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Guias e Dicas
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Tu, só tu, puro amor - Machado de Assis, Notas de estudo de Literatura Brasileira

Machado de Asssis tu so tu

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 10/09/2009

paulo-karvan-9
paulo-karvan-9 🇧🇷

4.6

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Baixe Tu, só tu, puro amor - Machado de Assis e outras Notas de estudo em PDF para Literatura Brasileira, somente na Docsity! MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro TU, SÓ TU, PURO AMOR Machado de Assis TU SÓ, TU, PURO AMOR,... Tu só, tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga... Camões, Luz. III, II9. PERSONAGENS CAMÕES ANTÔNIO DE LIMA CAMINHA D. MANUEL DE PORTUGAL D. CATARINA DE ATAÍDE D. FRANCISCA DE ARAGÃO CENA PRIMEIRA. CAMINHA, D. MANUEL DE PORTUGAL (— Caminha vem do fundo, da esquerda; vai a entrar pela porta da direita, quando lhe sai Manoel de Portugal, a rir). Caminha — Alegre vindes, senhor D. Manuel de Portugal. Disse-vos El-rei alguma coisa graciosa, de certo... D. Manuel — Não; não foi El-rei. Adivinhai o que seria, se é que o não sabeis já. Caminha — Que foi? D. Manuel — Sabeis o caso da galinha do duque de Aveiro? Caminha — Não. D. Manuel — Não sabeis ? — Pois é isto: uns versos mui galantes do nosso Camões. (Caminha estremece e faz um gesto de má vontade.) Uns versos como ele os sabe fazer. (À parte.) Doe-lhe a noticia. (Alto.) Mas, deveras não sabeis do encontro de Camões com o duque de Aveiro? Caminha — Não. D. Manuel — Foi o próprio duque que mo contou agora mesmo, ao vir de estar com El- rei... Caminha — Que houve então? D. Manuel — Eu vo-lo digo; achavam-se ontem, na igreja do Amparo, o duque e o poeta... Caminha, com enfado. — O poeta! O poeta! Não é mais que engenhar aí uns poucos versos, para ser logo poeta! Desperdiçais o vosso entusiasmo, senhor D. Manuel. Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas mortas... D. Manuel — Parece-vos então...? Caminha — Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presunção dele e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos sofríveis. E canções... Digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com boa vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que pode vir a ser... D. Manuel — Acabe. — O duque de Aveiro e o poeta encontraram-se ontem na igreja do Amparo. O duque prometeu ao poeta mandar-lhe uma galinha de sua mesa, mas só lhe mandou um assado. Camões retorquiu-lhe com estes versos, que o próprio duque me mostrou agora, a rir: Eu já vi a taverneiro, Vender vaca por carneiro. Mas não vi, por vida minha, vender vaca por galinha, senão ao duque de Aveiro. — Confessai, confessai senhor Caminha, vós que sois poeta, confessai que há aí certo pico, e uma simpleza de dizer... Não vale tanto de certo como os sonetos dele, alguns dos quais são sublimes, aquele por exemplo: De amor escrevo, de amor trato e vivo... ou este Tanto de meu estado me acho incerto... — Sabeis a continuação? Caminha — Até lhe sei o fim: Se me pergunta alguém porque assim ando respondo que não sei, porém suspeito que só porque vos vi, minha senhora. — (Fitando-lhe muito os olhos.) Esta senhora... Sabeis vós, de certo, quem é esta senhora do poeta, como eu o sei, como o sabem todos... Naturalmente amam- se ainda muito? D. Manuel, à parte. — Que quererá ele? Caminha — Amam-se por força. D. Manuel — Cuido que não. Caminha — Que não? D. Manuel — Acabou, como tudo acaba. Caminha, sorrindo. — Anda lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossível que também vós... Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão? D. Manuel — Que tem? Caminha — Vede: um simples nome vos faz estremecer. Mas sossegai, que não sou vosso inimigo; mui ao contrário, amo-vos, e a ela também... e respeito-a muito. Um para o outro nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sai pela direita.) CENA II DOM MANUEL DE PORTUGAL — Este homem!... Este homem!... Como se os versos dele, duros e insossos... (Vai à porta por onde Caminha saiu e levanta o reposteiro.) Lá vai ele; vai cabisbaixo; rumina talvez alguma coisa. Que não sejam versos! (Ao fundo aparecem D. Antônio de Lima e D. Catarina de Ataíde.) CENA III D. MANUEL DE PORTUGAL, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. ANTÔNIO DE LIMA D. Antônio de Lima — Que espreitais aí, senhor D. Manuel. D. Manuel — Estava a ver o porte elegante do nosso Caminha. Não vades supor que era alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhai, lá vai ele a desaparecer. Vai a El-rei. D. Antônio — Também eu. Tu, não, minha boa Catarina. A rainha espera-te. (D. Catarina faz uma reverência e caminha para a porta da esquerda.) Vai, vai, minha gentil flor... (A D. Manuel.) Gentil, não a achais? D. Manuel — Gentilíssima. D. Antônio — Agradece, Catarina. D. Catarina — Agradeço; mas o certo é que o senhor D. Manuel é rico de louvores... D. Manuel — Eu podia dizer que a natureza é que foi conosco pródiga de graças; mas, não digo; seria repetir mal aquilo que só poetas podem dizer bem. (D. Antônio fecha o rosto.) Dizem que também sou poeta, é verdade; não sei; faço versos. Adeus, senhor D. Antônio... (Corteja-os e sai. D. Catarina vai a entrar, à esquerda. D. Antônio detém-na.) CENA IV D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE D. Antônio D. Catarina — Não é essa a minha obrigação? D. Antônio — Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pai que sou. Agora, anda, vai. CENA V D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO D. Antônio — Mas não, não vás sem falar à senhora D. Francisca de Aragão, que aí nos aparece, fresca como a rosa que desabotoou agora mesmo, ou, como dizia a farsa do nosso Gil Vicente, que eu ouvi há tantos anos, por tempo do nosso sereníssimo senhor D. Manuel... Velho estou, minha formosa dama... D. Francisca — E que dizia a farsa? D. Antônio — A farsa dizia: É bonita como estrela, Uma rosinha deaAbril, Uma frescura de maio, Tão manhosa. Tão sutil! — Vede que a farsa adivinhava já a nossa D. Francisca de Aragão, uma frescura de maio, tão manhosa, tão sutil... D. Francisca — Manhosa, eu? D. Antônio — E sutil. Não vos esqueça a rima, que é de lei. (Vai a sair pela porta da direita; aparece Camões.) CENA VI OS MESMOS, CAMÕES D. Catarina, à parte. — Ele! D. Francisca, baixo a D. Catarina. — Sossegai! D. Antônio — Vinde cá, senhor poeta das galinhas. Já me chegou aos ouvidos o vosso lindo epigrama. Lindo, sim; e estou que não vos custaria mais tempo a fazê-lo do que eu a dizer-vos que me divertiu muito... E o duque? O duque, ainda não emendou a mão? Há de emendar, que não é nenhum mesquinho. Camões, alegremente. — Pois El-rei deseja o contrário... D. Antônio — Ah! Sua Alteza falou-vos disso?... Contar-mo-eis em tempo. (A D. Catarina, com intenção). Minha filha e senhora, não ides ter com a rainha? Eu vou falar a El-rei. (D. Catarina corteja-os e dirige-se para a esquerda; D. Antônio sai pela direita.) CENA VII OS MESMOS, menos D. ANTÔNIO DE LIMA (D. Catarina quer sair, D. Francisca de Aragão detém-na.) D. Francisca — Ficai, ficai... D. Catarina — Deixe-me ir! Camões — Fugis de mim? D. Francisca — Isto é convosco; e eu, que posso ser indiscreta, não me detenho a ouvir mais nada. (Dá alguns passos para o fundo.) D. Catarina — Vinde cá... D. Francisca — Vou-me... vou a consolar o nosso Caminha, que há de estar um pouco enfadado... Ouviu ele o que El-rei vos disse? Camões — Ouviu; que tem? D. Francisca — Não ouviria de boa sombra. Camões — Pode ser que não... dizem-me que não. (A D. Catarina.) Pareceis inquieta... D. Catarina, a D. Francisca. — Não, não vades; ficai um instante. Camões, a D. Francisca. — Irei eu. D. Francisca — Não, senhor; irei eu só. (Sai pelo fundo.) CENA VIII CAMÕES, D. CATARINA DE ATAÍDE Camões, com uma reverência. — Irei eu. Adeus, minha senhora D. Catarina de Ataíde! (D. Catarina dá um passo para ele.) Mantenha-vos Deus na sua santa guarda. D. Catarina — Não... vinde cá... (Camões detém-se.) Enfadei-vos? Vinde um pouco mais perto. (Camões aproxima-se.) Que vos fiz eu? Duvidais de mim? Camões — Cuido que me quereis ausente. D. Catarina — Luís! (Inquieta.) Vede esta sala, estas paredes... falarmos a sós... Duvidais de mim? Camões — Não duvido de vós; não duvido da vossa ternura: da vossa firmeza é que eu duvido. D. Catarina — Receiais que fraqueie algum dia? Camões — Receio; chorareis muitas lágrimas, muitas e amargas... mas, cuido que fraqueareis. D. Catarina — Luís! juro-vos... Camões — Perdoai, se vos ofende esta palavra. Ela é sincera: subiu-me do coração à boca. Não posso guardar a verdade; perder-me-ei algum dia por dizê-la sem rebuço. Assim me fez a natureza; assim irei à sepultura. D. Catarina — Não, não fraquearei, juro-vos. Amo-vos muito, bem o sabeis. Posso chegar a afrontar tudo, até a cólera de meu pai. Vede lá, estamos a sós; se nos vira alguém... (Camões dá um passo para sair.) Não, vinde cá. Mas, se nos vira alguém, defronte um do outro, no meio de uma sala deserta, que pensaria? Não sei que pensaria; tinha medo há pouco, já não tenho medo... amor sim... O que eu tenho é amor, meu Luís. D. Catarina — Pode ser; mas eu quero-os ruins, como os vossos... como aquele da Circe, o meu retrato, dissestes vós. Camões, recitando. Um mover de olhos, brando e piedoso. Sem ver de que; um riso brando e honesto, Quase forçado um doce e humilde gesto De qualquer alegria duvidoso... D. Catarina — Não acabeis, que me obrigareis a fugir de vexada. Camões — De vexada! Quando é que a rosa se vexou, por que o sol a beijou de longe? D. Catarina — Bem respondido, meu claro sol. Camões — Deixai-me repetir que sois divina. Natércia minha, pode a sorte separar- nos, ou a morte de um ou de outro; mas o amor subsiste, longe ou perto, na morte ou na vida, no mais baixo estado, ou no cimo das grandezas humanas, não é assim? Deixai-me crê-lo, ao menos; deixai-me crer que há um vínculo secreto e forte, que nem os homens, nem a própria natureza poderia já destruir. Deixai-me crer... Não me ouvis? D. Catarina — Ouço, ouço. Camões — Crer que a última palavra de vossos lábios será o meu nome. Será? Tenha eu esta fé, e não se me dará da adversidade; sentir-me-ei afortunado e grande. Grande, ouvis bem? Maior que todos os demais homens. D. Catarina — Acabai! Camões — Que mais? D. Catarina — Não sei; mas é tão doce ouvir-vos! Acabai, acabai, meu poeta! Ou antes, não, não acabeis; falai sempre, deixai-me ficar perpetuamente a escutar-vos. Camões — Ai de nós! A perpetuidade é um simples instante, um instante em que nos deixam sós nesta sala! (D. Catarina afasta-se rapidamente.) Olhai; só a idéia do perigo vos arredou de mim. D. Catarina — Na verdade, se nos vissem... Se alguém aí, por esses reposteiros... Adeus... Camões — Medrosa, eterna medrosa! D. Catarina — Pode ser que sim; mas não está isso mesmo no meu retrato? Um encolhido ousar, uma brandura, Um medo sem ter culpa; um ar sereno, Um longo e obediente sofrimento... Camões Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e o mágico veneno Que pôde transformar meu pensamento. D. Catarina, indo a ele. — Pois então? A vossa Circe manda-vos que não duvideis dela, que lhe perdoeis os medos, tão próprios do lugar e da condição; manda-vos crer e amar. Se ela às vezes foge, é porque a espreitam; se vos não responde, é porque outros ouvidos poderiam escutá-la. Entendeis? É o que vos manda dizer a vossa Circe, meu poeta... e agora... (Estende-lhe a mão.) Adeus! Camões — Ides-vos? D. Catarina — A rainha espera-me. Audazes fomos, Luís. Não desafiemos o paço... que esses reposteiros... D. Catarina, aflita pegando-lhe na mão. — Reparai, meu Luís, reparai onde estais, quem eu sou, o que são estas paredes... domai esse gênio arrebatado, peço-vo-lo eu. Ide-vos em boa paz, sim? Camões — Viva a minha corça gentil, a minha tímida corça! Ora vos juro que me vou, e de corrida. Adeus! D. Catarina — Adeus! Camões, com a mão dela presa. — Adeus D. Catarina — Ide... deixai-me ir! Camões — Hoje há luar; se virdes um embuçado diante das vossas janelas, quedado a olhar para cima, desconfiai que sou eu; e então, já não é o sol a beijar de longe uma rosa, é o goivo que pede calor a uma estrela. D. Catarina — Cautela, não vos reconheçam. Camões — Cautela haverei; mas, que me reconheçam, que tem isso? embargarei a palavra ao importuno. D. Catarina — Sossegai. Adeus! Camões — Adeus! (D. Catarina dirige-se para a porta da esquerda, e pára diante dela, à espera que Camões saia. Camões corteja-a com um gesto gracioso, e dirige-se para o fundo. — Levanta-se o reposteiro da porta da direita, e aparece Caminha. — D. Catarina dá um pequeno grito, e sai precipitadamente. — Camões detém-se. Os dois homens olham-se por um instante.) CENA IX CAMÕES, CAMINHA Caminha, entrando. — Discreteáveis com alguém, ao que parece... Camões — É verdade. Caminha — Ouvi de longe a vossa fala, e reconheci-a. Vi logo que era o nosso poeta, de quem tratava há pouco com alguns fidalgos. Sois o bem-amado, entre os últimos de Coimbra. — Com que, discreteáveis... Com alguma dama? Camões — Com uma dama. Caminha — Certamente formosa, que não as há de outra casta nestes reais paços. Sua Alteza cuido que continuará, e ainda em bem, algumas boas tradições de El-rei seu pai. Damas formosas, e, quanto possível, letradas. São estes, dizem, os bons costumes italianos. É vós, senhor Camões, por que não ides à Itália? Camões — Irei à Itália, mas passando por África. Caminha — Ah! Ah! para lá deixar primeiro um braço, uma perna, ou um olho... Não, poupai os olhos, que são o feitiço dessas damas da corte; poupai também a mão, com que nos haveis de escrever tão lindos versos; isto vos digo que poupai... Camões — Uma palavra, senhor Pero de Andrade. Uma só palavra, mas sincera. Caminha — Dizei. Camões — Dissimulais algum outro pensamento. Revelai-mo... intimo-vos que mo reveleis. Caminha — Ide à Itália, senhor Camões, ide à Itália. Camões — Não resistireis muito tempo ao que vos mando. Caminha — Ou à África, se o quereis... ou à Babilônia... À Babilônia melhor; levai a harpa do desterro, mas em vez de a pendurar de um salgueiro, como na Escritura, cantar-nos-eis a linda copla da galinha, ou comporeis umas outras voltas ao mote, que já vos serviu tão bem: Perdigão perdeu a pena, Não há mal que lhe não venha. — Percebo-vos. Imaginais que amo alguma dama? Suponhamos que sim. Qual é o meu delito? Em que ordenação, em que rescrito, em que bula, em que escritura, divina ou humana, foi já dado como delito amarem-se duas criaturas? Caminha — Deixai a corte. Camões — Digo-vos que não. Caminha — Oxalá que não! Camões, à parte. — Este homem... que há neste homem? Lealdade ou perfídia? (Alto.) Adeus, senhor Caminha. (Pára no meio da cena). Por que não tratamos de versos?... Fora muito melhor... Caminha. — Adeus, senhor Camões. (Camões sai.) CENA X CAMINHA, logo D. CATARINA DE ATAÍDE Caminha — Ide ide, magro poeta de camarins... (Desce ao proscênio.) Era ela, de certo, era ela que aí estava com ele, no meio do paço, esquecidos de El-rei e de todos... Oh temeridade do amor! Do amor? ele... ele... Mas seria ela deveras?... Que outra podia ser? D. Catarina, espreita e entra. — Senhor... senhor... Caminha — Ela! D. Catarina — Ouvi tudo... tudo o que lhe dissestes... e peço-vos que não nos façais mal. Sois amigo de meu pai, ele é vosso amigo; não lhe digais nada. Fui imprudente, fui, mas que quereis? (Vendo que Caminha não diz nada.) Então? falai... poderei contar convosco? Caminha — Comigo? (D. Catarina inquieta, aflita, pega-lhe na mão; ele retira-lha com aspereza.) Contar comigo! para que, minha senhora D. Catarina? Amais um mancebo digno, por que vós o amais... muito, não? D. Catarina — Muito. Caminha — Muito, dizeis... E éreis vós que estáveis aqui, com ele, nesta sala solitária, juntos um do outro, a falarem naturalmente do céu e da terra... ou só do céu, que é a terra dos namorados. Que dizeis?... D. Catarina, baixando os olhos. — Senhor... Caminha — Galanteios, galanteios, de que se há de falar lá fora... (Gesto de D. Catarina.) Ah! cuidais que estes amores nascem e morrem no paço? — Não; passam além; descem à rua, são o mantimento dos ociosos e ainda dos que trabalham, porque, ao serão, principalmente nas noites de inverno, em que se há de ocupar a gente, depois de fazer as suas orações? Com que, éreis vós? Pois digo-vos que o não sabia; suspeitava, porque não podia talvez ser outra... E confessais que lhe quereis muito. Muito? D. Catarina — Pode ser fraqueza; mas crime...onde está o crime? Caminha — O crime está em desonrar as cãs de um nobre homem, arrastando-lhe o nome por vielas e praças; o crime está em escandalizar a corte, com essas ternuras, impróprias do alto cargo que exerceis, do vosso sexo e estado... esse é o crime. E parece-vos pequeno? D. Catarina — Bem; desculpai-me, não direis nada... Caminha — Não sei. D. Catarina — Peço-vos... de joelhos até... (Faça um gesto para ajoelhar-se, ele impede- lho.) Caminha — Perderieis o tempo; eu sou amigo de vosso pai. — Deixai que lhe chame um amor vilão. Caminha — Sois vós agora que me injuriais. Adeus, senhora D. Catarina de Ataíde! (Dirige-se para o fundo.) D. Catarina, tomando-lhe o passo. — Não! Agora não vos peço... intimo-vos que vos caleis. Caminha — Que recompensa me dais? D. Catarina — A vossa consciência. Caminha — Deixai em paz os que dormem. Quereis que vos prometa alguma coisa? Uma só coisa prometo; não contar a vosso pai o que se passou. Mas, se por denúncia ou desconfiança, for interrogado por ele, então lhe direi tudo. E duas vezes farei bem: — não faltarei à verdade, que é dever de cavaleiro; e depois... chorareis lágrimas de sangue; e eu prefiro ver-vos chorar a ver-vos sorrir. A vossa angústia será a minha consolação. Onde falecerdes de pura saudade, ai me glorificarei eu. Chamai-me agora perverso, se o quereis; eu respondo que vos amo, e que não tenho outra virtude. (Vai a sair, encontra-se com D. Francisca de Aragão; corteja-a e sai.) CENA XI D. CATARINA DE ATAÍDE, D. FRANCISCA DE ARAGÃO D. Francisca — Vai afrontado o nosso poeta. Que terá ele? (Reparando em D. Catarina.) Que tendes vós? Que foi? D. Catarina — Tudo sabe. D. Francisca — Quem? D. Catarina — Esse homem. Achou-nos nesta sala; eu tive medo; disse-lhe tudo. D. Francisca — Imprudente! D. Catarina — Duas vezes imprudente; deixei-me estar ao lado do meu Luís, a ouvir-lhe as palavras tão nobres, tão apaixonadas... e o tempo corria... e podiam espreitar- nos... Credes que o Caminha diga alguma coisa a meu pai? D. Francisca — Talvez não. D. Catarina — Quem sabe? Ele ama-me. D. Francisca — O Caminha? D. Catarina — Disse-mo agora. Que admira? Acha-me formosa, como os outros. Triste dom é esse. Sou formosa para não ser feliz, para ser amada às ocultas, odiada às escancaras, e, talvez... Se meu pai vier a saber... que fará ele, amiga minha? D. Francisca — O senhor D. Antônio é tão severo! D. Catarina — Irá ter com El-rei, pedir-lhe-á que o castigue, que o encarcere, não? E por minha causa... Não; primeiro irei eu... (Dirige-se para a porta da direita.) D. Francisca — Onde ides? D. Catarina — Vou falar a El-rei... Ou, não... (Encaminha-se para a porta da esquerda.) Vou ter com a rainha; contar-lhe-ei tudo; ela me amparará. Credes que não? D. Francisca — Creio que sim. D. Catarina — Irei, ajoelhar-me-ei a seus pés. Ela é rainha, mas é também mulher... e ama-me. (Sai pela esquerda.) CENA XII D. FRANCISCA DE ARAGÃO, D. ANTÔNIO DE LIMA, depois, D. MANUEL DE PORTUGAL D. Francisca, depois de um momento de reflexão. — Talvez chegue cedo demais. (Dá um passo para a porta da esquerda.) Não; melhor é que lhe fale... mas, se se aventa a notícia? Meu Deus, não sei... não sei... Ouço passos... Entra D. Antônio de Lima. Ah! D. Antônio — Que foi? D. Francisca CENA XIII D. MANUEL DE PORTUGAL, D. FRANCISCA DE ARAGÃO D. Manuel — Vai dizer tudo a El-rei. D. Francisca — Credes? D. Manuel — Camões contou-me o encontro que tivera com o Caminha aqui; eu ia falar ao senhor D. Antônio; achei-o agora mesmo, ao pé de uma janela, com o dissimulado Caminha, que lhe dizia: «Não vos nego, senhor D. Antônio, que os achei naquela sala, a sós e que vossa filha fugiu desde que eu lá entrei.» D. Francisca — Ouvistes isso? D. Manuel — D. Antônio ficou severo e triste. “Querem escândalo?...” foram as suas palavras. E não disse outras; apertou a mão ao Caminha, e seguiu para cá... Penso que foi pedir alguma coisa a El-rei. Talvez o desterro. D. Francisca — O desterro? D. Manuel — Talvez. Camões há de voltar agora aqui; disse-me que viria falar ao senhor D. Antônio. Para quê? Que outros lhe falem, sim; mas o meu Luís que não sabe conter-se... D. Catarina? D. Francisca — Foi lançar-se aos pés da rainha, a pedir-lhe proteção. D. Manuel — Outra imprudência. Foi há muito? D. Francisca — Pouco há. D. Manuel — Ide ter com ela, se é tempo, dizei-lhe que não, que não convém falar nada. (D. Francisca vai a sair, e pára ) Recusais? D. Francisca — Vou, vou. Pensava comigo uma coisa. (D. Manuel vai a ela.) Pensava que é preciso querer muito aqueles dois para nos esquecermos assim de nós. D. Manuel — É verdade. E não há mais nobre motivo da nossa mútua indiferença. Indiferença, não; não o é, nem o podia ser nunca. No meio de toda essa angústia que nos cerca, poderia eu esquecer a minha doce Aragão? Poderieis vós esquecer- me. Ide agora, nós que somos felizes, temos o dever de consolar os desgraçados. (D. Francisca sai pela esquerda.) CENA XIV D. MANUEL DE PORTUGAL, D. ANTÔNIO DE LIMA D. Manuel — Se perco o confidente dos meus amores, da minha mocidade, o meu companheiro de longas horas... Não é impossível. — El-rei concederá o que lhe pedir D. Antônio. A culpa, — força é confessá-lo, — a culpa é dele, do meu Camões, do meu impetuoso poeta; um coração sem freio... (Abre-se o reposteiro, aparece D. Antônio.) D. Antônio! D. Antônio, da porta, jubiloso. — Interrogastes-me há pouco; agora hei tempo de vos responder. D. Manuel — Talvez não seja preciso. D. Antônio, adianta-se — Adivinhais então? D. Manuel — Pode ser que sim. D. Antônio — Creio que adivinhais. D. Manuel — Sua Alteza concedeu-vos o desterro de Camões. D. Antônio — Esse é o nome da pena: a realidade é que Sua Alteza restituiu a honra a um vassalo, e a paz a um ancião. D. Manuel — Senhor D. Antônio... D. Antônio — Nem mais uma palavra, senhor D. Manuel de Portugal, nem mais uma palavra. — Mancebo sois; é natural que vos ponhais do lado do amor; eu sou velho, e a velhice ama o respeito. Até à vista, senhor D. Manuel, e não turveis o meu contentamento. (Dá um passo para sair.) D. Manuel — Se matais vossa filha? me ficam os melhores dias, e as mais fundas saudades. Crede, senhor D. Manuel, podeis crer que as mais fundas saudades cá me ficam. D. Manuel — Tornareis, tornareis... Camões — E ela? Já o saberá ela? D. Manuel — Cuido que o senhor D. Antônio foi dizer-lho em pessoa. Deus! Aí vem eles. CENA XVI OS MESMOS, D. ANTÔNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAÍDE D. Antônio aparece à porta da esquerda, trazendo D. Catarina pela mão. — D. Catarina vem profundamente abatida. D. Catarina, à parte, vendo Camões. — Ele! Dai-me força, meu Deus! (D. Antônio corteja os dois, e segue na direção do fundo. Camões dá um passo para falar-lhe, mas D. Manuel contém-no. D. Catarina, prestes a sair, volve a cabeça para trás.) CENA XVII D. MANUEL DE PORTUGAL, CAMÕES Camões — Ela aí vai... talvez para sempre... Credes que para sempre? D. Manuel — Não. Saiamos! Camões — Vamos lá; deixemos estas salas que tão funestas me foram. (Indo ao fundo e olhando para dentro.) Ela aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, de onde não sei se a levantarei mais... Nem eu... (Voltando-se para D. Manuel.) Nem vós, meu amigo, nem vós que me quereis tanto, ninguém. D. Manuel — Desanimais depressa, Luís. Por que ninguém? Camões — Não saberia dizer-vos; mas sinto-o aqui no coração. Essa clara luz, essa doce madrugada da minha vida, apagou-se agora mesmo, e de uma vez. D. Manuel — Confiai em mim, nos meus amigos, nos vossos amigos. Irei ter com eles; induzi-los-ei a.... Camões — A quê? A mortificarem um camareiro-mor, a fim de servir um triste escudeiro que já estará a caminho de África? D. Manuel — Ides à África? Camões — Pode ser; sinto umas tonteiras africanas. Pois que me fecham a porta dos amores, abrirei eu mesmo as da guerra. Irei lá pelejar, ou não sei se morrer... África, disse eu? Pode ser que Ásia também, ou Ásia só; o que me der na imaginação. D. Manuel — Saiamos. Camões — E agora, adeus, infiéis paredes; sede ao menos com passivas; guardai-ma, guardai-ma bem, a minha formosa D. Catarina! (A D. Manuel.) Credes que tenho vontade de chorar? D. Manuel — Saiamos, Luís! Camões
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