Baixe História da Filosofia volume II e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Reale, Giovanni.
História da filosofia: Do Humanismo a Kant / Giovanni Reale, Dario Antiseri; -
São Paulo: Paulus, 1990. - (Coleção filosofia)
Conteúdo: v. 1. Antiguidade e Idade Média. — v. 2. Do Humanismo a Kant. -v. 3.
Do Romantismo até nossos dias.
ISBN 85-05-01076-0 (obra completa)
1. Filosofia 2. Filosofia - História |. Antiseri, Dario. It. Título. Ill. Série.
CDD-109
90-0515 -100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
2. Filosofia: História 109
Coleção FILOSOFIA
* O homem. Quem é ele? Elementos de antropologia filosófica, B. Mondin
* introdução à filosofia. Problemas, sistemas, autores, obras, idem
* Curso de filosofia, 3 vols., idem
* História da filosofia, 3 vols., G. Reale e D. Antiseri
* Filosofia da religião, U. Zilles
GIOVANNI REALE/DARIO ANTISERI
. HISTÓRIA
DA FILOSOFIA
Do Humanismo a Kant
VOLUME 2
2sedição
PAULUS
Título original o .
N pensiero oceidentale dalle origini ad oggi
& Editrice La Scuola, Bréscia, 8º ed., 1986
traçõ e a a
Alina, Arborio Mella, Farabola, Fototeca Storica Nazionale, Giorcelli, Ricciar-
ini, Spectra.
Revisores
L. Costa e H. Dalbosco
O PAULUS - 1990
Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (011) 575-7403
Tel. (011) 572-2362
ISBN 88-350-7271-9 (ed. original)
ISBN 85-05-01076-0 (Obra completa)
ISBN 85-3490163-5 (vol. Il)
PREFÁCIO
“O último passo da razão é o de reconhecer
que existem infinitas coisas que «a superam.”
Pascal
Como se justifica um tratado tão vasto da história do
pensamento filosófico e científico? Observando o tamanho dos três
volumes desta obra, talvez o professor se pergunte: como é possível,
nas poucas horas semanais de aula à disposição, abordar e desen-
volver um programa tão rico e conseguir levar o estudante a
dominá-lo?
Claro, se formos medir este livro pelo número de páginas,
“devemos dizer que é um livro extenso. É o caso, porém, de recordar
aqui a bela sentença do abade Terrasson citada por Kant no
prefácio à Crítica da Razão Pura: “Se não formos medir o tamanho
do livro pelo número de páginas, mas sim pelo tempo necessário
para entendê-lo, poder-se-ia dizer de muitos livros que seriam
muito mais breves se não fossem tão breves.”
E, na verdade, em muitos casos, os manuais de filosofia
dariam muito menos trabalho se contivessem algumas páginas a
mais sobre uma série de temas. Com efeito, na exposição da
problemática filosófica, a brevidade não simplifica as coisas, mas
sim as complica — e, às vezes, as torna pouco compreensíveis,
quando não até mesmo incompreensíveis. De todo modo, em um
manual de filosofia, « brevidade leva fatalmente ao nocionismo, à
listagem de opiniões, à mera visão panorâmica sobre “o que”
disseram os vários filósofos ao longo do tempo, o que pode até ser
instrutivo, mas é muito pouco formativo.
Pois bem, esta história do pensamento científico e filosófico
pretende alcançar pelo menos três outros níveis além do simples “o
que” disseram os filósofos, ou seja, além daquele nível que os antigos
chamavam de “doxográfico” (nível de confrontação de opiniões),
procurando explicar o “por que” daquilo que os filósofos disseram,
buscando transmitir um sentido adequado do “como” o disseram e,
por fim, indicando alguns dos “efeitos” provocados por suas teorias
filosóficas e científicas.
O “por que” das afirmações dos filósofos nunca constitui algo
simples, no sentido em que motivos sociais, econômicos e culturais
freguentemente se ligam e, de vários modos, se entrelaçam com os
10 Prefácio
nos impeliu não apenas a delinear os traços de fundo desse
importante movimento de pensamento, mas também a penetrar
mais profundamente na riqueza específica dos diversos luminis-
mos: o francês, o inglês, o alemão e o italiano. Foi por isso que
expusemos com certa meticulosidade: 1) as concepções dos deístas
ingleses (J. Toland, S. Clarke, A. Collins, M. Tindal e J. Butler); as
reflexões sobre a moral por parte de Shaftesbury, F. Hutcheson e D.
Hortley, sobretudo as idéias ético-políticas de Bernard de Mande-
ville; as idéias gnosiológicas da escola escocesa: Reid, Stewart e
Brown;2)oprojeto da Enciclopédia francesa, a filosofia de d'Alembert
e Diderot, a gnosiologia sensística de Condillac; as concepções dos
materialistas iluministas: La Mettrie, Helvétius e d'Holbach; a
grande batalha pela tolerância travada por Voltaire; o pensamento
político de Montesquieu e o articulado conjunto das idéias éticas,
políticas, sociais, pedagógicas e religiosas de Rousseau; 3) a in-
fluente filosofia de Wolff; o nascimento da estética sistemática com
A. Baumgarten; as concepções de Lessing; 4) igualmente, as idéias
dosirmãos VerriedeP. Frisi, mas sobretudo de César Beccaria, sem
esquecer a contribuição de Filangieri, Galiani e Genovesi.
É precisamente ao examinar especificamente o iluminismo
inglês, francês, alemão e italiano que se vê com clareza que,
baseando-se em tradições culturais diversas, o iluminismo se
configura, não tanto como um compacto sistema de doutrinas, mas
muito mais como um movimento em cuja base está a confiança na
razão humana, cujo desenvolvimento é condição de progresso para
à humanidade e de libertação dos vínculos cegos e absurdos da
tradição, das raízes da ignorância, da superstição, do mito e da
opressão. Desse modo, veremos como se explicita a Razão dos
iluministas como defesa do conhecimento científico e da técnica,
como instrumento de transformação do mundo e de melhoria
progressiva das condições espirituais e materiais da humanidade,
como tolerância ética e religiosa, como defesa dos inalienáveis
direitos naturais do homem e do cidadão, como rejeição dos
dogmáticos sistemas metafísicos factualmente incontroláveis, como
crítica das superstições representadas pelas religiões positivas e
como defesa do deísmo (e, por vezes, também do materialismo),
como combate aos privilégios e à tirania. São precisamente essas as
“semelhanças de família” que, nas diferentes tradições, nos per-
mitem falar do movimento iluminista como um movimento filosó-
fico, pedagógico e político que, ademais, também influenciou forte-
mente a historiografia e a arte.
A Kant, por fim, reservamos uma exposição que constitui
como que pequena monografia, a qual, ao lado de uma exposição
sintética dos escritos pré-críticos, apresenta uma análise precisa da
estrutura das três “Críticas”, procurando conjugar a clareza didá-
tica com o rigor científico.
Prefácio 1i
O volume se conclui com um apêndice que, como um comple-
mento indispensável, contém os quadros cronológicos sinóticos e o
índice dos nomes, tudo a cargo do professor Claudio Mazzarelli (cf.
pp. 933ss.), que, unindo sua dupla competência de professor de
longa data e de pesquisador científico, procurou fornecer um
instrumento ao mesmo tempo o mais rico e funcional.
Dirigimos nosso agradecimento ao professor Dante Cesarini,
de Perugia, pela ajuda que nos prestou no exame das relações entre
o iluminismo e o neoclassicismo.
Os autores também expressam uma grata recordação à
memória do professor Francesco Brunelli, que idealizou e promo-
veu a iniciativa desta obra. Pouco antes de seu imprevisto de-
saparecimento, ele já estava preparando a execução tipográ-
fica deste projeto.
O nosso mais vivo agradecimento ao doutor Remo Bernac-
chia, por ter favorecido e tornado realizável a concepção inteira-
mente nova em que se inspira a presente obra. Em especial, cabe a
ele o mérito de haver tornado possível a nova edição e de ter previsto
uma estrutura técnica capaz de possibilitar também futuros melho-
ramentos na obra. Expressamos uma gratidão especial à dow-
tora Clara Fortina, que, na qualidade de redatora, dedicou-se
apaixonadamente ao êxito da obra, para além dos seus deveres
profissionais.
Os autores assumem em comum a responsabilidade por toda
esta obra, por terem trabalhado juntos (cada qual segundo a sua
competência, sua sensibilidade e seus próprios interesses) para o
bom êxito de cada um dos três volumes, em plena unidade de
espírito e de intenções.
Os Autores
Primeira parte
O HUMANISMO
E O RENASCIMENTO
“Magnum miraculum est homo.”
Hermes Trismegisto, in Asclepius
“Ó, suprema liberalidade de Deus Pai! Ó,
suprema e admirável felicidade do homem!
Homem ao qual foi concedido obter aquilo
que deseja e ser aquilo que quer. Ão nasce-
rem, os seres brutos levam consigo, do seio
materno, tudo aquilo que terão. Já os espt-
ritos superiores, desde o início ou pouco
depois já são aquilo que serão nos séculos
dos séculos. No homem nascente, o Pai
depositou sementes de toda espécie e germes
de toda vida. E, na medida que cada um os
cultivar, eles crescerão e nele darão os seus
frutos. E, se forem vegetais, será planta; se
forem sensíveis, será ser bruto; se forem
racionais, se tornará animal celeste; se fo-
rem intelectuais, será anjo e filho de Deus.
Mas se, não contente com a sorte de nenhu-
ma criatura, se recolher no centro de sua
unidade, fazendo-se um sóesptritocom Deus,
na solitária névoa do Pai, aquele que foi
colocado sobre todas as coisas estará sobre
todas as coisas.”
Pico de Mirândola
| o e
“mm mm mm
Escola de Atenas, pintura de Rafael. Sob as figuras dos filósofos (cf. a ampliação da p. 60 e a respectiva legenda). O grupo da direita
gregos e seus grupos, apresenta uma admirável síntese do pensa- representa os filosofos da natureza e os cientistas, capitaneados por
mento renascentista, idealizado em todos os seus componentes. O Aristóteles (cf. a ampliação da p. 86 e a respectiva legenda). O con-
erp e esquerda representa a corrente órfico-pitagórica (cf. a ceito geral que Rafael pretendeu expressar foi o seguinte: o supremo
ampliação da p.42 e a respectiva legenda) e místico-transcenden- ideal filosófico está em uma síntese capaz de unificar a metafísica
talista, culminando com Platão, que tem a mão apontada para océu da transcendência, a filosofia da natureza, a teologia e a magia.
20 Humanismo e Renascimento
também contém muitos erros e confusões, que depois
Tora repetidos por todos.” Assim, é necessário estudar a fundo as
questões discutidas pelos aristotélicos italianos desse período:
desse modo, cairiam por terra muitos lugares comuns que só se
mantêm porque foram continuamente repetidos, mas que carecem
de base sólida, emergindo consequentemente uma nova realida-
de histórica. .
Em conclusão, o humanismo representaria apenas uma
metade do fenômeno renascentista e, mais ainda, a metade não
filosófica. Assim, ele só seria plenamente compreensível se consi-
derado junto com o aristotelismo que se desenvolveu paralela-
mente, o qual expressaria as verdadeiras idéias filosóficas da
época. Ademais, segundo Kristeller, os artistas do Renascimento
não deveriam ser vistos na ótica do grande “gênio criativo (que
constitui uma visão romântica e um mito do século XIX), mas sim
como “ótimos artesãos”, cuja excelência não decorre deuma espécie
de superior adivinhação dos destinos da ciência moderna, mas sim
da bagagem de conhecimentos técnicos (anatomia, perspectiva,
mecânica etc.) considerada indispensável para a prática ade-
quada de sua arte. Por fim, se a astronomia ea fisica realiza-
ram progressos notáveis, não foi por motivo de sua ligação com 0
pensamento filosófico, mas sim com a matemática. E aos filó-
sofos custou-lhes se harmonizar com essas descobertas, porque,
tradicionalmente, nãohavia uma conexão precisa entrema-temática
e filosofia. . o
b) Diametralmente oposta é a reconstrução de Eugênio
Garin, que reivindicou energicamente uma precisa valência filosó-
fica para o humanismo, notando que a negação de significado
filosófico aos studia humanitatis renascentistas deriva do fato de
que, “as mais das vezes, entende-se por filosofia a construção
sistemática de grandes proporções, negando-se que a filosofia
também pode ser outro tipo de especulação, não sistemática, aberta,
problemática e pragmática”. Polemizando com as acusações de
diletantismo filosófico que alguns estudiosos fizeram aos huma-
nistas, escreve Garin: “A razão íntima daquela condenação do
significado filosófico do humanismo... está no) amor sobrevivente
por uma visão de filosofia constantemente combatida pelo pensa-
mento do século XV. Aquilo cuja perda é lamentada por tantos é
justamente o que os humanistas quiseram destruir, isto é a
construção de grandes 'catedrais de idéias', das grandes sistema-
tizações lógico-teológicas: a filosofia que submete todo problema e
toda pesquisa à questão teológica, que organiza e encerra toda
possibilidade na trama de uma ordem lógica preestabelecida. Essa
filosofia, ignorada no período do humanismo como vãe inútil, é
substituída por pesquisas concretas, definidas e precisas na dire-
Interpretação historiográfica do humanismo 21
ção das ciências morais (ética, política, economia, estética, lógica
e retórica) e das ciências da natureza (...) cultivadas iuxta propria
principia, fora de qualquer vínculo e de qualquer auctoritas (...).”
Aliás, diz Garin, a atenção “filológica” para com os problemas
particulares “constitui precisamente a nova filosofia”, ou seja, o
novo método de examinar os problemas, que, portanto, não deve ser
considerado, ao lado da filosofia tradicional, como um aspecto
secundário da cultura renascentista, como acreditam alguns (basta
pensar, por exemplo, na posição de Kristeller que examinamos),
mas sim como o próprio filosofar efetivo”.
Uma das mais destacadas características desse novo modo
de filosofar é o sentido da história e da dimensão histórica, com seu
respectivo sentido de objetivação e de afastamento crítico do objeto
historicizado, ou seja, historicamente considerado. Escreve Garin:
“Foi então, graças àqueles poderosos pesquisadores de antigas
histórias que conquistamos um igual distanciamento tanto da
física de Aristóteles como do cosmos de Ptolomeu, libertando-nos
imediatamente de sua opressora clausura. E isso porque físicos e
lógicos de Oxford e Paris já haviam começado a corroer aquelas
estruturas por dentro, estruturas que se encontravam bastante
abaladas depois do terrível golpe desfechado por Ockham. Mas
somente a conquista do antigo como sentido da história — própria
do humanismo filológico — permitiu considerar aquelas teorias
como aquilo que elas verdadeiramente eram: pensamentos huma-
nos, produtos de certa cultura e resultado de experiências parciais
e particulares; não oráculos da natureza ou de Deus, revelados por
Aristóteles e Averróis, mas sim visões e cogitações humanas.”
A essência do humanismo não deve ser vista naquilo que ele
conheceu do passado, mas sim no modo em que o conheceu, na
atitude peculiar que adotou diante dele: “É precisamente a atitude
adotada diante da cultura do passado e diante do próprio passado
que define claramente a essência do humanismo. Ea peculiaridade
dessa atitude não se deve fixar em um singular movimento de
admiração e afeto, nem em um conhecimento mais amplo, mas em
uma consciência histórica bem definida. Os bárbaros! (= os
medievais) não o foram por terem ignorado os clássicos, mas sim
por não tê-los compreendido na veracidade de sua situação históri-
ca. Os humanistas descobrem os clássicos porque os afastaram de
si, procurando defini-los sem confundir o latim deles com o seu
próprio. Por isso, os humanistas verdadeiramente descobriram os
antigos, fossem eles Virgílio ou Aristóteles, apesar de conhecidís-
simos na Idade Média. E isso porque restitufram Virgílio ao seu
tempo e ao seu mundo e procuraram explicar Aristóteles no âmbito
dos problemas e dos conhecimentos da Atenas do século IV antes
de Cristo. Por isso, no humanismo, não se pode nem se deve
O célebre Davi, de Michelangelo, na majestade e nobreza de seus
traços, representa visivelmente, de modo paradigmático, o conceito
do homem como “o maior milagre” do universo, que constitui uma
das marcas espirituais mais típicas do Renascimento.
Interpretação historiográfica do humanismo 23
distinguir a descoberta do mundo antigo e a descoberta do homem,
porque setratou de uma só coisa, já que descobrir o antigo comotal
significou comparar-se com ele e, distanciando-se, colocar-se em
relação com ele. Significou tempo e memória, sentido da criação
humana, da obra terrena e da responsabilidade. Não por acaso os
maiores humanistas foram, em grande número, homens de Esta-
do, pessoas ativas habituadas à livre atuação na vida pública de
sua época.”
Mas a tese de Garin não se reduz a isso: ele coloca a nova
“filosofia” humanista na realidade concreta daquele momento da
vida histórica italiana, fazendo-a uma expressão dessa realidade,
a ponto de explicar com razões sociopolíticas a reviravolta sofrida
pelo pensamento humanista na segunda metade do século XV.
Inicialmente, o humanismo foi uma exaltação da vida civil e das
problemáticas a ela ligadas, porque estava vinculado à liberdade
política daquele momento. O advento das tutelas e o eclipsar-se das
liberdades políticas republicanas transformou os literatos em
cortesãos e impeliu a filosofia para evasões de caráter contempla-
tivo metafísico: “Retirada sua liberdade no plano político, ohomem
evadiu-se para um terreno diferente, voltando-se para si mesmo e
procurando a liberdade do sábio (...). De um filosofar socrático,
centrado no problema humano, passa-se para um plano platônico
(...). Em Florença, enquanto Savonarola lança a última invectiva
contra as tiranias que tudo corrompem e esterilizam, o “divino
Marcílio procura no hiperurânio uma margem serena onde se
abrigar das tempestades do mundo.”
Na realidade, as teses contrapostas de Kristeller e de Garin
revelam-se muito fecundas precisamente por sua antítese, porque
uma destaca aquilo que a outra silencia, podendo portanto ser
interpretadas entre si, se prescindirmos de alguns pressupostos
dos dois autores. É verdade que, originalmente, o termo “huma-
nista” indica o ofício do literato, mas essa profissão vai bem além
do simples ensino universitário, entrando na vida ativa, ilumi-
nando os problemas da vida cotidiana, fazendo-se verdadeira-
mente uma “nova filosofia”.
Ademais, o humanista distingue-se efetivamente pelonovo
modo como lê os clássicos: houve um humanismo literário porque
surgiram um novo espírito, uma nova sensibilidade e um novo
gosto, com os quais as letras foram revisitadas. E o antigo alimen-
tou o novo espírito, porque este, por seu turno, iluminou o antigo
com uma nova luz.
Kristeller tem razão quando lamenta que o aristotelismo
renascentista seja um capítulo a ser reestudado ex novo e também
tem razão ao insistir no paralelismo desse movimento com o
movimento propriamenteliterário. Mas o próprio Kristeller admite
24 Humanismo e Renascimento
que o Aristóteles desse período é um Aristóteles fregientemente
procurado e lido no texto original, sem a mediação das traduções e
das exegeses medievais, tanto que chega até a retornar aos co-
mentadores gregos para ser iluminado. Assim, trata-se de um
Aristóteles revisitado com um novo espírito, que só o “humanismo
pode explicar. Portanto, Garin tem razão ao destacar o fato de que
o humanismo olha o passado com novos olhos, com os olhos da
“história”, e que só atentando para esse fato é que se pode
compreender toda essa época. . .
E a aquisição do sentido da história, ao mesmo tempo,
significa aquisição do sentido de sua própria individualidade e
originalidade. Só se pode compreender o passado do homem
quando se compreende a sua “diversidade” em relação ao presente
e, portanto, quando se compreende a “peculiaridade” e a “especi-
ficidade” do presente. . .
Por fim, no que se refere à excessiva vinculação do huma-
nismo aos fatos políticos, que leva Garin a algumas afirmações que
correm o risco de cair no historicismo sociologista, basta destacar
que a grande mudança do pensamento humanista não está ligada
somente a uma mudança política, mas também à descoberta eàs
traduções de Hermes Trismegisto e dos profetas-magos, de Platão,
de Piotino e de toda a tradição platônica, o que representou à
abertura de novos e ilimitados horizontes, do que falaremos
adiante. De resto, o próprio Garin não se deixou levar por excessos
sociologistas, como, no entanto, fizeram outros intérpretes por ele
influenciados. J.
Concluindo, podemos dizer que a marca que distingue o
humanismo consiste em um novo sentido do homem e de seus
problemas. É um novo sentido que encontra expressões multifor-
mes e, por vezes, até opostas, mas sempre ricas e fregiientemente
muito originais. É um novo sentido que culmina nas celebrações
teóricas da “dignidade do homem” como ser em certo sentido
“extraordinário” em relação a toda a ordem do cosmos, como
veremos adiante. Mas essas reflexões teóricas nada mais são do
que expressões conceituais que têm nas representações da pintura,
da escultura e de grande parte da poesia as suas correspondências
visuais e fantástico-imaginativas, que, com a majestade, a har-
monia e a beleza de sua figuração, expressam a mesma idéia, de
vários modos em esplêndidas variações.
2. O significado historiográfico do termo
“Renascimento”
O termo “Renascimento”, como categoria historiográfica,
consolidou-se no século XIX, em grande parte por mérito de uma
obra de Jacob Burckhardt intitulada À cultura do Renascimento na
Interpretação historiográfica do humanismo as
Ttália (publicada em Basiléia, em 1860), que se tornou muito
famosa, impondo-se longamente como modelo e como ponto de
referência indispensável. Na obra de Burckhardt, o Renascimento
emergia como fenômeno tipicamente italiano quanto às suas
origens, caracterizado pelo individualismo prático e teórico, pela
exaltação da vida mundana, pelo acentuado sensualismo, pela
mundanização da religião, pela tendência paganizante, pela liber-
tação em relação às autoridades constituídas que haviam domina-
do a vida espiritual no passado, pelo forte sentido de história, pelo
naturalismo filosófico e pelo extraordinário gosto artístico.
Segundo Burckhardt, o Renascimento seria portanto uma
época que viu surgir uma nova cultura, oposta à medieval. E a
revivescência do mundo antigo teria desempenhado nisso um
papel importante, mas não exclusivamente determinante. Escreve
Burckhardt: “Aquilo que devemos estabelecer (...) como um ponto
essencial é que não foi ressuscitada a Antigúidade por si só, mas
sim ela e o novo espírito italiano, juntos e interpenetrados, que
tiveram a força para arrastar consigo todo o mundo ocidental.”
ÀÁssim, partindo do renascimento da Antiguidade, passou-se a
chamar de “Renascimento” toda essa época, que, porém, é algo
mais complexo do que isso: com efeito, é a síntese do novo espírito
que se criou na Itália com a própria Antigiiidade — é o espírito que,
rompendo definitivamente com o espírito da época medieval,
inaugurou a época moderna.
Essa interpretação foi muito contestada, por várias vezes, em
nosso século. Alguns chegaram mesmo a duvidar que o “Renasci-
mento” constitua uma efetiva “realidade histórica” e não seja
muito mais (ou predominantemente) uma invenção construída
pela historiografia do século XIX.
Variados e de diversos tipos foram os reparos feitos sobre o
Renascimento.
Alguns observaram que, se atentamente estudadas, as vá-
rias “características” consideradas típicas do Renascimento tam-
bém podem ser encontradas na Idade Média. Outros insistiram
muito no fato de que, a partir do século XI, mas sobretudo nos
séculos XII e XIII, a Idade Média pode ser considerada plena de
“renascimentos” de obras e autores antigos, que pouco a pouco
emergiam e eram readquiridos. Consequentemente, esses autores
negaram validade aos parâmetros tradicionais que durante longo
tempo haviam baseado a distinção entre a Idade Média e o
“Renascimento”.
Mas logo se estabeleceu um novo equilíbrio, reconstituído em
bases bem mais sólidas. Nesse meio tempo, porém, estabeleceu-se
que o termo “Renascimento” não pode em absoluto ser considerado
como mera invenção dos historiadores do século XIX, pelo simples
Cola de Rienzo: por volta de meados do século XIV, verbalizou
instâncias de renovação e renascimento moral, espiritual e político.
Há tempos, alguns estudiosos vêem nele um dos precursores da
época renascentista.
Definição cronológica de humanismo e renascimento 31
particularmente na singular figura de Cola de Rienzo (cuja obra
culmina por volta de meados do século XIV) e na personalidade e
obra de Francisco Petrarca (1304-1374). E o seu epílogo alcança as
primeiras décadas do século XVII: Campanella foi a última grande
figura renascentista.
Tradicionalmente, falava-se do século XV como época do
humanismo e do século XVI como época do Renascimento pro-
priamente dito. Como, porém, caiu por terra a possibilidade de
distinção conceitual entre humanismo e renascentismo, necessa-
riamente também cai por terra essa distinção cronológica.
Se levarmos em conta os conteúdos filosóficos, eles mostram
(e o veremos com mais amplitude um pouco adiante) que, o
pensamento sobre o homem prevalece no século XV, ao passo que,
no século XVI, o pensamento se amplia, abrangendo também a
natureza. Nesse sentido, se, por razões de comodidade, se quiser
indicar como humanista predominantemente o momento do pen-
samento renascentista que teve por objeto sobretudo o homem e
como renascentista este segundo momento do pensamento, que
considera também toda a natureza, pode-se até fazê-lo, embora
com muitas reservas e com grande circunspecção. De todo modo, o
certo é que, hoje, entende-se por Renascimento a denominação
historiográfica de todo o pensamento dos séculos XV e XVI. Porfim,
deve-se recordar que os fenômenos de imitação extrínseca e de
filologismo e gramatismo não são próprios do século XV, mas sim
do século XVI, constituindo enquanto tais (como já acenamos) os
sintomas da incipiente dissolução da época renascentista.
Ademais, no que se refere às relações entre a Idade Média e
o Renascimento italiano, devemos dizer que, no atual estado dos
estudos, não se mantêm de pé nem 1) a tese da “ruptura” entre as
duas épocas e tampouco 2) a tese da pura e simples “continuidade”.
Atese correta é uma terceira. Ateoria da ruptura pressupõe
a oposição e a contrariedade entre as duas épocas, ao passo que a
teoria da continuidade postula uma homogeneidade substancial.
Mas, entre a contrariedade e a homogeneidade, existe a “diversi-
dade”. Ora, dizer que o Renascimento é uma época “diversa” da
Idade Média não apenas permite distinguir as duas épocas sem
contrapô-las, mas também identificar facilmente os seus nexos e as
suas tangências, bem como as suas diferenças, com grande liber-
dade crítica.
E, consequentemente, outro problema também pode ser fa-
cilmente resolvido.
O Renascimento inaugura a época moderna? Os teóricos da
“ruptura” entre Renascimento e Idade Média eram fervorosos
defensores da resposta positiva a essa pergunta. Já os teóricos da
“continuidade” davam-lheresposta negativa. Hoje, em geral, tende-
32 Humanismo e Renascimento
se a identificar o começo da época moderna com a revolução
científica, ou seja, com Galileu. Do ponto de vista da história do
pensamento, essa parece a tese mais correta. A época moderna
revela-se dominada por essa grandiosa revolução e pelos efeitos
que ela provocou em todos os níveis. Nesse sentido, o primeiro
filósofo “moderno” foi Descartes (e, em parte, também Bacon), como
veremos adiante mais amplamente. Sendo assim, o Renascimento
representa uma época diversa tanto da época medieval como da
época moderna.
Naturalmente, assim como as raízes do Renascimento devem
ser buscadas na Idade Média, da mesma forma as raízes do mundo
moderno, por seu turno, devem ser procuradas no Renascimento.
Pode-se dizer, inclusive, que o epílogo do Renascimento é marcado
pela própria revolução científica: mas essa revolução assinala
precisamente o epílogo, não a “marca” do Renascimento, ou seja,
indica o seu fim, mas não expressa em absoluto a sua têmpera
espiritual em geral.
Agora, falta-nos ainda examinar concretamente quais são as
mais significativas “diferenças” que caracterizam o Renascimento,
tanto em relação à Idade Média como em relação à época moderna,
através do exame das várias correntes de pensamento e, indivi-
dualmente, dos pensadores de destaque. Mas, antes disso, é
necessário chamar a atenção do leitor para um dos aspectos mais
típicos do pensamento renascentista, ou seja, a revivescência do
componente helenístico-orientalizante, cheio de ressonância
mágico-teúrgicas, difundido em alguns escritos que a tardia Anti-
gúidade havia atribuído a deuses ou profetas antiquíssimos e que,
na realidade, eram falsificações, mas que os renascentistas toma-
ram por autênticas, com consequências de grande importância,
como emergiu claramente sobretudo dos estudos e das pesquisas
das últimas décadas.
4. Os “profetas” e “magos” orientais e pagãos tidos
pelos renascentistas como fundadores do pensamento
teológico e filosófico: Hermes Trismegisto,
Zoroastro e Orfeu
4.1. A diferença de nível histórico-crítico do conhecimento
que os humanistas tiveram da tradição latina em
comparação com a tradição grega
Preliminarmente, deve-se esclarecer uma grande questão:
como foi possível que os humanistas, que descobriram a crítica
filológica do texto e que chegaram a identificar importantes fal-
Tradições religiosas pagãs e orientais 83
sificações (como, por exemplo, o ato de doação de Constantino) com
base no exame da língua, tenham caído em erros tão flagrantes,
tomando por autênticas as obras atribuídas aos profetas-magos
Hermes Trismegisto, Zoroastro e Orfeu, que são falsificações tão
evidentes para nós hoje? Como é que deixaram de aplicar a elas o
mesmo método? Como se pôde observar tão grande falta de saga-
cidade crítica e credulidade tão desconcertante em relação a esses
documentos?
À resposta a essas questões está bastante clara à luz dos
estudos mais recentes:o trabalho de pesquisa dos textos latinos,
que começou com Petrarca, consolidou-se antes que ocorresse o
contato com os textos gregos. Assim, a sensibilidade e a capacidade
técnica e crítica dos humanistas aguçaram-se muito antes em
relação aos textos latinos do que em relação aos textos gregos.
Ademais, os humanistas que se aproximaram dos textos latinos
tinham interesses intelectuais mais concretos do que aqueles que
se ocuparam predominantemente dos textos gregos, que tinham
interesses mais abstratos e metafísicos. Os humanistas que se
ocuparam predominantemente de textos latinos interessavam-se
sobretudo pela literatura e a história, ao passo que os humanistas
que se ocuparam de textos gregos interessavam-se sobretudo pela
teologia e a filosofia. Além disso, as fontes e tradições usadas como
referência pelos humanistas que se ocuparam de textos latinos
eram bem mais límpidas do que as utilizadas pelos humanistas que
se ocuparam de textos gregos, as quais se revelam extraordinaria-
mente carregadas de incrustações multisseculares. Por fim, foram
os próprios gregos doutos que saíram de Bizâncio para a Itália que,
com sua autoridade, avalizaram uma série de convicções desti-
tuídas de fundamentos históricos.
Assim, tudo isso explica perfeitamente a situação contradi-
tória que se criou: enquanto, por um lado, humanistas como Valla
denunciavam como falsificações documentos latinos consagrados,
por outro lado, ao contrário, humanistas como Ficino reafirmavam
e reconsagravam a “autenticidade” de flagrantes falsificações
gregas tardio-antigas, com resultados de grande alcance para a
história do pensamento filosófico, como veremos agora.
4.2, Hermes Trismegisto e o Corpus Hermeticum
em sua realidade histórica e na interpretação do
Renascimento
Comecemos por Hermes Trismegisto e pelo Corpus Her-
meticum, que tiveram a maior importância e celebridade no
Renascimento.
Hoje, sabemos com certeza o que vamos expor.
34 Humanismo e Renascimento
Hermes Trismegisto é figura mítica, que nunca existiu. Essa
figura mítica indica o deus Toth, dos antigos egípcios, considerado
inventor das letras do alfabeto e da escrita, escrita dos deuses e,
portanto, revelador, profeta e intérprete da sabedoria divina e do
logos divino. Quando tomaram conhecimento desse deus egípcio, os
gregos acharam que ele apresentava muitas analogias com o seu
deus Hermes (= o deus Mercúrio dos romanos), intérprete e
mensageiro dos deuses, qualificando-o então com o adjetivo “Tris-
megisto”, que significa “três vezes grande” (trismégistos = terma-
«imus),
Na Antigúidade tardia, particularmente nos primeiros sé-
culos da época imperial (sobretudo nos séculos Ile TH d.C.), alguns
teólogos-filósofos pagãos, em contraposição ao cristianismo que se
expandia, produziram uma série de escritos que apresentaram sob
o nome desse deus, com a evidente intenção de contrapor às
Escrituras divinamente inspiradas dos cristãos outras escrituras,
apresentadas também como “revelações” divinas.
As pesquisas modernas determinaram, sem qualquer som-
bra de dúvida, que sob a máscara do deus egípcio ocultam-se
diversos autores e que, nesses textos, são bastante escassos os
elementos “egípcios”, Na realidade, trata-se de uma das últimas
tentativas de ressurgimento do paganismo, amplamente baseada
em doutrinas do platonismo daquela época (o medioplatonismo).
Dentre os numerosos escritos atribuídos a Hermes Trisme-
gisto, o grupo claramente mais interessante é constituído por
dezessete tratados (o primeiro dos quais leva o título de Pimandro)
mais um escrito que só chegou até nós em uma versão latina (que,
no passado, era atribuída a Apuleio) de um tratado intitulado
Aselépio (talvez elaborado no século IV d.€.). E precisamente esse
grupo de escritos que é denominado Corpus Hermeticum (= corpo
dos escritos que se colocam sob o nome de Hermes).
A Antiguidade tardia aceitou todos esses escritos como au-
tênticos. Os Padres cristãos, que neles encontraram acenos a
doutrinas bíblicas (como veremos), ficaram muito impressionados
e, conseguentemente, convencidos de que eles remontavam à época
dos patriarcas bíblicos, pensando assim que fossem obra de uma
espécie de profeta pagão. Foi assim que pensou Lactâncio, por
exemplo, como também, em parte, santo Agostinho. Ficino consa-
grou solenemente essa convicção e traduziu o Corpus Hermeticur,
que se tornou um texto basilar do pensamento humanista-renas-
centista. Assim, por volta de fins do século XV (1488), Hermes foi
solenemente acolhido na catedral de Siena, com uma efígie no
pavimento sobre a inscrição “Hermes Mercurius Trismegistus,
Contemporaneus Moys?.
Hermes Trismegisto 35
Esse sincretismo entre doutrinas greco-pagás, neoplatonis-
mo e cristianismo, tão difundido no Renascimento, baseia-se em
grande medida nesse colossal equívoco. Desse modo, muitos as-
pectos doutrinários do Renascimento, considerados estranhamente
paganizantes e estranhamente híbridos, se apresentam agora sob
uma justa luz.
Mas, para entendermos bem esse ponto, essencial para se
estabelecer as “diferenças” do Renascimento tanto em relação à
Idade Média como em relação à época moderna, é conveniente
resumir as doutrinas de fundo do Corpus Hermeticum.
Deus é concebido em função dos conceitos de incorpóreo, de
transcendência e de infinitude; também é concebido como Mônada
e Uno, “princípio e raiz de todas as coisas”; por fim, também é
expresso em função da imagem da luz. Às teologias negativa e
positiva se entrelaçam: por um lado, tende-se a conceber Deus
como estando acima de tudo, como totalmente outro de tudo aquilo
que existe, como sendo “sem forma e sem figura” e, portanto, como
“privado de essência” e, por isso, inefável; por outro lado, reconhe-
ce-se que Deus é Bem e Pai de todas as coisas e, portanto, causa de
tudo e, enquanto tal, tende-se a representá-lo positivamente. Um
dos tratados, por exemplo, diz que Deus é, ao mesmo tempo, aquilo
que é invisível e aquilo que é mais visível.
A hierarquia dos “intermediários” que vai de Deus ao mundo
é concebida do seguinte modo:
1) No vértice, encontra-se o Deus supremo, que é Luz supre-
ma e Intelecto supremo, capaz de gerar por si só.
2) Segue-se o Logos, que é “filho” primogênito do Deus
supremo.
3) Do Deus supremo deriva também um Intelecto demiúrgico
que, portanto, é um secundogênito, mas é expressamente conside-
rado “consubstancial” em relação ao Logos.
4) Segue-se o Anthropos, ou seja, o Homem incorpóreo,
também derivado de Deus e “imagem de Deus”.
5) Por fim, segue-se o Intelecto que é dado ao homem terreno
(rigorosamente distinto da aima e claramente superior a ela), que
é oque de divino existe no homem (e que, aliás, em certo sentido,
é o próprio Deus no homem), desempenhando papel essencial na
ética, na mística e na soteriologia hermética.
Ademais, o Deus supremo é concebido como se explicitando
“em número infinito de forças” e também como “forma arquetípica”
e como “o princípio do princípio, que não tem fim”.
O Logos e o Intelecto ">miúrgico são os criadores do cosmos.
Eles agem de modo diverso sobre a escuridão ou treva, que
originariamente se separam e dualisticamente se opõe ao Deus-
Pormenorda parte direita da Escola de Atenas de Rafael (cf. pp- 14-
15), que mostra Zoroastro, ostentando na mão um globo represen-
tando o céu (a figura que está diante dele tem na mão o globo
terrestre; a posição peculiar indica a influência do céu sobre a
terra). Zoroastro viveu sete séculos antes de Cristo. Os renascen-
tistas consideravam-no autor dos Oráculos caldeus, cujas doutri-
nas mágico-teúrgicas tiveram ampla influência (na realidade, os
Oráculos são uma obra da época imperial). Juntamente com
Hermes Trismegisto e com Orfeu, Zoroastro contribuiu para criar
a peculiar têmpera espiritual que diferencia o Renascimento tanto
da Idade Média como da época moderna.
Oráculos caldeus e orfismo 41
finalidades místico-religiosas. E são precisamente essas finalida-
des místico-religiosas que constituem o dado característico que
distingue a teurgia da magia comum. Os estudiosos modernos
observaram que enquanto a magia vulgar faz uso de nomes e
fórmulas de origem religiosa com objetivos profanos, a teurgia, ao
contrário, faz uso das mesmas coisas com fins religiosos. E esses
fins, como sabemos, são a libertação da alma em relação ao corpóreo
e à “fatalidade” a ele ligada e a conjunção com o divino.
Isso é o que se conseguiu estabelecer até hoje. Mas os
renascentistas não pensavam assim, induzidos que foram a grave
erro por abalizado douto bizantino, Jorge Gemisto, nascido em
Constantinopla por volta de 1355, que se fez denominar Pleton.
Considerando ser Zoroastro o autor dos Oráculos caldeus (induzido
em erro por um de seus mestres) e indo para a Itália por ocasião do
Concílio de Florença, ministrou lições sobre Platão e sobre a dou-
trina dos Oráculos, acreditando-os como expressão do pensamento
de Zoroastro e suscitando notável interesse por eles.
Assim, Zoroastro foi considerado como profeta (“priscus
theologus”), sendo por vezes apresentado até como anterior a
Hermes ou como primeiro por cronologia e dignidade junto a ele.
Na realidade, Zoroastro (= Zaratustra) foi reformador religioso
iraniano do século VII/VI a.C., que não tem nada a ver com os
Oráculos caldeus.
Esse novo equívoco, portanto, contribuiu grandement> para
a difusão da mentalidade mágica no Renascimento.
4.4. O Orfeu renascentista
Orfeu foi poeta místico da Trácia. A ele ligava-se o movimento
religioso mistérico chamado “órfico” devido ao seu nome, do qual já
falamosno primeiro volume. Já no século VI a.C. esse poeta-profeta
era chamado “Orfeu famoso de nome”.
Em relação ao Corpus Hermeticum e aos Oráculos Caldeus,
o orfismo representa uma tradição muito mais antiga, que in-
fluenciou Pitágoras e Platão, sobretudo no que se refere à doutrina
da metempsicose.
Mas muitos dos documentos que chegaram até nós como
“órficos” são falsificações posteriores, nascidas na época helenís-
tico-imperial. O Renascimento conheceu sobretudo os Hinos órfi-
cos. Nas atuais edições, esses hinos são oitenta e sete, mais um
proêmio. São dedicados a várias divindades, distribuindo-se se-
gundo uma ordem conceitual precisa. Ao lado de doutrinas que
remontam ao orfismo original, contêm ainda doutrinas estóicas e
doutrinas provenientes do meio filosófico-teológico alexandrino,
sendo portanto, seguramente, de composição tardia. Mas os re-
Pormenor do lado esquerdo da Escola de Atenas de Rafael, re-
presentando um rito “órfico”. A base da coluna pretende significar
que a revelação órfica constitui a base sobre a qual foi construída
a filosofia. E isso aconteceu efetivamente, em ampla medida, no
mundo antigo. Mas, sob o nome de Orfeu, o Renascimento conheceu
sobretudo fimifhcações da época imperial, como, por exemplo, os
célebres Hinos cos, traduzidos por Ficino. Orfeu era considerado
como profeta e mago antigiiíssimo, apenas pouco posteriora Moisés.
Orfismo 43
nascentistas os consideravam autênticos. Ficino cantava esses
hinos para obter a influência benéfica das estrelas.
Segundo o próprio Ficino, na genealogia dos profetas, Orfeu
foi sucessor de Hermes Trismegisto e muito próximo a ele. Pitá-
goras ligava-se diretamente a Orfeu. Platão teria haurido a sua
doutrina de Hermes e de Orfeu. Assim, Hermes, Orfeu e Platão
eram ligados em uma conexão que constitui o alicerce de toda a
construção do platonismo renascentista, que, consequentemente,
mostra-se completamente diferente do platonismo medieval.
Está claro, portanto, que se não se levar em conta todos os
fatores que recordamos, se nos escapa toda possibilidade de captar
o significado da proposição metafísico-teológico-mágica da dou-
trina da Academia florentina e de grande parte do pensamento dos
séculos XV e XVI.
A tudo isso deve-se agregar ainda a enorme autoridade
granjeada pelo pseudo-Dionísio Areopagita, que já era apreciado
na Idade Média, mas agora passava a ser lido com outros interesses
(Ficino também realizou uma tradução latina dos escritos de
Dionísio). Esse autor, como sabemos, não é o santo convertido por
são Paulo em Atenas, mas sim autor neoplatônico tardio (cf. vol. I,
p. 308). E também essa “falsificação” contribuiu para criar aquele
clima especial de que falamos.
À luz do que foi dito até agora, podemos passar ao exame do
pensamento dos vários humanistas e das diversas tendências e
correntes filosóficas humanístico-renascentistas.
Capítulo IL
IDÉIAS E TENDÊNCIAS DO PENSAMENTO
HUMANÍSTICO-RENASCENTISTA
1. Os debates sobre os problemas morais
e o neo-epicurismo
1.1. Os primórdios do humanismo
1.1.1. Francisco Petrarca
Como já dissemos, Francisco Petrarca (1304-1374) é consi-
derado unanimemente como o primeiro humanista. Isso já estava
muito claro para todos já nas primeiras décadas do século XV,
quando Leonardo Bruni escrevia solenemente: “Francisco Petrar-
ca foi o primeiro, tendo tanta graça e engenho que reconheceu e
trouxe à luz a antiga graciosidade do estilo perdido e extinto.”
E como foi que Petrarca chegou ao humanismo? Partindo do
exame e da atenta análise da “corrupção” e da “impiedade” de seu
tempo, ele procurou identificar suas causas, para tentar remediá-
las, E, em sua opinião, as causas eram basicamente duas, estrei-
tamente ligadas entre si: 1) a propagação do “naturalismo” difun-
dido pelo pensamento árabe, especialmente por Averróis; 2) o
predomínio indiscriminado da dialética e da lógica, com a respec-
tiva mentalidade racionalista. E julgou fácil indicar os antídotos
para esses dois males: 1) ao invés de nos desperdiçarmos no
conhecimento puramente exterior da natureza, é preciso nos
voltarmos para nós mesmos, objetivando o conhecimento de nossa
própria alma; 2) ao invés de nos perdermos nos vazios exercícios
dialéticos, precisamos redescobrir a elogiiência, ashumanae litterae
ciceronianas.
Francisco Petrarca 45
Com isso, ficam perfeitamente delineados o programa e o
método do “filosofar” próprio de Petrarca: a verdadeira sabedoria
está em conhecer-se a si mesmo e 0 caminho (o método) para
alcançar essa sabedoria está nas artes liberais.
Eis algumas exemplificações eloquentes dessas idéias. No
escrito Sobre a própria ignorância e a de muitos outros, contra o
naturalismo dos averroístas, Petrarca escreve: “Ele (= o averroís-
ta) sabe muitas coisas sobre as feras, os pássaros e os peixes e
conhece muito bem quantos pêlos o leão tem na juba, quantas
penas tem o pavão na cauda, com quantos tentáculos o polvo
envolve o náufrago (segue-se um longo e pitoresco elenco de
curiosidades do mesmo gênero dessas). Em grande parte, essas
coisas são falsas, o que aparece quando se pode fazer a sua
experiência, ou são desconhecidas para aqueles mesmos que as
afirmam; assim, elas são criadas com muita facilidade, porque
distantes, e aceitas muito livremente; mas, mesmo que fossem
verdadeiras, de nada serviriam para uma vida feliz. Eu, com efeito,
me pergunto para que serve conhecer a natureza das feras, dos
pássaros, dos peixes e das serpentes, mas ignorar ou não procurar
conhecer a natureza do homem, por que nascemos, de onde viemos,
para onde vamos” (tradução de M. Capelli).
Mas a passagem mais famosa, indubitavelmente, é aquele
trecho da Epístola que narra a subida ao monte Ventoso. Chegando
ao cume do monte depois de uma longa caminhada, Petrarca abriu
As confissões de santo Agostinho e as primeiras palavras que leu
foram estas: “E os homens vão admirar os altos montes, as grandes
ondas do mar, os largos leitos dos rios, a imensidade do oceano e o
curso das estrelas, mas esquecem-se de si mesmos.” E eis o seu
comentário: “Fiquei estupefato, confesso; disse ao meu irmão, que
ainda desejava ouvir mais, que nãome perturbasse; e fechei olivro,
enraivecido comigo mesmo por aquela minha admiração pelas
coisas terrenas, embora há muito tempo já devesse ter aprendido,
inclusive com os filósofos pagãos, que nada é digno de admira-
ção além da alma, para a qual nada é grande demais” (tradução
de E. Bianchi).
Analogamente, no que se refere ao segundo ponto que apon-
tamos, Petrarca insiste no fato de que a “dialética” leva à impie-
dadee não à sabedoria. O sentido da vida não é revelado por montes
de silogismos, mas sim pelas artes liberais, cultivadas oportuna-
mente, isto é, não como fins em si mesmas, mas como instrumentos
de formação espiritual.
E eis como a antiga definição de filosofia dada por Platão no
Fédon é apresentada como coincidente com a visão cristã no escri-
to Invectiva contra um médico: “Meditar profundamente sobre a
morte, armar-se contra ela, dispor-se a desprezá-la e suportá-la e,
50 Humanismo e Renascimento
prudência (= sabedoria) é uma avaliação exata da utilidade —e
uma verdadeira avaliação é incorrupta. Pois as coisas só podem
aparecer como são para o homem bom. Os juízos dos maus são como
o paladar dos doentes, que não provam o exato sabor de nada. Por
isso, não há nada que os vícios mais prejudiquem do que a
prudência, já que o celerado e o mau podem captar exatas de-
monstrações matemáticas e conhecimentos físicos, mas ficam
completamente cegos para as obras sábias, perdendo com isso o
Jume da verdade (...). Assim, o caminho da felicidade abre-se reto
e livre para o homem bom. Só ele não se engana nem erra. Só ele
vive bem, o contrário do que faz o mau. Desse modo, se quisermos
ser felizes, tratemos de ser bons e virtuosos.”
E. Bruni conclui dizendo que, nesse ponto, os filósofos pa-
gãos e os cristãos estão em perfeita harmonia: “Uns e outros sus-
tentam as mesmas coisas sobre a justiça, a temperança, a fortaleza,
aliberalidade e as outras virtudes, como os vícios a elas contrários.”
1.2.2. Poggio Bracciolini
Poggio Bracciolini(1380-1459), secretárioda Cúria Romana
e depois chanceler em Florença, também era muito ligado a
Salutati. Ele foi um dos mais esforçados e fervorosos descobridores
de antigos códices (cf. acima, pp. 17-18). Em suas obras, ele debate
temáticas que se haviam tornado canônicas nas discussões dos
humanistas, particularmente as seguintes: a) o elogio da vida ativa
em comparação com a ascese da vida contemplativa vivida em
solidão; b) o valor de formação humana e civil das “litterae”; c) a
glória e a nobreza como fruto da virtude individual; d) a questão da
“fortuna”, que torna instável e problemática a vida dos homens,
mas contra a qual a virtude pode levar a melhor; e) a reavaliação
das riquezas (já iniciada por L. Bruni na introdução aos Econômi-
cos de Aristóteles), consideradas como o nervo do Estado e como
aquilo que torna possível, nas cidades, os templos, os monumentos,
a arte, os ornamentos e toda beleza.
A propósito deste último tema, E. Garin escreveu que nos
encontramos diante de uma “estranha e moderna valorização
do dinheiro, quando não do capital...” Trata-se, portanto, de
notável antecipação. o
Mas queremos concluir com uma observação de Bracciolini
sobre a virtude que, com belas variações sobre temas estóicos,
sustenta ser a virtude autárquica, não necessitando de nada e
sendo a única fonte de verdadeira nobreza: “Além de ser verda-
deira, essa doutrina mostra trazer grande utilidade para a nossa
Humanistas do século XV 51
vida. Pois se nos convencermos de que os homens só se tornam
nobres na honestidade e no bem e que a verdadeira nobreza é
aquela que cada um conquista agindo, não aquela que deriva da
habilidade e do trabalho alheios, seremos mais impelidos (...) à
virtude e não vencidos pelo ócio e sem fazer nada digno de louvor,
nos deixaremos contentar com a glória alheia, mas sim tenderemos
nós mesmos a nos apossar das insígnias da nobreza.” Esse texto
apresenta um dos pensamentos básicos do humanismo: a verda-
deira nobreza é aquela que cada um conquista agindo. Um pen-
samento que nada mais é do que uma variante de outro conceito
basilar, de gênese romana, não menos caro a essa época: cada qual
é artífice da própria fortuna.
1.2.3, Leon Battista Alberti
Uma figura de humanista de interesses poliédricos foi Leon
Battista Alberti (1404-1472), que, além das questões filosóficas,
também se ocupou de matemática e de arquitetura. São conhecidos
especialmente os seus escritos Sobre a arquitetura, Da pintura, Da
família, Do governo da casa, Momo e Intercenais (recentemente
descobertas por Garin em sua integridade).
Eis alguns temas (entre tantos outros) que se destacam em
Alberti:
a) Em primeiro lugar, deve-se destacar a crítica das inves-
tigações teológico-metafísicas, consideradas vãs, contrapondo a
elas as investigações morais. Para Alberti, é inútil procurar
descobrir as causas supremas das coisas, porque isso não foi
concedido aos homens, que só podem conhecer aquilo que está sob
os seus olhos, ou seja, por meio da experiência.
b) Ligada a essa crítica encontra-se a exaltação do homo
faber e de sua atividade produtiva e construtora, ou seja, aquela
atividade que não está voltada apenas para o benefício doindivíduo,
mas também para o benefício de todos os outros homens e da
cidade. Por isso, ele censura a sentença de Epicuro, “que, em Deus,
reputa como a suma felicidade o nada fazer”, sustentando que a
verdade é exatamente o contrário e que o supremo vício é “estar em
vão”. Sem a ação, a contemplação não tem sentido. No entanto,
elogia os estóicos, que consideravam “o homem ser pela natureza
constituído no mundo especulador e operador das coisas” eachavam
que “cada coisa nasceu para servir ao homem e o homem pa-
ra conservar a companhia e a amizade entre os homens”, E lou-
va Platão por ter escrito que “os homens nasceram por motivo
dos homens”.
c) Nas artes, Alberti destacou a grande importância
do conceito de “ordem” e “proporção” entre as partes: a arte
Leon Battista Alberti (1404-1472) humanista de interesses
poliédricos: filósofo, matemático e arquiteto.
Humanistas do século XV 53
reproduz e recria aquela ordem entre as partes que existe na
realidade das coisas.
d) Alguns chegaram até mesmo a identificar em Alberti a
presença de uma espécie de filosofia urbanista ante litteram. L.
Malusa escreve: “Entre as artes, a arquitetura é (...) para Alberti
a mais elevada e a mais próxima da obra da natureza. Edificar é
natural no homem, pois com isso se volta eminentemente para a
criação de uma ordem na cidade, que é desenvolvimento de virtude
eexigência da natureza. A concretização de uma cidade que seja ao
mesmo tempo humana e natural ocupa uma ampla parte do De re
aedificatoria, que pode ser considerada como um original estudo
de “filosofia urbanista”: em Alberti, o papel dos prédios e da cida-
de torna-se fundamental para a instauração da ordem moral e
da felicidade.”
e) Mas um dos temas mais característicos debatidos por
Alberti é o da relação entre “virtude” e “sorte”. Para ele, a “virtude”
não é tanto a virtus cristã, mas muito mais a areté grega, ou seja,
aquela atividade peculiar dohomem que o aperfeiçoa e garante-lhe
a supremacia sobre as coisas. Em especial, apesar de algumas
observações pessimistas, Alberti mostra-se firmemente convencido
de que, quando considerada e exercida de modo realista e não como
veleidade, a virtude leva a melhor sobre a sorte.
Duas afirmações suas, sobre o sentido da atividade humana
e sobre a superioridade da virtude sobre a fortuna, tornaram-se
particularmente célebres. Por isso, queremos transmiti-las com as
suas próprias palavras. À primeira: “Portanto, parece-me crer que
certamente o homem não nasceu para apodrecer jazendo, mas sim
para estar de pé fazendo (...):o homem não nasce para entristecer-
se no ócio, mas sim para agir em coisas magníficas e amplas, com
as quais possa agradar e honrar a Deus em primeiro lugar, e para
ter em si mesmo como uso de perfeita virtude e, desse modo, fruto
de felicidade.” A segunda: “Como poderemos confessar não ser
mais nosso do que da fortuna aquilo que nós, com solicitude e
diligência, decidimos manter ou conservar? Não está em poder da
fortuna e não é, como acreditam algunstolos, tão fácil vencer quem
não quer ser vencido. A fortuna só subjuga a quem se lhe submete.”
Essas afirmações são como que duas esplêndidas epígrafes
que valem para todo o movimento humanista.
1.2.4. Outros humanistas do século XV
Para concluir, recordemos alguns nomes de célebres huma-
nistas do século XV.
Giannozzo Manetti (1396-1459) traduziu Aristóteles e os
Salmos, mas ficou conhecido sobretudo por seu escrito De dignitate
et excellentia hominis, com o qual abriu a grande discussão “sobre
s4 Humanismo e Renascimento
a dignidade do homem” e sua superioridade em relação às outras
criaturas.
Mateus Palmieri (1406-1475) conciliou uma vida contem-
plativa com a vida ativa. Embora reafirmando a fecundidade da
obra humana e o papel central da cidade, revela inflexões platôni-
cas que antecipam uma mudança de clima espiritual.
Por fim, deve-se mencionar Ermolau Bárbaro (1453-1493),
que se qualificou como tradutor de Aristóteles (chegou até nós a sua
tradução da Retórica), empenhando-se em restituir ao texto do
Estagirita o seu antigo espírito, libertando-o das incrustações
medievais. Uma afirmação sua tornou-se famosíssima: “Reco-
nheço dois senhores: Cristo e as letras.” Essa divinização das letras
levava Ermolau Bárbaro a uma posição quase de ruptura: com
efeito, ele chegava ao ponto de propor o celibato e o descompromisso
civil para os doutos, a fim de que pudessem se dedicar inteiramente
ao ofício das letras.
1.3. O neo-epicurismo de Lourenço Valla
Uma das figuras mais ricas e significativas do século XV foi
certamente Lourenço Valla (1407-1457).
Asua posição filosófica, como se expressa sobretudo na obra
Do verdadeiro e do faiso bem, é marcada por uma viva polêmica
contra o ascetismo estóico e contra os excessos do ascetismo
monástico, em oposição aos quais afirma as instâncias do “prazer”,
entendido, porém, em seu sentido mais amplo e não somente como
prazer da carne. O trabalho de Valla representa, portanto, uma
curiosa tentativa de retomada do epicurismo, relançado e resga-
tado em bases cristãs.
O raciocínio de fundo de Valla é o seguinte: tudo aquilo que
anatureza fez “não pode ser senão santo e louvável”: o prazer deve
ser visto nessa ótica, isto é, também é considerado como santo e
louvável; mas, como o homem é feito de corpo e alma, o prazer se
explica em diferentes níveis; assim, há um prazer sensível, que é
o mais inferior, mas também existem os prazeres do espírito, das
leis, das intituições, das artes e da cultura, bem como, acima de
todos, o prazer do amor cristão por Deus.
Valla não tem dúvida de que se possa chamar de “prazer”
a felicidade de que a alma desfruta no Paraíso, escrevendo: “Quem
duvidaria em chamar essa bem-aventurança ou quem poderia
chamá-la melhor do que de “prazer? E, mais adiante, precisa:
“Entretanto, é preciso notar que, embora eu diga que o prazer ou
deleite é o único bem, contudo eu não amo o prazer, mas a Deus. O
próprio prazer é amor, já que Deus faz o prazer. Recebendo, ama;
recebido, é amado. O próprio amar é deleite, prazer, bem-aventu-
rança, felicidade ou caridade, que é o fim último, em relação ao qual
Lourenço Valla 55
se colocam as outras coisas. Por isso, não concordo que se diga que
Deus deve ser amado por si mesmo, como se o próprio amor e o
deleite existisse tendo em vista um fim e não fossem fins eles
mesmos. Melhor se diria se se dissesse que Deus é amado não como
causa final, mas como causa eficiente” (tradução de G. Radetti).
O sentido da doutrina do prazer de Valla foi interpretado
com muita fineza por E. Garin: “A proclamada santidade da
voluptas, de resto sentida de forma muito lucreciana, é uma defesa
da divindade da natureza, admirável manifestação da ordenada
e providencial bondade de Deus. Como toda posição antimani-
queísta muito viva, também a posição exposta em certas páginas
de Valla parece deslizar em direção ao pelagianismo (cf. Vol. 1, p
438), correndo o risco de deificar a natureza e, através da natureza,
também 6 prazer, hominumque divumque Voluptas. Entretanto,
nada se perde de sua validade, nem da justeza daquele chama-
do à experiência cristã, entendida não como redenção da alma,
mas como redenção do homem, de todo o homem, carne e alma,
contra todo ascetismo pessimista e contra todo maniqueísmo
evidente ou larvar”
Tudo isso é exato. Mas deve-se acrescentar que o resultado
último dessa amplificação da voluptas é uma superação da dou-
trina do próprio Epicuro. Com efeito, a conjunção dessa doutrina
com o cristianismo muda o seu caráter, como o próprio Valla diz
expressamente: “E assim refutei ou condenei tanto a doutrina dos
epicúreus como a dos estóicos, mostrando que o bem sumo ou
desejável não se encontra nem em uns nem em outros e nem mesmo
em algum dos filósofos, mas sim em nossa religião, não podendo
ser alcançado na terra, mas sim nos céus.”
Se levarmos em conta essas afirmações, não nos surpreen-
deremos com as conclusões a que chega Valla em outra obra célebre
que escreveu: Sobre o livre-arbítrio. Colocando-se contra a razão
silogizante e contra o conhecimento do divino entendido aristote-
licamente, Valla faz valer as instâncias da fé, entendida como a
entende são Paulo, contrapõe as virtudes teologais às virtudes do
intelecto e escreve textualmente: “Fujamos portanto da cupidez de
conhecer as coisas superiores e nos aproximemos muito mais das
coisas humildes. Nada importa mais para o cristão do que a
humildade. Desse modo, sentimos muito mais a magnificência de
Deus, pois está escrito: Deus resiste aos soberbos, mas concede a
graça aos humildes.” ”
Analogamente, só nessa ótica e nesse espírito pode-se en-
tender corretamente o Discurso sobre a falsa e mentirosa doação de
Constantino, na qual Valla demonstra com rigorosas bases filoló-
gicas a falsidade daquele documento, sobre o qual a Igreja funda-
menta a legitimidade do seu poder temporal, fonte de corrupção. A
Era assim que Rafael e os renascentistas imaginavam Platão. Este
particular da Escola de Atenas mostra muito bem o desejo de
apresentar o fundador da Academia não apenas como o filósofo da
transcendência por excelência, mas também como perfeitamente
conciliável com Aristóteles. mostrando-o em uma atitude comple-
mentar em relação a ele (Platão aponta para o céu, Aristóteles para
a natureza, de modo que um completa o outro; cf. pp. 14-15).
Ademais, através do livro que lhe põe sob o braço, ou seja, o Timeu
(que contém a síntese cosmológica), Rafael pretende indicar a
possibilidade concreta de passagem da metafísica platônica aos
interesses “naturalistas” aristotélicos.
Nicolau de Cusa: a douta ignorância 61
IV. Para ele, estabelecer a harmonia entre Platão e Aristóteles
significava também criar uma base para unificar a Igreja grega
com a romana. Por isso, Bessarion foi considerado o mais grego dos
latinos e o mais latino dos gregos. Entre outras coisas, ficou famosa
a sua tradução da Metafísica de Aristóteles. Entretanto, apesar de
seus vastíssimos conhecimentos sobre as fontes, Bessarion tam-
bém propôs e avalizou amplamente a interpretação neoplatônica
de Platão (e não poderia ter sido diversamente, devido às razões
que já explicamos).
Mas o grande relançamento do platonismo, do ponto de
vista filosófico, iria acontecer por outros caminhos: por um lado,
graças à obra de Nicolau de Cusa; por outro lado, através da obra
da Academia platônica florentina, tendo à frente Ficino e, depois,
Pico de Mirândola. É desses filósofos que falaremos agora.
2.2. Nicolau de Cusa: a douta ignorância
em relação ao infinito
2.2.1. A vida, as obras e a posição cultural de Nicolau de
Cusa
Uma das personalidades de maior destaque do século XV
(talvez o gênio mais dotado especulativamente) foi Nicolau de
Cusa, assim chamado por causa da cidade de Kues, onde nasceu em
1401 (o seu nome era Kryfts ou, na grafia modernizada, Krebs).
Alemão de origem, mas italiano por formação, Nicolau estudou
especialmente em Pádua. Foi ordenado sacerdote em 1426 e
tornou-se cardeal em 1448. Morreu em 1464.
Dentre suas obras, podemos recordar: A douta ignorância
(1438-1440), As conjecturas (elaboradas entre 1440 e 1445), A
busca de Deus (1445), A filiação de Deus (1445), A apologia da
douta ignorância (1449), O idiota (1450), A visão de Deus (1453),
A esmeralda (1458), O príncipe (1450), O poder ser (1460), O jogo
da bola (1463), A caça da sabedoria (1463), O compêndio (1463) e
O ápice da teoria (1464). (Todos esses escritos encontram-se nas
Obras filosóficas de Nicolau de Cusa, traduzidas para o italiano por
G. Federici Vescovini, UTET, Turim, das quais nos valemos).
Entretanto, somente em parte Nicolau de Cusa interpreta
as instâncias renascentistas. Inicialmente, ele se formou com base
na problemática ligada às correntes ocamistas, sendo depois
influenciado pelas correntes místicas ligadas a Eckhart. Mas a
marca do seu pensamento é constituída sobretudo pelo predomínio
do neoplatonismo, especialmente na formulação desenvolvida pelo
Pseudo-Dionísio, quando não de Escoto Eriúgena (ainda que em
menor medida), a serviço de fortes interesses teológicos e religiosos.
Nicolau de Cusa (1401-1464): grande teólogo e filósofo neopla-
tônico. Suas teorias foram uma como que grande ponte entre a
época medieval e o período renascentista. (A foto reproduz o
monumento a Nicolau de Cusa que se encontra na Igreja de San
Pietro in Vincoli, em Roma).
Nicolau de Cusa: a douta ignorância 63
Entretanto, seria errado pensar em Nicolau de Cusa como
filósofo predominantemente ligado ao passado: com efeito, embora
ele não se mostre alinhado com os humanistas, também não se
encontra alinhado com os escolásticos. Na verdade, ele não segue
o método “retórico” (ou seja, inspirado na elogiiência antiga)
próprio dos primeiros, mas também não segue o método daquaestio
e da disputatio característico dos segundos. Nicolau faz uso ori-
ginal de métodos extraídos dos processos matemáticos, não, porém,
em sua valência matemática propriamente dita, mas sim em sua
valência analógico-alusiva. O tipo de conhecimento que deriva
desse método é denominado por nosso filósofo como “docta igno-
rantia”, onde o adjetivo corrige o substantivo de modo essencial.
Vejamos então, concretamente, em que consiste essa “douta
ignorância” de Nicolau de Cusa.
2.2.2. A douta ignorância
Em geral, quando se busca a verdade acerca das várias
coisas, pôem-se em relação e comparam-se o certo com o incerto, o
desconhecido com o conhecido. Portanto, quando se indaga no
âmbito das coisas finitas, o juízo cognoscitivo é fácil ou difícil
(quando se trata de coisas complexas), mas, de qualquer modo, é
possível. Entretanto, as coisas são bem diferentes quando se
indaga do infinito, que, enquanto tal, escapa a toda proporção,
restando-nos portanto desconhecido. É essa a causa do nosso não
saber em relação ao infinito: precisamente o fato de ele não ter
“proporção” alguma em relação às coisas finitas. À consciência
dessa desproporção estrutural entre a mente humana (finita) e o
infinito, ao qual porém, ela tende e pelo qual anseia, e a busca que
se mantém rigorosamente no âmbito dessa consciência crítica
constituem precisamente a douta ignorância.
Eis as conclusões de Nicolau de Cusa: “O intelecto finito não
pode entender de modo preciso a verdade das coisas por meio das
semelhanças. A verdade não é um mais ou um menos, pois consiste
em algo de indivisível e não pode ser medida com precisão por nada
que exista como diferente do verdadeiro, assim como o círculo, cujo
ser consiste em algo de indivisível, não pode medir o não-círculo.
Assim, o intelecto, que não é a verdade, não pode compreender
nunca a verdade de modo preciso, não podendo portanto compre-
endê-la ainda mais precisamente ao infinito, porque está para a
verdade como u polígono está para o círculo. Quanto mais ângulos
tiver o polígono, tanto mais será semelhante ao círculo; entretanto,
jamais será igual a ele, ainda que multipliquemos os seus ângulos
ao infinito, já que nunca se chegará à identidade com o círculo.”
Estabelecida essa premissa, Nicolau indica um caminho
correto de busca por aproximação daquela verdade (em si mesma
sa Humanismo e Renascimento
inalcançável), centrado na concepção segundo a qual ocorre no
infinito uma coincidentia oppositorum. Por esse caminho, as várias
coisas finitas podem aparecer não tanto em antítese com o infinito,
mas muito mais como tendo com ele uma relação simbólica, de certa
forma significativa e alusiva.
Desse modo, em Deus, enquanto infinito, coincidem todas
as distinções, que nas criaturas se apresentam como opostas entre
si.
O que significa isso?
Nicolau mostra bem o que entende quando fala de “coinci-
dência dos opostos”, utilizando o conceito de “máximo”. Em Deus,
que é o máximo “absoluto”, os opostos “máximo” e “mínimo” são a
mesma coisa. Com efeito, pensemos em uma “quantidade”
maximamente grande e em uma maximamente pequena. Agora,
com a mente, subtraiamos a “quantidade”. Note-se que subtrair a
quantidade significa prescindir do “grande” e do “pequeno”. O que
resta então? Resta a coincidência do “máximo” e do “mínimo”, visto
que “o máximo é superlativo, como o é o mínimo”. Por isso, Nicolau
escreve: “A quantidade absoluta (...) não é mais máxima do que
mínima, já que nela coincidem mínimo e máximo.”
Generalizando esse resultado, acrescenta o nosso filósofo:
“As oposições convêm às coisas que admitem um excedente e um
excedido, fazendo-o diversamente. Entretanto, nunca convém ao
máximo absoluto, que está acima de qualquer oposição. E, como o
máximo absoluto é absolutamente em ato todas as coisas que
podem ser e o é sem oposição, de forma que o mínimo coincide com
o máximo, então também está acima de qualquer afirmação e
negação. Tudo aquilo que se concebe que é não é mais do que aquilo
que não é. E tudo aquilo que se concebe que não é não é menos do
que aquilo que é. Mas aquilo que é tudo o é de tal modo a não ser
nada. E é maximamente aquilo que também é minimamente. Dizer
“Deus, que é o próprio máximo absoluto, é luz' é o mesmo que dizer
“Deus é maximamente luz e é minimamente luz'. Com efeito, se
assim não fosse, o máximo absoluto não seria em ato todos 08
FT SNS
NO
Nicolau de Cusa: Deus e mundo 65
possíveis, isto é, não seria infinito e não seria o limite de todas as
coisas, não sendo limitado por nenhuma delas.”
A geometria nos oferece esplêndidos exemplos “alusivos” de
coincidência dos opostos no infinito. Tomemos um círculo, por
exemplo, e aumentemos o seu raio, pouco a pouco, ao infinito, isto
é, até fazê-lo tornar-se máximo. Pois bem, nesse caso, o círculo
acabará por coincidir com a linha e a circunferência pouco a pouco
se tornará minimamente curva e maximamente reta, como mostra
o gráfico da p.64
Ademais, no círculo infinito cada ponto será centro e, ao
mesmo tempo, também extremo. E, analogamente, coincidirão
arco, corda, raio e diâmetro. E tudo coincidirá com tudo.
O mesmo, por exemplo, vale também para o triângulo. Se,
pouco a pouco, prolongarmos um lado ao infinito, o triângulo
acabará por coincidir com a reta. E os exemplos poderiam se
multiplicar. Portanto, ao infinito, os opostos coincidem. Desse
modo, Deus é complicatio oppositorum et eorum coincidentia.
Tudo isso implica uma superação do modo comum de racio-
cinar, que se funda no princípio da não-contradição. E Nicolau
tenta uma justificação das possibilidades dessa superação explo-
rando a distinção (de gênese platônica) dos graus de conhecimento
em: a) percepção sensorial; b) razão (ratio); c) intelecto (intellec-
tus). Da seguinte forma: a) a percepção sensorial é sempre positiva
ou afirmativa; b) a razão, que é discursiva, afirma e nega, man-
tendo os opostos distintos (afirmando um nega o outro e vice-versa)
segundo o princípio da não-contradição; c) já o intelecto, acima de
toda afirmação e negação racionais, capta a coincidência dos
opostos com um ato de intuição superior. Escreve Nicolau: “Assim,
de modo incompreensível, acima de todo discurso racional, vemos
queo máximo absoluto é oinfinito, ao qual nada seopõee como qual
o mínimo coincide.”
É nesse quadro que ele repropõe as principais temáticas do
neoplatonismo cristão com originalidade e fineza.
Três pontos merecem ser destacados de modo particular: a)
o modo como ele apresenta a relação Deus-mundo; b) o destaque
que dá ao antigo princípio segundo o qual “tudo está em tudo”; c)
o conceito de homem como “microcosmos”.
2.2.8. A relação entre Deus e o universo
Nicolau de Cusa apresenta a derivação das coisas de Deus em
função de três conceitos básicos (já utilizados por alguns pensa-
dores platônicos medievais): 1) o conceito de “complicação”. 2) o
conceito de “explicação”; 3) o conceito de “contração”.
1) Deus contém em si todas as coisas (como máximo de todos
70 Humanismo e Renascimento
A importância de Ficino está emergindo de modo sempre
mais claro como verdadeiramente essencial não somente para se
compreender o pensamento da segunda metade do século XV, mas
também para se entender o pensamento do século XVI.
Foram três as atividades fundamentais às quais Ficino se
dedicou: 1) a de tradutor; 2) a de pensador e filósofo; 3) a de mago.
Não acrescentaremos como quarta atividade a de sacerdote (fez-se
ordenar padre em 1474, já na faixa dos quarenta anos de idade),
pois, como veremos, para ele, “sacerdote” e “filósofo” são a mesma
coisa. Suas três atividades revelam-se intimamente ligadas entre
si e até indissolúveis. Ficino traduziu uma grande quantidade de
textos (de que falaremos logo) não por erudição, mas para respon-
der a necessidades espirituais precisas e seguindo um plano
filosófico claro. O teórico, portanto, guiou as escolhas do tradutor.
E a atividade do tradutor, assim como a do pensador, liga-se com
a do mago, não de modo agregado, mas sim essencial, pelas razões
que explicaremos.
2.8.2. Ficino como tradutor
Sua atividade oficial como tradutor começou em 1462, preci-
samente com as versões de Hermes Trismegisto, ou seja, com o
Corpus Hermeticum, do qual já falamos amplamente e com os
Hinos órficos, aos quais se seguiram, em 1463, os Commentaria
in Zoroastrem. Em 1463, Ficino começou a tradução das obras de
Platão, nas quais trabalhou até 1477. Entre 1484 e 1490, tradu-
ziu as Enéadas de Plotino e, entre 1490 e 1492, traduziu Dioní-
sio Areopagita.
Entre uns e outros, traduziu também obras de medioplatôni-
cos, de neopitagóricos e de neoplatônicos, como Porfírio, Jâmblico
e Proclo, além do bizantino Miguel Pselo.
Como se vê, o mapa da “tradição platônica” está completo.
A tradução de Hermes Trismegisto, Orfeu e Zoroastro antes
de Platão decorre do fato de que Ficino considerava como autên-
ticos e antiguíssimos os documentos atribuídos àqueles pretensos
profetas e magos, achando que Platão dependia deles, como já
dissemos e como veremos melhor agora.
2.8.3. Os pontos fundamentais do pensamento filosófico
de Ficino
Como filósofo, Ficino se expressou sobretudo nas obras Sobre
a religião cristã e Teologia platônica, além de vários comentários
a Platão e a Plotino. O seu pensamento é uma forma de neopla-
tonismo cristianizado, rico em observações interessantes, dentre
Marcílio Ficino e o neoplatonismo 71
as quais emergem como peculiares as seguintes: a) o novo conceito
de filosofia como “revelação”; b) o conceito de alma como “copula
mundi”; c) um repensamento do “amor platônico” em sentido
cristão.
a) A filosofia nasce como “iluminação” da mente, como dizia
Hermes Trismegisto. O ato de dispor e dobrar a alma, de modo a
que se torne intelecto e acolha a luz da divina revelação em que
consiste a atividade filosófica, coincide com a própria religião.
Filosofia e religião são inspiração e iniciação aos sacros mistérios
ão verdadeiro. Hermes Trismegisto, Orfeu e Zoroastro foram
igualmente “iluminados” por essa luz, sendo portanto profetas.
Assim, sua obra é uma mensagem sacerdotal, voltada para a
divulgação do verdadeiro.
O fato de que esses “prisci theologi” tenham podido captar
uma mesma verdade (que também foi atingida, sucessivamente,
por Pitágoras e Platão), segundo Ficino, se explica perfeitamente
em função do Logos, ou seja, do Verbo divino (do qual, inclusive,
Hermes Trismegisto fala expressamente), que é igual para todos.
A vinda de Cristo, com o Verbo fazendo-se carne, assinala o
completamento dessa revelação. Portanto, Hermes, Orfeu, Zoroas-
tro, Pitágoras, Platão (e os platônicos) podiam perfeitamente se
harmonizar com a doutrina cristã, posto que derivavam de uma
única fonte (o Logos divino). A religião dos simples não basta para
vencer a incredulidade e o ateísmo: é preciso fundar uma “docta
religio” que sintetize.a filosofia platônica e a mensagem evangé-
lica. É precisamente nessa ótica que deve ser vista a consagra-
ção sacerdotal de Ficino, assim como a sua missão de sacer-
dote-filósofo.
b) No que se refere à estrutura metafísica da realidade,
Ficino a concebe, segundo o esquema platônico, como uma sucessão
de graus decrescentes de perfeição, que ele, porém, de modo
original (em relação aos neoplatônicos pagãos), identifica nos cinco
graus seguintes: Deus, anjo, alma, qualidade (= forma) e matéria.
Ora, os primeiros dois graus e os últimos dois são claramente
distintos entre si, como mundo inteligível e mundo físico, ao passo
que a alma representa o “elemento de conjunção”, que tem as
características do mundo superior) mas, ao mesmo tempo, é capaz
de vivificar o mundo inferior. Numa ótica neoplatônica, Ficino
admite uma alma do mundo, almas das esferas celestes e almas dos
seres vivos, mas é sobretudo para a alma racional do homem que
ele dirige o seu interesse. O lugar medial da alma é o terceiro, tanto
percorrendo os cinco graus da hierarquia do real de baixo para
cima como de cima para baixo, como mostra este esquema:
Marcílio Ficino (1483-1499) foi a mente diretora da Academia
platônica florentina. Traduziu para o latim todos os textos essen-
ciais da tradição platônica (de Platão a Plotino e ao Pseudo-
Dionísio) e divulgou as doutrinas herméticas, por ele consideradas
a fonte da qual o próprio Platão havia extraído a sua filosofia.
Marcílio Ficino e o neoplatonismo 783
1 Deus 5
2 anjo 4
3 ALMA 3
4 qualidade 2
5 matéria 1
Desse modo, escreve Ficino: “Semelhante natureza parece
extremamente necessária na ordem do mundo, de modo que,
depois de Deus e do anjo, que não são divisíveis nem segundo o
tempo nem segundo a dimensão, e acima do corpo e da qualidade,
que se dissipam no tempo e no espaço, cumpra o papel de meio
termo adequado: um termo que seja de certo modo dividido pelo
decurso do tempo, mas não seja dividido pelo espaço. É a alma que
se insere entre as coisas mortais sem ser mortal, porque se insere
íntegra e não dividida, assim como também íntegra e não dispersa
se retrai. E, como ela rege os corpos, mas também adere ao divino,
é senhora dos corpos, não companheira. Esse é o milagre máximo
da natureza. As outras coisas que estão sob Deus, cada qual em si
mesma, são entidades singulares: ela, porém, é simultaneamente
todas as coisas. Ela tem em si a imagem das coisas divinas, das
quais depende, mas também as razões e os exemplos das coisas
inferiores, que, de certo modo, ela própria produz. Fazendo-se
intermediária de todas as coisas, possui as faculdades de todas as
coisas. E, sendo assim, ela perpassa todas. Mas, como é verdadeira
conexão de todas, quando migra para uma não deixa a outra, mas
migra de uma para outra sempre conservando todas, de modo que
pode ser justamente chamada de centro da natureza, a intermediá-
ria de todas as coisas, a corrente do mundo, a fisionomia do todo,
o núcleo e a cópula do mundo” (tradução de N. Abagnano).
e) Em Ficino, está estreitamente ligado a essa temática da
alma o tema do “amor platônico” (ou “amor socrático”), pelo qual o
Eros platônico (entendido por Platão como força que, à visão da
beleza, eleva o homem ao Absoluto, dando à alma as asas de que
necessita para retornar à sua pátria celeste; cf. vol. 1, pp. 152s) se
conjuga com o amor cristão. Para Ficino, em sua mais alta mani-
festação, o amor coincide com a reintegração do homem empírico
à sua Idéia metempírica em Deus, o que se torna possível através
de uma progressiva ascensão na escala do amor. Portanto, é uma
espécie de “divinização”, é um fazer-se eterno no Eterno.
Essa idéia fica clara em uma admirável passagem do Co-
mentário do Banquete de Platão: “Ainda que gostem dos corpos, as
almas e os anjos não amarão propriamente a eles, mas a Deus
neles: nos corpos amaremos a sombra de Deus, nas almas a
similitude de Deus, nos anjos a imagem de Deus. Assim, no tempo
presente, amaremos Deus em todas as coisas, de modo que, em
74 Humanismo e Renascimento
última análise, amamos todas as coisas nele. Sendo assim, vivendo
desse modo, chegaremos àquele grau em que veremos Deus e todas
as coisas nele. Nós o amaremos em si e todas as coisas nele: desse
modo, dando-se tudo a Deus com caridade no tempo presente,
recupera-se nele por fim. Porque volta-se à sua Idéia, pela qual se
foi criado. E aí será de novo reformado, se alguma parte de si lhe
faltasse;e, assim reformado, estará unido à sua idéia na eternidade.
Quero que saibais que o verdadeiro homem e a Idéia do homem são
um todo único. Entretanto, na terra, nenhum de nós é verdadeiro
homem enquanto estamos separados de Deus, porque estamos
afastados da nossa Idéia, que é a nossa forma, E a ela seremos
reduzidos pelo divino amor, com uma vida pia. Certamente, aqui,
nós estamos divididos e truncados, mas depois, ligados pelo Amor
à nossa Idéia, retornaremos íntegros, de modo que ficará aparente
que nós primeiro amamos Deus nas coisas para depois amar as
coisas nele e que nós honramos as coisas em Deus sobretudo para
nos recuperarmos — e, amando Deus, amamos a nós mesmos.”
A teoria do “amor platônico” teve ampla difusão na Itália
(Pico de Mirândola, Bembo, Castiglione), pois o terreno já ha-
via sido preparado pela difusão do “doce estilo novo” e pelas
temáticas a ele ligadas, mas também fora da Itália (especial-
mente na França).
Leão Hebreu (cujo verdadeiro nome era Jehudah Abarbanel,
tendo nascido em 1460 e morrido por volta de 1521), em seus
Diálogos de amor, distinguiu-se de todos pelo frescor e a origina-
lidade, reelaborando essa doutrina de uma forma que faria sentir
sua influência inclusive na concepção do amor Dei intellectualis de
Spinoza, de que falaremos adiante (cf. pp. 434).
Dentre os tantos documentos relativos ao “amor platônico”,
para concluir, transcrevemos esta bela Altercação de Lourenço
de Médici, que mostra a grande penetração dessa doutrina
sobre o amor:
Da divina infinitude, o abismo
como que através da névoa contemplamos,
embora a alma lhe tenha o olhar fixo,
mas com um perfeito e verdadeiro amor o amamos.
Aquele que conhece Deus, Deus a si atrai;
amando, à sua altura nos erguemos.
A ele a mente aspira como sumo bem,
a contentá-la; mas não se contenta
se a Deus somente olha e mira.
Porque a visão, embora atenta,
que a alma vidente em si recebe,
no criada e finita se contenta.
Marcílio Ficino e a magia 75
E, assim, ser nos seus graus ela deve
se, por potência, a alma é finita,
seu operar também é finito e breve.
Mas a alma que desses laços saiu
só se contenta inteiramente se pousa
em coisas que sente serem de imensa vida;
e só se compraz com aquele bem
que de Deus é conhecido; e tal desejo
e o gáudio dele parecem imensos,
mas que, amando, se converte em Deus
e sobre o Deus visto se dilata.
2.3.4. A doutrina mágica de Ficino e sua importância
A doutrina mágica de Ficino pode ser vista sobretudo na obra
De vita, de 1489, que é composta de três escritos. Ele não hesita em
proclamar-se “mago”, seguidor da “magia natural”, não a magia
perversa, que trafica com os espíritos, nem a magia vazia e
profana, como mostra este texto exemplar: “Segue então adiante,
Guicciardini: responde aos curiosos que Marcílio não aprova a
magia e suas figuras, mas é Plotino que ele expõe. O que está
claramente escrito para quem lê com honestidade. Não se fala em
absoluto daquela magia profana, que se funda no culto aos demô-
nios, mas sim daquela magia natural, que desfruta dos benefícios
celestes com meios naturais, para a boa saúde dos corpos. Uma
faculdade que se deve conceder a quem a usa de modo legítimo,
assim como justamente se admite a medicina e a agricultura, aliás,
até mais ainda quanto mais é perfeita uma atividade que liga as
coisas celestes às terrenas. Dessa forja é que vieram aqueles magos
que, antes de todos, adoraram Jesus recém-nascido. Por que então
tens tanto medo do nome de 'mago”? É um nome caro ao Evangelho,
que não significa um homem maléfico e venenoso, mas sábio e
sacerdote. E o que professa aquele mago, o primeiro adorador de
Cristo? Se queres saber, é como um agricultor, é certamente um
cultor do mundo. Mas nem por isso adora o mundo, como o
agricultor não adora a terra. Assim como o agricultor, para ali-
mentar os homens, cuida do campo segundo o clima, da mesma
forma aquele sábio, aquele sacerdote, para cuidar da saúde dos
homens, liga as coisas inferiores às superiores e, oportunamente,
faz germinar as coisas terrenas ao calor do céu, quase como os ovos
sob a galinha. É o que sempre faz o próprio Deus e, fazendo-o
ensina e induz a fazer com que as coisas ínfimas sejam geradas
pelas superiores, sendo por elas movidas e dirigidas. Enfim, são
João Pico de Mirândola (1463-1494) foi pensador platônico, fer-
voroso defensor da cabala, além do pensamento hermético. Foi o
teórico mais conhecido da doutrina da “dignidade do homem”.
Pico de Mirândola: a dignidade do homem 81
número de hóspedes celestes, que ascendia a 301.655.172. A
equação palavra-número, como todos esses métodos, não tem
necessariamente um caráter mágico, podendo ser simplesmente
mística. Entretanto, é um aspecto importante da cabala prática,
graças à vinculação com os nomes dos anjos. Existem, por exemplo,
setenta e dois anjos através dos quais pode-se chegar às próprias
sefirot ou invocá-los, quando se conhecem os seus nomese números
respectivos. Às invocações devem ser sempre formuladas em he-
braico, mas também existem invocações tácitas, que se pode
realizar simplesmente manipulando ou dispondo em certa ordem
palavras, letras, sinais ou símbolos da língua hebraica.”
Por esse motivo, Pico dedicou-se intensamente ao estudo
da língua hebraica (além do árabe e do caldeu), porque sem o
conhecimento direto do hebraico não se pode praticar a cabala
com eficácia.
Somente nessa ótica é que se pode entender as famosas
Novecentas Teses inspiradas na filosofia, na cabala e na teologia
apresentadas por Pico, nas quais deveriam se unificar aristotélicos
e platônicos, filosofia e religião, magia e cabala. Algumas dessas
teses foram julgadas heréticas, tendo sido condenadas. Em conse-
quência disso, Pico sofreu uma série de contrariedades, sendo
inclusive preso em Savóia, quando fugia da França. (Depois, foi
libertado por Lourenço, o Magnífico, e perdoado por Alexandre VI
em 1493). O Discurso sobre a dignidade do homem, que se tornou
muito famoso, ficando como um dos textos mais conhecidos do
humanismo, é que constituía a premissa geral de suas teses.
24.3. Pico e a doutrina da dignidade do homem
A doutrina desse grandioso “manifesto” sobre a “dignidade
do homem” é apresentada como uma derivação da sabedoria do
Oriente, desenvolvendo-se particularmente de uma sentença do
Asclépio, obra atribuída, como já dissemos, a Hermes Trismegisto:
“Magnum miraculum est homo”. Eis as afirmações explícitas do
nosso autor: “Li nos escritos dos árabes, venerandos Padres, que
Abdalla Sarraceno, interrogado sobre quem lhe parecia admirável
neste palco do mundo, respondeu que não percebia nada de mais
esplêndido do que o homem. E com essa afirmação concorda o fa-
moso dito de Hermes: Grande milagre, ó Asclépio, é o homem. ”
Mas por que o homem é esse grande milagre? A explicação
que Pico dá a essa questão tornou-se muito famosa, com toda a
justiça. Todas as criaturas são ontologicamente determinadas a
serem aquilo que são e não outra coisa, em virtude da essência
precisa que lhe foi dada. Já o homem, único entre as criaturas, foi
colocado no limite entre dois mundos, com uma natureza não
predeterminada, mas constituída de tal modo que ele próprio se
s2 Humanismo e Renascimento
plasmasse e esculpisse segundo a forma pré-escolhida. Assim, o
homem pode se elevar à vida da pura inteligência e ser como os
anjos, podendo inclusive elevar-se ainda mais acima. Desse modo,
a grandeza e o milagre do homem estão no fato de ele ser artífice de
si mesmo, autoconstrutor.
Eis o belíssimo discurso posto por Pico na boca de Deus,
imaginado como sendo dirigido ao homem recém-criado, o qual
encontrou um vastíssimo eco em todos os seus contemporâneos, de
todas as tendências: “Eu não te dei, Adão, nem um lugar deter-
minado, nem um aspecto próprio, nem qualquer prerrogativa só
tua, para que obtenhase conserves o aspecto e as prerrogativas que
desejares, segundo a tua vontade e os teus motivos. À natureza
limitada dos astros está contida dentro das leis por mim prescritas.
Mas tu determinarás a tua sem estar constrito a nenhuma bar-
reira, segundo o teu arbítrio, a cujo poder eu te entreguei. Colo-
quei-te no meio do mundo para que, daí, tu percebesses tudo o
que existe no mundo. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem
imortal, para que, como livre e soberano artífice, tu mesmo te
esculpisses e te plasmasses na forma que tiveres escolhido. Tu
poderás degenerar nas coisas inferiores, que são brutas, e poderás,
segundo o teu querer, regenerar-te nas coisas superiores, que são
divinas.”
Assim, enquanto os seres brutos nada mais podem ser além
de brutos e os anjos somente anjos, já no homem existe o germe de
toda vida. Conforme o germe que cultivar, o homem se tornará
planta, animal racional ou anjo e até mesmo, se não estiver
contente com todas essas coisas e recolher-se em sua unidade mais
íntima, então, “feito um espírito só com Deus, na solitária névoa do
Pai, aquele que foi colocado acima de todas as coisas estará acima
de todas as coisas”.
Eeis um último trecho, em que a natureza “camaleônica” do
homem é encontrada em Pitágoras (doutrina da metempsicose),
assim como na Bíblia e na sabedoria oriental, com fineza e
engenhosidade (e o próprio Pomponazzi, como veremos, se inspi-
rará nessa idéia): “Quem não admirará este nosso camaleão? Ou,
quem sabe, quem admirará alguma outra coisa? Asclépio, o ate-
niense, não sem razão, disse dele que, por seu aspecto cambiante
e sua natureza mutável, estava simbolizado nos mistérios por
Proteu. Daí as metamorfoses celebradas pelos judeus e pelos
pitagóricos. Com efeito, até a mais secreta teologia judaica
transforma ora o Enoc santo no anjo da divindade, ora outros em
outros espíritos divinos, enquanto os pitagóricos transformam os
celerados em brutos ou, a se acreditar em Empédocles, até mesmo
em plantas. Imitando isso, Maomé repetia frequentemente, com
razão: Quem se afasta da lei divina transforma-se em fera” Com
Pico de Mirândola: a dignidade do homem 83
efeito, não é o córtex que faz a planta, mas a natureza surda e
insensível; não é o couro que faz a jumenta, mas a alma bruta e
sensual; não é o corpo circular que faz o céu, mas a reta razão; não
é a separação do corpo que faz o anjo, mas a inteligência espiritual.
E, se vires alguém que se dedica ao ventre estendido ao chão, não
é homem que estás vendo, mas sim uma planta; e se veres alguém
cego, como Calipso, pelas vãs miragens da fantasia, tomado pelos
torpes engodos e escravo dos sentidos, é um bruto o que estás
vendo, não um homem. Se vês um filósofo que tudo discerne com
areta razão, venera-o, pois é animal celeste, não terreno. Se vêsum
contemplativo puro, ignaro do corpo, totalmente fechado nos
recônditos da mente, esse não é animal terreno, nem celeste: é
espírito mais augusto, apenas vestido de carne humana. Quem
portanto deixará de admirar o homem? Não sem razão, no antigo
e no novo Testamento, ele é ora chamado com. o nome de todo ser
de carne, ora é chamado com o nome de toda criatura, pois forja,
plasma e transforma a sua pessoa segundo o aspecto de cada ser e
o seu gênio de acordo com o de cada criatura. É por isso que o persa
Evante, explicando a teologia caldéia, diz que o homem não tem
uma imagem nativa própria, mas muitas imagens, estranhas e
adventícias. Daí o dito caldeu de que o homem é animal de
natureza variada, multiforme e cambiante”. (As traduções usadas
são de E. Garin).
Em conclusão, como se pode ver, somente no contexto má-
gico-hermético e cabalístico é que se pode entender a célebre
mensagem de Pico de Mirândola. E somente considerando essa
ótica é que se pode entender a especificidade e a peculiariedade
do humanismo renascentista e, portanto, a sua diferença em
relação ao humanismo medieval e a outras formas posteriores
de humanismo.
2.5. Francisco Patrizi
Francisco Patrizi viveu no século XVI (1592-1597), mas
trilhou o mesmo caminho de Ficino e de Pico. Ele representa um
exemplo paradigmático da tenaz manutenção da mentalidade
hermética, como já ilustramos. Ele se ocupou a fundo do Corpus
Hermeticum, bem como dos Oráculos caldeus. A sua obra teórica
mais notável é a Nova filosofia universal.
Seguindo Hermes Trismegisto (que ele considerava não apenas
contemporâneo de Moisés, mas até mesmo paulo senior), Patrizi
tinha a convicção de que, sem filosofia, não era possível ser
religioso nem piedoso. Mas a deformação da filosofia de Aristóte-
les, que negava a providência e a onipotência de Deus, mostrava-
se gravemente prejudicial. Assim, era necessário opor a Aristóte-
84 Humanismo e Renascimento
les a filosofia platônica (Platão, Plotino, Proclo e os Padres), mas
especialmente a filosofia hermética (para ele, um tratado de Her-
mes valia mais do que todos os livros de Aristóteles).
Patrizi chegou ao ponto de conclamar o Papa a promover O
ensino das doutrinas do Corpus Hermeticum, que, na sua opinião,
seria de enorme importância, podendo ter o efeito de fazer os
protestantes alemães retornarem à fé católica. E chegou até
mesmo a recomendar ao pontífice a introdução do hermetismo no
programa de estudos dos jesuítas. Em suma, para Patrizi,o Corpus
Hermeticum teria podido ser ótimo instrumento a serviço da
restauração do catolicismo.
A Inquisição, como é óbvio, condenou como não-ortodoxas
algumas das idéias de Patrizi, que aceitou submeter-se a juízo.
A tentativa de fazer a Igreja acolher oficialmente Hermes Tris-
megisto faliu. Mas, como observa justamente Yates, as peripécias
de Patrizi mostram “a confusão mental difundida por volta de fins
do século XVI e como era difícil, até mesmo para um piedoso
platônico e católico, como Patrizi, perceber os limites de sua
própria posição teológica”.
3. O aristotelismo renascentista
3.1. Os problemas da tradição aristotélica
no período do humanismo
Como já destacamos nas páginas anteriores, era grande a
importância atribuída pelos estudiosos ao aristotelismo na Itália,
nos séculos XV e XVI. Mas ficou claro que o quadro do pensamento
renascentista fica incompleto e falso se não levarmos em conta as
contribuições a eles feitas. Assim, procuraremos agora completar
o que já havíamos antecipado. .
Deve-se recordar que as interpretações básicas do aristote-
lismo eram três. a) A primeira é a alexandrina, que remontava ao
antigo comentador de Aristóteles Alexandre de Afrodísia. Alexan-
dre sustentava que o homem possui o intelecto potencial, mas que
ointelecto agente é a própria Causa suprema (Deus), que, iluminan-
do o intelecto potencial, torna possível o conhecimento. Assim sen-
do, não há lugar para uma alma imortal, pois ela deveria coincidir
com o intelecto agente (as interpretações recentes levaram ao reco-
nhecimento da presença da idéia de certa forma de imortalidade
em Alexandre, mas uma imortalidade impessoal e inteiramente a-
típica; de qualquer modo, uma imortalidade impessoal não podia
interessar os cristãos. b) No século XI, Averróis submeteu as obras
aristotélicas a poderosos comentários, quetiveram ampla repercus-
O aristotelismo renascentista 85
são. A característica de sua interpretação era a tese segundo a qual
haveria um intelecto único e separado para todos os homens. Caía
assim por terra qualquer possibilidade de se falar de imortalidade
do homem, visto que só era imortal o Intelecto único. Também era
típica dessa corrente a chamada doutrina da “dupla verdade”, que
distinguia as verdades acessíveis à força da razão das verdades
acessíveis unicamente à fé (mais adiante, voltaremos a falar do
sentido dessa doutrina). c) Por fim, havia a interpretação tomista,
que tentara uma grandiosa conciliação entre o verbo aristotélico e
a doutrina cristã, como vimos no volume anterior.
Ora, na época do Renascimento todas essas interpretações
foram repropostas. Entretanto, hoje, tende-se a contestar a vali-
dade desse esquema cômodo de distinção, destacando que a reali-
dade era bastante complexa, não havendo nenhum aristotélico que
se possa considerar seguidor de uma dessas tendências em todos
os pontos, e que, a propósito de cada problema em particular, o
alinhamento dos vários pensadores muda muito, apresentando
grande variedade de combinações.
Trata-se, portanto, de divisão a ser usada com cautela.
No que se refere às temáticas, devemos recordar que, em
virtude da estrutura do ensino universitário, os aristotélicos da
época renascentista ocuparam-se sobretudo dos problemas lógico-
gnosiológicos e dos problemas físicos (a política, a ética e a poética
ficavam a cargo dos humanistas filólogos).
Já no que diz respeito às fontes do conhecimento, os aristo-
télicos distinguiam: a) a autoridade de Aristóteles; b) o raciocínio
aplicado aos fatos; c) a experiência direta. Mas, pouco a pouco,
começaram a privilegiar esta última, tanto que os estudiosos
consideravam que (pelo menos tendencialmente) eles podem ser
definidos como “empiristas”.
Ademais, também aprofundaram os problemas lógicos e
metodológicos com discussões de alto nível. A escola de Pádua
chegou até mesmo a cunhar a expressão “método científico”.
Todos os conceitos da física aristotélica foram discutidos
analiticamente. Mas, nesse terreno, aestrutura geral da cosmologia
do Estagirita que distinguia o mundo celeste, feito de éter
incorruptivel, do terrestre constituído de elementos corruptíveis,
não permitia progressos notáveis, impondo uma rigorosa separação
entre a astronomia e a física. Ademais, a teoria dos quatro
elementos qualitativamente determinados e a teoria das “formas”
tornavam impossível a quantificação da física e a aplicação da
matemática. .
Era muito comentado e difundido, em particular, o tratado
De anima, com sua doutrina sobre a alma (que, no esquema
aristotélico, entrava no âmbito da problemática da “física”, pelo
menos em sua parte fundamental).
Pedro Pomponazzi, chamado Peretto Mantovano (1462-1 525), foi o
mais insigne dos aristotélicos renascentistas, conhecido sobretudo
por sua problemática da alma.
Pedro Pomponazzi 91
ser mais animal do que homem e mais insensato do que sensato e
consciente.”
Também foi muito apreciado o De incantationibus (O livro
dos encantamentos), no qual Pomponazzi responde à questão de se
existem causas sobrenaturais na produção dos fenômenos natu-
rais, mostrando que todos os acontecimentos, sem exceção, podem
ser explicados com o princípio da naturalidade, inclusive tudo o
que ocorre na história dos homens. No passado, exagerou-se muito
o valor da formulação desse “princípio da naturalidade” e sua
respectiva aplicação, afirmando-se que Pomponazzi “pressentia o
novo e era muito superior aos seus tempos”. Mas a crítica histori-
camente mais consciente chamou a atenção para o fato de que
Pomponazzi, no caso, realiza uma operação que expressamente
declara circunscrita ao ponto de vista aristotélico, além de afirmar
ter consciência da existência de uma verdade diferente, que é
precisamente a verdade da fé. O que redimensiona notavelmente
o sentido do seu discurso.
Análoga é a posição do De fato, de libero arbitrio et de
praedestinatione, no qual sustenta que, do ponto de vista natural,
não há soluções certas para a questão do destino, mas que também
se mostram contraditórias a propósito as soluções dos teólo-
gos. Também nesse caso, para se ter uma resposta segura, é pre-
ciso confiar na fé e na revelação. Entretanto, como filósofo natu-
ral, ele prefere a solução dos estóicos, que admitiam o destino
como soberano.
É nessa obra que se encontra a bela imagem de Pomponazzi,
que identifica o esforço do filósofo ao de Prometeu: “Prometeu é
verdadeiramente o filósofo que, querendo conhecer os mistérios de
Deus, é roído por perpétuas preocupações e mistérios: não tem
sede, não tem fome, não dorme, não come, não evacua, é ironizado
por todos, é considerado tolo e sacrílego, é perseguido pelos inqui-
sidores, é um curioso espetáculo para o vulgo. Esse é o ganho dos
filósofos, essa é a sua recompensa” (tradução de T. Gregory).
Mas a modernidade de Pomponazzi, como aristotélico, está
precisamente no fato de começar a preferir a experiência à auto-
ridade dos escritos de Aristóteles, quando estes são contrários
àquela. Em uma lição de 1523 (apontada de modo especial por B.
Nardi), comentando uma passagem dos Meteorológicos de Aristó-
teles sobre a habitabilidade da terra na zona tórrida (entre o
trópico de Câncer e o trópico de Capricórnio), depois de expor a
opinião do próprio Aristóteles e a contida no respectivo comentário
de Averróis, bem como depois de expor de forma silogística as
demonstrações sobre a inabitabilidade, de repente ele afirma
poder desmentir os silogismos apodíticos de Aristóteles e Averróis
92 Humanismo e Renascimento
com a carta de um amigo do Vêneto, que havia atravessado a zona
tórrida, encontrando-a habitada.
E agora?
A conclusão de Pomponazzi é a seguinte: “Oportet stare
sensui.”? E a experiência, e não Aristóteles, que tem sempre razão.
Depois de Pomponazzi, destacaram-se ainda entre os aris-
totélicos os nomes de César Cesalpino, Jacopo Zabarella, César
Cremonini e Júlio César Vanini.
Já dissemos que têm razão todos os que consideram que o
aristotelismo renascentista merece atenção maior do que a que
desfrutou no passado, pois constitui um componente indispensável
para se compreender a época. Por si mesmo, isso é certamente
exato. Entretanto, no momento, ainda estamos longe do conheci-
mento preciso das relações existentes entre os dois ramos do
aristotelismo: o ramo revivido pelos humanistas literatos, que é o
Aristóteles ético-político, e o ramo constituído pelo Aristóteles
lógico-naturalista das universidades.
De qualquer modo, está claro que o tom geral da época foi
dado predominantemente pelo platonismo, ao passo que, na dia-
lética geral do pensamento renascentista, o aristotelismo exerce
predominantemente a função de antítese. Os próprios filósofos do
século XVI, que estudaremos adiante e que se voltaram para a
natureza em primeira instância, não apenas não encontravam
qualquer conforto nas páginas de Aristóteles, como até encontra-
vam enfado: Telésio considerava Aristóteles ao mesmo tempo
muito pouco físico e muito pouco metafísico; Bruno o achava “um
miserando velho”, “abaixado, curvo, corcunda, ferido, inclinado
como Atlante, oprimido pelo peso do céu a ponto de não poder vê-
lo”; já os habitantes da Cidade do Sol, de Campanella, que
expressam as idéias do filósofo, “são inimigos de Aristóteles,
chamando-o de pedante”.
4. Renascença do ceticismo
4.1. Revivescência das filosofias helenísticas
no Renascimento
| As tradições predominantes no século XV eram as do plato-
nismo e do aristotelismo, como vimos, ao passo que o epicurismo e
o estoicismo constituíam apenas instâncias marginais, que trans-
parecem em alguns autores, sem, no entanto, imporem-se de modo
relevante. Muito maior, porém, foi a difusão que estes últimos
tiveram no século XVI, juntamente com o renascido ceticismo, na
formulação que lhe foi dada por Sexto Empírico (cf. Vol. I, pp. 3185).
Michel de Montaigne 93
O ceticismo conseguiu até criar uma verdadeira e peculiar
têmpera cultural, especialmente na França, encontrando a sua
expressão mais elevada em Montaigne.
Como ocorreu esse renascimento?
O primeiro a utilizar Sexto Empírico de modo sistemático foi
João Francisco Pico de Mirândola (1469-1533), neto do grande
Pico, em sua obra Exame das fatuidades das teorias dos pagãos e
da verdade da doutrina cristã (1520), na qual ele utiliza elementos
céticos para demonstrar a insuficiência das teorias filosóficas e,
portanto, da razão pura, concluindo que, para alcançar a verdade,
é preciso a fé. A João Francisco Pico liga-se Heinrich Cornelius (que
se fazia chamar Agrippa de Nettesheim, 1486-1535, conhecido
sobretudo como mago), na obra Incerteza e fatuidade das ciências
edas artes (escrita em 1526 e publicada em 1530), na qual sustenta
que não são as ciências e as artes humanas (que são refutadas com
argumentos extraídos de Sexto Empírico) que salvam o homem,
mas somente a fé.
Na França, foram publicadas sucessivamente nove versões
latinas de Sexto Empírico. Em 1562, Stephanus (Henri Estienne,
1522-1598) traduziu os Esboços pirronianos e, em 1569, Gentian
Hervet (1499-1584) publicou todas as obras de Sexto Empírito em
versão latina.
Nesse meio tempo, Justo Lipsio (Joost Lips, 1547-1606)
repropunha na Alemanha e na Bélgica o estoicismo, toman-
do por modelo sobretudo Sêneca e procurando conciliá-lo com
o cristianismo.
4.2. Michel de Montaigne e o ceticismo
como fundamento de sabedoria
No quadro que traçamos brevemente, insere-se também o
pensamento de Michel de Montaigne (1533-1592), autor dos En-
saios (1580 e 1588), que são obras-primas ainda hoje muito
consideradas. Também em Montaigne o ceticismo convive com
uma fé sincera. Isso surpreendeu muitos historiadores. Na reali-
dade, porém, sendo o ceticismo desconfiança na razão, ele não
coloca a fé em causa, pois esta situa-se num plano diferente, sendo
portanto estruturalmente inatacável pela Scepse. Montaigne chega
inclusive a escrever: “O ateísmo é(...) uma proposição quase contra
a natureza e monstruosa, difícil também e inapta para fixar-se no
espírito humano, por mais insolente e desregulado que ele possa
ser” (utilizamos aqui a tradução de F. Garavini, Adelphi, Milão).
Entretanto, a “naturalidade” do conhecimento de Deus depende
inteira e exclusivamente da fé. O cético, portanto, não pode ser
senão fideísta.
Michel de Montaigne (1533-1592) repropôs nos seus Ensaios um
pensamento de fundo ceticizante, rico em temáticas discutidas
pelas antigas filosofias helenistas, mas traduzidos em uma lin-
guagem muito moderna, fixada em páginas até hoje muito consi-
deradas.
Michel de Montaigne 95
Eis algumas significativas afirmações do nosso filósofo:
“Assim, julgo que, em uma coisa tão divina e elevada, que tanto
ultrapassa a inteligência humana, como é o caso da verdade com
a qual aprouve à bondade de Deus nos iluminar, é bastante
necessário que ele ainda nos dê a sua ajuda, com favor extraor-
dinário e privilegiado, para que possamos concebê-la e acolhê-laem
nós. E não creio que os meios puramente humanos sejam de algum
modo capazes disso, pois, se o fossem, tantas almas raras
e excelentes, tão abundantemente dotadas de forças naturais nos
séculos antigos, não teriam deixado de chegar a esse conhecimento
com a sua razão. Somente a fé abraça estreita e seguramente os
elevados mistérios de nossa religião.”
Mas o fideísmo de Montaigne não é o de místico. E o interesse
dos Ensaios volta-se predominantemente para o homem e não para
Deus. A antiga exortação contida na sentença inscrita no templo
de Delfos, “homem, conhece-te a ti mesmo”, apropriada por Só-
crates e por grande parte do pensamento antigo, torna-se para
Montaigne o programa do autêntico filosofar. Mas não só isso: os
filósofos antigos visavam o conhecimento do homem com o objetivo
de alcançar a felicidade — e esse objetivo também está no cen-
tro dos Ensaios de Montaigne. A dimensão mais autêntica da
filosofia é a da “sabedoria”, que ensina como devemos viver para
sermos felizes.
Mas como é que a razão cética, abraçada por Montaigne, pode
alcançar esses objetivos, aquela mesma razão cética que propõe
acima de todas as coisas a pergunta de advertência “o que sou eu?”
(que sais-je?). E
Sexto Empírico escrevia que os céticos conseguiram resolver
o problema da felicidade precisamente através da renúncia ao
conhecimento da verdade. A propósito disso, ele citava o conhecido
apólogo do pintor Apeles, que, não conseguindo pintar satisfato-
riamente a espuma sobre a boca de um cavalo, tomado de raiva,
lançou contra a pintura a esponja embebida em tintas. Então, a
esponja deixou na tela uma mancha que parecia espuma. E, da
mesma maneira que, com a renúncia, Apeles alcançou o seu ob-
jetivo, os céticos, com a renúncia a encontrar o verdadeiro (ou seja,
suspendendo o juízo), acabaram encontrando a trangiilidade.
A solução adotada por Montaigne inspira-se nessa colocação,
mas é muito mais articulada, rica em nuanças e sofisticada, com a
inclusão, também, de sugestões epicuréias e estóicas.
O homem é mísero? Pois bem, captemos o sentido dessa
miséria. É limitado? Captemos o sentido dessa limitação. É me-
díocre? Captemos o sentido dessa mediocridade. Mas, se com-
preendermos isso, compreenderemos também que a grandeza do
homem está precisamente na sua mediocridade.
100 O Renascimento e q religião
não tem necessidade de complicados silogismos, podendo ser al-
cançada em poucos livros, os Evangelhos e as Epístolas de são
Paulo. Escreve Erasmo: “Que outra coisa é a doutrina de Cristo,
que ele próprio denomina renascença, senão um retorno à natureza
bem criada?” Essa filosofia de Cristo, portanto, é uma “renascen-
ça”, que representa um “retorno à natureza bem criada”. E os
melhores livros dos pagãos contêm “um grande número de coisas
que concordam com a doutrina de Cristo”.
Para Erasmo, a grande reforma religiosa se resume a sacudir
dos ombros tudo aquilo que o poder eclesiástico e as disputas dos
escolásticos acrescentaram à simplicidade das verdades evangéli-
cas, confundindo-as e complicando-as. O caminho que Cristo
indicou para a salvação é o mais simples: fé sincera, caridade não
hipócrita e esperança que não se envergonha. Se tomarmos os
grandes santos como exemplo, veremos que eles não fizeram outra
coisa senão viver com liberdade de espírito a genuína doutrina
evangélica. E a mesma coisa pode ser encontrada nas origens no
monaquismo e na primitiva vida cristã.
Assim, é preciso retornar às origens. É nessa ótica de reto-
mada das fontes que se inserem a edição crítica e a tradução do
Novo Testamento (que Erasmo gostaria de ter visto nas mãos de
todos), além da edição dos antigos Padres: Cipriano, Amóbio,
Ireneu, Ambrósio, Agostinho e outros (nesse sentido, Erasmo pode
ser considerado o iniciador da patrologia). A reconstrução filológica
do texto e sua correta edição têm portanto um significado bem
preciso em Erasmo, um sentido que vai além da mera operação
técnica e erudita.
1.1.3. O conceito erasmiano de “loucura”
É no Elogio da loucura que encontramos o espírito filosófico
erasmiano em sua manifestação mais peculiar. Trata-se de uma
obra que se tornou muito famosa, estando entre as poucas obras
suas que ainda hoje se pode ler de bom grado.
O que é essa “loucura”?
Não é fácil identificá-la e defini-la, dado que Erasmo a
apresenta em uma extensa gama, que vai do extremo (negativo) em
que se manifesta a pior parte do homem ao extremo oposto, que
consiste na fé em Cristo, que é a loucura da Cruz (como o próprio
são Paulo a define). E, entre os dois extremos, Erasmo apresenta
toda uma gama de graus de “loucura”, num jogo muito hábil, por
vezes usando a ironia socrátrica, outras vezes gostosos paradoxos
e outras ainda uma crítica dilacerante e um indisfarçado desapon-
tamento (como quando denuncia a corrupção dos costumes da
Igreja da época). Às vezes, Erasmo denuncia a loucura com a
evidente intenção da condenação; outras vezes, como no caso da fé,
Erasmo: o pensador cristão 101
com a intenção evidente de exaltar o seu valor transcendental;
outras, ainda, simplesmente para mostrar a ilusão humana, aliás,
apresentando-a como elemento indispensável do viver. A “loucura”?
é como uma vassoura mágica, que varre tudo o que se antepõe à
compreensão das verdades mais profundas e severas da vida ou
que nos faz ver que às vezes, sob as vestes de um rei, nada mais há
do que um pobre mendigo ou o contrário, e que às vezes, sob a
máscara do poderoso, nada mais há do que um vil. A “loucura”
erasmiana arranca os véus, fazendo-nos ver a comédia da vida e a
verdadeira face daqueles que se escondem sob máscaras, mas, ao
mesmo tempo, mostra o sentido do palco, das máscaras e dos
atores, procurando de certa forma fazer com que se aceitem todas
as coisas assim como elas são. Assim, a “loucura” erasmiana é
reveladora de “verdade”.
Eis uma passagem estupenda de Erasmo: “Suponhamos o
caso de que alguém quisesse arrancar as máscaras dos atores que
desempenham o seu papel num palco, revelando aos espectadores
as suas verdadeiras e reais faces. Não estará essa pessoa estra-
gando toda a ficção cênica, merecendo ser preso como louco furioso
e expulso do teatro a pedradas? De repente, o espetáculo assumirá
uma nova fisionomia: antes havia uma mulher, agora há um
homem; antes, um velho, agora um jovem; quem era rei, torna-se
de repente um canalha; quem era um deus, na mesma hora revela-
se um homúnculo. Cortar a ilusão significa mandar pelos ares todo
o drama, pois precisamente o engano da ficção cênica é que encanta
os olhos do espectador. Pois bem, o que é a vida do homem senão
uma comédia, na qual cada qual está coberto por sua máscara
particular e cada qual recita o seu papel, até que o diretor o afaste
de cena? O diretor sempre confia ao mesmo ator ora a função de
vestir a púrpura real, ora os farrapos de um miserável escravo.
Assim, sobre o palco, tudo é postiço, mas a comédia da vida não se
desenvolve de outro modo.”
O ponto culminante da “loucura” erasmiana, como dizíamos,
está na fé: “Por fim, está claro que os loucos mais frenéticos são
precisamente aqueles que são finalmente aferrados por inteiro
pelo ardor da piedade cristã: sinal manifesto disso é a dissipação
que fazem de seus bens, o desconhecimento das ofensas, a resig-
nação aos enganos, a não distinção entre amigos e inimigos (...).
Ora, o que é isso senão loucura?” Ademais, o cume dos cumes da
“loucura” é a felicidade celeste, que é própria da outra vida, mas da
qual, às vezes, é dado aos piedosos perceberem, já aqui nesta terra,
o sabor e o perfume, pelo menos por um breve momento. E, ao
readquirirem consciência, essas pessoas se convencem de um fato,
ou seja, que tocaram “o ponto culminante da felicidade durante
todo o tempo que durou a sua loucura. Por isso, lamentam terem
Erasmo de Roterdão (1466-1536) foi um dos humanistas mais
cultos e refinados. O seu pensamento gira sobretudo em torno de
temáticas cristãs. A sua obra mais conhecida é o Elogio da loucura,
considerada (em vários níveis e com várias acepções) como uma
dimensão essencial do viver humano.
Lutero: rejeição da filosofia 103
sido curados, não querendo outra coisa senão serem loucos desse
modo por toda a eternidade”.
A rigidez com que Erasmo criticou papas, prelados, ecle-
siásticos e monges do seu tempo e certos costumes dominantes na
Igreja, bem como certas afirmações doutrinárias que fez, valeram-
lhe a aversão dos católicos, que, mais tarde, colocaram no Index
algumas de suas obras e recomendaram cautela crítica em relação
a outras. Já Lutero enfureceu-se com a polêmica sobre o livre-
arbítrio, definindo Erasmo, com insólita violência, como ridículo,
tolo, sacrílego, tagarela, sofista e ignorante, qualificando sua
doutrina como um misto de “cola e lama”, “lixo e excrementos”. Mas
Lutero, como veremoslogo, não admitia oposições. Com efeito, para
alcançar objetivos em parte idênticos, esses dois homenstrilhavam
caminhos de direções opostas.
1.2. Martinho Lutero
1.2.1. Lutero e suas relações com a filosofia
e com o pensamento humanista-renascentista
Já se disse muito bem que “ubi Erasmus innuit ibi Luterus
irruit”. Com efeito, Lutero (1483-1546) irrompeu na vida espiritual
e política da época como autêntico furacão, que envolveu toda a
Europa e cujo resultado foi a dolorosa ruptura da unidade do
mundo cristão. Do ponto de vista da unidade da fé, a Idade Média
termina com Lutero, iniciando-se com ele uma importante fase do
mundo moderno.
Dentre os numerosos escritos de Lutero, podemos recordar:
o Comentário à epístola aos Romanos (515-1516), as noventa e
cinco Teses sobre as indulgências (1517), as vinte e oito teses
relativas à Disputa de Heidelberg (1518) e os grandes escritos de
1520, que constituem verdadeiros manifestos da Reforma, Apelo à
nobreza cristã de nacionalidade alemã pela reforma do culto
cristão, O cativeiro babilônio da Igreja e A liberdade do cristão,
além de o Servo arbítrio, contra Erasmo, em 1525.
Do ponto de vista histórico, o papel de Lutero é da maior
importância, pois com sua Reforma religiosa logo se entrelaçaram
elementos sociais e políticos que mudaram a fisionomia da Europa,
sendo também de importância primordial em termos de história
das religiões e do pensamento teológico. Entretanto, Lutero tam-
bém merece um lugar em termos de história do pensamento
filosófico, seja porque verbalizou a instância de renovação que os
filósofos da época fizeram valer, seja por algumas valências teó-
ricas (sobretudo de caráter antropológico e teológico) intrínsecas ao
seu pensamento religioso, seja pelas consequências que o novo tipo
de religiosidade por ele suscitado exerceu sobre os pensadores da
104 O Renascimento e a religião
época (por exemplo, sobre Hegel e Kierkegaard) e da época con-
temporânea (por exemplo, certas correntes do existencialismo e a
nova teologia).
A posição de Lutero em relação aos filósofos é totalmente
negativa: a desconfiança nas possibilidades de a natureza humana
salvar-se por si só, sem a graça divina (como logo veremos), iria
levar Lutero a não dar qualquer valor a uma investigação racional
autônoma, a qualquer tentativa de examinar os problemas de fundo
do homem com base no logos, na pura razão. Para ele, a filosofiaera
vá sofisticação e, pior ainda, fruto daquela absurda e abominável
soberba própria do homem que quer basear-se em suas próprias
forças e não na única coisa que salva, isto é, a fé. Nessa ótica,
Aristóteles parece-lhe como que a expressão de certa forma para-
digmática dessa soberba humana. (O único filósofo que não é
inteiramente envolvido nessa condenação parece ser Ockham;
mas, precisamente ao separar e contrapor fé e religião, fôra
Ockham que, sob certos aspectos, abrira um dos caminhos que
iriam levar à posição de Lutero).
O texto seguinte, contra Aristóteles (e contra as univer-
sidades que, como sabemos, baseavam-se sobretudo na leitura e
nos comentários a Aristóteles), é bastante paradigmático: “As
universidades também precisam de uma boa e radical reforma.
Tenho que dizê-lo — amargure-se quem quiser. Tudo aquilo que o
Papa ordenou e instituiu dirige-se verdadeiramente para aumen-
tar o pecado e o erro. O que são as universidades? Pelo menos até
agora, foram instituídas para ser apenas, como diz o livro dos
Macabeus, 'ginásios de efebos e da glória grega”, nos quais se leva
uma vida libertina, pouco se estuda a Sagrada Escritura e a fé
cristã e reina apenas o cego e idólatra mestre Aristóteles, até
mesmo acima de Cristo. O meu conselho seria o de que os livros de
Aristóteles Physica, Metaphysica, De anima e Ethica, que até
agora são reputados como os melhores, fossem abolidos jun-
tamente com todos os outros que falam de coisas naturais, já que
não é possível aprender nada das coisas naturais, nem das espi-
rituais, nesses livros: ademais, até agora, ninguém conseguiu
compreender a sua opinião; muitas gerações e nobres almas têm
sido inutilmente oprimidas com vão trabalho, estudo e despesas.
Posso até dizer que um paneleiro tem maior conhecimento das
coisas naturais do que aquilo que está escrito em livros de tal
feitura. Dói-me o coração saber que aquele maldito, presunçoso e
astuto idólatra tenha desencaminhado e enganado com suas falsas
palavras tantos entre os melhores cristãos: nele, Deus nos enviou
uma praga para nos punir de nossos pecados. Com efeito, aquele
desgraçado ensina em seu melhor livro, De anima, que a alma
morre com o corpo, embora muitos tenham querido salvá-lo, com
Lutero: crítica da filosofia 105
inúteis palavras, como se não possuíssemos a Sagrada Escritura,
que nos ensina abundantemente todas as coisas das quais Áris-
tóteles nunca sequer ouviu falar. E, no entanto, aquele falecido
idólatra venceu, expulsou e quase espezinhou o livro do Deus vivo,
detal modo que, pensando em semelhantes desventuras, não posso
acreditar em outra coisa senão em que o espírito do mal tenha
cogitado do estudo com esse propósito. O mesmo vale também para
o livro da Ethica, mais torpe do que qualquer outro, que se opõe
inteiramente à graça divina e às virtudes cristãs e, no entanto, é
tão considerado. O, longe, mas bem longe dos cristãos tais livros!
Que ninguém me conteste que falo demais ou me censure por nada
saber. Caro amigo, sei muito bem o que estou dizendo! Conheço
Aristóteles tão bem quanto tu e teus semelhantes, pois o li e ouvi
com maior atenção do que a santo Tomás ou Escoto, do que posso
muito bem me vangloriar, sem presunção, e até, se necessário,
demonstrá-lo. Não me importa que, durante tantas centenas de
anos, tantos intelectos sublimes se tenham debruçado sobre ele.
Tais argumentos não me preocupam, porque está claro que, em-
bora eles tenham feito alguma coisa, no entanto, tantos erros
permaneceram por tantos anos no mundo e nas universidades”
(trecho citado de Martinho Lutero, Scritti politici, org. por G.
Panzieri Saija, introdução de L. Firpo, UTET, Turim).
Mas vejamos brevemente a posição de Lutero no âmbito da
época renascentista para depois examinar os núcleos centrais do
seu pensamento religioso-teológico.
As relações de Lutero com o movimento humanista já estão
bastante claras (e, em parte, já as antecipamos com algumas
observações):
a) Porumlado, ele verbaliza com voz potente e até prepotente
aquele desejo de renovação religiosa, aquele anseio de renasci-
mento para uma nova vida e aquela necessidade de regeneração
que constituem as próprias raízes do Renascimento. E, desse ponto
de vista, a Reforma protestante pode ser vista como um dos
resultados desse grande e multiforme movimento espiritual:
b) Ademais, Lutero retoma e leva às últimas consequências
o grande princípio do “retorno às origens”, ou seja, do retorno às
fontes e aos princípios, que os humanistas haviam procurado
realizar através do retorno aos clássicos, que Ficino e Pico preten-
diam através do retorno aos prisci theologi (às origens da revelação
sapiencial: Hermes, Orfeu, Zoroastro, a cabala) e que Erasmo já
havia claramente apontado no Evangelho e no pensamento das
origens cristãs e dos Padres da Igreja. Mas o retorno ao Evangelho,
que Erasmo havia procurado fazer mantendo equilíbrio e medida,
em Lutero torna-se revolução e subversão: tudo aquilo que a
tradição cristã havia contruído ao longo dos séculos parece para
no O Renascimento e religião
crepúsculo da Idade Média, são particularmente significati
nesse sentido. Falando sobre esses precedentes, escreve J. De.
lumeau: Rejeitando os sacramentos, Wyclif rejeita, ao mesmo
tempo, a Igreja hierárquica. Os padres (que devem ser todos iguais)
não passam para ele de dispenseiros da Palavra, mas é somente
Deus que opera tudo em nós, fazendo-nos descobrir a doutrina na
Bíblia. Alguns anos mais tarde, Huss ensina que um padre em
estado de pecado mortal não é mais um padre autêntico, o que
jaml em oaso Para osbispose parao Papa” (in Le Riforma, Mursia,
Assim, não era preciso muito para extrair daí as conclusões
extremas, como fez justamente Lutero, isto é, a idéia de que um
cristão isolado pode ter razão contra um concílio inteiro, se estiver
iluminado e inspirado diretamente por Deus, não sendo portanto
necessária uma casta sacerdotal, visto que cada cristão é sacerdote
em relação à comunidade em que vive. Todo homem pode pregar a
palavra de Deus. Assim, é eliminada a distinção entre “clero” e
laicato”, embora não seja eliminado o ministério pastoral en-
quanto tal, indispensável em uma sociedade organizada.
Mas, nesse aspecto, as coisas logo assumiram uma conotação
francamente negativa, A liberdade de interpretação abriu cami-
nho para uma série de perspectivas não desejadas por Lutero, que.
pouco a pouco, foi se tornando dogmático e intransigente, pre-
tendendo, em certo sentido, ser dotado daquela “infalibilidade” que
havia contestado ao Papa (não por acaso ele foi chamado de “o Papa
de Wittenberg”). E pior ainda aconteceu quando, tendo perdido
toda confiança no povo cristão organizado em bases religiosas, em
virtude dos infinitos abusos, Lutero entregou aos príncipes a Igreja
por ele reformada: nasceu assim a “Igreja de Estado”, que é a
antítese daquela Igreja à qual a Reforma deveria levar.
- Portanto, aconteceuque, emboratenha afirmad:
q liberadade da fé, Lutero depois se contradisse do demente
flagrante tanto nas afirmações como nos fatos. Em 1523, ele havia
escrito (extraímos os textos do livro de Delumeau já citado):
Quando se trata da fé, trata-se de uma coisa livre, à qual não se
pode “obrigar ninguém. Trata-se de uma operação de Deus no
espírito, excluindo-se portanto que um poder externo ao espírito
possa obtê-la pela força.” Em janeiro de 1525, reafirmava: “Quanto
pos heréticos, aos falsos profetas edoutores, não devemos erradicá-
j nem exterminá-los. Cristo diz claramente que devemos deixá-
os viver. Mas já no fim desse mesmo ano Lutero escrevia: “Os
príncipes devem reprimir os delitos públicos, os perjúrios e as
blasfêmias manifestadas em nome de Deus”, embora acrescentas-
se que “não devem, nisso, exercer nenhuma constrição sobre as
pessoas, deixando-as livres (...) para maldizer Deus em segredo ou
Lutero: pessimismo e irracionalismo 11
não maldizê-lo”. E, pouco depois, escrevia ao Eleitor da Saxônia:
“Em uma determinada localidade, não deve haver senão um só tipo
de pregação.” Assim, pouco a pouco, Lutero induziu os príncipes a
controlarem a vida religiosa, chegando mesmo a exortá-los a
ameaçar e punir todos aqueles que desleixavam as práticas reli-
giosas. Desse modo, o destino espiritual do indivíduo tornava-se
patrimônio da autoridade política, nascendo assim o princípio
cuius regio, huius religio.
1.2.3. Conotações pessimistas e irracionalistas
do pensamento de Lutero
Os componentes pessimistas e irracionalistas do pensa-
mento de Lutero estão evidentes em todas as suas obras, mas de
modo especial em O servo arbítrio, escrito contra Erasmo. Nesse
escrito, aquela “dignidade do homem” tão cara aos humanistas
italianos e da qual Erasmo havia sido defensor em ampla medida
é inteiramente subvertida, apresentando-se com o sinal oposto.
O homem só pode se salvar se compreender que não pode em
absoluto ser o artífice de seu próprio destino: com efeito, sua
salvação não depende dele, mas de Deus; enquanto estivertolamente
convencido de que pode fazê-lo por si próprio, estará se iludindo,
nada mais fazendo do que pecar. O homem precisa aprender a
“desesperançar-se desimesmo” para abrir caminho para asalvação,
já que, desesperançando-se de si mesmo, entrega-se a Deus e tudo
espera da vontade de Deus —e, desse modo, aproxima-se da graça
e da salvação.
Considerado em si mesmo, ou seja, sem o Espírito de Deus,
“o reino do Diabo”, é “um caos confuso de
o gênero humano é
trevas”,
O arbítrio humano é sempre e somente “escravo”: de Deus ou
do Demônio. Lutero compara a vontade humana a um cavalo que
ge encontra entre dois cavaleiros, Deus e o Demônio: tendo Deus
sobre o dorso, quer andar e vai aonde Deus quiser; tendo no dorso
o Demônio, anda e vai aonde quer o Demônio. Ela não possui sequer
a faculdade de escolher entre os dois cavaleiros: são eles que
disputam entre si o direito de cavalgá-la. E, a quem acha “injusta”
essa sorte do homem, que desse modo fica predestinado, Lutero
responde com uma doutrina extraída do voluntarismo ocamista:
Deus é Deus precisamente porque não precisa prestar contas
daquilo que quer e faz, estando bem acima daquilo que parece justo
ou injusto para o direito humano.
Desse modo, natureza e graça ficam radicalmente separadas,
assim como razão e fé. Quando age de acordo com a sua natureza,
o homem outra coisa não pode fazer senão pecar; e, quando pensa
de acordo com o seu intelecto, outra coisa não pode fazer senão
errar. As virtudes e o pensamento dos antigos são vícios e erros.
n2 O Renascimento e religião
Nenhum esforço humano pode salvar o homem, mas somente
a graça e a misericórdia de Deus. Essa é a única certeza que,
segundo Lutero, nos dá a paz.
1.3. Ulrich Zuínglio, o reformador de Zurique
Ulrich Zuínglio (1484-1531) foi inicialmente discípulo de
Erasmo. E, apesar de um rompimento formal que teve com ele,
permaneceu profundamente ligado à mentalidade humanista.
Aprendeu o grego e o hebraico e estudou não somente a Escritura,
mas também os pensadores antigos, como Platão e Aristóteles,
Cícero e Sêneca, Pelo menos no início de sua evolução espiritual,
compartilhou a convicção de Ficino e Pico sobre a revelação
estendida universalmente, mesmo fora da Bíblia.
Em 1519, começou a sua atividade de pregador luterano na
Suíça. Zuínglio era ativo defensor das teses fundamentais de
Lutero, particularmente das seguintes: a) a Escritura é a única
fonte de verdade; b) o Papa e os concílios não possuem uma
autoridade que vá além da autoridade das Escrituras; c) a salvação
ocorre pela fé e não pelas obras; d) o homem é predestinado.
Separavam Zuínglio de Lutero, além de algumas idéias
teológicas (em particular sobre os sacramentos, aos quais ele dava
um valor quase que simbólico), também a cultura humanista, com
fortes elementos de racionalismo, e um marcado nacionalismo
helvético (que, inconscientemente, o levou a privilegiar os habitan-
tes de Zurique, como se eles fossem os eleitos por excelência).
Para dar uma idéia concreta da derivação da doutrina
zuingliana em sentido humanista-filosófico, escolhemos dois pon-
tos muito importantes: a questão do pecado e da conversão e a
retomada de temáticas ontológicas de caráter panteísta.
No que se refere ao pecado, Zuínglio reafirma que ele tem a
sua raiz noamor por si próprio (egoísmo). Tudo aquilo que o homem
faz enquanto homem é determinado por esse amor por si próprio,
sendo, portanto, pecado. A conversão é uma “iluminação da men-
te”. Eis as palavras precisas de Zuínglio: “Os que têm confiança em
Cristo tornaram-se homens novos. De que modo? Talvez deixando
o antigo corpo para assumir um novo? Certamente que não: o velho
corpo permanece. Assim, permanece também a doença? Permanece.
O que é então renovado no homem? A mente. E de que modo? Deste
modo: antes, ela era ignara de Deus e, onde há ignorância de Deus,
nada mais existe que carne, pecado, estima por si próprio; depois
de-reconhecer a Deus, o homem compreende-se verdadeiramente
asi mesmo, interna e exatamente. E, depois de se ter conhecido, se
despreza. Então, ocorre que passa a reputar como não tendo
nenhum valortodas as suas obras, inclusive aquelas que costumava
Zuínglio e Calvino 113
considerar boas até aquele momento. Assim, portanto, quando a
mente humana reconhece a Deus através da iluminação da graça
celeste, o homem torna-se novo” (tradução de C. Gallicet Calvetti).
A ênfase na iluminação da mente mostra com bastante evidência
atentativa de recuperação das faculdades racionais do homem (nos
precisos limites que indicamos).
No que se refere ao segundo ponto, é interessante destacar
que Deus volta a ser concebido em sentido ontológico como Aquele-
que-é por sua própria natureza e, portanto, como fonte daquilo que
existe. Mas, para Zuínglio, o ser das coisas nada mais é do que o ser
de Deus, dado que Deus tirou o ser das coisas (quando as criou) de
sua própria essência. Por isso, diz Zuínglio: (...)pois o ser das coisas
não deriva de Deus como se o seu existir e a sua essência fossem
diferentes dos de Deus, daí decorre que, no que se refere à essência
eâ existência, não há nada que não seja divindade: esta, com efeito,
é o ser de todas as coisas.”
Para Zuínglio, a predestinação se insere em um contexto
determinista, sendo considerada um dos aspectos da providência.
Há um sinal seguro para reconhecer os eleitos, sinal que, precisa-
mente, consiste em ter fé. Enquanto eleitos, os fiéis são todos
iguais. A comunidade dos fiéis se constitui também como comuni-
dade política. Assim, a Reforma religiosa desembocava em uma
concepção teocrática, sobre a qual pesavam ambigtiidades de
diversos tipos.
Zuínglio morreu em 1531, combatendo contra as tropas dos
cantões católicos. A ira de Lutero contra ele, que começou tão logo
Zuínglio deu sinais de autonomia, não cessou nem mesmo com a
sua morte, que ele assim comentou: “Zuínglio teve o fim de
assassino (...); ameaçou com a espada e teve a sorte que merecia.”
Lutero havia afirmado solenemente (com as palavras do Evangelho)
que “quem usar a espada, perecerá com a espada”, pois a espada
não deveria ser usada em defesa da religião. Mas já em 1525 ele
havia exortado Filipe de Hessen a reprimir com sangue os campo-
neses revoltados sob a liderança de Thomas Miúntzer, que fôra
convertido por ele e nomeado pastor de uma localidade da Saxônia.
Aespiral da violência já se tornara incontível: o germe das guerras
religiosas estava se difundindo fatalmente e iria se tornar uma das
maiores calamidades da Europa moderna.
1.4. Calvino e a reforma de Genebra
Jean Cauvin nasceu em Noyon, na França, em 1509, for-
mando-se sobretudo em Paris, onde sofreu especialmente as in-
fluências humanistas do cfreulo de Jacques Lefevre d'Etaples
n4 O Renascimento e religião
ulensis, 1455-1536). O seu destino, porém, esteve
Ed à dado de "Genebra, onde atuou sobretudo entre 1541
e 1564, ano de sua morte, e onde soube realizar um governo teo.
crático inspirado na Reforma, muito rígido tanto em re ação à
vida religiosa e moral dos cidadãos como, sobretudo, em relação
es. o
cos isso já foi definido como o mais dinâmico dentre
todos os tipos de protestantismo. Mais pessimista que Lutero à
respeito do homem, Calvino foi mais otimista que elea respeito « e
Deus. Enquanto, para Lutero,o texto básico erao de Mateus 9,2 (Cos
teus pecados te são perdoados”), já para Calvino, ao contrário, era
o da Epístola aos Romanos 8,81: “Se Deus está conosco, quem
ra nós?”
estará E Calvino se convenceu de que Deus estava com ele ao
construir a “Cidade dos eleitos” na terra, que foi Genebra, o novo
Israel de Deus. Escreve R. H. Bainton (in La Riforma protestante,
Einaudi, Turim): “Para Calvino, a doutrina da eleição era um
indizível conforto”, porque liberta o homem de todas as angústias
e preocupações, “de modo que possa consagrar toda a sua energia
ao serviço indefectível de Deus soberano. Assim, o calvinismo
educou uma raça de heróis.” E eis como Bainton resume o fim dos
calvinistas: “A sua tarefa era a de instaurar uma teocracia, isto é,
uma república dos santos, uma coletividade em que cada membro
não tivesse outro pensamento além da glória de Deus. Não era uma
coletividade governada pela Igreja ou pelo clero, nem uma goma
nidade de tipo bíblico em sentido estrito, porque Deus é maior do
que qualquer livro, mesmo tratando-se do livro que contém a sua
palavra. À coletividade dos santos deveria se distinguir por aquele
paralelismo entre Igreja e Estado que havia sido o ideal da Idade
Média e de Lutero, mas que nunca se concretizara e não podia se
concretizar senão em uma coletividade seletíssima (como ele havia
tentado formar em Genebra), na qual o clero e o laicato, o conselho
comunitário e os ministros de Deus fossem todos, igualmente,
inspirados pelo espírito divino. Calvino aproximou-se da concre-
tização desse ideal mais do que qualquer outro expoente religioso
do século XVI” o
A doutrina de Calvino encontra-se sobretudo nalnstituição
da religião cristã, da qual publicou numerosas edições a partir de
1536, em latim e em francês. o .
Como Lutero, Calvino tinha a convicção de que à salvação
está somente na Palavra de Deus, revelada na Sagrada Escritura.
Qualquer representação de Deus que não derive da Bíblia, mas sim
da sabedoria humana, é um vão produto de fantasia, um mero
ídolo. A inteligência e a vontade humana foram irreparavelmente
comprometidas pelo pecado de Adão, de modo que a inteligência
Zuínglio e Calvino 15
deforma o verdadeiro e a vontade tende para o mal. Mais precisa-
mente, explica Calvino, o pecado original reduziu e enfraque-
ceu (ainda que não tenha retirado inteiramente) os dons na-
turais do homem, enquanto eliminava completamente os
dons sobrenaturais.
Também como Lutero, Calvino insiste no “servo arbítrio”,
apresentando a obra da salvação, que ocorre unicamente pela fé,
como obra do poder de Deus. Se nós pudéssemos realizar atémesmo
a menor ação por nós mesmos, por meio do nosso livre-arbítrio,
então Deus não seria plenamente o nosso Criador.
Mas, bem mais que Lutero, Calvino insiste na predestinação
e amplia o sentido da onipotência do querer divino a ponto de
subordinar quase inteiramente a ele os quereres e as decisões do
homem. Ele substitui o determinismo de tipo estóico, que é de
caráter naturalista e panteísta, por uma forma de determinismo
teísta e transcendentalista tão extrema quanto aquela.
Assim, “providência” e “predestinação” constituem os dois
conceitos cardeais do calvinismo.
Em certo sentido, a Providência é o prosseguimento do ato
de criação e sua ação se estende a todos, não só no geral, mas
também no particular, sem qualquer limite: “Deus €...), pelo seu
conselho secreto, governa totalmente todo o real, a tal ponto que
nada acontece sem que ele próprio o tenha determinado, em con-
formidade com a sua sabedoria e o seu querer.” Desse modo,
Calvino leva o seu determinismo teológico às consequências mais
extremas: “Todas as criaturas, inferiores e superiores, estão de tal
modo postas a seu serviço que ele as utiliza para o uso que quiser.”
E, ademais, ainda explicita: “Ele não tem em seu poder apenas os
acontecimentos naturais, mas também governa o coração dos
homens, volta arbitrariamente suas vontades para cá e para lá e
guia de tal modo as suas ações que eles só podem realizar aquilo que
ele decretou” (tradução de C. Gallicet Calvetti).
Jáa predestinação é “o eterno conselho de Deus, pelo qual ele
determinou aquilo que queria fazer de cada homem. Com efeito,
Deus nãoos criou a todos em iguais condições, mas ordena uns para
a vida eterna e outros para a eterna danação. Assim, conforme fim
para o qual o homem foi criado, nós dizemos que ele foi predesti-
nado para a morte ou para a vida”.
É simplesmente absurdo procurar a causa de tal decisão de
Deus: ou melhor, a causa é a livre vontade do próprio Deus, “não
podendo ser pensada nenhuma lei e nenhuma norma melhor e
mais justa do que a sua vontade”.
O próprio pecado original de Adão não apenas foi permitido
por Deus como também ele o quis e o determinou. Isso só pode
parecer absurdo para aqueles que não temem a Deus e não
120 O Renascimento e a religião
veram na Igreja em virtude dessa reação e de sua concretização é
que se dá o nome de Contra-reforma.”
A Contra-reforma apresenta um aspecto doutrinário que se
expressa na condenação aos erros do protestantismo e na formu-
lação positiva do dogma católico. Mas também se manifesta numa
forma peculiar de viva militância, sobretudo a propugnada por
Inácio de Loyola e da Companhia de Jesus por ele fundada (e
reconhecida oficialmente pela Igreja em 1540). A Contra-reforma
manifestou-se também sob a forma de medidas restritivas e
constritivas, como, por exemplo, a instituição da Inquisição ro-
mana em 1542 e a compilação do Index dos livros proibidos. (Sobre
este último ponto, deve-se recordar que a imprensa havia se
tornado o mais formidável instrumento de difusão das idéias dos
protestantes, daí a contra-medida do Index.)
Segundo Jedin, a conexão entre a “Reforma católica” e a
“Contra-reforma” está na função central do papado: “Renovado in-
ternamente, o papado torna-se promotor da Contra-reforma e im-
pele as forças religiosas a reagirem contra a inovação com os meios
políticos existentes. Para os papas, os decretos do Concílio de
Trento são um meio para atingir o objetivo e a ordem dos jesuítas,
um instrumento verdadeiramente poderoso em suas mãos.”
Alguns historiadores parecem propensos a deixar de lado a
distinção entre os conceitos de “Reforma católica” e “Contra-
reforma”. Mas Jedin tem bons motivos para sustentar a sua
manutenção, visto que eles expressam as duas faces diversas do
fenômeno. Está claro que numa série de acontecimentos, os dois
movimentos são inseparáveis e procedem paralelamente, mas nem
por isso eles se confundem. Eis um texto no qual Jedin resume com
exemplar clareza a diferença entre os conceitos historiográficos de
“Reforma” e “Contra-reforma” e sua complementaridade: “Parece-
me (...) necessário manter a dualidade de conceitos. A história da
Igreja necessita dela para manter separadas duas linhas de
desenvolvimento que são dessemelhantes em sua origem e em sua
essência: a espontânea, baseada na continuidade da vida interna,
e a dialética, provocada pela reação contra o protestantismo. Na
Reforma católica, a ruptura religiosa tem somente uma função
desagregadora; já na Contra-reforma, ela age como impulso. No
conceito de 'restauração católica”, a primeira das duas funções não
é suficientemente valorizada, porque falta o paralelismo com a
Reforma protestante; a segunda é valorizada ainda menos, justa-
mente porque a ação recíproca que existe entre a ruptura religiosa
eo desenvolvimento da Igreja católica é completamente ignorada.
O conceito de 'Contra-reforma' a coloca em evidência, mas subes-
tima o elemento de continuidade. Se quisermos compreender o
desenvolvimento da história da Igreja no século XVI, devemos
O Concílio de Trento 121
levar sempre em conta esses elementos fundamentais: o elemento
da continuidade, expresso no conceito de “Reforma católica”, e o
elemento da reação, expresso no conceito de 'Contra-reforma'.” Por
isso, diante da pergunta de se devemos falar de “Reforma católica”
ou de “Contra-reforma”, Jedin responde: “Não se deve dizer Re-
forma católica ou Contra-reforma', mas sim Reforma católica e
Contra-Reforms”. A Reforma católica é a reflexão sobre si mesma
realizada pela Igreja tendo em vista o ideal de vida católica que
pode ser alcançado através de uma renovação interna; a Contra-
Reforma é a auto-afirmação da Igreja na luta contra o pro-
testantismo. A reforma católica baseia-se na auto-reforma dos seus
membros na tardia Idade Média, cresceu sob o estímulo da apos-
tasia e chegou à vitória através da conquista do papado, a organi-
zação e a concretização do Concílio de Trento: é a alma da Igreja
retomada em seu vigor, ao passo que a Contra-reforma é o seu
corpo. À Reforma católica armazenou as forças que depois foram
descarregadas na Contra-reforma. E o ponto em que ambas se
interligam é o papado. A ruptura religiosa subtraiu à Igreja forças
preciosas, aniquilando-as, mas também despertou aquelas forças
que ainda existiam, aumentando-as e fazendo com que lutassem
até o fim. Ela foi um mal, mas um mal do qual também nasceu algo
de positivo. Nos dois conceitos de “Reforma católica” e de Contra-
reforma' estão incluídos também os efeitos que a elas se seguiram.”
2.2. O Concílio de Trento
A Igreja católica conta hoje com vinte e um concílios, do
Concílio de Nicéia, em 325, ao Vaticano II, de 1962 a 1965. Entre
todos esses concílios, o de Trento (que foi o décimo-nono), realizado
de 1545 a 15683, é certamente um dos mais importantes, sendo
talvez aquele que goza de maior notoriedade, embora não tenha
sido o mais numeroso nem o mais faustoso e embora a sua própria
duração tenha que ser redimensionada drasticamente, conside-
rando-se o número dos anos de interrupção (de 1548 a 1551 e,
depois, de 1552 a 1561). Com efeito, a sua importância na história
da Igreja foi muito grande e a sua eficácia bastante notável.
A importância desse concílio está no fato de que ele a) tomou.
uma clara posição doutrinária acerca das teses dos protestantes e
b) promoveu a renovação da disciplina da Igreja, tão invocada pelos
cristãos há muito tempo, dando precisas indicações sobre a for-
mação e o comportamento do clero.
Sobre este último ponto, para dar uma idéia do espírito
reformador que animava o concílio, podemos citar o cânon 1 do
“Decreto de Reforma” (sessão XXII, 17 de setembro de 1562): “Não
há outra coisa que estimule mais assiduamente e com maior força
122 O Renascimento e a religião
os outros à piedade e ao culto a Deus do que a vida e o exemplo
daqueles que se dedicaram ao divino ministério. Com efeito, vendo-
os desapegados das coisas do mundo e em um mundo mais elevado,
og outros olham para eles como para um espelho, deles extraindo
o exemplo a ser imitado. Por isso, é absolutamente necessário que
os clérigos, chamados a terem Deus como destino, dêem às suas
vidas, aos seus costumes, aos seus hábitos, aos seus modos de
comportamento, de caminhar, de falar e a todas as outras suas
ações um tom tal que não apresentem nada que não seja grave,
moderado e pleno de religiosidade. Evitem inclusive as faltas leves,
que neles pareceriam gravíssimas, para que suas ações possam
inspirar veneração a todos.” As instâncias contidas nas queixas,
verdadeiramente maciças, que eram feitas contra os maus costu-
mes do clero medieval tardio e renascentista encontram aqui uma
perfeita acolhida e se concretizam de modo bastante preciso em
outros cânones do decreto.
Deve-se destacar também que, no Concílio de Trento, a
Igreja readquire a plena consciência de ser Igreja, de “cuidado com
as almas” e de missão, propondo-se a si mesma como objetivo preci-
so o seguinte: “Salus animarum suprema lex esto.” Essa é uma
reviravolta histórica basilar, que Jedin analisa do seguinte modo:
“Estamos diante de uma reviravolta que, na história da Igreja, tem
o mesmo significado que as descobertas de Copérnico e Galileu têm
para a imagem do mundo elaborada pelas ciências naturais.”
No que se refere ao primeiro ponto que mencionamos, que
aqui é o que interessa mais, deve-se notar o que segue.
Os documentos do concílio fazem uso de termos e concei-
tos tomistas e escolásticos com parcimônia e cautela: como foi
bem notado por diversos atentos intérpretes, o metro com que
se medem as coisas é o da fé da Igreja e não o de escolas teológicas
em particular.
Eles respondem sobretudo às questões de fundo suscitadas
pelos protestantes, ou seja, a justificação pela fé, a questão das
obras, a predestinação e, com grande amplitude, a questão dos
sacramentos, que os protestantes tendiam a reduzir somente ao
batismo e à Eucaristia (em especial, reafirmam a doutrina da
transubstanciação eucarística, segundo a qual, a substância do pão
e do vinho se transforma em carne e sangue de Cristo; já Lutero
falava de consubstanciação, o que implicava a permanência do pão
e do vinho, mesmo realizando-se.a presença de Cristo, ao passo que
Zuínglio e Calvino tendiam a uma interpretação simbólica da
Eucaristia), bem como reafirmam o valor da tradição.
Nustrando alguns desses pontos, citaremos trechos de al-
guns dos mais significativos documentos do concílio. Sobre a
justificação da fé, diz o concílio: “As causas dessa justificação são:
O Concílio de Trento 123
acausa final é constituída pela glória de Deus e de Cristoe pela vida
eterna; a causa eficiente é a misericórdia de Deus, que gratuitamente
lava e santifica, marcandó e ungindo com o Espírito da promessa,
o santo que é penhor de nossa herança; a causa meritória é o seu
dileto unigênito e nosso Senhor Jesus Cristo, que, embora sendo
nós seus inimigos, pelo infinito amor com que nos amou, fez com que
merecêssemos a justificação com a sua santíssima paixão sobre o
madeiro dacruze, pornós, satisfez o Deus Pai. A causainstrumental
é o sacramento do batismo, que é o sacramento da fé, sem a qual
nunca é concedida a ninguém a justificação. Finalmente, a única
causa formal é a justiça de Deus, não certamente aquela pela qual
ele é justo, mas aquela pela qual nos torna justos. Com ela, isto é,
por seu dom, somos renovados interiormente no espírito e não
apenas somos considerados justos como também somos chamados
tais e o somos de fato, recebendo em nós, cada qual, a própria
justiça, à medida que o Espírito Santo a distribuiu aos indivíduos
como quer e segundo a disposição e a cooperação próprias de cada
um. Com efeito, embora ninguém possa ser justo, a não ser aquele
ao qual são transmitidos os méritos da paixão de nosso Senhor
Jesus Cristo, isso, no entanto, nessa justificação do pecador, se
realiza quando, por. mérito da própria santíssima paixão, o amor de
Deus é difundido pelo Espírito Santo no coração daqueles que são
justificados e os inclui, Por essa razão, na própria justificação,
juntamente com a remissão dos pecados, o homem recebe todos
esses dons por meio de Jesus Cristo, no qual se inseriu: a fé, a
esperança e a caridade. Com efeito, se à fé não se agregar também
a esperança e a caridade, ela não une perfeitamente a Cristo nem
nos torna membros vivos do seu corpo. Por esse motivo, é
absolutamente verdadeiro afirmar que, sem as obras, a fé é morta
e inútil e que, em Cristo, não valem nem a circuncisão nem a
ineircuncisão, mas sim a fé operante por meio da caridade.”
A propósito da “gratuidade” da justificação pela fé, o concílio
precisa: “Quando, ademais, o Apóstolo diz que o homem é justifi-
cado pela fé e gratuitamente, essas palavras devem ser entendidas
segundo a interpretação aceita e manifestada pelo concorde e
permanente juízo da Igreja católica, isto é, que somos justificados
mediante a fé, porque a fé é o princípio da salvação humana, o
fundamento e a raiz de toda justificação, sem a qual é impossível
agradar a Deus e alcançar a comunhão que seus filhos têm com ele.
Diz-se ainda que nós somos justificados gratuitamente porque
nada daquilo que precede a justificação — tanto a fé como as obras
— merece a graça da justificação, pois, com efeito, ela é pelagraça,
não é pelas obras, caso contrário (como diz o próprio Apóstolo) a
graça não seria mais graça.”
Tiziano Vecellio, O Concílio de Trento (1545-1563). Esse concílio
assinala a mais significativa reviravolta da Igreja nos tempos
modernos.
A escolástica renascentista 125
Sobre a observância dos mandamentos e sobre as “obras”
afirma o concílio: “Ademais, ninguém, por mais justificado que
esteja, deve se considerar livre da observância dos mandamentos,
ninguém deve fazer sua aquela expressão temerária e proibida
pelos Padres sob pena de excomunhão, isto é, a de que é impossível
para o homem justificado observar os mandamentos de Deus. Com
efeito, Deus não ordena o impossível. Mas, quando ordena, adverte
que se faça aquilo que se pode e pedir aquilo que não se pode — e
nos ajuda para que possamos. Os seus mandamentos não são
gravosos, o seu jugo é suave e o seu peso é leve. Com efeito, aqueles
que são filhos de Deus amam a Cristo e aqueles que o amam (como
ele próprio diz) observam as suas palavras, coisas que, com a ajuda
de Deus, certamente podem fazer. Com efeito, nesta vida mortal,
por mais santos e justos que sejam, algumas vezes eles caem em
faltas leves e cotidianas, que também são ditas veniais, nem por
isso deixam de ser justos. E é própria dos justos a expressão,
humilde e verdadeira: “Perdoa as nosssas dívidas.” ”
E ainda: “Agora, para os homens justificados desse modo,
tanto os que conservaram a graça recebida como os que, depois de
tê-la perdido, a recuperaram, devem-se propor as palavras do
Apóstolo: 'Abundai nas obras boas, sabendo que vosso trabalho no
Senhor não é em vão. Com efeito, ele não é injusto e não esquece
aquilo que fizestes, nem o amor que demonstrastes por seu nome.”
E: “Não abandoneis portanto a vossa confiança, para a qual está
reservada uma grande recompensa.” Por isso, àqueles que agem
bem até o fim e têm esperança em Deus deve-se propor a vida
eterna, seja como graça prometida misericordiosamente aos filhos
de Deus pelos méritos de Jesus Cristo, seja como recompensa a ser
dada fielmente, pela promessa do próprio Deus, por suas boas
obras e seus méritos. Com efeito, essa é aquela coroa da justiça que,
depois de sua luta e de sua corrida, o Apóstolo dizia ter sido
reservada para ele e que lhe seria dada pelo justo juiz, não somente
a ele, mas também a todos aqueles que amam a sua vinda.”
Por fim, a propósito da Eucaristia, diz o concílio: “Como
Cristo, nosso redentor, disse que era verdadeiramente o seu corpo
que ele dava sob a espécie do pão, por isso sempre foi convicção da
Igreja de Deus — e agora este santo concílio o declara novamente
— que, com a consagração do pão e do vinho, se opera a transfor-
mação de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo,
nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu
sangue, Essa transformação, portanto, de modo adequado e pró-
prio, é chamada pela santa Igreja católica de transubstanciação.”
2.3. O novo ímpeto da escolástica
Lutero foi um duro adversário, não apenas de Aristóteles,
mas também do pensamento tomista e escolástico em geral. As
130 O Renascimento e a política
coisas são muito difíceis de ser conciliadas e, assim, o príncipe deve
fazer a escolha mais funcional para o governo eficaz do Estado.
8.1.3. A “virtude” do príncipe
Os dotes do príncipe, que emergem muito bem desse quadro,
são chamados por Maquiavel de “virtudes”. Obviamente, a “vir-
tude” política de Maquiavel nada tem a ver com a “virtude” em
sentido cristão. Ele usa o termo retomado da antiga acepção grega
de areté, ou seja, a virtude como habilidade entendida natural-
mente. Aliás, trata-se da areté grega como era concebida antes da
espiritualização que Sócrates, Platão e Aristóteles nela realiza-
ram, transformando-a em “razão”. Em particular, ela recorda o
conceito de areté cultivado especialmente por alguns sofistas.
Nos humanistas, esse conceito aparece várias vezes, mas
Maquiavel leva-o às suas extremas consequências.
L. Firpo a descreveu muito bem: “Virtude é vigor e saúde,
astúcia e energia, capacidade de prever, planejar e constranger. É,
sobretudo, vontade que barra as águas transbordantes dos acon-
tecimentos, que impõe regra — sempre parcial e, infelizmente,
caduca — ao caos, que constrói com invencível tenacidade a ordem
em um mundo que desaba e se desagrega perpetuamente. O
homem comum é vil, indigno de confiança, ávido e insensato; não
persevera nos propósitos; não sabe resistir, empenhar-se e sofrer
para alcançar uma meta; tão logo o aguilhão ou o chicote caem das
mãos do dominador, as fracas turbas livram-se da carga, escapo-
lem e traem. Também na grande tradição medieval da política
cristã o homem decaído e pecaminoso, na terra, era confiado ao
poder civil, portador da espada, para que os prevaricadores ficas-
sem sob o controle de uma força material inexorável: mas aquela
força se justificava tendo em vista a salvação dos bons e graças à
divina investidura dos soberanos, feitos instrumentos de uma
severidade moralizadora. Aqui, no entanto, é a massa inteira dos
homens que mergulha na maldade obtusa, ao passo que a virtude
— que dá e justifica o poder — não tem nada de sagrado, pois
constringe e edifica, mas não educa e não redime ”
8.14. Liberdade e “destino”
E essa virtude sabe se contrapor ao “destino”. Assim, com
Maquiavel, retorna o tema do contraste entre “liberdade” e “des-
tino”, tão caro aos humanistas. Muitos consideram que o destino
seja a razão dos acontecimentos e que, portanto, é inútil se esforçar
para impor-lhe uma barreira, sendo melhor deixar-se guiar por ele.
Maquiavel confessa ter sentido a tentação de acomodar-se a essa
opinião. Mas a sua solução é a seguinte: metade das coisas
humanas dependem da sorte, a outra metade da virtude e da
Guicciardini e Botero 131
kiberdade. Ele escreve: “Não por acaso, mas para que o nosso livre-
arbítrio não desapareça, julgo poder ser verdade que a sorte seja
árbitra de metade de nossas ações, mas que, etiam, ela nos deixe
governar a outra metade, ou quase, a nós.” E, com uma imagem que
se tornou muito famosa (um típico reflexo da mentalidade da
época), depois de mencionar poderosos exemplos de força e virtude
que barraram o curso dos acontecimentos, Maquiavel escreve:
“Porque a sorte é mulher. E, querendo mantê-la sob domínio, é
necessário bater-lhe e espancá-la. O que se vê é que ela deixa-se
mais vencer por estes (= os temperamentos impetuosos) do que por
aqueles que procedem friamente. E sempre, como mulher, é amiga
dosjovens, porque são menosrespeitosos, mais ferozes ea dominam
com mais audácia.”
3.1.5. A “virtude” da antiga República romana
O ideal político de Maquiavel, porém, não é o príncipe por ele
descrito, que é muito mais uma necessidade do momento histórico,
mas sim o da República romana, baseada na liberdade e nos bons
costumes. Descrevendo essa República, ele parece flexionar em
novo sentido o seu próprio conceito de “virtude”, particularmente
quando discute a antiga questão de se o povo romano foi mais
favorecido pela sorte do que pela virtude na conquista do seu
Império: então, responde, sem sombra de dúvida, pela demonstra-
ção de que “mais pôde a virtude do que a sorte para que eles
conquistassem aquele Império”.
3.1.6. Guicciardini e Botero
Uma ordem de idéias análoga à de Maquiavel sobre a
natureza do homem, a virtude, a sorte e a vida política pode ser
encontrada em Francisco Guicciardini (1482-1540), particular-
mente nas suas Recordações políticas e civis (concluídas em 1530).
Mas, mais que à dimensão histórica, Guicciardini parece sensível
à dimensão do “particular”.
Dois de seus pensamentos ficaram muito conhecidos.
O primeiro é o de que gostaria de ver realizados três desejos
antes de morrer: 1) viver em uma república bem ordenada; 2) ver
a Itália libertada dos bárbaros; 3) ver o mundo libertado da tirania
dos padres.
No outro, com poucas pinceladas, traça um esplêndido auto-
retrato espiritual: “Eu não sei a quem desgostem mais que a mim
a ambição, a avareza e a moleza dos padres: porque cada um desses
vícios, em si, já é odioso; porque cada um e todos juntos pouco
convêm a quem faz profissão de vida ligada a Deus; porque, ainda,
são vícios tão contrários que não podem estar juntos senão em um
sujeito muito estranho. Não obstante, o contato que tive com muitos
pontífices levou-me, por minha conta particular, a amar a sua
132 O Renascimento e a política
grandeza. Se não fosse esse respeito, teria amado Martinho Lutero
como a mim mesmo, não para libertar-me das leis impostas pela
religião cristã, no modo como é interpretada e comumente enten-
dida, mas para ver essa caterva de celerados reduzida aos devidos
termos, isto é, para que ficasse sem vícios ou sem autoridade.”
A doutrina de Maquiavel foi resumida por ele na fórmula “os
fins justificam os meios”, fórmula que, se não faz justiça à efetiva
estatura do pensamento do autor de O Príncipe, no entanto
explicita uma das lições que a época moderna extraiu de sua obra.
Também de Maquiavel deriva a noção de “razão de Estado”.
Uma rica literatura, constituída de obras de vários gêneros
e variada consistência, floresceu em torno desses aspectos do
pensamento de Maquiavel, destacando-se entre elas a obra de João
Botero (1544-1617) intitulada Sobre a razão de Estado, que visa
temperar o crurealismo maquiavélico através de efetiva referência
à incidência dos valores morais e religiosos.
3.2. Tomás More e a Utopia
Tomás More nasceu em Londres em 1478. Foi amigo e
discípulo de Erasmo e humanista de estilo elegante. Participou
ativamente da vida política, exercendo altos cargos. Firme em sua
fé católica, recusou-se a reconhecer Henrique VIII como chefe da
Igreja, sendo por isso condenado à morte em 1535. Somente em
nosso século é que foi proclamado santo (por Pio XI).
Aobra que deu fama imortal a More foi a Utopia, um título
elevado a denominação de um gênero literário antiquíssimo, muito
usado antes e depois de More, representando uma dimensão do
espírito humano que, através da representação mais ou menos
imaginária daquilo que não existe, apresenta aquilo que deveria ser
ou como o homem gostaria que a realidade fosse.
Otermo “utopia” (do grego ou = não etopos = lugar) indica um
“lugar que não existe” ou, ainda, “aquilo que não existe em nenhum
lugar”. Platão já se havia aproximado muito dessa indicação,
escrevendo que a cidade perfeita por ele descrita na República não
existe “em nenhuma parte sobre a terra”. Mas foi necessária a
criação semântica de More para preencher essa lacuna lingúística.
O enorme sucesso do termo mostra o quanto dele necessitava o
espírito humano. Deve-se notar como More reafirma essa di-
mensão do “não existir em nenhum lugar”: a capital de Utopia
chama-se Amauroto (do grego amaurós = evanescente), que quer
dizer “cidade que se esvanesce como uma miragem”, o rio de Utopia
chama-se Anidro (do grego anydros = privado de água), ou seja, um
rio que não é rio de água, mas rio sem água; já o príncipe chama-
se Ademo (formado por um alfa privativo e demos, que significa
More: a utopia política 133
“povo”), que significa o chefe que não tem povo. Trata-se, eviden-
temente, de jogos linguísticos que visam a reforçar a tensão entre
o real e o irreal e, portanto, o ideal, do qual a Utopia é expressão.
A fonte em que More se embebeu foi, naturalmente, Platão,
com amplas infiltrações de doutrinas estóicas, tomistas e erasmia-
nas. Na contraluz está a Inglaterra, com sua história, suas tra-
dições e seus dramas sociais de então (a reestruturação do sistema
agrícola, que privava de terra e trabalho uma grande quantidade
de camponeses; as lutas religiosas e a intolerância; a insaciável
sede de riquezas). . .
Os princípios basilares que regem o relato (que é imaginado
como narrado por Rafael Itlodeo, que, tendo participado de uma
das viagens de Américo Vespúcio, teria visto a ilha de Utopia)
são muito simples. More estava profundamente convencido (in-
fluenciado nisso pelo otimismo humanista) de que bastaria seguir
a sã razão e as mais elementares leis da natureza, que estão em
perfeita harmonia com a razão, para acabar com os males que
afligem a sociedade. . º
A Utopia não apresenta um programa social a ser realizado,
mas sim princípios destinados a terem uma função normativa: com
hábeis jogos de alusões, apresentava os males da época e indicava
os critérios com os quais deveriam ser curados. .
O ponto-chave da questão está na ausência de propriedade
privada. Platão, na República, já dizia que a propriedade divide os
homens pela barreira do “meu” e do “teu” e que a “comunhão” dos
bens refaz a unidade. Onde não existe a propriedade, nada é “meu”
ou “teu”, mas tudo é “nosso”. E é em Platão que More se inspira,
propondo a comunhão dos bens. no .
Ademais, em Utopia, todos os cidadãos são iguais entre si.
Desaparecem as diferenças de renda, desaparecendo então as
diferenças de status social. E mais: os habitantes de Utopia se
substituem de modo equilibrado nos trabalhos da agricultura edo
artesanato, de modo a que não renasçam, em virtude da divisão do
trabalho, também as divisões sociais. º
O trabalho não é massacrante e não dura toda a jornada
(como durava naquela época), mas sim seis horas diárias, para
deixar espaço ao lazer e a outras atividades. .
Em Utopia também existem sacerdotes dedicados ao culto e
um lugar especial é garantido aos “literatos”, ou seja, aqueles que,
nascendo com dotes e inclinações especiais, pretendem dedicar-se
ao estudo,
Os habitantes de Utopia são pacifistas, seguem prazeres
sadios, admitem cultos diferentes, honram a Deus de diferentes
modos e sabem se compreender e se aceitar reciprocamente nessas
diversidades.
Tomás More (1478-1535) foi o autor de “Utopia”, um dos mais
conhecidos escritos da época renascentista, que se tornou muito
célebre e cujo título foi assumido inclusive como denominação do
gênero literário que representa e da dimensão fundamental do
espírito que está em sua base.
Bodin: o Estado soberano 135
Eis um texto conclusivo contra os ricos de todos os tempos
e contra as riquezas (imagine-se o belíssimo paradoxo: seria tão
mais fácil conseguir do que viver se isso não fosse impedido precisa-
mente pela procura daquele dinheiro que, na intenção de quem o
inventou, deveria servir justamente para nos facilitar naquele
objetivo): “E, no entanto, esses funestos indivíduos, depois de, com
avidez insaciável, dividirem entre si toda a massa de bens que
dariam para todos, como estão distantes da felicidade de que se
goza em Utopia! Lá, uma vez que foi sufocada inteiramente toda
avidez por dinheiro, graças à abolição do seu uso, que caterva de
incômodos foi jogada fora e que grande número de delitos foi
cortado pela raiz! Quem pode ignorar que todos aqueles furtos,
fraudes, assaltos, rixas, desordens, disputas, tumultos, assassínios,
traições e envenenamentos, que as cotidianas execuções capitais
conseguem punir, mas não refrear, logo desaparecem quando se
retira da cena o dinheiro? E que, no mesmo instante, somem o
medo, a ansiedade, as preocupações, os tormentos e as insônias? E
que a própria pobreza, que parece sofrer penúria unicamente do
dinheiro, tão logo este fosse inteiramente suprimido, também ela
imediatamente se atenuaria? Para esclarecer melhor a questão,
medita um pouco em teu coração sobre uma safra avara e de
escassa colheita, durante a qual muitos milhares de pessoas
morreram de fome: eu sustento decididamente que, ao fim dessa
carestia, se os celeiros dos ricos fossem inspecionados, se encon-
traria tal abundância de cereais que, distribuindo-os entre todos
aqueles que deveriam sucumbir à fome e à doença, ninguém
sofreria nem um pouco pela esterilidade do terreno e do clima.
Como seria fácil nos garantirmos o sustento se não o impedisse pre-
cisamente aquele bendito dinheiro, a refinadíssima invenção que
deveria aplainar o caminho para que o obtivéssemos!”
L.Firpo, com razão, disse que Utopia é um daqueles poucos
livros dos quais se pode dizer que influenciaram o curso da história:
“Com ele, o homem angustiado pelas violências e pelas dissipações
de uma sociedade injusta erguia um protesto que nunca mais foi
sufocado. Como o primeiro dos reformadores impotentes, fechados
em um mundo muito surdo e muito hostil para ouvi-los, More
ensinava a lutar no único modo concedido aos inermes homens de
cultura, lançando aos séculos vindouros um apelo e delineando um
programa destinado não a inspirar uma ação imediata, mas a
fecundar as consciências. Desde então, aqueles lúcidos realistas
que o mundo chama com o termo moreano “utópicos' fazem precisa-
mente a única coisa que lhes é dada: como náufragos nas praias de
remotas ilhas inóspitas, lançam aos pósteros uma mensagem
dentro de uma garrafa.”
Tomás More ( 1478-1535) foi o autor de
conhecidos escritos da época renascentisti
célebre e cujo título foi assumido inclusive
gênero literário que representa e da di; ã
en mensão fundam
espírito que está em sua base. - na
“Utopia”, um dos mais
, que se tornou muito
como denominação do
Bodin: o Estado soberano 135
Eis um texto conclusivo contra os ricos de todos os tempos
e contra as riquezas (imagine-se o belíssimo paradoxo: seria tão
mais fácil conseguir do que viver se isso não fosse impedido precisa-
mente pela procura daquele dinheiro que, na intenção de quem o
inventou, deveria servir justamente para nos facilitar naquele
objetivo): “E, no entanto, esses funestos indivíduos, depois de, com
avidez insaciável, dividirem entre si toda a massa de bens que
dariam para todos, como estão distantes da felicidade de que se
goza em Utopia! Lá, uma vez que foi sufocada inteiramente toda
avidez por dinheiro, graças à abolição do seu uso, que caterva de
incômodos foi jogada fora e que grande número de delitos foi
cortado pela raiz! Quem pode ignorar que todos aqueles furtos,
fraudes, assaltos, rixas, desordens, disputas, tumultos, assassínios,
traições e envenenamentos, que as cotidianas execuções capitais
conseguem punir, mas não refrear, logo desaparecem quando se
retira da cena o dinheiro? E que, no mesmo instante, somem o
medo, a ansiedade, as preocupações, os tormentos e as insônias? E
que a própria pobreza, que parece sofrer penúria unicamente do
dinheiro, tão logo este fosse inteiramente suprimido, também ela
imediatamente se atenuaria? Para esclarecer melhor a questão,
medita um pouco em teu coração sobre uma safra avara e de
escassa colheita, durante a qual muitos milhares de pessoas
morreram de fome: eu sustento decididamente que, ao fim dessa
carestia, se os celeiros dos ricos fossem inspecionados, se encon-
traria tal abundância de cereais que, distribuindo-os entre todos
aqueles que deveriam sucumbir à fome e à doença, ninguém
sofreria nem um pouco pela esterilidade do terreno e do clima.
Como seria fácil nos garantirmos o sustento se não o impedisse pre-
cisamente aquele bendito dinheiro, a refinadíssima invenção que
deveria aplainar o caminho para que o obtivéssemos!”
L. Firpo, com razão, disse que Utopia é um daqueles poucos
livros dos quais se pode dizer que influenciaram o curso da história:
“Com ele, o homem angustiado pelas violências e pelas dissipações
de uma sociedade injusta erguia um protesto que nunca mais foi
sufocado. Como o primeiro dos reformadores impotentes, fechados
em um mundo muito surdo e muito hostil para ouvi-los, More
ensinava a lutar no único modo concedido aos inermes homens de
cultura, lançando aos séculos vindouros um apelo e delineando um
programa destinado não a inspirar uma ação imediata, mas a
fecundar as consciências. Desde então, aqueles lúcidos realistas
que o mundo chama com o termo moreano “utópicos' fazem precisa-
mente a única coisa que lhes é dada: como náufragos nas praias de
remotas ilhas inóspitas, lançam aos pósteros uma mensagem
dentro de uma garrafa.”
136 O Renascimento e a política
8.8. João Bodin e a soberania absoluta do Estado
Distante tanto dos excessos de realismo de Maquiavel como
do utopismo de More, surgiu também João Bodin (1529/1530-
1596), com seus Seis livros sobre a república.
Para existir o Estado, é preciso uma forte soberania, que
mantenha unidos os vários membros sociais, ligando-os como em
um só corpo. Mas essa forte soberania não se obtém com os métodos
recomendados por Maquiavel, que pecam por imoralismo e por
ateísmo, mas sim instaurando a justiça e recorrendo à razão e às
leis naturais.
Eis a célebre definição de Estado dada por Bodin: “Por Estado
se entende o governo justo, que se exerce com poder soberano sobre
diversas famílias e em tudo aquilo que elas têm em comum entre
si? (Chamamos a atenção sobretudo para os termos que grifamos.)
E eis a bela ilustração que ele nos apresenta: “Assim como o navio
não passará de um madeiro se lhe forem retirados a lombada que
lhe sustenta os flancos, a proa, a popa e o timão, da mesma forma
o Estado já não será tal sem aquele poder soberano que mantém
unidos todos os membros e partes dele, fazendo de todas as famílias
e de todos os círculos um só corpo. E, para dar continuidade à
semelhança, assim como um navio pode ser mutilado em diversas
partes ou completamente queimado, da mesma forma um povo
pode ser disperso por vários lugares e até totalmente destruído,
mesmo permanecendo intacta a sua sede territorial. Com efeito,
não é esta, nem a população, que forma o Estado, mas sim a união
de um povo sob uma só senhoria soberana (..). Em suma, q
soberania é o verdadeiro fundamento, o ponto cardeal sobre o qual
se apóia toda a estrutura do Estado e do qual dependem to-
das as magistraturas, leis e normas. Ela é o único laço e o único
vínculo que faz de famílias, círculos, colegiados.e indivíduos um
único corpo perfeito, que é precisamente o Estado” (tradução de M.
Isnardi Parente).
Por “soberania” Bodin entende poder absoluto e perpétuo,
próprio de todo tipo de Estado. Tal soberania se exerce sobretudo
no dar leis aos súditos sem o seu consentimento.
Comojá dissemos, o absolutismo de Bodintem limites objetivos
precisos nas normas éticas (a justiça), nas leis da natureza e nas
leis divinas — e esses limites constituem também a sua força. A
soberania que não respeitasse essas leis não seria soberania, mas
sim tirania.
Também se destaca o escrito de Bodin intitulado Colloquium
heptaplomeres (Cológio entre sete pessoas), que tem por tema a
tolerância religiosa e é imaginado desenvolver-se em Veneza entre
sete seguidores de religião diferente: 1) um católico, 2) um seguidor
Grotius: o jusnaturalismo 137
de Lutero, 3)um seguidor de Calvino, 4)umjudeu, 5) ummaometano,
6) um pagão e 7) um defensor da religião natural. A tese da obra é
a de que (como havia sustentado o humanismo florentino) existe
um fundamento natural que é comum a todas as religiões. Com
essa base comum, seria possível um acordo religioso geral, sem
sacrificar as diferenças (ou seja, aquele plus) próprias das religiões
positivas. Assim, estando esse fundamento natural implícito nas
diferentes religiões, aquilo que as une revela-se mais forte do que
aquilo que as separa.
3.4. Hugo Grotius e a fundação do jusnaturalismo
Entre os últimos lustros do século XVI e as primeiras décadas
do século XVII, formou-se e se consolidou a teoria do direito
natural, por obra do italiano Alberico Gentile (1552-1611) no
escrito De iure belli (1558) e, sobretudo, do holandês Hugo Grotius
(Huig de Groot, 1583-1645) no escrito De jure belli ac pacis (1625,
reeditado com ampliações em 1646).
Ainda se podem sentir as raízes humanistas de Grotius, mas
ele já está encaminhado no rumo que iria levar ao moderno
racionalismo, embora só o percorrendo parcialmente.
Os fundamentos da convivência dos homens são a razão e a
natureza, que coincidem entre si. O “direito natural”, que regula a
convivência humana, possui esse fundamento racional-natural.
Ele é “um ditame da reta razão, de modo que, segundo esteja em
conformidade ou desconformidade com a própria natureza racio-
nal, comporta necessariamente aprovação ou reprovação moral e
que, consequentemente, é imposto ou vetado por Deus, autor da
natureza”. Mas note-se a consciência ontológica que Grotius dá ao
direito natural: ele se revela tão estável e alicerçado que o próprio
Deus não poderia mudá-lo. Isso significa que o direito natural
reflete a racionalidade, que é o próprio critério com que Deus criou
o mundo e que, como tal, Deus não poderia alterar, a não ser se
contradizendo, o que é impensável.
Diferente do direito natural é o “direito civil”, que depende
das decisões dos homens, e que é promulgado pelo poder civil. Ele
tem como objetivo a utilidade e é sustentado pelo consentimento
dos cidadãos.
Avida, a dignidade da pessoa e a propriedade pertencem ao
âmbito dos direitos naturais.
O direito internacional baseia-se na identidade de nature-
za entre os homens. Portanto, os tratados internacionais têm
valor mesmo quando estipulados por homens de confissões dife-
rentes, já que o fato de pertencer a fés diversas não modifica a
natureza humana.
138 O Renascimento e a política
O objetivo da punição às infrações aos direitos não deve ser
punitivo, mas corretivo: não se pune quem errou porque errou, mas
para que não erre mais (no futuro). E a punição deve ser, ao mesmo
tempo, proporcional tanto à natureza do erro como à conveniência
e à utilidade que se pretende tirar da própria punição.
Retomando uma idéia do humanismo florentino, mas de
forma mais racionalizada, Grotius sustenta haver uma religião
natural comum a todas as épocas, a qual, portanto, encontra-se na
base de todas as religiões positivas. Essa religião natural baseia-
se em quatro pontos fundamentais: 1) Deus existe e é único; 2) Deus
é superior em relação a todas as coisas visíveis e perceptíveis; 3)
Deus é providência; 4) Deus é o criador de todas as coisas.
Alguns intérpretes de Grotius viram na sua obra o triunfo
de um novo tipo de mentalidade, de caráter racionalista-científico.
Mas, com razão, L. Malusa sublinhou que “Grotius é muito mais
ligado à concepção clássico-medieval e escolástica do direito na-
tural do que à moderna”. Com efeito, a naturalização da lei divina
que ele operou no De jure belli ac pacis “outra coisa não é do que a
acentuação do aspecto jurídico (devido às preocupações acerca dos
problemas da guerra) em relação ao aspecto teológico da lei
natural, que, todavia como era para santo Tomás, continua sendo
lei divina, critério objetivo e eterno”. Portanto, o racionalismo de
Grotius é tal “como intelectualismo em contraposição ao
voluntarismo (de tipo ocamista ou protestante) e não como afir-
mação da estranheza (= autonomia) da razão humana em relação
ao governo do mundo”,
Segunda parte
PONTOS CULMINANTES
E RESULTADOS CONCLUSIVOS
DO PENSAMENTO
RENASCENTISTA
Leonardo da Vinci, Telésio, Giordano Bruno e Campanella
“É melhor a pequena certeza do que a grande mentira.”
Leonardo da Vinci
“Quem não é matemático, não me leia nem os meus princípios.”
Leonardo da Vinci
“Ainda que em nossa obra não houvesse nada de divino, nada
digno de admiração e nem mesmo uma visão suficientemente
aguda, não será no fato de que disséssemos algo que esteja em
contraste consigo ou com as coisas, porque teremos seguido
somente o senso e a natureza, a qual, sempre concorde consigo e
sempre idêntica, age sempre do mesmo modo.”
Bernardino Telésio
“Não se exige do filósofo natural que apresente todas as causas e
os princípios, mas somente as físicas
— e, destas, as principais e próprias.”
Giordano Bruno
“Eu nasci para debelar três males extremos:
tiranias, sofismas e hipocrisias.”
Tomás Campanella
144 Renascimento italiano
ainda estavam por vir. Tudo isso para dizer que, se é verdade que
o conjunto das características da ciência moderna não pode ser
encontrado em Leonardo, no entanto, algumas dessas caracterís-
ticas fundamentais parecem se delinear em seu pensamento com
bastante clareza. Esse parece ser o caso da idéia de experiência,
bem como o caso da relação teoria-prática. ,
1.3. “Cogitatione mentale” e “esperientia”
Qual é, então, a idéia de experiência e de saber em Leonardo?
Contrapondo-se à figura do “douto” de sua época, Leonardo gostava
de se definir como “homem sem letras”. Mas ele havia fregiientado
a bottega de Verrocchio, onde havia praticado muitas “artes mecá-
nicas”. E exatamente a prática das “artes mecânicas” aprendidas
em certas oficinas vinha fazendo emergir gradualmente um con-
ceito de experiência que não era mais a empiria desarticulada dos
praticantes das diversas artes nem o discurso puro e simples dos
especialistas das artes liberais, privados de qualquer contato com
operações, inspeções e aplicações no mundo da natureza. Aexperiên-
cia que se realizava nas oficinas, como a de Verrocchioo, era
precisamente um elemento para o qual vinham confluindo pro-
gressivamente as artes mecânicas e liberais, como a geometria
ou a perspectiva. Consegúentemente, Leonardo se revolta con-
tra todos aqueles que consideram que o “senso” — ou seja, a
sensação ou a observação — seja um obstáculo para a “física e sutil
cogitação mental”.
. Por outro lado, Leonardo tinha a convicção de que “nenhuma
investigação humana pode-se considerar verdadeira ciência se não
passar pelas demonstrações matemáticas”. Não basta a observa-
ção nua e crua. E, na natureza, existem “infinitas razões” que
nunca estiveram sob experiência”. Em suma, os fenômenos da
natureza só podem ser compreendidos sob a condição de que lhes
descubramos as razões. E essa descoberta é obra de discurso, de
cogitatione mentale: é a razão que demonstra por que “tal expe-
riência é forçada de tal modo a operar”. Em suma: “a natureza está
cheia de infinitas razões que nunca estiveram sob experiência”;
“todo o nosso conhecimento começa do sentido”, “os sentidos são
terrenos, mas a razão está fora deles, quando contempla”. E
aqueles que se enamoram da prática sem ciência são como o
timoneiro que entra no navio sem timão e bússola, nunca tendo
certeza para onde vai”. E prossegue Leonardo: “A ciência é o
capitão, a prática os soldados.” E, quando se tem ciência das coisas,
então, por um lado, essa ciência termina “em conhecida experiên-
cia”, isto é, as teorias são confirmadas, e, por outro lado, permite
todas aquelas realizações tecnológicas que Leonardo projeta com
Leonardo: experiência e teoria 145
suas “máquinas”. Pois bem, observa Cassirer, “em toda essa cadeia
de pensamentos, não constitui uma contradição, por um lado,
insistir no fato de que tedo conhecimento começa com a sensação
e, por outro lado, reconhecer à razão uma função própria, acima e
fora da percepção. Essas duas posições são perfeitamente conciliá-
veis, pelo menos para Leonardo (...). A especulação de Leonardo,
evidentemente, tende a encontrar um conceito intermediário entre
esses dois fatores fundamentais. Não devemos nos perder na
consideração do particular, mas sim procurar compreender a lei
geral que o supera e domina. No mar dos fatos particulares e dos
dados práticos em particular, somente o conhecimento da lei nos
possibilita a bússola, perdida a qual ficamos cegos e privados de
timão. É a teoria que dá a direção à experiência” (E. Cassirer). E
conclui Cassirer: desse modo, Leonardo teria “antecipado o “método
resolutivo' de Galileu e da moderna ciência da natureza”.
Essa também é a interpretação de Geymonat, que escreve:
“De particularíssima importância é a sua (de Leonardo) concepção
do saber científico e do método que se deve seguir para alcançá-lo.
Do ponto de vista metodológico, ele pode ser considerado um
precursor de Galileu, pela importância essencial atribuída tanto à
experiência como à matemática; não se pode excluir, inclusive, que
Galileu, na elaboração do seu método matemático-experimental,
tenha sofrido a influência de Leonardo, ainda que indiretamente.”
Entretanto, há uma interpretação contrária a essa: a de
quem não pensa que experiência e matemática estejam tão facil-
mente unidas no pensamento de Leonardo, que então não poderia
em absoluto ser considerado “precursor” de Galileu. Enrico Bel-
Ione, por exemplo, escreve: “Que Leonardo podemos reconstruir?
Aquele que canta hinos às virtuosas capacidades da experiência ou
aquele que as renega para celebrar os méritos da abstração
matemática? Simplesmente devemos aceitar o primeiro e o segun-
do: a oscilação entre os dois pontos cardeais metodológicos é a
realidade de um Leonardo que procura compreender aquilo que
observa, não a desagradável contradição que se deveria poder
eliminar para nos restituir um Leonardo homogêneo, um Leonardo
consciente da necessidade de estabelecer um núcleo metodológico
como raiz ou causa de novas ciências (...). Na época de Leonardo,
estavam em curso complexas mudanças no interior das formas de
conhecimento, que ele tentava comentar por meio de rápidas
anotações ou escarnecedores aforismos. As lacunas na consciência
dessas mudanças constituem o sinal de que Leonardo é verdadei-
ramente “filho do renascimento” e, enquanto tal, não é em absoluto
alinhável entre as raízes de um Galileu.”
E eis o que escrevia E. Garin, trinta anos atrás, sobre essa
questão: “Certamente não foi ele (Leonardo) quem criou o método
146 Renascimento e teoria
experimental e a síntese entre matemática e experiência ou a nova
física, mas pode muito bem ser elevado a símbolo da passagem de
uma profunda elaboração crítica, da qual por vezes ele compendia
os resultados, à formulação de concepções renovadas.”
Trata-se de interpretações que, saudavelmente preocupadas
em não transplantar Leonardo para fora de seu ambiente e em não
cair no erro sistemático da historiografia de antecipação, talvez
corram o risco de desviar a atenção daquelas novidades — que
existem — que, por mais de um aspecto, fazem de Leonardo um
pensador excepcional para o seu próprio tempo.
Entretanto, em oposição à autoridade e à tradição, Leo-
nardo considera que a experiência é a grande mestra e que é na
escola da experiência que nós podemos compreender a natureza,
não através da transmissão e repetição das cópias esmaecidas que
nos dão os livros (“a sabedoria é filha da experiência”), nem das
grandes construções teóricas incontroláveis, que amiúde falam de
magnos problemas (“é melhor a pequena certeza do que a grande
mentira”). Diz Leonardo: “A mentira tem tanto vilipêndio que, se
ela dissesse bem das coisas de Deus, estaria tolhendo graça à sua
deidade; já a verdade é de tanta excelência que, se ela louvasse
coisas mínimas, as estaria fazendo nobres. E a verdade é, em si, de
tanta excelência que, mesmo se estendendo sobre humildes e
baixas matérias, ela excede incomparavelmente as incertezas e
mentiras estendidas sobre magnos e elevadíssimos discursos (...).
Mastu, que vives de sonhos, gostas mais das razões sofísticas e das
baleias nas coisas grandes e incertas do que das coisas naturais,
mas não de tanta cultura.”
Assim, para compreender a natureza, é preciso voltar à
experiência. Em suma, não estaremos muito distantes da verdade
se considerarmos que, para Leonardo, parte-se da experiência *
problemática; com o discurso, descobre-se-lhe a razão; então, volta-
se à experiência para comprovar os nossos discursos. Por isso, se
a natureza produz efeitos com base em causas, o homem deve
remontar dos efeitos às causas. E para esse “remontar às causas”
precisa da “matemática”, a ciência que descobre relações de
necessidade entre os vários fenômenos, isto é, aquelas razões “que
nunca estiveram sob experiência”. Repete ainda Leonardo: “A
necessidade é tema e inventora da natureza, é freio e norma
eterna.” Consequentemente, afirma ele, “quem não é matemático,
não me leia, nem aos meus princípios”. E ainda: “Quem censura a
suma certeza da matemática enche-se de confusão e nunca imporá
silêncio às contradições das ciências sofísticas, com as quais se
aprende um eterno gritar.” A natureza é regulada por uma ordem
mensurável que se encontra na relação causal entre os fenômenos:
“E precisamente essa necessidade ecxclui toda força metafísica ou
Telésio: vida e obras 147
mágica, toda interpretação que prescinda da experiência e queira
submeter a natureza a princípios que lhe são estranhos. Essa
necessidade, por fim, se identifica com a necessidade própria do
raciocínio matemático, que expressa as relações de medida que
constituem as leis. Entender a 'razão' da natureza significa en-
tender aquela “proporção' que não se encontra só nos números enas
medidas, mas também nos sons, nos pesos, nos tempos, nos espaços
e em qualquer força natural” (N. Abbagnano).
. Em mecânica, Leonardo se aproximou do princípio da inér-
cia, “chegou a intuir o princípio de composição das forças e o
princípio do plano inclinado, que ele assumiu como base para a
explicação do vôo dos pássaros. O fato verdadeiramente maravi-
lhoso é que, nele, essas intuições não permanecem em um plano
exclusivamente teórico, mas se traduzem em tentativas de reali-
zação ou, pelo menos, de projetos técnicos” (L. Geymonat). Compe-
tente em hidráulica aplicada, Leonardo tinha claro o princípio dos
vasos comunicantes. São numerosos os seus projetos de hidráulica,
mas também na arte das fortificações, na construção de armas, na
indústria têxtil e na arte tipográfica.
Ele também obteve resultados em geologia (explicando, por
exemplo, a origem dos fósseis), em anatomia e em fisiologia. O seu
interesse pela anatomia era motivado pela vontade de conhecer
melhor a natureza, de modo a melhorar o seu desempenho artís-
tico. Com efeito, em Leonardo não se pode separar o cientista do
artista. Não por acaso, para ele, a pintura é uma ciência; aliás, está
no cume das ciências. A pintura possui um valor cognoscitivo e o
pintor deve conhecer muitas ciências (anatomia, geometria etc.)
para poder penetrar na natureza: “Ó, especulador das coisas, não
te vanglories de conhecer as coisas que ordinariamente, por si
mesma, a natureza conduz, mas alegra-te por conhecer o fim
daquelas coisas que estão esboçadas na tua mente.”
2. Bernardino Telésio: a investigação
da natureza segundo os seus próprios princípios
2.1. A vida e as obras
Bernardino Telésio nasceu em 1509 em Cosenza. Num pri-
meiro momento, recebeu uma sólida educação humanista de seu
tio Antonio Telésio, que era homem de letras. Seguiu o tio a Milão
e depois a Roma, onde, em 1527, foi aprisionado pela soldadesca,
por ocasião do conhecido “saque de Roma”, sendo libertado pela
intervenção de um conterrâneo depois de dois meses de prisão.
148 Renascimento italiano
Foi então para Pádua, onde ainda estavam bem vivos os
debates sobre Aristóteles e onde estudou filosofia e ciências na-
turais (talvez, em especial, a medicina), formando-se em 1535.
Depois de formado, irrequieto, Telésio andou por várias
cidades da Itália. Parece inclusive que, durante alguns anos,
retirou-se, para meditar em solidão, em um mosteiro de mon-
ges beneditinos (alguns pensam que esse mosteiro pode ter sido o
de Seminara).
Posteriormente, de 1544 a 1553, Telésio foi hóspede dos
Carafa, duques de Nocera. Nesse período, ele lançou os fundamen-
tos e delineou a estrutura do seu sistema, redigindo um primeiro
esboço da sua obra-prima De rerum natura iuxta propria principia.
A partir de 1553, Telésio se estabeleceu em Cosenza, onde
permaneceu até 1563. Passou então por Roma e Nápoles, mas re-
tornou várias vezes a Cosenza, onde morreu em 1588.
Os primeiros dois livros do De rerum natura foram publica-
dos em 1565, depois de muitas incertezas e não sem antes ter
consultado em Bréscia o maior expoente do aristotelismo na época,
Vincenzo Maggi. O resultado pesitivo do confronto com Maggi, que
por muitos aspectos devia ser considerado como o adversário ideal,
convenceu Telésio da oportunidade da publicação. Mas a obra
inteira, em nove livros, só viu a luz em 1586, em virtude das
dificuldades financeiras do nosso filósofo. As outras obras de
Telésio são marginais, limitando-se à explicação de alguns fenô-
menos naturais (Sobre os terremotos, Sobre os cometas, Sobre os
vapores, Sobre o raio ete.).
Foi notável a fama alcançada pelo nosso filósofo, tendo início
antes mesmo da publicação de suas obras. À Academia Cosentina,
da qual ele foi membro, tornou-se o mais ativo centro de difusão do
telesianismo. Amigos poderosos e influentes protegeram-no dós
ataques dos aristotélicos, embora não tenham faltado os debates
e as polêmicas.
Entre os entusiastas da obra de Telésio conta-se também
Campanella, que não o conheceu pessoalmente, mas visitou seu
esquife mortuário, exposto na catedral de Cozenza, logo depois
de sua morte. Campanella chegou a dedicar alguns versos ao
“sumo Telésio”. Em um soneto que chegou até nós, entre outras
coisas, diz dele:
Telésio, a flecha da tua aljava,
em meio ao campo dos gênios, sem salvação,
mata dos sofistas o tirano;
e à Verdade dá uma doce Liberdade.
E, apesar das aparências, o continuador ideal de Telésio, em
muitos aspectos, seria precisamente Campanella.
Telésio: os princípios da natureza 149
2.2. A novidade da física telesiana
O sentido eo valor do pensamentotelesiano mudam comple-
tamente, conforme a perspectiva com base na qual ele é visto e
interpretado. Consegientemente, também varia o tipo de exposi-
ção que se pode fazer desse pensamento.
Se o olharmos assumindo como parâmetro a revolução cien-
tífica que Galileu operaria, então as conclusões não podem ser
outras que as extraídas por Patrizi (embora baseando-se em ou-
tros elementos), isto é, que o telesianismo “parece ser mais
uma metafísica do que uma física”, contrariamente às suas inten-
ções declaradas.
No entanto, se o olharmos pela ótica do seu tempo, o pensa-
mento de Telésio revela-se efetivamente uma das tentativas mais
radicais e avançadas de encaminhar a física pela senda de uma
rigorosa pesquisa autônoma, desligando-se de dois tipos de pres-
supostos metafísicos: a) dos pressupostos dos magos renascentis-
tas ligados à tradição hermético-platônica; b) dos pressupostos da
metafísica aristotélica.
a) Sobre o primeiro ponto, deve-se sublinhar não apenas o
fato de que estão ausentes do De rerum natura os interesses
e pressupostos mágico-herméticos, mas também o fato de que Te-
lésio diz com todas as letras, numa evidente alusão, que em sua
obraninguémencontraránihil divinum enihiladmiratione dignum.
Entretanto, como veremos, Telésio continua a ter em comum
com as doutrinas mágicas a convicção de que, na natureza, tudo
está vivo.
b) Sobre o segundo ponto, devemos relevar o que se segue.
Aristóteles (com os peripatéticos) considerava a física como conhe-
cimento teorético de um particular gênero de ser, ou seja, daquele
gênero de ser ou substância que está sujeito a movimento. Para o
Estagirita, o quadro da metafísica (ciência do ser ou da substância
em geral) e os seus princípios constituíam os pressupostos neces-
sários para fundamentar a física. A consideração da substância
sensível, portanto, desembocava necessariamente na considera-
ção da substância supra-sensível e o estudo da substância móvel
terminava com a demonstração metafísica da substância imóvel.
Pois Telésio realizou um corte claro em relação a essa
posição. Ele não nega um Deus transcendente nem uma alma
supra-sensível (como veremos melhor mais adiante), mas temati-
camente, coloca ambos fora da pesquisa física, estabelecendo assim
aautonomia danatureza e dos seus príncipios e, consequentemente,
a autonomia da pesquisa desses princípios. Desse modo, Telésio
realiza aquilo que foi chamado “redução naturalista”, precisamente
proclamando a substancialidade autônoma da natureza.
Renascimento italiano
154
experiência passada e da semelhança daquilo que já percebemos
com aquilo que percebemos agora, ou seja, por analogia,
Telésio declara expressamente que não despreza em abso
luto a razão; ao contrário, diz que se deve depositar confiança nela
“quase como nos sentidos”. Mas o sentido é mais crível do que a
razão, pelo motivo de que aquilo que é apreendido pelos sem idos
não tem mais necessidade de ser ulteriormente investigado.
Para Telésio, a própria matemática é fundada no sentido, nas
similitudes e nas analogias, do modo já explicado.
2.5. A moral natural
A vida moral do homem, pelo menos no primeiro nível,
também pode ser explicada com base nos princípios naturais.
Para o homem, como para todo ser, o bem é a sua própriaquio-
conservação, assim como o mal é o seu dano ou a sua destruição. o
prazer e a dor entram nesse jogo de conservação e destruição. S
agradável aquilo que é dileto ao “espírito” e é dileto ao capíri %
aquilo que o vivifica, constituindo portanto uma força favor: vel. É
doloroso aquilo que abate e prostra o“ espírito e abate o “espíril
aquilo que lhe é nocivo. Assim, o prazer é “a sensação da conser-
vação”, ao passo que a dor é “a sensação da destruição”.
Ovprazer e a dor, portanto, têm um preciso objetivo funcional.
Desse modo, o prazer não pode ser o fim último que perseguimos,
mas sim o meio que nos facilita alcançar esse fim, o qual, como já
dissemos, é a auto-conservação. Em geral, tudo aquilo que o
homem deseja está em função dessa conservação.
Entendidas do pento de vista naturalista, as próprias
virtudes são praticadas e exercidas em função desse mesmo
objetivo, ou seja, para que facilitem a conservação e o apertei-
coamento do “espírito”.
2.6. A transcendência divina e a alma
como ente supra-sensível
Como já observamos, Telésio operou a “redução naturaliste?
na sua pesquisa física e na reconstrução da realidade natura! ,
mas ficou bem distante de dar a tal “redução uma valência
metafísica geral: ele admite um Deus criador e acima da natureza;
o que ele nega, simplesmente, é que se deva recorrer a ele na
investigação física.
Telésio: moral e religião 155
Aliás, a esse propósito, é interessante notar o fato de que
Telésio, que normalmente censura Aristóteles por ser excessiva-
mente metafísico em física, objeta-lhe precisamente o oposto no
que se refere ao Motor Imóvel. É completamente inadequada uma
concepção de Deus reduzido à função motriz, ao modo aristotélico.
Telésio chega a escrever que, a esse respeito, Aristóteles “parece
digno não apenas de críticas, mas também de abominação”. A
moção do céu podia muito bem ser atribuída à própria natureza do
céu, sem chamar Deus em causa daquele modo. De qualquer forma,
teria sido melhor pôr Deus como inativo. Ademais, é inconcebível
ofato de Aristóteles negar ao seu Deus a providência em relação aos
homens. Em suma: o Deus de Telésio é o Deus bíblico, criador e
regente do mundo. E é precisamente de sua atividade criadora que
depende aquela “natureza” estruturada do modo como vimos, bem
como o destino superior dos homens em relação a todos os outros
seres, como agora veremos.
A “mens superaddita”, isto é, a alma intelectiva, que é
imortal, é infundida no homem por Deus. A alma está unida ao
corpo e, especialmente, ao “espírito” natural como forma deles.
Através do espírito, o homem conhece e prova as coisas que
se referem à sua conservação natural; já com a mens superaddita,
ele conhece as coisas divinas e tende para elas, que não dizem
respeito à sua saúde natural, mas sim à eterna. Assim, existem no
homem dois apetites e dois intelectos. Por isso, ele está em
condições de entender não somente o bem sensível, mas também o
bem eterno, bem como de querê-lo (e isto é o livre-arbítrio).
Consegientemente, o homem deve procurar não sucumbir com sua
“mente” às forças do “espírito” material, mas sim mantêla pura e
torná-la semelhante ao seu criador. Em suma, essa “mente”
concerne à atividade religiosa do homem e assinala a sua especi-
ficidade em toda a ordem do real.
Os intérpretes viram frequentemente, nessas doutrinas de
Telésio, algumas concessões indébitas (talvez feitas pro bono
pacis), algumas cessões ou, de todo modo, teses em contraste com
o seu “naturalismo”. Na realidade, porém, não é assim. Quando
muito, seria verdade precisamente o oposto. A sua originalidade
está exatamente na tentativa de estabelecer uma distinção clara
de âmbitos de investigação, sem que a distinção implique exclusão.
Embora com todos os seus limites, também nesse sentido Telésio
apresenta analogias com Galileu, que, precisamente, distinguiria
de modo paradigmático a ciência e a religião, atribuindo à primeira
a função de mostrar como vai o céu (com as suas leis específicas)
eà segunda a tarefa de mostrar como se vai ao céu (crendo e agindo
em conformidade).
156 Renascimento italiano
3. Giordano Bruno: a religião como metafísica
do infinito e o “heróico furor”
8.1. A vida e as obras
Giordano Bruno nasceu em Nola, em 1548. O seu nome de
batismo era Filipe: o nome de Giordano lhe foi dado quando, ainda
muito jovem, ingressou no convento de São Domingos, em Nápoles,
onde foi ordenado sacerdote em 1572.
O seu espírito de insubordinação e revolta já se manifestava
quando ainda era estudante: em 1567, foi instaurado um processo
contra ele, o qual ficou depois suspenso. .
Mais grave foi o processo de 1576, instaurado, mais do que
pelas suspeitas de heresia que havia suscitado, pela suspeita de
que lhe coubesse a responsabilidade pelo assassínio de um con-
frade que o havia denunciado. Na realidade, a suspeita era infun-
dada. Mas a situação complicou-se a tal ponto que Bruno, que
nesse meio tempo havia fugido para Roma, chegou a pensar em
largar o hábito e refugiou-se no norte do país (Gênova, Noli,
Savona, Turim e Veneza)e finalmente na Suíça, em Genebra, onde
frequentou ambientes calvinistas. Mas logo ele se rebelaria tam-
bém contra os teólogos calvinistas. na
A partir de 1579, Bruno viveu na França, primeiro em
Tolosa, por dois anos, e a partir de 1581 em Paris, onde conseguiu
atrair a atenção de Henrique III, do qual teve proteção e apoio.
Em 1583, foi paraa Inglaterra, acompanhando o embaixador
francês, vivendo sobretudo em Londres. Esteve durante um perío-
do também em Oxford, onde, porém, logo entrou em choque com os
docentes da universidade (que ele considerava “pedantes”). Docu-
mentos vindos recentemente à luz demonstram, entre outras
coisas, que os doutos locais o contestaram por ter plagiado Ficino
em suas lições (as doutrinas mágico-herméticas).
Em 1585, retornou a Paris, mas logo percebeu que não
gozava mais da proteção do rei e teve que fugir, depois de um
tempestuoso conflito com os aristotélicos.
Desta vez, escolheu a Alemanha luterana. Em 1586, estabe-
leceu-se em Vitemberga, onde elogiou publicamente o luteranis-
mo. Mas também aí não permaneceu por muito tempo. Em 1588,
tentou obter os favores do imperador Rodolfo II de Habsburgo, na
Áustria, mas sem sucesso. Retornou então à Alemanha, onde, em
1589, em Helmstãdt, inscreveu-se na comunidade luterana, da
qual foi expulso depois de apenas um ano.
Em 1590, foi para Francoforte, onde publicou a trilogia dos
seus grandes poemas latinos. Quando aí estava, recebeu um
convite, por parte de livreiros, do nobre veneziano João Mocenigo,
Bruno: magia e hermetismo 157
que desejava aprender a mnemotécnica, da qual Bruno era mestre.
Imprevidentemente, ele aceitou o convite e voltou à Itália em 1591.
No mesmo ano, Mocenigo denunciava Bruno ao Santo Ofi-
cio.
Em 1592, começou em Veneza o processo contra Bruno, que
se concluiu com a sua retratação.
Em 1598, o filósofo foi transferido para Roma, sendo sub-
metido a um novo processo. Depois de extenuantes tentativas
de convencê-lo a retratar-se de algumas de suas teses, chegou-se
a uma ruptura final, com a sua condenação à morte na fogueira,
sentença que foi executada no Campo dei Fiori, em 17 de feve-
reiro de 1600.
Giordano Bruno não renegou o seu credo filosófico-religi-
oso, morrendo para testemunhá-lo. Escreve A. Guzzo: “Assim,
morto, ele se apresenta pedindo que sua filosofia viva. E, desse
modo, teve atendido o seu apelo: o seu julgamento se reabriu, a
consciência italiana recorreu do processo e, antes de mais nada,
incriminou aqueles que o haviam matado.”
São muito numerosas as obras de Giordano Bruno. Dentre
elas, merecem particular atenção: a comédia o Candeeiro (1582), o
De umbris idearum (1582), a Ceia das Cinzas (1584), Sobre a
causa, princípio e uno (1584), Sobre o infinito, universoe mundos
(1584), o Despacho da fera triunfante (1584), Sobre os heróicos
furores (1585), De minimo (1591), De monade (1591) e De immenso
et innumerabilibus (1591).
8.2. A característica de fundo do pensamento de Bruno
Para entender a mensagem de um filósofo, é preciso captar
o fulcro do seu pensamento, a fonte dos seus conceitos e o espírito
que lhe dá vida. No caso de Giordano Bruno, onde estão esse fulcro,
essa fonte e essa alma?
Os estudos mais recentes conseguiram lançar luz sobre a
questão: a marca que distingue o pensamento bruniano é de
caráter mágico-hermético. Bruno se coloca na trilha dos magos-
filósofos renascentistas, levando muito adiante o discurso que
Ficino havia cautelosamente iniciado, procurando manter-se dentro
dos limites da ortodoxia cristã, mas que ele tratou de levar
às últimas consegiúências. E mais: o pensamento bruniano po-
de ser entendido como uma espécie de gnose renascentista, uma
mensagem de salvação moldada no tipo de religiosidade “egípcia”,
como precisamente pretendia ser a mensagem dos escritos
herméticos. O seu neopiatonismo serve de base e de moldura
conceitual para essa visão religiosa, dobrando-se continuamente
às suas exigências.
158 Renascimento italiano
Essa é a documentadíssima tese apresentada recentemente
por F. A. Yates (na obra já citada Giordano Bruno e la tradizione
ermetica, Laterza, Bari), que desejamos enfocar brevemente, porque
resolve muitos problemas de interpretação da obra de Bruno.
Escreve Yates: a filosofia de Bruno “é fundamentalmente hermé-
tica(... pois) ele era mago hermético do tipo mais radical, com uma
espécie de missão mágico-religiosa”. .
Qual foi, então, a operação que Bruno procurou realizar? E
Yates quem precisa: “É muito simples: ele reconduz a magia
renascentista às suas fontes pagãs, abandonando as fracas tenta-
tivas de Ficino de elaborar uma magia inócua, dissimulando asua
fonte principal, o Asclepius (que ensinava a construir ídolos e
amuletos e que havia sido condenado por santo Agostinho), escar-
necendo violentamente dos herméticos religiosos (que, como ob-
servamos, eram numerosos no período renascentista) que acredi-
tavam fundar um hermetismo cristão deixando de lado o Asclepius
e proclamando-se egípcio convicto, que (...) deplora a destruição,
realizada pelos cristãos, do culto dos deuses naturais da Grécia e
da religião através da qual os egípcios haviam alcançado as idéias
divinas, o Sol inteligível, o Uno do neoplatonismo.”
Eis como Bruno cita o lamento de Asclépio, com sua profecia
final, e que tons comovidos ele lhe inspira: “Não sabes, ó Asclépio,
como o Egito é a imagem do céu(...), nossa terra o templo do mundo.
Mas, oxalá, tempo virá em que o Egito aparecerá em vão como o
religioso cultor da divindade (...). Ó Egito, Egito, de tuas religiões
só permanecerão as fábulas (...). As trevas suplantarão a luz, a
morte será julgada mais útil do que a vida, ninguém erguerá os
olhos para o céu, o religioso será considerado insano, o ímpio será
julgado prudente, o furioso forte e o péssimo bom. E acreditem que
ainda será definida a pena capital para aquele que se dedicar à
religião da mente, porque haverá novas justiças e novas leis e nada
se encontrará de santo nem de religioso: não se ouvirá coisa digna
do céu ou coisas celestes. Só permanecerão anjos perniciosos, que
misturados com os homens, forçarão os miseráveis à audácia de
todo o mal, como se fosse justiça, materializando guerras, roubos,
fraudes e todas as outras coisas contrárias à alma e à justiça
natural — e isso será a velhice, a desordem e a irreligião do mundo.
Mas não duvides, Asclépio, que, depois dessas coisas terem acon-
tecido, então o senhor e pai Deus, governante do mundo e provedor
onipotente (...), sem dúvida porá fim a tal mancha, chamando de
novo o mundo para a sua antiga fisionomia.”
O “egipcianismo” de Bruno é uma religião, a “boa religião”
destruída pelo cristianismo, para a qual é necessário retornar e da
qual ele se sente o profeta, investido precisamente da missão de
Bruno: magia e hermetismo 159
fazê-la reviver. Outra passagem de Yates completa o quadro dessa
nova exegese: “Assim, toda a tentativa ficiniana de construir uma
theologia platonica cristã, com os seus prisci theologi etmagi e com
o seu platonismo cristão, furtivamente permeado com alguns
elementos mágicos, era menos do que nada aos olhos de Giordano
Bruno, que, aceitando plena e despreconceituosamente a religião
mágica egípcia do Asclepius (e desprezando os presumidos pre-
núncios do cristianismo contidos no Corpus Hermeticum), consi-
derou a religião mágica egípcia como uma experiência teúrgica e
extática genuinamente neoplatônica, como uma elevação em dire-
ção ao Uno. E assim era de fato, já que o egipcianismo hermético
nada mais era do que o egipcianismo interpretado por neoplatô-
nicos da tardia Antiguidade. Entretanto, o problema da interpre-
tação de Bruno não se resolve reduzindo-o a mero continuador
desse tipo de neoplatonismo e considerando-o um simples seguidor
de um culto mistériosófico egípcio, porque ele certamente foi
influenciado pelas idéias produzidas por Ficino e por Pico, com
toda a sua força psicológica, as suas associações cabalísticas e
cristãs, o seu sincretismo de diversas posições filosóficas e reli-
giosas, antigas ou medievais, e com a sua magia. Também é preciso
destacar — o que, em minha opinião, é um dos aspectos mais
significativos de Giordano Bruno — que ele surge em cena por
volta de fins do século XVI, aquele século que viu terríveis mani-
festações de intolerância religiosa e no qual se procurou no her-
metismo religioso um refúgio de tolerância, um caminho que
levasse à união das várias seitas em luta entre si. Como vimos,
havia diversas variedades de hermetismo cristão, católico e pro-
testante, cuja maior parte se refugiava na magia. E nesse momen-
to aparece Giordano Bruno, que assume incondicionalmente como
base o hermetismo mágico egípcio, prega uma espécie de contra-
reforma egípcia, profetiza um retorno à tradição egípcia, graças à
qual as dificuldades religiosas se comporão em uma nova solução,
e, por fim, propugna também uma reforma moral, acentuando a
importância de boas obras sociais e de uma ética que correspon-
desse a critérios de utilidade social.”
Consegientemente, está claro que Bruno não podia estar
de acordo com os católicos nem com os protestantes (em última
instância, não pode ser considerado sequer cristão, pois acabou
pondo em dúvida a divindade de Cristo e os dogmas fundamentais
do cristianismo) e que os apoios que buscava, ora de uma parte ora
de outra, eram apenas apoios táticos para realizar a sua própria
reforma. E precisamente por isso é que ele provocou violentas
reações em todos os meios nos quais ensinou. Bruno não podia
seguir nenhuma seita, porque o seu objetivo era o de fundar ele
próprio uma nova religião.
164 Renascimento italiano
nossa faculdade discursiva, da divina substância nada podemos
conhecer, a não ser por meio de vestígios, como dizem os platônicos,
de efeito remoto, como dizem os peripatéticos, de indumentária,
como dizem os cabalistas, de costas ou posteriores, como dizem os
talmudistas, ou de espelho, sombra e enigma, como dizem os apo-
calípticos.” Aliás, acrescenta Bruno, a comparação da estátua é em
grande parte inadequada, porque a estátua, que é finita, pode ser
conhecida plenamente; já o universo é infinito e, assim, “ocorre que
com bastante menor razão nós conhecemos o primeiro princípio e
causa pelo o seu efeito”. Mas estaria errado quem desse a essas
afirmações da transcendência do princípio primeiro significados
que elas só poderiam ter em contextos metafísicos criacionistas.
Com efeito, nos encontramos aqui em um contexto de metafísica
processionista plotiniana e, assim, essas afirmações só adquirem
sentido em função das afirmações que apresentamos a seguir.
Assim como em Plotino o Intelecto deriva do supremo prin-
cípio, analogamente, Bruno também fala de um intelecto univer-
sal, mas o entende, de modo mais marcadamente imanentista,
como mente nas coisas e precisamente como faculdade da Alma
universal, da qual brotam todas as formas que são imanentes à
matéria, constituindo com ela um todo indissolúvel: “Isso quer o
Nolano, que é um Intelecto que dá ser a toda coisa, chamado pelos
pitagóricos e pelo Timeu de dador das formas; uma Alma e
princípio formal, que faz e enforma toda coisa, também por eles
chamada de fonte das formas; uma matéria, da qual é feita e
formada toda coisa, chamada por todos de refúgio das formas.”
A estrutura hilemórfica da realidade é assim concebida de
modo muito diferente dos aristotélicos: as formas são a estrutura
dinâmica da matéria, “que vão e vêm, cessam e se renovam”,
precisamente porque tudo é animado, tudo está vivo. À alma do
mundo está em cada coisa. E na alma está presente o intelecto
universal, fonte perene de formas que continuamente se renovam.
Em Bruno, tudo está vivo, mas num sentido bem diferente
do de Telésio. Em Bruno, trata-se da vida da alma e da mente
universal, que, aliás, é Deus, ou seja, o divino que se expande no
universo, ao passo que, em Telésio, trata-se de uma visão panvita-
lista reduzida, no âmbito bem mais estreito de um sensismo que,
como vimos, tem raízes nos pré-socráticos. Em Telésio, Deus é
verdadeiramente transcendente e a vida do mundo é a vitalidade
que Deus deu à matéria e aos seus princípios no ato da criação e que
nada tem a ver com a vida divina. Já em Bruno Deus torna-se
imanente e a vida do cosmos torna-se vida divina, ou seja, a
expansão infinita da própria vida de Deus.
Por isso, é compreensível que, nesse contexto, Deus e natu-
reza, forma e matéria, ato e potência acabem por coincidir, a ponto
Bruno: o infinito 165
de Bruno escrever: “Daí, não é dificilou grave, em última instância,
aceitar que, segundo a substância, tudo é uno, como talvez tenha
entendido Parmênides, tratado ignobilmente por Aristóteles.”
O trecho seguinte, extraído do Sobre a causa, princípio e
uno, nos apresenta muito bem a nova imagem bruniana do
universo uno, infinito e (inclusive) eleaticamente imóvel: “Por-
tanto, o universo é uno, infinito e imóvel. Digo que una é a
possibilidade absoluta, uno é o ato, una é a forma ou alma, una a
matéria ou o corpo, una a coisa, uno o ente, uno o máximo ou o
ótimo. Ele não deve poder ser abrangido por nada, sendo assim
infindável e interminável e, portanto, infinito e interminado — e,
consegiientemente, imóvel. Ele não se move localmente, porque
não há nada fora de si para o qual se transporte, entendendo-se que
ele é tudo. Ele não se gera, porque não há outro ser que ele possa
desejar ou esperar, entendendo-se que tem todo o ser. Ele não se
corrompe, porque não há outra coisa na qual se torne, entendendo-
se que ele é toda coisa. Ele não pode diminuir ou crescer, enten-
dendo-se que é infinito, de modo que, como nada se pode acres-
centar a ele, também nada se pode subtrair, dado que o infinito não
tem proporcionalidade. Ele não é alterável em outra disposição,
porque não há nada de externo cuja ação sofra e pela qual tenha
alguma sensação. Além disso, por abranger todas as contrarieda-
des em seu ser, em unidade e conveniência, e não poder ter
nenhuma inclinação a outro e novo ser ou então a outro modo de
ser, não pode estar sujeito a mutações de qualquer qualidade nem
pode ter contrário ou diferente que o altere, porque nele todas as
coisas são concordes. Ele não é matéria, porque não é figurado nem
figurável, não é terminado nem terminável. E também não é
forma, porque não enforma nem figura outra coisa, no sentido que
é tudo, é uno, é universo. Ele não é mensurável nem medida. Não
se abrange, porque não é maior do que si mesmo. Nem é abrangido,
porque não é menor do que si mesmo. Não se iguala, porque não é
outra coisa, mas uno e o mesmo. Sendo o mesmo e uno, não tem
seres diversos; não tendo seres diversos, não tem partes; e, não
tendo partes, não é composto. Ele é termo não sendo termo, é tão
forma que não é forma, é tão matéria que não é matéria, é tão alma
que não é alma, porque é tudo indiferentemente e, no entanto, é
uno — o universo é uno.”
3.5. A infinitude do Todo e o significado impresso
por Bruno à revolução copernicana
Comojá dissemos, o infinito tornou-se a marca emblemática
da concepção bruniana.
Se a Causa ou o Princípio Primeiro é infinito, também o
efeito deve ser infinito. Porisso, no De immenso et innumerabilibus,
166 Renascimento italiano
escreve Bruno: “A Divindade não se explica completamente no
plano físico, mas sim no infinito (com efeito, todo corpo é tão
distinto em partes que onde está uma parte não está nenhuma
outra, nem pode estar) e somente nele se manifesta em sua própria
universalidade, segundo as suas próprias ordens inumeráveis e
segundo a disposição do infinito: em toda parte coloca um princípio
que concorre com o fim ou, de outra forma, o centro que é referido
de toda parte ao infinito e ao qual de toda parte é referido o infinito.
Isso é o que ocorre ab aeterno, da Divindade segundo todo o ser,
como difusão da infinita bondade, ato e efeito exteriores da divina
onipotência”.
Com base nisso, Bruno sustenta não apenas a infinitude do
mundo em geral, mas também (retomando a idéia de Epicuro e de
Lucrécio) a infinitude no sentido da existência de mundos infinitos
semelhantes ao nosso, com outros planetas e outras estrelas: “e
isso se chama universo infinito, no qual há inumeráveis mundos”.
Infinita também é a vida, porque infinitos indivíduos vivem
em nós, assim como em todas as coisas compostas. O morrer
não é morrer, porque “nada se aniquila”. Assim, o morrer é
apenas uma mudança acidental, ao passo que aquilo que muda
permanece eterno.
Mas por que, então, existe essa mutação? Por que a matéria
particular procura sempre outra forma? Será que procura outro
ser? De modo bastante engenhoso, Bruno responde que a mutação
não procura “outro ser” (que tudo já existe desde sempre), mas sim
“outro modo de ser”. E nisso reside precisamente a diferença entre
o universo e as coisas singulares do universo: “aquele abrange todo
o ser e todos os modos de ser; destas, cada qual tem todo o ser, mas
não todos os modos de ser”.
Assim, Bruno pode dizer que o universo é “esferiforme” e, ao
mesmo tempo, infinito. E pode escrever com ousadia: “Parmênides
disse que o uno é igual por toda parte em si mesmo e Melissos
afirma que ele é infinito. Não existe contradição entre eles, mas
sim, muito mais, um esclarece o outro.”
O conceito de Deus como “esfera que tem o centro em toda
parte e a circunferência em nenhum lugar”, que apareceu pela
Primeira vez em tratado hermético e que foi tornado célebre por
Nicolau de Cusa, serve admiravelmente a Bruno, sendo precisa-
mente com essa base que ele opera a conciliação já referida.
Em conclusão, citemos ainda um trecho, dentre as muitas
e belíssimas considerações de Bruno sobre o infinito. Deus é todo
infinito e totalmente infinito, porque é tudo em tudo e, totalmente,
também em toda parte do todo. Como efeito derivado de Deus, o
universo é todo infinito, mas não totalmente infinito, porque é tudo
em tudo, mas não totalmente em todas as suas partes (ou, de todo
Bruno: 0 Enfínito 167
modo, não pode ser infinito no modo como Deus é, sendo causa de
tudo em todas as partes): “Eu digo que o universo é todo infinito
porque ele não tem limite, nem fim, nem superfície; mas digo que
o universo não é totalmente infinito porque cada uma das partes
que dele podemos tomar é finita, embora, dos mundos inumeráveis
que contém, cada um seja infinito. Eu digo que Deus é todo infinito
porque ele exclui de si todo fim e todo atributo seu é uno e infinito;
e digo que Deus é totalmente infinito porque todo ele está em todo
o mundo e em cada uma de suas partes, infinita e totalmente, ao
contrário da infinitude do universo, que está totalmente em tudo,
mas não nestas partes (se é que, referindo-se ao infinito, podem ser
chamadas de “partes”), que podemos abranger nele (...).”
Agora, estamos em condições de entender as razões da en-
tusiástica aceitação da revolução copernicana por Giordano Bru-
no. Com efeito, o heliocentrismo a) harmonizava-se perfeitamente
com a sua gnose hermética, que atribuía ao Sol (símbolo do in-
telecto) um significado inteiramente particular, e b) permitia-lhe
romper a visão estreita dos aristotélicos, que sustentavam a fini-
tude do universo, e assim fazia desmoronar todas as “fantásticas
muralhas” dos céus, tornando-os sem limite em direção ao infinito.
3.6. Os “heróicos furores”
Na visão bruniana, a “contemplação” plotiniana e o tornar-
se uno com o Todo tornam-se “heróico furor”. Também para Bruno
trata-se de percorrer novamente, em elevação cognoscitiva, ou
seja, voltando sobre os próprios passos, aquela descida que, do
princípio, levou ao principiado. Mas, em Bruno, a contemplação se
transforma em uma forma de “divinização”, que é furor de amor,
anseio de ser uma só coisa com o objeto anelado, transformando
desse modo o êxtase plotiniano em experiência mágica. (Ficino já
havia chamado de firor divino o amor que leva o homem a se
“endeusar”.) Escreve Yates: “Acho que aquilo a que as experiências
religiosas descritas em Sobre os heróicos furores visam é a gnose
hermética, vale dizer, a mística poesia amorosa do homem-mago,
que foi criado divino, com poderes divinos, e agora se encaminha
para readquirir esse atributo de divindade, com os respectivos
poderes(...). Consequentemente, embora só seja possível encontrar
explicitamente alguns elementos mágicos em Sobre os heróicos
furores, na verdade, por assim dizer, essa obra é o diário espiritual
de um homem que aspirou a ser mago religioso.”
O ponto central do escrito e o sentido dos “heróicos furores”
estão no mito do caçador Actéon, que viu Diana no banho e, de
caçador, foi transformado em veado, isto é, em uma caça selvagem,
sendo devorado por seus cães. Diana é o símbolo da divindade
168 Renascimento italiano
imanente da natureza e Actéon simboliza o intelecto, voltado para
a caça à verdade e à beleza divina; já os mastins e gaigos de Actéon
simbolizam as volições (os primeiros, que são mais fortes) e os
pensamentos (os segundos, que são mais velozes).
Actéon, portanto, foi convertido naquilo que procurava
(caça) e seus próprios cães (pensamentos e volições) o devoram. Por
quê? Porque a verdade procurada está em nós mesmos e, quando
descobrimos isso, tornamo-nos anseios de nossos próprios pensa-
mentos e compreendemos que “tendo contraída em si a divindade,
não era preciso procurá-la fora de si”.
Por isso, Bruno conclui: “Desse modo, os cães, pensamentos
de coisas divinas, desejaram Actéon, fazendo-o morto para o vulgo,
para a multidão, liberto das amarras dos sentidos perturbados,
livre do cárcere carnal da matéria, não vendo mais sua Diana como
que através de cortinas e janelas, mas, tendo posto por terra as
muralhas, sendo agora todo olhos para o aspecto de todo o hori-
zonte.” No ponto culminante do “heróico furor”, o homem vê tudo
inteiramente todo, porque se encontra assimilado a esse todo.
3.7. Conclusões
Bruno é certamente um dos filósofos mais difíceis de enten-
der. E, no âmbito da filosofia renascentista, certamente é o
mais complexo. Daí as exegeses tão diversas que foram pro-
postas sobre ele.
No estado atual dos estudos, porém, muitas conclusões a
que se chegara no passado já foram revistas.
Não parece possível fazer dele um precursor da revolução
do pensamento moderno, no sentido em queiria operar a revolução
científica, porque os seus interesses eram de natureza completa-
mente diferente: mágico-religiosos e metafísicos. +
A defesa que ele fez da revolução copernicana fundamentou-
se em bases totalmente diferentes daquelas em que se baseara Co-
pérnico, tanto que alguns chegaram até a levantar dúvidas de que
Bruno realmente tenha entendido o sentido científico daquela
doutrina.
Não é possível destacar o aspecto matematizante de muitos
escritos brunianos, pois a matemática bruniana é aritmologia
pitagorizante, sendo portanto metafísica.
Em suma, com sua visão vitalista e mágica, Bruno não é
pensador “moderno”, no sentido de que não antecipa as descober-
tas do século seguinte, que nascem em bases totalmente diferen-
Ss.
Entretanto, Bruno antecipa de modo surpreendente certas
posições de Spinoza e, sobretudo, dos românticos. A embriaguez de
Campanella: a vida e obras 169
Deus e do infinito própria desses filósofos já está presente em
muitas páginas de Bruno. Schelling seria o pensador a mos-
trar (pelo menos em uma fase do seu pensamento) as mais
fortes afinidades de opção com o nosso filósofo. E uma das obras
schellinguianas mais belas e sugestivas intitular-se-ja precisa-
mente Bruno.
Em seu conjunto, a obra de Bruno marca um dos pontos
culminantes do Renascimento e, ao mesmo tempo, um dos resul-
tados conclusivos mais significativos desse período irrepetível do
pensamento ocidental.
4. Tomás Campanella: naturalismo, magia e anseio
de reforma universal
4.1. A vida e as obras
O pensamento renascentista se conclui com Tomás Campa-
nella.
Nascido em Stilo, na Calábira, em 1568, Campanella ingres-
sou na ordem dos dominicanos aos quinze anos (seu nome de
batismo era Giandomenico, mudado para Tomás em homenagem
a santo Tomás de Aquino quando ingressou no mosteiro).
Ele se assemelha a Bruno em muitos aspectos. Mago e
astrólogo, dominado por um grande anseio de reforma universal,
convicto de que tinha uma missão a cumprir, infatigável em sua 0-
bra, extraordinariamente culto e capaz de escrever e reescrever as
suas obras com uma força irrefreável, como um vulcão em erupção.
Submetido a torturas e muitas vezes preso, escapou da
condenação à morte fingindo perfeitamente estar louco. Foi por
isso que não acabou na fogueira, como Bruno, e, depois de ter
passado quase a metade de sua vida na prisão, conseguiu lenta-
mente readquirir credibilidade, que reconstitutu com uma incan-
sável fadiga cotidiana. Por fim, inesperados triunfos na França
coroaram a sua movimentadíssima existência.
São quatro os períodos que podem ser distinguidos nessa
vida verdadeiramente romanesca: 1) o da juventude, que se con-
cluiu com a falência de uma revolta política organizada por ele
contra a Espanha; 2) o do longuíssimo encarceramento em Ná-
poles; 3) o da reabilitação romana; 4) o das grandes homena-
ens francesas. .
é Percorreremos brevemente essas etapas, bastante signifi-
-cativas. no
1)0 período da juventude foi muito aventuroso. Insatisfeito
com o aristotelismo e o tomismo, leu vários filósofos (tanto antigos
Tomás Campanella (1568-1639) foi a última das grandes figuras
do pensamento renascentista, tentando fundir metafísica, ongs
CARRO e Err Depois de longos anos de prisão, foi reabilitado
nsamento europeu já se havia minhado para
sendas completamente diferentes das dio e
Campanella: a autoconsciência 175
4.3. A autoconsciência
Em suas reflexões sobre o conhecimento, que se encontram
no primeiro livro da Metafísica, Campanella apresenta uma refu-
tação do ceticismo, baseando-se na autoconsciência, muito consi-
derada postumamente pelos intérpretes, que nela encontraram
surpreendentes analogias com a teoria tornada célebre por Des-
cartes no Discurso sobre o método, que é de 1637, ao passo que a
Metafísica, como já dissemos, foi publicada em Paris um ano
depois, mas já havia sido elaborada alguns anos antes.
A descoberta cartesiana (de que falaremos com mais ampli-
tude adiante, pp. 366 ss) teria sido então antecipada por Campa-
nella?
Antes de responder, leiamos alguns documentos (extraídos
sobretudo da Metafísica, na tradução de G. di Napoli). Contra os
céticos, escreve o nosso filósofo: “Aqueles que proclamam não saber
se sabem ou se não sabem alguma coisa não falam certo. Efetiva-
mente, sabem necessariamente que não sabem. E, embora isso não
seja saber, já que é uma negação, como a visão das trevas não é
visão, mas privação de visão, entretanto a alma humana tem isso
de próprio: sabe não saber, ao passo que percebe não ver nastrevas
e não ouvir no silêncio. Com efeito, se não percebesse isso, seria
uma pedra, para a qual é indiferente ser ou não seriluminada(...)”
Mas preste-se atenção sobretudo a esta segunda passagem: “A
alma conhece a si mesma com um conhecimento de presenciali-
dade (enquanto é presença de si para si mesma) e não com um
conhecimento objetivo (ou seja, como representação de um objeto
que é diferente de si), exceto no plano reflexo. É certíssimo o
princípio primeiro de que nós somos e podemos, sabemos e que-
remos; depois, em segundo lugar, é certo que nós somos algo e não
tudo e que podemos conhecer alguma coisa e não tudo e não
totalmente. Ademais, quando se passa do conhecimento de presen-
cialidade para os particulares através de um conhecimento objeti-
vo, começa então a incerteza, pelo fato de que a alma torna-se
alienada (logo veremos em que sentido) por causa dos objetos, pelo
conhecimento de si mesma, de modo que os objetos não se revelam
total e distintamente, mas só parcial e confusamente. E, na
verdade, nós podemos, sabemos e queremos o outro porque pode-
mos, sabemos e queremos a nós mesmos.”?
Há analogias com Descartes, mas mostram-se movidas por
exigências diferentes e, sobretudo, se inserem em uma visão
metafísica panpsiquista geral da realidade, que chega, inclusive,
a ser oposta à de Descartes.
Para Campanella, o conhecimento de si não é uma prerroga-
tiva do homem enquanto pensamento, mas de todas as coisas, que
176 Renascimento italiano
são (todas elas, sem exceção) vivas e animadas. Com efeito, para
ele, todas as coisas são dotadas de uma “sapientia indita” ou inata,
através da qual sabem que existem e são ligadas ao seu próprio ser
(“amam” o seu próprio ser). Esse autoconhecimento é um “sensus
sui”, um auto-sentir-se.
Já o conhecimento que toda coisa tem do que é diferente de
si é “sapientia illata”, isto é, aquela que se adquire ao contato com
as outras coisas. Cada coisa é modificada pela outra e de certa
forma se transforma, “alienando-se” na outra. Quem sente não
sente o calor, mas a si mesmo modificado pelo calor; não percebe a
cor, mas, por assim dizer, a si mesmo colorido.
A consciência “inata” que toda coisa tem de si é ofuscada
pelo conhecimento que se acrescenta (superaddita), de modo que
a autoconsciência (consequentemente) se transforma quase em
um sensus adbitus, ou seja, “oculto” dos conhecimentos que
sobrevêm. Nas coisas, o sensus sui permanece predominantemente
oculto; no homem, pode alcançar níveis notáveis de consciência;
em Deus, se desdobra em toda a sua perfeição.
Além da alma-espírito, devemos destacar que Campanella
também reconhece no homem a mente incorpórea e divina. Telésio
já o havia feito. Mas Campanella confere à mente um papel de
importância muito maior, tanto que chega até mesmo, segundo as
doutrinas neoplatônicas, a atribuir-lhe a capacidade de conhecer,
assimilando-se ao inteligível que há nas coisas, os modos e as
formas (as idéias eternas) segundo os quais Deus as criou.
Nessa doutrina, há um ponto que, por sua originalidade,
merece um particular relevo. O conhecimento é, ao mesmo tempo,
perda e aquisição: é aquisição precisamente através da perda. Ser
é saber. Sabe-se aquilo que se é (e aquilo que se faz): “Quem é tudo
sabe tudo; quem é pouco, sabe pouco.” Conhecendo, nós nos “alie-
namos”, mas, nessa “alienação”, adquirimos o diferente de nós:
“Como tornar-se muitas outras coisas através da passividade da
experiência vale o mesmo que ampliar o próprio ser, isto é, de um
tornar-se muitos, o saber é coisa divina, mesmo na passivida- de
da experiência”
E eis um dos textos mais significativos: “Todos os cognos-
centes são alienados do seu próprio ser, como se acabassem na
loucura e na morte; nós estamos no reino da morte.”
Mais uma vez Garin acertou no alvo ao explicar da seguinte
maneira essa doutrina campaneliana: “Assim, conhecer é morrer,
“porque toda morte é transformar-se em algo e toda mutação é
alguma morte'. E, sendo a mutação tornar-se o objeto, ela também
é morte, ainda que parcial; e esse nosso internar-se no objeto
acompanha-se sempre da consciência de nós (...), do senso íntimo
pelo qual não nos dispersamos na coisa, mas permanecemos firmes
Campanella: panpsiquismo e magia 177
em nós mesmos. Mas exatamente aqui intervém aquela revira-
volta do sentido para a sapiência, na qual Campanella insiste. Se
o sentir enquanto fazer-se objeto e, portanto, sofrer, significa
acolher um novo limite e, portanto, morrer, então o contemplar
Deusno interior de todas as coisas, isto é, o Ser que constitui todas,
significa romper a negatividade da realidade e tornar-se verda-
deiramente real. “Então, o aprender e o conhecer, sendo transfor-
mar-se na natureza do cognoscível, são também uma espécie de
morte; só o transformar-se em Deus é vida eterna, porque não se
perde o ser no infinito mar do ser, mas sim se magnifica ”
Esta última passagem citada por Garin pode ser comentada
e esclarecida por este outro trecho da Teologia: “Nós estamos
verdadeiramente em uma terra estrangeira, alienados de nós
mesmos; aspiramos a uma pátria — e a nossa sede é junto de Deus.”
44. A metafísica campaneliana:
as três “primalidades” do ser
Entendido como o entende Campanella, o conhecimento é
revelador da estrutura das coisas, de sua “essenciação”, como diz
o nosso filósofo. Toda coisa é constituída “pela potência de ser, pelo
saber de ser e pelo amor de ser”.
Essas são as “primalidades do ser”, que, de certo modo,
correspondem àquilo que eram os transcendentais na onto-
logia medieval,
À medida que pode ser, todo ente 1) é “potência” de ser; 2)
ademais, tudo aquilo que pode ser “sabe” também que é;3)e, se sabe
que é, “ama” o seu próprio ser. Isso é provado pelo fato de que, se
não soubesse que é, não fugiria daquilo que o prejudica e destrói.
As três “primalidades” são iguais em dignidade, ordem e
origem: uma “imane”, ou seja, está presente na outra e vice-versa.
Obviamente, pode-se falar também de “primalidades do não-
ser”, que são a “impotência”, a “insipiência” e o “ódio”. Elas
constituem as coisas finitas, enquanto toda coisa finita é potência,
mas não de tudo aquilo que é possível; conhece, mas não conhece
tudo aquilo que é cognoscível; ama e, ao mesmo tempo, odeia.
Deus, por seu turno, é Potência suprema, Sapiência suprema
e Amor supremo.
Assim, em diferentes níveis, a criação repete o esquema
trinitário. Trata-se de uma doutrina de gênese agostiniana, que
Campanella amplia em sentido panpsiquista.
4.5. O panpsiquismo e a magia
Ainda uma vez partindo de Telésio e de sua doutrina da
animação universal das coisas, Campanella vai muito mais além,
178 Renascimento italiano
não apenas se movendo na direção conceitual dos neoplatônicos,
mas a ela mesclando visões nascidas de sua vida e consciente
fantasia, formulando desse modo uma doutrina animístico-mágica
levada ao extremo.
Segundo Campanella, as coisas falam e se comunicam entre
si diretamente. Enviando os seus raios, as estrelas comunicam “os
seus conhecimentos”. Ademais, os metais e as pedras “se nutrem
e crescem, mudando o solo onde inicialmente nascem com a ajuda
do Sol, bem como as ervas, em líquor, que puxam para si pelas suas
veias, onde os diamantes crescem em pirâmides e os cristais em
figura cúbica (...)”.
Para ele, há plantas cujos frutos tornam-se pássaros.
Há uma “geração espontânea” de todos os viventes, inclu-
sive dos superiores, porque tudo está em tudo e, portanto, tudo
pode derivar de tudo.
Neste trecho do Sobre o sentido das coisas e da magia, eis
como Campanella esboça a sua visão geral:
“Todos os animais dentro do mundo estão como os vermes
dentro do animal, não pensando que ele sente, como os vermes do
nosso ventre não pensam que nós sentimos e que nós temos alma
maior do que a deles, nem são animados pela comum alma bem-
aventurada do mundo, mas cada qual pela sua própria, como os
vermes em nós, que não têm a nossa mente por alma, mas sim o seu
próprio espírito.
O homem é epílogo de todo o mundo e admirador dele, se
quiser conhecer a Deus, mas, no entanto, ele é feito. O mundo é
estátua, imagem, templo vivo de Deus, onde ele pintou os seus
gestos e escreveu os seus conceitos, ornando-o de vivas estátuas,
simples no céu, mistas e fracas na terra — mas a partir de todas
caminha-se para ele.
Bem-aventurado quem lê nesse livro e dele aprende,aquilo
que as coisas são — e não do seu próprio capricho —, aprende a arte
e o governo divino e, consequentemente, faz-se semelhante e
unânime a Deus, e com ele vê que toda coisa é boa e que o mal é
reflexo e máscara das partes que representam alegre comédia para
o Criador, e que puramente desfruta, admira, lê e canta o infinito
e imortal Deus, Primeira Potência, Primeira Sapiência e Primuiro
Amor, de onde derivam e existem todo poder, saber e amor,
conservando-se e transformando-se segundo os fins entendidos
pela alma comum, que aprende do Criador, que sente a arte do
Criador nas coisas inserida e que mediante aquela grande coisa
guia emove para o grande fim, até que cada coisa setornetoda coisa
e mostre a toda outra coisa as belezas da eterna idéia.”
No que se refere propriamente à arte mágica, Campanella
nela distinguetrês formas: 1) a divina; 2) anatural;3) a demoníaca.
Campanella: a utopia política 179
À primeira é aquela que Deus concede aos profetas e santos.
Aúltima é a que se vale da arte dos espíritos malignos, sendo
condenada por Campanella.
Já a segunda, a natural, “é uma arte prática que se serve das
propriedades ativas e passivas das coisas naturais para produzir
efeitos maravilhosos e insólitos, dos quais, as mais das vezes, se
ignora a causa e o modo de provocá-los (...)”. Nessa linha, Campa-
nella amplia em sentido panmagístico a magia natural, a ponto de
nela inserir todas as artes, invenções e descobertas, como a
invenção da imprensa e da pólvora, entre outras. Os próprios
oradores e poetas entram na relação dos magos: “são magos
segundos”. Mas, conclui Campanella, “a maior ação mágica do
homem é dar leis aos homens”.
4.6. A “Cidade do Sol”
Desse modo, estamos agora em condições de compreender a
“Cidade do Sol” e o seu significado: ela representa a soma das
aspirações de Campanella e verbaliza os seus anseios de reforma
do mundo e de libertação dos males que o afligem, fazendo uso dos
poderosos instrumentos da magia e da astrologia. Assim, é como
que um cadinho de motivos no qual estão contidas todas as
aspirações do Renascimento.
Eis, então, uma breve descrição da Cidade do Sol.
A cidade ergue-se sobre um vale que domina uma vasta
planície, sendo dividida em “sete grandes círculos, denominados
com o nome dos sete planetas, entrando-se de um para o outro
através de quatro estradas e quatro portas, situadas nos quatro
respectivos ângulos do mundo”. Acima do vale, surge um templo
redondo, sem muralhas em torno, mas “situado sobre colunas
grossas e bastante belas”. À cúpula apresenta uma cúpula menor,
com uma espiral que “pende sobre o altar”, que está no centro.
Sobre o altar, “nada mais há do que um mapa mundi bem
grande, onde está pintado todo o céu, além de outro, onde está a
terra. No céu da cúpula, estão todas as maiores estrelas do céu,
tendo inscritos os seus nomes e as virtudes que têm sobre as coisas
terrenas, com três versos para cada uma(...), havendo sempre sete
lâmpadas acesas, com os nomes dos sete planetas”.
A cidade é dirigida por um príncipe-sacerdote chamado Sol,
que Campanella indica nos manuscritos com o sinal astrológico,
especificando que “em nossa língua dizemos Metafísico”. Ele é o
“chefe de todos no espiritual e no temporal”. Os príncipes que o
assistem chamam-se Pon, Sin e Mor, que significam “Potência,
Sapiência e Amor” (ou seja, representam as “primalidades” do ser),
cada qual desenvolvendo funções adequadas ao seu nome.
Jerônimo Cardan (1501-1576): um dos mais renomados magos do Renas-
cimento.
Capítulo V
A REVOLUÇÃO CIENTÍFICA
1, A revolução científica: traços gerais
1.1. A revolução científica: o que muda com ela?
O período de tempo que vai mais ou menos da data de
publicação do De revolutionibus de Nicolau Copérnico, isto é, de
1543, à obra de Isaac Newton, Philosophiae naturalis principia
mathematicaque foi publicada pela primeira vez em 1687, hoje é
comumente apontado como o período da “revolução científica”.
Trata-se de um poderoso movimento de idéias que adquire no
século XVII as suas características determinantes na obra de
Galileu, que encontra os seus filósofos — em aspectos diferentes —
nas idéias de Bacon e Descartes e que depois iria encontrar a sua
expressão agora clássica na imagem newtoniana do universo
concebido como uma máquina, ou seja, como um relógio.
O elemento detonador desse processo de idéias foi certamen-
te a “revolução astronômica”, que teve seus representantes mais
prestigiosos em Copérnico, Tycho Brahe, Keplere Galileue queiria
confluir para a “física clássica” de Newton. Nesse período, portan-
to, muda a imagem do mundo. Peça por peça, trabalhosa, mas
progressivamente, caem por terra os pilares da cosmologia aristo-
télico-ptolemaica: assim, por exemplo, Copérnico coloca o Sol no
centro do mundo, ao invés da Terra; Tycho Brahe, mesmo sendo
anticopernicano, elimina as esferas materiais que, na velha cos-
mologia, arrastavam os planetas com seu movimento e substitui a
idéia de orbe (ou esfera) material pela moderna idéia de órbita;
Kepler apresenta uma sistematização matemática do sistema
copernicano e realiza a revolucionária passagem do movimento
186 A revolução científica
circular (Cnatural” e “perfeito”, na velha cosmologia) para o movi-
mento elíptico dos planetas; Galileu mostra a falsidade da distin-
ção entre física terrestre e física celeste, fazendo ver que a Lua é
da mesma natureza da Terra e, entre outras coisas, cria novos
fundamentos com a formulação do princípio da inércia; Newton,
com sua teoria gravitacional, unificaria a física de Galileu com a de
Kepler; com efeito, do ponto de vista da mecânica de Newton, pode-
se dizer que as teorias de Galileu e de Kepler constituem boas
aproximações a certos resultados particulares obtidos por Newton.
Entretanto, durante os cento e cinquenta anos que decorrem
entre Copérnico e Newton, não é apenas a imagem do mundo que
se transforma. Vinculada a essa transformação, dá-se também a
mudança — que também foi lenta e tortuosa, mas decisiva — das
idéias sobre o homem, sobre a ciência, sobre o homem de ciência,
sobre o trabalho científico e as instituições científicas, sobre as
relações entre ciência e sociedade, entre ciência e filosofia e entre
saber científico e fé religiosa.
1) Copérnico tira a Terra do centro do universo e, com ela, o
homem. A terra não é mais o centro do universo, mas um corpo
celeste como os outros: ela, precisamente, não é mais aquele centro
do universo criado por Deus em função de um homem concebido
como o ponto mais alto da criação, em função do qual estaria todo
o universo. E, como a Terra não é mais o lugar privilegiado da
criação e se ela não é diferente dos outros corpos celestes, então não
poderia haver outros homens também em outros planetas? E,
ocorrendo isso, como poderia resistir a verdade da narração bíblica
sobre a descendência de todos os homens de Adão e Eva? E como
é que Deus, que desceu nesta Terra para redimir os homens,
poderia ter redimido outros eventuais homens? Essas interroga-
ções já se haviam proposto com a descoberta dos “selvagens” da
América, descoberta que, além de levar a mudanças políticas e
econômicas, também proporia inevitáveis questões religiosas e
antropológicas à cultura ocidental, colocando-a diante da “expe-
riência da diversidade”. E quando Bruno rompe os limites do
mundo, fazendo o universo infinito, o pensamento ocidental encon-
trou-se na premência de buscar uma nova morada para Deus.
2) Mudando a imagem do mundo, muda a imagem do homem.
Mas também, progressivamente, muda a imagem da ciência. A
revolução científica não consiste somente em adquirir teorias
novas e diferentes das anteriores sobre o universo astronômico,
sobre a dinâmica, sobre o corpo humano ou, talvez, sobre a
composição da Terra. Ao mesmo tempo, a revolução científica é
uma revolução da idéia de saber e de ciência. A ciência — e esse é
o resultado da revolução científica, resultado que Galileu iria
explicitar com clareza absoluta — não é mais a intuição privile-
A novidade da ciência moderna 187
giada do mago ou astrólogo iluminado, individualmente, nem o
comentário a um filósofo (Aristóteles) que disse “a” verdade e toda
averdade, isto é, não é mais um discurso sobre “o mundo de papel”,
mas sim investigação e discurso sobre o mundo da natureza. Essa
imagem de ciência não surge toda pronta, de uma vez, mas emerge
progressivamente de um tumultuado cadinho de concepções e
idéias, em que se entrelaçam e entrecruzam misticismo, herme-
tismo, astrologia, magia e, sobretudo, temáticas da filosofia
neoplatônica. Trata-se de um processo verdadeiramente complexo,
que, como dizíamos, encontra seu resultado mais claro na funda-
mentação galileana do método científico e, portanto, na autonomia
da ciência em relação às proposições de fé e às concepções filosó-
ficas. O discurso qualifica-se enquanto tal porque — como disse
Galileu — procede com base nas “experiências sensatas” e nas
“demonstrações necessárias”. E a “experiência” de Galileu é o
“experimento”. A ciência é ciência experimental. E através do
experimento que os cientistas tendem a obter proposições verda-
deiras sobre o mundo. E essa nova imagem da ciência — feita de
teorias sistematicamente controladas através dos experimentos —
“era o registro de nascimento de um tipo de saber entendido como
uma construção perfectível, que nasce da colaboração dos gênios,
que necessita de uma linguagem específica e rigorosa e que, para
sobreviver e crescer sobre si mesma, necessita de instituições
específicas próprias (...). Um tipo de saber (...) que crê na capaci-
dade de crescimento do conhecimento, que não se baseia na pura e
simples rejeição das teorias anteriores, mas sim em sua substi-
tuição por teorias mais “amplas”, que sejam logicamente mais “for-
tes” e tenham maior conteúdo de controlabilidade” (Paulo Rossi).
3) Com a revolução científica, “abriu-se caminho para as
categorias, os métodos, as instituições, os modos de pensar e os
valores relacionados com aquele fenômeno que, depois da revolu-
ção científica, costumamos chamar de ciência moderna” (Paulo
Rossi). E o traço mais característico desse fenômeno que é a ciência
moderna resume-se precisamente no método, que, por um lado,
exige imaginação e criatividade de hipóteses e, por outro lado, o
controle público dessas imaginações. Em sua essência, a ciência é
pública — e o é por questões de método. É a idéia de ciência
metodologicamente regulada e publicamente controlável que exi-
ge as novas instituições científicas, como as academias, os labo-
ratórios, os contatos internacionais (basta pensar em todos os
epistolários importantes). E é com base no método experimental
que se funda a autonomia da ciência, que encontra as suas
verdades independentemente da filosofia e da fé. Mas tal inde-
pendência não tarda a se transformar em confronto, que, no “caso
Galileu”, torna-se tragédia.
188 A revolução científica
Quando Copérnico tornou público o seu De revolutionibus, o
teólogo luterano André Osiander apressou-se em escrever um
Prefácio sustentando que a teoria copernicana — contrária à
cosmologia contida na Bíblia — não deve ser considerada como
uma descrição verdadeira do mundo, mas muito mais como um
instrumento para fazer previsões. E essa seria também a idéia
sustentada pelo cardeal Bellarmino em relação à defesa do coper-
nicanismo realizada por Galileu. Lutero, Melanchton e Calvino
iriam se opor duramente à concepção copernicana. E a Igreja
católica processou por duas vezes Galileu, que seria condenado e
forçado à abjuração. Entre outras coisas, estamos diante de um
confronto entre dois mundos, entre dois modos de ver a realidade,
entre duas maneiras de conceber a ciência e a verdade. Para
Copérnico, Kepler e Galileu, a nova teoria astronômica não é mera
suposição matemática nem um simples instrumento de cálculo,
embora útil para melhorar a feitura do calendário, mas sim uma
descrição verdadeira da realidade, obtida através de um método
que não esmola garantias fora de si mesmo. O saber de Aristóteles
é “pseudofilosofia” e a Escritura não tem a função de nos informar
sobre o mundo, mas é palavra de salvação que apresenta um
sentido para a vida dos homens.
4) Juntamente com a cosmologia aristotélica, a revolução
científica leva à rejeição das categorias, dos princípios e das
pretensões essencialistas da filosofia aristotélica. O antigo saber
pretendia ser saber de essências, ciência feita de teorias e conceitos
definitivos. Mas o processo da revolução científica conflui para a
idéia de Galileu, que escreve: “Considero o tentar a essência como
uma empresa não menos impossível e, pelo esforço, não menos vã
nas substâncias elementares próximas do que nas remotíssimas e
celestes: parece-me ser igualmente ignaro sobre a substância da
Terra quanto da Lua, das nuvens elementares quanto dás man-
chas do Sol (...). (Mas,) embora inutilmente, se se tentasse a
investigação da substância das manchas solares, só nos restariam
algumas de suas impressões, como o lugar, o movimento, a figura,
a grandeza, a opacidade, a mutabilidade, a produção e a dissolução
que poderiam ser captadas por nós.” Ou seja: a ciência como ela se
configura ao fim do longo processo da revolução científica, não está
mais voltada para a essência ou substância das coisas e dos
fenômenos, mas sim para a qualidade das coisas e dos aconteci-
mentos de modo objetivo e, portanto, sendo comprováveis e quan-
tificáveis publicamente. Não é mais o que, mas o como; não é mais
a substância, mas sim a função, que a ciência galileana e pós-
galileana passariam a indagar.
5) Seo processo da revolução científica é também um processo
de rejeição da filosofia aristotélica, não devemos em absoluto
L
A novidade da ciência moderna 189
pensar que ele careça de pressupostos filosóficos. Os artífices da
revolução cientítifica, de vários modos, também estiveram ligados
ao passado, referindo-se, por exemplo, a Arquimedes e Galeno. A
mística do Sol, tanto hermética como neoplatônica, por exemplo,
domina a obra de Copérnico e a de Kepler, podendo ser encontrada
na de Harvey. E o grande tema neoplatônico do Deus que geome-
triza e que, criando o mundo, cria-o imprimindo nele uma ordem
matemática e geométrica que o pesquisador deve procurar, é um
tema que atravessa grande parte da revolução científica, como a
pesquisa de Copérnico, de Kepler ou de Galileu.
6) Assim, podemos dizer com certa cautela que o neoplato-
nismo constitui a “filosofia” da revolução científica. De todo modo,
ela representa certamente o pressuposto metafísico do eixo da
revolução científica, vale dizer, da revolução astronômica. En-
tretanto, as coisas são ainda mais complexas do que aquilo que
expusemos até agora. Com efeito, a historiografia recente, mais
atualizada (com E. Garin e Frances A. Yates, por exemplo),
destacou com abundância de dados a relevante presença da tra-
dição mágica e herméticano interior do processo que levou à ciência
moderna. Naturalmente, havia aqueles que, como Bacon ou Boyle,
criticavam a magia e a alquimia com toda a dureza possível, ou
aqueles que, como Pierre Bayle, investiam contra as superstições
da astrologia. Mas, em todos os casos, a magia, a alquimia e a
astrologia são ingredientes ativos do processo que foi a revolução
científica. Como também o foi a tradição hermética, isto é, aquela
tradição que, referindo-se a Hermes Trismegisto (recordamos que
o Corpus Hermeticum havia sido traduzido por Marcílio Ficino),
tinha como princípios fundamentais o paralelismo entre o macro-
cosmos e o microcosmos, a simpatia cósmica e a concepção do
universo como um ser vivo. No curso da revolução científica, alguns
temas e idéias mágicos e herméticos, devido ao contexto cultural
diferente em que vivem ou revivem, se tornariam funcionais para
a gênese e o desenvolvimento da ciência moderna. Mas isso nem
sempre era possível ou nem sempre ocorreu. Em suma, a revolução
científica avançou por um mar de idéias que nem sempre ou nem
sempre completamente mostravam-se funcionais ao desen-
volvimento da ciência moderna. Assim, por exemplo, enquanto
Copérnico se referia à autoridade de Hermes Trismegisto (além da
filosofia neoplatônica) para legitimar o seu heliocentrismo, já
Bacon censura Paracelso (que, no entanto, como veremos, tinha
seus méritos) não tanto por desertar a experiência, mas muito mais
por tê-la traído, corrompendo as fontes da ciência e despojando a
mente dos homens. E, da mesma forma, os astrólogos reagiram
violentamente ao “novo sistema do mundo”. Com as descobertas de
Galileu, o mundo tornou-se maior e a quantidade de corpos celestes