moral, muito mais perigosa do que a enfermidade do corpo. Convenceu-se de que o seu infortúnio era um castigo do céu por algum pecado que cometera; e resignou-se a sofrer sem lutar. - Não se resiste a Deus, mulher! dissera ele. A Gertrudes porém atribuía a desgraça ao quebranto que algum invejoso deitara à sua casa. Ela se lembrava que um dia passara por ali e pedira água um inglês muito magro, sem dúvida chupado pelas almas do outro mundo. Desde esse dia tudo andava às avessas, dizia a mulher; porque o sujeito saindo zangado com o pequeno que o chamara de gooden, deitara à casa uma figa. Entrando na choupana, viu Ricardo o Simão deitado em uma esteira sobre a cama de varas da altura de um palmo apenas. A magreza extrema, a atonia e lividez do semblante, estavam indicando uma moléstia grave. A mulher, sentada defronte em um toco de pau, cismava na sua vida enquanto descansava um momento da lida de cada dia. Era ela quem valia agora à desgraçada família com seu trabalho e sua diligência. - Então que é isto? disse o moço correndo os olhos do marido à mulher. - O Simão anda bem doente! - Que tem? - Nada, nada, meu senhor. Isto vai assim mesmo até acabar de uma vez. A mulher levantou os ombros: - Ninguém lhe tira aquilo da cabeça. - Mas o que sente? perguntou Ricardo ao doente. - Eu sei! - É assim uma fraqueza, que já nem se pode levantar, respondeu a mulher. Há uma semana que está aí, nessa cama, que nem ata, nem desata. - Não tem tomado remédio? - Que há de tomar, meu senhor? Ricardo achou-se embaraçado na resposta; nada absolutamente entendia de medicina, ciência aliás em que todos arranham seu tanto. Tirando da carteira uma nota de dois mil-réis, pô-la na mão da mulher do pescador. - É D. Joaquina que lhe manda! - Deus lhe há de pagar a ela as esmolas que nos tem feito, disse a Gertrudes. - E como vão agora? Têm sido mais felizes? - Qual, meu senhor! O quebranto não nos deixa. A pescaria... não se fala; depois que Simão caiu de cama, ainda eu fui deitar a rede com o pequeno; mas é à toa! As bananeiras enfezaram de uma vez. Se não fossem uns pintos... Que para bem dizer não foram os pintos, mas a cachorrinha. Se não fosse isso, a gente já estava morta de fome. - Então sucedeu-lhe alguma coisa boa? Sinal de que a fortuna está voltando. - Foi boa e foi má; porém no final de contas saiu pelo melhor. Imagine o senhor que a muito custo eu tirei uma ninhada de pintos, que estavam-se criando muito espertinhos. Sempre eram uns cobrinhos... Mas um dia apareceu aqui uma moça a cavalo, bem vestida, com uma velha gorda e mais um português que é um espirro de gato. Eles já tinham passado na véspera e estiveram falando com o pequeno. Então salta do colo da moça uma cachorrinha, e vai-se aos pintos e mata a todos, um por um. - Uma cachorrinha branca felpuda, que tem brincos de ouro? - Isso mesmo. O senhor conhece? É muito bonitinha; mas também nunca vi uma demoninha assim. - Então matou-lhe os pintos? - Um por um. E a moça ria que era um gosto, dando estalinhos nos dedos; mas depois que a cachorrinha acabou de matar os pintos, então a senhora ficou muito zangada e ralhou bastante com ela. Disse que tinha pena do que sucedera, e mandou entregar a Simão um dinheiro para pagar os pintos. Foi dinheiro que chegou para a gente viver até agora. - E depois? A moça? - Esteve atirando no capim umas moedinhas de prata; a cachorrinha de aposta com os pequenos corria para apanhar: aquele que achasse ganhava. Uma vez o Pedrinho quis tomar da cachorrinha; mas ela ia mordendo-o na mão. Se não fosse a moça que acudiu tão depressa com o chicotinho! Enquanto Ricardo conversava com a Gertrudes, e o Simão ouvia mergulhado no mesmo torpor, dois meninos e uma menina, acocorados a um canto, cochichavam entre si. A penúria tinha apagado naquelas crianças a vivacidade natural da infância. Havia no seu gesto e semblante um espasmo de tristeza, que afligia. Enfiando a vista pelo buraco da parede, as crianças se agitaram com certa curiosidade tímida, despertada por alguma coisa que tinham visto. O rumor de passos de animais indicava a chegada ou passagem de pessoas a cavalo. - Mamãe! disse uma das crianças. - A moça!... acrescentou a outra. Gertrudes reclinou-se, para estender a vista pela abertura da porta. Ricardo imitando seu movimento reconheceu Guida, acompanhada pela habitual comitiva. O moço ergueu-se contrariado. - Adeus. Voltarei depois. - Não quer ver a moça? Ela é bem bonita. - Já a conheço; e por isso não quero que me encontre aqui. Sairei pelo fundo. - Mas então o melhor é ficar aqui dentro porque ela não se apeia. Nisto a Gertrudes que se chegara à porta voltou ao moço: - Ora, está vendo! Que artes desta moça! A Guida tinha dirigido “Edgard” para o lugar onde estava a secar a mesquinha louça da pobre gente, e o elegante cavalo divertia-se em espedaçar desdenhosamente com a pata cada um dos pratos. Os meninos assistiam à cena admirados; Guida ria-se como uma criança; a inglesa despedia da garganta uma cascata de “ohs!” e o Sr. Daniel impassível estava mentalmente calculando o custo da louça quebrada. Ricardo viu esta cena pelas fendas da choupana. Quando não houve mais nada a quebrar, Guida, sofreando com força o cavalo, exclamou com um fingido assomo de mau humor: - Este cavalo é insuportável! Está sempre fazendo destas! Não posso mais aturá-lo! A mãozinha afilada virou o chicote com força. “Edgard” saindo se sua habitual impassibilidade, começou a pinotear, o que espalhou a mestra, o português e as crianças cada um para seu lado. O resultado dessa escaramuça foi atirar ao chão a vara da roupa, que o lindo isabel despeitado pisou acabando de esgarçar com os cascos aqueles andrajos. - Tome, Daniel, dê a esta gente: é para pagar o estrago que fez o cavalo. A Guida tirara de uma carteirinha de tartaruga uma nota de cinqüenta mil-réis. - Mas agora me lembro: talvez eles não tenham louça para comer hoje. Mande o moleque comprar! - Não é muito, senhora? - Sr. Daniel, eu não pedi a sua opinião. O Daniel abaixou a cabeça. - Onde está sua mãe? perguntou a moça a uma das crianças. - Estou aqui, senhora dona. - Já sabe o que fez este cavalo mal-educado? - Vi, sim senhora. Foi como da outra vez a cachorrinha com os pintos! - É verdade! Fiquei depois tão arrependida de a ter trazido! Mrs. Trowshy atalhou em francês, com um olhar de exprobração: - Allez! Vous l’avez fait exprès, par méchanceté! - Mais non! Disse a Guida sorrindo; e voltou-se para continuar a conversa com a mulher. - Sabe? A Sofia depois daquela travessura quase morreu! - De quê, gentes! - Quis morder o cavalo de um moço que passava, e levou um coice que a atirou da montanha abaixo. - Jesus! - Foi bem feito para não ser tão travessa. Ainda está de cama. - É como o meu companheiro. Vive ali espichado, que não se levanta mais. - Ah! Seu marido está doente? De quê? - Ninguém sabe; depois que o peixe lhe fugiu da rede, começou assim a desandar. - Onde está ele? Chame-o. - Qual! Não pode consigo. - Chame sempre. O Simão a custo arrastou-se até a porta da choupana. - O senhor amanhã há de levar peixe em nossa casa. Olhe lá. - O peixe conhece as minhas tarrafas! É à toa. - Verá. Eu sou muito feliz; obtenho tudo que desejo. Basta que eu lhe encomende o peixe, para o senhor tirar a rede cheia. - Mas é castigo, senhora. - Castigo de estar aí deitado, sem fazer nada, enquanto a pobre da mulher de amofina de trabalhar. - Mas ele está doente! acudiu Gertrudes. - Doente de manha! Guida lançou o cavalo contra o pescador, que, vendo-se ameaçado pelas ferraduras de “Edgard”, arrancou-se à prostração para recuar de um salto, com uma rapidez aliás desnecessária, porque a mão firme da moça obrigara o cavalo a girar sobre os pés. - Não vê como ele salta? disse Guida soltando uma risada. Que vergonha! Curtindo a preguiça enquanto os filhos e a mulher não têm o que comer! A moça chamou o menino mais velho: - Venha cá, menino. Amanhã tome a rede e vá pescar, já que seu pai de nada serve. O pescador deu no ar um safanão; apanhou a tarrafa ao canto e foi resmungando estendê-la na cerca ao lado da choupana; Daniel chegou-se a ele para tratar a respeito da louça quebrada; e a Guida despedindo-se partiu com a mestra. Ricardo do interior da choupana ouvira todas as palavras da moça, e por várias vezes enfiando os olhos entre as fendas da taipa, estudara a expressão daquela fisionomia encantadora, que lhe aparecia então como uma espécie de mito. Havia com efeito nas ações e nas palavras da moça alguma coisa de estranho e confuso, que escapava à compreensão do jovem advogado, aliás espírito profundo e observador. A volubilidade do pensamento, saltando dos gracejos infantis às coisas mais sérias; o estouvamento que se notava em certas ocasiões, para logo ceder à reflexão; e finalmente as liberalidades com que ela desculpava suas travessuras, davam a essa fisionomia moral um caráter vago e indeciso. Era um espírito leviano ou sensato? Era um bom ou mau coração? Ou seria acaso uma e outra coisa: a luta perigosa da alma na transição da infância à juventude? Nessa crise surgem as paixões, que sopitam às puras crenças e as ilusões da inocência. Se a alma tem para ampará-la a educação e os germes de sã , oral, sai triunfante da luta: a virtude coroa a inocência. Se porém o coração não é defendido nem pelo princípio, nem pelo exemplo, sucumbe; e a flor da mocidade quando brota da infância, vem já eivada. À noite, quando conversavam esperando o sono, Ricardo disse a seu amigo: - Sabes, Fábio! Aquela Guida assim mesmo não é tão má, como nós pensávamos. - Por quê?! - O advogado referiu a cena a que assistira pela manhã, e o que anteriormente lhe contara a Gertrudes. - O que pensa disso então? - Penso que no meio das travessuras desta moça há um escrúpulo de consciência, direi mesmo, um fundo de bondade. Estouvada, como é, não pode resistir à vontade de brincar, e faz coisas de que logo se arrepende; mas esse arrependimento pelo menos é generoso. Assim as faltas que ela comete são ocasiões para uma liberalidade, que talvez nunca lhe inspirasse espontaneamente o sentimento de caridade. Fábio, que não apreciava as demonstrações fisiológicas, tinha adormecido. VII No próximo domingo, Ricardo montado no “Galgo” descia da Pedra Bonita, para onde naquela manhã dirigia o seu passeio. A Pedra Bonita é uma rocha que se levanta sobre um cabeço de montanha como um gorro de granito. Daí, dessa atalaia das nuvens, goza-se uma vista soberba sobre o mar, e vê-se de perto o enorme cesto da Gávea, habitualmente cingido de vapores. Como todos os belos sítios da Tijuca, a Pedra Bonita é muito freqüentada pelos filhos da loura Álbion, incansáveis exploradores desse belo arrabalde do rio de Janeiro. Contam que um inglês aí se perdera, ficando sobre o gigantesco pedestal de rocha, elevado à condição de estátua, durante três dias, sem comer nem beber. Foi-lhe o penedo o contrário do outeiro da Ilha dos Amores: mais fácil de subir que de descer. Também contam que nessa pedra, ou em outra que demora na mesma altura, entre as nuvens, algumas senhoras tendo lá subido foram obrigadas, para descer, a tirar os balões. O vento engolfando-se nas armações, ameaçava arrebatá-las à terra, levando-as de uma vez ao céu, pelo caminho do mar. Os ingleses herdaram dos jesuítas um sétimo ou oitavo sentido, que possuíam em alto grau aqueles mestres da vida: é o sentido da higiene. Por onde passou a poderosa companhia, foi deixando conventos nas situações melhores, tanto pela salubridade como pela formosura. O inglês foi dotado do mesmo faro do belo e do saudável. Chegando ao Rio de Janeiro, volve os olhos para a cinta de montanhas que cerca a cidade, e considera isso um sobrado natural que a Providência construiu por cima do escritório para alcova de dormir. Pese embora ao nosso amor-próprio nacional, eles naturalizaram inglesa a nossa Tijuca; fizeram daquela serra onde campearam os tamoios, uma Escócia brasileira. O grito dos highlanders percorre as formosas encostas. Pelas grotas onde reboava primitivamente o brado selvagem da pocema, ouve-se agora repetido de vale em vale pela voz suave das amazonas o gracioso la-la-hi-ti. Se quereis ver o que há de mais belo e encantador naquele arrebalde, procurai o conhecimento de algum filho da Grã-Bretanha. Ele conhece a Tijuca de uma à outra extremidade, desde a gruta mais funda até o pico mais alto. Sabe não só dos vários passeios, como do dia e da hora em que se deve apreciar cada um deles. Afinal, quando tiverdes visto toda a Tijuca já descoberta e explorada, o inglês inventará uma pedra ainda não conhecida e uma excursão pitoresca como a de subir à Gávea por um caminho de lagarto. Ricardo vinha pensando que felizmente naquele dia escapara de encontrar-se com a Guida. Era este o quarto Domingo depois que a conhecera, e seria o primeiro em que não a visse. O advogado não daria a importância a esses encontros fortuitos se, além de serem eles contínuos, não se houvessem dado as circunstâncias especiais, que já conhecemos. Felicitava-se porém o moço muito cedo. Numa curva da estrada achou-se em face de numerosa cavalgata, que tomava-lhe a passagem. Guida, que vinha na frente em companhia de algumas senhoras, exclamara: - Ali está a flor, Clarinha. Não é tão linda? - Aonde? - Ali, um arbusto. Não vê? Disse ela indicando o lugar com a haste do chicotinho. - Vejo. Amarela... - Cor de ouro. Guida tinha parado, e todos os cavaleiros se gruparam de modo a ver o objeto que lhes excitava a curiosidade. Ricardo, havendo-se adiantado na esperança de passar, foi obrigado a demorar-se em frente do grupo. - Onde vai a senhora, D. Guida? Esta pergunta foi dirigida por um dos cavaleiros à moça, vendo-a impelir “Edgard” contra o barranco do caminho para aproximar-se do arbusto, que ficava cerca de duas braças ladeira abaixo. - Já que nenhum dos senhores se lembrou de oferecer-me uma daquelas flores, que eu acho tão bonitas, vou eu mesma buscá-la. - Não faça isto! - É uma imprudência! - Eu não consinto! Com efeito havia temeridade no intendo da moça. Quem já foi à Pedra Bonita sabe quanto é abrupta aquela montanha; o caminho, bastante íngreme, atravessa as costas rudes, cortadas em rápido talude e profundamente sarjadas pelos sulcos das torrentes que descem do cimo da serra quando chove. Seria sumamente perigosa a descida por semelhantes barrancos, até mesmo para um animal solto. Desprezando porém as advertências que lhe dirigiam suas amigas e companheiras, a moça fustigou o cavalo, que refugara. Castigado asperamente, “Edgard” descera alguns passos por um trilho, ou antes por um rego; mas, reconhecendo o perigo que havia em continuar aquela descida quase a pique, tomou rapidamente por outro rego que atravessava, e galgou o leito do caminho com grande esforço. - Vai, Guimarães! Disse um dos cavaleiros. - Por mim, não tinha dúvida. Mas não há cavalo capaz de fazer isto. Ricardo que assistia à cena, de parte, esperando ocasião de passar, não perdeu as palavras que pronunciara o Guimarães, e sentiu despertar-se-lhe o zelo pelos brios do “Galgo”. Aos 27 anos, o homem é ordinariamente temerário. A vida não representa ainda a seus olhos um cabedal, mas uma simples aspiração. O moço avançou. Por esse tempo continuavam os pedidos e admoestações a Guida para abandonar seu projeto; mas ela, indiferente ao que diziam em torno, a princípio rira do susto dos outros; mas agora, muito irritada contra “Edgard” por ter recuado, castigava o animal que girava corcoveando. A amazona, forcejando para trazê-lo à borda do barranco, afinal o conseguiu, mas de uma maneira bem desastrada. Com efeito, pungido ao mesmo tempo pelo freio e pelo chicote, perdera a sua calma habitual; irritou-se, e obrigado a fazer o que lhe repugnava, caminhava para o despenhadeiro, disposto, não a descer, mas a precipitar-se. Felizmente Ricardo chegara a tempo. Inclinando-se, pôde segurar “Egard” pelo freio, quando já levantava as mãos para pular. Obrigou-o então a voltar-se para o leito da estrada, e disse simplesmente à moça: • Não desça! Guida ficou imóvel acompanhando com os olhos o “Galgo”, que descia com admirável agilidade e firmeza o sinuoso barranco. Só havia para apoio do casco a estreita borda do sulco, por onde dificilmente andaria um homem a pé: e contudo o cavalo desceu e subiu sem vacilar um passo, com plena confiança na força e na elasticidade de seus músculos. Todas as pessoas que faziam parte da cavalgata acompanharam a descida e ascensão com surpresa e interesse. Os mais nervosos estremeciam com a idéia da desgraça, que podia acontecer ao desconhecido. Os outros sentiam uma comoção análoga à que lhes despertaria uma briga de galos, uma corrida de cavalos, ou talvez uma representação no circo. Ricardo tinha partido do arbusto duas ou três hastes com flor. Era a mesma flor cor de ouro, que ele costumava colher nos seus passeios a pé, e que já por duas vezes fora testemunha de seu encontro com a moça. Quando o cavalo, correspondendo dignamente ao nome, galgou com ligeireza o caminho, o advogado apresentou à moça o ramalhete que tinha colhido, e fazendo um cumprimento geral, apartou-se rapidamente da alegre cavalgata. Ao passar entre os cavaleiros, ouviu uma voz que o chamava pelo sobrenome: - Adeus, Nunes! Aposto que já não te lembras de mim? O advogado reconheceu um de seus colegas de ano, a quem não vira desde a formatura. - Ah! Guimarães? Trocaram um aperto de mão com algumas palavras banais, e separaram-se. Entretanto Guida, tendo prendido o raminho de flores no peito do roupão, continuara o passeio, acompanhada pelas outras senhoras e cavaleiros. Vendo aproximar-se o moço que pouco antes falara a Ricardo, dirigiu-lhe a palavra: - Conhece este moço, Sr. Guimarães? - É o Dr. Nunes. Foi meu colega de ano. - Ah! Formaram-se juntos? - E se não me engano, fizemos ato no mesmo dia. - É bacharel?... disse Guida, como se completasse um pensamento interior. Supunha talvez que Ricardo era um artista, algum pintor que percorria os sítios da Tijuca para copiar perspectivas, que mais tarde lhe servissem de assunto a algum quadro a óleo. O álbum de desenho, que o moço trazia habitualmente nos seus passeios a pé, e a aquarela em que ela se julgara reconhecer, deviam com efeito induzi-la àquele engano. - Foi um dos primeiros estudantes do nosso ano. Moço de grande talento, porém muito pobre; dizem até que foi o tio, o Dr. Costa, quem o ajudou a formar-se. - Que faz ele agora? Perguntou a moça com interesse. - Não sei. Creio que está aqui advogando; mas perde o seu tempo; não faz nada. - Por quê? Não tem talento? - Mas de que lhe serve se ninguém o conhece? Servia-lhe mais ficar com metade do talento que tem, e a outra metade de proteção. - Como proteção? - Ora: negociantes que lhe dêem boas causas e o recomendem a seus amigos. ou os floreios do leque. Quando se ouve discorrer uma dessas nugas encasacadas, parece com efeito que não é um homem que fala, mas um alfinete, um grampo, um colchete, qualquer dos objetos indispensáveis ao vestuário feminino, que de repente adquirisse o dom da palavra. O Bastos ficava mudo e pasmo diante da volubilidade do Guimarães; ele não compreendia que um homem tivesse essa propriedade de fazer-se realejo, e repetir durante horas e horas o que dissera na véspera ou ouvira dos outros. Quanto ao Nogueira, compreendia; mas, se alguma vez lembrou-se de competir com o Guimarães, arrependeu-se e corou de si mesmo, porque reconheceu o ridículo. Sua palavra era uma águia, pensava ele: a águia da inteligência, habituada a planar entre as nuvens. Como podia fazer dessa ave corpulenta uma abelha que borboleteasse entre as florinhas de um jardim? Para a asa altaneira só a flor gigante, a grande ninféia escarlate, a rainha dos lagos, que os ingleses chamavam “vitória”, em honra de sua soberana, mas eu chamarei “imperatriz”, em razão de ser uma majestade brasileira. Dir-me-ão que não sou botânico, e portanto não tenho autoridade para crismar essa espécie de loto, que os indígenas chamavam “milho d’água”. Não é decerto minha intenção invadir os domínios da ciência. Podem os botânicos inventar quanto nome grego e latino lhes aprouver para apelidarem as plantas; podem fazer a autópsia das inocentes criaturas para reduzi-las a sistema; mas as flores, como mimos da natureza, pertencem à literatura; são do domínio da poesia. Onde me ia levando o pensamento? Voltemos à Tijuca. O Bastos desforrava-se do Guimarães e do Nogueira, quando se tratava de alguma encomenda, de qualquer dos pequenos serviços que uma senhora, privada em nosso país da plena liberdade de sair só, tem necessidade de exigir e aceitar. O Rio de Janeiro é sem dúvida uma cidade de muito luxo, abundantemente sortida pela indústria estrangeira de todos os artigos de moda e fantasia; mas, como as especialidades não estão ainda bem distintas, em virtude da desigualdade e incerteza do consumo, muitas vezes é difícil saber onde encontrar-se aquilo que deseja. O corretor tinha um perfeito conhecimento dessa topografia especial do comércio a retalho. Quando se tratava de comprar uma fita de cor muito rara e perfeitamente igual à fazenda; de procurar um objeto que não se encontrava na rua do Ouvidor ou da Quitanda; de escolher um presente de gosto, novo, ainda não visto; de descobrir uns botões ou enfeites de forma original e esquisita, fantasiados pela imaginação de Guida, o Bastos triunfava. Realmente fazia coisas admiráveis: ninguém arranjava uma encomenda melhor, nem mais depressa e barato. Nogueira e Guimarães não ousavam disputar-lhe essa superioridade. O candidato, porque nem para si próprio sabia comprar; além de que sua posição não lhe permitia descer ao papel de comissário, nem mesmo de uma moça bonita. O Guimarães não tinha jeito, nem dinheiro: a mesada que recebia do pai, e os presentes que a mãe lhe fazia, não chegavam para operar os milagres de barateza, inventados pelo corretor. Batido pelo Guimarães nos divertimentos, e pelo Bastos nas encomendas, o Dr. Nogueira tinha também seus momentos de triunfo: não eram mui freqüentes, mas acreditava ele que deixavam profunda e longa impressão. Quando a reunião se tornava mais solene, o que sucedia em ocasião de alguma visita de consideração ou de algum jantar de cerimônia, o advogado aproveitava algum assunto favorável para soltar as asas à sua palavra fascinadora. Divagava com graça; e sobre o mais pequeno fato tinha a arte de bordar anedotas curiosas, ditos chistosos, reminiscências interessantes, que lhe fornecia uma sofrível lição histórica. Havia em tudo isto muita afetação, e mais liga que ouro; porém entusiasmava o seu auditório habitual. Nestas ocasiões, Bastos e Guimarães afundavam-se em sua mediocridade. Os elogios, que obtinha a cada instante o talento do Nogueira, os incomodavam como um enxame da vespas; mas nada os esmagava como a atenção com que Guida ouvia. O candidato, vendo a moça presa de seus lábios, com os olhos fitos nele, acreditava que essa alma gentil se abria inocentemente ao calor de sua palavra, como a flor ao raio da aurora; e que ele penetrava-lhe no seio, e a pouco e pouco tomava posse dela. Contudo não se desvanecia; acreditava que não era ainda o coração da menina quem o ouvia, mas apenas sua curiosidade. Estas pretensões à mão da filha do milionário eram conhecidas não só pela família e pessoas que freqüentavam a casa, como pelos estranhos. Nenhum dos três pretendentes recatava seus projetos; ao contrário, não perdiam ensejo de fazer ostentação deles, nem se embaraçavam com o reparo dos indiferentes, quando podiam colher uma vantagem sobre os rivais. A sociedade habitual do comendador assistia a esse jogo matrimonial com o interesse e curiosidade, com que os romanos apreciavam uma luta de gladiadores, e os ingleses acompanhavam um steeple-chase. Dividiam-se as opiniões, e também os votos e simpatias. Havia intermináveis questões a respeito da preferência de Guida por algum de seus três adoradores. Talvez excite reparo e tolerância do comendador Soares neste assunto, que tão de perto lhe devia interessar como pai. Esse modo de proceder não provinha de negligência, mas de uma resolução bem calculada. Entendia ele que o casamento de uma moça é questão vital tanto para os pais, como para ela; e portanto depende do consentimento de ambas as partes. Em outros termos, assim exprimira chistosamente o seu pensamento ao Nogueira, um dia em que este o sondou a respeito de suas intenções: - Nesta matéria de casamento, meu caro doutor, eu sou a coroa, a Guida é o parlamento. Ela tem o direito de votar o projeto; eu limito-me à sanção do veto. Assim o pretendente, quero dizer, o ministro, se quiser orçamento, deve usar de toda a sua eloqüência no parlamento para derrotar a oposição. O comendador era pois um pai constitucional representativo. Assistia com imparcialidade à luta dos partidos, reservando-se contudo o direito de ensaiar habilmente o governo pessoal, quando fosse indispensável ao bem público. Além das três pretensões confessadas, havia no círculo do Soares um grande número de esperanças em botão, que não ousavam desabrochar; mas também não se resolviam a murchar. Ah! a esperança é uma das plantas mais vivazes que eu conheço; quando uma vez brotou no coração, não há meio de extirpá-la: é como a urtiga. Embora o ferro a corte, rebenta de novo. Só morre quando lhe esmigalham as raízes. Assim, apesar de reconhecerem a impossibilidade de sua realização, essas esperanças pululavam em torno da moça, como um bando de besouros verdes nas pétalas de uma rosa. Quando à noite, depois de algumas horas passadas na casa de Soares, se recolhiam, ao deitar-se balbuciava cada uma em seu aposento, por este gosto mais ou menos: - Este bigodinho!... pensava um, alisando diante do espelho o fino buço. Têm-se visto coisas! - O caso é que ela gosta bem de cantar comigo! sonhava outro, recordando um dueto do Hernani . - No fim de contas a elegância é o fraco das moças, murmurava o terceiro, requebrando o talhe bem torneado. - Um homem que valsa como eu, chama atenção num baile. E o que é um baile senão a batalha campal, onde se conquista a beleza? exclamava um jovem oficial que fez a campanha do Paraguai nas tertúlias de Montevidéu. - Que ela me acha engraçado, não há dúvida; ora, o riso é o caminho do coração, dizia um repetidor de pilhérias, espécie de bobo de sala, esfregando as mãos. Estas e outras esperanças viviam de ar, como os camaleões, e como eles, mudavam constantemente de cor: ora tinham o verde risonho da folha que nasce, ora o amarelo bronzeado da folha mirrada pelo sol, que o vento leva de envolta com o pó. IX Guida animava com a sua graça e gentileza os diversos grupos que se tinham formado na sala. No sofá, onde se conversava, ia sentar-se um instante para ouvir e interromper, excitando a réplica e provocando o riso com suas travessuras. No piano aparecia de repente, tocava ou cantava alguma coisa às pressas, e aproximando-se da mesa, mostrava às pessoas, que folheavam álbuns, lindas vistas da Suíça, da Escócia, de Sintra e da Tijuca. O Guimarães, que estava naquele dia em veia de felicidade, acompanhava a moça nessas evoluções com um certo ar pretencioso que não escapava às outras pessoas. Decididamente parecia que a preferência se manifestava pelo mais jovem e mais elegante dos pretendentes; tal foi pelo menos a opinião das senhoras que nesta matéria falam de cadeira. O Dr. Nogueira, despeitado com o remoque da Guida, na ocasião do almoço e a propósito da flor, conservava-se arredio; estava ainda no jardim fumando o seu charuto. Entretanto, quem o observasse com atenção conhecia que através das folhas das árvores ele não perdia de vista as janelas da sala. Bastos estava indeciso; não se animava a entrar em combate, nem se resolvia a abandonar o campo. Recostado à sacada pela parte de fora, mas completamente voltado para dentro, observava a moça, sem contudo esforçar-se por atrair-lhe a atenção. Bem desejava obter aquela ventura; mas sua imaginação ingrata não lhe suscitava um meio de realizar seu desejo. Teria decorrido cerda de uma hora depois do almoço, quando Mrs. Trowshy mostrou a Guida a figura esguia do Daniel em pé na porta do interior. A moça aproximou-se do criado, que lhe disse: - Dei o recado; respondeu que há de escrever ao Sr. Comendador agradecendo. - Escrever? Perguntou Guida. - Sim, senhora. - Então não vem? - Pode ser. - Bem! Guida herdara do pai certa impetuosidade do desejo, que foi a origem da riqueza do capitalista, e devia exercer na vida da filha notável influência. Depois do último encontro com Ricardo, naquela manhã, teve desejo de conhecer o advogado; desejo que revelou com franqueza na ocasião do almoço, pedindo a Guimarães que o apresentasse. Não confiando porém na promessa do moço, ao levantar-se da mesa, tomou o braço do pai e preveniu-o de sua intenção de mandar Daniel convidar a Ricardo da parte dele, Soares. - Manda! respondeu o pai com indiferença, habituado a confiar todas essas minúcias domésticas a mulher, que as abandonava à filha. O Daniel partiu imediatamente; e o resultado de sua incumbência acabava ele de comunicá-lo à moça, com a sua imperturbável gravidade. - Is he coming? (Vem?), perguntou Mrs. Trowshy. Guida disse que não, com um ligeiro aceno de cabeça. - Why not? (Por que não?) Novo aceno exprimiu a ignorância da moça a respeito do motivo por que Ricardo não vinha. Contudo o tato de sua alma de mulher lhe indicava, embora vagamente, a natureza daquele motivo. - Ele é pobre, pensava ela, muito pobre; há de ser suscetível portanto. Talvez Ricardo se ofendesse com o convite, feito por intermédio de um criado; e a sua resposta de que havia de “escrever agradecendo”, manifestava bem seu pensamento: era mais do que um simples criado: era um homem da confiança de seu pai. O convite por este intermédio parecia-lhe tão delicado, como por carta, sem a solenidade que ela justamente não lhe queira dar. Se Guida desejava anteriormente a presença do moço em sua casa, agora mais que nunca. Duas razões atuavam em seu espírito. A contrariedade do obstáculo e a vontade de desvanecer uma ofensa involuntária. O que fora até então uma lembrança delicada apenas, mudava-se em capricho. Capricho? Quem não sabe o que isso é? A palavra o está dizendo. É a alma da mulher que se precipita sobre uma idéia, com a mesma temerária vivacidade e petulância da cabra selvagem a arremessar-se pelas arestas do despenhadeiro. Guida sentou-se ao piano e começou a preludiar. Não tardou que o Guimarães se aproximasse, atraído pelo ímã, e bordasse sobre o tema da música uma dessas falas que parecem um crochê de palavras de diversas cores. A moça tomou interesse na conversa, e prolongou-a por algum tempo; mas interrompeu-se de repente como se lhe ocorresse uma idéia: - Não pretende apresentar hoje seu amigo, Sr. Guimarães? - Como? Que amigo? - Já se esqueceu? Com efeito! - Ah! lembro-me. O Nunes. Mas hoje? - Então quando há de ser? - Qualquer outro dia. - Se não for hoje, que ele está na Tijuca, nunca mais o senhor achará uma ocasião para apresentá-lo. Amanhã estou certa que já nem se lembrará disso! - Sou esquecido, é verdade; mas da senhora, D. Guida, lembro-me até demais. - Pois lembre-se menos de mim, para se lembrar mais do que prometeu a meu pai. Vá buscar o amigo! - Agora? - Neste momento, disse Guida levantando-se. - Mas se não sei onde ele está! - Daniel há de saber. Vou dizer-lhe que sele o seu cavalo e o acompanhe. Chegando à porta, a moça deu as ordens necessárias. - Mas, D. Guida, confesso-lhe que poucas relações tenho com o Nunes; depois que nos formamos há seis anos, é a primeira vez que nos encontramos. Mesmo em São Paulo, nunca fomos amigos; apenas conhecidos. Chegou à corte, não o visitei. Não me julgo pois com direito a procurá-lo assim de repente... - Tudo isto o senhor devia ter pensado antes de se comprometer: agora tenha paciência. Seu pai costuma dizer que dívidas não se perdoam. - Ainda há uma razão. Eu sei que o Nunes pôs aqui um escritório de advocacia, porque vi o anúncio; mas se procede bem, se é homem fino, capaz de entrar na primeira sociedade, ignoro. Não posso portanto tomar sobre mim a responsabilidade de trazer à casa do comendador um moço que pode praticar algum ato... Guida sorriu. - Esse receio não tenha: eu o absolvo da responsabilidade. - Mas o comendador? - Fica por minha conta. - Não! não devo abusar. Guida olhou o moço com ar resoluto: - O senhor não vai? - A senhora fica zangada comigo? - Oh! não; muito agradecida ao contrário! Soltando essa frase cheia de ironia, a moça deixou o Guimarães atordoado; e voltou-se para sua mestra, que lia nesse momento um número da Illustrated London News. - Mrs. Trowshy, a senhora hoje há de jantar perto do Sr. Guimarães. Se ainda restava ainda alguma hesitação no espírito do filho do procurador, desvaneceu-se de súbito e completamente diante daquela terrível ameaça. Jantar perto da inglesa significava o mesmo que ficar-lhe hipotecado pelo resto da tarde e por toda a noite. Para evitar essa calamidade, Guimarães entendeu que não lhe restava outra saída senão obedecer ao capricho da menina partindo em busca do colega. - Já vou, D. Guida! - Ah! Esquecia-me dizer-lhe que seu colega tem um amigo, um companheiro; é preciso convidar a ambos. - Sim, senhora; cumprirei a sua ordem. Mas não me condene a jantar perto da mestra. - Se trouxer quem o substitua! disse Guida rindo. - Fica a meu cuidado! Guimarães montou a cavalo e partiu com o Daniel. Todo esse episódio não escapou, nem ao Bastos recostado à janela, nem ao Nogueira que passeava no jardim. O último não vira o diálogo trocado entre a Guida e o Guimarães; mas bastou a partida deste, acompanhado pelo criado da casa, para excitar-lhe apreensões. Animado pela ausência dos dois competidores, só em campo, o Bastos, mais desassombrado de espírito, descobriu afinal o meio de solicitar a atenção da filha do milionário: - D. Guida! disse ele com a voz um pouco trêmula. - Chamou-me? Perguntou-lhe a moça voltando-se. - Como há de querer então os brincos? - Que brincos, Sr. Bastos? - Pois não me pediu no almoço para mandar fazer-lhe uns brincos do feitio dessa flor? Replicou o corretor rubro como um tenor sem voz quando dá um dó de nariz. - É verdade. Desculpe-me; não me lembrava assim de repente. Depois lhe darei uma flor para servir de modelo. - Esta que a senhora tem? - Esta ou outra, é indiferente, observou a moça com intenção. Bastos perturbou-se, e nesse intervalo a atenção de Guida se desviou para outro lado, de modo que achou-se o corretor outra vez na mesma posição cruel em que estava anteriormente, recostado à janela e atado ao seu acanhamento, que era para ele um rochedo de Tântalo. No meio das paixões que se agitavam em torno dela, Guida conservava, devido a seu recato e altivez natural, uma grande serenidade. Quando alguma vez uma palavra mais significativa ou uma alusão mais direta a vinha provocar, ela a afastava com a sua ironia, ou com essa expressão de indiferença que perturbava o Bastos. Assim permanecia estranha à luta de que era objeto. Sua alma pura planava como um astro sobre as vagas que a ambição ou o amor sublevavam naqueles corações. As bonanças, como as tempestades, desse oceano, se eram produzidas por sua influência celeste, não a atingiam: ela brilhava sempre com o mesmo esplendor e a mesma limpidez. Em princípio, suas palavras, seus olhares, seus menores gestos, eram estudados por adoradores, como por indiferentes, e interpretados ao sabor de cada um. A moça incomodava-se muito com isso; retraía-se; tornava-se cada vez mais reservada, constrangendo sua jovialidade e franqueza. Não obstante o círculo em que vivia, obstinava-se em dar a quanto ela dizia ou fazia, uma significação oculta misteriosa. Uma noite sucedeu dançar duas quadrilhas com o mesmo par; tão indiferente lhe era o sujeito que não se lembrou de já ter dançado com ele no princípio da partida. O fato foi muito comentado, até por algumas amigas, que viram nele uma preferência manifesta. Guida aproveitou a ocasião para de uma vez pôr termo a essa insistência que a afligia. - Tenho muito tempo para ser moça. Agora ainda sou criança e quero sê-lo até dezoito anos. Não cuido nessas coisas de que os outros tanto se ocupam; só penso em divertir-me. Para mim é indiferente o par com quem danço, desde que for um homem delicado, de boa sociedade. E assim quanto ao mais. Estavam presentes Nogueira, Bastos, Guimarães, e muitos outros apaixonados ocultos. Momentos depois as palavras da moça, repetidas em vários grupos, eram conhecidas por todos. Guida dizia a verdade. Se era já moça na flor da beleza e na graça, tinha contudo a ingênua isenção da menina. Seu coração ainda estava em botão; seus pensamentos, embora alguma vez se embalassem nos sonhos azuis de um futuro risonho, eram em geral absorvidos pelo estudo, ou pelo prazer dos passeios e divertimentos inocentes. Não brincava mais com bonecas, é verdade; suas bonecas eram “Edgard” e “Sofia”, ou as flores de seu jardim. Mas também ninguém a via tomar ares melancólicos e atitudes pensativas, suspirar a cada instante, ou recitar poesias de amor, acentuando as frases apaixonadas do poeta. Em uma palavra, não era romântica. Tinha a suas amigas afeição sincera; mas não lhes emprestava a linguagem ardente, que afetam certas moças, e que faz supor, sob pretexto de amizade, a expansão de algum amor oculto, ou pelo menos de um amor ideal criado pela imaginação. Por isso dificilmente podiam os adoradores de Guida iludir-se a respeito de sua indiferença. As palavras da menina não tinham sentido ambíguo, nem misteriosa alusão; o olhar, o sorriso, o gesto eram transparentes e não conheciam o jogo cruel de semear esperanças e excitar desejos, para depois machucá-los, como as flores ou as fitas que se trouxe no cabelo. Assim o espírito sério de Nogueira não se deixava embair por seu amor-próprio; ele acreditava que Guida não dava a menor preferência a qualquer de seus adoradores; mas pensava que de repende podia seu coração desabrochar, e nesse momento se despertariam as impressões gravadas n’alma da menina. Toda sua tática se limitava a imprimir no espírito de Guida, como em uma cera branda, a admiração por seu talento e a confiança em seu futuro brilhante. Mas, apesar de hábil, o futuro deputado estava apaixonado pela moça, e tanto bastava para tirar-lhe a calma necessária de seu plano. Assim, na ocasião do almoço, ouvindo referir o incidente do serviço prestado por Nunes, tivera uma suspeita; e para esclarecê-la fizera a propósito da flor uma alusão que lhe valera a réplica irônica da moça. Arrependera-se e esperava a primeira ocasião para desvanecer a desagradável impressão. Eram estas cismas que ainda o preocupavam no jardim, enquanto fumava o segundo charuto: - Quem será esse moço?... dizia ele consigo, arrancando distraidamente as pétalas de uma rosa. Foi hoje a primeira vez? Guida passeia a cavalo todos os dias; não o terá encontrado anteriormente?... Algum romance começado... quem sabe! O Guimarães saiu com o criado. Aposto que foi em busca do sujeito para apresentá-lo hoje mesmo. Não há dúvida! Por que motivo ela daria tamanha atenção àquele boneco, se não fosse o desejo de obter dele um serviço? E o tolo prestou-se!... Nogueira meditou alguns instantes, e por fim murmurou: - A coisa desta vez é séria! Atirando fora aponta do charuto, entrou na sala. X Enquanto sucediam estes fatos, Ricardo, a causa involuntária deles, estava bem tranqüilo em casa de D. Joaquina. De volta do passeio, saboreou com o amigo o frugal almoço da boa senhora. Ainda estavam à mesa galhofando e rindo, quando ouviram o som do búzio, e pouco depois apareceu-lhes o Simão pescador, alegre, corado e bem disposto. Trazia várias selhas de cipó cheias de peixe; uma delas era destinada a D. Joaquina, a quem Gertrudes a mandava de presente. - Oh! já está bom? Perguntou-lhe Ricardo. - Ora, senhor; para bem dizer, não tinha moléstia; andava banzeiro, mas a moça me trouxe felicidade. Depois daquele dia em que ela ralhou comigo, o senhor bem viu, não há mãos a medir. É peixe tanto, que a rede quase não agüenta. - Está bom; estimo muito! Depois de algumas palavras trocadas com a velha, o pescador despediu-se: - Adeus, sinhá dona. Ainda vou levar este peixe à casa do comendador, o pai da moça. Bom freguês! Este fato deixou alguma impressão no espírito de Ricardo, que lembrou-se da cena a que assistira domingo passado. Haverá criaturas abençoadas, que tenham o dom de comunicar aos outros sua influência propícia? pensou o moço. Tendo a presença do pescador despertado a lembrança de Guida, Ricardo contou a Fábio o seu encontro pela manhã e o incidente da flor. - Bem, creio que sempre tomamos a praça de assalto! exclamou Fábio. - Não abandonas tua idéia! - Ora, se fosse comigo o encontro desta manhã, agora estaria eu almoçando em casa do Soares. - E de que te servia isto? - De quê?... É bom que o dinheiro vá-se acostumando conosco, e o meio é chegarmo-nos àqueles que o têm. - Receio ao contrário que nossa pobreza o importune, indo procurá-lo no meio do luxo. A discussão prolongou-se. Os dois amigos ainda estavam empenhados nela quando chegou o Daniel com a incumbência que sabemos. Ricardo, a princípio surpreso pelo convite que não esperava, não hesitou na resposta que o português transmitiu a Guida. Fábio tomando o amigo de parte instou com ele para aceitar a fineza do capitalista; mas nada obteve. - Decididamente, assim não iremos para adiante; é desenganar, disse Fábio muito contrariado. - Não tens razão; é justamente assim que podemos merecer consideração, não aceitando uma posição menos digna. Reflete bem: que figura ridícula não havíamos de fazer naquela sociedade? - A mesma que fazem os outros. Nem todos que freqüentam a casa do Soares, são ricos. Como todas as pessoas que vivem na alta sociedade e em posição superior, Guida estava acostumada à maledicência. Já não estranhava, quando via uma ação ou uma palavra acremente censurada pela mordacidade e pela inveja. Ela própria na sua qualidade de dote milionário, disputado por tantos adoradores, não era um altar onde se queimavam como incenso tantos despeitos e ciúmes? Entretando a palavra grave de Ricardo, a opinião severa desse desconhecido, pronunciada com a calma e firmeza da razão, traspassou a alma da moça de uma sensação desagradável. O olhar que ela deixou cair sobre os dois moços, foi de desdenhosa altivez; mas a eletricidade do lampejo bem indicava que o coração se confrangera, e o céu dessa alma pura se toldara. - Ora! dizia Guida interiormente ao chegar à casa, que me importa a opinião desse moço a meu respeito! Não tenho juízo?... Mas não ando aos beijos com as flores que encontro! Não pareço uma criança, apesar de ter dezesseis anos?... Se há homens que, mesmo de cabelos brancos, ainda são meninos... Não é de admirar... Durante o resto do dia não se lembrou do incidente; mas à tarde, a cena provocada por “Sofia” avivou as impressões da manhã, dando-lhes porém novo aspecto. O mancebo, que lhe aparecera de manhã como um pensador grave, mostrava-se agora elegante cavaleiro; por outro lado, ela, que se queixara interiormente da censura do desconhecido, não acabava de a justificar arriscando a vidad e um homem com um de seus caprichos, a posse da cachorrinha mal-educada? Quando Ricardo desapareceu na volta do caminho, uma voz murmurou num cantinho da consciência: - Ele tinha razão!... Depois estas preocupações se afogaram de novo no entretenimento da conversa e da música. Só ressurgiram um momento, antes de adormecer, nesse crepúsculo da alma entre a vigília e o sono, quando as impressões do dia flutuam vagamente diante do espírito como objetos que se imegem na sombra. A imagem de Ricardo beijando a flor perpassou no meio da visão. Nessa hora em que a travessura do gênio alegre já estava sopitada, o coração expandiu-se. Guida pensou que devia ser ardente e sincero aquele amor que exalava, no ermo, à face de Deus; talvez fosse um amor infeliz. Se eu pudesse saber a sua história! Adormeceu; e sonhou que encontrara a florzinha agreste cor de ouro, e que esta lhe contara a razão por que o moço a beijava. Mas de manhã não se lembrava mais da história; só lhe ficara a imagem fugitiva do sonho. As moças afagam muito os sonhos, quase tanto como costumam as mães aos primeiros filhos. A razão é porque os sonhos são os primeiros filhos da imaginação da menina que chega à adolescência. Os desejos vagos, as tímidas esperanças, os perfumes do coração, que não se animam a exalar-se durante o dia, rescendem à noite, no abandono do sono, como o aroma de certas flores que só abrem com o orvalho. Guida ocupou-se durante o dia com o seu sonho; e passando pelo mesmo lugar onde na véspera encontrara Ricardo, desejou ver a flor e conhecê-la. Viu com efeito; achou-a muito linda; desde esse dia ficaram amigas. Sempre que vinha desses lados quebrava alguns ramos, que levava consigo. A lembrança de Ricardo se apagara completamente do espírito de Guida, e do primeiro encontro não restava outro vestígio senão a afeição à linda florzinha agreste, quando o encontro na “Cascatinha” veio debuxar outra vez a reminiscência fugitiva. Guida, que já havia notado o garbo e a beleza do “Galgo”, pôde então contemplá-lo a seu gosto; e a estampa do lindo cavalo foi a recordação que lhe ficou desse domingo. Mais tarde o acaso lhe deparou a ocasião de ver a aquarela do álbum de Ricardo. A suspeita ou pressentimento de que o desenho representava seu vulto a cavalo, excitou-lhe vivamente a curiosidade. Ela daria sem hesitar o mais querido dos seus caprichos, “Edgard” ou “Sofia”, para ver aquela paisagem. A imagem de Ricardo, passada a primeira impressão, desmaiava a pouco e pouco. Os últimos encontros já não lhe destacavam os contornos: o vulto do desconhecido permanecia vago, indistinto, no fundo das reminiscências da moça. Fora um homem, um homem qualquer, que passara um momento no horizonte de sua existência, e só lhe aparecia agora como uma sombra. O que estava bem gravado na alma de Guida, o que ela afagava em algum momento de cisma, não era o moço, não; mas coisa muito diversa. Era a linda flor agreste, a quem amava; era o formoso cavalo, que desejava ardentemente possuir; era finalmente a aquarela do álbum, que ansiava por ver Ricardo não figurava nas recordações da menina, senão como um amigo da flor amada, como o dono do cavalo cobiçado, e o autor do desenho misterioso. Sem dúvida era agradável ao espírito de Guida que a pessoa ligada a ela por essas relações, fosse um moço distinto pela inteligência e educação. Nas poucas vezes que de relançe vira o advogado, a moça tinha reconhecido ou antes pressentido nele com o tato da mulher os dotes do espírito e do coração. Por isso consentia que a lembrança do desconhecido se associasse em sua memória aos objetos de seu desvelo. O encontro daquela manhã não mudara a situação do espírito de Guida. Ricardo dera novamente provas de delicadeza e galanteria; deixara de ser um desconhecido, para assumir a posição digna que lhe davam um grau científico e uma profissão nobre; mas seus títulos ao interesse especial da menina continuavam os mesmos. Se não fosse a flor, o cavalo e o desenho, passaria desapercebido aos olhos da filha do milionário, ante a qual de curvavam diariamente tantas distinções do talento, da posição e da riqueza. Guida estimou bastante que Ricardo estivesse nas condições de ser apresentado em sua casa, e que as circunstâncias facilitassem essa apresentação. Mas por quê? Seja embora desconsolador para o romance o motivo que influía no coração da menina, não podemos ocultá-lo. Desde que se estabelecessem relações com o moço, podia ela satisfazer sua curiosidade de ver a aquarela, preparava a aquisição do lindo animal, e teria um cavaleiro destro para dirigi-la no caso de ser o “Galgo” fogoso demais para montaria de senhora; finalmente conversaria sobre a flor querida, com alguém que também a amava. Mais tarde, quem sabe? Saberia a história daqueles beijos ardentes; mas isso era menos importante, já pertencia à imaginação e não ao coração. Realmente não há poesia que resista a essa fria autópsia da alma e dissecação do sentimento. Quando se devia esperar que os encontros românticos de uma moça rica e bonita com um mancebo pobre, mas de grande talento e nobre caráter, gerassem no coração virgem uma paixão poética e generosa; quando se podia contar com um idílio gracioso bafejado pelas auras suaves da Tijuca, perfumado pela fragrância das flores agrestes, embalado pelo canto das aves de envolta com o murmúrio das águas, e aljofrado pelos orvalhos daquele céu azul, o romancista não acha mais do que um capricho de criança, uma curiosidade infantil, um desejo de menina travessa. Felizmente Ricardo não amava Guida, nem sentia por ela a vaga inquietação, que anuncia crises de coração. Felizmente: porque do contrário teria de sofrer a angústia de uma cruel decepção. Depois de repassar estas reminiscências, o pensamento da menina voltou ao objeto que as tinha provocado, à escolha do traje para aquele dia. Precisava, queria agradar a Ricardo, e por isso estudava o meio, não de excitar-lhe a admiração, deslumbrando-o como brilho da beleza ou da opulência, mas sim de atraí-lo pela simpatia. O resultado se sua cogitação foi repelir o par de botinas que tinha na mão, um primor de arte: duas jóias de camurça trabalhadas pelo Guilherme. As persianas da alcova cerraram-se, derramando no aposento um doce crepúsculo. A beleza casta é violeta, que só abre na sombra. Ainda não eram quatro horas quando Guida apareceu na sala. Tinha um vestido branco de extrema simplicidade, fitas no cinto e no cabelo, botinas de duraque preto, e uma gargantilha de veludo da mesma cor, com um medalhão de jaspe. Era de jaspe também a pulseira, ofuscada pela alvura do braço mimoso, que surgia dos folhos da manga, como uma magnólia dentre frocos de neve. Só no andar se revelava a deusa, disfarçada com esse traje modesto e comum. Apenas assomou na porta da sala, todos os olhares se fitaram nela, e a alma de cada um de seus apaixonados desdobrou-se sobre o tapete, para ter o sumo gozo de ser pisada por aquele passo airoso, que se desenvolvia como a ascensão de um astro. As senhoras porém não puderam conter a surpresa. Onde a filha de um milionário, a moça mais elegante do Rio de Janeiro, conhecida pelo seu luxo e bom gosto, onde fora buscar aquele traje comum, que uma menina pobre aceitaria para chegar à tarde à janela, mas não traria por certo em um domingo, quando houvesse visitas em casa? Algumas não acreditariam uma hora antes que a filha do Soares possuísse em seu guarda-roupa os acessórios precisos para criar um adereço tão vulgar e rococó. Guida conseguira portanto realizar seu pensamento. Achando em suas recordações a imagem de Ricardo, como a de um moço pobre e de um caráter austero, compreendeu, com a admirável intuição da sensibilidade feminina, que o meio de atrair essa alma não era decerto a ostentação d sua formosura e opulência; ao contrário, por esse modo aumentaria a repugnância que levara o advogado a declinar o primeiro convite, e sem dúvida o afastaria de sua casa. Era preciso não magoar o pudor da pobreza, não irritar as suscetibilidades de um espírito severo, para conciliar sua benevolência e obter a sua estima. Bem quisera Guida eliminar em torno dela, da casa, das salas, do jantar, dos convidados, o aparato da riqueza a que estava habituada; mas, não sendo isso possível, desejou ao menos que sua pessoa fosse um protesto contra o luxo que a cercava, e uma delicada fineza ao hóspede esperado. As fitas que ela trazia no cinto e no cabelo eram da cor do traje com que andava ordinariamente o jovem advogado. Eu que descrevi esse traje no primeiro encontro, já não me lembrava dele; mas Guida o achara no fundo de suas reminiscências quando pouco antes estivera cismando. Não há como as mulheres para guardarem estas arestas sutis no coração. No seio, onde as bandas do corpinho se cruzavam, formando o níveo regaço, brilhavam algumas flores e botões de ouro, colhidos pelo advogado no passeio daquela manhã. Havia também nisso uma fineza a Ricardo, um agradecimento à delicadeza com que satisfizera o seu capricho de menina. Inocente criança! Não pensava no mal que podia resultar desses galanteios infantis. Dentro em pouco devia chegar à sua casa um mancebo, a quem ela encontrara por diversas vezes, e afinal abrira as portas de sua casa. Esse coração jovem, ardente, podia notar as identificações da alma da moça com a sua, expressas por uma combinação de cor ou pelo gosto de uma flor: aí estava a centelha da paixão, a faísca do incêndio que ela ia atear se querer. Guida descera antes de quatro horas; queria assistir à chegada de Ricardo, não só para evitar a solenidade de uma apresentação em plena sala, como porque sentia que sua presença era indispensável para desvanecer o acanhamento natural de quem pela primeira vez é introduzido em uma sociedade desconhecida. Davam quatro horas, quando Ricardo e Fábio com pontualidade escrupulosa entravam na casa de Soares. XII O comendador Soares jogava a manilha com seus parceiros habituais, três velhos amigos e camaradas. O primeiro, à direita, era o barão do Saí. Natural de Minas, onde começara a vida como tocador de tropa, em uma de suas viagens à corte arrumou-se de caixeiro no armazém de mantimentos do consignatário. Aos cinqüenta anos achou-se o João Barbalho possuidor de algumas centenas de contos; e convencido que não era próprio de um grande capitalista chamar-se pela mesma forma que um moço tropeiro, trocou por um título à-toa aquele nome que valia um brasão; fidalgo brasão, se já o houve, pois era o do trabalho e perseverança, e tinha por timbre e divisa a probidade. O parceiro da esquerda fazia com o precedente o maior contraste. Curto, esguio e encarquilhado, quanto o outro espaçoso e amplo, as mínguas do corpo sobravam-lhe nas mãos e nariz, ou como diziam os malignos, nas garras e no bico. Tudo o mais era miniatura. O visconde de Aljuba começara a sua vida mercantil na escola, onde exercia o mister de belchior. Livros, lápis, roupa, tudo ele comprava por bagatela aos meninos, em princípio como agente de um negociante de cacaréus da esquina, e depois por conta própria. Quando o deram por pronto na escrita e tabuada, arranjou ele uma espelunca, chamada casa de penhor, onde emprestava dinheiro especialmente aos pretos quitandeiros. A pouco e pouco elevou-se a clientela, até que pôde fechar em sua carteira as primeiras firmas da praça do Rio de Janeiro. Foi então que, de repente, o Camacho transformado em visconde, sem que ninguém pudesse atinar com o meio por que obtivera, logo de supetão, aquele título, quando o costume era começar por barão. Diziam uns que fora comprado, outros que lho tinham dado. - Nem dado, nem comprado! acudia o Soares em tom de pilhéria. O velhaco do Camacho empalmou o aljube, que lhe tinham dado de penhor, e fez-se visconde. Com todo o direito! Não resta dúvida. Os ouvintes riam; e o visconde, imperturbável, metia as mãos nos bolsos e repetia com certo sonsonete que lhe era próprio, um dito muito conhecido: - A alma do negócio é o segredo. Os amigos mais íntimos do Soares, sobretudo o barão do Saí, por vezes lhe tinham feito observações a respeito da privança a que ele admitia o visconde, cuja reputação dava para um excelente herói do romance galote, atualmente na moda. Mas o Soares, que lhe sabia as anedotas, galhofava. - É preciso lidar com essa gente, para aprender-lhe as manhas, se não corre-se o risco de ser-se enganado a cada instante. E quem as conhece melhor do que o bicho? Por isso o Soares, que era um gaiato de conta, a toda a hora, no jogo ou em negócio, chamava o visconde de –“meu mestre”; com o que este se lisonjeava, pois tinha para si que não era pequena glória dar lições de velhacaria a um espertalhão daquele trope. O último dos parceiros, que ficava fronteiro ao comendador, mostrava uma figura respeitável. Poucas fisionomias possuem aquela sisudez, tocada por uma expressão de mansuetude, exalação, ou eflúvio d’lama, a ameigar as asperezas de uma consciência rígida e austera. Nada mais enganador porém do que esse prospecto de homem importante, conhecido por Conselheiro Barros. Dentro, o que havia, era um desses entes ambíguos, destinados a viver em perpétua irresolução, almas bonachas e inertes, a quem a natureza de em vez de cabeça um cabo, em lugar de coração uma azelha, para serem empunhados por outrem, sem o que não se movem, nem se abalam. Em casa, o Barros era manejado pela mulher; se ela não tinha de véspera à noite apartado sobre um cabide a roupa necessária para o dia seguinte, ele não se vestia, e era capaz de ficar até meio-dia de chambre e chinelas, como já lhe acontecera. Nunca sabia quando tinha fome, e seria escusado perguntarem-lhe; era D. Guilhermina quem lhe regulava o apetite, o sono, e até a moléstia. Uma ocasião, ardendo ele em febre, a mulher o persuadiu de que estava perfeitamente bom; levou-o a um passeio em que apanharam sol e chuva. À noite, quando se recolheram, o homem nada sentia. Fora de casa, não saindo com ele, entregava-o a mulher a um lacaio de confiança, que o levava a visitas e negócios indicados no rol; ou o conduzia direito ao escritório, onde tomava conta dele o seu jovem sócio e “suplente no mercantil e doméstico”, segundo o maligno visconde da Aljuba. Filho do consignatário, onde se arrumava em rapaz João Barbalho, quando deu demão ao ofício de tocador de tropas, herdara o Barros bom patrimônio, o qual se lhe multiplicava na burra, sem que ele se apercebesse do como isso se fazia. Quando o sócio no fim do ano lhe atestava com o balanço os grandes lucros da casa, não se imagina o pasmo em que ficava por muitos dias. Chegado o tempo de entrar para a roda dos figurões, lembrança que bem se vê não partiu dele, mas da mulher, e entabulada a negociação, tratou-se da escolha do título. D. Guilhermina tinha paixão pelo de condessa, e achava que uma coroa de três castelos ia às maravilhas com as tranças opulentas de seus cabelos negros. Desta vez, porém, o marido quis ter voto e ser homem. Preferiu o título de conselheiro; e turrou de modo que não houve meios de arrancá-lo daí. Nem a mulher, nem o sócio, nem mesmo o Soares, que era um oráculo para ele, o demoveram do seu propósito. Essas almas de gelatina têm isso de particular, que em se inteiriçando, tornam-se guascas; não dobram mais. Foi o único momento, em que esse homem, habituado desde a sua vinda ao mundo a ser qualquer, foi eu. Toda a energia que devia ter despendido a pequenas doses durante quarenta anos, acumulou-a para empregá-la de um só jacto. Debalde tentaram persuadi-lo que podia ser conselheiro e conde ao mesmo tempo contando que pagasse em proporção. Na paga, não havia dúvida de sua parte; mas a prática do mundo lhe ensinara que o conde mata o conselheiro; e se ele caísse em afidalgar-se, ninguém o trataria jamais por “conselheiro Bastos”, que era a sua grande ambição. A maior concessão, a que chegou, foi consentir que a mulher se fizesse condessa, ela só, ficando ele conselheiro. Neste sentido, a instâncias de D. Guilhermina, deram-se os passos necessários; mas o governo, depois de ouvir os mestres da lei, decidiu que uma condessa só pode ser mulher de um conde. Resignou-se pois D. Guilhermina, com o maior pesar, ao seu nome de batismo; mas não perdeu de todo a esperança. Consta que apelou para a emancipação das mulheres, idéia de que era ardente sectária, e com razão, porque de seu casal foi ela sempre em contestação o cabeça. Já agora aproveitemos a ocasião para completar o quadro, com alguns traços biográficos do Soares. Era ele paulista; e dos quatro o mais moço, e mais rico ele só do que todos os outros juntos. Viera ao Rio de Janeiro pela primeira vez aos onze anos de idade, tocando uma porcada, que trazia ao mercado seu tio, velho roceiro de Lorena. Naquele tempo as porcadas percorriam as ruas, como ainda hoje os bandos de perus. Estando parados em uma rua, enquanto o velho comprava chita, um moleque à sorrelfa introduziu no ouvido de um leitão uma bicha. Ao estalo do foguete, espirrou o bacorinho, e ei-lo a correr espavorido. O rapazinho barafustou atrás, para atar-lhe a corrida. Mas corrida foi aquela que o meteu por um labirinto de ruas, onde a cabo de uma hora achou-se às tontas, sem novas do bacorinho nem do tio. Quanto mais procurava orientar-se, mais se atrapalhava; e todo o resto do dia levou a quebrar esquinas, até que exausto de fome e de cansaço, acocorou-se no vão de uma porta, a engolir as lágrimas que lhe queriam saltar aos bugalhos. Passava um menino de volta do colégio, acompanhado de seu pajem, que sentindo lhe puxarem pelo jaqué, voltou-se e viu o lapuzinho, de mãos postas a implorá-lo. - Que tem você? perguntou-lhe com pena. - Me perdi! O menino era Barros, filho do consignatário, onde já estava de caixeiro João Barbalho. Levou o caipirinha para a casa; e a família compadecida o agasalhou, mandando em busca do velho roceiro, que não foi possível encontrar apesar de todas as pesquisas. Resolvido a encarreirar o rapazito, o consignatário o arranjou de caixeiro em casa de um cambista; e aí começou ele a carreira que devia levá-lo ao apogeu da riqueza. De gênio franco e jovial, tinha Soares uma fonte perene de alegria, com que orvalhava as agruras da vida; mas através dos risos e pilhérias, seu espírito pronto e seguro trabalhava com a inflexibilidade da moda de aço que move as figuras de um realejo. Suas melhores operações, combinava-as no meio de um jantar ou de uma partida de jogo, e executava-as a galhofar. Brincava com seus milhões, como um menino com seus trebelhos. Sendo de todos o mais rico, era para notar-se que fosse o menos graduado. A comenda era uma história, e vale a pena saber-se. Quando a riqueza de Soares tornou-se sólida e incontestável, até para os invejosos, começaram a chamá-lo de comendador, e por mais que o milionário metesse a coisa a ridículo, defendendo-se contra a honraria, por tal modo vulgarizou-se o tratamento, que não houve meio de resistir-lhe. O público soberano entendeu que um homem tão recheado de ouro não podia existir sem que fosse ao menos comendador, como qualquer troca-tintas. - Ora pois! dizia o Soares, eis-me comendador por unânime aclamação dos povos. Mas há de ser da ordem do bacorinho! Essa referência à humildade de sua origem, ele a fazia freqüentemente; e percebia-se que tinha sua vaidade em ter subido de tão baixo àquela sumidade financeira. Custava-lhe a compreender o vexame do barão do Saí, quando aludiam ao começo de sua carreira, e por isso estava sempre a apoquentar o amigo chamando-o de barão do lote, com o que este se resmoía. Ficou pois o Soares comendador, por uso e cortesia, como tanta gente boa; e ninguém havia nesta corte imperial que não o acreditasse inscrito no grande livro das ordens; no que de todo não erravam, pois era ele terceiro de São Francisco de Paula. Mas este Santo não consta que fosse cavaleiro, e palmilhava como qualquer plebeu sem esporas, nem prosápias. Em cartas, sobretudo nas de empenho, em listas de acionistas de banco, chapas de diretores, e gazetilhas, lá vinha estampado o infalível “comendador”; que aderira ao nome do Soares, como uma dessas alcunhas implacáveis que perseguem certos indivíduos toda a vida, e afinal colam-se à geração, criam raízes e transmitem-se a toda a descendência. O público é um tirano, e bem gaiato às vezes. É bem possível, pois, que à imitação dos mais, já o trataste eu de comendador e continue a fazê-lo. XIII A partida estava empenhada. O Barros fizera a vaza; cabia-lhe a mão. - Quem joga? perguntou Soares. - É o conselheiro! respondeu o Barão. - Então podemos ir jantar. Temos tempo, e ainda chegaremos cedo. De fato o Barros, na forma do costume, esperava que o concílio dos sujeitos que o estavam aperuando, decidisse a grande questão da melhor carta a jogar. - O homem quer abarrotar-nos? observou o visconde. Está pensando. - Anda conselheiro, instou o Soares; se pensas tanto, ficas em branco para outra vez. O banqueiro queria bem, do fundo d’alma, ao filho de seu falecido benfeitor, e por ele faria todos os sacrifícios. Mas a veia sarcástica, que ao próprio dono não poupava, às vezes sem ele o querer, beliscava o inofensivo e pachorrento amigo. Nunca o Soares pudera tomar ao sério o título de conselheiro do Barros; e por isso inventara aquele termo mais apropriado, pela etimologia idêntica à de cabeleireiro. Impassível como sempre, o Barros nem se ressentiu, nem se apressou. Foi nessa ocasião que aproximou-se o Guimarães, acompanhado de Ricardo e Fábio, a quem fora receber na entrada: - Sr. Comendador, tenho o prazer de apresentar-lhe os meus amigos, os Srs. Dr. Nunes e Dr. Araújo! - Tenho muito prazer em conhecê-los! Esta casa está sempre ao seu dispor, quando queiram. Nada de cerimônias. Estamos em família! Estas palavras, Soares as proferiu soerguendo-se da cadeira, no tom de cortesia e amabilidade corriqueira, de que na sua qualidade de milionário era obrigado a fazer gasto freqüente com a turba de parasitas e gaudérios, que assaltam as casas ricas. Depois do usual aperto de mão, voltava à partida que fora um instante distraído, e já esquecera os novos hóspedes, em cujas feições nem reparara, quando sentiu no ombro o doce toque da mão de Guida: - Papai, é o Dr. Nunes que esta manhã encontramos no passeio. - Ah! exclamou o milionário erguendo-se e abandonando a mesa do jogo. Notara Guida de parte a desagradável impressão que deixara na fisionomia de Ricardo aquele acolhimento de carregação que lhe fizera o banqueiro; e por isso indiretamente advertira o pai de que tratava-se de um hóspede especial, e não de um intrometido. - Eu é que devia primeiro visitá-lo, doutor, para agradecer-lhe seus obséquios; mas os velhos merecem desculpa dessas faltas, não é assim? - Quando as há; mas neste caso, só vejo uma extrema fineza da sua parte, Sr. Comendador. - Perdão! Não tenho comenda de qualidade alguma; é uma intriga de certa gente. Não faça caso. Chame-se Soares, sem mais. - Queira desculpar, acudiu Ricardo. Eu não sabia, Sr. Soares. - Sem dúvida, nem vale a pena falar mais nisso. Quero apresentá-lo à minha mulher. Onde está tua mãe, Guida? - Na sala. Apresentando Ricardo a D. Paulina, o Soares deixou-o em companhia das senhoras. - Desceu muito depressa a Pedra Bonita? disse Guida ao advogado. Nós voltamos logo depois e já não o avistamos. - Estavam à minha espera. - E o seu cavalo é muito bom! - Está acostumado aos morros. É um bonito passeio o da Pedra Bonita; não o tinha feito ainda. - Que pena! Não chegarmos até acima! disse D. Clarinha. - Iremos outra vez! acudiu Guida. - Depois que o encontramos, o senhor não faz idéia, Guida ficou impaciente por voltar ! disse a sonsa da Clarinha. - O sol estava muito quente! observou Ricardo. - Não foi por isso; o passeio tinha perdido a graça para mim, respondeu a altiva menina com serena candidez. Fábio conversava com D. Paulina, que ria-se dos seus gracejos. Guida, que se afastara do grupo das senhoras para sentar-se perto da mãe, tomou parte na conversa; e à hora do jantar estavam, ela e Fábio, muito camaradas um do outro. Na ocasião de passarem à sala da comida, Fábio aproximando-se de Ricardo, disse-lhe rapidamente ao ouvido: - Então ainda achas que fiz mal? Ricardo encolheu os ombros. Fábio o tinha resolvido contra vontade a aceitar o convite do Soares. Para isso foi necessário afiançar-lhe que dera sua palavra de honra a Guimarães, e o fizera para esmagar a calúnia de que ele se tornara eco. - O cavalo do Sr. Lima aqui para o Sr. Dr. Fábio. - Sim, senhora. - Este castanho é o seu? perguntou Fábio. - Acha bonito? - Soberbo! Guida, que descia os degraus da escada, viu Ricardo apear-se, e foi-lhe ao encontro: - Como passou? Saudara ao moço com estas palavras e um aperto de mão; mas o olhar cheio de afagos foi para o “Galgo”. Havia nesse olhar a angélica voluptuosidade com que a moça cobiça um capricho, e a menina uma boneca. “Edgarg” estava pronto e esperava pela senhora. O estribo de Guida era feito de modo que lhe permitia montar sem auxílio de banco, apesar da altura do cavalo. Era um simples invenção de seu gênio travesso, a qual o melhor corrieiro da corte, o Lambet, se incumbira de pôr em prática. A volta do loro passando na mola atravessava o suadouro e prendia-se no outro lado a um pequeno gancho pregado na armação do selim e elegantemente disfarçado por uma aba de couro. Antes de montar o loro frouxo descia o estribo até o ponto de não constranger; elevando-se rapidamente sobre esse apoio, de um salto a moça galgava o selim; e recolhendo o loro, prendia-o mais curto, encaixando o ilhó no gancho. Assim tinha ela a liberdade de apear-se quando queria, durante o passeio, e montar sem auxílio estranho. Já estava com o pé no estribo, e a ampla saia do roupão mostrava a ponta da bota castanha a brincar sobre o disco de aço quando, tomada de súbito a desgosto, afastou-se de “Edgard”: - Aborrece-me este cavalo!... disse ela com enfado. Pedro!... O preto acudiu. - Não há outro animal para mim? - E o alazão? perguntou o preto embasbacado e apontando para o “isabel”. - Não quero este!... É muito feio. - Oh! que injustiça! disse Ricardo sorrindo. - O senhor acha bonito? - É um soberbo animal. - Pois vá nele. - E a senhora? - Eu irei em qualquer. - De modo algum. Se o “Galgo” não fosse tão esperto! - Por isso não! Mas o senhor não se há de privar por minha causa. Não; eu fico, vou passear a pé. Depois de alguns escrúpulos mais por parte de Guida, a instâncias de Ricardo, fez-se a troca; e partiu enfim a passeata. XV Em uma aberta do mato que borda o caminho, avistaram os passeantes ao longe a barra da Tijuca, ao longo da qual estendia-se o cordão de espuma das vagas, como uma franja de arminho, guarnecendo o manto de cetim do oceano, a embeber o azul do céu. Os passeantes saudaram com uma exclamação de prazer o quadro encantador daquela marinha, tocada pelos raios do sol nascente, que aveludava as cores mimosas da palheta americana. Com um pouco, dobraram o “Canto da saudade”, e os olhos desafogados do arvoredo que vestia a orla do caminho, se desdobraram ávidos pelos horizontes abertos, recreando-se com a paisagem de várias chácaras, derramadas no vale, ou alteadas pelas assomadas das fronteiras colinas. Entre estas notam-se principalmente duas, a do Moke, por ser das residências mais antigas que se estabeleceram nesse aprazível sítio; e a do Dr. Cochrane, arranjada à feição de um modesto parque inglês, o que lhe atraía outrora grande número de visitantes. Aqueles dos passeantes, que mais conheciam o prédio por tê-lo percorrido freqüentes vezes, apontavam de longe os vários pontos de recreio: - Olhe, lá está o lago! - E a ilha! - Ali, por aquele caminho vai sair-se na “Cascatinha”. - Lá naquele morro é a “Vista do mar”. - Como se chama a ilha? - Malacoff. E outras exclamações. Talvez nessa ocasião percorria o escritor destas páginas as bordas do lago sereno, em seu passeio matinal, bem longe de imaginar que teria de referir a comédia, cujas figuras principais passavam ao longe, sem que ele as percebesse. Entre todos os alegres companheiros, só Ricardo mostrava-se reservado, como já era naturalmente fora da intimidade, e ainda mais quando tinha preso o espírito de uma constante preocupação. Seu olhar inquieto se repartia entre Guida, que ia perto, mas pouco adiante, e Fábio, que o seguia a pequena distância, do lado oposto. Percebendo o desejo de Guida, o moço insistira em satisfazer-lhe inocente capricho, com o oferecimento do “Galgo” para aquele passeio. Causava-lhe tão íntimo prazer a circunstância de poder ele, um pobretão, prestar um obséquio no meio daquela sociedade cosida a ouro, que os primeiros receios sobre o animal se desvaneceram com a segurança da gentil amazona. A caminho, porém, conheceu Ricardo que embora Guida se mostrasse tão destra, como era elegante cavaleira, todavia o seu pulso delicado, que cerrava o canhão da luva de camurça amarela como a corola de um jacinto a desabrochar, teria o vigor necessário para domar a impetuosidade do generoso corcel? E o “Galgo” nessa manhã estava nem de propósito em um de seus momentos de fogo. A presença dos outros animais excitava-lhe os brios generosos; e o ar puro da manhã, que ele hauria às golfadas para lançar das narinas em fumo ardente, parecia repassá-lo da ligeireza e mobilidade do vento. Ricardo, sabedor das travessuras e floretas com que nessas ocasiões costumava o “Galgo” divertir-se, e lembrando-se de quanta firmeza de rédea e agilidade carecia para evitar que estes folguedos se transformassem em revoltas sérias e cóleras indomáveis, Ricardo estava em constante sobressalto e arrependido de haver consentido na troca. Acompanhando a garbosa inflexão da mão esquerda de Guida, a cada instante passava-lhe prudentes avisos sobre o manejo do animal, advertindo-a dos sestros e modo de os corrigir ou abrandar. Guida ouvia-o com indiferença, quase distraída, e apesar de sua afabilidade com o advogado, bem se conhecia que essa solicitude beliscava-lhe o amor-próprio; pois a moça tinha presunção de ser perfeita cavaleira. Não escapava a Ricardo essa contrariedade; mas, ainda com risco de desagradar, não poupava as observações, toda a vez que as julgava necessárias, embora por último já procurasse um disfarce para as dissimular. Se tirava os olhos do “Galgo” e da elegante amazona, era para relanceá-los ao lado oposto, onde Fábio brincava com D. Guilhermina. Já no domingo anterior notara a assiduidade do amigo junto à mulher do conselheiro; mas supôs que não passava de um galanteio sem conseqüência. O noivo de sua irmã, bem sabia o advogado, era dos tais de coração andejo e buliçoso, que não podem ficar quietos, como crianças que são; mas estão sempre a bisbilhotar quanta boneca lhes cai no goto. E o pior é impedi-los de traquinar, pois são capazes então de estrepolias diabólicas. Na manhã do passeio, contudo, entendia Ricardo que o galanteio já ia entrando demais pelo recato de uma senhora casada. Fábio não só tinha servido de escudeiro a D. Guilhermina para suspendê-la do banco, meter-lhe no estribo o pé elegante, e arranjar-lhe as dobras da saia de montaria, como continuara pelo caminho a exercer o mesmo agradável mister. Era ele quem levava o chapeuzinho de sol, o lenço, as flores, o leque e até o chicotinho de madrepérola da senhora, que lhe confiara de boa vontade todos esses objetos, não só pela comodidade de os trazer à mão em um cabide ambulante, como para dar ao moço o prazer de os guardar. Se precisava do lenço para enxugar os lábios úmidos do sorriso, como um lilás ressumando orvalhos; se tinha fome, como o colibri dos perfumes de seu ramo de violetas; se os dedos cativos na luva de pelica bronzeada sentiam ímpetos de se agitarem, como os passarinhos de voar, e queriam divertir-se a cortar os talos das folhas com a vergasta do chicotinho, Fábio prontamente lhe passava o objeto desejado, e nessa troca, repetida de instante a instante, as mãos se tocavam uma e muitas vezes no meio dos risos causados pelos desencontros. Quando o sol montando as assomadas fronteiras começou a castigar o caminho, Fábio apressou-se em abrir o chapelinho de sol para resguardar o rosto da formosa senhora, que de bom grado prestou-se a essa fineza oriental como uma sultana a receberia de seu escravo. Assim, tendo necessidade de conchegar o animal para melhor interceptar o sol, sentia Fábio roçar-lhe pelo braço a linda espádua, cujo tépido conchego o trespassava. Nestas ocasiões um ligeiro rubor repontava na face aveludada da moça; mas desfolhava-se logo em um riso desdenhoso, como uma rosa a que a chuva arranca as pétalas. Esse jogo mútuo de ademanes e brincos, Ricardo o considerava não mais simples amabilidade, porém namoro formal e já escandaloso para uma senhora casada. Nisso mostrava Ricardo o seu atraso nas regras da boa sociedade. Ainda estava pelo antigo rojão, quando se reparava em tais bagatelas, e fazia-se mau juízo da senhora que desse a qualquer moço, ainda mesmo um íntimo, tanta liberdade. Atualmente é a moda; a moça solteira ou casada, que não tiver essas maneiras distintas, certamente não passa por elegante. Outra circunstância muito incomodava a Ricardo: era a facilidade com que Fábio insinuava-se nessa sociedade, onde ambos se deviam considerar apenas como hóspedes de arribação, prontos a deixá-la ao cabo de algumas horas. Ao contrário, o amigo já começava a desfrutar os favores com tal desembaraço, que pouco faltava para entrar no rol dos íntimos, espécie de parasitas da pior casta, porque não só devoram os jantares e ceias, estragam os cavalos, carruagens e móveis, mas babujam a reputação, quando não a honra. Eis os motivos que traziam tão preocupado o jovem advogado durante o passeio. Outra pessoa porém perseguia a Fábio com olhares furibundos; era o Benício, que por vezes tentara aproximar-se, mas tivera de ceder à baia, rebelde ao freio, e mais teimosa que ele! Estaria o Benício também apaixonado por D. Guilhermina? E por que não? Apesar as compridas pernas, do longo talhe em abóbada, e da cabeça a três quinas, pode um homem ter o coração sensível. XVI Próximo à crista da montanha, onde o caminho talhando-lhe o cimo, começa a descambar para a vertente, deu-se um pequeno acidente que só notaram três pessoas, além daquelas entre quem se passou. - Pode fechar! disse D. Guilhermina para Fábio indicando-lhe com o olhar o chapéu de sol. O senhor deve estar cansado! - Por tão pouco? Não me prive deste prazer. - Deveras? Acha que é um prazer trazer um chapéu de sol aberto? perguntou a moça com remoque. - Para abrigá-la do sol?... Decerto que o é! - Neste caso deixe-me também experimentar. Faça-me o favor de passar o meu! Fábio quis desobedecer e retorquiu; mas, insistindo a senhora, deu-lhe o chapelinho de cetim verde e contentou-se com apertar-lhe a ponta dos dedos, que não fugiram a tempo de escaparem à cilada. D. Guilhermina tinha casualmente, por duas ou três vezes, encontrado o olhar perscrutador de Ricardo; e sentindo-se alvo da atenção do moço, também teve de seu lado curiosidade de observá-lo. O chapéu de sol de Fábio interceptava-lhe o olhar; afastou-o pois, e adiantou o cavalo de modo a não perder os movimentos do moço, sem deixar contudo que ele o percebesse. D. Guilhermina era bonita, e tinha consciência de sua formosura, que estava então no esplendor. Teria vinte e oito anos; de desenvolvimento tardio, como uma dália a que faltasse por algum tempo o sol, essa idade que para outras começa a desfolha, para ela, depois de dez anos de casamento, era a mais brilhante floração. A tez aveludada de seu colo; o fresco e delicioso encarnado das faces; olhos rasgados como duas favas de baunilha e afogados em cristal de leite; a oca, talvez grande, mas primor de graça, cheia de seduções irresistíveis; e as formas encantadoras do talhe modelado com a maior correção e harmonia; tudo nela estava respirando o viço dessa plenitude da mocidade que é o apogeu da mulher. Como era natural, essa beleza, tão reputada nos salões, supôs-se o objeto de uma admiração ardente, e talvez mesmo já envolta em sentimento mais terno. Qualquer dúvida desapareceu no espírito da moça, apenas notou a expressão de desgosto que se derramava na fisionomia franca de Ricardo, ao surpreender um requebro ou ademane namorado de Fábio. Desde então procurou o olhar de Ricardo e encontrando-o tentava retê-lo com um lânguido volver do seu. Uma vez demorando-se muito tempo em aspirar o perfume das violetas com os olhos fitos no mancebo, deixou depois cair a mão que segurava o ramo, e este escorregou ao chão. O chapelinho de sol, faceiramente inclinado, ocultou esta mímica às acesas vistas de Fábio; e um relancear rápido e vivo indicou a Ricardo a queda do ramo de violetas. O primeiro assomo do advogado foi ditado pela cortesia; as rédeas colhidas de pronto sofrearam a marcha do animal. Mas logo após retraindo, mostrou-se de todo alheio ao incidente; nem suspeitou sombra de provocação, onde só via mero acaso. D. Guilhermina porém parara de repente procurando em si um objeto que lhe faltasse. - O que é? perguntou Fábio solícito. Perdeu alguma coisa? A resposta demorou-se um instante à espera que Ricardo se voltasse; mas este afastava-se. - Meu ramo! - Caiu sem dúvida; vou procurá-lo. Fábio retrocedeu à cata do ramo; mas já o Benício o tinha apanhado, e para não machucá-lo, o trazia a pé, puxando a mula. - Faz favor! Disse Fábio. - Nada, meu senhor; quero entregá-lo à dona. D. Guilhermina que esperava parada, o recebeu, mui contrariada. - Pode seguir, Sr. Benício, disse Fábio que desejava aproveitar a ocasião de ficar só com a moça. - Não se incomode! Talvez D. Guilhermina tenha outra vez necessidade de meus serviços. A mulher do conselheiro percebendo a impaciência de Fábio e receando que ele tivesse algum desaguisado com o pachorrento Sr. Benício, pôs o cavalo a meio galope. - Viva!! disse o moço contentíssimo por livrar-se do sujeito. Mas o homem, soltando o chouto à mula, aí estava rente com eles e os acompanhou até apanharem os outros. A Guida não escapara a provocação de D. Guilhermina, e vendo Ricardo render-se no primeiro assomo, sorriu. Era a ocasião de subtrair-se à vigilância contínua que o dono do “Galgo” exercia sobre ela. - Bravo, D. Guidinah!... - Nem a rainha do ar. Estas exclamações do Bastos e Guimarães festejavam as escaramuças com que a moça se divertia à beira do profundo despenhadeiro. Voltando-se, viu Ricardo as curvetas do “Galgo”, e adiantou-se: - Confesso-lhe que estou arrependido da troca! Pensei que a senhora não fosse tão... - Tão estabanada!... Pode dizer!... acudiu a moça. - Queria dizer imprudente, apenas. - Muito obrigada! retorquiu com um sorriso de gentil motejo. Tenho eu culpa das estrepolias de seu cavalo? - Mas eu preveni-a do quanto ele é árdego! Não suporta certas birrazinhas que a senhora costuma fazer a “Edgard”! É um caipira, como eu. - Está o senhor também querendo fazer o “Galgo” pior o que é! Não o acho tão feroz como o pinta o dono! - Em todo o caso eu lhe peço, não o irrite!... disse Ricardo alisando a anca do animal para acalmá-lo. - Eu estou bem quietinha, vê! disse a moça com as mãos cruzadas sobre o gancho do selim. Ainda quer mais? acrescentou atirando a Ricardo um sorriso cheio de malícia. - Por que não chega mais para o meio? Vai muito na beira do barranco! - Ah! Também faz mal? Pode cair a ribanceira? Não é? Mas lá; se a montanha vier abaixo? Ricardo não respondeu. - Que diz? - Zombe a seu gosto!... Divirta-se à minha custa, contanto que deixe o “Galgo” sossegado, tornou Ricardo gracejando. - Está bom, não quero que tenha queixa de mim. E inclinando as rédeas, fez o “Galgo”, já apaziguado, tomar o meio da estrada. - Está satisfeito? - Se continuar assim... - O senhor está prevenido contra mim. Quem sabe se não me fizeram alguma intriga? Pois engana-se, tenho um gênio de água morna. - Não supunha, acudiu Ricardo; mas depois do que tenho visto esta manhã, posso jurar! - Não é verdade?... Estamos quase no fim do passeio e ainda não dei um galope! - O galope não é das piores coisas. - Ah!... Então o galope não faz mal? - Conforme; num cavalo manso, o galope é agradável e não tem o menor risco; mas em um animal arisco, como o “Galgo”, não convém a uma senhora. - É perigoso? perguntou Guida com um modo cândido. - Pode tornar-se. - Deveras! - Se não acredita... - Ao contrário, acudiu Guida. - Uma tarde destas e neste mesmo caminho esteve a atirar-se com Fábio pela montanha abaixo. - E como escapou? - Esbarrando contra os bois de um carro que por felicidade estava atravessado na estrada. - Ahh!... O tal senhor “Galgo” faz dessas estrepolias!... repetia Guida afagando o pescoço do animal com a mãozinha enluvada. De repente um sibilo cortou os ares; e o “Galgo” se arremessou no espaço como m turbilhão, no meio do qual mal se distinguia o torvelim da saia de Guida, agitada pela corrida impetuosa. Fora o chicotinho que, vibrado pela mão nervosa, fustigara cruelmente o brioso corcel ; ao passo que a menina inclinando a cabeça desdenhosamente sobre a espádua, soltara estas palavras no momento de abandonar-se ao ímpeto do animal. - Quero ver!... Surpreso, Ricardo olhou um instante o vulto da moça que voava, soltando aos ecos da montanha o seu mote típico: - Hep!... hep!... hep!... Cobrando-se logo do enleio causado pelo imprevisto arrojo, Ricardo largou rédeas a “Edgard”, que partiu à desfilada no encalço do “Galgo”, e sem dúvida o alcançaria, pois, contido pelo freio, já o curitibano moderava o primeiro ímpeto. Mas Guida ouviu o estrupido; e voltando-se, conheceu que Ricardo a seguia e talvez a alcançasse. O chicotinho sibilou nos ares, semelhante a uma víbora que se enrosca; e o “Galgo”, alongando-se como uma flecha, devorou o espaço. No meio daquele turbilhão, pareceu ao moço que o talhe esbelto da menina oscilava na sela, e buscou afirmar a vista, quando um grito de terror, que se escapara fremente dos lábios de Guida, cortou os ares. Fincar esporas no isabel e dispará-lo com um tiro de canhão, foi para Ricardo um movimento maquinal, que ele executou antes de pensar. Estendia-se por diante o lanço do caminho, que fazendo, volta na extremidade corta o cabeço da montanha, e ocorre alguma distância entre dois taludes profundos para surdir já na outra encosta da serra, no ponto chamado “Mesa”. Havia nesse lugar uma longa mesa, feita de paus toscos e ensombrada por espesso bambuzal. Talvez já o tempo a tenha consumido; há três anos ainda a vi, reparada dos primeiros estragos e já outra vez carcomida. Quantos piqueniques não tem visto o memoroso bosque dos bambus? Que segredos não guardam em hieróglifos e datas os verdes troncos das taquaras, que a foice do trabalhador da estrada não cortou ainda para empalhar o rancho? Que banquetes dados aquela rude estiva de varas, sem toalha nem serviços de prata, mas tão opíparos de contentamento e prazer? Passando à direita do bambuzal, alonga-se o caminho pelo lançante da montanha, e ao cabo de algumas braças derrama-se por uma pequena esplanada, que serve como de rampa ao magnífico cenário. Aí, à esquerda, no socalco do caminho, está a palhoça onde pousavam os colonos, que abriram o caminho do Jardim e deram nome ao sítio. Conhecido a princípio o lugar pela simples indicação de “Rancho dos chins”, a imaginação popular enlevada pela brilhante perspectiva, de lembrança fantasiava alguma das pinturas diáfanas e aveludadas que vira debuxadas em papel de arroz; e daí o nome de “Vista chiensa”. XVII Devorou Ricardo em completa disparada o lanço do caminho, até a garganta onde sumira o “Galgo” levando a moça, talvez já de rasto. Ao entrar no estreito passo, ainda pôde ver de relance o vulto de Guida que passava como uma sobra, por defronte do bambuzal. Ferrando de novo as esporas em “Edgard” admirado daquela aspereza, o mancebo, sem perder a calma de que tanto precisava, fez um último esforço para alcançar o “Galgo”, cortar-lhe a dianteira, e evitar a desgraça iminente. Mas nenhuma esperança tinha de o conseguir; bem conhecia seu cavalo, e avaliando do isabel pela amostra, via que não era ele para bater o corredor paulista, em condições iguais, quanto mais com tal partido. O espaço desaparecia; e Ricardo via aproximar-se com espantosa rapidez a rampa da montanha, donde o “Galgo” ia precipitar-se arrastando a infeliz moça. Já não restava mais que dois trancos do galope, quando arrebatado pela mão destra da amazona, que o suspendeu no ar, o “Galgo”, rodando sobre os pés, com as mãos no ar e quase vertical, retrocedeu a disparada em que ia, e sofreado veio esbarrar-se contra “Edgard”, que seguia a vinte braços de distância. Com tamanha rapidez fora executada esta evolução, que antes de Ricardo voltar a si da surpresa, assomou-lhe em frente o rosto mimoso de Guida, animada pelo ardor da corrida, como pela galhardia da sua proeza eqüestre. - Não sou tão má cavaleira, como pensava! disse-lhe a moça desfolhando um riso fresco e argentino. - Não acho a menor graça nisto! retorquiu o moço com um modo sério e displicente. - Assustou-se?... Por uma pessoa indiferente!... Se fosse uma irmã ou alguém que lhe interessasse! - Não é nada agradável sair-se a passeio, e ter-se de assistir a uma catástrofe. Se me houvesse convidado para uma representação eqüestre à borda de um precipício, eu por certo não me acharia aqui; e sobretudo não concorreria de alguma forma para estas brilhaturas. - É verdade! disse Guida gravemente, curvando a fronte pensativa. Com essa inflexão e o formoso semblante tocado de uma doce tinta de melancolia, continuou o caminho em silêncio, e como esquecida do companheiro. A posição tornou-se de novo incômoda para Ricardo, que em vão excogitava um meio polido de romper esse encontro comprometedor para a moça. Felizmente que veio tirá-lo daquele embaraço o gênio obsequiado de uma pessoa, a quem não prestamos ainda a devida consideração. Surdindo de um desabe do talude onde se metera com o machinho para abrigar-se da soalheira, o Sr. Benício saiu ao encontro de Guida, com um respeitável chapéu de sol, empunhado à guisa de pendão de irmandade. - Aqui está o guarda-sol, excelentíssima! - Obrigada, Sr. Benício, respondeu Guida arrancada a suas reflexões com um ligeiro sobressalto. - Mas o sol está tão quente! - Basta-me o véu, respondeu a moça desdobrando o filó verde do chapéu. - Faça favor, D. Guida? - Não posso com o peso da sua barraca, Sr. Benício, disse Guida com um remoque. - Por isso não, eu carrego, respondeu imperturbável o homem. - Dispenso! acudiu a moça. - Com licença! tornou o Benício metendo os calcanhares no machinho a fim de guardar a moça do sol. - Ora deixe-me! - A excelentíssima pode ficar doente. - Não tenha susto! - Então neste tempo em que há tanta febre por aí!... Guida começou a solfejar o buona sera do Barbeiro de Sevilha. - A Srª. D. Paulina não há de gostar, quando souber o sol que a excelentíssima apanhou. A senhora já está tão afogueada! - Decerto! replicou a moça. - É o calor!... - É o seu guarda-sol que me está irritando os nervos. - A excelentíssima há de ver, se amanhã não está com sardas na pele. E será uma pena! Colhendo as rédeas “Edgard”, com gesto de impaciência, fez Guida uma evolução rápida, e fustigando a valer a anca do machinho em que montava o Sr. Benício, despachou-o a trote largo pela estrada fora. Sacudido pelo chouto cadente, o homem agarrado ao arção da sela voltou-se ainda para reiterar o oferecimento, que era escandido em uma espécie de soluço causado pelo vascolejo. - A excel (uf)... lentíssima(uf)... faz mal (uf)... Aposto que (uf)... chegan’a (uf)... cas’a’sta com... (uf) dor de cab’ça... E mais diria, se não desaparecesse na sinuosidade da estrada. Era o Sr. Benício a encarnação de um tipo muito usual de nossa sociedade, o do “homem serviçal”, uma das encarnações do aresko de Teofrasto. A maior satisfação desse homem era obsequiar; não pensava em outra coisa, não tinha ocupação. Tanta arte e perícia punha nesse mister, que o elevara à importância de uma profissão, embora ninguém a tenha exercido com o mesmo zelo e amor. É certo que tinha um empreguito no tesouro, se não era nalguma secretaria de estado. Mas esse não passava de um pretexto para receber os magros vencimentos, e de um meio de exercer com maior proveito a sua vocação irresistível de obsequiar. Aparecia às vezes na repartição para tratar do negocinho do seu amigo o conselheiro A. ou de seu amigo barão B.; e aproveitava o ensejo para assinar o ponto e pôr-se em dia com os atrasados. Essa regalia, o chefe não a permitiria a qualquer; e se o fizesse, havia de coçar-se com a mofina que sem falta os empregados teriam o cuidado de atiçar-lhe nos jornais. Mas a um homem tão serviçal como o Sr. Benício, quem podia recusar essas liberdades; e quem teria ânimo de censurá-las? Achava-se o amanuense em toda a parte, mas sobretudo onde havia pessoas a obsequiar; só em dois lugares era ele incerto, e até mesmo vasqueiro; na repartição e na casa de morada. Afora estas exceções, ficava-se tentado a crer que o homem tinha o dom da ubiqüidade. Trazia habitualmente uma grande sobrecasaca de pano azul-ferrete, que era menos uma peça de vestuário, do que um agregado de bolsos. Tinha quatro: dois nas abas e dois no peito, mas de tais dimensões que se tocavam, acolchoando todo o forro, com o chumaço de papéis, lenços, carteiras, fósforos e mil outros objetos de que andava sempre munido, para ter o sumo de prazer de obsequiar. Usava chapéu de copa baixa e abas largas. Esse traste característico tinha pregado por dentro uma folhinha-cartão, um horário da estrada de ferro, o mapa da partida dos correios, e os sinais de incêndio; tudo isto por baixo do forro volante de tafetá. Ninguém o via, de dia ou à noite, a pé ou de carro, sem o enorme chapéu de sol verde-gaio a que dera Guida o próprio nome de barraca. A esse traste precioso, devia ele o inefável prazer de preservar os aldores de canícula, ou da chuva repentina, o seu velho amigo senador C. quando atravessava o campo, e o outro seu velho amigo o desembargador D. ao sair da relação. Se ao sair ameaçava chuva, ou os calos lha tinham anunciado à noite, munia-se por precaução de um par de galochas de borracha, que sumia na profundeza de um dos quatro bolsos insondáveis. Achava-se sempre modos de aparecer a propósito para resguardar da lama os pés de alguns personagens desprecatados. A essa previsão deveu ele a preciosa amizade do monsenhor E. Vendo-o um dia entrar no bonde com sapato fino e meia carmesim, acompanhou-o até Botafogo, e aí teve a satisfação de encaixar-lhe o par de galochas, com que a excelência patinhou no mingau do macadame, sem mácula das insígnias prelatícias. Outros objetos constituíam o indispensável do Sr. Benício e sem os quais não saía de casa: eram os jornais do dia, uma provisão de lenços brancos e de rapé, um papel de palitos, caixas de fósforos, e um estojo de viagem no qual havia tesoura, canivete, alfinetes, preparos de costura, e até dois frasquinhos, um com arnica e outro com éter. Perdemos de vista nestes últimos tempos ao digno St. Benício; mas apostamos que ele introduziu no seu necessário mais um frasquinho para a “hesperidina”. Assim armado de ponto em branco, lançava-se o nosso homem na labutação do costume; por onde ele passava, não perdia ocasião de obsequiar: era médico, modista, agente, recadista, alfaiate, folhinha, gazeta, almanaque, guarda-roupa, estojo, paliteiro e tudo enfim que fosse preciso, contanto que desse largas a seu gênio serviçal. Entre duas e três horas, Benício era infalível na rua do Ouvidor. Se a família de seu íntimo amigo O general F. queria avisar a este do lugar onde o estava esperando; se o seu ilustre amigo o conde G. ao chegar ao largo de São Francisco de Paula não encontrava o carro e precisava que o fossem chamar; se a sua respeitabilíssima amiga a baronesa H., que andava às voltas com encomendas, procurava alguma casa de pechincha; se finalmente o seu bom amigo o camarista I., ou o almirante K., ou o marquês L. queriam perder-se em certas ruas abstrusas e enganar-se de porta: aí estava rente o incomparável Benício; era ele o homem da situação. Em um ápice dava ele com o general em certa barraca de campanha, que este gostava de contemplar, lá para as bandas do Mercado, efeitos da nostalgia guerreira; farejava o lacaio do conde na barraca do largo da Sé onde o brejeiro jogava o pacau por conta do senhor; conduzia a matrona a uma casa misteriosa, onde ia todo o mundo grande, mas ninguém confessava; e por último tais voltas dava com o camarista, o almirante e o marquês, que eles perdiam-se por detrás de umas rótulas... O Benício tinha não só um, como diversos abecedários de amigos; mas entre esses escolhia uma dúzia, que eram os do peito. Havia neste último número suas disponibilidades necessárias, como outrora no conselho de estado. Assim era de rigor que aí estivesse o presidente do conselho certo e o provável, para o que ninguém tinha melhor faro do que o nosso amanuense; e isso provinha da sua privança com um particular de São Cristóvão, o filho, senão o mesmo, que tivera certa contestação com o Dr. França, o velho. Destas anedotas, já não se fazem hoje em dia. Para estes amigos do peito era o Sr. Benício o Petrus in cunctis , o pau para toda a obra. Por isso lhe pagava o estado um conto e seiscentos como amanuense. Tal era pelo menos a convicção em que estava o nosso homem. Incorporando-se ao passeio, não tivera o Sr. Benício outro fim senão dar pasto ao gênio serviçal. A princípio a fogosa mula baia o impedira de aproveitar as ocasiões; mas para a volta tivera o cuidado de passar os arreios para o machinho cargueiro. XIX Com a arrancada do machinho, bem a contragosto do Benício, ficaram outra vez sós os dois moços. Mas a poucos passos de distância cruza a volta que desce para o vale. - Aqui, peço licença para separar-me, disse Ricardo. - Não passa o dia conosco? - Há de me desculpar; tenho necessidade de estar em casa. - Já vejo que não esqueceu! - O quê? - A impertinência de há pouco. - Oh! minha senhora! - Tem medo de outra cena igual. - Que idéia! - E eu me não posso queixar. - É uma injustiça que me faz, D. Guida. - Há um meio de convencer-me. - Qual? - Passe o dia conosco. Ricardo hesitou um instante. - Passarei, disse naturalmente. Refletiu que se persistisse em retirar-se naquele momento, deixaria no espírito da moça a convicção de o haver ofendido, e o desgosto que sempre causa a suspeita de ter decaído da estima de um homem sisudo. Que necessidade tinha de humilhar essa moça, de quem afora um instante de contrariedade naquela manhã, só recebera amabilidades e delicadezas? Eram mais algumas horas de constrangimento, que lhe custava essa condescendência. - Agradeço-lhe de coração, respondera Guida. Em outro dia sua companhia me seria agradável, como sempre. Ricardo inclinou-se: - Hoje se não jantasse conosco, eu ficaria triste, acrescentou a moça com um cândido sorriso. - Então fique alegre, replicou o moço retribuindo o gracejo. - E estou! Uma terceira voz misturou-se ao diálogo: - Então a excelentíssima não quer aceitar? Era, não carecíamos dizer, o incansável Sr. Benício, que tendo afinal conseguido sofrear o chouto do machinho, voltara atrás; e aproximando-se sem que o percebessem, ali estava de espinhaço arqueado e braço estendido, a empunhar o guarda-sol, em posição de archeiro. Desta vez Guida não respondeu-lhe e seguiu adiante. Voltou-se então o Benício para Ricardo e apresentou-lhe a veneranda barraca: - Sr. Doutor, V. S. é servido? - Não; obrigado. - Olhe que o sol está pelando. - Nem por isso! Ao contrário, acho bem fresca a manhã! Fizemos um passeio magnífico. Não gosta da “Vista dos chins”?... - Faça favor! Insistiu o obsequioso Sr. Benício com o guarda-sol. - É um panorama admirável; não creio que haja no mundo uma tela igual, a não ser uma que eu conheço de fundo verde-gaio, por detrás da qual se desenha a figura de Mefistófeles. Não a que representa no drama de Goethe, mas uma que aparece na farsa do Judas em Sábado de Aleluia. - Tenho muito gosto! acudiu imperturbável o Sr. Benício metendo à cara do advogado o chapéu de sol. O riso cristalino de Guida que, ao remoque do moço, trilara como um colar de pérolas a desfiar-se, desatou em risada com a réplica do amanuense. Ricardo tinha dois fins, travando conversa com o Benício, e falando-lhe em linguagem que para este era grego ou hebraico. Conseguia em primeiro lugar reter junto de si aquele algarismo social, que tinha naquele momento a grande importância de uma unidade; somada ao número dois fazia três. Além disso defendia-se da serrazina dos oferecimentos com que o ia apoquentar, e nada obstava a que tratasse de rir-se em vez de amofinar-se. - Olhe! não me incomoda. - Já conhecia a “Vista chinesa”, Sr. Benício? - Vim uma vez, o ano passado, e por sinal que fazia um sol de abrasar como agora, e eu ofereci o meu guarda-sol ao Dr. Nogueira, o que valeu-lhe bem! Aceite, tome o meu conselho!... concluiu o amanuense enristando de novo a cana para investir contra o advogado. Apanhado de surpresa, quando pensava que o Benício ia devagar, protestou Ricardo não cair mais no logro de escutá-lo; e tomando a palavra começou a fazer ao companheiro a descrição pitoresca da Tijuca. - Mais bonito do que a “Vista chinesa”, é o “Bico do papagaio”. Ali é que eu o queria ver, Sr. Benício, para comparar os dois picos. No de lá há justamente por cima do nariz da pedra uma árvore que finge bem um chapéu de sol! - Não faça cerimônia, Sr. Doutor! atalhou o Benício voltando à carga. O amanuense divertia à maneira das caricaturas, que depois de vistas, se tornam monótonas. Assim era o nosso homem quando ele exibia algum de seus perfis, de um cômico irresistível; mas à força de reproduzir-se com a regularidade de autômato, caía em uma insipidez esmagadora. Não tardou que Ricardo sentisse invadi-lo o tédio a ponto de não poder mais suportar nem a vista do amanuense. Para subtrair-se a esse foco de aborrecimento, apressou o animal: - É de primeira força! disse Guida lendo-lhe no rosto. - Com efeito! Não imaginava! - Há pouco não dizia o senhor que a vontade ou o capricho é um rei? Pois tem destes cortesãos! - Ah! É preciso! São os cortesãos que vingam os oprimidos; quando não comprometem, intrigam ou traem os soberanos, ao menos lhes moem um pouco a paciência. - Não duvido da utilidade dos cortesãos, respondeu sorrindo a moça. Mas quanto à sua comparação, não a acho exata. A respeito de capricho há de concordar, que devo entender alguma coisa. - Muito! - Por uma simples razão! Sou muito caprichosa. - Não acredito! - Se eu confesso! - Por isso mesmo. - Há de mudar de opinião. - Bem, pode ser. É a moda. - O capricho está bem longe de ser rei. É apenas o valido, o primeiro-ministro ou presidente de conselho, a quem o rei eleva acima dos outros súditos para ter o prazer de o contrair, de picar-lhe a vaidade, de crivá-lo de alfinetes como ao Sr.*** Guida pronunciou o nome; eu porém que não estou para divulgar a malignidade, e comprometer-me com gente poderosa, substituo-lhe a reticência estrelada. - Mas quem é o rei desse valido? perguntou Ricardo. - O rei? É o mundo, e portanto qualquer pessoa. Pode ser o senhor, por exemplo. - Eu? - Por que não? Vou lhe confessar uma fraqueza minha. Eu tenho nestes momentos três desejos... Não cuide que são os da caixinha do jogo de prendas. - Ainda bem; eu já me tinha lembrado do Sr. Benício e de seu chapéu de sol. - Qualquer desses três desejos depende do senhor; entretanto eu estou certa que não é capaz de satisfazer a nenhum. Estava Ricardo surpreso ao último ponto da direção que tomara a conversa; mas o modo natural de Guida, e a garridice com que falava, o punham a gosto. - Está me metendo em brios, notou o moço a rir. - Também tenho a minha diplomacia. - Mas enfim sem conhecer os tais desejos, é que nada posso dizer. - Decerto! Há quase um mês, que estão me tentando! E eu perderia esta ocasião de acabar com eles; pois bem, convencida de que não posso satifazê-los... Guida levou a mão aos lábios e soltou um arrulo gracioso, que pareceu, com o gesto, desfolhar nos ares: - Prrr!... solto-lhes as asas e... Adeus, pombinhos! - Quem sabe?... A senhora está figurando a coisa como muito difícil, para sazonar o gostinho. Aposto que eu vou, como a lâmpada de Aladino, realizar esses grandes desejos, o primeiro dos quais eu já adivinhei. - Ah! - É tirá-la da sombra implacável de um monstro verde-gaio... - Ora! Eu já nem me lembrava disso. - Bem; já vejo que não sou forte na adivinhação; o melhor é escutar. - E não interromper; porque já estamos perto de casa. Quem sabe se não é também diplomacia para ganhar tempo? - Estou mudo como um reposteiro. - Pois ouça. O primeiro desejo era, note que eu não digo é; era que o “Galgo” fosse meu. - Não vejo a impossibilidade. - Eu lhe mostro. Se papai quisesse comprá-lo, o senhor recusaria vendê-lo. - Certamente. - Era o único meio. - Perdão; há outro. - Não há mais nenhum. O senhor não podia nem pensar em oferecê-lo a pessoas com quem não tinha relações íntimas; e menos agora, depois desta confissão. Portanto é impossível. - Assim, decerto. - Passemos ao segundo. - É verdade, ainda restam dois desejos. - O meu segundo desejo... Promete não desconfiar? disse Guida voltando-se para ele com gentileza. Ricardo teve uma suspeita de que a filha do banqueiro o estava debicando, como costumam as moças bonitas e prendadas, para mostrarem espírito e darem expansão à natural petulância de um coração de dezoito anos. O primeiro impulso foi retrair-se; mas não se deixou levar dele; seu caráter sério não o inibia de aceitar com a moça esse desafio de garrulice. A borboleta queria voejar, ostentando suas roupagens magníficas e farfalhando as asas sussurrantes. Não havia ali flor, que libasse; pois seria ele o pretexto desse inocente devaneio, do qual também de sua parte contava participar. - Desconfiar?... Fique descansada; não quero passar por provinciano duas vezes no mesmo dia. - Lembra-se da primeira vez em que nos encontramos? perguntou Guida. E fitou no moço um olhar, que esperava a resposta da interrogação. - Foi aqui mesmo na Tijuca! disse Ricardo. Assomou à face um leve rubor, que o olhar de Guida evitou, mal o percebeu. - O senhor estava muito embebido a olhar a florzinha amarela... - Sim; a da Pedra Bonita? - Essa mesma. - Admirava. É um mimo essa flor. - É uma jóia, é; mas deixemos a flor por enquanto. Eu também tenho paixão por ela e a admiro. Mas o senhor admirava e fazia outra coisa. - Não me recordo. - Eis um recurso de que não precisa. - Tem razão. E por que hei de negar? Beijava-a: está satisfeita? Guida fez com a fronte um aceno afirmativo. - Cuidei que essa poesia do sentimento, que faz conversar com uma estrela, beijar uma flor, adorar uma lembrança, já não se encontrava hoje em dia, a não ser nos romances. Se alguma vez se misturava com o prosaísmo desta nossa vida fluminense, era a moda de comédia de sala: para divertir as moças da moda, que chegaram aos dez anos e já não podem mais suportar as bonecas. Ora, desta última suposição, está claro que não se trata. A causa portanto é seria. - Muito séria, acudiu Ricardo. - Confessa? - Há nada mais sério e real do que a fragilidade humana? Eu lhe conto a história dos “Sonhos d’ouro”. É assim que chamo a florzinha amarela... - O nome é bonito! - Se tem outro, não sei, dei-lhe este. É bonito e lembra uma coisa muito agradável. “Sonhos d’ouro”!... A senhora não pode ter esse prazer; Deus, dando aos ricos a opulência, negou-lhes a ardente esperança de a obter, e reservou-a como uma compensação para nós, os pobres. É somente para nós que essa fada incomparável levanta os suntuosos castelos, os jardins encantados, os paraísos na terra. Quando a senhora me viu, eu entrava no mais belo de meus castelos, à vista do qual o rico palácio que seu pai tem nas Laranjeiras é um albergue; subia as escadas de pórfiro marchetadas de ouro. Abriam-se de par em par as portas de rubi da sala da saudade; e minha mãe aparecia-me sobre um trono de safiras. Atirei-me a ela, que recebeu-me em seus braços, beijei-lhe os olhos, coalhados de lágrimas, e... A senhora acordou-me. - Ah! Compreendo. Lembrava-se de sua mãe. Nessa poesia também eu creio, disse Guida com terna expressão. - Dirá a senhora que é uma infantilidade cair assim um homem feito, um doutor, a sonhar com o sol alto e os passarinhos a cantar. Mas a isso respondo, que a natureza humana é esta mesma contradição. O menino tem “homenices”... Não repare no termo; tenho um mau costume de inventar uma palavra quando não acho outra já feita para exprimir meu pensamento. Mas dizia eu que o menino tem suas “homenices” que o tornam insuportável; portanto era preciso que o homem tivesse suas “meninices”, que o tornam ridículo. - Pensar em sua mãe ausente é uma coisa tão santa! - Mas creio que ainda falta um desejo? - Ainda; não me esqueci. Ia perguntar-lhe o que representa o desenho... Sabe; aquele que o senhor fazia à janela?... injúria, o insulto grosseiro. A cidade ocupa-se imediatamente do escândalo. “Quem é?... Quem é que ousa atacar o homem eminente?” Conhecidos, mas principalmente os amigos, correm açodados à compra do pasquim; comentam as insolências e vão com uma caramunha de jesuíta propalando a notícia... O autor, de fuão que era na véspera, torna-se personagem; todos inquirem dele, apontam-no quando passa, repetem seu nome como um epíteto do caráter por ele agredido e atassalhado. Assim abre-se caminho até à celebridade, que é a base de toda a grandeza. Obtido esse pedestal, “o temível”, ou o parvenu, como o chamam os franceses, pode-se deitar à espera das honras e pepineiras que lhe chovem a mancheias. Só lhe falta um casamento rico, para coroar a obra de sua rápida fortuna. O casamento rico é em verdade um achado da maior importância. Se o indivíduo não tem pátria, nem família, dá-lhe uma apresentável; se já possui esses trastes, ficam-lhe duas, o que não é para desprezar. São duas amarras para tudo; lá e cá, diz-se com toda a cerimônia, “nosso país”. Além disso traz o casamento a fortuna patrimonial, que tem sempre uma certa respeitabilidade, e serve para decorar umas vergonhas e misérias do passado. Ora, a um homem de recurso não é difícil, desde que trepou ao pedestal da celebridade, ou por outra, desde que se tornou um “temível”, não é difícil arranjar uma aliança nessas condições. Sustando a palavra um instante para observar-lhe o efeito na fisionomia de Ricardo, que o escutava com repugnância, concluiu o Nogueira: - Eis, meu colega, como um hábil pelotiqueiro de um passe escamoteia parte da reputação por outros laboriosamente adquirida; e com esta sorte edifica um brilhante futuro. Experimente! Ricardo até ali escutara apenas com tédio o que ele tomava por sarcasmo pungente; à última palavra alteou a fonte com indignação: - O senhor não fala seriamente! Desfechou o Nogueira uma gargalhada cromática: - Decerto! Como se há de falar seriamente, quando é tão grotesca a verdade? Não lhe expendi opinião minha; referi o fato; olhe ao redor de si, e vê-lo-á talvez bem de perto. - Explique-se V. Ex.ª; não o compreendo. - Quando abrir os olhos, compreenderá. E Nogueira solfejando a sua risada dirigiu-se para a casa. Enquanto a um canto retirado do jardim se travara tão interessante conversa entre os dois colegas, do lado oposto se havia formado uma roda, a que servia de eixo ao Bastos. O piquenique derrotara o nosso corretor, que mostrava-se um tanto amarrotado, nas feições e nas esperanças. As barbas já não tinham aquela simetria irrepreensível que dava-lhes a imobilidade do postiço. Uma bomba na praça não houvera estrompado nosso pretendente, como aquele maldito passeio à “Vista dos chins”. Quando, adiantando-se à comitiva, chegara à casa na esperança de ali encontrar a filha do banqueiro, achou-se em branco. Retrocedeu já um tanto azoado, e de todo ficou, vendo aparecer na volta da estrada Guida e Ricardo em conversa animada. Foi um golpe para o corretor que viu a bancarrota iminente sobre sua empresa matrimonial, que na véspera ainda parecia-lhe tão próspera! Jantou mal, pensando no quanto é vária a fortuna, e incerta a carreira do comerciante. Contudo não descoroçoava ainda o Bastos; tinha fé no jeito e habilidade do Soares, que bem sucedido sempre em todas as transações, não havia de errar a boa mão, justo em negócio tão do peito, e do qual dependia a sorte de sua filha. Ao levantar da mesa, tratou o corretor de colher informações exatas acerca do passeio; queria saber ao certo o ponto a que já tinham chegado as coisas, para desde logo pedir a intervenção paterna, se as circunstâncias reclamassem esse extremo curso, ultima ratio dos pretendentes repelidos pela noiva. Os companheiros de passeio, moços do comércio, ou porque em verdade nada tivessem observado de suspeito, ou para consolarem o corretor, mostraram-se convencidos de que não havia da parte de Guida para Ricardo mais do que amabilidade de uma moça espirituosa e, quando muito, uma pequena dose de coquetterie. Assim falavam eles; eu diria: coquetismo em linguagem da moda, e faceirice, À nossa maneira. O Guimarães não tomou a coisa ao sério: - Ora, estão vocês aí com histórias! A Guida o que fez hoje no passeio, assim como no Domingo passado, foi debicar o tal caipira de São Paulo. Aquilo é um pratinho soberbo, nem vocês imaginam!... E soltando um ritornelo da sua implicante risada, lá se foi o moço bonito a borboletear entre o círculo das moças, amolando as guias do bigodinho assassino, e mirando-se em falta de espelho n’água cristalina que enchia a bacia de mármore dos repuxos. Convencido de estarem todas aquelas meninas morrendo por possuí-lo, passava lá consigo que era uma crueldade causar tantos infortúnios para satisfazer a paixão de uma só, de Guida. Mas não obstante o desengano, sabia que não podendo resistir à sedução, ardiam em desejos de se fartarem de beijos naquela boca tentadora; imaginando que já o perseguiam as míseras namoradas sem ventura, por faceirice furtava-se o rapaz às suas carícias. E com efeito, às vezes interrompendo o giro pelo jardim, fazia uma pirueta à vista das senhoras. Entretanto na roda do Bastos, continuava a investigação dos pormenores do passeio com relação ao ponto importante. Chegara-se o Lima e sabendo do que se tratava, quis também das a sua opinião, fundada em informações verídicas: - Esteja descansado, disse ele ao Bastos. Não há nada! - Deveras! Você me assegura? - Pode escrever. - Mas como sabe? perguntou o visconde da Aljuba, que até aí se tinha contentado em ouvir. - É verdade. Você não foi do passeio. - Eu lhe digo o como sei melhor do que todos que lá foram. Conversando com D. Guilhermina, antes do jantar, falei a respeito dessa novidade que os senhores trouxeram. - Eu não! repetiu meia dúzia de vozes. - Creio que foi o Sr. visconde! - Se fui eu, do que não me lembro, é que alguém me disse, respondeu sem desconcertar-se o homúnculo. - Quer saber o que respondeu D. Guilhermina? –“Qual, Lima, não acredite! Deixe-os falar! A Guida nem pensa nisso. Pois não vê que se houvesse alguma coisa, ele não trataria o Ricardo com tanta familiaridade e sem acanhamento, como eu trato o Fábio, por exemplo?” - Esta última razão, acrescentou sonsamente o visconde, não me tinha lembrado. É de arromba! Está decidido que não há nada absolu... Não acabou o Aljuba de debulhar tranqüilamente as sílabas do seu advérbio, porque foi de repente arrebatado à terra, e depois de uma ascensão curta e rápida se achou sentado no jardim, sem compreender ainda como isso acontecera. A causa do fenômeno ali estava em carne e osso. Era o Sr. Benício que, passando casualmente pela próxima alameda, a farejar no jardim o que não descobrira na sala, isto é, “uma pessoa a obsequiar”, bispou de longe a figurinha do visconde aprumada sobre a base. - O Sr. visconde de pé!... exclamou o Benício. O incomparável obsequiador possuiu-se de um horror que talvez não lhe causasse o visconde, se em vez de ter-se direito, como a a natureza o fizera, pusesse as mãos na areia, e fazendo cauda d’aba da casaca, imitasse o gambá, de que tinha seus traços fisionômicos. Em dois saltos o homem serviçal galgou a escadaria de pedra, arrebatou da sala uma cadeira, e arremessando-se com ela ao jardim, foi cair precisamente no meio da roda. Aí fincando com a mão esquerda a cadeira na areia, com a direita empunhou o exíguo visconde pelo pescoço, como o faria ao gargalo de um moringue, e assentou-o em cheio na cadeira . Esta rápida operação foi acompanhada da seguinte jaculatória: - V. Exª. de pé, Sr. visconde! E eu sem ver! Oh! desculpe-me, excelentíssimo. Aqui tem V. Exª. uma cadeira! Mas não se incomode, excelentíssimo, por quem é! Deixe, eu mesmo o sento! Pra que ter este trabalho! Assim; esteja a gosto; não precisa mais nada? - Nada, nada! obrigado, muito obrigado, Sr. Benício, mil vezes obrigado! pôde afinal responder o visconde, fincado na cadeira, e desdobrando-se como um couro amarrotado. - Aqui está quem pode dar boas informações! disse um da roda. - Oh! o Benício deve saber. Pois era ele quem os acompanhava, acudiu o outro. - Não vêem como está bem penteadinho! tornou o primeiro alisando as falripas do amanuense. - O quê? O quê, homem? Dizia no entanto o Benício. - Estávamos aqui numa dúvida de que só você pode nos tirar. - Vamos a ver! Para o que é servir aos amigos, eu estou pronto sempre. - O que acha o senhor? A Guidinha está deveras mordida? - Heim? - Deu corda ao bicho? - Ai, que os amigos querem se divertir à minha custa! Interveio o visconde: - Não seja desconfiado, homem. Estes senhores desejam saber se pelo que observou esta manhã no passeio, especialmente quando acompanhou a D. Guida, percebeu que ela tinha sua quedinha pelo tal Ricardo. - Ah! é isso?... O homem serviçal não tinha observado coisa alguma, nem era capaz de semelhante exerção de espírito. Acompanhara os dois moços absorvido na satisfação de obsequiar dois mortais a um tempo; e isto bastava para ocupar toda a atividade moral de que era capaz o seu indivíduo. É certo que lá num refolho escuro daquele miolo animal despontava um grelo de idéia. O homem tinha uma bronca intuição de estar obsequiando os dois moços, não só com a sombra do chapéu de sol, mas com a sombra da cabeleira. Agora, metido na roda, entre as galhofas dos rapazes, e com as explicações do visconde, o grelo da idéia lhe abrolhara no cérebro; percebeu do que se tratava, ainda mais dando com a cara amarrada do Bastos. O amanuense tinha especial birra ao corretor. A emulação é achaque de que padecem os talentos. O empenho do Bastos em incumbir-se das encomendas de D. Paulina, de Guida e outras senhoras, despertara justo zelo no amanuense, que tomava aquelas obsequiosidades por verdadeiras usurpações de suas ocupações privativas. Entendia o “homem serviçal”, que, dando-lhe uma sinecura, o governo lhe concedera privilégio exclusivo para obsequiar o próximo, e ninguém podia privá-lo dessa honra. Em sua qualidade de animal daninho tem o homem um faro para vingança. Doutro modo não se explica o que passou na cachola do Benício: - Cá pra mim é negócio decidido, respondeu impavidamente o amanuense. Esta manhã quando tive a honra de segurar o chapéu de sol para os noivos, bem me estava lembrando que amanhã tenho de visitar o meu amigo monsenhor. É bom a gente andar prevenido; e como eu é que hei de ser incumbido de arranjar os papéis na Conceição!... - São histórias do Benício, atalhou o visconde metendo à bulha o amanuense. Que o maganão não pilha a moça, nem o dote, por essa fico eu, e se quiserem uma apostazinha... Não obstante a confiança na sagacidade do Aljuba e sobretudo em sua avareza, que não havia de arriscar a aposta sem plena certeza de a ganhar, a balela do casamento da filha do banqueiro continuou a correr entre os convidados, e não se falava em outra coisa no salão, quando ali entrou Ricardo. Todas as vistas fitaram-se nele procurando-lhe no semblante a ufania do triunfo; e tal é o poder da imaginação, que muitos a viram desdenhada em uma fisionomia onde os paradoxos do Nogueira haviam deixado traços bem expressivos de tédio e desgosto. Notou Guida essa expressão de Ricardo, que distraidamente e sem precebê-la, sentara-se a seu lado. - Sabe a novidade? perguntou a moça. - Qual? - Ainda não lhe deram os parabéns? - Por que motivo? - Deveras não sabe? - Entrei agora mesmo na sala. - Pois então, deve-me as alvíssaras. O senhor está para casar comigo. - Não entendo! respondeu Ricardo fugindo ao gracejo. - Parece-me que é bem claro. Depois do jantar não se tem falado aqui de outra coisa. - Mas é uma indignidade! Exclamou o mancebo, mal contendo a revolta dos brios. - Faça como eu! acudiu Guida sorrindo. Não se importe! A princípio também me incomodavam essas impertinências; agora estou habituada; e ainda agradeço quando não me dão por noivo algum bobo ou algum traste, como já tem sucedido. - Mas eu não lhes dei o direito de se divertirem com meu nome! - E dei-lhes eu acaso? tornou Guida. Tenha paciência; amanhã me inventarão outro noivo; e o senhor ficará descansado. Eu é que infelizmente não tenho quem me tire da berlinda. Ditas estas palavras em tom que flutuava entre o motejo e a contrariedade, a filha do banqueiro ergueu-se para dirigir-se ao piano, onde a chamara D. Clarinha. XXII Terça-feira seguinte, estava Ricardo como de costume em seu escritório. Seriam dez horas passadas. Reinava na pequena sala, dividida a meio em dois cubículos por um tabique de pinho, um silêncio desanimador, sem dúvida propício à meditação, porém pouco prometedor a respeito de clientela. Sentado à clássica mesa de vinhático inteiramente limpa de autos, Ricardo, trabalhador infatigável, escrevia desde as nove horas da manhã em que habitualmente chegava ao escritório. Lembrara-se de fazer algumas traduções para distrair as horas enfadonhas do estéril plantão, nutrindo a esperança de tirar daí alguns parcos recursos com que fosse atamancando as necessidades. Ricardo bem sentia que não tinha real vocação para a profissão forense; a aridez desses estudos, que os rábulas costumam amenizar com desbragadas verrinas, não conformava por certo à sua inteligência brilhante, colorida por uma imaginação de artista. Mas o mancebo, não obstante, aceitava essa carreira como um dever, pela impossibilidade de escolher outra que lhe proporcionasse os meios de subsistência e os recursos para manter a sua família, que se achava em circunstâncias precárias. Um camarada de São Paulo se lhe oferecera para obter alguma colaboração em um dos jornais da corte. Mas até então nada conseguira; as pequenas empresas não podiam pagar; as grandes entendem que o verdadeiro redator de uma folha que se respeita, é o soberano público à razão de tantos réis por linha. O livro que Ricardo traduzia era de Balzac: Eugênia Grandet. Esperava achar um editor para a obra-prima do ilustre romancista francês; coisa bem duvidosa. Às vezes deitava a pena sobre a bandeja do tinteiro, e derreando contra o recosto da cadeira, perdia-se em cogitações que o trabalho interrompera, e agora com a pausa voltavam a eito. Conhecia-se-lhe pelo aspecto que tristes eram aquelas cismas; ressumbrava em seu olhar apagado o desalento que iam derramando-lhe nos seios d’alma. A expressão habitual do mancebo era a sisudez afável, que nem se arruga na carranca, nem se descompõe no frouxo do riso. Nesse dia porém mostrava-se grave e preocupada sua fisionomia. O dinheiro, esse azoto social, sem o qual não se vive nas cidades: eis a grande questão, que se debate nas ruas e praças, desde o mendigo até o rei, um esmolando os magros vinténs, o outro distribuindo os milhões nacionais. Era essa também a preocupação de Ricardo naquele momento. As circunstâncias do mancebo de dia em dia se tornavam mais estreitas. Morava ele com a mãe de Fábio, que o agasalhara como o futuro cunhado de seu filho; já essa posição de hóspede o constrangia, apesar dos contínuos protestos da boa senhora, a repetir todos os dias, que a despesa de casa não aumentara um real por sua causa, e que longe de incomodar-se, tinha ela ao contrário o maior prazer com tão agradável companhia. Ainda quando assim fosse, e Ricardo procurava tornar-se o menos pesado, acanhava-o essa dependência de alheio favor, e repugnava-lhe viver a expensas de outrem, apesar da amizade de Fábio e dos laços que breve deviam ligar as duas famílias. Mas o que exacerbara naquele dia estas nobres suscetibilidades de Ricardo, era a posição especial em que se achava com relação a Fábio, desde o último domingo. Já anteriormente não gostara do desembaraço com que o noivo de sua irmã se portara em casa do Soares; disfarçara contudo, fazendo-lhe apenas ao de leve alguns reparos, a que o outro não deu importância. Foi porém no dia do passeio à “Vista Chinesa” que Ricardo se recolheu contrariado ao último ponto, não só pela sem-cerimônia com que se intrometera o Fábio na roda dos convidados, filando o cavalo do Lima, como pelo namoro escandaloso que travara com D. Guilhermina. Sentia Ricardo a necessidade de ter com o amigo uma prática séria, na esperança de coibir a tempo aqueles ímpetos e evitar futuros dissabores, senão verdadeiros desregramentos, que trariam a infelicidade de duas famílias. Fábio porém evitava as ocasiões em que o assunto pudera muito naturalmente vir a talho, trazido pela divagação de uma palestra entre amigos. Um emprazamento emprestaria à conversa ares de solenidade que seriam de mau prenúncio. Podia o noivo de Luísa enxergar nas palavras do amigo uma exprobação de quem já se arrogava autoridade de chefe de família; e irritando-se, persistir no caminho que levava. Razão tinha Ricardo para recear esse resultado; pois desde a primeira visita à casa do Soares sentia que o espírito de Fábio, arrastado pela sedução daquela sociedade, subtraía-se à sua influência. O menor arrefecimento nas relações dos dois moços teria conseqüências graves, pois determinaria a retirada de Ricardo para São Paulo, desvanecendo a esperança por tanto tempo afagada de fazer carreira na corte, e preparando para Luísa uma decepção cruel. Tais eram os pensamentos que nessa manhã carregavam a fronte do jovem advogado de uma nuvem de tristeza. Eram dez horas e meia, e Fábio ainda não chegara ao escritório. A sua mesa, colocada do outro lado da sala, estava intacta como ele a deixara sábado. Nos dois cantos viam-se as rimas de autos velhos, que o moço pedira aos escrivães a pretexto de estudar certas questões; mas realmente para dar à sua banca o aspecto forense. Esses cartapácios faziam as vezes de uma tabuleta. - É capaz de não vir hoje, como já não veio ontem, disse consigo Ricardo. E ia voltar à tradução, quando ouviu passos na escada; momentos depois na porta de comunicação entre os dois repartimentos surdiu a figurinha encarquilhada do Visconde de Aljuba: - Pode-se entrar? - Oh! Sr. visconde!... Faça favor. Ricardo, surpreso da visita, ergueu-se para oferecer ao Aljuba uma cadeira a seu lado. - Custou-me a dar com o escritório. Também foi procurar uma rua tão esquisita. Nada; isto não serve. É preciso arranjarmos quanto antes uma sala aí na rua Direita, ou mesmo na da Quitanda... - Ainda não é para mim, e quem sabe se o será algum dia. - Ora qual! disse o visconde com seu riso fagoteado e batendo no ombro do moço. Você breve está aí recheado! Veja o que lhe digo. Uma das particularidades do visconde era familiarizar-se com as pessoas que tratava a ponto de chamá-las por você desde o primeiro dia. Entendia que o dinheiro lhe dava essa liberdade, como lhe dera a excelência com que o abarrotavam a cada canto. Ricardo não gostou do modo achavascado; mas disfarçou. - Dito por V. Exª., é um bom agouro. - Oh! Eu cá nunca me engano. Sujeito que tem de ser apatacado, eu o descubro logo pela pinta. Olhe o Soares. Foi vê-lo, e conhecer logo que aquele patife acabava podre de rico. - Então acha-me com jeito de homem apatacado? - Tem todos os sinais. - Quais são eles? - Eu cá sei. Mas vamos ao que serve. Para começar, temos aqui uns dois negocinhos... Meu procurador há de passar por cá depois. Trouxe os papéis para explicar-lhe bem a coisa. Tirou o visconde do bolso um maço de papéis preso por um elástico, e pô-lo na ponta da mesa. - Este é uma escritura de hipoteca dum sujeito que me deve seis contos. A casa há de valer uns vinte; ainda tem uns escravinhos; bem tangida a embroma, como os senhores sabem fazer, podemos passar a mão em tudo. - Engana-se; eu não sei fazer desse milagres, disse Ricardo, já não podendo conter o sarcasmo. - Ande lá, ande lá! Isto agora é uma letrinha dum rapaz, um peralta que já esbanjou a legítima do pai, e está à espera da herança da mãe. É preciso pôr-lhe em cima o ano do nascimento e andar com a tramóia depressa para arranjar uma sentençazinha, que fique na gaveta bem guardada à espera do bolo. Enquanto o marreco anda na pinga, não olha para estas coisas, nem dá o cavaco, sobretudo caindo eu com uns cobres, que ele anda seco. Mas assim que meter-se na herança, é capaz de vir com histórias de que são falsas as letras, que ele as aceitou quando já estava declarado pródigo, e outras petas. - Desculpe-me, Sr. visconde, não posso me encarregar destes negócios, disse Ricardo com fria gravidade, carregando sobre a última palavra. - Por que então? - Permita-me que reserve para mim os motivos de meu procedimento, tornou Ricardo no mesmo tom. - Ora já sei! É sobre isso mesmo que eu vinha falar-lhe; mas precisava antes de apalpar o terreno... Compreende, heim! Foi Ricardo quem dessa vez ficou surpreso do desembaraço do usurário. - A coisa está bem encaminhada! Você é um finório! continuou o visconde apertando o joelho de Ricardo. Mas, olho vivo, que anda uma súcia de galfarros à cola da rapariga. Então o Nogueira e o Bastos? Dois velhacos de marca. Deixe-os por minha conta, que os conheço; têm de haver-se com um macaco velho. Lá o Guimarães não mete medo, é um pateta. - Explique-se melhor, Sr. visconde, eu não o entendo. - Faça-se de inocente! Ah! managão?! Quem não sabe que a rapariga está pelo beiço! Você é um ladrão feliz! - De que rapariga me fala o senhor? - Ora de quem há de ser senão da Guida, a filha do tratante do Soares? Domingo na Tijuca, todos conheceram como ela se derretia... E tinha razão! Olé se tinha. - Não admito gracejos a este respeito, Sr. visconde. - E esta! Não costumo gracejar com os negócios. - Então é um negócio que o senhor veio propor-me... - E que negócio!... Magnífico!... Olhe; um namoro com uma rapariga como a Guida, custa caro! Eu conheço aquela sujeitinha! Está acostumada a atirar fora as notas do banco como se fossem papéis de bala! Além disso há de ser preciso sustentar por muito tempo, um ano seguramente, a tamóia, o que fica um tanto salgadete. O visconde hesitou um momento, calculando uma última vez as probabilidades da especulação. Ricardo, mantendo com esforço a calma de um frio desprezo, desviava com desgosto o olhar da fisionomia grosseira e astuta do usurário: - Pois, meu amigo, eu forneço todo o dinheiro necessário para o nosso negocinho... Já sabe, com a condição de tirar a minha fatia do bolo. Que diz? Vamos ao ajuste; sempre é bom. - Creio que terminou a sua proposta? perguntou Ricardo com a voz contida. Cabe-me agora responder. - Sem dúvida. - É conforme a maneira de entender. Sou em quem se despede de suas relações. Boa noite. Meia hora depois Fábio tornava à casa onde ia preparar-se para o baile. Ao passar pela rua da Ajuda, lembrou-se o moço de alguma coisa, que o fez retroceder o espaço de dois ou três edifícios, e penetrar em um corredor escuro. No fim havia uma escada, que chegada ao tope no primeiro andar, voltava para cima. Subindo a correr os dois lanços, achou-se em um sótão baixo e pequeno, composto de duas peças, uma das quais abria para a escada. Estava apenas cerrada a porta; não foi preciso bater. Ricardo escrevia à luz de uma lamparina de querosene. Uma semana havia que Ricardo se instalara em sua nova habitação. A fortuna lhe enviara um sorriso, bem escasso ainda, que não obstante luziu como aurora na sombria perspectiva de sua existência. Conseguira ao cabo de muita paciência a tradução de um folhetim, que lhe deixava uns setenta mil-réis por mês; e tivera uns dois processos policiais que, pagos mesquinhamente, lhe tinham metido no bolso uma nota de duzentos. Finalmente, procurando um cômodo, achara na Rua da Ajuda aquela metade de sótão mobiliado, a trinta mil-réis por mês incluída a comida; mas a dona da casa, uma senhora viúva, vendo que tratava com pessoa instruída, propôs-lhe como pagamento ensinar suas três meninas e dois rapazes; o que Ricardo prontamente aceitou. Fábio opôs-se à mudança, na idéia de que o amigo fosse levado pelo receio de ser pesado; mas Ricardo demonstrou-lhe que daquele modo promovia seus interesses. Além de não custar-he o cômodo nada, senão trabalho, gênero de que tinha boa provisão, podia entre os conhecidos da viúva obter novos discípulos. - E te sujeitas a isso? perguntara-lhe Fábio admirado. - O trabalho honesto honra; e este de ensinar é dos mais nobres, respondera simplesmente o paulista. No momento em que entrava o amigo, Ricardo escrevia à sua mãe, e confirmava-lhe as boas notícias que até então apenas lhe deixara entrever, receoso de afagá-la com falaz esperança. - Trabalhando sempre! disse o trêfego fluminense recostando-se na marquesa de vinhático. - Estou escrevendo para São Paulo, respondeu Ricardo com uma inflexão triste na voz. - Oh! diabo!... É verdade, amanhã sai o vapor. Espera! De um salto chegou-se à mesa, tomou uma pena, e escreveu no primeiro bocado de papel que achou, estas palavras: La vita uniti Transcorreremo. - Toma; mete isso em tua carta! E acendendo o charuto, voltou à marquesa, onde espichou-se cantarolando o dueto da Traviata. Passado um instante ergueu-se; olhou indeciso para Ricardo que lhe dava as costas escrevendo; passeou a esmo pelo estreito aposento, e aproximou-se da mesa: - Queres um charuto?... É fazenda superfina!... Duque!... Já vês que para fumá-los é preciso ser príncipe pelo menos. Mas o Soares, que trata este mundo de resto, abarrota com eles aquela súcia acostumada ao trabuco de vintém! Fazia dó ver como atolavam as mãos nas bandejas de prata dourada!... Toma, não queres provar? - Deita-o aí, respondeu Ricardo metendo a cara na capa, e pondo-lhe o sobrescrito. Secou-se a musa ao Fábio com aquela indiferença do amigo; deu outra vez algumas voltas pela casa, e afinal decidiu-se: - Podes ouvir-me um instante? - Acabada esta carta; é a de Luísa e Bela. Fábio fez um trejeito de homem pilhado na esparrela. - Podes falar. - Sem preâmbulos. Queres fazer tua felicidade? - Para isso trabalho eu há dez anos. - Pois não é preciso mais trabalhar: basta que estendas a mão. - Achaste a lâmpada de Aladino, e me queres fazer presente dela? - Não; mas descobri que o anel da Guida que é mais precioso do que o de Giges, foi feito para teu dedo. Ah! Assim me servisse ele! - Já te pedi que não repitas esse gracejo. - Não estou gracejando; falo sério, mais sério que a burra de bronze de teu futuro escritório. A Guida gosta de ti, acabei de convencer-me hoje. - Não suspeites da pureza de uma menina sisuda, e com má intenção, disse Ricardo abrindo um livro para cortar a conversa. - Assim recusas! Quando a riqueza e a felicidade te procuram e vêm tirar-te desta boceta que por uma metáfora atrevida e arriscada, como dizia o Padre Fidélis, chamam sótão, e onde vives empalado, tu a enxotas como uma importuna? E não te lembras de tua mãe, de tua irmã, dos teus, sobre quem se derramaria a tua felicidade como um benefício do céu?... És um egoísta, Ricardo! Ricardo ergueu-se. - É pena realmente que o anel não sirva em teu dedo, Fábio! Pois tu não hesitarias em sacrificar-te para a felicidade de todos nós, inclusive a de Luísa! - Sem dúvida! - Ao menos tens o mérito da franqueza, tornou Ricardo com ironia repassada de desgosto. - Ora! tu não me pareces um advogado da corte! Não há estudante de São Paulo que não saiba ao terceiro ano o que é um caso de força maior, e quais são os seus efeitos jurídicos. Pois, meu caro Ricardo, um dote de um milhão com a perspectiva de outro por herança, em matéria de amor não é só força maior, é uma fatalidade. - Vejo que aproveitaste bem o teu curso! - Se que que amo Luísa, e estou na obrigação de amá-la toda a vida, salvo o caso de força maior, a esquecesse para casar-me aí com qualquer outra moça, seria decerto um ingrato, um monstro de perfídia. Mas sendo para casar sem amor, por cálculo, com uma boneca do valor de um milhão, daria um exemplo sublime sacrificando a paixão aos ditames da razão. Os heróis da história e da fábula são todos feitos por esse modo. O coração fica intacto; e dentro dele, como a lâmpada do santuário, arde sempre o primeiro e eterno amor. Eis como eu penso. - E Luisinha pensará do mesmo modo? - Deve, porque me ama. - A razão é original! - Julgo-a por mim. Sabes que amo tua irmã. Pois bem; aparecesse um casamento milionário para ela, e eu seria o primeiro a dizer-lhe: “Luísa, eu não sou o nec plus ultra dos homens; mas um pobre mortal com algumas qualidades e muitos defeitos. Como eu, se encontram aí pelas ruas às dúzias. Um milionário porém, meu anjo, é uma espécie rara, um animal exótico, um fenômeno social; vale a pena dar a gente um molho de esperanças que afinal murcham como o alecrim, para ter o prazer de possuí-lo”. - Não me admira essa linguagem da parte de um homem que ama à tua maneira. - É outro ponto em que discordamos. Tu tens a fidelidade do frade, eu a do soldado; tu foges, eu combato. Quando um homem conta à mulher amada suas conquistas e as seduções que sacrificou à sua beleza, ela deve ter legítimo orgulho. - Guarda o teu espírito para o baile, Fábio; não o estejas esperdiçando nesta cela, onde só cabem as tristezas e preocupações da vida. Melhor farias se me respondesses seriamente a uma pergunta. Fábio calou-se surpreso da severidade do olhar de Ricardo. - Donde te vem o dinheiro que despendes nesta vida de luxo? - Ora! Uma ninharia! - Vês; tu coras e evitas responder-me. - Emprestaram-me. - Quem?... Ela?... - Ricardo!... Que idéia fazes de mim? - Desculpa-me!... Conheço teu caráter; mas no mundo em que andas agora, é tão fácil um deslumbramento, um eclipse!... - Tens razão! Prometo abandonar semelhante vida... Irei ao baile desta noite porque estou obrigado. - Vai e diverte-te, disse Ricardo, que desejava apagar no espírito do amigo o travo de sua injusta suspeita. - Não queres vir também? - Tenho muito o que fazer. E despediram-se. XXIV Estamos em junho. Às onze horas saía Ricardo de seu escritório, já melhor situado, na Rua do Rosário, e dirigia-se à casa da Relação, onde dava audiência a 3ª vara municipal. Tratava-se de um processo-crime importante; uma falsificação de firma. O negociante, vítima da fraude, tinha procurado Ricardo para incumbi-lo de promover a acusação com energia, pois era mister um exemplo. Por avanço dos honorários deixara-lhe sobre a mesa naquela manhã um conto de réis. Não era este o primeiro cliente importante que o jovem paulista vira aparecer-lhe de repente. De um lado chegavam as propostas, que exigiam para resolvê-las um jurisconsulto, ou pelo menos um provecto advogado. Do outro, minutas de contratos e escrituras. Sentia Ricardo, que seu nome granjeava entre os comerciantes um favor, que não sabia explicar. Agora mesmo, descendo a Rua do Ouvidor, perscrutava ele debalde a causa do conceito que subitamente adquirira como advogado na corte, onde tantos existem e tão ilustres. Não podia atribuir o fato ao seu mérito, ou à voga artificial que se arranja por meio de anúncios, e até de escândalos. Também não se oferecera para advogado de alguma beneficência estrangeira, com o fim de captar a clientela dos sócios. Lembrava-se de ter visto muitos desses novos clientes em casa do Soares; e quis supor um instante fosse tudo efeito da amizade de Fábio, que naturalmente falava naquela roda a seu respeito com o entusiasmo do costume. Mas não tardava em repelir essa suposição. Ricardo tinha experiência e sabia que a palavra sincera e convencida é pedra solta e não edifica neste país; é preciso pôr-lhe um comento: o medo, a comodidade, o lucro, a paixão, etc. Quando, fatigado de excogitar em vão, punha o ânimo à larga, espraiando a vista pela Praça de São Francisco de Paula, aonde saía naquele instante, deu com os olhos em Guida. Diante dele acabava de parar uma meia vitória, tirada por duas mulas possantes. O lacaio, saltando da almofada, em vez de correr a abrir a portinhola, foi tirar questão com o cocheiro de uma diligência, que impedia a vitória de chegar à boca da Rua do Ouvidor. - Psiu, olá, patrão, deu fundo aí? - O largo é bem grande, respondeu o outro empoleirado. - Não vê que é o carro do Sr. comendador Soares? Retorquiu o moleque com a insolência do lacaio de um milionário. - É melhor que os outros?... Se tem muito dinheiro, guarde-o, que passa-se muito bem sem ele. - Dobre a língua, sô atrevido, gritou o moleque pronto a saltar-lhe às bochechas. D. Paulina e a filha debalde chamavam o pajem, receando que a rezinga desse em briga; Guida porém julgou que o mais expedito era descerem ali mesmo, fazendo cessar a causa da altercação e obrigando o lacaio a acompanhá-las. Reclinou para abrir a portinhola, mas Ricardo antecipara-se: - É o Dr. Nunes, mamãe! Apearam-se as duas senhoras e receberam os cumprimentos do moço. - Ora estimei muito encontrá-lo, disse D. Paulina com sua habitual singeleza. Quero fazer um presente ao Soares; mas ele não gosta que lhe dêem coisas de luxo, que não tenham utilidade. Incomoda-se! - Acho-lhe razão! disse Ricardo por delicadeza e para mostrar interesse na conversa. - E eu não lhe acho nenhuma, acudiu Guida voltando-se: um presente é uma lembrança, e não um fornecimento de víveres, roupa ou qualquer outro necessário. Ricardo fitou a moça para conhecer-lhe pelo rosto se fora sua intenção dar-lhe uma lição de urbanidade; mas ela dobrava distraída o canto da Rua do Ouvidor, deixando sozinha a mãe. - Disse-me o Bastos que a “Notre Dame” tem camisas de homem muito bonitas. Quero ver o seu gosto. Vamos, é perto. Lembrou-se o advogado da inquirição; mas tinha meia hora e o recurso do tílburi. Condescendeu, pois, tanto mais que seria pouco delicado deixar ali só no meio da rua a mulher do banqueiro, sem a filha que desaparecera, e o pajem que ainda grazinava com o conheiro. - Com muito prazer, minha senhora, ainda que não me posso demorar muito. - É um instante! Entraram na Rua do Ouvidor, onde Guida os esperava. - Há tanto tempo que o senhor não aparece, Sr. doutor; está mal conosco? - As minhas ocupações, D. Paulina, não me permitem. - O Sr. Dr. Nunes trabalha muito, mamãe! observou Guida voltando-se. - Seu amigo gosta mais de se divertir. Como vai ele?... Ah! aqui estão as camisas. E D. Paulina mostrou a Ricardo a vidraça do “Notre Dame”, onde se viam as caixas de camisas francesas com toda a sorte de punhos e colarinhos. A casa da “Notre Dame” é uma espécie de secretaria da moda fluminense; há naquele ministério do luxo diversas seções, e diretorias, melhor regidas talvez do que a dos correios, dos telégrafos, e outras. D. Paulina e Ricardo entraram na sala da roupa branca, lingerie; e apesar da condescendência do advogado, disposto a conformar-se plenamente com a escolha de D. Paulina, para mais depressa libertar-se, um quarto de hora foi consumido no cotejo, nas indecisões, e mil rodeios, com que as senhoras costumam deliberar em conselho de estado pleno sobre a magna questão da compra de uma fita, por exemplo. Durante esse tempo, Guida na próxima repartição, a das sedas, soierie, fazia desmoronar-se, a um aceno da ponteira de seu chapelinho de sol, as rimas de caixas e pacotes, que atopetavam os armários. Tinha prazer em ver se desdobrarem assim aquelas ondas de seda e veludo; em contemplar as galas da moda, examinar as mais esplêndidas seduções do luxo, e sentir-se calma e indiferente. - Não me agrada! Esse dito desdenhoso, o repetia ela de cada vez que afeitavam-lhe diante dos olhos um corte de nobreza rutilando aos toques da luz, os nimbos da tarlatana orvalhados de pingos de cristal, ou os flocos da gaze de Chambery flutuando como nuvens d’ouro. Debalde os caixeiros excediam-se na lábia francesa, com a qual não compete nem o puff inglês, nem o humbug americano. Foi impossível excitar na moça a cobiça por qualquer das últimas novidades e fantasias da moda. - Quero comprar alguma coisa, para não dar-lhes trabalho à-toa. Nesse momento aproximaram-se D. Paulina, e Ricardo que vinha despedir-se. - Já vai? perguntou a moça com indiferença. - Se me permite!... Devo achar-me às onze horas na Relação. - Ah! O senhor já sabe? acudiu a moça pondo-se a contraluz de um rico vestido de gorgorão para ver-lhe o efeito: o visconde da Aljuba não freqüenta mais a nossa casa. Qual acha mais bonito, o azul ou o verde?... Este?... É também o meu gosto. Voltou-se para o caixeiro: - Mande-me este a Comaitá. Depois tornou a Ricardo: - Como algumas pessoas não gostavam de encontrar-se com ele... por isso lhe previno. - Eu nunca lhe dei atenção. - Ah! pensei. - É verdade, acudiu D. Paulina. O senhor há de jantar conosco Sábado. Não falte; promete? - Terei esse prazer, disse Ricardo. - Mas olhe que é segredo. - Ah! é um banquete político? - É uma conspiração, observou Guida. Saindo de “Notre Dame”, não viu Ricardo duas pessoas recostadas no guarda-vidraças de metal dourado. Eram o visconde da Aljuba e o Dr. Nogueira, que enfiando os olhos pela vidraça, acompanhavam os movimentos da Guida, fazendo a propósito algumas observações. - O farsola é capaz de lograr-nos! dizia o visconde designando Ricardo. - Já lhe tomei o pulso, respondeu o Nogueira com a peculiar jactância: está muito calouro ainda! - E a sua candidatura, como vai? É uma coisa que havia de ajudá-lo muito. - As coisas estão bem dispostas, mas sem algum dinheiro... O visconde pulou à semelhança dum martelinho de piano, quando lhe tocam na tecla: - Não creia nisso. Eleição, meu doutor, é o governo que a faz; o mais são petas. Quando ele perde, é de propósito para pregar o mono a certos sujeitos. Se o senhor tem o governo por si, deite-se a dormir, não precisa de mais nada; se não o tem perde seu tempo e seu cobre. É cuidar noutra coisa. - Não é tanto assim... Nesse momento saíra Ricardo da loja. - Chegou a sua vez, disse o visconde ao Nogueira empurrando-o amigavelmente. Vá emgambelar a rapariga. Arde, ponha para fora toda a sabença e desbanque- me o tal bonifrate! Eh!eh!... E trinando o seu riso em falsete, o Aljuba lá se foi a trote miudinho, rua acima, para o escritório. Entretanto cismava Ricardo no segredo do jantar para que fora convidado; e dois dias depois, na manhã de sábado, ainda ocupava-se com esse capricho de senhoras, muito inclinado a abster-se do convite, apesar de o haver aceitado por delicadeza. Achou porém em seu espírito boas razões, que o dispuseram; e às quatro horas da tarde apeava-se do tílburi no palacete de Botafogo. A reunião era mais numerosa que de costume. Além dos infalíveis, notava-se grande número de capitalistas e negociantes, a creme da praça. Aí estavam todos os nossos conhecidos, menos o visconde da Aljuba. Havia na sala a atmosfera moral que se forma pela expectativa e curiosidade do desconhecido. Os amigos encontrando-se inquiriam da novidade e perdiam-se em conjeturas acerca da reserva com que se tinham feito os convites, do segredo recomendado, e da surpresa que sem dúvida estava preparada para o banquete. Sintoma bem significativo da importância dessa reunião, que sob a aparência de festa ocultava talvez um acontecimento, era a presença de D. Leonarda Torres, a avó materna de Guida, ou a “avozinha” como a chamava a menina. A mãe de D. Paulina, velha de sessenta anos, nunca aparecia na sociedade; o defeito de uma perna proveniente de reumatismo gotoso, e o gênio a retinham constantemente em casa. Nesse dia, Guida conseguira arrancá-la de seu retiro para fazê-la assistir à festa. E o que não obteria a gentil menina da velha, que morria-se de amores por ela? À chegada de Ricardo, Guida o levou para junto da velha, sentada à parte em uma cadeira de roldanas: - Avozinha, aqui lhe trago uma pessoa para conversar. É o Dr. Nunes. - É médico? perguntou a velha. - Não, respondeu Guida sorrindo-se por adivinhar o pensamento da avó, que era falar de seus achaques. Mas é filho de São Paulo. - Está bom! - Fale-lhe de sua terra! disse Guida voltando-se para Ricardo. Ela passou lá muitos anos, quando menina; e ainda tem saudades. - Ah! morou em São Paulo algum tempo? disse Ricardo. Na capital mesmo? - No Brás. Não conheces a casa de D. Belmira de Leme Torres? - Muito; minha família e a sua visitam-se. - Pois estimo bem. É minha prima. - Agora, disse Guida alisando os cabelos brancos da velha, não se há de aborrecer mais. Tem quem a distraia; não é assim? E deixou os dois em conversa. De todas as pessoas na sala nenhuma estava tão desnorteada, como ficou o Soares que ao voltar do escritório para o jantar caseiro e o repouso da sesta, encontrou o palacete em festa, cheio de amigos com que decerto não contava achar-se naquele dia. - Que história é esta? perguntou o banqueiro que tudo levava em ar de brincadeira. Querem ver que o Aljuba espalhou que eu ia pôr-me ao fresco, e vocês pelo seguro vieram cercar-me a casa? Finórios!... Também tu, conselheiro! Vieste agarrar o teu velho camarada! - Que dizes?... Não vão bem os teus negócios? acudiu o Barros amornando a sua fria e pachorrenta gravidade. Bem sabes que até onde eu puder!... Soares abraçou-o com efusão, mas logo afogou esse impulso na perene galhofa: - Estás sonhando, meu velho! Nunca me correram tanto à feição os negócios, como depois que o farsola do visconde me anda a agourar. Tu sabes, praga de urubu... Mas deveras que vieram vocês a fazer? Quem os chamou cá? - É boa! Pois não nos convidaste para jantar! - Eu! Vocês querem divertir-se. - Foi o recado que recebemos. - Hum!... Não passa de invenções da senhora minha filha! Não resta dúvida! O banqueiro levou o dedo à boca: - Esperem que vou tenteá-la. Nisto apareceu Guida: - Sim senhor, papai, muito bonito! convida a cidade do Rio de Janeiro em peso para jantar, sem prevenir a mamãe, nem dizer a pessoa alguma! Pois isto se faz? - Henh! estão vendo, vocês! disse o Soares disparando a rir. - Ora não disfarce, papai. Todos estes senhores receberam seu convite, e com a recomendação de guardar segredo! - É verdade? - Então!... Mamãe e eu íamos sair, quando começam a chegar convidados. Os senhores hão de ter paciência e desculpar. Um banquete não é um discurso, que se improvisa. - É pena que não se possa mudar de sexo, Guida. Tu serias o primeiro banqueiro do Rio de Janeiro. - Esse lugar já está tomado, papai. - O jantar!... gritou o Daniel na porta. - Brejeira! murmurou Soares fazendo cócegas nas faces de Guida. Guida acompanhou o pai até o portão, onde o esperava o carro para levá-lo ao escritório. Pelo caminho folgavam os dois como camaradas de colégio ao sair da aula em véspera de feriado. Ficando só, a moça foi esconder-se a um recanto do jardim, em um nicho de trepadeiras; e aí ficou cismando cerca de uma hora. A mágoa que disfarçara em presença do pai, derramava-lhe agora no lindo semblante uma doce tinta de melancolia. À tarde Guida lembrou-se de ir ver a avó no Andaraí. Aí vivia D. Leonarda retirada na chácara, onde nascera, no meio de uma récua de crioulas e um bando de moleques de todos os topes e de todas as cores. Aquela criação pululava e crescia à manga lassa, como bezerros do sertão sem freio e sem educação. D. Leonarda, desde que a serviam nos poucos misteres para os quais bastava uma criada diligente, deixava a troça das mucamas na mais completa liberdade, até nove horas, em que punha-as todas, mães e avós de filhos, debaixo de chave, como donzelas recatadas; e nessa conta tinha-as a todas, crendo realmente enjeitados pelas vizinhanças os moleques que lhe enchiam a casa. Além da sua perna e das contas do seu procurador, D. Leonarda não se ocupava doutra coisa senão dos moleques, de coser para eles, distribuir-lhes um vintém para cocada, e ensinar-lhes a rezar. Quando o carro de Guida parou na frente da chácara, correu ao portão o enxame de moleques e a troça das mucamas, gritando e saltando para festejar a chegada da menina. Era sempre assim. A entrada de Guida na casa da avó produzia o mesmo efeito que um sol de abril rompendo a bruma depois de uma manhã de chuva, ou para empregar imagem menos rústica e poética, o de uma música de batalhão passando em rua escura e retirada. O rancho das raparigas e moleques corria ao portão. D. Leonarda, a coxear, arrastava-se com o arrimo de uma bengala até a porta, onde acabava de aparecer. Não se pinta a expressão de júbilo que afogava o semblante da velhinha, com as alvíssaras da chegada de Guida. Para a velha, aquela criança era todo o amor, como toda a alegria; ou antes, a criança era ela, que se deixava acalentar pelas carícias e meiguices da neta; e bebia-lhe nos lábios mimosos o doce riso que ainda iluminava-lhe as faces pálidas, e o prazer que lhe orvalhava as tristezas e achaques de velhice. Subiu Guida ligeiramente os degraus da escada de pedra e apertou nos braços a avó, beijando-lhe os cabelos brancos e amimando-a com a graça que espargia-se em seu menor gesto, mas com uma ternura, que mui rara transpirava, como perfume de flor cerrada, a qual só rescende na soledade. Entretando Mrs. Trowshy, ao descer do carro, como de costume tapou os ouvidos com as mãos para tornar-se impenetrável à algazarra da molecada, e soltando um esplêndido brrrrrr da genuína escola inglesa, foi acabá-lo numa cadeira de balanço da saleta, onde arreou-se como uma bala de algodão no bojo dum saveiro. - Há que tempo, ingrata! disse a velha. - Oh! avozinha! Não tinha com quem vir! Mrs. Trowshy andava com os seus faniquitos. Depois de ter acarinhado a seu gosto a avozinha, Guida levou-a na sua cadeira de roldanas para o vão de janela que abria sobre o jardim, e aí de joelhos sobre a ponta do banquinho, o busto reclinado ao braço da poltrona, começou a falar baixinho ao ouvido da velha com extrema vivacidade. Dir-se-ia que receava encontrar-se com suas próprias palavras, pois as despedia mui depressa, e às escondidas. Algumas vezes parava para observar a fisionomia de D. Leonarda, onde através do embevecimento que lhe causava a voz querida, espontava uma leve surpresa. - Como há de ser? perguntou a velha uma vez. - Escute, respondeu Guida. E tomando entre as mãos a cabeça da velha com um gesto gracioso, conchegou-a a seus lábios, no intento de tornar ainda mais íntima e reservada essa confidência, que se não roseava-lhe a face nívea imaculada, alvoroçava-lhe os espíritos, a arder nos olhos e a arfar no seio. - Pois sim! disse a velha dando-lhe um beijo. Arranja tudo. Guida chamou um pajem: - Vá à casa do Sr. Benício, sabe? - É o procurador de sinhá velha? - Esse mesmo. Dize-lhe que venha falar com a avozinha amanhã à noite sem falta. - Sim, nhanhã Guida. - Então vens amanhã? Perguntou a velha contente. - Por força! XXVI Meio dia. Abrasa o sol a rechã onde se desdobra o bairro do Andaraí, precintado por um cordão de montanhas que lhe interceptam a passagem das brisas do largo. É um desses dias de verão, que chofram de repente no meio de frias temporadas como vedetas ou postos avançados do estio a explorar as névoas do inverno, e fazer experiências no barômetro dos calos e reumatismos dos velhos fluminenes. Um tílburi pára no portão da chácara de D. Leonarda; e dele apeia-se um mancebo trajado com a severa elegância, que revela o espírito superior, irisado pelo prisma brilhante da imaginação, mas contido pelo recato da dignidade. No fim do curto passeio de murtas apareceu um negrinho que dobrava o outão de casa; logo após outro pirralho, e outro, até que formou-se uma pinha dos tais diabretes. O mancebo caminhou a eles para confiar a um o seu cartão de visita; mas não tinha dado três passos, que a alcatéia alvoriçou, dispersando-se pelo terreiro afora e escondendo-se por trás da casa. Abrira-se porém a porta de entrada, e apareceu no patamar uma mucama: - O senhor é S. doutor Ricardo? - Ricardo Nunes, confirmou o advogado. - Pode entrar. Acha-se o mancebo na sala de visitas, extensa peça, embora um tanto estreita, com cinco janelas rasgadas sobre o jardim, cujas ramadas lhe cobriam as portadas de verdes sanefas, por onde envolta com a fragrância do jasmim coava-se a luz, peneirada no crivo das folhas e roseada pelo reflexo dos lilases. Esta sombra luminosa, como a chamara Mílton, derramava no aposento uma tinta de serena e doce quietude, que repassava a alma de um indefinível enlevo, especialmente ao surdir-se das torrentes de um sol tropical. Sentou-se o mancebo à espera, com alguma curiosidade de conhecer ao justo o fim de sua vinda ali. Dois dias antes lhe aparecera no escritório o obsequioso Sr. Benício; depois dos usuais oferecimentos, sacara do bolso as três clássicas e enormes carteiras, colocara-as diante de si em cima da mesa, esvaziara dois dos profundíssimos bolsos, tornara a atopetá-los baldeando a carga da direita para a esquerda, e afinal depois de toda essa pesquisa como não a faria melhor a polícia aduaneira, desenterrou das cavernas de uma algibeira uma nota de que deu leitura ao advogado: - “Dr. Ricardo de Melo Nunes, advogado. Escritório, rua do Rosário, 27.” É isto? - Deve ser! respondeu Ricardo a rir, senão o senhor cá não chegaria. - Eu cá trago estas coisas em ordem, tornou o amanuense; e acabou de ler a nota. –“Negócio de D. Leonarda.” Depois dessa formalidade explicou Benício ao mancebo que a sogra do Soares o incumbira de pedir-lhe o favor de achar-se em sua casa terça-feira ao meio-dia em ponto, para na qualidade de advogado aconselhá-la em negócio importante e até mesmo arranjar certos papéis necessários. Assegurou Ricardo que as ordens de D. Leonarda seriam cumpridas; e ali estava exato no dia e hora que lhe fora designado. Viera o mancebo com certa emoção incompreensível, que ainda naquele momento não pudera dominar ao todo, e menos assinar-lhe a causa. Atribuía à curiosidade. Que lhe queria a senhora? Teria ele de penetrar nos segredos de sua vida? Pretendia a velha incumbi-lo de redigir seu testamento? Ia ele tornar-se o confidente de alguma dessas dissensões intestinas que às vezes lavram no seio das famílias? Abriu-se a porta; e Guida apareceu em companhia de Mrs. Trowshy. A moça trajava nesse dia com extrema simplicidade. Estava toda de branco, e a alvura de suas vestes de cambraia sob a nívea cútis dava-lhe a serena transparência da luz mate. Sua bela estátua parecia flutuar nesse éter diáfano onde brilhavam com vivo fulgor os olhos negros e as tranças opulentas de seus cabelos. O lábio talvez pálido em outro semblante menos puro, no seu era folha de rosa nadando em leite; e por ele perpassava um sorriso merencório como deve ser a pétala aveludada da flor quando se despede da luz, de que embebia-se. Ao vê-la entrar na sala como uma doce visão de manhã de abril, Ricardo, imaginação de artista, com o culto da forma e o entusiasmo do belo, não pôde conter os raptos de seu espírito; e esteve por alguns momentos no enlevo da admiração. - Está cansado de esperar? disse Guida saudando o advogado. Feitos os cumprimentos, Mrs. Trowshy foi sentar-se na outra parte da sala, no vão duma janela, com um volume de Dickens. Os dois moços ficaram onde estavam, Guida no sofá, e Ricardo na cadeira do lado. - Minha avó está arranjando sua papelada. Talvez se demore, e por isso incumbiu-me de uma coisa bem difícil; distrair-lhe a impaciência. - A senhora dispensa o cumprimento? perguntou Ricardo gracejando. - Decerto; cumprimentos a esta hora entre o advogado e seu cliente... Porque eu estou aqui representando minha avó. Não é verdade? - Assim o entendo; e eu não seria advogado se não houvera aprendido a fundo a paciência; além de que, não tenho pressa. Consagrei o dia de hoje à Srª. D. Leonarda. - Então não lhe incomoda esperar? - De modo algum; antes me dá o prazer... - Ai! ai !... que lá se vai o advogado. - É verdade! - Estimo bem que não estivesse aflito por ir-se, porque minha avó é muito vagarosa, coitada, tão doente; e eu não sabia como fazer-lhe passar desapercebido esse tempo. O piano... Se ainda tivesse cordas, podia tocar-lhe o Capenga não forma. Mrs. Trowshy quando se agarra com seu romance, ninguém conte com ela. Então Dickens! - É o seu autor favorito? Acenou a moça que sim. Não estava Guida, essa manhã, no seu natural, que era uma doce jovialidade, salpicada às vezes de ironia, e outras de meiga afabilidade. Em seu vulto perpassava, como na face cristalina de um lago, as mutações do pensamento. Ao entrar tinha ela a atitude séria e concentrada, porém ao mesmo tempo decidida e serena, de quem atravessa um momento difícil da vida, mas arrima-se, para transpô-lo, a uma resolução inabalável. A conversa tirou-a dessa reserva, sem contudo dissipar-lhe de todo na fronte a sombra da preocupação. Buscou reassumir o seu gentil e gárgulo sorriso, mas a harmonia e a graça dessa mimosa expressão ressentia-se de uma ligeira crispação. As fibras nervinas desse delicado organismo, alguma forte comoção as tinha percutido. Agora, em meio de um gracejo, deixava-se colher por súbita distração, como se o pensamento, transformado em uma borboleta, lhe fugisse pela janela a farfalhar entre as flores do jardim; mas, a ser assim, depressa achara a idéia que buscava, pois tornou logo à conversa. - Dickens?... É o autor de sua paixão, disse afinal confirmando o aceno, e com uma ligeira confusão. Delicadamente Ricardo fingia observar Mrs. Trowshy, para não se mostrar apercebido do enleio da moça. - Gosta dos romances ingleses? perguntou Guida. - Poucos tenho lido. A literatura francesa nos invadiu; e por algum tempo foi nosso único fornecedor de idéias. Das outras apenas conhecíamos as obras-primas, os grandes poetas. Ultimamente já entramos em comércio com outras literaturas; mas a mim falta-me o tempo e o gosto. - Alguns acham os romances ingleses muito insípidos. - É natural. Somos uma raça tão diversa! Eles hão de achar os nossos extravagantes. - Oh! quanto à extravagância, quero contar-lhe o desfecho de um que li há tempos; creio que é de... Não me lembro! disse Guida com certo assomo nervoso. Fitou a moça os olhos nas grinaldas que pendiam da janela, acompanhando o volutear de um colibri que chupava o mel das flores. Deste modo não se podia cruzar o seu olhar com o do advogado. - O título... não me lembro. Era uma moça, filha de um banqueiro muito rico. Quanto à descrição, imagine o senhor, que sabe desenhar: o romancista a dá como bonitinha; não era nenhum primor; bem longe disso. - Aí está-se revelando a escola inglesa, observou Ricardo. Riu-se Guida maliciosamente da observação do moço, e continuou: - O pai tinha declarado à filha quando ela tornou-se moça, que a não constrangeria, mas ao contrário lhe deixava plena liberdade para escolher um marido; contanto que chegando aos dezoito anos se casasse. Também é inglês, não lhe parece? - Genuíno. - Vai ver o resto. Chegou a moça aos dezoito anos; e completou os dezenove. O pai exige o cumprimento da promessa. - E ela casa-se! exclamou Ricardo com vivacidade, levado por estranho impulso. Retraiu-se porém o moço e desfolhou dos lábios um irônico sorriso. Guida, que deixara suspensa um instante a exclamação do moço, continuou galanteando: - O senhor quer precipitar o desenlace. Não seja tão sôfrego. Ouça; temos muito tempo. Avozinha não vem tão cedo. Guida parecia recobrar sua habitual isenção a garridice: - O pai exigiu o casamento; mas a moça não tinha escolhido. -Ah! - E não só não tinha, como não podia escolher. A ninguém amava; não conhecia um homem por quem sentisse as doces emoções, os estremecimentos, que fazem a felicidade conjugal. Donde provinha isto, não sabia explicar o romancista, e menos eu. Não teria coração essa moça, ou se lhe havia cegado? Era isso feito da educação, ou da sociedade em que vivia, cercada de galanteios ridículos, de cálculos vis, e de grosseiras afeições? Pode ser que sucedesse à alma da moça o mesmo que a um botão de cacto, quando há tempestade: choca e não abre em flor. Pode ser! - Mais tarde. Quem sabe! disse Ricardo sorrindo. - É a minha... Atalhou-se Guida em cujas faces espontava um vislumbre de púrpura. Ricardo olhava-a com emoção. - “É minha esperança”, repetiu Guida pausadamente. Assim disse a moça, uma vez que lhe acudiu esse mesmo pensamento. Mas os dezoito anos eram passados; fugia o tempo, e seu pai que a amava extremosamente, afligia-se com a idéia de a deixar só no mundo à mercê da especulação. Reconheceu a moça que era forçoso o sacrifício; e não hesitou em jogar seu destino ao azar, para sossego de quem morria-se por ela. Escolheu. Ricardo recolheu-se todo em si como se tivesse de assistir a uma importante revelação. - Não careceu escolher, continuou Guida. Conhecia o moço, que fora algumas vezes à sua casa; tinha plena confiança em seu caráter e na sua educação. Era um homem probo e delicado. Podia confiar-lhe o seu destino. A primeira vez que o encontrou, confessou-lhe tudo; disse-lhe que, se não lhe tinha afeição, ou nunca a teria por ninguém, ou só ele a podia inspirar. Guida que falava sôfrega, moderou-se. - “Se pois não lhe repugna aceitar a mão de uma mulher nestas condições, e pensa que ela vale a pena de arriscar a sua independência, o senhor me salva da maior humilhação”. Eis o que ela disse, concluiu Guida. Os olhares dos dois moços se encontraram e fugiram-se. - Não considera extravagante este procedimento? disse Guida rindo, para disfarçar a emoção. - Está fora do comum; é novo, excepcional, como as circunstâncias que o determinaram; mas não há nele que repreender. Admiro a energia e espírito dessa moça, que em tão difícil conjuntura de sua vida, não sucumbiu à debilidade de seu sexo e teve coragem para decidir ela mesma e deliberadamente de sua sorte. Surpreende-me esta iniciativa, que atribuo à educação; e ainda assim parece difícil de vê-la produzir-se na vida real. - Pois há de ver, disse Guida meia voz. - Como? - Mas o senhor que aprova o procedimento da moça, no caso de ser a pessoa por ela escolhida, o que responderia? - Eu não podia ser essa pessoa, disse gravemente Ricardo. - Por quê? perguntou Guida com afã. - O homem a quem essa moça se dirigiu estava livre; podia dispor de seu coração e de sua vida! - Ah! Descaiu-lhe, à Guida, a fronte abatida, Ricardo olhou-a um instante com uma ternura melancólica. Depois, reclinando para não arrancá-la à sua posição, fez-lhe a confidência de sua vida em breves palavras: - É uma afeição de infância. Brincamos juntos, e aprendemos a amar-nos. Esperava formar-me, mas tendo falecido meu pai, fiquei único arrimo de uma família pobre e endividada. Meu tio, o pai de Bela, adiou o nosso casamento, apelando para minha honra. Que futuro reservava eu para sua filha, pobre também? Parti para a corte; vim pedir ao trabalho os recursos indispensáveis para desempenhar a velha casa onde mora minha mãe, e que é nosso único patrimônio. - E é preciso muito dinheiro? perguntou Guida com interesse. Quanto? - Acanho-me de falar-lhe dessas particularidades. - Não adquiri esse direito fazendo-lhe minha confidência? tornou a moça com meiga exprobração. - Tem razão. E Ricardo completou a breve história de sua vida; e contou-lhe, como o faria à sua mãe, as ânsias dos seis longos meses passados no Rio de Janeiro, os desânimos que tantas vezes dele se apoderavam; até lhe escaparam as mágoas causadas pela volubilidade de Fábio, e os receios epla ventura de Luísa, sacrificada com tamanha ingratidão. - Avozinha está-se demorando. Com licença, vou saber a causa, disse Guida. Ficando só na sala, pois Mrs. Trowshy continuava ausente, na Inglaterra onde se passa a ação do romance que lia, buscou Ricardo compenetrar-se da realidade dos fatos em que tomara parte, e não pôde. Seu espírito, ainda atônito pela estranheza do episódio em que se envolvera imprevistamente sua existência, não recobrara a reflexão; tudo quanto podia no meio da surpresa, era recordar-se. A espera foi breve. D. Leonarda veio finalmente à sala, acompanhada por Guida. - Aqui tem os papéis, senhor doutor, disse a velha depois dos cumprimentos usuais, e volvendo a miúdo os olhos para Guida. Quero que examine bem para ver quem tem direito, porque não desejo questões, sobretudo com vizinhos. - É então uma questão de limites? Perguntou o advogado. - Não sei... É isso mesmo, respondeu a velha corrigindo-se ao aceno da menina. - O senhor me permite? Eu lhe explico. O vizinho da esquerda pretende apoderar-se de um pedaço de terreno, que foi sempre de minha avó. O senhor doutor leva os papéis, para examiná-los; depois dará sua opinião. Não é melhor, avozinha? - Eu acho que é! disse a velha batendo com a cabeça. Na ocasião de se despedirem disse Guida ao advogado, em cujo semblante não se apagara a tinta de melancolia que derramara a cena anterior: - Não se aflija. O romance que eu lhe contei, acaba alegre. E para confirmar o dito, o seu lindo semblante banhou-se em um riso feiticeiro. XXVII Logo depois que Ricardo saiu, mandou Guida prepara o carro para voltar à sua casa. - Então está decidido? perguntou a velha ao ouvido da menina. - Ainda não, avozinha. Ficou para outro dia. - Ora! fez a velha com um gesto displicente. No carro Mrs. Trowshy, que também era curiosa, indagou nestes termos do êxito da conferência a que assistira de parte. - Que disse o advogado? Ganha o processo? - Está perdido, respondeu Guida a rir. - Não é possível. - Completamente. - Oh! que pena! Chegando a Botafogo, às três e meia, esperou Guida na saleta que seu pai voltasse do escritório, para receber o beijo que lhe costumava dar na face, em retribuição das festas e carinhos com que era acolhido. - Que milagre; está-me nascendo uma rosa entre meus jasmins! Exclamou o Soares reparando no vislumbre de púrpura que roseava a face da moça. - Há de ser do calor; cheguei do Andaraí. - Ah! e como vai a avozinha? - Na mesma. Subiu o Soares ao sobrado brincando com a filha, que ria-se das pilhérias do pai, e tornava-lhe os folguedos e as meiguices com o mesmo contentamento. No topo da escada separaram-se. Foi ao entrar no seu toucador, que o esto d’alma rompeu, como a onda por muito tempo comprimida. A moça levou as mãos ao seio que arfava a estalar na ânsia, e caiu sobre o leito, escondendo o rosto nas fronhas de cambraia, comprimindo nas almofadas os quebros soluços. No seu desespero, espedaçou o vestido que a estringia como uma forma de bronze, e arremessou para longe de si os trapos da seda. Sobre as espáduas nuas desdobraram-se as cascatas dos opulentos cabelos negros, com que ela envolveu o colo e os seios, conchegando-se com um gesto pudico. Afinal saltaram-lhe as lágrimas ardentes dos olhos, que logo debulharam-se em pranto abundante. Foi serenando a violenta comoção, que subvertera os seios dessa alma; e Guida ergueu-se a custo, abatida pelo abalo que sofrera, mas surpresa e atônita da crise que de repente a acometera. Apoiando sobre a almofada a curva do braço mimoso, reclinou a face na mão, e ficou pensativa: - Será isso o amor? perguntou a si mesma. E entrando de novo em si, penetrando nos refolhos d’alma, sentindo vibrarem novas cordas no seu coração, e derramar-se no íntimo uma luz que nunca até aquele dia resplandecera em seus sonhos de menina e moça, Guida compreendeu que era realmente amor, essa agitação indefinível que perturbara sua vida serena e tranqüila. A alegria inefável, o júbilo que teve, não os podem conceber aqueles que nunca duvidaram de si, nem jamais em horas de desânimo se tiveram por deserdados do coração. Parecia à moça que outra vida, não essa de flor ou de passarinho que vivera, mas a da poesia e da paixão, a vida da mulher, acabava de surgir para ela naquele instante. Estas lágrimas aljofradas, que seus dedos mimosos estalavam nas faces, eram os orvalhos de uma aurora. Raiasse ela embora entre os abalos de uma tormenta, era bem-vinda; era a luz criadora, o raio celeste, que afinal luzia em sua alma. O espírito de Guida não se demorou na idéia da impossibilidade de seu amor. Que valia isso na história de sua existência, senão um pequeno acidente material? O grande acontecimento era o despertar de seu coração virgem e indiferente, era a revolução que se acabava de consumar em seu organismo, selando enfim a infância. - Para apressar o casamento de Ricardo com Bela?... Mas é inútil. - Deveras? perguntou D. Guilhermina lançando um olhar para Guida que se aproximava. - Foi uma surpresa! Ontem, quando menos esperava, recebeu Ricardo uma carta de São Paulo. Abriu; era de Bela, que lhe participava seu casamento com o Lemos, outro primo. Ouviu Guida essa notícia, ao aproximar-se; e vacilou com a emoção que abalou o seu talhe esbelto. Felizmente passava naquele momento por uma estátua de bronze representando Flora, cujo pedestal lhe serviu de apoio e também de refúgio para esconder a alteração do gesto, pois Fábio colocado do lado oposto não podia perceber-lhe o vulto. Notando o soçobro da amiga, a arfagem violenta do seio, que se expandira com o ímpeto d’alma, e a contração do rosto ao esforço da vontade a reprimir o grito que rompia do seio, D. Guilhermina voltou-se para o outro lado, o que obrigava o moço a imitá-la, desviando assim os olhos da estátua. - O que dizia a carta? perguntou a mulher do Barros. - Não devia Ter dado a notícia, disse Fábio arrependido; mas como sempre se havia de saber... - Decerto. Que mal faz? - Quanto à carta, não posso. Ricardo não me perdoaria. - Essa é a confiança que lhe mereço? disse D. Guilhermina queixosa. - Se fosse meu, não hesitaria. Mas este segredo não me pertence. - E pertencia-me a mim a afeição que lhe dei? - Direi, com uma condição. - Por negócio, dispenso. E a moça deu ao talhe uma lânguida inflexão que era o irresistível condão de sua beleza. - Pois bem, à senhora eu conto, disse o moço correndo o olhar em torno. Guida, já sobre si, tivera o cuidado de colher a cauda do vestido e ocultar-se por trás do pedestal de bronze, de modo que Fábio não se apercebeu de sua presença. - Pode falar, disse D. Guilhermina. Ninguém nos ouve. - A carta era muito curta. Bela dizia a Ricardo que, não podendo fazer sua felicidade, cedia aos desejos do pai aceitando o esposo que tinha escolhido. - E o Ricardo, como recebeu a notícia? - Tem sentido muito. Ele amava sinceramente a prima; era uma afeição de infância. - Mas há de consolar-se. - Que remédio! - Os homens esquecem depressa! - As injustiças que lhes fazem aquelas a quem adoram. - Há de ver que daqui a um mês o Ricardo amará outra. - Duvido, disse Fábio. Eu o conheço; é dessas almas concentradas, onde tudo, afeição, idéia, lembrança, cria raiz funda. É preciso tempo! - Veremos! Deixara D. Guilhermina cair essa palavra do lado da estátua, afastando-se para deixar a Guida retirar-se sem que a percebesse Fábio. Aproveitou a moça o momento, e deu uma volta para encontrar-se mais longe com os dois. Ao tomar pela alameda que prolonga-se com o gradil, viu uma pessoa que entrava o portão e que dirigindo-se à escada de mármore, parou de repente em meio caminho. Reconheceu Ricardo, e notou sua perturbação; no gesto e olhar traía-se a perplexidade do espírito. Após breve luta, voltou ele sobre os passos; e saindo novamente o portão, afastou-se apressado para o lado de São Clemente. Teve Guida ímpetos de chamá-lo; mas faltou-lhe o ânimo. Já não possuía a sua antiga isenção. Chegaram D. Guilhermina com Fábio: - Sabe quem passou por aqui? disse Guida com uma voz que apesar do esforço tremia: seu amigo. - Ricardo? Acenou Guida que sim, fitando um olhar fagueiro em D. Guilhermina. - Por que não vai chamá-lo? disse a mulher do conselheiro a Fábio. Se ele soubesse que o senhor estava aqui, com certeza entrava. - Maçado como anda? - É bom que se distraia, disse a senhora, e voltou-se para Guida: - O Dr. Nunes teve um desgosto. - Ah! - Mas não quer que se saiba, acudiu Fábio. - Esteja descansado, que ninguém vai tocar-lhe nisso. Não se demore. - De que lado tomou? - Seguiu para São Clemente, respondeu Guida. Fábio saiu naquela direção. A pequena distância encontrou o amigo, que naturalmente já vinha de volta, pois não tardou que as duas moças, através da folhagem, os avistassem a ambos, passando em frente ao gradil. Em um irresistível assomo de júbilo, Guida abraçou a D. Guilhermina, que retribuiu-lhe afetuosamente a carícia, murmurando: - Você pode ser feliz! Sentiu Guida o egoísmo de sua alegria, e apagou com um beijo o sorriso triste que abrira nos lábios da amiga. XXIX Na linda várzea do Brás, onde se desdobra um dos mais pitorescos arrabaldes da capital de São Paulo, há uma chácara extensa, cujos terrenos bordam a margem esquerda da estrada de ferro. A casa é grande, abarracada, ao gosto paulista, e bem antiga. Cercam-na vastas hortas e largos tabuleiros de flores. No mesmo dia em que Ricardo recusava a mão de Guida, por volta de seis horas da tarde estavam reunidas várias pessoas na varanda daquela casa, em volta da mesa de jantar, onde acabavam de colocar dois castiçais com velas de estearina. A senhora idosa, de agradável parecer e porte refeito, que sentava-se à cabeceira da mesa, era a mãe de Ricardo, D. Benvinda. Com as mãos cruzadas ao peito, no trepasse do lenço vermelho que trazia aos ombros, escutava com religiosa atenção a leitura de uma carta. A seu lado estava uma linda moça, tipo dessa beleza plástica e serena, que distingue as paulistas, e à qual só falta um nada da petulância que têm as fluminenses às vezes em demasia. Era bela, essa moça; e ao vê-la no repouso de sua formosura correta e imaculada, compreendia-se o culto de Ricardo que tinha em alto grau o sentimento artístico. A Bela seguia-se Luisinha, e depois os irmãos e irmãs. Era a fisionomia de Ricardo, reproduzida sete vezes, em traços mais indecisos; neste perfil, com a suavidade do contorno feminino; naquele, com a alacridade da travessura infantil. E dias de chegada de paquete, como esse, Bela que morava perto da matriz, vinha passar a tarde com a tia, para receber notícias da corte, e ouvir as longas cartas que Ricardo escrevia com recados para todos, especialmente para ela. Acabava Juca, um dos filhos de D. Benvinda, de chegar do correio, trazendo duas cartas, uma delas bastante volumosa e portulada com um batalhão de estampilhas. Pelo sobrescrito conheceu logo a velha que a do filho era a mais pequena. Abriu-a, e disse com um suspiro ao passá-la à Luisinha para ler: - Tão curta! - É mesmo! repetiu Luisinha com a doce voz arrastada. Ele sempre escreve tanto! A carta continha apenas estas palavras: “Minha boa e querida mãe. De prevenção e à pressa lhe envio estas linhas. Estou ocupado com um trabalho importante, que devo concluir até amanhã; e receio me roube o tempo que eu destino para conversar com aquelas a quem amo. Mas trabalhando, não tenho eu sempre vivas em minha alma, para dar-lhe coragem, a sua imagem, minha querida mãe, a de Bela, de Luisinha, de todos aqueles por cuja felicidade eu rogo a Deus todos os dias? Abençoe-me, querida mãe; e dê a Bela o santo beijo que eu de longe não posso receber. Seu filho Ricardo de agosto de 1871.” Quando Luisinha terminou a leitura da breve carta duas lágrimas rolavam pelas faces de D. Benvinda, que parecia absorvida na imagem do filho ausente. Bela se erguera, e enxugando com o lenço de cambraia as faces da velha, dobrou os joelhos para receber na fronte o beijo de Ricardo, ungido pela bênção materna. Entretanto Luisinha voltava de todos os lados a carta volumosa, em cujo sobrescrito reconhecera admirada a letra de Fábio, o qual raras vezes escrevia e sempre de afogadilho, por desencargo de consciência. - E esta é de Fábio? perguntou D. Benvinda. - Não sei, respondeu Luisinha vermelha como lacre. Creio que é. - Basta ver a letra, disse Bela. - Desta vez desforrou-se! observou D. Benvinda contando as laudas da carta que tinha aberto. Toma, Luisinha; vamos ver o palavreado do rapaz. Já estou-me rindo! - Leia você, Bela, murmurou Luisinha com as faces a arderem. Era o costume. As duas noivas trocavam a vez nessa leitura. A carta de Fábio era uma garrulice de estróina, mas não destituída de chiste e boas lembranças. Suprimidos os nomes próprios, e metida em meia dúzia de colunas, aquela prosa caseira e do cote, podia bem gozar das honras do folhetim, e não teria que invejar aos mais asseados e domingueiros que aí aparecem. Ao escrever essa carta passava o noivo de Luisinha por um desses momentos de plenitude moral, em que o espírito, como o coração, transbordam, e carecem de vazar a afluência de vida. Durante seis meses fartara-se de prazeres, divertira-se a não poder mais, gozara do mundo, era amado por uma mulher bonita e do grande tom. Estava cheio. Retido em casa à espera de uma resposta que devia trazer-lhe dinheiro, o moço lembrou-se, para disfarçar a impaciência, de escrever à sua futura sogra, e começou neste belo teor: “Minha futura mãe e respeitável senhora. Há tempos recebi uma carta sua em que me perguntava como ia na advocacia. Deixei passar alguns meses, antes de responder, para dar-lhe uma informação mais segura. Agora posso dizer-lhe tudo que há a tal respeito e não é muito. O nosso Ricardo está com um escritório já bastante acreditado; tem clientes magníficos; e vai ganhando sofrivelmente. Eu só apareço lá, de longe em longe, para não espantar a caça; mas vou-lhe mandando as causas que posso. Sou um jornal vivo; mas jornal de sala, que é mais aristocrático, e mais barato.” Neste gosto continuava a carta, que Bela ia lendo no meio das risadas de D. Benvinda e dos muxoxos de Luisinha. Chegou, porém, um ponto, em que redobrara a atenção das três senhoras: “A Bela deve estar orgulhosa do noivo que tem. Se ela soubesse até que ponto Ricardo a ama!... Ele, estou certo que nada lhe dirá; mas eu é que não sou caixeta de segredos; e este me está fazendo cócegas. Aí vai, no ouvido, de cochicho, que não o ouça uma certa sonsinha, cujo pecado é a curiosidade.” - Isto é com Luisinha! Disse D. Benvinda. - É o que ele sabe me dizer. Imagine-se a curiosidade com que foi ouvido o trecho seguinte, que leu Bela com a voz palpitante de emoção: “Há aqui na corte uma moça, que é a rainha da moda; chama-se Guida; é filha de um homem que não sabe quanto possui; tem dezenove anos e muito espírito; a respeito de beleza e elegância, não se fala; é o tipo: ninguém a excede. Imagine quantos sujeitinhos andam-lhe arrastando a asa, apaixonados ao mesmo tempo pelos olhos pretos e os milhões amarelos dessa peregrina formosura. Todo o alto coturno comercial, político, literário, inscreveu-se neste concurso; e cada um espera que lhe toque o anel. Mas ela não faz caso de nenhum destes pretendentes; e o seu fraco é por um certo advogado paulista, que nem dá fé das provocações, tão voltado anda para essas bandas da ínclita Paulicéia, onde lhe ficaram os olhos e o coração. Bastava-lhe querer para em pouco tempo estar senhor de uma riqueza colossal e marido da mais bonita moça do Brasil, já se sabe, depois das duas que não é preciso mencionar. Mas ele sacrifica tudo à constância.” - É bem meu filho! Interrompeu D. Benvinda com assomo de orgulho materno. “ É verdade que não é ele o único; pois também outra pessoa tem sofrido sem pestanejar o fogo rolante dos mais feiticeiros olhos do Rio de Janeiro; mas, etc., etc., o resto pelo seguinte vapor.” Terminada a leitura, quanto Luisinha e a mãe se inclinaram para acariciar Bela e regozijar-se com ela por mais essa prova do profundo amor de Ricardo, viram, ao retirar-lhe o papel ainda aberto diante dos olhos, que tinha o rosto banhado de lágrimas. - Está chorando, Bela! exclamou Luisinha. - É de felicidade, menina; também eu tenho os olhos cheios d’água, disse D. Benvinda. Desde criança, de envolta ainda com os brincos da infância, começara Bela a amar Ricardo, com a efusão de uma alma que se entrega sem reservas de todo e para sempre. Estava em sua natureza querer com esse abandono de si mesma, sem pedir nem esperar retribuição. Quando Ricardo formou-se, não lhe permitindo as apertadas circunstâncias da família realizar desde logo seu casamento, Bela resignou-se a esperar, com plácida confiança, e possuída da inalterável convicção de fazer a felicidade daquele que a amava. Freqüentes vezes insistiu seu pai em convencê-la da necessidade de casar-se com o Felício Lemos, outro primo seu, também formado, que desde a infância a disputava a Ricardo, mas preterido sempre. Aos reiterados pedidos opunha a moça uma repulsa doce, magoada, quase súplica, mas inflexível. Ela julgava-se um bem de Ricardo; acreditava que deus a reservara para fazer a ventura desse coração, que ela admirava. Não discutia pois, não se defendia; refugiava-se em seu amor. Ao ler a carta de Fábio, no meio do espanto que produzia-lhe o tom leviano do estouvado a profanar as coisas mais santas, pela primeira vez uma dúvida cruel traspassou-lhe a alma. “Não era ela a única mulher do mundo que podia fazer a felicidade de Ricardo? Havia para esse homem outra ventura, outro futuro, outra existência, além que de lhe devia dar o seu amor?” Com o soçobro causado por essa primeira percussão d’alma, arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas sem que ela mesma soubesse por que chorava. Assim, quando ouviu a explicação que D. Benvinda deu a seu pranto, disse com um sorriso contrafeito: - Há de ser de alegria mesmo! Momentos depois recolhia-se Bela à sua casa e achou na sala o pai, o Dr. Lopes, em companhia de Felício Lemos. - Estávamos falando em você, Bela, disse o pai que dobrava um papel. - Meu tio! Vm. prometeu-me que não contaria a Bela, disse o Lemos com exprobração. - Mas é necessário que ela saiba, para perder a ilusão em que vive; portanto dispense-me da palavra que lhe dei. - Perdão, meu tio, eu o respeito muito, mas neste ponto não devo condescender. Bela pode suspeitar que são meios empregados para demovê-la de sua resolução. - Todos sabem que você é incapaz disso. - Embora; não quero ser portador de más novas. - Mas o que é, meu pai? perguntou Bela. Alguma notícia triste? - Eu lhe digo. Ao passo que você espera com uma constância nunca desmentida ao homem a quem prefere sem razão, o ingrato lá na corte está tratando de arranjar um casamento rico. - Ricardo? disse Bela com sublime confiança. É impossível, meu pai. O Dr. Lopes desdobrou a carta que tinha em mão e apresentou-a à filha. - Ainda duvida? pois leia, Bela! - O senhor me compromete! disse Felício com reproche, afastando-o do lado da janela. Surpresa, e cerrado o coração de pressentimentos, correu Bela os olhos pelo papel. A carta escrita ao Felício por um colega da corte, repetia os boatos da Rua do Ouvidor que davam Ricardo como pretendente assíduo da filha do banqueiro Soares e o preferido entre todos pela moça. - Então? perguntou o Dr. Lopes à filha quando esta acabou de ler. - Ricardo não falta à sua palavra, meu pai. E deitando a carta sobre a mesa, recolheu-se à alcova. - Breve se há de desenganar! exclamou o pai irritado com aquela cega confiança. Decorreu uma semana, durante a qual a alma de Bela, como um vaso de jaspe onde a custo filtra a essência, levou a embeber-se dos acontecimentos, que vieram perturbar o sereno remanso da sua vida de amor e saudades. Outra vez chegou o correio, mas nesse dia a moça não foi como de costume para a casa da tia esperar cartas; e desculpou-se com uma enxaqueca, esse grande recurso diplomático das mulheres. Por volta de “ave-maria” trouxeram-lhe da parte de D. Benvinda uma carta. De longe, apenas a viu na mão do portador, Bela adivinhou que era de Ricardo. À frouxa luz do crepúsculo, recostada à ombreira da janela, com os olhos úmidos e a alma tomada de um indefinível sobressalto, leu a moça as palavras afetuosas que lhe dirigia o noivo. “Minha querida Bela. Deus ouviu suas preces, as preces de um anjo, e abençoou os meus esforços. Breve estaremos reunidos e para sempre. Viveremos na pobreza, a que a sorte nos condena; mas não é só a opulência que tem o direito de ser feliz neste mundo; ao contrário, muitas vezes ela não acha no meio de seu luxo um instante da alegria que enche a casinha do pobre. Teremos de passar ainda por grandes provanças, minha querida Bela; não devo iludi-la. A vida é difícil para aqueles que trilham a áspera vereda, e não se deixam arrastar pelas brilhantes equipagens, que passam cobrindo-os de pó! Não me assusta a luta; conto, para dar-me coragem, com o nosso amor, que tem sido e há de ser o conforto de minha vida. Às vezes perdido neste turbilhão da corte, minha querida Bela, têm-me vindo também a mim sonhos d’ouro, castelos encantados como fazem todos que têm imaginação. A riqueza para certos indivíduos não passa de uma indigestão de dinheiro, é na mão de quem compreende um dom sublime, quase celeste, porque transmite ao homem um influxo da Providência: enxuga as lágrimas da miséria, fortalece a virtude vacilante, e anima os nobres cometimentos. Mas eu os espanco, a esses silfos tentadores, que agitam sussurrando suas asas de ouro, e me refugio nos meus sonhos de amor. Sob as tuas brancas asas, e me refugio nos meus sonhos de amor. Sob as tuas brancas asas, meu anjo da guarda, estou com Deus; e posso desafiar o mundo. Sei para sempre. Ricardo.” Soavam trindades na torre fronteira da matriz. Ajoelhou-se Bela para rezar a “ave-maria”. As andorinhas esvoaçavam pela fachada da igreja, retalhando os ares com vôos intermitentes. Já caía a noite quando duas se encontraram diante da janela, beijando-se com alegres chilidos, que assustaram a moça. Ainda Bela não tinha rezado, tão absorvida estava em seus pensamentos. XXX No dia em que Ricardo recusara a mão de Guida, espontaneamente oferecida, chegou à casa de volta de Andaraí, atordoado ainda pelo procedimento singular, como pela decisão de caráter dessa moça. Eram três horas. O jantar o esperava, e durante ele, a conversa com a dona da casa e a tagarelice das crianças o distraíram da preocupação que trazia e à qual desejava arrancar o espírito. À tarde, fumando um charuto e sentado à janela do sótão donde avistava as verdes encostas de Santa Teresa e mais longe o Corcovado, o moço deixou-se ir à discrição do pensamento que o levava para os acontecimentos daquela manhã. Não tardou o envolvesse um desses castelos encantados de que falava na carta a Bela. Imaginou-se outro homem, que não ele. Um moço pobre, de alguma inteligência, lutando corajosamente com a sorte, mas sem o vínculo de uma afeição, que o prendesse para sempre. Caminhava curvado ao peso do trabalho, quando uma voz celeste o chama. Ergue os olhos, e vê descer das nuvens a moça mais gentil, deslumbrante de beleza, cintilando graça e espírito que lhe diz: “Minha alma é virgem e pura, como o sorriso de que Deus a formou. Nunca amei; não sei que mistério é esse da criação. Ensinai-me vós a amar; acordai em mim as doces emoções dessa felicidade que eu não conheço. A linguagem dos anjos que eu falava no céu é doce; mas quero aprender em vossos lábios outra linguagem mais suave e maviosa, a que entende o coração. Eu sou a flor que nasce, cheia de fragrância, que toda guardei para derramar em vosso seio: colhei- me.” E o moço ficava enlevado a admirar a esplêndida formosura, não podendo crer que Deus houvesse formado aquela sublime criatura e a conservasse imaculada no regaço do céu, para enviá-la de repente a ele, como um anjo, que o inundasse de felicidade. Mas interrompendo um instante o afã, ajoelhava para admirar a peregrina imagem. - Não vale a pena. Uma afeição de infância, que lutou anos contra a adversidade para ser traída e ludibriada no momento em que lhe sorria a esperança! Quem dá valor a estas futilidades do coração? concluiu o mancebo em tom amargo. - Compreendo quanto deve doer a perda de uma ilusão, observou a moça. - Não é a perda de uma ilusão, mas a ruína de minha vida inteira. O coração está morto; é uma terra sáfara onde não brotará nunca mais a flor de uma afeição. E é esta a maior felicidade que Deus me pode conceder ainda neste mundo! Volveu Guida um olhar tímido e queixoso. - Por quê? - Amar outra vez? Seria martírio incessante. Não me animaria jamais a oferecer àquela a quem eu amasse os destroços de uma vida despedaçada pela traição, os bocejos de uma alma devorada pela dúvida. Oh! não! Se isso acontecesse por minha desgraça, eu havia de adorá-la em silêncio, no mais recôndito de minha consciência, quando não conseguisse arrancar do coração esse espinho doloroso. Com a fronte inclinada e o seio palpitante, escutava Guida as palavras de Ricardo, que as proferia com o olhar vago, receando pousá-lo no semblante da moça. Timidamente observou: - Não conheço os mistérios do coração. Mas penso que não pode haver maior júbilo do que seja esse de reviver um coração morto, de apagar um passado triste, e criar para aquele a quem se... estima, uma nova existência! - Quantos encontraram no mundo um anjo como esse? perguntou Ricardo. Guida não respondeu. - Quando recebi a carta, que deu o golpe à minha vida, a princípio não pude entender. Pensei estar louco. Li e reli; aquilo excedia minha compreensão. Enfim a certeza penetrou-me como um raio, e senti-me como arremessado do alto de um rochedo, que me dilacerara a alma. Reneguei tudo quanto respeitava; descri das coisas mais santas; cheguei a duvidar de minha mãe!... Era a vertigem; a dor veio depois, e atroz. Carecia de um coração amigo, com quem desabafasse. Aqui só tinha Fábio; mas com ele era profanar a minha desgraça. Lembrei-me da senhora. Talvez não devesse; mas acreditei que me havia de compreender. - Não se enagnou. - E, não sei por quê, tinha um pressentimento de que isso me havia de fazer bem: e fez. Estas poucas palavras que trocamos restituíram a calma a meu espírito. Sentia vacilar-me a razão a modo de ébrio; parecia-me que a consciência faltava-me, como a terra embaixo dos pés; e agora estou outra vez seguro de mim; perdi as ilusões e as crenças, mas conservo a possessão do eu; já não receio que uma paixão ou um vício me arrebate na correnteza como às alforrecas, que o mar lança à praia. - Mostre-me a carta! murmurou Guida. - Aqui a tem; eu a trouxe pensando que desejasse vê-la. Recebeu Guida o papel com a mão trêmula, e procurou o abrigo de uma mangueira, cujo grosso tronco a escondia, para ler sem despertar a curiosidade da mestra. Ricardo voltou-se para não vexá-la. Estava a moça comovida e palpitante. Aquele momento ia decidir de seu destino; e era preciso que ela tivesse ainda uma vez a energia de curvar a fortuna a seu império, e vencer ela mesma, de iniciativa própria, os obstáculos. Sua alma superior compreendia agora o assomo confuso, obscuro, travado de hesitações e arrojos, que desde a véspera impelia Ricardo para ela, sôfrego de abrir-lhe o coração. O fenômeno que o mancebo não podia bem discernir em sua própria consciência, ela o penetrava com a luz pura de seu nobre coração. Com as mãos apertadas ao seio para recalcar a efusão de seu júbilo, murmurou consigo: - Ele me ama, sem o pensar. Quando viu-se livre, lembrou-se que nada o separava de mim. Mas eu sou rica e o mundo não acredita que se possa amar uma mísera criatura de carne, de preferência a uma barra de ouro!... Ricardo duvidou de si, ele mo disse há pouco; julgou-se arrastado para mim, não pelo afeto mas pelo interesse. Então, revoltando-se contra si mesmo, em vex de me dizer: - “Sou livre, aceito” –ao contrário, procura cavar um abismo que o separe para sempre de mim, a fim de não sucumbir à tentação. Não pode mais amar? Pertence à outra para sempre? Pois bem! Assim é que eu o quero, para afastá-lo tanto desse pesadelo vivido sem mim, que não se lembre de ter jamais amado a outra mulher. Estes pensamentos não os alinhou Guida em palavras na mente, mas desenhavam-se como figuras de painel iluminadas de repente por um jato de luz. Também não duraram senão o tempo de abrir a carta de Bela, que a moça amarrotara entre as mãos, quando comprimira a arfagem do seio. Leu Guida uma e duas vezes. Na Segunda, sua mão caiu-lhe desfalecida. Compreendera tudo: divisara naquele papel mudo o pensamento de Bela como perscrutara pouco antes o segredo do advogado através de suas palavras confusas. Dobrou a moça a carta enquanto se dominava e aproximou-se de Ricardo: - Bela o ama, como eu pressinto que havia de amar, se Deus não me houvesse retirado sua graça. - E esta carta? - É uma sublime abnegação. Bela acreditou que era ela quem a condenava à pobreza e à obscuridade. Enganaram-na certo, asseverando que o senhor tinha outra afeição; fez o que devia: renunciou à sua felicidade para não sacrificar aquele a quem ama. Ricardo abriu a carta que a moça lhe restituíra, e leu-a de novo. Ali estava a alma de Bela, a santidade daquele coração em todo esplendor. Fora preciso que a palavra pura e nobre de Guida lhe dissipasse a névoa dos olhos para que ele visse. Erguendo os olhos, pousou-os brandamente no rosto de Guida. - A senhora que lê no coração de Bela, inspire-me! Que devo fazer? Guida voltou-se e colheu uma folha de avenca, nas fendas de um velho muro. Era um disfarce para ocultar o soluço que rompia-lhe o seio. - O seu dever. Bela espera a resposta; é ela que vai decidir de sua sorte. Vá, vá a São Paulo e... Pareceu que a voz de Guida afogava-se num soluço. Ricardo olhou, e viu-a sorrindo acabar a frase: - E seja feliz! A moça foi ter com Mrs. Trowshy e instantes depois, terminado o passeio, retirava-se Ricardo. - Ela não pode amar-me!... pensou o moço em caminho para a cidade. E eu... eu tenho medo de amá-la! Dois dias depois partia o vapor de Santos. Ir a São Paulo, como lhe dissera Guida, foi idéia em que não se demorou o ânimo do advogado; não o permitia o escritório, nem o estado de seu espírito. Resolveu porém escrever a Bela em termos que a demovessem da suspeita de não ser amada, como o fora sempre. - Serei eu quem me sacrifique à sua felicidade. No momento de pôr a pena no papel corou: nunca poderia escrever o que não sentisse; não falou a linguagem do coração, mas a da razão. “Bela A vida é uma coisa bem séria, que não se deve fazer tema de caprichos e arrufos. Amamo-nos desde a infância, e juramos unir-nos para sempre. Pertencemo-nos pois um ao outro, e nada neste mundo a não ser a violência pode jamais separar- nos. Vi em sua carta uma suspeita, que não devia demorar-se em seu espírito. Considero-me seu marido perante Deus; e conheço meu dever. Adeus, etc. Ricardo” Esta carta fria e austera ainda mais confirmou Bela na convicção de que já não era amada como o fora outrora. Documento do nobre caráter de Ricardo, tinha a secura do pergaminho. Contudo a moça não precipitou o desfecho do drama íntimo de sua vida, e deixou escoar-se o tempo, até que decorridos uns três meses e insistindo seu pai em favor do Felício, arrancou-lhe o consentimento para essa união. XXXII Depois da entrevista de Andaraí, Guida e Ricardo encontraram-se freqüentemente na sociedade. O advogado, cujo escritório rendia para lhe permitir mais que a decência, sem sacrifício de alguma economia, procurava nas salas e reuniões o sossego de espírito que não encontrava em seu gabinete de trabalho, e nos passeios solitários pela calada da noite. Não via Guida sem emoção; e se não cedia à atração que a gentil menina exercia sobre ele, também não a evitava como anteriormente, quando o acaso os aproximava. Ao contrário, nessas ocasiões, se alguma circunstância não o vinha distrair, ou se a moça não se afastava, ele se esquecia com ela em alguma dessas conversas cintilantes, que lembrava-lhe o seu passeio à “Vista dos Chins”. Não se falava porém mais entre eles da matéria sentimental; esse capítulo estava cancelado. Nenhum se animava a folheá-lo. Como um homem, que tem consciência de sua força, e conta com uma vontade inflexível para sofrear os mais veementes impulsos, Ricardo permitia-se aquele inocente devaneio, que lhe caía nos seios d’alma como orvalho celeste. Não tinha receio de trair-se; e pois bebia o doce cordial como um enfermo, que precisa restaurar as forças. Sabia retrair-se a tempo, e afastar a taça dos lábios, quando sentia a primeira névoa da ebriedade desse amor impossível, que ele rejeitara, mas não podia extirpar. De seu lado Guida, se algumas vezes cedia ao embevecimento dessas conversações, não despia a reserva com que tratava ultimamente a Ricardo; reserva que era tão-somente o pudor de sua afeição, como o receio de afagar um amor condenado, que devia morrer desconhecido, como tinha vivido. Assim decorreram três meses. A notícia do casamento de Bela, que se realizou em poucos dias, produziu nas relações de Guida e Ricardo uma alteração sensível. A princípio a moça deixou-se influir um assomo de altivez. Entendeu que não devia aceitar o sacrifício de Bela, por lhe parecer humilhante. Preferia matar seu amor, sufocá-lo no seio, a profaná-lo em um casamento frio, e rejeitado por outra. Mais tarde, mudou completamente. Não vendo Ricardo, adivinhou que era a dor da perda de Bela que o afastava dela, e teve ciúmes. Outra vez sentiu o impulso generoso de disputar esse nobre coração ao desânimo e à descrença, de povoar com seu imenso amor o deserto daquela alma assolada pela desgraça. Ricardo porém sucumbia ante a perda irreparável da mulher a quem amara; e só então conheceu a profundeza do golpe que sofrera. Por muito tempo ele pertenceu exclusivamente à mágoa que enlutara sua vida e à saudade do passado amor. Quando Guida o viu, desfigurado e pálido, respeitou a santidade dessa dor, e aprendeu nela a resignar-se. A continuação de se tratarem freqüentemente, depois de gastas as primeiras expansões da mútua, mão não correspondia afeição, tornou-os ao cabo de algum tempo indiferentes. Encontravam-se já em emoção, como sem enleio. No verão passado Guida passou em Petrópolis os dois meses de mais forte calor. O pai deixou-lhe a escolha; ela não quis a Tijuca, de que tanto gostava anteriormente. Nessa ocasião espalhou-se a notícia de estar justo o casamento de Guida com o Bastos. O Soares interpelado riu-se; e Guida já não correspondeu às perguntinhas das amigas com um remoque, segundo o seu costume. Grande mudança se tinha operado no corretor. O Soares uma vez depois do jantar enfiara-lhe o braço, e lhe dissera brincando: - Meu caro Bastos, o que seduz as borboletas são as flores e não os frutos. Já tens bastante dinheiro. Trabalha menos, e agrada mais. - De que modo? - Vês esta pedrinha? disse o Soares apontando para um seixo reluzente entre a areia do passeio. Foi a correnteza d’água que a poliu; atira-te na correnteza dos homens. A massa é boa, por força que há de sair alguma coisa. Saiu um homem elegante, de bom senso e inteligência elevada, que, embora não dado a estudos teóricos, pôde desenvolver-se com acerto e superioridade em qualquer assunto. O Guimarães foi à Europa gastar a henrança do pai; e o Nogueira, atordoado com a dissolução inesperada que lhe gorou a candidatura, vai-se consolando na advocacia administrativa da sua dupla derrota, a política e a matrimonial. Mrs. Trowshy anda muito contente com a esperança de voltar breve à Inglaterra na companhia de Guida, a qual naturalmente logo depois do seu casamento fará uma viagem à Europa. Fábio casou-se; mora em São Paulo, e tem um projeto de estrada de ferro para Santo Amaro, primitiva colônia alemã, onde se faz boa manteiga fresca, igual à de Petrópolis. Já requereu o privilégio, e conta ganhar uma centena de contos, para vir gozar da corte, de que tem saudades. O visconde da Aljuba, consta que anda arranjando um escritor para zurzir o autor deste livro, por tê-lo copiado tão ao vivo; portanto prepare-se o público para ler as rajadas que não tardam a aparecer por aí em estilo de níquel. Informaram-me também que o Sr. Benício já foi à cocheira do Porto, examinar o mais rico dos cupês de gala, a fim de estar preparado para encomendá-lo apenas se marque o dia do casamento de Guida. Por seu gosto não seria Bastos o noivo; pois o bom do amanuense não perdeu ainda o teiró que tomara ao corretor pela concorrência ativa que este lhe fazia antigamente no artigo das encomendas. Mas, quando se tratava de obsequiar, não havia sacrifício que fizesse recuar o heróico Sr. Benício. Assim terminaram estes “sonhos d’ouro”, tão parecidos com os outros que a cada instante por aí acendem e se apagam, como os arrebóis da tarde. FIM CARTA AO EDITOR Ilmo. Sr. Garnier Se ainda não tirou a lume a Segunda parte dos Sonhos d’ouro, peço-lhe o favor de mandar imprimir o incluso pós-escrito que leva a última notícia de nossos personagens. Amigo e atento venerador SÊNIO S.C. 6 setembro, 1872 PÓS-ESCRITO Há quinze dias teve Ricardo de assistir a uma vistoria, em questão de terras, para o lado de Jacarepaguá. Na volta lembrou-se de visitar D. Joaquina, a quem não via desde muito. Achou a casinha e a dona no mesmo estado: velhas como as deixara, mas contentes e sossegadas. A tia de Fábio recebeu o advogado com muita festa e agasalho; perguntou notícias do sobrinho e da nova sobrinha; e pediu a Ricardo que lhes mandasse muitas e muitas recomendações, quando escrevesse. Eram duas horas. Já D. Joaquina tinha jantado; mas havia carne assada e improvisou-se uma fritada, que Ricardo aceitou de bom grado, para Ter o prazer de passar com a velha o resto da tarde. O advogado comeu com apetite; e não trocaria o copo d’água cristalina, que bebeu depois do melado, pelo mais esquisito champanha. - O senhor é que ainda não quis casar? disse D. Joaquina, preparando-lhe uma chávena de café. - Creio que fiquei para tio, disse Ricardo sorrindo. - Qual!... A dificuldade é encontrar aí algum peixãozinho que lhe ponha um feitiço; como um que veio aqui outro dia. - Não tenha receio, trago uma figa, que me livram do quebranto, tornou Ricardo no mesmo tom. - Deixe ver, disse a velha. - Estão lá dentro, no coração. A velha riu-se. E o advogado acendendo o charuto saiu a dar uma volta de passeio a pé, enquanto se ia buscar ao pasto o “Galgo”, que naturalmente andava também matando saudades, pois desde muito tempo residia na corte à Travessa do Espírito Santos, n. 19, cocheira do Viana. Tomou Ricardo pelo mesmo caminho em que à primeira vez o encontramos, e não tinha dado vinte passos que as recordações de outros tempos surgiram para envolvê-lo como o aparato de uma cena armada de improviso. Ouviu tropel de animal; reconheceu o “Galgo”; viu passar Fábio; trocou palavras com ele; perdeu-se entre os tufos do arvoredo; sentiu o sobressalto que tivera outrora, despertado por um riso argentino; e contemplou com entusiasmo de artista, e um enlevo que então não sentira, o gracioso vulto da gentil amazona. Depois correram as vistas; novas cenas sucediam-se; e a imaginação as povoava de recordações vivazes, que entretanto pareciam extintas. Este volver ao passado incomodava Ricardo, que pensou escapar-lhe fugindo àquele sítio. Ao voltar uma curva descobriu duas senhoras, que se aproximavam lentamente pelo mesmo caminho; e qual não foi seu espanto reconhecendo Guida acompanhada de Mrs. Trowshy. Desde certo tempo a saúde de Guida se alterara. Não se queixava, nem tinha mesmo incômodo ou mal determinado. Perdera a alegre vivacidade; e sentia invadi-la um abatimento indefinível. Sua vida nos meses últimos não era mais do que um lento delíquio; parecia-lhe que estava desmaiada. As flores, se é que têm sensibilidade, devem experimentar uma impressão igual quando murcham. Ultimamente o desfalecimento chegara ao ponto de inquietar a família; os médicos receitaram as duas panacéias do costume, o casamento e o campo. Pobres dos médicos! Queixam-se deles. Ah! Se tivessem na sua farmacopéia certas drogas preciosas, como o amor, a ambição, a glória, que de curas milagrosas não fariam! Quando se tratou de escolher o arrabalde, Guida pediu a Tijuca; não que ela esperasse tirar proveito para a saúde. Bem longe disso; era um desejo recôndito de rever aqueles sítios, e saciar-se das reminiscências que eles guardavam. Matassem embora essas árvores, como a mancenilha; queria embriagar-se de seus perfumes. Lembrava-se da Africana que vira representar ultimamente; e invejava aquela morte, ela que dois anos antes, naquelas mesmas montanhas, zombava de Safo, a mais ilustre entre as mártires do amor. Guida trajava naquela tarde um vestido cinzento e, sobre ele, um casaco preto guarnecido de marta. A alvura imaculada de seu rosto destacava-se nesse trajo escuro, entre os negros cabelos, com uma lividez que assustava: parecia o perfil de uma estátua em alabastro. Reconhecendo Ricardo, teve a moça uma violenta comoção, e tomou para suster-se o braço da mestra, que atribuiu o choque a susto e debilidade da moléstia. - Não sabia que estava na Tijuca, disse Ricardo. - Viemos há oito dias. - Ela tem andado doente; o doutor mandou tomar ares, disse Mrs. Trowshy em português arrevesado. - Há de fazer-lhe bem a Tijuca, tornou Ricardo. - À saúde?... perguntou Guida. E abanou a cabeça desfolhando um triste sorriso. Foi então que Ricardo reparou o estado de abatimento da moça. O talhe, tão esbelto e grácil, retraía-se como o cálix do lírio do vale quando fana-se, e os olhos de embaciados, só intercadentes, como o trepidar da estrela, rutilavam para desferir lampejo febril. Não se concebe a comiseração que sentiu Ricardo notando aquele deperecimento lento de uma beleza, que ele vira tão esplêndida. Lágrimas umedeceram-lhe os olhos; e teve impulso de ajoelhar-se aos pés da mártir, sacrificada ao paganismo social. Lembrou-se da conversa que tivera com a moças dois anos antes, pouco distante daquele sítio. Guida era uma das vítimas desse martirológio da família, que poucos sabem e ninguém compreende. Nascera rica; educaram-na para a opulência; e a grandeza sufocava. Havia um meio de salvar-se; era esfarfalhar sua alma pelas salas em afeições efêmeras; tornar-se a moça da moda, faceira, namorada, perseguida e disputada por um enxame de adoradores. A dignidade inata fechou-lhe essa válvula do coração. Guida o guardara virgem e intacto para o seu primeiro amor; porém este não o encontrara no mundo. Por quê? Não havia um homem que a merecesse? Guida estimava o homem, mais do que ele valia, porém na pureza do ideal; por isso os indivíduos da espécie lhe pareciam escorços, senão caricaturas. - Por que não sou eu o homem que ela sonha, disse Ricardo; por que não me deu o criador um raio do fogo sagrado para reanimar esta vida que se extingue, para reter na terra esta bela mulher que se está transformando em anjo? Guida sentara-se à beira do caminho, numa leiva coberta de relva, e acompanhava o recorte das nuvens com o olhar mórbido, que às vezes eclipsava sob os longos cílios e volvia rápida e sutilmente ao rosto de Ricardo. - Deve passear! disse Ricardo para romper o silêncio. - Ela não gosta mais de sair como dantes, observou Mrs. Trowshy. - Fatiga-me tanto! tornou Guida. Já três vezes viemos para este lado; e ainda não pude chegar até a outra volta. - Quando estiver mais forte. - Tenho tanta vontade! Mas hoje hei de ir; já descansei. Venha conosco! disse pousando o olhar súplice no semblante do moço. Não era longe a volta a que a moça desejava chegar. - Lembra-se? perguntou a Ricardo. Aqui nos encontramos pela primeira vez. - Não esqueceu? - E a nossa flor... Ainda estará no mesmo lugar? Ricardo rompeu o arvoredo, e procurou: - Aqui está ela! Guida aproximou-se. O arbusto, reverdecido com as águas do inverno, começava a florescência. Nas pontas dos renovos germinavam já os lindos cálices de nácar, com os pjngos d’ouro. Roçou Guida as mãos pelas folhas glabras do arbusto como para sentir-se acariciada pelo doce frolido: - Sonhos d’ouro! murmurou. - É verdade! exclamou Ricardo sorrindo. - Nem se lembrava! disse Guida com leve exprobração. - Não culpe a pobre florinha, se o vento da tempestade a mirrou e cobriu de pó, tornou Ricardo apanhando os secos despojos da passada floração. - Estes morreram, murmurou Guida olhando as flores murchas, mas vão nascer. E os meus? A voz da moça expirou nos lábios, e exalou-se em um suspiro: - Os meus nasceram aqui também, porém morreram para sempre! Ergueu Ricardo surpreso os olhos, e viu o semblante da moça banhado em lágrimas. - Guida! exclamou ele. E cingiu-lhe a cintura com o braço para ampará-la, porque a via desfalecer.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved