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Transformações da Intimidade e Espaço Público na Modernidade: Estudo sobre Literatura e Co, Notas de estudo de Psicologia

Neste artigo, a imagem da janela e suas variações são utilizadas como ponto de partida para discutir as transformações entre o conceito de público e privado ocorridas desde o século xix. A investigação sobre edgar allan poe e joão do rio é determinante para entender a tensão que o sujeito moderno sofre ao tentar preservar sua intimidade, enquanto é chamado a participar das novas estruturas sociais. A literatura e a leitura caminham no sentido de propor uma ordenação de um mundo cada vez mais caótico, mas as novas janelas que a contemporaneidade vê surgir, telas virtualizadas que ocupam papel central na comunicação pessoal e de massa, tornam necessário que investiguemos as novas configurações sobre a intimidade do sujeito e sua busca por segurança no espaço público.

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 29/08/2009

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thaisa-r-4 🇧🇷

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Baixe Transformações da Intimidade e Espaço Público na Modernidade: Estudo sobre Literatura e Co e outras Notas de estudo em PDF para Psicologia, somente na Docsity! ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 7, N. 2, 2ª SEMESTRE DE 2007 16 ARTIGOS Diante de janelas: fronteiras entre público e privado na (pós)modernidade Facing the windows: the boundaries between private and public and in (post)modernity Giovanna Ferreira Dealtry * Docente do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio Endereço para correspondência RESUMO A imagem da janela e suas variações são utilizadas no presente artigo como caminho de discussão sobre as transformações entre as conceituações de público e privado, ocorridas desde o século XIX. A investigação sobre Edgar Allan Poe e João do Rio é determinante para entender a tensão que o sujeito surgido na modernidade sofre ao tentar preservar sua intimidade, ao mesmo tempo em que é chamado a participar das novas estruturas sociais. Literatura e leitura caminham no sentido de propor uma ordenação de um mundo cada vez mais caótico, prova disso é o nascimento do gênero policial em pleno século XIX. No entanto, as novas janelas que a contemporaneidade vê surgir, telas virtualizadas que ocupam papel central na comunicação pessoal e de massa, tornam necessário que investiguemos as novas configurações sobre a intimidade do sujeito e sua busca por segurança no espaço público. Nesse sentido, Rubem Fonseca e Luiz Ruffato surgem como nomes importantes no cenário da literatura brasileira e que denunciam em sua prosa o afastamento do homem e da cidade, vista, muitas vezes, como um texto indecifrável. Palavras-chave: Literatura e cidade, Sujeito e modernidade, Comunicação virtualizada. ABSTRACT The image of a window and its variations are used in this article as a way to discuss the transformation of the concept of public and private that has taken place since the 19th Century. The investigation of Edgar Allan Poe and João do Rio is essential if one is to understand the tension that the individual born in modernity suffers as he/she tries to preserve his/her privacy while being asked to participate in new social structures. Literature and literacy advance in a way that offers order to a world that is increasingly more chaotic, and the birth of the crime novel in the 19th Century is proof of that. However, the new emerging present-day windows, virtual screens that have a central role in both personal and mass communication, make it necessary to investigate the new configurations of an individual’s privacy and his/her quest for security in the public space. In that sense, Rubem ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 7, N. 2, 2ª SEMESTRE DE 2007 17 Fonseca and Luiz Ruffato appear as important names in Brazilian literature for their denunciation of the estrangement between the individual and the city, the latter seen as an undecipherable text. Keywords: Literature and city, Individual and modernity, Virtual communication A imagem acima é um registro do trabalho da dupla de grafiteiros portugueses Aion e Ryth, na cidade de Vila Nova de Gaia.1 Para os pouco afeitos às tecnologias comunicacionais vale explicar: trata-se de uma reprodução de uma janela de conversação do windows messenger, possivelmente o programa mais utilizado em todo mundo para a troca de mensagens em tempo real na web. O que, a princípio, pertenceria à ordem do privado – a conversa - é transposto para a dimensão pública da cidade. A janela em espaço aberto, quase um trompe l`oeil, provoca justamente esse questionamento das fronteiras entre público e privado; virtual e real; escrita e imagem, em que o território físico e simbólico da cidade aparece como denominador comum. A imagem da janela como intermediação entre a ordem do público e do privado aparece de maneira impactante em “O Homem das multidões”, de Edgar Allan Poe. Por trás da vidraça de ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 7, N. 2, 2ª SEMESTRE DE 2007 20 selvagem, com a identificação do absolutamente estrangeiro. O reconhecimento fisionômico transforma o criminoso na personificação do outro (PEIXOTO, 2004, p.126). Como vemos, a ficção inaugurada pela modernidade tem preocupações semelhantes às da ciência. No entanto, onde a ciência estabelece a certeza das medições, a literatura instaura a dúvida sobre a própria escrita e a leitura. Não é por acaso que o romance policial nasce no século XIX, tendo à frente Allan Poe e seu cerebral detetive Dupin. Em “Assassinatos da Rua Morgue” (1841), vemos presentes justamente dois dos mais importantes elementos da modernidade. Os jornais, de onde Dupin retira todas as informações para desvendar o assassinato brutal de duas senhoras, e a formulação do criminoso como “absolutamente estrangeiro”, a “personificação do outro”. Chocam-se ao longo do conto duas formulações sobre a cidade: a primeira, a cidade-mistério, espaço do crime; a segunda, a cidade capaz de ser decifrável através da leitura do observador/detetive. Em “O homem das multidões”, o impasse que instaura igualmente o fim do conto e a incapacidade de através do olhar decifrar o coração do criminoso. Em “Assassinatos da Rua Morgue”, Poe dá um passo adiante, ao criar a figura do detetive que se utiliza, sobretudo, da capacidade dedutiva para resolver o enigma. Nesse contexto, a leitura não se confunde com as marcas visíveis do corpo do “outro”, como queriam os criminalistas da época. A leitura, no caso de Dupin, opera justamente no campo do que não é explicitamente visível, mas no campo do erro, do equívoco. Na metrópole dominada por estrangeiros, as testemunhas do crime são um italiano, um francês, um holandês, um inglês e um espanhol. Todos ouviram os mesmos sons vindos da casa das senhoras na hora do assassinato. E todos se referem a essa voz como uma voz estrangeira. Diz Dupin: Cada um deles a descreve, não como a voz de um indivíduo de qualquer nação em cuja linguagem seja fluente, mas justamente o oposto. O francês supôs que era a voz de um espanhol e declarou “que poderia ter distinguido algumas palavras se soubesse falar espanhol” (POE, 2002, p.119 – grifos no original). Em “Assassinatos na Rua Morgue”, a voz comum elege o “outro”, aquele que não pertence à comunidade como o principal suspeito, ainda que as testemunhas não tenham como provar sua hipótese. A idéia de que a suspeita é construída sobre o preconceito é trabalhada com muita eficácia pelo gênero. O primeiro suspeito é o outro social, aquele que pertence à minoria que rodeia o mundo branco, no interior do qual estão se desenvolvendo as versões paranóicas daquilo que a ameaça supõe (PIGLIA, 2006, p.82). Poe encontra na imagem do gorila a personificação pura dessa voz estrangeira, o assassino que, de certo modo, corresponde às declarações das testemunhas, que não reconhecem em sua fala a voz do mesmo, mas que igualmente está fora da ordem usual das ameaças nas grandes cidades. Assim, a ordem pode ser facilmente restabelecida, pois este outro torna-se uma exceção que não pertence ao âmbito da convivência urbana. Se o horror em Poe está na insegurança diante de um outro tão outro, tão distante que só poderia ser um animal, o horror no conto “O outro”, de Rubem Fonseca, está na insegurança diante de um eu tão outro, um outro tão próximo que nos espelha. No escritor brasileiro, as fronteiras entre vítima e criminoso se revertem, o terrível está em tomarmos consciência de que podemos estar em qualquer um dos lados. Em um mundo em que a ciência não mais é capaz de explicar as nuances da crueldade humana e que a permanência da ordem não está mais assegurada pela descoberta de uma verdade absoluta, a figura do detetive igualmente transforma-se - em muitos momentos, desaparece –, aproximando-se do homem comum, destituído de habilidades dedutivas superiores. Nos romances policiais contemporâneos, o detetive, por vezes, tateia pela cidade tanto quanto qualquer um de nós.2 Perdida a capacidade de identificar, ordenar, estipular significados precisos, esvai-se a segurança garantida pelo restabelecimento da verdade e da ordem e tornamos a nos deparar com a opacidade da cidade e seus habitantes ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 7, N. 2, 2ª SEMESTRE DE 2007 21 Janelas cerradas, telas virtuais A imagem que abre esse artigo dialoga, primeiramente, com a modernidade, ao evocar uma janela temporal que se abre através do tempo. Porém, se a janela do windows messenger abre-se para o mundo, a ponto de nós a reconhecermos grafitada nos muros – públicos – da cidade, ela igualmente se abre para os sentidos contemporâneos da intimidade, estabelecendo telas de contato que revelam conversas, segredos, com um outro que pode ou não participar de nossa lista de contatos cotidianos e reais.3 Para compreender melhor essa questão, é preciso notar que a intimidade, como criada no lar burguês, transferiu-se não para outros territórios como as ruas ou os escritórios. Não são mais os espaços físicos da cidade que estabelecem as diferenças entre o privado e o público, mas as novas formas de aproximações sociais e o uso de novos mecanismos, em especial aqueles ligados diretamente a um consumo tecnológico, que criam fronteiras móveis entre os papéis públicos e as novas formas de subjetividade. A tela, pura imagem, grafitada em um espaço urbano, puro concreto, sintetiza o paradoxo em que vivemos: fora do tempo e do espaço formal podemos estabelecer novas imagens sobre nós e os outros; no tempo e no espaço somos convidados reiteradamente a participar do cotidiano de uma cidade que nos parece de uma escritura impenetrável. Trata-se de investigar, à maneira de Poe, se a nova cidade, que incorpora a seu território físico partes dispersas e simbólicas, modifica as nossas formas de construção subjetiva ou se estas modificações prévias são justamente o fator que produz novos meios de se olhar o mundo. Se a escrita nos chats, e-mails ou blogs é modificada pelo suporte e produz, não só linguagens em códigos específicos da internet, como um predomínio de frases curtas, crônicas e mini- narrativas, é preciso igualmente não esquecer que, como os modernos do século XIX, o tempo e o espaço continuam a ser fatores determinantes na formalização dessa leitura. É necessário não somente se comunicar, mas estar “on-line”, receber informações transmitidas “ao vivo”, e atualizadas minuto a minuto. Para ter acesso a qualquer tipo de informação, não precisamos mais estar em casa ou no trabalho, mas existimos – também - agora em um novo espaço imaterial, sem coordenadas precisas que, nos definam a partir do lugar que, geograficamente, ocupamos. Esse processo de comunicação virtualizada e os efeitos sobre o indivíduo já vinham sendo tratados pela literatura do início do século passado. João do Rio, em seu conto “O dia de um homem em 1920” (1910), mergulha justamente na angústia de um mundo dominado pela ânsia de acúmulo de capital e o conseqüente apagamento da afetividade do ser humano. O interessante dessa ficção científica é que ela focaliza não o trabalhador alienado e explorado, como em Metrópolis, de Fritz Lang, mas igualmente mostra as classes dominantes – o “homem superior” –, como vítima de um sistema que ele ajudou a criar. Presidente de cinqüenta companhias, intendente-geral da Compra de Propinas, chefe do jornal Eletro Rápido, que liga as principais capitais do planeta em agências colossais, o “homem superior”, sujeito não nomeado, recebe, minuto a minuto, informações através de fonógrafos, telegramas e mesmo dentro do “seu cupê aéreo que tem no vidro da frente, em reprodução cinematográfica, os últimos acontecimentos. São visões instantâneas” (RIO, 2005, p.96). É dessa maneira, por exemplo, enquanto está em trânsito, que ele é informado sobre o falecimento da própria filha, ao que responde de maneira igualmente telegráfica “Enterro primeira classe comunique mulher superior, Cortejo Carpideiras Elétricas” (RIO, 2005, p.97). Na sociedade governada pela necessidade de produzir e consumir incessantemente, a escrita e a leitura caminham para a desaparição; os empregados não mais sabem escrever e ditam para as máquinas as notícias a serem reproduzidas mundo afora; os cinematógrafos funcionam em sessões contínuas e a morte surge como algo frívolo. Em um breve instante de lucidez, “o homem superior” conclui que “não é gente, é um aparelho”. Opõem-se em “Um dia na vida de um homem em 1920”, a pressa que alimenta os meios de locomoção e informação, a pressa de lucrar, aos resquícios de uma subjetividade perdida, dizimada juntamente com a reflexão trazida pela leitura. Vivemos, portanto, nesse paradoxo elaborado pelas novas formas de comunicação virtualizada. Por um lado, as informações chegam a todos, possibilitando, teoricamente, uma ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 7, N. 2, 2ª SEMESTRE DE 2007 22 aproximação maior. No entanto, carecemos de tempo e reflexão para efetivamente nos sentirmos parte de uma comunidade maior. Ou, de maneira mais prática, o que é possível fazer com a quantidade de informações não selecionadas que recebemos? Como afirma Baudrillard, Em toda parte é suposto que a informação produz uma circulação acelerada do sentido, uma mais-valia de sentido homólogo à mais-valia econômica que provém da rotação acelerada do capital. A informação é dada como criadora de comunicação [...] Somos todos cúmplices deste mito. É o alfa e o ômega da nossa modernidade, sem o qual a credibilidade da nossa organização social se afundaria. Ora o fato é que ela se afunda, e por este mesmo motivo. Pois onde pensamos que a informação produz sentido, é o oposto que se verifica.[...] Assim a informação dissolve o sentido e dissolve o social numa espécie de nebulosa voltada, não de todo a um aumento de inovação mas, muito pelo contrário, à entropia total. Assim, os media são produtores não da socialização mas do seu contrário, da implosão do social nas massas (BAUDRILLARD, 1991, p.104-106). A informação, ao chegar em excesso até nós, produzida somente como superfície, não estabelece mais sentido, ainda que guarde seu teor de espetáculo. Esta, por certo, é a nova etapa do capitalismo que transforma a informação em mercadoria de fácil aceitação e incessante câmbio. No entanto, desta tensão entre real e virtual emergem novas e complexas construções do indivíduo, a partir de uma comunicação que não se dá mais face a face. Aliás, a partir do que foi proposto na primeira parte deste artigo, seria útil nos perguntarmos o quanto o modo de vida nas grandes cidades capitalistas nos dessensibilizou para o contato com o “outro”, antes mesmo do surgimento de novas tecnologias que, aparentemente, nos prometem o distanciamento seguro. Se, à semelhança dos indivíduos no século XIX, nos esmeramos em continuar evitando o contato com estranhos em público, preservando assim nossa privacidade, por outro lado, não nos furtamos em consumir revistas de fofocas, (auto)biografias ou programas televisivos, que revelem justamente a intimidade do outro. Nesse sentido, vale ressaltar que não somente a “celebridade” chama atenção. Cada vez mais vemos vidas anônimas despertando o interesse de grandes públicos, seja através do boom de programas de reality shows ou dos blogs, que se caracterizam justamente pela perspectiva híbrida entre público e privado. Surgem daí novas questões: no momento em que um outro captura em sua tela de TV ou computador imagens e narrativas ligadas a aspectos íntimos do sujeito, essa suposta privacidade continua a existir “publicamente” ou desfaz-se no ar como um simulacro? Ou melhor, não será esta uma falsa dicotomia e, na verdade, estamos agora reelaborando novas fronteiras para estes termos? Assim, ao examinarmos o breve discurso do blogueiro Doug, naturalmente acostumado à velocidade da comunicação virtualizada, vemos como novas formas de subjetividade estão sendo construídas a partir da relação entre real e virtual. Consigo desdobrar minha mente. Estou ficando perito nisso. Me vejo como duas, três ou mais pessoas. E limito-me a ligar uma parte de minha mente e depois outra, à medida que viajo de janela em janela. Estou tendo uma discussão qualquer numa das janelas e tento paquerar uma garota numa outra janela e, numa terceira, pode estar correndo uma folha de cálculo ou outra coisa técnica para a universidade...E de repente recebo uma mensagem em tempo real e calculo que isto seja a vida real. É só mais uma janela (TURKLE, S. apud SCHITTINE, 2004, p.58). O interessante na análise do depoimento acima é que, mesmo diante da constatação da multiplicidade de ações e experiências compartilhadas no espaço da tela, o blogueiro ainda evoca, de forma talvez nostálgica, um certo sentido unificador do “real”. Como o narrador em “O homem da multidão”, que vê passar diante da vidraça uma série de personagens urbanos, o blogueiro Doug vê passar em sua tela as relações básicas de qualquer indivíduo na cidade contemporânea: amizade, namoro, trabalho, estudo. No entanto, essas experiências são definidas como “mais uma janela” que se opõem, como no narrador de Poe, a experiência vivida em algum lugar “lá fora”, distante de nossas telas.
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