Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Artigo sobre desenvolvimeto da Psicologia do Trabalho, Trabalhos de Psicologia

A contribuição da abordagem clínica de Louis Le Guillant para o desenvolvimento da Psicologia do Trabalho

Tipologia: Trabalhos

Antes de 2010

Compartilhado em 23/10/2009

francisco-maciel-7
francisco-maciel-7 🇧🇷

4 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Artigo sobre desenvolvimeto da Psicologia do Trabalho e outras Trabalhos em PDF para Psicologia, somente na Docsity! ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 ARTIGOS A contribuição da abordagem clínica de Louis Le Guillant para o desenvolvimento da Psicologia do Trabalho The contribution of the Louis Le Guillant's clinical approach for the development of the Labor Psychology Paulo César Zambroni de Souza*, I; Milton Athayde**, II I Universidade Federal de Itajubá II Universidade do Estado do Rio de Janeiro Endereço eletrônico RESUMO Neste artigo, propusemo-nos a apresentar – a partir da história das questões do campo psi na França – elementos para a discussão acerca da Psicologia do Trabalho. Entendemos que a tradição da denominada Psicopatologia do Trabalho, em suas diversas linhagens, configura-se como uma das vias de desenvolvimento da análise (psicológica) do trabalho. A vida e a obra do psiquiatra francês Louis Le Guillant levantou questões – no período que vai da década de 1940 até a de 1960 – que são ainda hoje absolutamente relevantes, no campo da Psicologia e da Psicopatologia do Trabalho. Faremos, de início, uma apresentação de seus feitos enquanto psiquiatra, a seguir trataremos de suas pesquisas e propostas no referido campo. Ao lado disto, vamos realçar as proposições que Le Guillant levantou a partir de cada uma de suas iniciativas, entendendo que sua prática e sua teorização podem trazer luz a alguns problemas que enfrentamos atualmente. Palavras-chave: Psicologia e psiquiatria social, Psicologia do trabalho, Psicopatologia do trabalho, clínica do trabalho, Psicoterapia institucional. ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 ABSTRACT In this paper we aim to present – from the history of the psi questions in France – elements for discussion about labor psychology. We understand that the tradition entitled “labor psychopathology” in its several possibilities, is one of the ways to develop the labor psychological analysis. The life and work of the french psychiatric Louis Le Guillant arose questions – from the decade of 1940 until the decade of 1960 – that are still absolutely relevant nowadays in psychology and labor psychopathology. Initially, we will present his goal as a psychiatrist, then we will detail his researchers and approaches in this field. Besides that, we will stress the propositions that Louis Le Guillant addressed from each of his approaches, concluding that his theory and practice may enlighten some recent daily problems. Keywords: Social Psychology and Psychiatry, Labor psychology, Labor psychopathology, Labor clinic, Institutional psychotherapy. O psiquiatra francês Louis Le Guillant (1900-1968) é considerado (DEJOURS, 1980; CLOT, 1996a; DORAY, 1996) um dos principais líderes de um grupo de fundadores da Psicopatologia do Trabalho (e da Psicoterapia Institucional) na França, apresentando um pensamento original sobre as relações subjetivas dos seres humanos no seu meio de trabalho e na vida. Neste sentido, pode-se considerar que ele contribuiu para o desenvolvimento de uma importante abordagem clínica em Análise do Trabalho, ainda muito pouco explorada em suas potencialidades, no Brasil. Considerando os desafios emergentes da crise econômica capitalista (desemprego estrutural e tecnológico) e das transformações tecnológico-organizacionais, entendemos que nos cabe ampliar/reconceituar o trabalho e afirmar sua centralidade, desvelando-o como terreno fundamental das contradições e das invenções (ATHAYDE, 2004). Com este artigo, pretendemos colaborar para inventariar as contribuições da Psicologia em matéria de Análise do Trabalho, conforme propõe Clot (1999). A primeira referência que tivemos de Le Guillant se deu na década de 1970, na busca de uma abordagem “concreta” do “drama” humano (POLITZER, 1928/1974), no campo da Psicologia e Psiquiatria Social, quando enveredávamos pela linhagem da Psicoterapia e Análise Institucional (LOURAU, 1975). A segunda referência marcante veio em 1980, no livro de Dejours: Travail: Usure Mentale: essai de psychopathologie du travail (publicado no Brasil em 1987). Posteriormente, novamente o encontramos em textos do campo da Psicopatologia do Trabalho (DORAY, 1987). A partir daí, a vontade de melhor compreender a vida e a obra de Le Guillant vem se ampliando, assim como os materiais disponíveis: em 1984, foi publicada uma coletânea de seus textos – Quelle psychiatrie pour notre temps? ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 dado as costas para as questões pertinentes à subjetividade e à vida social. Conforme Clot (2000), entendemos que vai se configurando um fecundo programa teórico-metodológico-investigativo, “centrado na condição social de alienação em que se exerce a atividade profissional” (p. 324), uma “clínica nova” (buscada por um grupo de psiquiatras, como Le Guillant, Sivadon e Veil), “uma clínica e um método de análise melhor ajustados a manifestações psicopatológicas em sua relação com o trabalho” (BILLIARD, 2001, p. 173). O que Le Guillant procurou enfatizar, entretanto, não foi a condição social patogênica em si, mas acima de tudo as contradições, incompatibilidades e conflitos que essa condição contém e que ela tenta impor ao sujeito. Ou seja, o humano nunca está apenas passivo, reduzido à condição em que ele se encontra, pois que elas não só suscitam resistências como atividades inesperadas. Por outro lado, emerge uma questão pertinente ao ângulo de análise que incide no contemporâneo, pois estamos convivendo em um meio social de trabalho em que não mais se duvida ou recusa a mobilização psíquica dos trabalhadores, ao contrário, com freqüência crescente se a prescreve. O que esta abordagem clínica permite-nos visualizar é que, paradoxalmente, os mecanismos e forças da mobilização desejada, muitas vezes, podem ser melhor compreendidos através dos impedimentos, tropeços e fracassos de mobilização a que são tão freqüentemente submetidos os trabalhadores. Isto que Clot (2000), agregando autores como Vigotski, designa por introduzir “as potências do negativo na análise do trabalho” (p. 325). Ou seja, o que essa abordagem propõe e toda uma linhagem clínica de análise do trabalho vai explorar é uma crítica a toda conceituação reducionista de atividade de trabalho, buscando ampliar o conceito, chamando atenção para sua complexidade, seu caráter contraditório, hoje explorados por diversas perspectivas,na França (SCHWARTZ; CLOT; DEJOURS; DAVEZIES; ZARIFIAN)2. Além desse feito, ele colocou questões em seu tempo, seja na esfera da Psicologia do Trabalho, do campo da Saúde do Trabalhador e do que chamamos hoje de Reforma Psiquiátrica, fazendo experiências e pesquisas, apontando para problemas que permanecem ainda sem solução. Tendo a clareza de que visitar a vida e a obra deste personagem de nossa história poderia lançar luz sobre tais problemas, no início da década de 1980, constituiu-se na França um grupo para estudar e fazer um levantamento de sua obra. Publicaram em 1984 uma coletânea com 25 de seus textos, intitulada Quelle Psychiatrie pour notre temps? Travaux et écrits de Louis Le Guillant. O delineamento desse campo de pesquisa e intervenção em nosso país devemos a Edith Seligmann-Silva, por ela denominado Saúde Mental e Trabalho. Sua parceria junto ao movimento sindical de São Paulo (principalmente via DIEESE e DIESAT) foi decisiva, publicando em 1986 um artigo que se tornou histórico – “Crise econômica, trabalho e saúde mental” – no qual apresenta este novo campo e em seu interior a PPT. O primeiro autor por ela citado é exatamente Le Guillant, com uma rápida análise da contribuição do grupo que ele liderava. Consideramos que esse artigo de Seligmann-Silva, entre outros fatores, preparou o terreno para a receptividade e sucesso editorial do primeiro livro de Dejours, “Loucura do trabalho” no Brasil, somente publicado no ano seguinte (1987). No artigo de 86 ela destacava, sumariamente, o lugar de Le Guillant como fundador da PPT. A partir de então, verificamos o crescimento desse campo no Brasil, com a formação de diversos grupos de ensino, pesquisa e intervenção. Mais recentemente, alguns ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 artigos têm sido publicados, fazendo referência a Le Guillant, como os de Lima (1998; 2002) e Merlo (2002). Entretanto, no campo mais amplo da Saúde Mental, envolvendo a chamada Reforma Psiquiátrica, a Psicoterapia Institucional e suas derivações anteriormente, já havia referências a Le Guillant, dado seu papel fundador, também aí, como figura destacada da corrente francesa da ‘Revolução Psiquiátrica’ desde as décadas de 1920-1930 (LOURAU, 1970/1975, p.181). 3. NOVAS INVESTIGAÇÕES SOBRE OS PROCESSOS DE SAÚDE/DOENÇA MENTAL E TRABALHO Em um de seus encaminhamentos profissionais (pois ele teve um papel importante também quanto à saúde mental na infância), Le Guillant cada vez mais se aproximou dos mundos do trabalho, de situações que acontecem fora de instituições psiquiátricas, propondo idéias em dissonância com aquelas apregoadas pela Sociologia americana e pela Psicanálise de então, percurso em parte possibilitado por um movimento realizado pela Psiquiatria Social. De fato, a Psiquiatria Social do fim da década de 1940 na França passou a realizar uma reflexão sobre o lugar da Psiquiatria na sociedade. Desta maneira, não mais se restringiu a um movimento de transformação dos hospitais psiquiátricos e à criação de estruturas extra-hospitalares para tratar de doentes mentais. Ela foi para a sociedade, preocupada em criar um ambiente de maior aceitação ao doente mental e em prevenir futuros problemas dessa ordem. Voltou-se para os grupos societários e os mundos do trabalho, aproximando-se de outras categorias profissionais no campo da saúde (como das enfermeiras) e, em especial, dos médicos do trabalho (BILLIARD, 2001, p.139). Com isto, psiquiatras como os já citados buscaram conhecer – para denunciar e intervir – as condições de vida (individuais e coletivas), supostamente capazes de provocar ou agravar problemas mentais. Quanto a Le Guillant, como psiquiatra de esquerda, ligado ao PCF (ao qual filiou-se em 1947, influenciado pela luta na Resistência), militava no sindicato de médicos psiquiatras e mantinha proximidade com alguns sindicatos (CGT), o que levou a aumentar seu interesse pelas condições de trabalho de algumas profissões e a levantar problemas de ordem psicopatológica que nelas se apresentavam (BILLIARD, 2001, p. 269). Assim, ele aproximou três campos de saberes até aí distintos: mundos dos trabalhadores, Medicina do Trabalho e Psiquiatria, realizando um ‘casamento’ pouco freqüente entre a “consciência operária e a ciência dos doutores” (DORAY, 1996, p.126). Este casamento, embora raro, pareceu-nos capaz de produzir bons frutos, como o que aconteceu na década de 1960, com o Movimento Operário Italiano de luta pela saúde, quando se criou um dispositivo para compreender-transformar a nocividade presente nas situações de trabalho, em que dialogaram experiência e conceito, em uma “Comunidade Científica Ampliada”. Um encontro e uma prática atentos à produção de subjetividade no trabalho, à “psicologia não escrita”, colaborando de forma decisiva para a constituição de “uma outra psicologia do trabalho”, tendo em Ivar Oddone e Alessandra Ré seus representantes mais ilustres (ODDONE, RÉ; BRIANTE, 1976/1981). Le Guillant procurou desenvolver pesquisas no campo do que se passou a denominar “Psicopatologia do Trabalho” (PPT), sempre levando em consideração uma perspectiva sociogenética dos problemas mentais. Buscava estabelecer conexão entre os problemas psicopatológicos, as condições de existência e as situações ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 vividas pelo doente. Desejava, assim, estabelecer verdadeiros nexos causais que ligassem fatos realmente vividos em um determinado ambiente a uma situação concreta de adoecimento. Assim, poderia realizar o que chamou de “nova clínica”, que levasse em consideração situações reais de vida e trabalho. Essa compreensão da psicopatologia, sob influência de uma dada leitura do marxismo, pretendia estar embasada no materialismo dialético, o que permitiria articular indivíduos e fatos sociais. No entanto, Le Guillant acabou inicialmente aceitando uma diretriz do PCF e buscando, mesmo que por um curto período, uma adesão absoluta às teses pavlovianas, de modo que toda “manifestação psicopatológica” foi entendida, neste período, apenas como um reflexo do condicionamento social e das condições de trabalho (BILLIARD, 2001, p.206). O psiquismo, nesta concepção, de fato não participa ativamente do processo dialético, ficando apenas em uma posição de passividade frente aos fatos sociais. Seus primeiros trabalhos em PPT tiveram essa marca, da qual somente se libertou mais tarde, com uma aproximação da perspectiva fenomenológica. 3.1 - A “neurose das telefonistas” O pós-guerra foi palco de urgências de recuperação, onde a ‘batalha pela produção’ e modernização das empresas, configurando uma industrialização sem precedente, baseada no taylorismo, fez-se acompanhar de ganhos salariais. Após a crise política de 1947, a França adere ao Plano Marshall, introduzindo um novo modelo de desenvolvimento, no interior do qual as ‘elites’ dos mundos do trabalho foram aculturados via “Missões de Produtividade” nos EUA. Cada vez mais a luta exclusiva no plano salarial ampliou a distância com relação aos problemas emergentes do trabalho concreto, da atividade. Na perspectiva predominante, tratava-se de investigar as ‘resistências à mudança’ e os problemas de ‘motivação’. Neste quadro fala-se de novas patologias, decorrentes da modernização e da ‘fadiga nervosa’. É nesse contexto que se movimenta o que se tornou a PPT. Em 1956, Le Guillant apresentou no artigo “La névrose des téléfonistes” (La Presse Médicale, nº 64), a pesquisa que realizara (com colaboradores), no serviço piloto de Villejuif, a partir de suas relações com a CGT, a respeito da profissão de telefonista. No ano seguinte, publicou o artigo “Quelques notes méthodologiques a propos de la névrose des téléfonistes” (Les Conditions de Vie et Santé), onde é muito claro em suas críticas à Medicina, falando da conexão entre condições de vida-trabalho e problemas de saúde. Nesse texto, afirmava que a Medicina freqüentemente se equivocava, de forma decepcionante, ao não considerar adequadamente aquela conexão (DORAY, 1996, p.126-127). No texto de 1956, apresentava as descobertas a que chegara, ainda hoje absolutamente pertinentes: descrevia o que denominou a “síndrome subjetiva comum da fadiga nervosa”, caracterizada por fadiga, astenia, levando a uma diminuição da capacidade de concentração no trabalho e uma influência negativa (“intoxicação”) na vida pessoal pela repetição de palavras e gestos do trabalho fora do contexto laborativo. Descrevia também a “síndrome geral de fadiga nervosa”, quadro polimórfico envolvendo “problemas do humor e do caráter”, manifestando-se por uma “crise de nervos” no trabalho e por impaciência com o marido e os filhos, intolerância ao ruído, além de, em um terço dos casos, aparecerem sintomas ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 facilitar a comunicação com os filhos dos patrões. Somava-se a isto o fato de que grande parte delas era de filhas de imigrantes. Essas condições formavam uma “gestalt social”3, trazendo consigo uma situação de humilhação capaz de gerar um intenso ressentimento que surgiu como um elemento novo na avaliação de Le Guillant, na medida em que considerou esse ressentimento – subjetivo e não mais apenas objetivo (como os elementos que apareciam em suas análises anteriores) – fundamental na formação de sintomas dessas mulheres. Vemos aqui mostras do uso de elementos teóricos que vão mais longe do que poderia alcançar apenas com as ferramentas de Pavlov. Le Guillant pontua um importante avanço metodológico: as análises ‘subjetiva’ e ‘objetiva’ em Psiquiatria não deveriam ser duas coisas distintas, seria fundamental considerá-los como dois aspectos indispensáveis em toda análise psicopatológica. Segundo sua compreensão, aquele ressentimento alimentava-se do fato dessa trabalhadora dirigir seu trabalho a alguém que não reconhecia seu valor. Aqui vemos novamente a importância das descobertas de Le Guillant para a nascente PPT. Vemos também sua capacidade de fazer descobertas, cuja validade ultrapassam seu tempo, pois que vamos encontrar, a partir dos anos 90, com a Psicodinâmica do Trabalho (DEJOURS, 1995), a relevância da “dinâmica do reconhecimento” para a saúde mental. O ressentimento seria então o ponto de partida para a formação de seus sintomas. Esse ressentimento, fundado no ódio que sentia por ver-se humilhada, produzia na doméstica efeitos nefastos, visto que essa hostilidade transformava-se em uma grande culpa alimentada por uma ambivalência de sentimentos, frente a seus patrões. Assim, apesar do ódio e do ressentimento, essas jovens viviam esses sentimentos de maneira conflituosa, visto não serem aceitos por sua formação moral e religiosa. Em decorrência disto, voltavam-se contra elas mesmas na forma de sintomas. Para Le Guillant era como se, apesar de todo sofrimento, não lhes fosse permitido ocupar um lugar que não o da submissão frente aos patrões, utilizando-se de Hegel4, (“dialética do senhor e do escravo”), como outro elemento teórico para tentar compreender a psicopatologia das empregadas domésticas. Conclui dizendo que a difícil tarefa da Psiquiatria seria compreender como a passagem da vivência de uma dada situação leva a uma determinada alteração psicopatológica. 3.3 - As pesquisas sobre condutores de locomotiva Ainda no contexto antes assinalado, em 1964, ele apresentou na Faculdade de Medicina de Paris as “Reflexões sobre uma Condição de Trabalho Particularmente Penosa dos Agentes de Condução de Locomotivas de Grande Velocidade: a V.A.C.M.A.(Vigília Automática de Controle de Manutenção de Apoio)”, uma pesquisa encomendada pelos trabalhadores da SNCF (grande empresa francesa de transporte ferroviário), que relatavam estar entrando em um estado de grande sofrimento devido àquela inovação tecnológico-organizacional: um mecanismo que obrigava os condutores a acionar, com os pés ou as mãos, o rearmamento de um dispositivo automático a cada cinqüenta e cinco segundos; caso ele não o fizesse soava uma estridente campainha. Além disto, o dispositivo teoricamente permitia que a locomotiva fosse operada por apenas uma pessoa, o que levaria ao perigoso isolamento o piloto e ao desemprego os segundos condutores, par que tradicionalmente dirigia o trem. Alegavam que isto era a gota d’água, pois ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 trabalhavam em condições absolutamente insalubres, com altas temperaturas, espaço limitado, intensos ruídos, irregularidade de horários que levavam à impossibilidade de ter sono regular, trazendo uma série de alterações fisiológicas. Queixavam-se de solidão e graves problemas familiares, além da quase inexistência de amigos (LE GUILLANT, 1984, p. 216-217). Ele tentou inicialmente utilizar o mesmo método de análise da pesquisa das telefonistas. Ao identificar os diversos níveis de complexidade que o problema dos condutores apresentava, concluiu que aquele método não daria conta, neste contexto. Posteriormente, declarou ser praticamente impossível demonstrar rigorosamente o caráter penoso e nocivo dessa condição de trabalho, apesar de tal condição ser incontestável, inegável – o que, como lembra Clot (2000), foi depois confirmado pela análise ergonômica e antropotecnológica efetuada por Wisner (1985, p.28). Frente a essa dificuldade, Le Guillant recorreu novamente à análise de base fenomenológica, utilizando a noção de “gestalt”, entendida aqui como “[...] configuração global da experiência” (LE GUILLANT, 1984, p. 217). Essa noção veio no sentido de tentar compreender uma profissão em sua globalidade, entendendo todos os aspectos intrínsecos a um determinado posto de trabalho, contrapondo-o aos outros postos e às outras profissões. No caso dos condutores de trem, tratar-se- ia de compreender todas as operações deste profissional e todas as condições nas quais esta profissão se exercia, conforme citamos acima, assim como compreender que lugar essa profissão ocupava na sociedade e, por conseguinte, o reconhecimento que ela recebia. No caso dos maquinistas, sua análise registrava a presença de “hipovigilância”, que, agregada à fadiga oriunda de ritmos perturbados, gerava a “angústia do sono”. Ou seja, configurava-se uma condição social global, que se expressaria através da rejeição do dispositivo VACMA, ressentimento expresso, por exemplo, quando falavam de seu descontentamento com a supressão do segundo homem na cabine, gerando a perigosa solidão. Destaca-se ainda nesta pesquisa o quanto Le Guillant apontou um caminho de compreensão, ao aceitar o desafio da complexidade com que se deparou (CLOT, 2000). Ousou assinalar que a atividade realizada por estes trabalhadores – identificáveis em seus modos operatórios observáveis – não dava conta do real da atividade, pois o que escapa ao próprio trabalhador e ao observador é muitas vezes uma parte importante da atividade de trabalho em seu caráter complexo e contraditório. 4 - CONCLUINDO Neste artigo, pretendemos ter colaborado para o inventário das contribuições em matéria de Análise (psicológica) do Trabalho, de compreensão da função psicológica do trabalho. Procuramos fazê-lo através de mais uma aproximação, em língua portuguesa, sobre a obra desse genial pesquisador e combatente pela vida que foi Louis Le Guillant. Infelizmente, sua morte no ano tão simbólico de 1968, interrompeu o progresso de suas pesquisas, que ficaram como herança e como porta de entrada, tanto para uma dada modalidade de Psicologia e Psicopatologia do Trabalho (aqui indicada), quanto para a Reforma Psiquiátrica e o campo da Saúde do Trabalhador – a serem apresentadas em outro artigo. Destacamos aqui seu esforço ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 6, N.1, 1º SEMESTRE DE 2006 por evitar a neutralização e naturalização da atividade de trabalho, recusando o fetichismo operatório em que uma certa Psicologia do Trabalho a colocou e mantém. A este desafio, Le Guillant nos agrega outro a ser enfrentado, que também remete ao caráter contraditório da vida. Enfrentemos os desafios frente aos quais Le Guillant não recuou, e avancemos nos problemas que hoje nos instigam. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATHAYDE, M. Psicologia e trabalho: Que relações? In: MANCEBO, D.; JACÓ-VILELA, A. (Orgs.). Psicologia Social: Abordagens sócio-históricas e desafios contemporâneos. 2 ed. Rio de Janeiro : Eduerj, 2004. p.197-221. BILLIARD, I. Les conditions historiques et sociales d’apparition de la Psychopathologie du Travail en France (1920 – 1950). In : CLOT, Y. (Org.). Les Histoires de la Psychologie du Travail. Toulouse: Octarès, 1996. p. 69-84. _________ . Santé mentale et travail: L’émergence de la Psychopathologie du Travail. Paris: La Dispute/SNÉDIT, 2001. CLOT. Le travail entre activité et subjectivité. Tese de doutorado não publicada. Aix-en-Provence: Université de Provence, 1992. _______. Le travail sans l’homme? Pour une psychologie des milieux de travail et de vie. Paris: La Découverte, 1995. ________. (Dir.). Les histoires de la psychologie du travail: approche pluri- disciplinaire. Toulouse: Octarès, 1996a. ________. Psychologies du travail: une histoire possible. In: _______. (Dir.). Les Histoires de la Psychologie du Travail. Toulouse: Octarès,1996b. p. 17-26. ________. La fonction psychologique du travail. Paris: PUF, 1999. ________. Mobilisation psychologique et développement du “métier”. In: BERNAUD, J.-L ; LEMOINE, C. (Org.). Traité de psychologie du travail et des organisations. Paris: Dunod, 2000. p. 323-342. CODO, W.; SAMPAIO, J.; HITOMI, A. Indivíduo, trabalho e sofrimento. Petrópolis: Vozes, 1993. DEJOURS, C. Travail: usure mentale – essai de psychopathologie du travail. Paris: Du Centurion, 1980. _________. Le facteur humain. Paris : PUF, 1995. DORAY, B. De la production à la subjectivité. In M. BERTRAND, M. M.(Org.). Je: sur l`individualité. Paris: Messidor/ Eds. Sociales, 1987. p. 115-153.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved