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Guias e Dicas
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Revista da Procuradoria Geral do Estado do RS, Notas de estudo de Teoria Geral do Estado

Revista da Procuradoria Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Nº64. disponível em http://www.pge.rs.gov.br

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 25/08/2009

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Baixe Revista da Procuradoria Geral do Estado do RS e outras Notas de estudo em PDF para Teoria Geral do Estado, somente na Docsity! REVISTA DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO Publicação da Procuradoria de Informação, Documentação e Aperfeiçoamento Profissional ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL RPGE Porto Alegre v. 30 n. 64 p. 1 - 183 jul./dez. 2006 ISSN 0101-1480 Catalogação na publicação: Biblioteca da PGE/PIDAP Todos os direitos são reservados. Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida desde que citada a fonte, sendo proibida as reproduções para fins comerciais. Os artigos publicados nesta revista são de exclusiva responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a posição desta Procuradoria-Geral. Procuradoria-Geral do Estado do RS Procuradoria de Informação, Documentação e Aperfeiçoamento Pessoal Pede-se permuta Av. Borges de Medeiros, 1501 – 13. Andar Piedese canje 90119-900 Porto Alegre/RS We ask exchange Fone/Fax: (51) 32881656 – 32881652 On demande échange E-mail: conselho-editorial@pge.rs.gov.br Wir bitten um autausch Site: http://www.pge.rs.gov.br Si richiede lo scambio Impresso no Brasil SUMÁRIO EDITORIAL .......................................................................................... 7 DOUTRINA O Direito à Ampla Defesa e a Processualidade Tributária Ricardo Lobo Torres ....................................................................... 9 Responsabilização de Advogado ou Procurador por Pareceres em Contra- tação Direta de Empresa Marcos Juruena Villela Souto ........................................................ 21 Transparência Administrativa e Novas Tecnologias: o dever de publicidade, o direito a ser in-formado e o princípio democrático Têmis Limberger ............................................................................. 33 Autonomia das Procuradorias do Estado José Augusto Delgado .................................................................... 49 A Importância das Procuradorias como Órgãos de Assessoramento Jurídico do Estado e a Necessidade de sua Autonomia Gustavo Calmon Holliday .............................................................. 63 Efetividade Processual a Qualquer Custo? João Paulo Fontoura de Medeiros ................................................. 69 O Processo do Trabalho e as Alterações do Processo Civil, Quanto à Exe- cução de Obrigação de Pagar Quantia Certa Ricardo Fioreze ............................................................................... 83 Interpretação Jurídica: algumas teorias, segundo Riccardo Guastini, e sua aplicação a um caso concreto Helena Beatriz Cesarino Mendes Coelho ..................................... 95 TRABALHOS FORENSES Recurso de Revista – CEEE Miguel Arcanjo Costa da Rocha; Ricardo Seibel de Freitas Lima 117 PARECERES Parecer 14.354 Helena Beatriz Cesarino Mendes Coelho ..................................... 139 Parecer 14.608 Ricardo Seibel de Freitas Lima ...................................................... 147 Parecer 14.639 Ricardo Antônio Lucas Camargo .................................................. 167 EDITORIAL Apresentamos o volume nº 64 da Revista da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. Esse volume marca o encerramento dos trabalhos desenvolvidos pelos Pro- curadores que integram a atual composição do Conselho Editorial, cujo mandato se encerrará em 31.12.2006. Quando esse grupo iniciou suas atividades, a Revista da PGE tinha sofrido breve interrupção em sua publicação. A retomada dos trabalhos, então, passou a ser um dos principais focos de nossas atividades, assim como a manutenção da excelente qualidade da Revista, que sempre teve como prioridade disseminar os trabalhos jurídicos dos integrantes da Procuradoria-Geral do Estado, sem prejuízo, naturalmente, da valiosa e imprescindível contribuição advinda dos mais renoma- dos juristas que já publicaram seus trabalhos em nossa Revista. Essa disseminação do conhecimento nos remete aos ensinamentos de Pla- tão, que no Mito da Caverna (narrado por Platão no livro VII do Republica) recomenda que os sábios devem socializar o conhecimento, isto é, ‘o conheci- mento do sábio deve ser compartilhado com seus semelhantes, deve estar à serviço da cidade. O filósofo cheio de sabedoria e geometria que leva uma exis- tência de eremita, acreditando-se um habitante das ilhas afortunadas, de nada serve. Isso porque a lei não se preocupa em assegurar a felicidade apenas para uma determinada classe de cidadãos (no caso, os sábios), mas sim se esforça para ‘realizar a ventura da cidade inteira’. A liberdade que os sábios (o conheci- mento dá aos seus portadores a sensação de liberdade) parecem gozar não é para eles ‘se voltarem para o lado que lhes aprouver, mas para fazê-los concorrer ao fortalecimento do laço do Estado’”.1 Acreditamos que, de fato, de nada adiantaria realizar um excelente traba- lho na defesa diária dos direitos da cidadania, da dignidade humana e do próprio Estado quando seus direitos são violados (pois, nesse caso, é o patrimônio público, que é do povo, que resta atingido), se tal trabalho não fosse levado ao conheci- mento de todos, como forma de exemplo, de aprendizado e postura profissional. Ademais, cremos que a construção de uma Instituição forte transita igual- mente pela transparência de suas ações, missão esta também cumprida pela Re- vista da PGE na medida em que são publicados os Pareceres e algumas das inúmeras peças forenses aqui produzidos. 1 Voltaire Schilling. In http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/caverna.htm. Acesso em 20.12.2006. 10 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 so legal” – tornou indiscutível o direito à ampla defesa em sua maior extensão, que até então sofria restrições no Brasil. Ensina Marçal Justen Filho:1 “A inovação constitucional do art. 5o, inciso LV, impôs a observância de um devido processo na via administrativa. Assegurou-se aos particulares o direito à ampla defesa, com a garantia inafastável do contraditório. Tornou-se fora de dúvida que a decisão administrativa, sempre que for apta a produzir o sacrifício de interesses ou direitos privados, deverá ser o resultado de um procedimento administrativo, respeitado o princípio do contraditório”. Não há, por outro lado, dúvida sobre a aplicação do art. 5o, inciso LV, da CF a qualquer tipo de processo administrativo, inclusive ao processo administrativo fiscal.2 3 NOVAS FORMAS DE PROCESSUALIDADE FISCAL EXIGEM AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO A ampla defesa no processo administrativo tributário surge como necessida- de das novas formas de processualidade fiscal. Assiste-se hoje ao florescimento da democracia participativa e do Estado Cooperativo, que se apóia sobretudo em novas formas procedimentais. Já obser- vou E. Schmidt-Assman que “a participação impõe que os que se encontram afetados de uma forma específica por uma determinada decisão tenham tomado parte no processo que a produziu”.3 Por outro lado, a globalização, o desenvolvimento da informática, com a criação do espaço cibernético, e as necessidades de proteção dos interesses do Fisco e dos contribuintes trazem novos desafios no campo do processo administra- tivo tributário. Alguns países publicaram os seus Estatutos do Contribuinte, como os Esta- dos Unidos (Taxpayer Bill of Rights II, de 1996, complementado pelo Taxpayer Bill of Rights III, de 2003), a Espanha (Ley de Derechos y Garantias de los Contri- 1 “Considerações sobre o Processo Administrativo Fiscal”. Revista Dialética de Direito Tributário 33: 108, 1998. 2 Cf. TORRES, Jessé. O Direito À Defesa na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 71; MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 78: “A exigência de processo administrativo abrange... também os casos de controvérsia entre administrados (particulares ou servidores) e a Administração; p. ex.: licenças em geral, recursos administrativos em geral, reexame de lançamento-processo administrativo tributário”. 3 La Teoria General del Derecho Administrativo como Sistema. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 118. Prossegue o festejado jurista alemão : “... da concepção do Direito Administrativo que surge dos aspectos ideais da democracia e do Estado de Direito derivam certos impulsos ao desenvolvimento da participação. Neste sentido, devem ser considerados dois grandes âmbitos do debate sobre a participação: de uma parte a participação dos cidadãos, e dos grupos em que eles se organizam, em alguns procedimentos administrativos, usual no âmbito do Direito ambiental e na planificação. De outra parte podem ser assinaladas numerosas formas de cooperação entre o Estado e a Economia, que se cristalizaram em organizações que servem de exemplo para uma idéia de participação avançada. O aspecto das formas de participação reconhecido pela lei vai desde a clássica participação individual, enraizada no Estado de Direito, passando pela participação coletiva por grupos, associações ou representantes até chegar à participação aberta ao público”. 11 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 buyentes – LDGC – n º 1/1998) e a Itália (Estatuto dos Direitos do Contribuinte Italiano (EDC), de 31.07.2000), prevendo novo relacionamento entre as reparti- ções fazendárias e os contribuintes. O tributarista italiano Victor Uckmar propôs os seguintes princípios fundamentais: “1. o direito a comportamentos de boa-fé por parte da administração; 2. o direito à tutela por excesso de pressão legislativa e à certeza do direito; 3. o direito à informação sobre a interpretação das leis e sobre a conse- qüência do seu próprio comportamento; 4. o direito de ser informado e ouvido; 5. o direito de não ser obrigado a deveres inúteis ou excessiva- mente dispendiosos com relação aos resultados; 6. o direito à rapidez e oportunidade de ação administrativa no campo fiscal; 7. o direito de não pagar mais do que está previsto em lei; 8. o controle sobre a aplicação da lei; 9. direito à transparência estatística e ao conhecimento dos agregados econômicos tributários; 10. o direito a ser posto no mesmo plano da administração no que se refere aos pagamentos, juros e reembolsos”.4 De notar que os Estatutos dos Contribuintes não contêm a declaração de novos direitos fundamentais, senão que se preocupam em explicitar as garantias processuais que cercam o relacionamento entre o sujeito passivo e a Administra- ção Fiscal, tais como os prazos na resposta à consulta, a urbanidade dos funcioná- rios da Fazenda no trato com o público, a presunção de boa-fé do administrado, o dever de informação e esclarecimentos sobre o sentido e o alcance da legislação tributária, etc. No Brasil o próprio Supremo Tribunal Federal aderiu à idéia do Estatuto do Contribuinte.5 Mas o projeto brasileiro da Lei de Direitos e Garantias do Contribu- inte, enviado ao Congresso Nacional pelo PLC 646, em 1999, até hoje não foi aprovado, demonstrando a dificuldade ainda existente no País para fortalecer as garantias dos direitos dos contribuintes. Superam-se os velhos esquemas da processualidade tributária, como os ima- ginaram Rubens Gomes de Souza, com a sua concepção orgânica e unitária do processo fiscal,6 e Gilberto de Ulhoa Canto, com a sua proposta de unificação das 4 El Estatuto del Contribuyente”. Cartagena 1-6/10/95; “Los Efectos en Italia del Estatuto del Contribuyente”. In: CARVALHO, Paulo de Barros (Org.). Justiça Tributária. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1998, p. 793-797. 5 Pet. 1.466-PB, despacho do Min. Celso de Mello, de 28.8.98, DJU de 2.9.98: “ESTATUTO CONSTITUCIONAL DO CONTRIBUINTE. O princípio da anterioridade da lei tributária — imune, até mesmo, ao próprio poder de reforma do Congresso Nacional (RTJ 151/755-756) — representa uma das garantias fundamentais mais relevante outorgadas ao universo dos contribuintes pela Carta da República, além de traduzir, na concreção do seu alcance, uma expressiva limitação ao poder impositivo do Estado”. O Min. Celso de Mello afirmou ainda no seu despacho: “Cabe destacar, neste ponto, na linha do entendimento consagrado pelo acórdão ora impugnado, que a garantia constitucional da anterioridade tributária, mais do que simples limitação ao poder de tributar do Estado, qualifica-se como um dos mais expressivos postulados que dão substância ao estatuto jurídico dos contribuintes, delineado, em seus aspectos essenciais, no texto da própria Constituição da República”. 6 “Idéias Gerais para uma Concepção Unitária e Orgânica do Processo Fiscal”. Revista de Direito Administrativo 34: 17, 1953: “Chegamos assim a uma concepção orgânica e unitária do processo fiscal, que reúne em um mesmo sistema o procedimento administrativo do lançamento e o procedimento jurisdicional do contencioso. Esta conceituação se justifica pela constatação, de certo modo imediatista, de que as fases oficiosa e contenciosa do processo formativo da obrigação tributária visam ambos a uma mesma finalidade única, a saber, a constituição do crédito tributário a favor do Estado, e reciprocamente a constituição da obrigação tributária contra o contribuinte”. 12 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 instâncias administrativas e judicial,7 que partiam de modelos rígidos e fechados. O processo fiscal teria início sempre por um ato do contribuinte, que reagia à decisão autoritária do Fisco. A impugnação ao lançamento ou à negativa de resti- tuição do indébito deflagrava o procedimento administrativo fiscal. Esse esquema simplista é incapaz de apreender a complexa conflitualidade desenvolvida entre o Fisco e os contribuintes no Estado Democrático de Direito, que exige a participação e o consenso. Ficou inteiramente defasado também o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, que regulamenta o processo administrativo de determinação e exigência de créditos tributários da União e o de consulta sobre a aplicação da legislação tributária federal. As regras correspondentes à nova processualidade fiscal estão sendo estabelecidas pela legislação extravagante, principalmente a Lei nº 9430, de 1996, com as suas ulteriores modificações, como veremos adiante, ou por altera- ções do próprio Decreto 70.235/1972, como aconteceu com a previsão da súmula vinculante das decisões do Conselho de Contribuintes (art. 113 da Lei 11.196, de 21.11.2005), medida importante para a transparência do contencioso tributário. Hoje já se discute inclusive a respeito da possibilidade de recurso aos meios alternativos para a solução justa de interesses fiscais.8 Ampliou-se o quadro das compensações financeiras, figuras antes inexistentes no direito tributário com a envergadura que hoje possuem, o que trouxe a ulterior necessidade de novos ritos processuais para a manutenção do equilíbrio nas relações entre o Fisco e os contribuintes, o que afinal surgiu com a nova redação dada ao art. 74 da Lei 9.430, de 1996, pela Lei 10.833/2003. Facultou-se ao contribuinte apre- sentar manifestação da inconformidade contra a não-homologação da compensa- ção, cabendo da decisão recurso ao Conselho de Contribuintes. Desenvolveu-se a legislação dos preços de transferência, com o objetivo de concretizar o princípio arm’s length. A Lei nº 9.430/96 criou presunções, que são relativas, podendo ser desfeitas na procura do lucro real ou das circunstâncias fáticas que cercam as transferências de mercadorias e serviços. As presunções se 7 Gilberto de Ulhoa Canto foi incumbido pelo Ministro da Fazenda de elaborar o anteprojeto de lei do processo administrativo tributário. Frustrada a aprovação, o anteprojeto foi ulteriormente publicado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros n º 36, v. 1 e 2. Anteprojeto de Lei Orgânica do Processo Tributário). Nele ficou consignado (v. 1, p. 78): “Como já ficou dito, pensamos que o ponto nevrálgico do processo judicial das controvérsias de natureza tributária se situa na multiplicidade de fases, muitas delas com o caráter de repetição de outras, que presentemente quanto à ação anulatória de débito fiscal, e na lentidão com que flui a ação executiva fiscal. Assim, a meta do anteprojeto, no que pertine ao desenvolvimento de tais modalidades perante o Judiciário, é, como solução definitiva, operar a modificação por via de que seja a ação anulatória decidida em instância única”. Ulteriormente a EC 8/77 trilhou o mesmo caminho, criando a possibilidade da ação de revisão fiscal a ser proposta diretamente ao Tribunal Federal da 2a instância, que não chegou a ser regulamentada. 8 Cf. TORRES, Heleno Taveira. “Transação, Arbitragem e Conciliação Judicial como Medidas Alternativas para Resolução de Conflitos entre Administração e Contribuintes. Simplificação e Eficiência Administrativa”. Revista de Direito Tributário 86: 40-64, 2003; SILVA, Sérgio André Rocha da. “Meios Alternativos de Solução de Conflitos no Direito Tributário Brasileiro”. Revista Dialética de Direito Tributário 122; 90, 2005: “Ao se examinar o sistema tributário brasileiro, verifica-se que a transferência de atividades liquidatárias para os contribuintes assim como a presença cada vez mais constante de conceitos indeterminados nas leis fiscais deram impulso à discussão quanto à utilização de meios alternativos para a solução de controvérsias entre a Fazenda e os contribuintes, ainda que a mesma seja ainda incipiente. Tais meios alternativos compreendem as técnicas arbitrais (mediação ou conciliação e arbitragem), bem como a transação”. 15 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 Alberto Xavier explica:15 “O direito de ampla defesa reveste hoje a natureza de um direito de audiência (audi alteram partem), nos termos do qual nenhum ato admi- nistrativo suscetível de produzir conseqüências desfavoráveis para o ad- ministrado poderá ser praticado de modo definitivo sem que a este tenha sido dada a oportunidade de apresentar as razões (fatos e provas) que achar convenientes à defesa de seus interesses. A expressão “defesa” resulta de o princípio se ter consolidado historica- mente nos procedimentos e processos administrativos de tipo acusatório, como os sancionadores – de que o paradigma é o processo disciplinar. Mas daí evoluiu para os procedimentos administrativos de tipo ablatório, tendentes a restringir, de qualquer forma, a liberdade ou a propriedade do cidadão, em relação aos quais não se verifica uma acusação prévia, pelo que a intervenção do particular não vira uma “defesa”, em sentido próprio, mas uma audiência das suas razões”. No mesmo sentido manifesta-se James Marins:16 “O direito a ser ouvido revela-se como uma das mais importantes mani- festações do princípio da ampla defesa. Não é lícito à administração, no âmbito processual, produzir informa- ções, argumentos ou elementos de fato ou de direito, sem que seja conce- dida ao contribuinte a oportunidade de se manifestar”. A administrativista Odete Medauar observa:17 “A ouvida dos sujeitos ou audiência das partes, que se mescla com facilida- de aos desdobramentos da ampla defesa, consiste, em essência, na possi- bilidade de manifestar o próprio ponto de vista sobre fatos, documentos, interpretações e argumentos, apresentados pela Administração e por ou- tros sujeitos. Aí se incluem o direito paritário de propor provas (com razoabilidade) e de vê-las realizadas e o direito a um prazo suficiente para o preparo das observações a serem contrapostas. No direito pátrio a ouvida dos sujeitos há muito se consagra no processo disciplinar, independentemente de previsão legal expressa do contraditó- rio, sobretudo pela elaboração jurisprudencial e doutrinária... Nos de- mais processos administrativos, mesmo sem previsão legal específica, o direito de audiência se impõe, por força do inciso LV do art. 5o da CF”. Na Espanha a Ley de Derechos y Garantias de los Contribuyentes enumera, no art. 3º, entre os derechos generales de los contribuyentes o “derecho a ser oído en el trámite de audiencia con carácter previo a la redacción de la propuesta de resolución” e estabelece, no art. 22: “1. En todo procedimiento de gestión tributa- 15 Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 7. 16 Direito Processual Tributário Brasileiro (Administrativo e Judicial). São Paulo: Dialética, 2001, p. 189. 17 A Processualidade no Direito Administrativo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1993, p. 106. 16 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 ria se dará audiencia al interessado antes de redactar la propusta de resolución para que pueda alegar lo que convenga a su derecho”. Eugenio Simon Acosta,18 ao comentar a renovadora lei espanhola, posteriormente absorvida pela Ley General Tributária de 2003, assim se manifestou: “O trâmite de audiência necessário em todos os procedimentos que afe- tem os deveres e interesses dos administrados, é uma fase procedimental necessária, estabelecida em garantia do direito constitucional à defesa que, como elemento inerente a sua dignidade, tem toda pessoa. O trâmite de audiência está imposto por outros valores superiores que são incom- patíveis com tratar as pessoas como simples objetos (não sujeitos) do obrar administrativo. Este é o contexto em que há que interpretar o artigo 105 da Constituição Espanhola, segundo o qual a lei regulará o procedi- mento administrativo, “garantindo, quando procedente, a audiência do interessado”. O direito à prévia audiência está hoje proclamado na Lei do Processo Ad- ministrativo (Lei nº 9784/99): “Art. 3o – O administrado tem os seguintes direitos perante a Administra- ção, sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados: ........................................................................................................ III – formular objeções e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente”. “Art. 38: O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligência e perícia, bem como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo”. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é muito firme no sentido de exigir que os atos anulatórios da Administração sejam precedidos da ampla defesa dos interessados.19 De notar que não se defende que qualquer ato de lançamento tributário deva ser precedido da audiência prévia dos interessados. O já citado Alberto Xavier observa:20 18 “Audiencia al Interessado (artículo 22)”. In: Comentarios a la Ley de Derechos y Garantías de los Contribuyentes. Madrid: Centro de Estudios Financieros, 1999, p. 404. 19 RE 158.543, Ac. da 2a T., de 30.8.94, Re. Min. Marco Aurélio, RTJ 156: 1042: “Tratando-se da anulação de ato administrativo cuja formalização haja repercutido no campo de interesses individuais, a anulação não prescinde da observância do contraditório, ou seja, da instauração de processo administrativo que enseje a audição daqueles que terão modificada situação já alcançada”; RE 158.215, Ac. da 2a T., de 30.04.96, Rel. Min. Marco Aurélio, RTJ 164: 757: “A intangibilidade do preceito constitucional assegurador do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República, suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há de ser direta e frontal. Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer crivo sobre a matéria, distinguindo os recursos protelatórios daqueles em que versada, com procedência, a transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo, partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito - o da legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a pressuporem a consideração de normas estritamente legais”. 20 Op. cit., p. 8. 17 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 “Com efeito, o próprio direito norte-americano, que levou às conseqüên- cias mais avançadas o princípio do due process of law, apenas reconhece a necessidade de “audiência prévia” nos casos em que exista uma contro- vérsia sobre fatos e a discussão contraditória seja o método racional para o seu esclarecimento”. 4.2 A Necessidade de Motivação da Decisão O direito à ampla defesa e ao contraditório tem entre os seus desdobramen- tos a necessidade de a Fazenda motivar as suas decisões. Atos imotivados ou sem fundamento são insustentáveis diante do direito à ampla defesa. A Lei nº 9784/99, que disciplina o Processo Administrativo, estabelece: “Art. 50 – Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando: I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses; II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções; III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública; IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório; V - decidam recursos administrativos; VI - decorram de reexame de ofício; VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discre- pem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais; VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo. § 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores parece- res, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato”. O princípio da motivação é aplicável ao direito tributário desde o advento do texto do art. 5o, inciso LV, da CF, ainda que o não proclame a legislação ordiná- ria. Afirma Odete Medauar:21 “A ausência de previsão expressa, na Constituição Federal ou em qualquer outro ato legal, não elide, contudo, a exigência de motivar nas autuações administrativas processualizadas, visto configurar decorrência necessária da garantia do contraditório. Nas atuações administrativas norteadas pelo contraditório, tal como determina o inciso LV da CF, impõe-se a motivação das decisões”. O princípio da motivação pressupõe a existência de motivos de fato e de direito, como excelentemente expõe Diogo de Figueiredo Moreira Neto:22 21 A Processualidade no Direito Administrativo, cit., p. 111. 22 Legitimidade e Discricionariedade. Novas Reflexões sobre os Limites e Controle da Discricionariedade. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 44.. 20 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 9-20, jul./dez. 2006 SILVA, Sérgio André Rocha da. “Meios Alternativos de Solução de Conflitos no Direito Tributário Brasileiro”. Revista Dialética de Direito Tributário 122: 90-106, 2005. SOUZA, Rubens Gomes de. “Idéias Gerais para uma Concepção Unitária e Orgâni- ca do Processo Fiscal”. Revista de Direito Administrativo 34: 14-33, 1953. TORRES, Heleno Taveira. “Transação, Arbitragem e Conciliação Judicial como Medidas Alternativas para Resolução de Conflitos entre Administração e Contribu- intes. Simplificação e Eficiência Administrativa”. Revista de Direito Tributário 86: 40-64, 2003. TORRES, Jessé. O Direito À Defesa na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 1991. TORRES, Ricardo Lobo. “Anulação de Incentivos Fiscais. Efeitos no Tempo”. Re- vista Dialética de Direito Tributário 121 : 127-146, 2005. UCKMAR, Victor. “El Estatuto del Contribuyente”. XVII jornadas Latinoamerica- nas de Derecho Tributario. Cartagena 1-6/10/95. __________. “Los Efectos en Italia del Estatuto del Contribuyente”. In: CARVA- LHO, Paulo de Barros (Org.). Justiça Tributária. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1998, p. 793-797. XAVIER, Alberto. Princípios do Processo Administrativo e Judicial Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 21 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 RESPONSABILIZAÇÃO DE ADVOGADO OU PROCURADOR POR PARECERES EM CONTRATAÇÃO DIRETA DE EMPRESA Marcos Juruena Villela Souto* INTRODUÇÃO Cada vez mais se aterroriza o exercício da profissão de advogado, colocando em dúvida a honra e a seriedade de profissionais do direito que se apresentam, ou são chamados, ou, ainda, obrigados a exercerem seu ofício exarando pareceres em matéria de contratos firmados pela Administração Pública – como é o caso dos Procuradores de Estados, que atuam por exigência constitucional (CF, art. 132). Não raro, os contratos sofrem diversos tipos de questionamentos, políticos, técnicos ou financeiros e se pretende responsabilizar solidariamente os Procurado- res ou Advogados que atuam nos processos, muitas vezes, por dever de ofício. Essas situações não fazem maior distinção entre o que representa o “contro- le da legalidade” e o “controle da economicidade” ou “controle da legitimidade” e são frequentes nas situações de contratação direta – notadamente quando em jogo os conceitos de inviabilidade de competição ou urgência. Este breve estudo pretende identificar as distintas responsabilidades entre as tarefas do administrador e as do órgão jurídico, especialmente quando envolvida a interpretação de conceitos jurídicos indeterminados. 2 A COMPETÊNCIA PARA DECLARAR A URGÊNCIA, NOTÓRIA RE- PUTAÇÃO OU INVIABILIDADE DE COMPETIÇÃO. Os pareceres jurídicos que examinam situações de contratação direta, ex- cepcionando a regra geral da licitação, invariavelmente envolvem o exame da apli- cação de conceitos jurídicos indeterminados. O “conceito jurídico indeterminado” é assim explicado por SÉRGIO GUERRA1 : “De outro lado, pela técnica de utilização de conceitos jurídicos indeter- minados no processo legiferante, as regras para sua adoção não parecem * Doutor em Direito pela Universidade Gama Filho; Professor do Mestrado em Direito da Universidade Gama Filho; Procurador do Estado do Rio de Janeiro. ¹ GUERRA, Sérgio. Controle Judicial dos atos regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.171. 22 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 bem delineadas, não obstante indiquem a sua aplicação em determina- dos casos concretos. Nessas circunstâncias, a norma não determina o exato e preciso sentido desses conceitos, haja vista que estes não admitem uma rigorosa e abstra- ta quantificação ou limitação, somente devendo ser identificados, caso a caso, diante do fato real.” A interpretação do dever de bem administrar, feita diante do caso concreto, deve caber à autoridade. Integra, pois, o dever de administrar. Como leciona CELSO LUIZ MORESCO2 : “a) Conceito jurídico de conteúdo indeterminado é todo aquele cuja expressão de valor possui textura variável e abertura a que o Direito confere significado próprio. Por isso, afirma-se, que a extensão e o con- teúdo são em larga medida incertos; b) Fundamenta-se na separação de fundações do Estado. O legislador não dispõe de competência (poder) para emitir ordens concretas (atos administrativos), mas apenas ordens gerais e abstratas. Se o fizer – expedir atos administrativos – estará invadindo – e usurpando – a com- petência da Administração. Outra razão, de ordem prática, fundamenta a utilização desses conceitos: a impossibilidade real, fática de prever-se toda e qualquer situação pos- sível de ocorrência; (...)” Por isso, a interpretação desse conceito é privativa do administrador, não cabendo, pois, tal valoração aos órgãos de controle da legalidade – salvo no caso de identificação de manifesta irrazoabilidade (como se verá adiante). Destarte, definida a interpretação do conceito, ao órgão jurídico cabe verifi- car se a lei abriga a solução encontrada pelo administrador para o seu atendimen- to. Confira-se, a respeito, a lição de ANTÔNIO CARLOS CINTRA DO AMARAL3 . “A decisão de não licitar decorre de uma valorização subjetiva da situação e do interesse social envolvido. (...) Não me parece existir dúvida de que prejudicada fica a parcela da sociedade envolvida, direta ou indiretamente, quando, por exemplo, uma obra pública não é posta à sua disposição no prazo adequado; comporta um certo grau de subjetividade e é determinado em cada caso. ( ... ) Friso que não é um juízo arbitrário e sim discricionário do qual a Admi- nistração emite sobre o interesse social envolvido.” Também comunga desse entendimento JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES4: ² MORESCO, Celso Luiz. Conceitos jurídicos indeterminados. Revista Trimestral de Direito Público nº 14, 1996, págs. 78 a 95. ³ AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. Ato Administrativo; Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Malheiros, pág. 95 e 96. 4 FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Contratação direta sem licitação. Brasília : Brasília Jurídica, 1995, pág. 361 25 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 Compete ao Congresso Nacional e ao Tribunal de Contas a fiscalização. Logo, não lhes é reconhecido o exercício em nome próprio das atividades de que os outros órgãos estão investidos. Os órgãos de fiscalização não se substituem aos órgãos fiscalizados, que continuam titu- lares, com exclusividade, da competência (discricionária, em al- guns casos) para a prática dos atos.” (g/n) “Não cabe ao Tribunal de Contas investigar o mérito dos atos administrativos. A discricionariedade consiste na liberdade para ava- liar as conveniências e escolher a melhor solução para o caso, diante das circunstâncias. Por isso, o mérito da atuação discricionária não se sujeita a revisão, nem mesmo pelo Poder Judiciário. Se o mérito do ato adminis- trativo pudesse ser revisto pelo Congresso Nacional e pelo Tribunal de Contas, desapareceria a discricionariedade. Não foi casual, por isso, a ausência de referência constitucional à fiscali- zação quanto ao mérito, à conveniência ou, mesmo, à discricionarieda- de. A Constituição alude a legitimidade e economicidade, ângulos com- plementares da liberdade de atuação do gestor da coisa pública. Cabe aos órgãos de fiscalização verificar se inexistiu desvio de finalidade, abu- so de poder ou se, diante das circunstâncias, a decisão adotada não era a mais adequada. Muito menos cabível seria impugnar a decisão adotada por ter-se revela- do, a posteriori, menos adequada do que outra. A economicidade da decisão pode (deve) ser investigada segundo as condições contemporâ- neas à sua edição. Não pode exigir do gestor da coisa pública o dom sobre-humano do conhecimento do futuro, Não há forma de eliminar o risco de frustração da eficiência da decisão em virtude da imprevisível conjugação de fatos supervenientes. Quando existam diversas previsões sobre o futuro, entre si incompatíveis e cada qual respaldadas por posições técnico-científicas igualmente res- peitáveis, não se poderá reprovar a escolha por alternativa que se revelar inadequada posteriormente. Não se poderá afirmar que o desastre era previsível quando existiam previsões diversas e contraditórias, todas apoi- adas em teorias e doutrinas científicas.” (g/n). Essa também é a linha adotada pelo Exmo. Sr. Ministro do Supremo Tribu- nal Federal EROS GRAU12 , em sede doutrinária: “Dá-se na interpretação de textos normativos algo análogo ao que se passa na interpretação musical. Não há uma única interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven: a Pastoral regida por Toscano, como a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por Von Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais romântica, mais derramada, a outra mais longilínea, as duas são autênticas – e corretas. 12 GRAU. Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/ aplicação do direito. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.36. 26 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 Nego peremptoriamente a existência de uma única resposta correta (ver- dadeira, portanto) para o caso jurídico – ainda que o intérprete esteja, através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico. Nem mesmo o Juiz Hércules [Dworkin] estará em condições de encontrar para cada caso uma resposta verdadeira, pois aquela que seria a única resposta correta simplesmente não existe. O fato é que, sendo a interpretação convencional, não possui realidade objetiva com a qual possa ser confrontado o seu resultado (o interpretan- te), inexistindo, portanto, uma interpretação objetivamente verdadeira [Zagrebelsky].” Registre-se que o comum tem sido questionar, basicamente, a valoração feita pelo administrador para amparar a contratação direta, o que, efetivamente, escapa aos limites da atuação do órgão jurídico no controle da legalidade. Em perfeita sintonia com o que aqui se sustenta, aponta DIOGO DE FI- GUEIREDO MOREIRA NETO13 : As dimensões são, portanto, bem distintas: a legitimidade é muito mais ampla que a legalidade, simplesmente porque é impossível, em qualquer sociedade, que a lei defina exaustivamente todas as hipóteses do interesse público. Assim, por mais extensa, minudente e meticulosa que se expresse qualquer definição jurídica da legalidade, remanescerão sempre miríades de aspec- tos do interesse público não legislado que, não obstante, por serem legíti- mos, estarão pendentes de definições políticas derivadas integrativas que, de alguma forma admitida, deverão ser feitas por quem tenha com- petência e quando surgir a oportunidade e a conveniência de expli- citá-las.(g.n) Sobre tal competência, explora KATHERINNE DE MACÊDO MACIEL MIHALIUC14 : “Exatamente, consiste a competência discricionária na possibilidade de valoração subjetiva pelo administrador de determinados conceitos flu- ídos ou vagos e na margem de liberdade, a fim de proceder à melhor escolha diante do caso concreto para consecução da finalidade pública.” (g/n) (...) “dentro dos limites da lei, a escolha da solução a ser adotada só poderá competir ao agente da Administração, sendo veemente vedada a subs- tituição pela valoração ou ponderação feita pelo Juiz.” (g/n) 13 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade: novas reflexões sobre os limites e controle da discricionariedade. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 14. 14 MIHALIUC, Katherine de Macedo Maciel. Discricionariedade Administrativa e conceitos jurídicos indeterminados. Rio de Janeiro: Letra legal, 2004, p. 35; 50; 55. 27 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 (...) “Ao intérprete não está atribuída a utilização dos juízos de oportunidade e conveniência, mas tão somente, do de legalidade, pois tanto a interpreta- ção quanto a discricionariedade exigem , na nomenclatura de Azzariti, um “ momento subjetivo” ou “intelectivo”, mas apenas a última, além deste primeiro momento intelectivo, envolve um momento volitivo e uma capa- cidade criadora. À interpretação não se reconhece o elemento criador, os deslindes dessa atividade limitam-se à intelecção e à cognição, pois, embora “haja elemen- to valorativo e axiológico, este já está implícito na norma interpretada.”15 Definido, pois, que há um forte elemento subjetivo a critério da autoridade competente, verifica-se que nenhuma interferência sobre essa valoração pode ser produzida quer pelo Judiciário, quer pelo Tribunal de Contas e, menos ainda, no controle prévio, pelos Procuradores e Advogados. A justificativa é previamente tomada, da qual não participa o órgão jurídico. O ato ou valoração do administrador não têm como motivo o parecer do Procurador ou Advogado, que, quando muito, atestam que a interpretação dos fatos inerentes à aplicação de um conceito jurídico indeterminado é prevista em dispositivo legal, que, por sua vez, exige tal interpretação para execução da vontade da lei. Não há, no parecer, decisão ou execução, nem motivação (esta, calcada no fato e na interpretação sobre ele incidente, a cargo da autoridade). 3 RESPONSABILIDADE DO ADVOGADO. Cabe, pois, examinar, nesse contexto, se haveria fundamento para a res- ponsabilização do advogado, que se limitou a apreciar o cumprimento de requisi- tos formais, previamente apontados e já decididos pela autoridade competente. Ora, como explica TÊMIS LIMBERGER16 sobre os limites de tal atuação: “Segundo o entendimento de Seabra Fagundes dentro do terreno da gestão política, que é função típica do administrador, não é dado ao juiz interferir, já que isto faria com que o Judiciário se substituísse ao Executivo. Essa liberdade de decisão é onde radica a responsabilidade do poder político – por meio do administrador, responsabilidade essa que não está afeta ao juiz, que não pode pretender se substituir ao administrador, conforme enuncia Enterría. (...) Bachof lançou, por volta de 1955, a teoria da margem da livre apreciação, segundo a qual se reserva à administração uma margem para livre 15 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, 2ºed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 123. 16 LIMBERGER, Têmis. Atos da Administração lesivos ao patrimônio público: os princípios constitucionais da legalidade e moralidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 115-121. 30 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 A motivação da decisão, tomada pelo administrador, é submetida ao mero opinamento do órgão jurídico. Este, de sua parte, não pode colocar em dúvida tais valorações típicas do administrador e recebidas com presunção de legalidade, legitimidade e veracidade. Daí porque o Egrégio STF, aplicando o que é estabelecido em lei sobre os limites da responsabilização do advogado, assim entendeu, pela pena do Exmo. Sr. Ministro CARLOS VELLOSO21 : “Fundamento de maior relevância, entretanto, conducente à concessão writ, é este: o advogado segundo a Constituição Federal, ‘é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.’ Na linha dessa disposição constitucional dispõe o Estatuto do Advogado, Lei 8.906, art. 2º, § 3°: ‘Art. 2º. O advogado é indispensável à administração da justiça. (...) §3° No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta lei.’ O art. 7° proclama os direitos dos advogados, inciso I a XX, prerrogativas e direitos assegurados ao advogado-empregado. Certo é, e bem esclarece a inicial, ‘que a garantia constitucional de intan- gibilidade profissional do advogado não se reveste de caráter absoluto. Os advogados – como, de regra, quaisquer profissionais – serão civilmente responsáveis pelos danos causados a seus clientes ou a terceiros, desde que decorrentes de ato (ou omissão) praticado com dolo ou culpa, nos termos gerais do art. 159 do Código Civil e, em especial, consoante o disposto no art. 32 da Lei 8.906/94, cuja dicção é a seguinte: “Art. 32, O advogado é responsável pelos atos que, no exercício profissi- onal, praticar com dolo ou culpa”. Todavia, acrescenta a inicial, com propriedade, que, “de toda forma, não é qualquer ato que enseja a responsabilização do advogado. É preciso tratar-se de erro grave, inescu- sável, indicando que o profissional agiu com negligência, imprudência ou imperícia. Divergência doutrinária ou discordância de interpretação, por evidente, não se enquadram nessa hipótese.” Ora, o direito não é ciência exata. São comuns as interpretações divergen- tes de um certo texto de lei, o que acontece, invarialvelmente, nos Tribu- nais. Por isso, para que se torne lícita a responsabilização do advogado que emitiu parecer sobre determinada questão de direito é necessário determi- nar que laborou o profissional com culpa, em sentido largo, ou que come- teu erro grave inescusável.” (g/n) Essa linha já era, de longa data, sustentada na doutrina, como se vê nos ensinamentos de CARLOS PINTO COELHO MOTTA22 , citando MARCIO CAM- MAROSANO: 21 STF, Tribunal Pleno. Mandado de Segurança 24073-3, Ministro Relator Carlos Velloso. D.J. de 31/10/2003 22 MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Responsabilidade e independência do parecer jurídico e de seu subscritor. In Fórum administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2002, v.2, nº21, p. 1427. 31 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 “E o advogado, servidor público ou não, que tenha emitido parecer susten- tável em face dos elementos que devia e podia obter, atuando com prudên- cia, também não pode ser pessoalmente responsabilizado pelo fato de sua opinião jurídica não coincidir com a do órgão , administrativo, político ou judicial. O advogado que emite parecer exerce advocacia, é seu direito exercer com liberdade - especialmente com liberdade intelectual – sua profissão (Lei nº 8.906/94, art. 7º, I), não reduzindo essa independência a eventual relação de emprego que mantenha, seja qual for (art. 18). E no exercício de sua profissão presume-se sua boa-fé.” (g/n) E prossegue, afrimando que 23 “Não cabe pois ao intérprete julgar motivação do parecer – tarefa esta extremamente subjetiva -, mas apenas verificar a ocorrência de intenção deliberada da prática delituosa de prejudicar, ou a ocorrência de impru- dência, imperícia, ou negligência, atos estes que são a expressão indica- tiva do dolo ou culpa a que se referem os dispositivos mencionados; e que devem ser apurados, certamente, mediante contraditório e ampla defesa (art.5°, LV, Constituição Federal).” Logo, não sendo apontado erro grosseiro, má-fé ou qualquer nexo de causa- lidade entre o parecer e a decisão, não há qualquer fundamento que justifique a responsabilização solidária dos Procuradores e dos Advogados, pela simples emis- são de um opinamento. 4 A FORMALIDADE PARA A CONTRATAÇÃO DIRETA Como dito, não é dado aos órgãos e instrumentos de controle de legalidade interferir na valoração e nos critérios de administração. Para a segurança do contratado quanto à validade do instrumento a ser firmado, a interpretação do conceito jurídico indeterminado deve ser firmada pela autoridade competente, justificada e motivada, informando-se tudo no procedimento administrativo. Mesmo quando autorizada a contratação, sem a prévia licitação, não se autoriza a dispensa do formalismo necessário para ga- rantir a sua lisura. Indispensável que, em se optando pela contratação direta, sejam atendi- dos os requisitos formais, ou seja, a caracterização da situação (juízo privativo e de valoração subjetiva do administrador), a razão da escolha do contratado e a justificativa do preço. Após devidamente justificada, a dispensa deve ser ratifica- da pela autoridade superior e publicada, com posterior remessa do contrato ao Tribunal de Contas. 23 MOTTA, Carlos Pinto Coelho. Responsabilidade e independência do parecer jurídico e de seu subscritor. In Fórum administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2002, v.2, nº21, p. 1425. 32 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 21-32, jul./dez. 2006 Os fatores constantes da justificativa ultrapassam os limites de competência – e de formação – de uma análise jurídica, já que ali deve se demonstrar a eficiên- cia, o que é meta-jurídico, isto é, vai além dos aspectos apreciáveis no controle prévio da legalidade. É claro que nada impede o controle posterior, de eficiência, sobre os resulta- dos produzidos. No entanto, além de envolver aspectos que vão além dos jurídicos, abrange um conjunto de elementos que o órgão jurídico não dispõe antes da celebra- ção do contrato e sem participar das negociações que levam à sua formação. CONCLUSÃO Não há fundamento, na separação de funções e nos vários tipos de controle exercidos sobre os atos e contratos administrativos, que justifique a responsabilida- de solidária dos profissionais de Direito pela emissão de pareceres no exercício legítimo da profissão. Salvo na hipótese de erro grosseiro ou má-fé, não se justifica a alteração da orientação fixada pelo Supremo Tribunal Federal para se buscar a responsabilização dos Advogados e Procuradores, criando constrangimentos que em nada auxiliarão o aprimoramento da gestão administrativa, mas, ao revés, só afastarão as pessoas de bem do exercício de tais misteres. 35 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 mação pôde ser guardada e levada a outros lugares, bem como ser armazenada para outras gerações. Outra conquista significativa na matéria de possibilidades de interação foi a descoberta da máquina a vapor, que significou o nascimento da indústria, do trem e da eletricidade. Uma das conseqüências que daí advêm para o século XX foi a popularização dos livros, devido à diminuição dos custos, e da imprensa. Atualmente, o acesso de um maior número de pessoas à informática repre- senta um avanço para a comunicação, uma vez que o computador não é somente uma máquina, com seu aspecto tecnológico de última geração, mas também leva consigo a possibilidade de transmitir a informação de uma forma muito veloz. Hoje em dia os computadores não estão mais isolados, mas sim interligados em redes, em conexão com outros computadores. Isso faz com que seus efeitos saiam de um âmbito restrito e sejam transmitidos globalmente e com uma velocidade ímpar, combinando os fatores de tempo e espaço. A telemática, diferentemente da eletricidade, não transmite uma corrente inerte, mas veicula informação, e, quando corretamente utilizada, significa poder5 . Pode-se dizer que isso apresenta dois lados: primeiramente, uma vantagem propi- ciada pela informática, no sentido de armazenar o conhecimento e transmiti-lo de uma maneira veloz. Por outro lado, há o risco de que as liberdades sejam violadas, e tal possibilidade exige a intervenção do poder público, como forma de proteção dos indivíduos. Uma das características do mundo contemporâneo, destaca Frosini6 , é a produção, a circulação e o consumo de informação, que, por suas dimensões, não encontra precedentes em outras épocas. Esse autor assevera que a história da informação humana passa por quatro fases7 . A primeira é caracterizada pela co- municação oral dos povos primitivos. A segunda surge com o alfabeto, que permite a transmissão do conhecimento para outras gerações. A terceira é marcada pela imprensa, que possibilita que a informação seja difundida mais rapidamente a um grande número de pessoas. Já a quarta ocorre com os meios de comunicação de massa, como o rádio, o cinema, a televisão e os computadores. Todos esses aparelhos modernos hoje integram a nossa vida cotidiana e caracterizam a denominada sociedade de massa, de onde surge o direito à infor- mação, que apresenta um duplo aspecto: informar e ser informado. 5 Conforme NORA, Simon; MINC, Alain. Informe Nora-Minc - La informatización de la sociedad. Madrid: [S.n.], 1982, p. 18. (Colección Popular). 6 FROSINI, Vittorio. Diritto alla riservatezza e calcolatori elettronici. In: ALPA, Guido; BESSONE, Mario. Banche dati telematica e diritti della persona, QDC, Padova: Cedam, 1984, p. 30. 7 FROSINI, Vittorio. Cibernética, Derecho y Sociedad, Madrid: Tecnos, 1982, p. 173 et seq. Neste livro, ao tratar dos problemas jurídicos do desenvolvimento da informática e da informação, o autor aponta fases na história da comunicação. Uma primeira seria a palavra oral, a linguagem fonética, em caráter complementar aos gestos. Uma segunda surge com a palavra escrita. Em terceiro lugar, a linguagem matemática, que se complementa com a eletrônica, como um conjunto de sinais simbólicos de palavras e símbolos, por meio das máquinas, configurando-se uma linguagem artificial. A informática representa uma conquista que permite a multiplicação de conhecimento por meio do desenvolvimento científico e social. Tal conhecimento conduz a uma nova forma de poder. O fenômeno do desenvolvimento da informática é comparável com a civilização antes e depois da escrita. 36 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 O progresso tecnológico e o direito à informação vão trazer implicações no mundo jurídico em muitos aspectos, in casu, o uso das novas tecnologias vai propiciar uma maneira diferente de publicizar os atos da administração, tornando- os mais acessíveis à população. 3 O ESTADO NO CONTEXTO ATUAL Atualmente, o Estado se encontra em crise, pois foi incapaz de funcionar a partir do esquema liberal clássico em que foi concebido, sem que conseguisse de- senvolver um projeto constitucional e político capaz de enfrentar as demandas atuais. Fracassou, portanto, ao não conseguir atender o seu projeto original, por meio de Constituições que limitavam os poderes do Estado e garantiam direitos fundamentais. Deste modo, A administração no Brasil não conseguiu vencer os desafios propostos pelo modelo liberal, e tampouco foi capaz de realizar o Estado Social , de maneira a implementar os direitos sociais ; e, atualmente, encontra-se completamente descaracterizado do ponto de vista de um projeto político claro. Como conseqüência, os serviços públicos não são prestados ou o são de uma forma deficiente e diante da ineficácia dos controles e da fuga do Estado do direito administrativo, que se desenvolveu durante o século XIX e em mais da metade do XX, a corrupção no país cresce de maneira avassaladora e assustadora. No dizer de Lênio Streck8 “o que houve (há) é um simulacro de modernidade. (...) Ou seja, em nosso país as promessas da modernidade ainda não se realizaram. E, já que tais promessas não se realizaram, a solução que o establishment apresenta, por paradoxal que possa parecer, é o retorno ao Estado (neo)liberal. Daí que a pós- modernidade é vista com a visão neoliberal. Só que existe um imenso deficit social em nosso país, e, por isso, temos que defender as instituições da modernidade contra esse neoliberalismo pós-moderno9 .” Visando traduzir as deficiências do projeto político neoliberal, na ausência de realização das etapas anteriores, em especial das tarefas a que se incumbia o Estado Social , José Eduardo Faria10 denomina o fenômeno de “neofeudalismo”. Para melhor compreensão deste momento de crise, fazem-se necessárias algumas considerações, a fim de situar a crise do Estado em uma perspectiva histórica. O Estado Constitucional surge no final do século XVIII e se inter-relaciona com o Estado de direito (com seus mecanismos de controle clássicos) e os direitos 8 STRECK, op. cit. p. 63. 9 O neoliberalismo na América Latina. Carta dos Superiores Provinciais da Companhia de Jesus da América Latina - documento de trabalho, 1996, p. 13,18 e 19, apud, STRECK, op. cit., p. 63. 10 FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 322. 37 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 fundamentais. É a função limitadora11 da Constituição, que coincide com a idéia de Constituição escrita12 e encontra seus expoentes máximos na Constituição dos Esta- dos Unidos (1787) e na Constituição Francesa (1791), que têm duas funções bási- cas: limitar o poder do Estado e garantir os direitos fundamentais. São Constituições com as características do Estado Liberal, sendo o individualismo sua marca. A Cons- tituição consagra direitos públicos subjetivos13 . As liberdades são negativas14 , e o cidadão se contenta com que o Estado não interfira na sua liberdade. A função diretiva surge com o advento do Estado Social a partir da segunda metade do século XIX. Os direitos com cunho individual já não são suficientes, e tem início a questão social. Com o desenvolvimento da indústria, a população, que até então era na sua grande parte camponesa, vem para as cidades, e passa a ser necessário contestar as reclamações de trabalho e da seguridade social. Nessa fase há dois períodos: o anterior e o posterior à Segunda Guerra Mundial. 11 As funções do Estado com relação ao constitucionalismo podem ser dividas no mínimo em três, segundo o Professor Jorge Miranda (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1988, p. 179. t. 2). Por primeiro, a função político-institucionalizadora: esse é um período pré-constitucional, no qual não há Constituição tal como se conhece hoje. Começa na Antigüidade, passa pelo absolutismo e se fortalece com o renascimento. A necessidade em toda a sociedade humana de um mínimo de organização política conduz ao aparecimento histórico do Estado. O sentido moderno a que se denomina Estado é uma contribuição de Maquiavel (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 14. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990). Maquiavel é o fundador do realismo político. Estabeleceu a diferença entre política, ética e religião. Separou o político da política. Os gregos já tinham uma concepção de Estado, evidente no pensamento de Platão e de Aristóteles, embora tenham contraponto de idéias. O caráter abstrato de Platão em “A República” (PLATÃO. A República. 8. ed. São Paulo: Atena, 1962. Biblioteca Clássica) e caráter o concreto de Aristóteles (ARISTÓTELES. A Política. São Paulo: Martins Fontes, 2002), que, para escrever “A Política”, pesquisou instituições de mais de cento e cinqüenta Estados – Repúblicas e Monarquias. Suas conclusões não eram oriundas do seu imaginário, mas assim tiradas a partir de soluções concretas das sociedades. Os romanos não teorizaram o Estado, mas desenvolveram uma estrutura de poder: as instituições (a magistratura, o senado, os comícios, com suas formas de poder: Realeza, República e Império). Os romanos não conheciam a noção de direito público subjetivo, o direito romano se funda na actio. A palavra latina jus, que por vezes é traduzida como “direito”, na realidade significava uma “justa relação entre as coisas”, VILLEY, Michel. Leçons d’histoire de la philosophie du droit. Paris: Dalloz, 1957, citado por ARNAUD, André-Jean. O Direito entre a Modernidade e a Globalização: Lições de Filosofia do Direito e do Estado. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 44. Com o absolutismo, o poder público passa por uma fragmentação nas mãos dos senhores feudais. Na Inglaterra (MIRANDA, op. cit., p. 119-120), o absolutismo não é tão forte como em outros países (Espanha, França, etc). 12 São documentos que antecederam e influenciaram as constituições escritas: a Magna Carta, em 1215, e dois documentos fundamentais: Petition of Rights, em 1628, e Bill of Rights, em 1689, que começam a desenvolver direitos com relação aos indivíduos. Durante o Renascimento, o homem passa a ser o centro do universo, e os pensadores com essas características desenvolvem suas obras. Nesse contexto, o cidadão reivindica ser titular de direitos, culminando na Revolução Francesa, que, além de um movimento da França, teve o cunho da pretensa universalidade, pelo menos no mundo ocidental. 13 A expressão direito público subjetivo, deve-se a Georg Jellinek, (JELLINEK, Georg. System der Subjektiven öffentlichen recht, zweite, duchgesehene und vermehrte auflage, anastatischer neudruck der ausgabe von 1905. Tübigen: [s.n.], 1919, p. 86 et seq.). A classificação dos direitos públicos subjetivos proposta por Jellinek é tripartite. Desta forma, os diferentes estágios da posição do indivíduo frente ao Estado, como forma de limitar o status passivo, status subjectionis, que consiste na ausência de autodeterminação individual, e portanto, de personalidade, onde há a completa submissão do cidadão com relação ao ente público, são três. A denominação é a seguinte: a) status negativo, status libertatis, em que o indivíduo é titular de uma esfera de liberdade individual, à margem de intervenção do Estado; b) status positivo, status civitatis, no qual o indivíduo tem direito a exigir prestações concretas do Estado; c) status ativo, status activae civitatis, onde o indivíduo é detentor do poder político e, como tal, tem direito a participar no exercício de poder. 14 BERLÍN, Isaiah. Dos conceptos de libertad: Cuatro ensayos sobre la libertad. Madrid: Alianza, 1988, p. 187-243. 40 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 desmantelamento destes controles e a ausência de construção de mecanismos eficientes, que de uma condição sólida passaram a líquida, parafraseando Zyg- munt Bauman30. Os mecanismos de controle que foram implementados ao longo de séculos são agora destruídos e nenhuma alternativa eficaz é apresentada. 4 TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO: A DENOMINADA FUGA DO DI- REITO ADMINISTRATIVO EM DIREÇÃO AO DIREITO PRIVADO Após a 2ª Guerra Mundial, os Estados começaram a promover um ajuste fiscal por meio do corte de serviços públicos até então prestados. Conseqüente- mente, muitas tarefas que eram realizadas pelo setor público passaram a ser de- sempenhadas pelo setor privado. Deste modo, todo o direito administrativo que tinha se desenvolvido a partir da noção de serviço público, no século XIX, apresen- ta uma mudança súbita de perfil, sem que novos mecanismos eficientes de fiscali- zação tenham sido criados. É o que Fritz Fleiner31 denominou uma fuga do direito administrativo em direção ao direito privado. Deste modo, saúde, educação, segurança e previdência, somente para citar algumas áreas prioritárias em termos de prestação social são desempenha- das pela iniciativa privada. Ressalte-se, porém que o setor que é passado à inici- ativa privada é o que apresenta a possibilidade de lucro, enquanto os setores deficitários são desempenhados pelo setor público. Somente para exemplificar: no setor da saúde no Brasil, 74,2% dos brasileiros são usuários do SUS32. Deste modo, as pessoas mais necessitadas têm de fazer uso do sistema de saúde públi- ca, enquanto a fatia de 25,8% que tem condições de pagar recorre a um plano de saúde particular. Assim, é falacioso o argumento de que a iniciativa privada se interessa pela prestação do serviço, o que deseja, em realidade, é o serviço com o qual pode auferir lucro, não se interessando com os demais setores que mais necessitam da prestação, mas que não tem condições de pagá-lo. Tal fenô- meno repete-se com relação às demais áreas, veja-se a segurança, enquanto o Estado fica com a tarefa árdua da segurança pública em geral, muitas empresas hoje lucram com a vigilância privada, venda de equipamentos de segurança, tais como cerca elétrica, alarmes, etc. Isso faz com que o cidadão gaste enormes quantias com estes utensílios para adquirir uma sensação de segurança e na 30 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. O autor trabalha com a idéia de que as relações e os produtos de sólidos passaram a líquidos, nesta época. Deste modo, desde as relações afetivas que eram mais duradouras, até as relações de trabalho, que se tornam a cada dia mais precárias e informais e os objetos de consumo, exemplificativamente um copo de vidro e um copo de plástico, tudo isto atesta como as relações e os produtos são mais frágeis. Daí que denomina, utilizando-se da noção de física a passagem do estado sólido para o líquido. 31 FLEINER, Fritz, Institutionem des Verwaltungsrechts, 8ª ed., 1928, p. 326, apud PUIGELAT , op. cit. , p. 158. 32 De acordo com a pesquisa mundial sobre saúde, desenvolvida pela OMS e coordenada no país pelo Centro de Informação Científica Tecnológica (CICT) da Fiocruz, em estudo que avalia os sistemas de saúde de 71 nações, consigna que os brasileiros dispensam em média 19% da renda domiciliar mensal com saúde, da parcela da população de 25,8% que têm acesso aos planos de saúde privados, enquanto a maioria 74,2% conta com os serviços do Sistema Único de Saúde – SUS. Disponível em: http://www.ministeriodasaude.gov.br Acesso em: 25nov.2004. 41 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 maioria das vezes, a criminalidade se sofistica, pois ao invés de voltar a violência contra o patrimônio, direciona-se contra a pessoa. A submissão parcial ao direito privado de administrações encarregadas de funções tipicamente administrativas tem por finalidade liberá-la de rígidos proce- dimentos administrativos de contratação, de gestão patrimonial, de controle dos gastos e seleção de pessoal, propiciando assim, uma atuação supostamente mais eficiente. Tal argumento também é falacioso, pois quando se conhece o regime dos funcionários públicos, sabe-se que aí não estão os super-salários, mas quan- do eles decorrem de servidores fora do quadro que cumulam inúmeras vantagens e benefícios. 5 O REDIMENSIONAMENTO DOS CONTROLES CLÁSSICOS DO ES- TADO E A DENOMINADA CIDADANIA ELETRÔNICA OU CIBERCI- DADANIA: Neste contexto, os típicos elementos do Estado33 : povo, território e poder (soberano), não subsistem. A Internet muda o clássico conceito de território, permi- tindo que as limitações geográficas sejam superadas no ciber espaço. A noção de soberania também perde sua importância, diante da economia globalizada e dos tratados internacionais. Considerando que os componentes do Estado tidos como essenciais no iní- cio do século XX, alteraram-se, impõe-se a reinterpretação, também, da dou- trina da Separação dos Poderes. Esta é originária a partir da teoria proposta por Montesquieu34 , e permanece até hoje aceita pelos países em que vigora o Estado Democrático de Direito. O autor não utiliza a expressão Separação dos Poderes, porém transmite a idéia de controle recíproco entre os poderes e a idéia da divi- são das funções do Estado. Essa idéia de Separação dos Poderes foi incorporada pela Constituição norte-americana e foi expressa no art. 16 da Declaração Univer- sal dos Direitos do Homem e do Cidadão, influenciando até hoje, os Estados Contemporâneos35 . Esses mecanismos de fiscalização recíproca entre os poderes podem ser de- nominados controles horizontais de poder, pois se situam no mesmo patamar. Como exemplos de horizontalidade conhecidos em nossa Constituição, pode-se citar: a) o controle do Judiciário sobre os atos oriundos do Poder Legislativo, o controle da constitucionalidade das leis (que não foi abordado por Montesquieu, 33 JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. 2. ed. [reimpr. de la segunda edición alemana (1905) editada por el Editorial Albatros en el año 1954 ], Buenos Aires: Julio César Faira Ed., 2005, p. 495-625. 34 MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 25. (Coleção os Pensadores). Na obra de Montesquieu, encontra-se uma verdadeira revolução metodológica no plano filosófico. Montesquieu é tido como o primeiro sociólogo, uma vez que destituiu da lei a origem divina e colocou-a como, obra da razão humana, da realidade social. Paradoxalmente, não obstante as rivalidades históricas que existiam entre ingleses e franceses, este cidadão francês descreveu o Parlamento Inglês quando viajou para a Inglaterra em 1729. A teoria conhecida como separação dos poderes encontra-se enunciada no Livro XI, denominado da Constituição da Inglaterra. 35 AGESTA, Luis Sanchez. Curso de Derecho Constitucional Comparado. 7. ed. Madrid: Universidad de Madrid, 1988. 42 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 em sua obra, mas que foi desenvolvido a partir do modelo norte-americano e austríaco) art. 102, I, “a”; b) o exercido pelo Poder Legislativo sobre os atos do Poder Executivo, quando proclama os princípios que regem a administração públi- ca, previstos no art. 37, “caput”, da CF e, também, quando julga os crimes de responsabilidade do Presidente da República, art. 86, da CF; c) o Poder Executivo tem o poder sobre os atos de produção legislativa, quando se permite ao Presidente da República que vete os projetos de lei, art. 66, § 1º, da CF; d) o Poder Judiciário pode controlar atos emanados das autoridades públicas, por meio das ações cons- titucionais : mandado de segurança individual, art. 5º, LIX, e coletivo, art. 5º LXX, habeas corpus, art. 5º LXVIII , habeas data, art. 5º , LXXII, da CF, etc. Desta forma, é possível propugnar um controle dito vertical , uma vez que se tem buscado a cada dia a democratização do poder. Nesta visualização de contro- les, seria possível a sociedade fiscalizar os atos praticados pelo Estado nas suas mais diferentes funções. Esta proposição de controles horizontais e verticais foi desenvolvida por Karl Loewenstein36 . Para o citado autor os controles horizontais são aqueles que se operam dentro de um determinado poder (intra-orgânico) ou entre diversos detentores de poder (interorgânicos). Os controles horizontais se movem lateralmente, no mesmo aparato de domínio, sendo que os controles verticais37 funcionam em uma linha ascendente e descendente entre a totalidade dos poderes instituídos e a comunidade, por meio de seus componentes. Nesta linha, merecem ser apontados novos mecanismos de controle. A de- mocracia participativa decorre do Estado Democrático de Direito, que a partir do art. 1º da CF permite uma participação mais direta dos cidadãos nas estruturas de poder38. Como conseqüência, alguns mecanismos são, desde logo, instituídos: os mecanismos do art. 14 da CF (plebiscito, referendo e iniciativa popular), caráter democrático da gestão da seguridade social, art. 194, VII, da CF, participação da comunidade nas diretrizes do sistema único de saúde, art. 198, III, da CF, partici- pação da população no controle das ações de assistência social e gestão democrá- tica do ensino público, art. 206, VI, da CF. Visando estabelecer o equilíbrio das contas públicas brasileiras, a Lei de Responsabilidade Fiscal, veio a disciplinar os gastos do administrador público e, ainda, a divulgar a idéia de transparência na gestão fiscal, como forma de conferir efetividade ao princípio da publicidade, norteador da administração pública. Há a conjugação dos princípios da participação popular e publicidade, podendo ser de- nominado de controle social 39. 36 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitución. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1976, p. 33. 37 No entender do autor LOEWENSTEIN, op. cit., sob a denominação de controles verticais, agrupam-se três formas: a) o Federalismo; b) os direitos e garantias individuais e c) pluralismo, onde há: c.1) grupos institucionalizados (ex: Igreja, partidos políticos, sindicatos e associações, etc), c.2) manifestações sociológicas-metajurídicas, tais como lobbies. 38 Sobre o tema da participação política vide MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito da participação política legislativa, administrativa, judicial (fundamentos e técnicas constitucionais da legitimidade). Rio de Janeiro: Renovar, 1992. 39 FREITAS, Juarez. O princípio da democracia e o controle do orçamento público brasileiro. Revista Interesse Público, Porto Alegre, v. 4, N. Esp., p. 11-23, 2002. 45 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 a público e pode ser visto e ouvido por todos; e b) o mundo comum a todos, que para ela não se reduz à natureza, mas ressalta o artefato humano, constituído por coisas criadas que se inserem entre a natureza dos homens, unindo-os e separan- do-os num habitat humano. O primeiro significado é o que compõe a transparên- cia, extrai-se, então, a conseqüência de que a esfera pública, comum a todos deve vir a público, isto é, ao conhecimento de todos. Norberto Bobbio54, ao tratar das relações da democracia com o poder invisível, estatui que a publicidade é entendida como uma categoria tipicamente iluminista na medida em que representa um dos aspectos da batalha de quem se considera chamado a derrotar o reino das trevas. Utiliza-se, por isso, a metáfora da luz, do clareamento para contrastar o poder visível do invisível. A visibilidade vai fornecer a acessibilidade e a possibilidade de controle dos atos públicos. Daí se origina a polêmica do iluminismo contra o Estado absoluto, a exigência da publi- cidade com relação aos atos do monarca fundados no poder divino. O triunfo dos iluministas tem como resultado o art. 15 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão55, que prevê o direito da sociedade de pedir contas a todo o agente público incumbido da administração. Este direito evolui e vem consolidado na Carta dos direitos fundamentais da União Européia56, que no art. 41, prevê o direito a uma boa administração. Quem contribuiu para esclarecer o nexo entre opinião pública e publicidade do poder foi Kant57, que pode ser considerado o ponto de partida de todo o discurso sobre a necessidade da visibilidade do poder. No segundo Apêndice à Paz Perpétua intitulado “Do acordo entre a política e a moral segundo o conceito transcedental de direito público”, Kant estatui o seguinte princípio: “Todas as ações relativas ao direito de outros homens, cuja máxima não é suscetível de se tornar pública, são injustas”. Kant58 pretende a partir deste enunciado garantir a unifor- midade da política e da moral mediante a publicidade. Bobbio59 pergunta: o que se constitui em um escândalo, quando este nas- ce? Para responder que o momento em que nasce o escândalo é o momento em que se torna público um ato ou uma série de atos mantidos em segredo ou ocultos, na medida em que poderiam ser tornados públicos pois, caso o fossem, não pode- riam ser concretizados. Nenhuma adminstração confiaria um cargo a um servidor que fosse praticar o crime de peculato, concussão, etc. Assim, o que distingue o poder democrático do poder autocrático é que apenas o primeiro, por meio da livre crítica, pode desenvolver em si mesmo os 54 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 7ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 103. 55 RIALS, Stéphane. Que sais-je? Textes constitutionnels français. 11e édition. Paris: Presses Universitaires de France, 1995, p. 5. 56 Disponível em http://www.europa-convention.eu.in//. Acesso em 31/8/2006. 57 Kant apud BOBBIO, op. cit., p. 103. 58 Kant apud SMEND, Rudolf . Constitución y Derecho Constucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 277. No capítulo V, Smend discorre “sobre el problema de lo publico y la cosa publica”. 59 BOBBIO, op. cit., p. 105. 46 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 anticorpos e permitir formas de desocultamento. A democracia como poder visível, que permite ao cidadão o controle por parte de que quem detém o poder. A informação possui uma nota distinta no Estado Democrático de Direito se comparado ao modelo liberal. Para este último é uma conseqüência política do exercício de certas liberdades individuais. Nos Estados democráticos, a livre discus- são é um componente jurídico prévio à tomada de decisão que afeta à coletividade e é imprescindível para sua legitimação. Por isso, para Ignácio Villaverde Menén- dez60 no Estado democrático a informação é credora de uma atenção particular por sua importância na participação do cidadão no controle e na crítica dos assun- tos públicos. Não se protege somente a difusão, como sucedia no Estado liberal, mas se assegura a própria informação, porque o processo de comunicação é essen- cial à democracia. O ordenamento jurídico no Estado democrático se assenta no princípio geral da publicidade, devendo o sigilo ser excepcional e justificado. Esse preceito é extraído com base no princípio da publicidade e do direito a ser informa- do do cidadão. O enunciado proferido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, não é de publi- cidade, mas sim de transparência. A partir daí, pode-se perguntar o fundamento da transparência. A primeira indagação a que se submete o jurista, é a tomada de posição, no sentido de tratar-se ou não de um novo princípio61. A Constituição, em seu art. 37, “caput”, não foi econômica ao enunciar os princípios que regem a administração pública. Ao contrário, poder-se-ia dizer que foi minudente. Embora a transparência não seja expressa dentre os princípios que regem a administração pública, a partir dos já enunciados, deles pode-se extrair. Desta forma, a transpa- rência demonstra ser uma integração do princípio da publicidade conjugado com o direito à informação (art. 5º, XXXIII) e o princípio democrático. A publicidade visa por meio da divulgação do fato, assegurar que o ato foi praticado de acordo com a legalidade, moralidade e os demais preceitos que regem a administração. A publicidade dos atos emanados do Estado, faz-se, ainda, tradicionalmente nos diários oficiais do Estado, com destinatários muito específicos e à grande maioria de pessoas é algo estranho e pouco atrativo. Deste modo, os dados veiculados pelos órgão públicos por meio eletrônico fazem com que não apenas os agentes que trabalham na burocracia do Estado, mas muitos outros cidadãos se interessem por acessar o conteúdo da informação. Da publicidade e da informação decorre uma forma de o cidadão poder controlar os atos emanados do Estado e aí reside, também a participação popular. 60 VILLAVERDE MENÉNDEZ, Ignácio. Estado democrático e información: El derecho a ser informado y la Constitución Española de 1978. Junta General del Principado de Asturias: Oviedo, 1994, pp. 33-35. 61 MILESKI, Hélio Saul. Transparência do poder público e sua fiscalização. Revista Interesse Público, Porto Alegre, v. 4, N. Esp., p. 26-27, 2002. A transparência como princípio norteador da ação governamental, inspirada no conceito de accountability, procedimento utilizado especialmente nos países anglo-saxônicos – Nova Zelândia, que torna o governo responsável perante a população, em face do desempenho das finanças públicas. A transparência na gestão fiscal é uma exigência do Fundo Monetário Internacional. Posicionando-se, também a favor do princípio da transparência vide TABORDA, Maren Guimarães. O princípio da transparência e o aprofundamento dos caracteres fundamentais do direito brasileiro. RDA, Rio de Janeiro, 230: 251-279, 2002. 47 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 33-47, jul./dez. 2006 No dizer de Diogo62 a publicidade “é um instituto polivalente da participação polí- tica, de amplo espectro subjetivo, pois se estende a toda a sociedade, visando tanto à legalidade quanto à legitimidade, mediante a qual, pela divulgação dos atos do poder público, reconhece-se o direito ao conhecimento formal ou informal das suas tendências, decisões, manifestações e avaliações oficiais”. A realização do princípio da publicidade, constitui-se em um dever da admi- nistração e se complementa com o direito à informação do cidadão. Desta conju- gação, tem-se a satisfação dos demais princípios que regem a administração públi- ca. Constata-se que a administração agiu ao amparo da legalidade, busca-se a moralidade e é satisfeita a efetividade, princípios estes todos que servem à realiza- ção do Estado Democrático de Direito. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS: O direito classicamente atua depois do fato ocorrido, ou seja, é estruturado a partir do aspecto repressivo. Essa não é a melhor alternativa, pois o descumpri- mento da lei já ocorreu, com conseqüências, na maioria das vezes irreparáveis. A apropriação indevida não foge ao tema, pois corre-se atrás do prejuízo. Por isso, ressalta-se o aspecto preventivo com que pode ser atacado o problema mediante a divulgação dos dados públicos. No Brasil, aos poucos se desenvolve a consciência com relação a importân- cia da preocupação com o orçamento, que existe há muito tempo em outros Esta- dos, como por exemplo, Inglaterra e EUA. O fato de a informação estar mais disponível faz com que haja um maior cuidado com o trato do dinheiro público. Saliente-se, outrossim, que os Estados em que há maior transparência na infor- mação são aqueles em que o nível de corrupção é menor. A transparência é uma via de mão dupla, de um lado a administração tem o dever de dar publicidade aos seus atos e, por outro, o cidadão tem o direito a ser informado. Deste modo, por meio da informação disponível por meio eletrônico, desenvolve-se um controle preventivo, estimula-se a participação popular, torna-se o exercício do poder mais transparente e, portanto, mais democrático. Evita-se que o cidadão desinformado dos assuntos públicos, constitua-se num idiótes (con- forme a nomenclatura dos gregos). Com a diminuição dos desvios de dinheiro gerados pela corrupção é possível viabilizar a melhoria das prestações sociais, que podem ser oferecidas à população, ou seja, concretizam-se direitos. 62 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo.op. cit., p. 103. 50 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 A organização das Procuradorias dos Estados foi colocada ao lado, em posição de horizontalidade, do Ministério Público (Seção I) e da Advocacia e da Defensoria Pública (Seção III). As atribuições dos Procuradores dos Estados são, conseqüentemente, por vontade constitucional, consideradas como funções essenciais ao funcionamento da Justiça, o que lhes elevam a nobreza maior de instituição permanente e inde- pendente, com função específica de representação judicial das unidades federati- vas do Brasil, bem como de consultoria jurídica, o que os transforma, por defende- rem os Estados, em advogados da cidadania, por somente com esta assumirem o compromisso de bem servir no campo que a Constituição lhes reservou. Aos Procuradores dos Estados, por outro ângulo, são aplicáveis o princípio constitucional da sua indispensabilidade na defesa judicial dos entes federados, pelo que estão protegido pela imunidade atribuída aos advogados. São mensagei- ros e, ao mesmo tempo, soldados defensores das liberdades públicas e do patrimô- nio estatal. Lutam pelas garantias instituídas pela ordem jurídica, pautando as suas ações na valorização da dignidade humana e no fortalecimento da cidadania. Por outro lado, uma análise das manifestações já tornadas públicas pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamentos emitidos sobre o posicionamento dos Procuradores do Estado no contexto jurídico, permite que se apresente, em forma de enunciados, o quadro seguinte: a) O art. 132 da Constituição Federal operou uma inderrogável imputação específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura nos cargos a serem exercidos, depende de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos, conforme assinalado na ADIN n. 881-1, Rel. Min. Celso de Mello, Informativo do STF, n. 68. b) Não pode a Constituição Estadual prevê a impossibilidade de inamovibi- lidade dos Procuradores, em face da relevância de suas funções (ADIN n. 1.246/ PR, Rel. Min. Moreira Alves, Informativo n. 8). c) “O princípio da razoabilidade, a direcionar no sentido da presunção do que normalmente ocorre, afasta a exigência, como ônus processual, da prova da qualidade de Procuradores do Estado por quem assim se apresente e subscreve ato processual. O mandato é legal e decorre do disposto nos artigos 12 e 132, respec- tivamente, do Código de Processo Civil e da Constituição Federal” (STF – 2a. Turma, RE n. 192.533-1 (São Paulo), Rel. Min. Marco Aurélio). d) O Supremo Tribunal Federal reconhece constitucional dispositivo legal que cria Procuradoria-Geral das Assembléias Legislativas, com funções destaca- das das atribuídas à Procuradoria-Geral do Estado (ADIN 175, RTJ, 154/14). e) O Poder autônomo (mesmo não personalizado) poder criar assessoria jurídica própria (ADIN 825, julgada em 22.04.1993)1 . ¹ As citações jurisprudenciais citadas foram extraídas da obra “Constituição Federal Interpretada”, da autoria de Alexandre de Moraes, Ed. Atlas, 2002. 51 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 f) “A representação judicial do Estado, por seus procuradores, deriva da lei, dispensada a juntada de mandato, diferentemente das autarquias e socieda- des de economia mista, cujos advogados deverão juntar procuração” (STF, RDA, 179/158). g) “Não ofende a Constituição Federal dispositivos de Cartas Estaduais que conferem aos Procuradores do Estado prerrogativas de foro, atribuindo ao Tribunal de Justiça a competência para processá-los e julgá-los nos crimes comuns e de responsabilidade, observada a regra do art. 125, § 1º)2 . O quadro formado pelas idéias doutrinárias e jurisprudenciais acima desta- cadas nos levam a configurar uma sistemática presente na Constituição Federal que aponta, de modo incontrovertido, para a configuração autônoma das Procu- radorias Judiciais dos Estados na organização da estrutura estatal. 2 A ATUAÇÃO RELEVANTE DAS PROCURADORIAS DOS ESTADOS ACENA PARA A SUA AUTONOMIA. APOIOS À ESSA PRETENSÃO Consagrado está, segundo o nosso entendimento, em face da integração das Procuradorias dos Estados no Capítulo III da Constituição e do seu reconheci- mento de ser atividade essencial à atividade Judiciária, o propósito do legislador constituinte de considerá-las como instituições independentes, autônomas, com princípios próprios que regem os seus destinos. Os Procuradores, no campo de suas atribuições definidas na Carta Magna, possuem prerrogativas constitucionais explícitas e implícitas, todas vinculadas aos postulados da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da eficiência, da razoabilidade, da proporcionalidade, da precaução e da pondera- ção, fortes esteios do regime Democrático. A vinculação de suas funções a estes princípios gera, conseqüentemente, a caracterização da necessidade de seus órgãos serem autônomos na organização estatal, nivelando-se ao Ministério Público e aos Defensores Públicos. Essas prerrogativas constitucionais implícitas foram estudadas, com profun- didade, por Marco Túlio de Carvalho Rocha, Procurador do Estado de Minas Gerais, em trabalho intitulado “A Unicidade Orgânica da Representação Judicial e da Consultoria Jurídica do Estado de Minas Gerais”, publicado na Revista de Direito Administrativo n. 223, Rio de Janeiro, pp. 169-197, janeiro/março de 2001. O que escreveu o mencionado autor, pela excelência do conteúdo, determina que seja feita uma apresentação, embora resumida, do pensamento exposto. Em síntese, podemos concluir que, conforme anunciado por Marco Túlio de Carvalho Rocha, são prerrogativas constitucionais implícitas dos Procuradores dos Estados as seguintes: ² CF, Art. 125: “Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição”. Parágrafo 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição dos Estados, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça”. 52 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 a) a função de controle da legalidade dos atos da Administração Pública; b) a independência funcional. Portanto, ao lado das prerrogativas explícitas que são as de representar judicialmente o Estado e prestar-lhe consultoria, estão as implícitas que contribu- em para o fortalecimento da instituição. Por outro ângulo, há de ser cultuado o pregado por Diogo de Figueiredo Mendonça Neto, no artigo “As Funções Essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais”, publicado na Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, dezembro de 1991, pp. 25 e segs, onde estão proclamados os princípios constitucionais informativos das Procuradorias dos Estados: essencialidade, insti- tucionalidade, igualdade, unidade, organicidade unipessoal, independência funci- onal, inviolabilidade de autonomia administrativa e autonomia de impulso. Segundo Diogo de Figueiredo Mendonça Neto, no artigo citado, esses princí- pios informam que: “A essencialidade está afirmada na própria designação constitucional das funções. Elas não podem deixar de existir, com as características e roupa- gem orgânica que lhes são próprias, e nem tolhidas ou prejudicadas no seu exercício. Sua essencialidade, em última análise, diz respeito à manu- tenção do próprio Estado Democrático de Direito e à construção do Estado de Justiça. A institucionalidade também resulta evidente da própria criação constitu- cional; explícita, no caso do Ministério Público (art. 127), da Advocacia Geral da União (art. 131) e da Defensoria Pública, e implícita, quanto aos Procuradores de Estado e do Distrito Federal (art. 132). A igualdade decorre da inexistência de hierarquia entre os interesses co- metidos a cada uma das funções essenciais à Justiça; a igual importância das funções determina a igualdade constitucional das procuraturas que as desempenham. A unidade, que consiste na inadmissibilidade de existirem instituições concorrentes, com a mesma base política e com chefias distintas, para o exercício das funções cometidas a cada procuratura, está explícita no art. 127, § 1º, ao tratar do Ministério Público, e no art. 127, § 1º, quando faz menção à Advocacia Geral da União; implícita, para os Procuradores de Estado e do Distrito Federal e para a Defensoria Pública, conforme revelação dos arts. 132 a 134. A organicidade unipessoal decorre da fundamental e genérica condição de advogado, estabelecida no artigo 133 da Constituição. Cada agente das procuraturas constitucionais é um órgão individual, para empregar nomenclatura de Marcello Caetano, com sua natureza institucional. Isso está explícito para os Procuradores dos Estados e Distrito Federal (art. 132), mas fica implícito para os demais membros das procuraturas cons- titucionais. A independência funcional diz respeito à insujeição das procuraturas cons- titucionais a qualquer outro Poder do Estado em tudo o que tange ao exercício das funções essenciais à justiça. A inviolabilidade é um consectário da independência funcional no que respeita às pessoas dos agentes públicos das procuraturas constitucio- 55 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 É preciso adotar mecanismos, em nível constitucional, que impossibilitem aos administradores desvirtuar as finalidades dos órgãos públicos. Conforme ensinamento de Hely Lopes Meirelles, ‘toda atividade do admi- nistrador público deve ser orientada para o bem comum da coletividade. Se dele o administrador se afasta ou desvia, trai o mandato de que está investido, porque a comunidade não institui a Administração senão como meio de atingir o bem-estar social. Ilícito e imoral será todo ato adminis- trativo que não for praticado no interesse da coletividade’. Todavia, e lamentavelmente, na prática a realidade é muito diferente. Na maior parte desses Órgãos, o quadro é deficiente, a remuneração é baixa e a estrutura é inadequada. Possivelmente esse quadro pode ser explicado pela inexperiência administrativa. A QUEM PODERIA INTERESSAR UMA ASSESSORIA JURÍDICA DEFICIENTE? Mesmo orgulhosos por desempenharem atividade de especial relevância, a baixa remuneração, a deficiência estrutural e o alto volume de proces- sos a que os procuradores de todas as Unidades Federadas estão subme- tidos, tem acarretado a evasão para outros cargos menos atribulados. Tradicionalmente, os Procuradores de Estado são profissionais respeita- dos no meio jurídico e, inafastavelmente, devem ser aprovados em con- cursos públicos de provas e títulos altamente concorridos. Juristas de expressão nacional como Sérgio Ferraz, Carlos Ary Sundfeld, Michel Te- mer, Maria Sylvia Di Pietro, Carmem Lúcia Antunes Rocha, Luís Roberto Barroso são Procuradores de Estado”. A seguir, conclui pela pregação da autonomia administrativa, financeira e funcional como a via necessária para a instituição alcançar o fortalecimento que necessita. Afirma: “5. A AUTONOMIA COMO SOLUÇÃO Para se evitar os desvios de finalidade e o conseqüente enfraquecimento das instituições, é preciso promover as modificações necessárias nas Constituições, de maneira que o administrador fique impossibilitado de alterar toda uma estrutura para atender interesses menores. Conforme ressaltou Seabra Fagundes, ‘O que importa principalmente em uma Constituição não é se resuma ela em texto breve. O que se deve aspirar é que ela atenda, no seu bojo, às várias relações ou situações que , segundo as condições político-sociais do país, mereçam ser disciplinadas com exatidão e de modo a perdurarem no tempo, para que os poderes do Estado não as possam desconhecer, ferir ou deturpar’. Em 1998, por meio da Emenda nº 19/98, a Constituição Federal teve o título da Seção II, do Capítulo IV, do Título IV, alterado para ADVOCACIA PÚBLICA, em substituição a Advocacia-Geral da União, elevando-se as Procuradorias ao status constitucional. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, na obra Comentários à reforma admi- nistrativa, Editora RT, escreveu: ‘A Emenda Constitucional nº 19/98 de- terminou a correção da rubrica relativa a Seção II do Capítulo IV do Título IV da Constituição Federal, substituindo a expressão Advocacia-Geral da União por Advocacia Pública. Tal modificação elegeu definitivamente as Procuradorias Gerais dos Estados, inclusive, em órgãos de nível constitu- 56 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 cional, no que procedeu com acerto em vista do papel de especial relevân- cia que desempenham aqueles profissionais’. Dando continuidade à necessidade de evolução e aprimoramento das relações jurídicas e das instituições, está tramitando no Congresso Naci- onal uma nova PEC, Proposta de Emenda Constitucional que dá às Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal autonomia funcional e administrativa. Essa proposta inclui o §2º no art. 132 da CF, que está redigido da seguinte forma: Às Procuradorias Estaduais e do Distrito Federal são asseguradas autonomia funcional e administrativa, e a iniciativa de sua proposta orça- mentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentári- as e subordinação ao disposto no art. 99. §2º. Trata-se de um avanço sem precedentes. Finalmente, as Procuradorias passariam a gerir seus próprios recursos, podendo realizar, por conta própria, os concursos públicos para preenchimento das vagas existentes e aparelhar os órgãos. Somente com a almejada independência as Procuradorias ficariam livres das vicissitudes ideológicas dos administradores que se sucedem de qua- tro em quatro anos, podendo, enfim, reestruturar esses Órgãos de forma a cumprirem plenamente sua atribuição constitucional que é, em última análise, a preservação do interesse e do patrimônio público”. Há, entre tantos outros documentos defendendo a autonomia financeira, funcional e administrativas das Procuradorias, o posicionamento exposto nesse sentido pela Associação Nacional dos Procuradores do Estado – ANAPE, em ofí- cio dirigido ao Congresso Nacional, por ocasião da Reforma do Poder Judiciário, onde estão expressadas as mais convincentes razões para o acolhimento dessa pretensão. Eis o seu conteúdo: “O texto constitucional vigente, promulgado em 1988, organizou as car- reiras Jurídicas estatais e, marcadamente, definiu o papel do Ministério Público, da Advocacia Pública e da Defensoria Pública – arts. 127 a 130, 131 a 132 e 133. A Constituição Federal, ao definir essas instituições como funções essen- ciais à Justiça, atribuiu ao Ministério Público a defesa da ordem Jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponí- veis; à Advocacia Pública – exercida no nível federal pela Advocacia da União e, no plano estadual, pelas Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal –, a representação Judicial e a consultoria Jurídica das respecti- vas unidades federadas; e a Defensoria Pública a defesa dos menos favo- recidos, ou seja, pobres na forma da lei. Os órgãos da Advocacia Pública tiveram reforçado, desse modo, a sua missão Institucional tradicional de representar os entes federativos, ga- rantindo sempre a legalidade da sua atuação administrativa. Nessa pers- pectiva, a função constitucional das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal engloba a defesa do patrimônio público, inclusive contra os eventuais abusos de poder promovidos pelos governantes, no exercício do seu mandato. 57 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 Também ao exercer a representação judicial da unidade federada, cum- pre ao Procurador de Estado responder isentamente às ações propostas contra a Fazenda Pública e promover, quando necessário, as medidas judiciais cabíveis para a defesa do interesse do ente federativo, não na perspectiva dos detentores do poder, mas na salvaguarda do interesse e do patrimônio públicos. Nessa perspectiva, a autonomia das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal é fator preponderante para que se garanta uma represen- tação Judicial pautada pela técnica e respeito à lei. Também no exercício de sua função consultiva, as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal funcionam como órgão de balizamento e orientação jurídica para todos os órgãos da Administração Pública, cons- titucionalmente vinculada aos princípios da legalidade, moralidade, im- pessoalidade, publicidade e eficiência. Sendo, pois, a primeira instância de controle de legalidade dos atos da Administração Pública, as Procuradorias dos Estados e do Distrito Fede- ral atuam de forma preventiva, realizando o controle interno da legalida- de das práticas administrativas, promovendo um exame prévio da legiti- midade dos atos a serem praticados, conferindo-lhes a necessária legiti- midade e coibindo as práticas perniciosas. Mesmo com a existência desse controle, que não exclui aqueles exercidos pelo Judiciário, Ministério Público e Tribunal de Contas, constatam-se ainda assim abusos por parte dos detentores do poder, com graves e sérios prejuízos à coletividade, com repercussão no erário. Daí a necessi- dade do aprimoramento da atuação das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal, condicionada à autonomia perseguida na denominada Reforma do Poder Judiciário. A inserção das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal no texto constitucional foi festejada pelos mais ilustres juristas pátrios, como Dio- go de Figueiredo Moreira Neto, José Afonso da Silva, Celso Antônio Ban- deira de Mello, dentre outros. Dentro desse contexto, a autonomia funcional, administrativa e financei- ra das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal representa fator indispensável para que a sua função institucional seja alcançada e pre- servada de eventuais interferências políticas promovidas pelos titulares do poder, no exercício dos seus mandatos. O caráter fundamental dessa atuação das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal não exclui nem minimiza a presença e efetividade da atuação do Ministério Público que, enquanto fiscal da aplicação da lei, certamente não detém essa prerrogativa de maneira exclusiva, tornando- se mais complexo e efetivo o controle de legalidade quando, paralelamen- te exercido pelos órgãos da Advocacia Pública, que detêm igualmente essa função institucional. O bom desempenho das funções constitucionais pelo Ministério Público – hoje senso comum – não afasta a atuação das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal, igualmente comprometidas com o controle da lega- lidade dos atos administrativos, que necessitam, para exercer de forma eficaz o seu múnus público, da necessária autonomia administrativa, funcional e financeira. A experiência histórica demonstra que, apenas a partir de sua efetiva independência orçamentária e financeira, tornou-se possível ao Poder 60 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 O movimento pela autonomia deve caminhar, contudo, para o seu forta- lecimento, aliado a posicionamentos que cada vez mais determinem a obrigato- riedade de cumprimento dos princípios axiológicos, em sua extensão maior, pelos procuradores. Entendemos de máxima eficácia, para o momento contemporâneo, a defesa por todas as Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal, com apoio da Associ- ação Nacional e das Associações locais, de um projeto de lei que estabeleça um Código de Ética exclusivamente para a atuação dos Procuradores, a exemplo do que existe para os advogados e para a magistratura (Lei Orgânica da Magistratura). Este Código de Ética, devidamente institucionalizado pela transparência da lei, definindo atribuições a Conselhos para fiscalizar as suas determinações, contri- buiria para fortalecer a instituição em toda a sua plenitude e marcará a diferenci- ação em sua natureza como entidade necessária, autônoma, às funções adminis- trativas da Justiça. O mencionado Código de Ética dos Procuradores dos Estados conviveria, de modo harmônico, com o Código de Ética dos Advogados, sendo aplicado às situações explícitas por ele prevista. A sua base de constituição, segundo nosso entendimento, deve considerar, entre outros, os aspectos seguintes: a) regras deontológicas fundamentais especialmente voltadas para a atua- ção dos Procuradores; b) disposições destinadas ao envolvimento dos Procuradores com o Estado e a fixação de limites para esses relacionamentos; c) disciplinação do sigilo profissional dos Procuradores e da sua compatibi- lidade com o interesse público; d) determinações sobre a publicidade dos atos inerentes às atividades judici- ais e de consultoria; e) estabelecimentos de deveres de urbanidade; f) composição do tribunal de ética e disciplinar; g) procedimentos a serem adotados para apurar infrações éticas; h) ditames que consagrem a preservação de uma conduta honrosa, nobre e digna, zelando pelo seu caráter de essencialidade, indispensabilidade e voltada para proteção do interesse público.; i) incentivos para uma atuação com destemor, independência, honesti- dade, lealdade, dignidade, veracidade e boa-fé; j) idem de atitudes voltadas para o aperfeiçoamento pessoal e profissional, contribuindo, permanentemente, para o aperfeiçoamento da Ciência Jurídica; k) outras disposições concernentes aos objetivos de um Código de Ética. 4 CONCLUSÕES Pregamos, como acima demonstrado, a autonomia financeira, adminis- trativa e funcional das Procuradorias dos Estados, porque, nos meus 41 anos de 61 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 49-61, jul./dez. 2006 exercício de magistratura, completados em 27 de abril de 2005, somos testemu- nha ocular, presente, diuturna, da seriedade, do esforço, da dignidade, da entrega profissional sem outros compromissos senão o de ver o direito ser bem aplicado, com que os Procuradores dos Estados exercem as suas atribuições. Não fazemos distinções. Os Procuradores do Norte, os Procuradores do Sul, os Procuradores do Nordeste, os Procuradores do Sudoeste, os Procuradores de todas as Regiões deste nosso Brasil, na defesa dos direitos da cidadania e da dignidade humana, que são os direitos do Estado, têm desenvolvido com as con- vicções jurídicas que constroem e com o esforço desmedido que empregam as atribuições que lhe são confiadas pelo Estado, em nome do povo. Somos testemunhas presentes, repetimos, de que os Procuradores dos Esta- dos, na concepção que possuem de que não são empregados dos Chefes dos Poderes, porém, súditos diretamente vinculados aos anseios da cidadania, cum- prem, de acordo com os comandos constitucionais, especialmente, os dogmas da moralidade, as atividades inerentes à defesa do direito posto em Juízo. Observamos exteriorizar em todos as suas ações, o compromisso que assu- miram e que cumprem de lutar pela Justiça em nome do cidadão; de defenderem o Estado quando violado o direito que lhe é assegurado, pois, assim fazendo estão defendendo o patrimônio do povo. Demonstram sentir, com intensidade, a neces- sidade de imposição de segurança jurídica. Crêem no presente com o pensamento voltado para a construção de um futuro melhor para o Brasil, onde a dignidade impere em todos os relacionamentos, quer públicos e privados. No dia a dia de nossas atividades de julgador, sentimos os Procuradores dos Estados transmitirem, a todos os instantes, valores que se aproximam do pensado por Noberto Bobbio, quando afirmou que “Com relação às grandes aspirações dos homens de boa vontade, já estamos demasiadamente atrasados. Busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indo- lência, com nosso ceticismo. Não tempos muito tempo a perder.” (Noberto Bob- bio, em sua obra “A Era dos Direitos”, Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Ed. Campus, pg. 69). Realmente, não temos tempo a perder. Os Procuradores dos Estados do Brasil, por terem essa conscientização, unem-se aos propósitos do Poder Judiciário, dos advogados, de todos os operadores do direito, para valorizarem os anseios dos estamentos sociais que compõem a Nação, tudo com o objetivo de dias melhores serem construídos no amanhã, com o fortalecimento da entrega da prestação juris- dicional voltada para o homem injustiçado, com o respeito ao postulado da mora- lidade, com a lei sendo interpretada e aplicada em prol da igualdade, da fraterni- dade, da consecução das esperanças, do fortalecimento das instituições, do en- contro da estirpação das desigualdades sociais, da guarda da segurança pública, do engradecimento dos valores dos núcleos familiares e educacionais, enfim, do modo como todos nós sonhamos e queremos como seja a Nação brasileira: retra- to fiel de um Estado Democrático de Direito onde todos os postulados que o sus- tentam sejam obedecidos. 65 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 63-68, jul./dez. 2006 do Estado e do Distrito Federal. Nele contém-se norma que, revestida de eficácia vinculante e cogente para as unidades federadas locais, não permite conferir a terceiros — senão aos próprios Procuradores do Estado e do Distrito Federal, selecionados em concurso público de provas e títulos — o exercício intransferível e indisponível das funções de representação estatal e de consultoria jurídica do Poder Executivo. (...) A exclusividade dessa função de consultoria remanesce, agora, na esfera institucional da Advocacia Pública, exercida, no plano dos Esta- dos-membros, por suas respectivas Procuradorias-Gerais e pelos membros que as compõem. Essa prerrogativa institucional, que é de ordem pública, encontra assento na própria Constituição Federal. Não pode, por isso mesmo, comportar exceções e nem sofrer derrogações que o texto constitucional sequer autorizou ou previu”. O Min. NÉRI DA SILVEIRA se expressou da seguinte forma: “Penso que o art. 132 da Constituição quis, relativamente à Advocacia de Estado, no âmbito dos Estados-membros e do Distrito Federal, conferir às Procuradorias não só a repre- sentatividade judicial, mas, também, o exame da legalidade dos atos, e o fez com a preocupação de atribuir essa função a servidores concursados e detentores do pre- dicamento da efetividade. O grande objetivo foi o exame da legalidade dos atos do Governo, da Administração Estadual, a ser feito por um órgão cujos ocupantes, concursados, detenham as garantias funcionais. Isso conduz à independência funci- onal, para o bom controle da legalidade interna, da orientação da administração quanto a seus atos, em ordem a que esses não se pratiquem tão-só de acordo com a vontade do administrador, mas também conforme a lei. Não quis a Constituição que o exame da legalidade dos atos da Administra- ção Estadual se fizesse por servidores não efetivos. Daí o sentido de conferir aos Procuradores dos Estados – que devem se compor em carreira a ser todos concur- sados – não só a defesa judicial, a representação judicial do Estado, mas também a consultoria, a assistência jurídica. De tal maneira, um Procurador pode afirmar que um ato de Secretário, do Governador não está correspondendo à lei, sem nenhum temor de poder vir a ser exonerado, como admissível suceder se ocupasse um cargo em comissão”. Não obstante a clareza do art. 132 da CF quanto à obrigatoriedade do exercício das funções de representação estatal e de consultoria jurídica pelos Procuradores de Estado, entendemos que essa exigência não foi suficiente o bas- tante para assegurar a necessária independência desses órgãos na defesa do inte- resse público. 3 DA NECESSIDADE DE APRIMORAMENTO Como já afirmado anteriormente, as constituições necessitam ser modifica- das, seja para acompanhar as transformações sociais, seja na busca do aperfeiço- amento das instituições, e deverão ser realizadas por intermédio do Poder Constitu- inte Derivado Reformador, por meio das emendas constitucionais. 66 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 63-68, jul./dez. 2006 Conforme acentuou Fábio Konder Comparato; “Sem dúvida, a ordem cons- titucional de um Estado deve ser instituída para durar e sobrepairar aos entrecho- ques políticos e econômicos que compõem a tessitura da vida em sociedade. Mas, naturalmente, isso não significa que Constituição de um país subdesenvolvido, no limiar do século XXI, possa visar à perenidade.” A Constituição Federal vigente foi promulgada em 05 de outubro de 1988 e até a presente data houve mais de cinqüenta emendas constitucionais, o que con- firma a mutabilidade do direito. De acordo com José Afonso da Silva, na Obra Curso de Direito Constituci- onal, a Constituição tem por objeto estabelecer a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos, o modo de aquisição do poder e a forma de seu exercício, limites de sua atuação, assegurar os direitos e garantia dos indivíduos, fixar o regime político e disciplinar os fins sócio-econômicos do Estado, bem como os fundamentos dos direitos econômicos, sociais e culturais. Nesse contexto, e no âmbito da Organização Administrativa dos Estados- Membros e do Distrito Federal, deduz-se que as Procuradorias necessitam de aten- ção especial, haja vista as relevantes atribuições que lhes são confiadas. 4 A IMPORTÂNCIA DAS PROCURADORIAS E SUA FUNÇÃO De certa forma, os Procuradores de Estado são advogados de todos os cidadãos, uma vez que têm como objetivo-fim A DEFESA DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. Nesse sentido concluiu José Roberto de Morais, no artigo AS PRERROGA- TIVAS E O INTERESSE DA FAZENDA PÚBLICA: “No momento em que a Fazen- da pública é condenada, sofre um revés, contesta uma ação ou recorre de uma decisão, o que se estará protegendo, em última análise, é o erário. É exatamente essa massa de recurso que foi arrecadada e que evidentemente supera, aí sim, o interesse particular. Na realidade, a autoridade pública é mera administradora.” Diante dessa premissa, ou seja, de que os procuradores defendem o patri- mônio da coletividade, inclusive promovendo a cobrança dos créditos da Fazenda Pública, não se pode conceber que o “Escritório de Advocacia dos cidadãos” te- nha um contingente insuficiente e que os seus profissionais sejam mal- remunerados, pois, inevitavelmente, o prejuízo será do próprio erário, que arcará com as conseqüências deletérias de tal situação. É óbvio que, com um número insuficiente de procuradores, a qualidade técnica do trabalho desenvolvido é comprometida, refletindo-se diretamente na reputação pessoal desses profissionais, cujo trabalho não pode ser realizado com a dedicação devida e tampouco poderão desculpar-se futuramente sob a alegação de excesso de serviço. É preciso adotar mecanismos, em nível constitucional, que impossibilitem que os administradores venham a desvirtuar as finalidades desses órgãos públicos. 67 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 63-68, jul./dez. 2006 Conforme ensinamento de Hely Lopes Meirelles, “toda atividade do ad- ministrador público deve ser orientada para o bem comum da coletivida- de. Se dele o administrador se afasta ou desvia, trai o mandato de que está investido, porque a comunidade não institui a Administração senão como meio de atingir o bem-estar social. Ilícito e imoral será todo ato administrativo que não for praticado no interesse da coletividade.” Todavia, e lamentavelmente, na prática a realidade é muito diferente. Em alguns Estados, o quadro é deficiente, a remuneração é baixa e a estrutura é inadequada. Possivelmente, e queremos crer nisso, essa situação advém da inex- periência administrativa. A QUE PODERIA INTERESSAR UMA ASSES- SORIA JURÍDICA DEFICIENTE? Mesmo sendo orgulhosos por desempenhar atividade de especial relevância, a baixa remuneração, a deficiência na estrutura administrativa e o alto volume de processos a que os procuradores de todas as Unidades Federadas normalmente são submetidos, têm acarretado a indesejada evasão para outras carreiras jurídicas, menos instáveis e melhor remuneradas. Tradicionalmente, os Procuradores de Estado são profissionais respeitados no meio jurídico e, obrigatoriamente, devem ser aprovados em concursos públicos de provas e títulos altamente concorridos. Juristas de expressão nacional como Sérgio Ferraz, Diogo Figueiredo Moreira Neto, Carlos Ary Sundfeld, Michel Temer, Maria Sylvia Di Pietro, Carmem Lúcia Antunes Rocha e Luís Roberto Barroso, dentre outros, são Procuradores de Estado. 5 A AUTONOMIA COMO SOLUÇÃO Para se evitar os desvios de finalidade e o conseqüente enfraquecimento das instituições, é preciso promover as modificações necessárias na Constituição, de maneira que o administrador fique impossibilitado de alterar toda uma estrutura para atender interesses menores. Conforme ressaltou Seabra Fagundes, “O que importa principalmente em uma Constituição não é se resuma ela em texto breve. O que se deve aspirar é que ela atenda, no seu bojo, às várias relações ou situações que , segundo as condições político-sociais do país, mereçam ser disciplina- das com exatidão e de modo a perdurarem no tempo, para que os poderes do Estado não as possam desconhecer, ferir ou deturpar.” Em 1998, por meio da Emenda nº 19/98, a Constituição Federal teve o título da Seção II, do Capítulo IV, do Título IV, alterado para ADVOCACIA PÚ- BLICA, em substituição a Advocacia-Geral da União, elevando-se as Procuradori- as ao status constitucional. Maurício Antonio Ribeiro Lopes, na obra “Comentários à reforma adminis- trativa, Editora RT, escreveu: “A Emenda Constitucional nº 19/98 determinou a correção da rubrica relativa a Seção II do Capítulo IV do Título IV da Constituição Federal, substituindo a expressão Advocacia-Geral da União por Advocacia Públi- ca. Tal modificação elegeu definitivamente as Procuradorias Gerais dos Estados, 70 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 concreto e suficientemente apta à justa resolução desse,3 há de se verificar se é possível dar ao artigo 285-A do Código de Processo Civil uma interpretação que, sem o colocar em rota de colisão com tal conseqüência da detenção do monopó- lio4 do poder de “dizer o direito”,5 dê o devido respeito a outros valores igualmente previstos em nossa Lei Maior, a exemplo do que se dá com o devido processo legal e o contraditório. O PROCESSO COMO SERVIÇO PÚBLICO Em estudo anteriormente efetuado,6 verificou-se que inicialmente se enxer- gou o processo como um contrato,7 devido à circunstância de as partes se compro- meterem a “accipere judicium”8 por intermédio da “litiscontestatio”.9 A necessida- FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002, 4ª ed., revista e atualizada., pág. 103; TUCCI, Rogério Lauria. Da ação e do processo civil na teoria e na prática. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1985, 2ª ed., pág. 27; TROCKER, Nicolò. Processo Civile e Costituzione, Problemi di diritto tedesco e italiano. Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1974, pág. 161; WACH, Adolf. Manual de Derecho Procesal Civil, volumen I. Traducción del alemán por Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1977, pág. 46.De idêntico norte se serviu Ovídio Araújo Baptista da Silva, ao destacar que o “…monopólio da jurisdição criou ao Estado o dever de prestar jurisdição e a seus súditos o direito e a pretensão a serem ouvidos em um tribunal regular e que lhes preste justiça.” (SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Comentários ao Código de Processo Civil, volume I. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, pág. 17). Semelhante explanação nos é dada por Fábio Gomes, em comentários nos seguintes termos: “Organizado o Estado e estabelecida a sua ordem jurídica, o que implica a imposição de regras de conduta a serem observadas pelos cidadãos, automaticamente estará proibida a estes a defesa ou a realização própria (autotutela) dos interesses sob a proteção do direito. Em outras palavras, entendemos a vedação à autotutela pressuposto inafastável à organização e à própria existência do Estado. Em decorrência dessa proibição surge, também como pressuposto, o dever-poder do Estado de prestar jurisdição a todos quantos proibiu autodefenderem-se.” (GOMES, Fábio. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, pág. 252). Em idêntico sentido: BOSCHI, José Antônio Paganella. Ação Penal. Rio de Janeiro, AIDE Editora, 2002, 3ª ed., págs. 93 e 95; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002, 4ª ed., revista e atualizada, pág. 105.). ³ Nesses termos: MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, págs. 112 e 113 4 MENDEZ, Francisco Ramos. Derecho Procesal Civil, tomo I. Barcelona, José Maria Bosch Editor, 1992, quinta edición, pág. 58. 5 Assim afirmamos em: MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Da pretensão à tutela jurídica e dos aspectos referentes à relação jurídica processual, in CDROM da Revista Forense, vol. 355, 2001. A esse respeito: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. São Paulo, Editora Saraiva, 1999, 2ª ed., pág. 31; SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Comentários ao Código de Processo Civil, volume I. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, pág. 26; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002, 4ª ed., revista e atualizada, pág. 205. Complementando esses singelos e resumidos dizeres acerca da jurisdição, Manuel Galdino Paixão Júnior a define como a “…atividade de declarar e fazer atuar o direito do caso concreto” (PAIXÃO JÚNIOR, Manuel Galdino. Teoria Geral do Processo. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2002, pág. 20). 6 MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, págs. 201 a 203. 7 Cf. TORNAGHI, Hélio. Instituições de direito processual penal, volume 1. São Paulo, Editora Saraiva, 1977, pág. 322. 8 Nesse sentido: CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 276. 9 Nessa linha: CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 22; KASER, Max. Direito Privado Romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle e revisão de Maria Armanda de Saint-Maurice, Lisboa, Edição de Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pág. 445. Ao definir a “contestatio”, Fritz Schulz proferiu: “La expresión litis contestatio, se usa para designar el momento final del procedimiento in iure y aun de todo el procedimiento.” (SCHULZ, Fritz. Derecho romano clásico. Traducción directa de la edición inglesa por José Santa Cruz Teigeiro. Barcelona, Casa Editorial Bosch, 1960, pág. 14). Gaston May orientou-se por idêntico norte, ao asseverar: “Après la litis contestatio, l’instance entrait dans as seconde phase, le judicium.” (MAY, Gaston. Éléments de Droit Roman. Paris, Libraire du Recueil Sirey, 1935, dix-huitième édition, pág. 614). 71 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 de de se enfrentar o tema sob prisma diverso adveio do fato de a referida teoria ter se tornado frágil no momento em que se percebeu que em nada depende das partes a sua submissão ao decidido em Juízo.10 Aliando-se tal circunstância à dificuldade de catalogar o processo como “delito” ou “quase-delito”, percebe-se o porquê de se ter se socorrido à figura do “quase-contrato” com o intuito de se poder elucidá-lo,11 em tentativa que igualmente restou infrutífera, a teor do ressalvado noutra oportunidade,12 em decorrência de não se ter “…uma idéia segura do que pudesse significar esta figura”.13 Com o fim da insistência em querer ver o processo como instituto de Direito Privado14 e com a publicação do estudo intitulado “Die Lehre von den Processein- reden und die Processvoraussetzungen”, de Oskar Von Büllow,15 sedimentou-se a noção de que o processo é uma relação jurídica de natureza pública, distinta da de direito material que é encaminhada à apreciação do órgão jurisdicional,16 consta- tação que jamais teve por intuito desmerecer as teorias de James Goldschmidt,17 Elio Fazzalari18 e Jaime Guasp,19 cuja leitura se revela obrigatória para a compre- ensão do instituto do processo. Sem embargo do enorme mérito que se tem de atribuir à teoria elaborada por Oskar Von Büllow,20 tivemos a oportunidade de, em estudo a respeito da natureza jurídica do processo,21 sustentar quebra de paradigma destinada a confe- rir-lhe feição de “…serviço público constitucionalmente colocado à disposição dos 10 Assim também: CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 277. 11 Nessa linha: CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 278; COUTURE, Eduardo J. Introdução ao Estudo do Processo Civil. Rio de Janeiro, José Konfino Editor, 3ª ed., pág. 61. 12 MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, págs. 203 a 204. 13 PAIXÃO JÚNIOR, Manuel Galdino. Teoria Geral do Processo. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2002, pág. 140. 14 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 278. 15 BÜLLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires, EJEA, 1964. 16 BÜLLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires, EJEA, 1964, p. 1 e segs. Tecendo comentários acerca do tema: BOSCHI, José Antônio Paganella. Ação Penal. Rio de Janeiro, AIDE Editora, 2002, 3ª ed., págs. 28 e 29; ESTELLITA, Guilherme. Direito de ação – Direito de demandar. Rio de Janeiro, Livraria Jacinto Editora, 1942, 2ª ed., págs. 39 e 42; TORNAGHI, Hélio. A Relação Processual. São Paulo, Editora Saraiva, 1987, 2ª ed., pág. 8. 17 GOLDSCHMIDT, James. Principios generales del processo. Buenos Aires, 1961, pág. 64 e segs. 18 A respeito: CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 283. 19 GUASP, Jaime apud PAIXÃO JÚNIOR, Manuel Galdino. Teoria Geral do Processo. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2002, pág. 144. 20 BÜLLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires, EJEA, 1964. 21 MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, págs. 209 a 235. 72 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 que dele porventura necessitem,22 e reclamem o seu desempenho mediante o exer- cício da “actio”,23 por que o Juiz se desincumbe da função de dizer o direito para o caso concreto encaminhado à sua apreciação.”24 EFETIVIDADE PROCESSUAL A QUALQUER CUSTO? Justamente por se estar diante de “…serviço público25 que se destina a entregar a tutela jurisdicional a quem a invoque por meio do exercício do direito26 constitucionalmente assegurado27 a que se deu a denominação de ação”,28 tem-se 22 Nunca é demais lembrar que o serviço público, por sua essência, tem por intuito “…la satisfaction de besoins collectifs jugés essentiels.” (WIGNY, Pierre. Droit Administratif: Principes Généraux. Bruxelles, Editions Bruylant, 1953, pág. 27). Em semelhantes dizeres, Jean Rivero assim se pronuncia a propósito: “Le service public est une forme de l’action administrative dans laquelle une personne publique assume la satisfaction d’un besoin d’intérêt général.” (RIVERO, Jean. Droit Administratif. Paris, Précis Dalloz, 1975, 7ª édition, pág. 423). Emitindo semelhante ressalva: CASSAGNE, Juan Carlos. Derecho Administrativo, II. Buenos Aires, Abeledo-Perrot, sexta edición actualizada, pág. 425; DUEZ, Paul e DEBEYRE, Guy. Traité de Droit Administratif. Paris, Librairie Dalloz, 1952, pág. 535; FIORINI, Bartolomé A. Derecho Administrativo, tomo II. Argentina, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1995, segunda edición actualizada, reimpresión, pág. 210; GORDILLO, Agustín. Tratado de Derecho Administrativo: La defensa del usuario y del administrado, tomo 2. Belo Horizonte, Del Rey, Fundación de Derecho Administrativo, 2003, quinta edición, VI-34; JUAN, Eduardo Barrachina. Lecciones de Derecho Administrativo, II. Barcelona, PPU, pág. 804; LAUBADÈRE, André de. Manuel de Droit Administratif. Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1951, Troisième Édition, pág. 208; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: Parte Introdutória, Parte Geral e Parte Especial. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1976, 3ª edição, pág. 335; OCAÑA, Luis Morell. Curso de Derecho Administrativo, tomo II. Pamplona, Aranzadi Editorial, 1999, cuarta edición, pág. 146; PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de Derecho Administrativo, volumen II. Madrid, Editorial Centro de Estudios Ramón Areces S.A., 2000, segunda edición, pág. 310; PELLICER, José A. López. Lecciones de Derecho Administrativo, II. Murcia, Diego Marín Librero-Editor, 1998, segunda edición, pág. 113. 23 A respeito do exercício do direito de ação e das conseqüências que dele decorrem: ASSIS, Araken de. Doutrina e Prática do Processo Civil Contemporâneo. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2001, pág. 40; BOSCHI, José Antônio Paganella. Ação Penal. Rio de Janeiro, AIDE Editora, 2002, 3ª ed., pág. 95; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., pág. 245; SATTA, Salvatore e PUNZI, Carmine. Diritto Processuale Civile. Padova, Cedam, 2000, tredicesima edizione, a cura di Carmine Punzi, p. 128 e 129; SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2004, pág. 713; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002, 4ª ed., revista e atualizada., pág. 103. 24 MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, pág. 225. 25 Sempre lembrando que, na esteira de Laubadère, valemo-nos da concepção material de serviço público (in RIBEIRO, Manoel. Direito Administrativo, 2° volume. Salvador, Editôra Itapoã Ltda., 1964, págs. 72 e 73). Nesse ponto, é de se observar que Eduardo Barrachina Juan assim se manifesta acerca do serviço público: “El servicio público ‘es una actividad prestada por la Administración pública, que regulada por el Derecho público, tiende a satisfacer una necesidad de carácter general.” (JUAN, Eduardo Barrachina. Lecciones de Derecho Administrativo, II. Barcelona, PPU, pág. 807). 26 in WACH, Adolf. Manual de Derecho Procesal Civil, volumen I. Traducción del alemán por Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1977, pág. 46. Discorrendo acerca do tema: CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. São Paulo, Malheiros Editores, 1994, 10ª ed., págs. 248 e 249; ESTELLITA, Guilherme. Direito de ação – Direito de demandar. Rio de Janeiro, Livraria Jacinto Editora, 1942, 2ª ed., págs. 40 e 58; GOLDSCHMIDT, James. Direito Processual Civil, volume I. São Paulo, Editora Bookseller, Tradução de Lisa Pary Scarpa, 2003, 1ª ed., pág. 16; SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. e GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, 3ª ed., revista e atualizada, pág. 109; TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002, 4ª ed., revista e atualizada, pág. 105. Analisando o direito abstrato de agir idealizado por Degenkolb, Guilherme Estellita assim o descreve: “…se dirige contra o Estado. É um direito subjetivo público, porque incide no exercício de um poder público.” (ESTELLITA, Guilherme. Direito de ação – Direito de demandar. Rio de Janeiro, Livraria Jacinto Editora, 1942, 2ª ed., pág. 53). 27 Nessa linha: ROCCO, Alfredo. La sentenza civile. Milão, 1962, 1ª ed., pág. 90; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, v. I. São Paulo, Editora Saraiva, 1994, 17ª ed., pág. 184; TUCCI, Rogério Lauria. Da ação e do processo civil na teoria e na prática. Rio de Janeiro, Editora Forense, 1985, 2ª ed., pág. 27; TROCKER, Nicolò. Processo Civile e Costituzione, Problemi di diritto tedesco e italiano. Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1974, pág. 161; WACH, Adolf. Manual de Derecho Procesal Civil, volumen I. Traducción del alemán por Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-América, 1977, pág. 46. 28 MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, pág. 233. 75 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 ticos”, mas também de equivalentes argumentos a embasarem tais pretensões de direito material. Nada obstante a negativa de vigência ao artigo 319 do Código de Processo Civil e ao inciso II do artigo 330 do mesmo diploma legal possa ser afastada pela indiscutível constatação de que a justiça há de ser concebida “…como o norte a ser seguido pelo Direito”,37 ainda que o réu não o esteja perseguindo, uma vez que o Jurista deve ter em mente o único propósito de “faire régner la Justice”,38 revela- se inadmissível que se negue ao réu a possibilidade de fazer uso da prerrogativa prevista no inciso II do artigo 269 do Código de Processo Civil. Nessa ordem de idéias, revela-se inviável ignorar a inconstitucionalidade de que se reveste, por afronta ao princípio da separação de poderes consubstanciado no artigo 2° da Constituição da República Federativa do Brasil, a decisão judicial que, nos termos do caput do artigo 285-A do Código de Processo Civil, julga im- procedente pedido que, conquanto tenha sido julgado totalmente improcedente em “outros casos idênticos”, venha sendo acolhido pelo Poder Público, em virtude da adoção de novo posicionamento, em processos que estejam tramitando na esfera administrativa. Ora, nada impede que o Poder Público, a despeito de estar se saindo vence- dor em demandas judiciais que versem sobre idênticos pedido e causa de pedir, mude seu posicionamento em âmbito administrativo e passe a acolhê-los em tal esfera. Em tais circunstâncias, sujeitar-se-á ao alcance da mácula de inconstituci- onalidade, por inobservância do princípio consagrado no artigo 2° da Carta Mag- na, o Órgão Jurisdicional que, ignorando o intuito do Poder Público de reconhecer a procedência do pedido na forma prevista no inciso II do artigo 269 do Código de Processo Civil, vier a “reproduzir” sentença, “de total improcedência” do pleito, proferida “em outros casos idênticos”, nos termos do caput do artigo 285-A desse diploma legal. Conquanto possam vir a reconhecer que a afronta ao preceituado no artigo 214 do Código de Processo Civil, e a correspondente nulidade decorrente de ausên- cia de citação do demandado, pode ser afastada sob o argumento de que, com a adoção da prerrogativa prevista no caput do artigo 285-A desse, estará o Juiz decidindo o mérito “…a favor da parte” a quem aproveita a declaração de nulida- de, nunca se poderá permitir afronta à bilateralidade do processo, atinente ao contraditório consagrado no inciso LV do artigo 5° da Lei Maior.39 Daí por que se 37 MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, pág. 104. Cf. RADBRUCH. Introducion a La Filosofia del Derecho. Tradución de Wenceslao Roces, México- Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica, pág. 43. De mesmo entendimento: BITTAR, Eduardo C. B. Teorias sobre a Justiça: Apontamentos para a história da Filosofia do Direito. Editora Juarez de Oliveira, 2000, pág. 2; FERRAZ JÚNIOR. Introdução ao estudo do Direito. 1994, 2ª ed., pág. 358. 38 PICARD, Edmond. Le Droit Pur. Paris, Ernest Flammarion Éditeur, Bibliothèque de Philosophie scientifique, 1920, p. 303. À semelhança do que ressaltamos noutro estudo (MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Teoria Geral do Processo: O Processo como Serviço Público. Curitiba, Editora Juruá, 2005, pág. 105), é de se notar que se trata de finalidade que se justifica em decorrência de se estar diante de valor que se situa entre as virtudes primeiras das atividades humanas (RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e de Lenita M. R. Esteves, São Paulo, Martins Fontes, 1997, pág. 4). 39 A respeito da “bilateralidade do processo”: DANTAS, Ivo. Constituição e Processo: Introdução ao Direito Processual Constitucional. Volume I. Curitiba, Juruá Editora, 2003, pág. 169. 76 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 revela inconstitucional e, como tal, sujeito a recurso e ação rescisória,40 por afron- ta ao princípio do contraditório, o provimento judicial que, impondo-se arbitraria- mente, dispensa a citação e simplesmente “reproduz” o teor de sentença “de total improcedência” que tenha sido proferida “em outros casos idênticos”, nos termos do artigo 285-A do Código de Processo Civil, sequer se preocupando o Juiz em verificar, junto ao próprio réu, se a sua vontade é a de ver o pedido do autor ser julgado improcedente. E o que se dirá dos casos em que o autor ingressa em Juízo para não se ver privado de um bem cuja posse lhe está sendo turbada ou esbulhada “por ato de apreensão judicial”, a exemplo do que ocorre em sede de embargos de terceiro?41 É evidente que a aplicação da regra prevista no artigo 285-A do Código de Processo Civil, com o indeferimento de plano da petição inicial ajuizada com fundamento no artigo 1.046 do mesmo diploma legal, atenta contra o estabelecido no inciso LIV do artigo 5° da Constituição da República Federativa do Brasil, que determina que ninguém será privado de seus bens “…sem o devido processo legal”. Cuida-se de constatação que se apresenta ainda mais nítida na hipótese de o órgão Jurisdi- cional ter se amparado, para o julgamento dos “outros casos idênticos” em que se tenham proferido sentenças “de total improcedência”, em raciocínio jurídico total- mente equivocado no tocante à apreciação das turbações ou dos esbulhos levados à apreciação judicial em sede de demandas anteriormente promovidas com funda- mento no artigo 1.046 do Código de Processo Civil. Jamais se esqueça que o “devido processo legal”, como bem assevera Raquel Fernandez Perrini, exige a presença de uma “…efetiva realização da justiça, por meio de outras garantias a ela relacionadas”,42 a exemplo do que ocorre com o “…livre acesso à jurisdição”.43 À semelhança das situações anteriormente enfrentadas, muitas outras po- deriam ter sido lembradas ao longo do presente estudo, motivo por que se revela imprescindível que a aplicação do artigo 285-A do Código de Processo Civil, com redação dada pela Lei n.° 11.277, de 07 de fevereiro de 2006, seja cercada de cuidados de forma a não o revestir de inconstitucionalidade decorrente de afronta a valores consagrados em nossa Carta Magna. 40 OLIVEIRA, Robson Carlos. Ação rescisória de sentença baseada em Lei posteriormente declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, via controle difuso de constitucionalidade: Crítica à Súmula 343 do STF. In NERY JR, Nelson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Aspectos Polêmicos e atuais dos Recursos Cíveis e assuntos afins. V. 9. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, págs. 536 a 538. 41 Lembre-se que os “embargos de terceiro” não estão livres de se referirem a matérias exclusivamente de direito (A esse respeito: RODRIGUES, Ruy Zach. Embargos de Terceiro. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, pág. 121), a exemplo do que pode ocorrer em discussão a respeito da abrangência da impenhorabilidade do bem de família (RODRIGUES, Ruy Zach. Embargos de Terceiro. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006, págs. 48 e 49). 42 PERRINI, Raquel Fernandez. Competências da Justiça Federal Comum. São Paulo, Editora Saraiva, 2001, pág. 03. 43 PERRINI, Raquel Fernandez. Competências da Justiça Federal Comum. São Paulo, Editora Saraiva, 2001, pág. 03. 77 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 À GUISA DE CONCLUSÃO Não será surpresa se surgirem alegações no sentido de que as alterações propostas pela Lei n.° 11.277, de 07 de fevereiro de 2006, justificam-se incondici- onalmente em virtude da necessidade de cada vez mais se trazer efetividade ao processo judicial. Também não se desconhece a possibilidade de virem a defender as inovações trazidas pelo artigo 285-A do Código de Processo Civil, sob o argu- mento de que devem ser plenamente integradas ao meio jurídico em prol da econo- mia processual. Sem dúvida alguma, encontrar-se-ão bem amparados os que se- guirem esse caminho, porquanto há muito se vem observando, na esteira de Hum- berto Theodoro Júnior, que “…os juristas da área voltaram suas bússolas para a idéia de efetividade”.44 Sem querer desmerecer tais argumentos e jamais se tendo por intuito impor ao leitor um entendimento “neste” ou “naquele” sentido, compreende-se que não se revela viável que a busca pela efetividade processual implique, por meio de interpretação acrítica e alheia à necessária cautela de que há de se revestir toda e qualquer exegese de uma norma jurídica, “passar por cima” de garantias e direitos consagrados em nossa Lei Maior pelo legislador constituinte. Do contrário, qual será o próximo passo a ser tomado em prol da efetivida- de processual? O reconhecimento da possibilidade de serem proferidas sentenças de procedência sem a oitiva da parte ré? Será esse o caminho? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Araken de. Doutrina e Prática do Processo Civil Contemporâneo. São Pau- lo, Editora Revista dos Tribunais, 2001. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo, Editora Saraiva, 1999, 3ª ed. BIELSA, Rafael. Derecho Constitucional. Buenos Aires, Roque Depalma Editor, 1954, segunda edición, aumentada. BITTAR, Eduardo C. B. Teorias sobre a Justiça: Apontamentos para a história da Filosofia do Direito. Editora Juarez de Oliveira, 2000. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite do Santos. Brasília, Editora UNB, 1999, 10ª ed. 44 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Execução. Rejeição dos embargos do devedor. Relevância do recurso de apelação. Perigo de dano de difícil reparação. Atribuição de efeito suspensivo ao recurso. In Revista dos Tribunais, Ano 87, v. 785, setembro de 1998, Ed. Revista dos Tribunais, p. 134 apud MEDEIROS, João Paulo Fontoura de. Embargos à Execução: Sentença de Procedência e Improcedência. Curitiba, Juruá Editora, 2003, pág. 149. Também se mostraram atentos a essa tendência: CARPI, Federico. La Provvisoria Esecutorietà della sentenza. Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1979, pág. 12; CHIAVARIO. Processo e garanzia della persona. Milano, 1976, pág. 229. 80 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 PAIXÃO JÚNIOR, Manuel Galdino. Teoria Geral do Processo. Belo Horizonte, Editora Del Rey, 2002. PASQUALINI, Alexandre. Hermenêutica e Sistema Jurídico: Uma introdução à interpretação sistemática do Direito. Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 1999. PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de Derecho Administrativo, volu- men II. Madrid, Editorial Centro de Estudios Ramón Areces S.A., 2000, segunda edición. PELLICER, José A. López. Lecciones de Derecho Administrativo, II. Murcia, Die- go Marín Librero-Editor, 1998, segunda edición. PERRINI, Raquel Fernandez. Competências da Justiça Federal Comum. São Pau- lo, Editora Saraiva, 2001. PICARD, Edmond. Le Droit Pur. Paris, Ernest Flammarion Éditeur, Bibliothèque de Philosophie scientifique, 1920. RADBRUCH. Introducion a La Filosofia del Derecho. Tradución de Wenceslao Roces, México-Buenos Aires, Fondo de Cultura Econômica. RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Tradução de Almiro Pisetta e de Lenita M. R. Esteves, São Paulo, Martins Fontes, 1997. RIBEIRO, Manoel. Direito Administrativo, 2° volume. Salvador, Editôra Itapoã Ltda., 1964. RIVERO, Jean. Droit Administratif. Paris, Précis Dalloz, 1975, 7ª edition. RODRIGUES, Ruy Zach. Embargos de Terceiro. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006. ROCCO, Alfredo. La sentenza civile. Milão, 1962, 1ª ed. RUSSOMANO, Rosah. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Edit. Saraiva, 1970. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, v. I. São Paulo, Editora Saraiva, 1994, 17ª ed. SATTA, Salvatore e PUNZI, Carmine. Diritto Processuale Civile. Padova, Cedam, 2000, tredicesima edizione, a cura di Carmine Punzi. SCHULZ, Fritz. Derecho romano clásico. Traducción directa de la edición inglesa por José Santa Cruz Teigeiro. Barcelona, Casa Editorial Bosch, 1960. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.São Paulo, Ma- lheiros Editores, 1992, 9ª ed. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Comentários ao Código de Processo Civil, volu- me I. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000. 81 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 69-81, jul./dez. 2006 _____. GOMES, Fábio. Teoria Geral do Processo Civil. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2002, 3ª ed., revista e atualizada. SLAIBI FILHO, Nagib. Direito Constitucional. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2004. TORNAGHI, Hélio. A Relação Processual. São Paulo, Editora Saraiva, 1987, 2ª ed. _____. Instituições de direito processual penal, volume 1. São Paulo, Editora Sarai- va, 1977. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo, Editora Saraiva, 2002, 4ª ed., revista e atualizada. TROCKER, Nicolò. 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Basta ver que alterações anteriormente introduzidas no processo civil bus- caram aperfeiçoar os meios capazes de assegurar o cumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, quando impostas em decisão judicial (CPC, art. 461 e 461-A). Também não são novas as dificuldades enfrentadas quando se busca tornar concreto o direito reconhecido em decisão judicial, situação explicável porque a entrega do “bem da vida” ao credor, quando não há colaboração do devedor – hipótese que constitui a regra –, exige do juiz o deslocamento de um plano abstra- to, onde ele transita com a mera finalidade de dizer o direito – conduta própria ao processo de conhecimento –, para um plano real, onde ele transita com a finalida- de de praticar atos concretos, sem os quais não se pode pensar em modificar situações fáticas. A perceptível diferença entre estes planos influenciou o processo civil a pon- to de nele consagrar-se a conhecida dualidade “processo de conhecimento” e “pro- cesso de execução”, caracterizada pela existência de um intervalo entre a sentença proferida no primeiro e a instauração do segundo – e, por extensão, de uma nova relação processual – por iniciativa do credor. A Lei 11.232/2005 rompe com este modelo, ao introduzir alterações que tornam meras fases do próprio processo de conhecimento a liquidação – sendo ela necessária, obviamente – e a execução – agora denominada cumprimento da sentença – de obrigações de pagar quantia certa, evitando a paralisação do pro- cesso após a prolação da sentença e possibilitando, se assim requerer o credor, a imediata execução correspondente. A alteração, reveladora da instituição de um processo sincrético – em que à função cognitiva, própria ao processo de conhecimento, é agregada a correspon- dente eficácia executiva – agora também com relação a obrigações de pagar quan- tia certa, não produz reflexos no processo do trabalho. Neste, o procedimento, embora também integrado por disposições que sugerem a dualidade “processo de conhecimento” e “processo de execução”,3 prevê que na mesma relação processu- al, inclusive por iniciativa do próprio juiz diretor do processo, sejam praticados, em seqüência à prolação da sentença, os atos necessários ao seu cumprimento.4 Nada ³ CLT, art. 789 – “[...] as custas relativas ao processo de conhecimento incidirão [...]” – e 789-A – “No processo de execução são devidas custas [...]”. A despeito destas disposições, outras também contidas na CLT autorizam entender que a execução, ao menos quando fundada em título executivo judicial, se trata de simples fase do procedimento. Neste sentido, a alínea “f” do art. 712 estabelece que “Compete especialmente aos secretários das Juntas de Conciliação e Julgamento [...] promover o rápido andamento dos processos, especialmente na fase de execução [...]”, e a própria execução, entendida como o conjunto das disposições que a disciplinam, é tratada no Capitulo V, que integra o Título X, este destinado a regular o denominado “Processo Judiciário do Trabalho”. 4 CLT, art. 878: “A execução poderá ser promovida por qualquer interessado, ou ‘ex officio’ pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente […]”. 86 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 83-94, jul./dez. 2006 mais natural, aliás, tratando-se de procedimento orientado pelo princípio da sim- plicidade e, pois, avesso a exigências de ordem burocrática. Embora a Lei 11.232/2005 não inove no processo do trabalho com a prin- cipal alteração que introduz no processo civil, cabe avaliar se o mesmo ocorre com as modificações pontuais por meio dela também incorporadas ao ordenamento jurídico. IV LIQUIDAÇÃO DA OBRIGAÇÃO No processo do trabalho, o procedimento destinado à liquidação de obriga- ção de pagar quantia certa estabelecida em sentença, tal como parcialmente disci- plinado na CLT (art. 879), não é afetado pelas alterações introduzidas pela Lei 11.232/2005 – as quais, mesmo quanto ao processo civil, consistem em mera renumeração das disposições então vigentes, e, no que efetivamente inovam, esta- belecem que a decisão que julga a liquidação se sujeita a ataque por meio de agravo de instrumento (CPC, art. 475-H). A dependência do processo do trabalho em relação ao processo civil, no que respeita à liquidação de obrigação de pagar quantia certa, permanece restrita à disciplina procedimental que envolve as modalidades arbitramento e por artigos, mas, ainda nestas hipóteses, não alcança o meio de impugnação cabível contra a respectiva decisão, o qual, no processo do trabalho, independentemente da moda- lidade de liquidação utilizada, se encontra previsto no § 3º do art. 884 da CLT. Referido meio, conhecido por impugnação à sentença de liquidação: a) conforme prevê o § 3º do art. 884 da CLT, tem o seu exercício diferido para o mesmo momento em que pode ser formulada a oposição à execução – esta mediante embargos à própria execução (caput do art. 884 da CLT) e embargos à penhora (parte inicial do § 3º do art. 884 da CLT) –, salvo, obviamente, quando a liquidação seja julgada “improcedente” – pelo fato de chegar-se a resultado “zero” ou não restarem provados os artigos de liquidação –, caso em que o seu exercício é imediato; b) legitima ao seu exercício qualquer das partes – obviamente quando pre- sente o necessário interesse –, de modo que tanto para o credor (e não somente para este, como vem revelando a prática) quanto para o executado é o meio adequado a buscar a discussão das matérias avaliadas pela sentença de liquida- ção – com relação ao devedor, a dicção contida no § 3º do art. 884 da CLT, no sentido de que “Somente nos embargos à penhora poderá o executado impugnar a sentença de liquidação”, deve ser interpretada como sendo “Somente na oportuni- dade própria aos embargos à penhora poderá o executado impugnar a sentença de liquidação”; c) pode ser exercido ainda que no curso da liquidação seja utilizada a facul- dade prevista no § 2º do art. 879 da CLT – abertura de prazo, às partes, para manifestação sobre a conta –, procedimento que convive com – e, não, que exclui –o estabelecido no § 3º do art. 884 da CLT, porque visa a evitar que matérias que 87 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 83-94, jul./dez. 2006 não tenham sido alegadas no prazo assinado para manifestação sobre a conta – obviamente entre aquelas que se sujeitam à preclusão –5 sejam invocadas, poste- riormente, mediante o exercício da impugnação à sentença de liquidação; e d) o seu exercício, caso seja utilizada a faculdade prevista no § 2º do art. 879 da CLT no curso da liquidação, subordina-se também à indicação, no prazo assinado para manifestação sobre a conta, dos valores objeto da discordância – e, por extensão, a contrário senso, da indicação do valor que o executado entende correto (em simetria com a regra prevista no § 2º do art. 475-L do CPC). V ATOS INICIAIS VISANDO AO CUMPRIMENTO DA SENTENÇA Entre as alterações introduzidas no processo civil pela Lei 11.232/2005, são significativas as que envolvem os atos processuais iniciais que visam ao cumpri- mento da sentença que impõe obrigação de pagar quantia certa. O modelo hoje vigente – em que, ajuizada a ação de execução, o devedor é citado para, no prazo de vinte e quatro horas, efetuar o pagamento da dívida ou nomear bens à penhora (CPC, art. 652), atendida a ordem preferencial (CPC, art. 655), sob pena de seguir-se a penhora de bens, tantos quantos bastem ao paga- mento do valor da condenação (CPC, art. 659) – passa a consistir no automático curso de prazo legal de quinze dias, com termo inicial coincidente com o momento em que a decisão judicial se torne exeqüível, para que o devedor voluntariamente cumpra a obrigação, mediante o pagamento da quantia devida, sob pena de sofrer ela acréscimo de multa, de dez por cento, e, a requerimento do credor – mantendo- se, pois, indispensável a iniciativa deste –, proceder-se à imediata penhora de bens que sejam por este indicados. O modelo hoje vigente no processo civil é bastante próximo ao adotado no processo do trabalho. Neste, embora dispensada a iniciativa do credor, os atos iniciais visando ao cumprimento de obrigação de pagar quantia certa estabelecida em decisão judicial consistem na citação do devedor para, no prazo de quarenta e oito horas, efetuar o pagamento da dívida ou garantir a execução (CLT, art. 880), mediante depósito, à disposição do juízo, da quantia correspondente, atualizada e acrescida de despesas processuais, ou nomeação de bens à penhora, observada a ordem estabelecida no art. 655 do CPC (CLT, art. 882), sob pena de, não ocorren- do o pagamento ou a garantia da execução, seguir-se a penhora de tantos bens quantos bastem ao pagamento da importância da condenação, acrescida de cus- tas e juros de mora (CLT, art. 883). No processo do trabalho, portanto, permite-se ao devedor, caso não efetue o pagamento da dívida, nomear bens à penhora com 5 Em síntese, escapam à preclusão: o erro evidente (material); a inobservância de limites impostos no título executivo; e a inobservância de disposições legais que possam ser aplicadas no momento da liquidação, quando silente, a respeito, o título executivo. Neste sentido, observadas as devidas adequações, o entendimento consagrado na OJ 2/TST-Pleno: “O pedido de revisão dos cálculos, em fase de precatório, previsto no art. 1º-E da Lei nº 9.494/97, apenas poderá ser acolhido desde que: [...] b) o defeito nos cálculos esteja ligado à incorreção material ou à utilização de critério em descompasso com a lei ou com o título executivo judicial [...]”. 90 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 83-94, jul./dez. 2006 ção, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença (CPC, art. 475-L); b) a impugnação fundada em excesso de execução subordina-se à imediata declaração do valor que o executado entende correto, sob pena de rejeição liminar da medida (CPC, art. 475-L, § 2º); c) o oferecimento da impugnação, como regra, não suspende a execução, mas o efeito suspensivo pode ser concedido desde que sejam relevantes os funda- mentos invocados na medida e o prosseguimento da execução seja manifestamen- te suscetível de causar ao executado grave dano de difícil ou incerta reparação (CPC, art. 475-M); d) mesmo que atribuído efeito suspensivo à medida, é lícito ao exeqüente requerer o prosseguimento da execução, oferecendo e prestando caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz e prestada nos próprios autos (CPC, art. 475-M, § 1º); e) concedido o efeito suspensivo, a impugnação é instruída e decidida nos próprios autos e, caso contrário, em autos apartados (CPC, art. 475-M, § 2º); e f) a decisão que julga a impugnação é recorrível por meio de agravo de instrumento ou, quando decretar a extinção da execução, apelação (CPC, art. 475-M, § 3º). Embora a disciplina introduzida pela Lei 11.232/2005 não contenha previ- são específica, a impugnação, não sendo rejeitada liminarmente, pode ser contra- riada pelo credor, já que a aplicação subsidiária do art. 740 do CPC, que assegura ao credor a possibilidade de impugnar os embargos, no prazo de dez dias, encon- tra-se autorizada pelo art. 475-R do CPC. O processo do trabalho, também no particular, pouco é afetado pelas alte- rações introduzidas pela Lei 11.232/2005, porque conta com disciplina própria aplicável à oposição à execução. Assim, no processo do trabalho:6 a) ciente da garantia da execução ou da penhora de bens, o executado pode opor embargos à execução propriamente dita, no prazo de cinco dias (CLT, art. 884, caput), e, por meio deles, alegar o cumprimento da decisão, quitação ou prescrição da dívida, quando superveniente à sentença (CLT, art. 884, § 1º), e inexigibilidade do título executivo judicial, quando fundado em lei ou ato normativo declarado incons- titucional pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tida por incompatível com a Constituição Federal (CLT, art. 884, § 5º);7 6 Ressalvado o cabimento de exceção de pré-executividade, admitido pela doutrina e jurisprudência, mas cujo exame, em especial quanto a matérias invocáveis e procedimento a ser observado, não é adequado aos limites do presente estudo. 7 Prevalece, em doutrina e jurisprudência, entendimento no sentido de que não é taxativo o rol de matérias previsto, em especial, no § 1º do art. 884 da CLT, de modo que é possível também invocar outras, agora previstas no art. 475-L do CPC, como ilegitimidade de partes, excesso de execução, quando não oriunda de excesso de liquidação – porquanto, neste caso, a matéria deve ser alegada por meio de impugnação à sentença de liquidação –, e qualquer causa impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, quando superveniente à sentença, além daquelas arroladas no § 1º do art. 884 da CLT. Em princípio, não pode ser invocada, em embargos à execução, a falta ou nulidade da citação, se o processo correu à revelia (CPC, art. 475-L, inc. I), porque o revel, no processo do trabalho, deve ser intimado da sentença (CLT, art. 852) e, por extensão, deve invocar o vício por meio de recurso ordinário. 91 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 83-94, jul./dez. 2006 b) ciente da penhora de bens, o executado pode opor embargos à própria penhora (CLT, art. 884, § 3º, parte inicial), no mesmo prazo de cinco dias (CLT, art. 884, caput), e por meio deles alegar qualquer matéria relacionada ao ato de constrição (impenhorabilidade, erro de avaliação, etc.); c) ciente da garantia da execução ou da penhora de bens, o executado pode, ainda no mesmo prazo de cinco dias (CLT, art. 884, caput), e conforme já salientado anteriormente, impugnar a sentença de liquidação (CLT, art. 884, § 3º); d) qualquer das medidas utilizadas pelo executado suspende a execução, nos limites da(s) matéria(s) invocada(s) (inteligência dos art. 885, 886 e 888 da CLT); e) ao credor é assegurado impugnar, no prazo de cinco dias, a(s) medida(s) utilizada(s) pelo executado (CLT, art. 884, caput); e f) a(s) medida(s) utilizada(s) pelo executado e, se for o caso, também a impugnação à sentença de liquidação formulada pelo credor, são julgadas na mesma sentença (CLT, art. 884, § 4º), a qual é recorrível por meio de agravo de petição (CLT, art. 897, alínea “a”). VII EXECUÇÃO PROVISÓRIA No que respeita à execução provisória, as modificações introduzidas no pro- cesso civil pela Lei 11.232/2005, além daquelas que decorrem da necessidade de readequação topográfica das disposições já existentes, consistem: a) na instauração subordinada à iniciativa do credor (CPC, art. 475-O, inc. I); b) no aproveitamento da mesma relação processual para promover a liqui- dação, em princípio pela modalidade arbitramento, dos prejuízos que haja suporta- do o executado quando sobrevenha acórdão que modifique ou anule a sentença exeqüenda (CPC, art. 475-O, inc. II); c) na possibilidade de dispensa de caução, como subordinante do levanta- mento de depósito em dinheiro ou da prática de atos que importem alienação da propriedade ou dos quais possa resultar grave dano ao executado, também, além da hipótese até então admitida,8 quando se tratar de crédito decorrente de ato ilícito, até o limite de sessenta vezes o valor do salário-mínimo, se o exeqüente demonstrar situação de necessidade, e quando o recurso pendente corresponder a agravo de instrumento de competência do Supremo Tribunal Federal, salvo quan- do da dispensa possa manifestamente resultar risco de grave dano, de difícil ou incerta reparação (CPC, art. 475-O, § 2º, inc. I e II); e 8 No caso de crédito de natureza alimentar, até o limite de 60 (sessenta) vezes o salário mínimo, quando o exeqüente se encontrar em estado de necessidade. 92 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 83-94, jul./dez. 2006 d) o seu processamento não mais se faz por meio de “carta de sentença”, porquanto são revogadas as disposições que a previam (Lei 11.232/2005, art. 9º) – embora, na prática, pouco se altere, já que o processamento permanece não prescindindo da formação de autos apartados que contenham um mínimo de pe- ças extraídas dos autos principais (CPC, art. 475-O, § 3º). Na disciplina prevista na CLT, é autorizada, tratando-se de decisão contra a qual não tenha sido interposto recurso dotado de efeito suspensivo, a instauração de execução provisória (art. 876), mediante a prática dos atos correspondentes, mas somente até a penhora (art. 899). Quanto ao mais, incidem no processo do trabalho as normas próprias ao processo civil – como, aliás, já se aplicavam aque- las anteriores ao regime da Lei 11.232/2005 –, cabendo ainda salientar: a) embora o art. 878 da CLT, ao autorizar a instauração da execução por iniciativa do juiz, não faça distinção entre definitiva e provisória, é recomendável que neste último caso se proceda exclusivamente por iniciativa do credor, porque este é responsável pela reparação dos danos que o executado venha a sofrer em razão da promoção de execução caso haja necessidade de restituírem-se as partes ao estado anterior (CPC, art. 475-O, inc. I); b) conquanto o art. 899 da CLT autorize a prática de atos executivos so- mente até a penhora, não o contravém a prática de atos tendentes ao levantamen- to de depósito em dinheiro e que importem alienação de propriedade, quando for prestada caução suficiente e idônea (CPC, art. 475-O, inc. III), porque, em tese, a prestação de caução importa em oferecimento de garantia capaz de assegurar a restituição das partes ao estado anterior; e c) por extensão, sendo aplicável a previsão que autoriza a prática de atos tendentes ao levantamento de depósito em dinheiro e que importem alienação de propriedade, quando for prestada caução suficiente e idônea, incidem as regras que excepcionam a exigibilidade de caução (CPC, art. 475-O, § 2º, inc. I e II – esta última, obviamente restrita a hipóteses de interposição de agravo de instrumento perante o Supremo Tribunal Federal). Ademais, o mesmo fundamento que no processo do trabalho justifica, em execução provisória, a prática de atos tendentes ao levantamento de depósito em dinheiro e que importem alienação de propriedade – qual seja, a prestação de caução capaz de assegurar a restituição das partes ao estado anterior –, ampara a incidência, também, da regra contida no § 1º do art. 475-M do CPC, que, em situações em que a utilização de medidas de oposição à execução importe na suspensão do procedimento, faculta ao credor requerer o prosseguimento da exe- cução, desde que preste caução suficiente e idônea, arbitrada pelo juiz, nos própri- os autos. VIII EXECUÇÃO EM FACE DA FAZENDA PÚBLICA Sem modificar o atual meio de oposição à execução promovida em face da Fazenda Pública – mantidos os embargos, que devem ser opostos no prazo previsto 95 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 95-114, jul./dez. 2006 INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: ALGUMAS TEORIAS, SEGUNDO RICCARDO GUASTINI, E SUA APLICAÇÃO A UM CASO CONCRETO Helena Beatriz Cesarino Mendes Coelho* 1 Introdução 2 A Interpretação Jurídica por Riccardo Guastini 3 Exposição de caso concreto 4 Aplicação das teorias da interpretação jurídica no caso concreto. Referências bibliográficas 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo abordar algumas teorias da interpre- tação, consoante expostas por Riccardo Guastini, relacionando-as, no que perti- nente, com a hermenêutica proposta por Hans-Georg Gadamer, para, após, de- monstrar sua aplicação a um caso concreto específico. Primeiramente, pois, será exposta a lição de Guastini a respeito das teorias da interpretação jurídica. Logo após, será trazida controvérsia que foi objeto de Parecer na Procuradoria-Geral do Estado, o qual envolveu claramente o emprego de atividade interpretativa. Ao final, será destacada a espécie de interpretação empregada para solução do caso concreto apontado. 2 A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA POR RICCARDO GUASTINI Riccardo Guastini, em sua obra “Das Fontes às Normas”, trata com percu- ciência o tema relativo à interpretação jurídica, o qual pretendemos agora abordar, com base no citado autor. 2.1 Conceitos de Interpretação Jurídica Primeiramente, adverte Guastini que o termo interpretação não contém um significado unívoco entre os juristas. Ao contrário. Desmembra o autor tal significa- ção em cinco itens, conforme a seguir exposto. (a) Em sentido estrito, o termo interpretação é utilizado nas hipóteses em que se pretende atribuir significado a um texto que é obscuro e contestado, sendo *Procuradora do Estado do RS. 96 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 95-114, jul./dez. 2006 duvidosa sua aplicação ao caso concreto. “Nesta acepção, em suma, ‘interpreta- ção significa mais ou menos: decisão em torno do significado não de um texto qualquer em qualquer circunstância, mas (somente) de um texto obscuro numa situação de dúvida”. Tal conceito de interpretação está presente no pensamento metodológico que se exprime nas máximas “In claris non fit interpretatio” e “Interpretatio cessat in claris”, ou seja, não ocorre interpretação quando o texto é claro, não apresen- tando dúvidas. Esta acepção do termo interpretação pode estar embasada em duas suposições, como explicitado por Guastini. A primeira suposição possível é a de que se deve distinguir entre dois tipos de formulações normativas. As formulações normativas que têm significado claro e não controverso e aquelas cujo significado é equívoco e causa perplexidade; apenas essas últimas exigiriam interpretação. A segunda suposição possível é a de que se deve distinguir entre dois tipos de casos particulares. Há casos em que não há dúvidas sobre a aplicação da norma (controvérsias cuja solução é pacífica). Outros há, contudo, que suscitam dúvidas ou controvérsias quanto à aplicação de determinada norma. Os primeiros tipos de casos particulares são aqueles conhecidos como “claros” ou “fáceis”; os do segundo, como casos “dúbios” ou “difíceis”. Somente os casos difíceis seriam passíveis de interpretação; os casos fáceis não a requerem. (b) Já em sentido lato, o termo interpretação é utilizado em qualquer hipó- tese em que se pretenda atribuir significado a uma formulação normativa, inde- pendentemente de sua natureza dúbia ou controversa. Portanto, todo texto requer interpretação. Diz Guastini que, mesmo tratando-se de um caso “fácil”, em que se atribui um significado óbvio ao texto, tal significado é dependente de uma interpre- tação, pois, incluir ou excluir dado caso concreto do âmbito de aplicação de uma certa norma, mesmo se a coisa for pacífica, pressupõe, de alguma maneira, inter- pretação. Logo, dá-se interpretação não só diante dos casos difíceis, mas também dos fáceis, porquanto a interpretação é pressuposto necessário da aplicação. Destaca Guastini que, de acordo com essa segunda concepção, a interpre- tação e a tradução são processos similares. Ambas tratam-se de reformulações de textos. ‘Traduzir significa reformular um texto numa língua diferente daquela em que ele é formulado. ‘Interpretar’ significa reformular um texto, não importando se na mesma língua em que é formulado ou em outra. A interpretação jurídica é tipicamente reformulação dos textos normativos das fontes. “(...); assim, na inter- pretação jurídica, o intérprete produz um enunciado, pertencente à sua linguagem, que ele assume ser sinônimo de um enunciado distinto pertencente à linguagem das fontes”. A primeira concepção de interpretação – em sentido estrito – coloca de lado a componente volitiva ou decisória das operações doutrinárias e jurisprudenciais. Para tal modo de ver, as fontes diferenciam-se em “claras” (de significado pacífico) e “obscuras” (de significado dúbio). Somente a atribuição de significado a uma fonte “obscura” requer valorações, escolhas, decisões, ao passo que a atribuição 97 RPGE, Porto Alegre, v. 30, n. 64, p. 95-114, jul./dez. 2006 de significado a uma fonte “clara” seria atividade cognoscitiva, consistente em descobrir um significado preexistente num determinado texto, sem ter de decidir qual significado (dentre vários possíveis) convém àquele dado texto. Essa visão considera que a atribuição de significado a um texto “claro” é algo suscetível de ser verdadeiro ou falso. Usualmente, essa concepção traz consigo a opinião falaciosa de que as palavras têm um significado próprio, intrínseco, que independe dos diversos modos de utilizar e de entender as próprias palavras, constituído previamente em relação aos modos de usá-las e entendê-las. Assim, toda palavra “tem” o seu significado. Ao contrário, a segunda concepção de interpretação – em sentido lato – subentende que atribuir um significado a um texto sempre requer valorações, esco- lhas e decisões. Em nenhuma hipótese a interpretação pode ser entendida como uma atividade cognoscitiva, pela simples razão de que não existe o tal “significado próprio” das palavras: as palavras têm apenas o significado que lhe é atribuído por quem as usa e/ou por quem as interpreta. Por outro lado, há que se destacar que a distinção entre textos “claros” e “obscuros” é discutível, porque clareza e obscuridade não podem ser qualidades intrínsecas de um texto, as quais precederiam a interpretação. As próprias clareza e obscuridade são fruto de interpretação, na medida em que essa é a atribuição de significado a um texto. Ora, somente depois de interpretar um texto poder-se-á dizer se ele é claro ou obscuro. Ademais, pode haver controvérsia com relação à própria clareza ou obscuridade do texto: um texto pode ser claro para uma pessoa e obscuro para outra. Assim, a clareza, ao invés de excluir toda controvérsia, pode, ela inclusive, constituir objeto de controvérsia. Por fim, ressalta-se que os adeptos do primeiro conceito de interpretação normalmente tendem a identificar textos legislativos e normas, entendendo que todo texto ou fragmento de texto exprime uma norma. A norma pode ser clara ou obscura, mas, de qualquer forma, é preexistente à atividade interpretativa. Assim, a interpretação, para essa concepção, tem normas como objeto. A seu turno, os adeptos do segundo conceito de interpretação tendem a distinguir textos legislativos de normas: as normas são o significado dos textos. Logo, a interpretação não tem como objeto normas, mas textos. Interpretar é decidir o significado de um texto legislativo, é produzir uma norma. As normas são, pois, produtos dos intérpretes. (c) Em sentido muito lato, interpretação é termo algumas vezes utilizado para referir-se genericamente ao conjunto do trabalho dos juristas, que inclui, além da interpretação propriamente dita ( em sentido estrito ou em sentido lato), tam- bém outras operações, como, por exemplo, a identificação das fontes do direito válidas e a chamada “sistematização” do direito. A sistematização do direito abrange uma série de operações diversas, como a integração do direito, a solução de anti- nomias e a exposição “sistemática” (ordenada) da disciplina jurídica de uma dada matéria.
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