Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

generalidade , Notas de estudo de Eletrônica

muito completo abragento toda a area do conhecimento humano

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 19/02/2010

jeremias-pepicon-11
jeremias-pepicon-11 🇧🇷

4

(2)

3 documentos

Pré-visualização parcial do texto

Baixe generalidade e outras Notas de estudo em PDF para Eletrônica, somente na Docsity! "A IGREJA MENTE, É CORRUPTA, CRUEL E SEM PIEDADE" Frei Betto - Eu queria começar com o seguinte: você tem que idade e quantos livros publicou? Leonardo Boff - Bom, eu tenho 58 anos e 62 livros publicados. Frei Betto - Teu pai era um erudito, ex-seminarista jesuíta, e a tua mãe morreu muito tempo depois dele, analfabeta... Sérgio de Souza - A minha pergunta inicial era por aí mesmo: como foi a sua infância? Leonardo Boff - Sou filho de imigrantes italianos, de avós italianos que foram para o Rio Grande do Sul e daí para Santa Catarina, no interior, e desbravaram a região que é Concórdia hoje, que é a sede da Sadia. Meu pai tinha sido quase jesuíta e fez uma opção curiosa, que foi a de acompanhar a colonização da região para ser professor, o farmacêutico, o juiz de paz, mestre-escola, puxador de orações, era um mestre da colonização. Frei Betto - Falava várias línguas... Leonardo Boff - É, dava aulas em italiano e alemão. Quando veio a Segunda Guerra e a imposição do governo de que todos deviam falar o português, ele então começou a ensinar em português, a escola não podia mais ensinar em italiano e alemão. Frei Betto - Ele sabia grego e latim... Leonardo Boff - Ele conhecia muito bem o latim e o grego, e durante seus trinta anos como professor ensinou rudimentos de latim e grego a todos os estudantes. Tanto que, quando cheguei ao seminário, com 12 anos, eu conhecia as palavras básicas do latim e do grego. E, como na região todos só falavam alemão e italiano, ele criou uma espécie de biblioteca popular, mais de 2.000 livros, e depois da reza da comunidade cada família buscava um livro, tinha de ler em português, e no outro domingo tinha de contar o que leu, numa roda de mais de cem pessoas. Ele se fez também representante de uma loja de rádios de Porto Alegre, e montava em cada casa da nossa região um rádio, para a família ouvir o dia inteiro e assim aprender o português. Quando não queriam, ele montava o rádio em cima de um toco, com as baterias, e ia embora. E à noite fazia alfabetização de adultos. Frei Betto - Menos para a tua mãe. Leonardo Boff - Com a minha mãe não havia maneira, inventei mil formas, numa viagem que fiz ao Vaticano consegui que o papa benzesse um caderno e uma caneta de um confrade que trabalhava na Secretaria de Estado, para a minha mãe, e disse a ela: "Isto aqui é bento pelo papa, esta caneta, este caderno, a senhora aprende...". E ela: "O papa não vale nada, é um bobalhão, eu não quero saber de aprender". É interessante lembrar que a Sadia é de parentes da minha mãe, ela é Fontana – a Sadia era um frigorífico dos frades de Concórdia, de repente cresceu e chamaram alguém mais esperto, que era o Atílio Fontana, e os frades venderam o frigorífico a ele por um preço irrisório. Ele era tão esperto que negociava banha e metia pedra dentro para pesar mais, ou alfafa, fazia aqueles feixes de alfafa e pedras dentro para pesar mais. Quer dizer, esse era o esperto que podia levar o negócio adiante. Sérgio de Souza - Pai do Omar Fontana. Leonardo Boff - Pai do Omar. O Atílio Fontana morreu há cinco ou seis anos. E, como não havia estrada naqueles interiores, eu ia para o seminário nos aviões da Sadia, tudo cheio de lingüiça e frangos, e num banquinho da frente, eu e meu irmão, cheirando frango até São Paulo. O seminário era perto de Bauru, em Agudos. Ricardo Kotscho - E como foi essa vocação tão cedo, com 12 anos? Leonardo Boff - Entrei no seminário porque meu pai era muito religioso, mas de uma religiosidade muito crítica. Como tinha formação jesuíta, vivia brigando com os padres alemães, franciscanos, que eram muito duros, nazistas. Então, como ele animava a vida da comunidade, naturalmente os filhos eram ligados à Igreja etc. Com 12 anos, de fato, entrei para o seminário, depois entrou um outro irmão meu, que também é teólogo, o Clodovis. Frei Betto - Não houve resistência por parte da tua mãe? Leonardo Boff - Olha, houve por parte do meu pai, porque ele dizia: "Esses alemães são tão reacionários, tão nazistas...". Porque meu pai atendia também a comunidade protestante, e os padres não queriam que se casassem protestantes e católicos. Então era um ponto de atrito. Leo Gilson Ribeiro - Quer dizer que seu pai era ecumênico. Leonardo Boff - Ecumênico, e defendia os caboclos que eram muito perseguidos. Esse é um capítulo trágico da nossa região, os colonos faziam expedições para matar índios, porque os índios vinham e roubavam roupa, roubavam coisas expostas. E me recordo de histórias dos meus avós, faziam expedições de dez, doze, com espingardas, e iam "matar os bugres". Contavam que exterminaram todos os bugres da região. Mas meu pai tinha uma opção muito grande pelos caboclos, pelos negros, que eram extremamente discriminados pelos alemães e italianos. Ele era padrinho de todos esses discriminados e na escola nos obrigava a sentar sempre junto dos caboclinhos, junto a negrinhos, para mostrar que o filho do professor e o professor estão a favor destes. E até hoje, naquela região, se guarda a memória, muitos deles dizem: "Deus no céu e seu Mansueto na Terra". Mansueto era o nome de meu pai. "MEU PAI DIZIA: 'DEUS INVENTOU OS PADRES E SACERDÓCIO. O DIABO INVENTOU O CLERO'." Frei Betto - Eu queria voltar à tua mãe. Tem duas imagens que marcam muito, que é ela ser analfabeta e um dia você ter gravado os seus livros para ela ouvir... Leonardo Boff - Gravei tópicos de vários livros meus para ela escutar, ela escutou e disse: "Puxa, mas que interessante, eu não te ensinei isso, como você sabe essas coisas se eu não te ensinei?" Uma vez cheguei em casa e ela me perguntou: "Você, que é padre" – ela não dizia teólogo, dizia "tiólogo" –, você já viu Deus?" Eu digo: "Mãe, a gente não vê Deus". Ela: "Mas como, você, tantos anos padre, não viu Deus? Isso é uma vergonha para o padre!" Eu digo: "Mãe, a senhora vê?" E ela: "Lógico que eu vejo Deus. De vez em quando tem o pôr-do-sol, aquelas nuvens, fico olhando e ele passa com aquele manto, sorrindo, e atrás vem teu pai que já morreu, sempre olhando pra mim e rindo, e eu fico uma semana inteira com alegria no coração." E me olhava com tristeza infinita: "Como é possível que os padres não vêem Deus?" Quem é teólogo é ela! (risos) Marina Amaral - Você teve educação religiosa formal. Como era a parte formal de ir à missa, essa relação que as crianças têm com a religião católica, essa imagem de Leo Gilson - Embora seja muito efêmera? Leonardo Boff - É. Mas, de toda maneira, é vida, não é? Então eu disse: "Darcy, no pensamento mais originário, contemporâneo, da biologia molecular, no estilo Elya Prigogine, o caos é uma invenção da orbi, a morte é uma invenção da vida, pra vida ser mais complexa, mais alta, e a tendência da vida é buscar a sua perpetuação, a sua imortalidade. Darcy, deixa te dizer como imagino a tua chegada, o teu grande encontro. Não vai ser com Deus Pai, porque pra você Deus tem de ser Mãe, tem de ser mulher... (risos) Então tem de ser Deusa. Imagino assim: que Deus, quando você chega lá em cima, vai dizer com os braços abertos: ‘Darcy, como você custou pra chegar, eu estava com uma saudade louca de você, finalmente você veio, você não queria vir, você teve de vir e agora chegou’. E te abraça e te afaga em seu seio, e te leva de abraço em abraço, de festa em festa...". E ele emendou: "De farra em farra...". (risos) Eu digo: "Darcy, isso será pela eternidade afora". Aí ele parou e me olhou de lado, assim como que interrogando, e disse: "Como gostaria que fosse verdade! Minha mãe morreu cheia de fé e morreu tranqüila, eu invejo você, que é um homem inteligente e de fé. Eu não tenho fé. Como gostaria que fosse verdade". E aí lhe correu uma lágrima e ele ficou silencioso, estremeceu e teve um acesso de diabetes, uma queda muito grande de pressão e tiveram de levá-lo. E terminou assim a conversa. Eu ainda disse antes de ele sair: "Darcy, não se preocupe com a fé, porque Deus não se incomoda com a fé. Pelos critérios de Jesus, quem tem amor tem tudo. Então, quando a gente chega na tarde da vida como você, quem atendeu os famintos como você; crianças abandonadas como você; índios marginalizados como você; negros que você defendeu; as mulheres oprimidas, desde o neolítico ninguém louvou tanto a mulher quanto você – quem fez isso ganha tudo, porque optou pelos últimos, por aqueles que estavam em necessidade. Quem fez isso tem o reino, tem a eternidade, tem Deus. E você só fez isso". Ele respirou e disse: "Puxa, mas tem de ser verdade". Mas não conseguia dar o passo, acho que não importa dar o passo, acho que ele teve a coerência de vida, que foi carregada de um grande sentido, de uma grande luta generosa. Sérgio Pinto - Lendo nos arquivos um pouco da sua trajetória, salta aos olhos a pressão, as sucessivas convocações ao Vaticano, os sucessivos esclarecimentos, questionamentos etc. Como foi esse processo de inquisição do qual você é vítima? Leonardo Boff - É um processo que talvez o Roberto Freire tenha mais condições de descrever. Porque é um processo que atinge a tua identidade mais profunda, não é só um processo doutrinário, é um processo de desmontagem da tua figura de teólogo, o efeito é que alguém que está sob interrogatório do Vaticano não pode ser convidado pela Igreja, pelas comunidades, pelos bispos, para dar palestras no retiro espiritual. É tolerado que ele dê aula, mas com grande vigilância sobre o que ele ensina. E ele recebe uma vigilância direta sobre as homilias que profere, porque já está sob suspeita. Como padre, tem o direito de celebrar missa e fazer a homilia, mas porque está em processo de ajuizamento ele perde toda a confiabilidade. Sérgio Pinto - Não é uma desqualificação? Leonardo Boff - Desqualificação. Isso vinha desde 1972, cada livro que eu publicava era objeto de análise do Santo Ofício. E você sente a vontade deles de condenar. Eu via isso como um paralelo dos nossos organismos de segurança. Se você vai nas malhas desses organismos, está perdido, porque sistematicamente, de forma burocrática, você é acompanhado. Começou em 1972 com o livro Jesus Cristo Libertador, e culminou em 1984 com Igreja, Carisma e Poder. Há toda uma longa história com cartas, idas e vindas, um diálogo extremamente penoso com o Vaticano, com o secretário do Santo Ofício, que depois também foi o grande inquisidor do processo. Chico Vasconcellos - Como é o nome desse secretário? Leonardo Boff - Ele morreu em 1996, era o cardeal Hamer, Jerome Hamer. Sérgio de Souza - Você pode reproduzir esse diáologo? Leonardo Boff - Foi dramático, só nós dois, eu e o cardeal Hamer, é difícil reproduzir com objetividade, porque foi uma vivência da coisa. Foi no grande salão do Santo Ofício, que deve ter pelo menos 150 metros de comprimento. Imenso salão, com tapetes enormes. Lá no fundo, num canto, uma cadeirinha, uma pequena mesa e eu sentado lá, esperando quarenta minutos pelo cardeal. Toda hora me diziam: "Está chegando". Vejo ele chegando de longe, todo paramentado de cardeal, com toda a pompa vermelha. Fiquei realmente amedrontado. Primeiro, quarenta minutos de espera, você sozinho, abandonado. Ele vem, senta e diz: "A tua igreja pediu um diálogo. Quem fala aqui é o responsável pela doutrina, não quero dialogar, só quero testar se a tua fé é verdadeira ou não. Primeiro, como referência: o que você acha do Vaticano II?" Eu disse: "O Vaticano II foi um extraordinário concílio pastoral". E ele: "Erro, não é pastoral, é doutrinário. Esse é o teu erro, considerar que esse concílio adaptou a Igreja ao mundo moderno, não adaptou nada! Ele tem de ser lido na óptica do Vaticano I, como doutrina, e você não faz isso". Aí puxa uma pasta com todas as minhas cartas. "Na carta tal, você diz isto, pior, você subscreve" – porque eu sempre subscrevi, com um certo humor franciscano, frater teologus minor et pecator (irmão, teólogo menor e pecador). "Você escreve isto, você é pecador mesmo?" Eu respondo: "Está escrito, admiro que o senhor não se considere um pecador". E ele: "Eu sou autoridade, não cabe a mim apresentar-me como um pecador". Digo: "O senhor é um cristão". Lembrei o famoso sonho de São Jerônimo, em que ele aparece no Céu e Deus lhe pergunta: "Quem é você?" Jerônimo diz: "Teologus sum traductor sum" – sou teólogo, sou tradutor da Bíblia. E Deus: "Não, não conheço". Até que Jerônimo acerta: "Cristianus sum". Então, Deus lhe diz: "Sim, cristianus sum pecator sum". E aí Deus o acolhe. Perguntei ao cardeal: "O senhor esqueceu o sonho de São Jerônimo?" Pois ele respondeu dizendo: "Eu estive no Brasil, conheço o teu país, e vocês cometem um erro fundamental que é pensar a partir da prática. Isso não existe, isso fazem os marxistas, não os cristãos. Os cristãos pensam a partir da tradição, a partir do magistério da Igreja, a partir dos documentos oficiais. E vocês tentam dialogar com a ciência a partir da realidade. Então, vocês não fazem teologia, vocês são menores, não têm seriedade no discurso". Eu: "Bom, se não tenho seriedade, por que o senhor me chama aqui, por que questiona os meus textos?" Até o ponto em que ele diz: "Eu conheço o Brasil, aquilo que vocês fazem nas comunidades eclesiais de base não é verdade, o Brasil não tem a pobreza que vocês imaginam, isso é a construção da leitura sociológica, ideológica, que a vertente marxista faz. Vocês estão transformando as comunidades eclesiais de base em células marxistas, que, mais do que rezar e militar a palavra de Deus, aprendem a guerrilha. Por isso, vocês, quando começam a conversar, dizem: ‘Como vai a luta?’ Está vendo? A luta. E, para nós, isso quer dizer como vai a vida, não é?" Sérgio Pinto - Em que ano foi isso? Leonardo Boff - Foi em 1989. Chegou a um ponto que comecei a chorar de tanta raiva. E ele disse: "E mostra a tua fragilidade! Porque você chora como uma criança!" Fiquei com tanta raiva que fechei o punho: "Vou matar o cardeal". E comecei a mirar onde ia acertar... "Vou matá-lo." Fiquei lutando contra mim mesmo, por uns cinco minutos, fechado, pensando: "Quero matar esse homem, porque é isso que ele merece". Então lhe disse: "Olha, padre, acho que o senhor é pior que um ateu, porque um ateu pelo menos crê no ser humano, o senhor não crê no ser humano. O senhor é cínico, o senhor ri das lágrimas de uma pessoa. Então não quero mais falar com o senhor, porque eu falo com cristãos, não com ateus". Aí ele parou e disse: "Então vamos falar de outras coisas. Sou cardeal aqui dentro, e o cardeal mais odiado do mundo, lido com os que entram, com os que devem sair, nomeio os teólogos, todos os bispos que vêm aqui defendem os teólogos, tenho de me explicar. Aos domingos vou comer com os dominicanos" – ele era dominicano –, "ninguém conversa comigo". Morreu de câncer. E teve uma surpresa imensa, porque ele estava morrendo, eu estava de passagem por Roma e telefonei: "Aqui é o Boff, aquele que o senhor condenou". E ele: "Ninguém me telefona... foi preciso você me telefonar! Me sinto isolado. Queria ser um grande teólogo e não consegui. Me fizeram logo bispo, me chamaram pra cá, não tenho comunidade, celebro sozinho de manhã e me sinto desprezado pelos meus irmãos dominicanos". Aí começou a chorar. Não perdoei: "Quem é o fraco agora? Mas não quero fazer o que fez comigo! Quero enxugar as suas lágrimas". E ele: "Boff, vamos ficar amigos, conheço umas pizzarias aqui perto do Vaticano...". (risos) Chico Vasconcellos - Lá também acaba em pizza. Leonardo Boff - "... Quando você vier pra cá, me telefone, vamos tirar essas roupas, vamos conversar, tomar um vinho." Chorava como uma criança. Ricardo Kotscho - Qual é o papel de dom Eugênio Sales nesse processo? Porque esse Hamer não tinha tanto conhecimento do que acontecia no Brasil pra dizer se havia muito pobre ou pouco pobre. Alguém daqui informava o Vaticano... Leonardo Boff - Deixa eu dizer antes qual foi o efeito do Hamer em mim: nunca tinha desejado a morte a ninguém, nunca tinha imaginado matar alguém. Voltei para o Brasil totalmente desestruturado em termos psicológicos. Me senti um criminoso, "eu matei" em termos afetivos. Fui me curar passando dois meses na floresta amazônica, me enfiei no Acre, visitando comunidades, para recuperar a minha sanidade psicológica. E tal foi a densidade, que descobri a minha sombra: "Sou capaz de matar, gente!" Mas o grande capítulo foi em 1984, com o livro Igreja, Carisma e Poder. Era uma coletânea de estudos sobre a questão do poder na Igreja e o carisma, e a questão central era se a Igreja como instituição pode se converter ou não. Eu dizia que não, enquanto ela é poder não se converte. Ela é vítima do seu próprio sistema, de sua própria dogmática. Dei o livro para o meu irmão ler, o frei Clodovis, que é teólogo, e ele me disse: "Esse livro vai ser condenado. E, se o Vaticano não reagir, é sinal de que está moribundo, não vale nada. Agora, se tem um mínimo de vida, vai reagir". E reagiu – me convocaram. E a irritação do cardeal Hamer começou porque me convocou para o dia 28 de agosto de 1984, o dia do Encontro Nacional das Prostitutas, e eu era assessor delas. Então escrevi: "Segundo o Evangelho, as prostitutas são primeiras no Reino de Deus, não vou nesse dia, prefiro ir ao encontro delas do que ao Santo Ofício. Só aceito ir se for no dia 7 de setembro, dia nacional da pátria". Ele mandou telegrama dizendo que só poderia ser no dia 28 de agosto e respondi que iria em 7 de setembro. De fato, fui nesse dia, que foi o dia do julgamento. Agora, o que estava por trás era o sentido político da questão – fui vítima de um processo mais amplo que o Vaticano montou contra a CNBB. Eles pegaram a mim, que era assessor da CNBB, que ajudava a fazer os documentos etc., para atingir a CNBB, especialmente a Teologia da Libertação, esse diálogo da Igreja com a sociedade, com a pobreza, e atingir as comunidades eclesiais de base, que este papa não aceita, porque ele acha que é um desvio fundamental na unidade, porque não tem a eucaristia, não tem a hierarquia, que são estruturas fundamentais da Igreja institucional. Como um lobo não come outro lobo, um cardeal não ataca outro cardeal. Pega o teólogo. Quem montou o processo foi dom Eugênio Sales. Criou uma pequena "comissão de doutrina", um pequeno "santo ofício" no Rio de Janeiro. Convocou teólogos de lá, de Porto Alegre, o bispo auxiliar dele – que é um suíço muito reacionário –, montaram o processo, aliás muito mal montado, com frases erradas, argumentos totalmente equivocados, e dom Eugênio o levou para Roma. E Roma disse: "Não fomos nós que avocamos, veio do Brasil". O segundo ponto é que junto comigo foram dom Paulo Evaristo e dom Ivo Lorscheiter, que era presidente da CNBB. Dom Paulo havia sido meu professor e era cardeal. Chegamos os três juntos no Vaticano, o cardeal Ratzinger ficou sumamente irado e disse: "O fato de convocarmos um teólogo aqui já é uma condenação implícita. E esse teólogo, para escândalo dos cristãos, vem acompanhado de Castor e Pólux, as duas divindades pagãs, como anjos da guarda que o acompanham". Eu disse: "Cardeal, com licença, nós somos cristãos, venho acompanhado de São Cosme e São Sérgio Pinto - Quanto tempo durou a sessão? Leonardo Boff - Os nossos dois cardeais do Brasil quiseram participar de todo jeito, e o cardeal Ratzinger negou: "Absolutamente". Então eles foram ao papa e o papa fez o jogo salomônico: "O tribunal terá duas partes, na primeira só o Ratzinger com o Boff e na segunda só os cardeais". Então me submeti àquele diálogo de uma hora e meia e houve uma pausa para o café. E o curioso é que foi naquela sala enorme, o cafezinho lá no canto e os funcionários correndo pra me pedir autógrafo e o cardeal furioso: "Ele é condenado, ele é condenado!" (risos) Bom, depois da pausa para o café, vieram os cardeais. E aí dom Paulo foi terrível, porque quase não deixava o Ratzinger falar: descobriram que foram colegas de estudo quando eram estudantes de doutorado em Munique, trocaram idéias sobre os professores que morreram ou não. Três dias antes havia saído um documento condenando a Teologia da Libertação, então, no momento apropriado, dom Paulo disse para o cardeal: "Cardeal Ratzinger, lemos o documento e ele é muito ruim. Não o aceitamos porque não vemos os nossos teólogos dizendo e pensando o que o senhor diz da Teologia da Libertação. Inclusive, queremos sugerir que o senhor os chame para elaborar um documento e depois vocês o completam. Se quero construir uma ponte, chamo um engenheiro, e o senhor, para construir a ponte, chamou um gramático, que não entende nada de engenharia. Então, não aceitamos este, queremos um segundo documento". E acrescentou: "Boff, você está aí com o seu irmão, o Gustavo Gutierrez, amanhã vocês já sentam juntos e fazem um esquema". De fato, fizemos o esquema e levamos ao Santo Ofício. Leo Gilson - Você poderia definir claramente para o leigo o que é a Teologia da Libertação? Leonardo Boff - E aí então a discussão foi sobre a Teologia da Libertação, não mais sobre mim. A crítica do cardeal se baseava no seguinte: "O teu livro é protestante, quem fala assim são os protestantes, eles não são como os católicos". Eu digo: "Absolutamente, é o lado evangélico do protestantismo, e temos muito o que aprender com Lutero. Então, não aceito que seja o lado protestante, é o lado são da teologia, que percebe o excesso, o abuso de poder da Igreja, a soberba, e pertence à teologia ter uma palavra crítica sobre isso. E há uma tradição profética. A gente, quando é batizado, é batizado para ser profeta, além de sacerdote. Ninguém lembra de ser profeta na Igreja. Os profetas se confrontam com o poder". E se discutiu Teologia da Libertação. A insistência dos nossos dois cardeais era que se fizesse um documento nas igrejas onde se vive uma prática de Teologia da Libertação com pobres e comunidades. Dom Paulo disse ao Ratzinger: "Se o senhor quiser, preparo tudo em São Paulo, o senhor vai conhecer as periferias, vai com os agentes da pastoral e, depois de ver tudo isso, vamos sentar e falar sobre a Teologia da Libertação, porque, se o senhor não vir isso, não vai entender os teólogos". O cardeal respondeu: "Temos obrigações com a Igreja universal, não podemos fazer partido na Igreja local. Somos responsáveis por todas as igrejas, nossa sede de pensamento é aqui". Aí me levantei e disse: "Cardeal, por favor, olhe esta janela, toda de ferro quadriculado. Atrás dessa janela de ferro quadriculado não se faz Teologia da Libertação, porque o mundo já vem traduzido nessa quadratura. Tem de sentir na pele uma experiência de pobreza, porque daí nasce a teologia como o grito dos pobres". A Teologia da Libertação é um grande esforço de uma parte dos cristãos de fazer do Evangelho e da fé cristã um fator de mobilização social. Carlos Moraes - Começou quando? Leonardo Boff - Começou com o pessoal do frei Betto, nos anos 60, com a JUC, com a AP, com aqueles cristãos que militavam... Pra mim, a chave da Teologia da Libertação é o seu método, que a maioria esquece nessa discussão, que é o de arrancar, não de uma encíclica, de uma página da Bíblia, de um credo qualquer da tradição, mas partir dos desafios da realidade, quais são as questões que os pobres levantam, que o Brasil suscita hoje. As comunidades de base com seus movimentos sociais por casa, por terra, por saúde, por alfabetização, arrancar disso e, junto com a organização do povo, com a consciência que ele vai desenvolvendo, dizer como os cristãos podem dar um primeiro impulso nisso, o cristianismo como força que dá clareza, que dá motivação pra gente se empenhar pela justiça, pela transformação, porque a gente é herdeiro de alguém que foi prisioneiro político, que morreu na cruz e não velho na cama, que é Jesus. Então, é resgatar essa dimensão, essa densidade histórica, um sentido público, político. A Teologia da Libertação se articula com quem já está dando uma caminhada e tenta pensar a partir da prática. Por exemplo, o pessoal está lutando por terra, eu digo: "Vai ocupar uma terra aí". Então, os cristãos se reúnem e começam primeiro a ler o Êxodo, o povo que está no exílio sem terra, e quer a Terra Prometida. E eles dizem: "Não está em nenhum lugar da Bíblia que Deus deu a terra e a escritura para alguém, a terra é de todos, e Deus, o Senhor disso tudo". Então, quando vão conquistar a terra, o que significa? Que queremos trabalhar a terra para ter saúde, comida, a nossa casa. O sem-terra começa a pensar essa realidade e vê que o que temos é o contrário. A terra está na mão de alguns, impede a vida, impede a justiça, traz doença. Então temos de conquistar isso. Sérgio Pinto - Não existia nada semelhante no mundo? Leonardo Boff - Existia na Colômbia, no México, uma coisa até filosoficamente interessante, porque, de repente, em toda a América Latina emergiu esse pensamento libertário, com Paulo Freire, Fernando Henrique Cardoso, com Camilo Torres, na medicina, na pedagogia, na sociologia e na teologia. Sérgio Pinto - Uma coisa simultânea, vai brotando... Leonardo Boff - Simultânea. É aquilo que Hegel fala, do velho geist, o espírito do mundo, que de repente emerge em todas as instâncias e não há quem detenha. E a gente, que participou do nascimento disso, a gente sentia que era envolvido por uma força que nos transcendia. E percebemos que o discurso que está aí tem de mudar, tem de ser outro, porque a realidade mudou. A libertação tem de ser articulada de uma maneira mais holística, mais ampla, tem de envolver a terra, tem de envolver ecologia, todo mundo está empobrecido, somos vítimas do paradigma ocidental, que está destruindo os povos, as classes, a natureza e a qualidade de vida, e a libertação hoje tem de ter uma dimensão planetária, não só dos pobres. Leo Gilson - Estamos voltando a uma concepção de Hobbes, da humanidade. Leonardo Boff - É que descobrimos que as famosas forças produtivas são forças altamente destrutivas. É aquilo que Marx diz na quarta parte do primeiro livro O Capital, uma coisa profética, a que estamos assistindo hoje: que a lógica do capital leva-o a destruir as duas pilastras sobre as quais ele se constrói, que é a força de trabalho, dispensando-a pela automação, e a natureza, com seus recursos se exaurindo. Carlos Moraes - Como você vê o futuro da Igreja nessa dobrada do milênio? Comunidades de base contra Ratzinger-Santo Ofício? Pode haver uma absorção difícil ou pode haver dissidência, uma nova Igreja? Leonardo Boff - A Igreja hoje é uma Igreja partida, dividida, e há dois modelos em conflito, que é o da Igreja-instituição, da Igreja-hierarquia, da Igreja-poder, que se estrutura em papa, cardeais, bispos, dioceses, paróquias e se reproduz com muita dificuldade, porque há cada vez menos padres para manter a reprodução dessa Igreja. Junto dela está surgindo um novo tipo de Igreja, que eu chamaria Igreja-rede-de- comunidades, que está assentada não no poder, mas na vida. Isto é, o diálogo fé/vida. Nas comunidades, nas associações de moradores, grupos que vivem a fé nos seus encontros e que têm sua força no arquétipo cristão, não na instituição, nas suas tradições, mas o cristianismo como uma instância de esperança, tendo como referência comum a Bíblia, e aberta para a sociedade. Mas não a sociedade portadora de poder de decisão, o pacto velho, quer dizer, a Igreja poder religioso se associa com o poder civil. Não, é a Igreja com as classes emergentes, com os destituídos, pobres, marginalizados, excluídos, que são a grande maioria. Então, pra mim, está se dando aí um novo pacto do cristianismo, no sentido dos primórdios, que era feito de escravos, de portuários, de destituídos, de soldados, e estamos vivendo esse tipo de cristianismo, que tem hoje uma dimensão mundial. Muito forte na África, na Ásia, muito forte no Primeiro Mundo: você vai à Alemanha, Itália, Estados Unidos, está cheio de grupos e comunidades do Terceiro Mundo que têm como referência a perspectiva libertária do cristianismo. A outra é o cristianismo da reprodução e é ocidental. É produto da cultura ocidental, de tal forma que não dá pra fazer a história do poder do Ocidente, reis e príncipes, sem fazer simultaneamente a história da Igreja. Sérgio Pinto - Queria voltar ao julgamento do Vaticano e perguntar o seguinte: se você já sabia previamente da opressão daquela cena, já sabia que não teria advogado, direito a voz, a nada, já sabia da condenação, pra que fazer? Pra continuar dentro no sentido de registrar, marcar presença? Leonardo Boff - Fiz um juízo político, não pessoal. Uma coisa é você defender a sua biografia, romper e seguir seu caminho. Como todo o nosso grupo, o Betto inclusive, era de intelectuais orgânicos das CEBs, e tínhamos naquela época hegemonia na Igreja – quem dava o discurso tinha grande articulação, se movimentava na sociedade, era essa Igreja da base, que era uma coligação de uma série de bispos e cardeais que apoiavam as CEBs, e as CEBs acolhiam esses tipo de Igreja. Então, a minha preocupação era: o fundamental é preservar esse ensaio da Igreja da base e não a minha biografia. Sérgio Pinto - Quer dizer, era uma militância mesmo... Leonardo Boff - Militância. Uma coisa bem pensada, em termos até de "até onde eu agüento sem perder a minha dignidade" e trazer um ganho pra essa Igreja da base. Então seria ruim eu romper com o Vaticano, e o Vaticano queria isso, porque seria fácil condenar e excluir, excomungar, e o povo diz: "Olha, assassino, ladrão, tudo bem, mas excomungado não. Porque a pior coisa que existe é ser entregue a Satanás direto, sabe? Então, a excomunhão é uma sombra terrível, um estigma fantástico. E, como senti o apoio explícito da CNBB e da própria ordem franciscana, fui ao diálogo com o Ratzinger levando duas maletas contendo 100.000 subscrições, do mundo inteiro, desde a Sibéria, Coréia, bispos, milhares de cristãos. E, quando comecei, disse: "Cardeal, não estou sozinho aqui, estou com estes 100.000". "Vocês é que manipularam assinaturas!" "Como, manipularam? Um bispo que é lá da cidade de Zagorsky, na Rússia, como é que vai ter contato comigo?" Quer dizer, a Teologia da Libertação não era causa minha, é a causa de uma geração, é um movimento. E saí convencido, devido à influência dos dois cardeais que me acompanharam, que o problema terminaria ali. E qual não foi a minha surpresa quando, no dia 1¼ de maio, todo paramentado para entrar na missa dos trabalhadores em Petrópolis, toca o telefone, era do Vaticano. Atendo e dizem: "Você se considere imediatamente demitido da cátedra de teologia, deposto da Revista Eclesiástica Brasileira, da coordenação editorial da Vozes, não pode mais falar, viajar, nem dar aula. Esta é a punição". Eu disse: "Então apelo ao direito canônico. Só entro na punição quando tiver os documentos na mão, porque oral não vale". "Então, os documentos seguirão." E desligaram. Aí vieram os documentos. Chico Vasconcellos - Nesses momentos todos, na sua cabeça não voltam as palavras do velho Mansueto, que dizia que o clero só era bom enforcado? Leonardo Boff - Vou dizer com muita sinceridade: minha grande decepção não foi a luta ideológica, de teologias, argumentos e contra-argumentos. A minha decepção profunda, Igreja lutou sempre contra a ditadura, que cortava a língua dos jornalistas, impedia a liberdade, e o senhor fez isso". Então, o papa: "Como, eu fiz isso?!" Aí se deu conta de que era uma medida contraditória. E queria desfazer a condenação. O cardeal Sales, eu soube depois por dom Paulo Evaristo, interveio: "Santidade, se o senhor suspender a condenação, o povo vai dizer que o papa erra, que o papa não sabe". Então, ele sustentou. Eu sei que, na noite de Páscoa, estava entrando na missa da meia-noite, cronometrado, aí me telefonam de Roma: "O papa manda dizer que você está livre, pode falar". Porque a proibição era pelo menos por um ano e, a partir desse tempo, eu podia ficar proibido por tempo indefinido, mas aos onze meses, na noite de Páscoa, ele pessoalmente mandou suspender. E depois, pelo cardeal Casaroli, escreveu uma carta agradecendo por eu ter acolhido o diálogo, me submetido, dizendo que "dessa forma é possível criar uma autêntica Teologia da Libertação". Quer dizer, uma carta que o Casaroli escreve, secretário de Estado, em nome do papa. E com isso encerrava a parte oficial deles. Terminou assim. Aí vem em 1992, quer dizer, cinco anos depois, aquela conversa durante a Eco, quando eu disse: "Não aceito mais". E aí me desliguei. Ricardo Kotscho - Mudando de assunto, uma coisa que se conversa muito entre os católicos é a questão do celibato. Existe hoje um monte de gente insatisfeita dentro da Igreja por causa do celibato. E um monte de gente fora que poderia entrar e não entra por causa disso. Qual a importância do celibato pra quem está dentro da Igreja e pra quem está fora? Leonardo Boff - O celibato, para esse tipo de Igreja que temos, é estrutural e necessário. Temos uma Igreja altamente concentrada em termos de poder, que está só na mão de uma mínima parte, que é o clero. E tem de gerenciar a primeira grande multinacional do Ocidente que é o cristianismo – desde o século 4 é uma multinacional, que envolve cerca de 1 bilhão de pessoas. Então, para a Igreja, o celibato é estratégico. Porque você tem uma mão-de-obra diretamente ligada a você e que não tem nenhum vínculo de família, de mulher, de filhos, de herança, e é o intelectual orgânico estrito da instituição. Ele encarna a instituição e, não sem razão, é tirado da família com a idade de 12, 13 anos, levado para o seminário e criado na sua mentalidade, na sua subjetividade, para servir a instituição. Ele é estruturado nessa perspectiva, que vai contra duas tendências básicas da modernidade, que são resgatar a liberdade e a subjetividade. Quer dizer, o ser humano se descobre como sujeito livre, que organiza sua privacidade, sua sexualidade, seu projeto pessoal. Se é casando, se é mantendo-se solteiro, se é sendo gay, não importa, você respeita as preferências do projeto que você tem. E a Igreja nega isso. Ela impõe que quem quer servi- la tem de ser celibatário. Então, frustra todo um caminho, que é um caminho também de realização humana, porque a sexualidade não é só uma questão de troca genital, é o diálogo com a dimensão da anima e do animus, como um integra a alteridade do outro, mulher ou homem respectivamente, como trabalho da dimensão da ternura, da fragilidade, do amor, que é uma exposição ao outro. O celibatário trabalha com grande dificuldade isso, porque ele, por força da educação e sua função, é autocentrado. E toda a dimensão do feminino, não só da mulher, mas do feminino no homem e na mulher, é encurtada. Então, esse é o primeiro problema. O segundo é o que tem a ver com o poder. E todo poder é autoritário, seja nazista/fascista, do Hitler ou Stálin, ele é altamente negador da ternura, da sexualidade, da intimidade. E na Igreja há isso, então é um poder altamente autoritário, no cânon que fala dos poderes do papa ele é absoluto, ilimitado, universal, sobre cada cristão, sobre toda a Igreja, e infalível. Se você risca papa e bota Deus, vale. Ele atribui a si características divinas. Então, é um poder que em teologia se chama totatus dictatus papa, expressão latina que se criou no século 14: é o dictatus papa, literalmente traduzido, "a ditadura do papa". Então, é essa a perspectiva de um poder altamente centralizado, piramidal e totalitário, que engloba tudo, não convive com a fragilidade do amor, da sexualidade. A essa estrutura pertence o celibato e também o poder mais imediato: você não tem partilha, não tem herança, não tem de se preocupar com a educação dos filhos, onde a mulher vai ficar, nada. Você se torna um soldado totalmente disponível à instituição, que pode mandá-lo a Hong Kong, pólo norte ou Rio de Janeiro. Leo Gilson Ribeiro - O que foi, um tratado? Leonardo Boff - Foi uma praxe, inicialmente. No campo, o celibato nunca funcionou, porque o padre era simultaneamente camponês e tinha de arranjar mão-de-obra, e não havia seminários onde se formassem padres. Ele gerava um filho, explicava como era a missa, os sacramentos e tinha o seu sucessor. No primeiro milênio, o celibato era reservado aos bispos, que tinham de ser monges celibatários. Com os padres era mais ou menos livre. O seminário só veio na polêmica com os protestantes no século 16, quando a Igreja cria a instituição de formação de seus quadros e aí impõe o celibato rigoroso. É assim até hoje. Agora, isso nunca foi algo que fosse entendido como do âmbito da tradição cristã, ou da revelação. É uma disciplina eclesiástica, portanto depende da vontade do príncipe. "ACHO QUE A GENTE DEVIA TIRAR DO FHC O TÍTULO DE INTELECTUAL, PORQUE É UM FALSO INTELECTUAL ." Ricardo Kotscho - Na sua vida pessoal, o que mudou? Era como se você estivesse a vida inteira dentro de uma prisão, dentro das regras da Igreja, e de repente você está livre disso, aí pode ter um monte de namoradas, casar, ter filhos, o que muda pra você isso? Leonardo Boff - Tive a audácia de casar com uma mulher que já tinha seis filhos. Me acompanhava nos trabalhos, é uma mulher extremamente empenhada na luta das favelas, direitos humanos, é de uma família burguesa que se converteu a essa causa da teologia, dos pobres. E vi que o casamento, que a vida a dois é casar com um projeto também, casar com o sonho de uma vida, que você mistura, que você une. E também assumi a família dela. Acho importante dizer isso, porque implica uma ruptura também com a ditadura da Igreja. Um padre, teólogo, casa com uma desquitada. Ricardo Kotscho - Aí também você fez strike, né? (risos) Leonardo Boff - Quando o amor humano ocorre, ele tem a sua santidade, tem a sua presença sacramental. Não me importo se ela é casada, não é casada, se é desquitada ou não, desde que esse fenômeno ocorra e a gente possa assumir. Sérgio de Souza - No começo, você falou de uma certa convivência com o Fernando Henrique Cardoso, no Cebrap. Leonardo Boff - Convivência, digamos, funcional. Sérgio de Souza - Você acha que ele mudou de lá pra cá? Leonardo Boff - Acho que a gente devia tirar dele o título de intelectual, porque é um falso intelectual. Ele é um político. O intelectual pensa a sociedade a partir de um horizonte de utopia, em que toma a liberdade de dizer o que pensa e como vê as relações de poder: isso faz o reino do intelectual, quer dizer, a partir do ideal ele julga a sociedade. E o Fernando Henrique julga a sociedade a partir de um jogo de interesses, do qual ele é parte importante, e ele assume o poder dentro de um projeto que acho profundamente perverso, porque não significa nenhuma ruptura da herança de exclusão que teve este país. Os sujeitos históricos, que sempre detiveram o poder de uma forma autoritária, excludente, exploradora, são aqueles que compõem a base do governo do qual ele é presidente. Então, ele não representa nenhuma ruptura, ele consagra, com ares de intelectual, que considero falso, uma nova forma de dominação da sociedade brasileira. Então, acho que a gente devia destituí-lo como intelectual, considerá-lo político, com todas as virtudes de um político, que é pensar sempre numa intenção, isto é, numa segunda intenção. E,por isso, cheio de malícia. Ricardo Kotscho - Quer dizer que você não se surpreendeu, porque muita gente fala que o Fernando Henrique mudou muito. Outros, que o conhecem bem, dizem que ele sempre foi assim, as pessoas é que tinham uma imagem errada dele. Leonardo Boff - A construção teórica dele, que utilizamos na Teologia da Libertação e nos ajudou a ver o mecanismo do subdesenvolvimento, nos fazia entender que era possível uma ruptura. Quer dizer, um desenvolvimento auto-sustentado, que respondesse às demandas históricas daqui e que, por isso, implicava uma certa distância com os centros hegemônicos – isso estava dentro da construção teórica dele. E vejo que ele renunciou a essa convicção, ao nível da economia brasileira, e essa inserção do Brasil no mercado mundial ele discute sem receios de comprometer a soberania. Ele não tem preocupação de ter um projeto para esse povo. Projeto nacional, um país com uma situação geopolítica fantástica, uma biodiversidade fabulosa, experiência cultural singular, um país multiétnico, multicultural, quer dizer, isso vale no diálogo mundial e ele não sabe fazer, porque acho que não ama suficientemente este povo, ele ama o poder. Sérgio Pinto - É um projeto de poder, ponto. Leonardo Boff - É um projeto de poder em que ele se beneficia. Mas tem de qualificar esse poder, qual a natureza desse poder? É o velho poder oligárquico, excludente, da história brasileira, e ele não colaborou em nada para modificar isso. E aí penso que ele traiu a todos nós, porque depositamos na lucidez do intelectual, do sociólogo que conhece o mecanismo do poder, a esperança de que pudesse interferir e dar uma marca diferente. E ele não fez. Sérgio de Souza - O benefício que você disse que ele conseguiu é só na vaidade pessoal ou... Leonardo Boff - Eu pessoalmente acho o seguinte, talvez possa dizer entre caros amigos, não é? Acho que ele não acredita em absolutamente nada, nenhuma transcendência, é de um marxismo clássico, ateu e, para quem não tem uma transcendência da história – história é isso –, quem está no poder tem de se aproveitar do cavalo que passa encilhado, porque não tem mais nada além disso, nenhum projeto de longo alcance, em que haja a dimensão da renúncia, para construir uma base mais popular, mais ampla e dialética, acho que ele não tem isso. Leo Gilson Ribeiro - Será que ele não terá raciocinado da seguinte maneira: dentro da hegemonia que se estabeleceu na Terra atualmente, não há ponto de saída a não ser a de tornar o Brasil um capitalismo dependente, marca do capitalismo? Leonardo Boff - Isso é versão dele, que mostra a ausência da dimensão ética. Porque alguém pode chegar, dentro dessa realidade, dessa fatalidade, a ter como dimensão ética ainda a dimensão do protesto, de dizer: "Eu não aceito isso porque é iníquo, não quero ser um agente que consolida, que dá aval a isso". Eu diria que o processo da mundialização é um processo que transcende o econômico, o político, é pra mim um processo civilizatório, uma nova etapa da Terra, da humanidade, e não há como não entrar nisso. Agora, podemos entrar de uma maneira mais soberana, mais dialogal, sentar junto aos poderosos do mundo e colocar muitos argumentos, o que ele não faz. É servil, fazendo o jogo do norte. Ele não faz o jogo do sul. É subalterno, é uma integração subalterna, que prolonga o que sempre houve. Pra nós, a mundialização começou no século 16. O projeto de mundo do reino hispânico, Portugal e Espanha, não sofreu ruptura, tem continuidade até hoje. educação é levada nesse sentido, por força do celibato você não pode ter o intercurso sexual. Então, a mulher se torna a tentação próxima. E você é educado a não olhar nos olhos da mulher, porque ela é tentadora, de nunca conversar com ela sozinho, sempre acompanhado de outros. Leo Gilson Ribeiro - Mas os muçulmanos do Taliban também dizem isso. Leonardo Boff - Porque é uma sociedade patriarcal e machista. Então, eu queria dizer o seguinte: que as mulheres tiveram uma grande função civilizatória junto aos padres. Que aqueles que se deixaram introduzir nesse diálogo, nesse encontro, se humanizaram, ficaram mais sensíveis, mais misericordiosos, mais compreensivos com o povo. Até podem viver o celibato, integrando essa dimensão, mas a ruptura foi a mulher que provocou neles, os ajudou a fazer a passagem, coisa que o seminário e nenhuma teoria teológica fazem. Marina Amaral - E por que as freiras aceitam essa dominação? Freira não pode ser da hierarquia, freira não reza missa. Leonardo Boff - Aí é todo um processo que a ideologia mostra. Quer dizer, você apresenta uma totalidade ideológica fechada, cheia de valores, inculca e cria uma subjetividade adequada a isso. O cristianismo poderia ser uma escola de humanidade, de generosidade, de compaixão. Se transformou num reduto de machismo, de rigidez, de ideologia compacta. Isso tem de ser denunciado, não tem nada a ver com a tradição que vem de Jesus. É uma tradição libertária, não diz "eu sou tradição", diz "eu sou a verdade, eu sou luz". E aqui o que vemos é a tradição, o império da reprodução do mesmo. Há uma geração de padres que fez mudanças fundamentais, passaram para o lado do povo, do feminino, sofreram muito, tiveram de reinterpretar o celibato e se reintegrar na dimensão mais feminina da vida e ganharam muita estatura. Desgraçadamente, a Igreja escolhe para substituir no episcopado só aqueles que vêm do estrito celibato. Um dos itens novos que introduziram do padre candidato a bispo é se nunca criticou o papa, se nunca criticou o celibato. Se alguma vez fez crítica ao celibato, não é nomeado bispo. O que revela a fraqueza da instituição. Ela não é mais vulnerável ao diálogo, ao crescimento, ela tem de usar a força simbólica para se impor. Sérgio de Souza - E quem mais denuncia isso, além dos teólogos da Igreja? Leonardo Boff - Na Igreja há um discurso absolutamente farisaico. Você conversa com um bispo, se ele está entre caros amigos, diz tudo o que estou dizendo. Cai na rua, "não posso dizer porque vou ser demitido, vai ter briga com o Vaticano, a CNBB cai em cima de mim, não posso falar". E muitos teólogos que pensam assim têm de dar aulas segundo os ditames, senão são depostos pela cátedra, "perco minha paróquia, caio no mundo, e tenho de buscar outro caminho". Então, a Igreja, a instituição, essa instância central de governo, obriga as pessoas a ser falsas por elas mesmas, hipócritas. Chico Vasconcellos - Como se constitui o poder na Igreja? Leonardo Boff – Primeiro, o Vaticano, com os seus mistérios, os encarregados da educação, dos bispos, das religiosas, dos padres, da doutrina, que são verdadeiros ministérios. O papa em si com seus ministérios, um governo centralizado onde tem informação do mundo inteiro, informação hoje já informatizada. Chico Vasconcellos - Quantos homens fazem parte desses ministérios? Leonardo Boff - Uma vez perguntaram a João XXIII quantos trabalhavam no Vaticano, ele disse: "Metade...". Acho que são 11.000 funcionários. Chico Vasconcellos - Esse colégio de cardeais que dominam, quantos são? Leonardo Boff - Cardeais são uns 150, mais ou menos, no mundo. O Vaticano deve ter uns trinta. Ricardo Kotscho - O papa não é uma rainha da Inglaterra? Leonardo Boff - Não, ele escolhe. A força dele é poder escolher os seus assessores diretos, que é o chamado Corpo do Papa, pessoas que pensam e agem como ele. A quem ele delega todo poder. Frei Betto - O projeto estratégico é dele? Leonardo Boff - O projeto estratégico é dele. Por outro lado, há uma grande resistência da máquina, de quem está por baixo. Por exemplo, temos três, quatro cardeis da Cúria Romana que fazem o nosso jogo, que nos defendem, empurram nossos textos em cima dos cardeais, mandam briefings, a luta ideológica é bárbara lá dentro. Chico Vasconcellos - Desses cento e tantos cardeais, quantos são do Primeiro Mundo e quantos são do Terceiro? Leonardo Boff - Hoje, 52 por cento dos católicos vivem no Terceiro Mundo. Para mostrar uma certa contradição entre o poder da base e o poder da representação, isso significa, primeiro, que o cristianismo hoje é uma religião do Terceiro Mundo, que teve origem no Primeiro Mundo. Isso é importante constatar. Segundo, que esse poder real, que é numérico, que garante o futuro institucional da Igreja, não é adequadamente representado no aparelho central do Vaticano. Acho que um terço dos cardeais é de italianos, mais de cinqüenta cardeais italianos, o que é uma inflação fantástica em termos de poder. E acho que dois terços são do Primeiro Mundo. Isto é, Europa, Estados Unidos, porque aí joga muito uma questão numérico-econômica, quer dizer, poder real da Igreja. Uma diocese como Nova York, como Chicago, que são extremamente ricas, ou como o Rio de Janeiro, ganha cardeal por quê? Porque articula interesses da Igreja, que tem reprodução na economia, nos investimentos, essa coisa toda, e que são reforço na aliança que o Vaticano faz com os poderes desse mundo, porque é um poder que busca aliança com outros poderes. É um poder espiritual, mas é um poder que sempre tem algo a dizer na política, nos negócios também. Leo Gilson Ribeiro - Existe alguma tendência dissimulada de um certo racismo na Igreja, com uma predominância do hemisfério norte branco? Leonardo Boff - Eu não diria racismo, diria uma discriminação cultural. Eles consideram a grande cultura da Europa, que é a cultura que nasceu cristã. Agora, eles têm um senso de eqüidade no sentido de universalidade. Isso o Vaticano herdou da tradição romana. Então, eles têm dois corpos grandes, o corpo doutrinário, que representa o corpo jurídico dos imperadores, que é a Congregação da Doutrina e da Fé, que zela pela unidade dos símbolos e da doutrina; e o segundo corpo, que é a fábrica de fazer bispos, a Congregação dos Bispos. Isto é, quem você vai eleger no mundo que esteja afinado com o governo central e ao mesmo tempo enraizado na sua cultura. Então, a importância do dom Lucas Neves é que ele foi cardeal da fábrica de bispos. Leo Gilson Ribeiro - Uma linha de montagem... Leonardo Boff - Linha de montagem. Então, essas duas instituições são fundamentais para o Vaticano. Por outra parte, é um corpo contraditório, porque ele, na força de atender várias culturas, na África, nos Estados Unidos, aqui, na Europa, Leste etc., não pode ter um discurso muito uniforme, porque se torna incompreensível. Por isso, o Vaticano produz um discurso profundamente ambíguo, um discurso de grande multinacional, que representa muitos interesses e para preservar o papa como príncipe da unidade, de fé, de política, de liturgia... Leo Gilson Ribeiro - É o unipartidarismo? Leonardo Boff - É o partido do papa, quem se opõe a ele é logo perseguido. Ricardo Kotscho - Existe uma possibilidade, mesmo remota, de que alguém como o dom Paulo Evaristo possa ser eleito papa? Leonardo Boff - Possibilidade existe, quer dizer, é o imponderável. Olha, neste momento os cardeais estão viajando muito, porque eles se dão conta de que o pontificado do papa já se encerrou em termos de estratégia, de tudo... ele já fez o que tinha de fazer, e eles governam a Igreja sem Wojtyla, supõem Wojtyla já morto em termos estratégicos. Então, a luta agora é entre duas grandes tendências. Uma é a tendência wojtyliana, porque mais da metade dos cardeais eleitores foi feita por ele e existe uma espécie de pacto entre os cardeais, que é o de você sempre respeitar a memória daquele papa que o fez cardeal – é a que eles chamam de "tendência-testemunho", que parte do seguinte: a Igreja é a única portadora da revelação da verdade, não tem de dialogar com as outras igrejas ou religiões. A segunda, que é de Paulo VI e João XXIII, hoje representada pelo cardeal Martini, de Milão, é chamada de "tendência do diálogo e da mediação". Que quer dizer dialogar com todas as culturas, religiões, caminhos espirituais, porque todas têm Deus por trás e você tem algo a aprender. E propiciar esse diálogo para criar ambiente de paz religiosa, paz política, valorização da dimensão espiritual nos humanos, sejam muçulmanos, budistas ou cristãos, e o papa como interlocutor grandioso de uma cultura ocidental. E o cardeal Martini é um jesuíta altamente inteligente, viveu no Oriente Médio, entre os muçulmanos, domina o judaísmo, foi professor de judaísmo a vida inteira, tem um diálogo fantástico com as religiões do Oriente, que conhece profundamente. Então, é um dos grandes cardeais. Ou o cardeal Sing, de Hong Kong, educado em Roma. Mas que tem toda a tradição chinesa. É um dos fortes candidatos. Então, tem o cardeal Ruini – que é o mais fiel seguidor do Wojtyla, que faz a política com os grandes, mesmo que seja a máfia, contanto que reforce a instituição – como um dos grandes candidatos daquela ala. Da outra ala tem o Martini e o cardeal Sing. Então, hoje se dá essa polêmica. E os cardeais já estão viajando, trocando informações, com um deles até já conversei. Estão fazendo consultas, porque se dão conta de que, num processo de mundialização, ou a Igreja capta esse movimento ou ela se isola no Ocidente. Eles estão numa grande encruzilhada. E se dão conta de que todo o fluxo da história está passando pelo Sudeste asiático. Lá está o novo centro econômico mundial... "HOUVE UM MOMENTO EM QUE EU TINHA PERDIDO A ESPERANÇA, QUE É PIOR DO QUE PERDER A FÉ ." Ricardo Kotscho - Há possibilidade de termos um papa chinês, é isso? Leonardo Boff - Possivelmente, oriental. Ricardo Kotscho - Então fale um pouco mais dele, nunca ouvi falar. Leonardo Boff - Uma vez participei de um encontro que houve em Hong Kong, um grupo de teólogos aqui, você estava, não é, Betto? Frei Betto - Estava, foi quando a gente voltou da China, ele perguntou sobre as CEBs. Leonardo Boff - É um homem muito aberto, fez teologia em Roma, conhece Roma, mas Manual do Inquisidores Ao se terminar a leitura do Manual dos Inquisidores, a primeira reação é de perplexidade e de espanto: como é possível tanta desumanidade dentro do cristianismo e em nome do cristianismo? Os sonhos originais da proposta cristã são de ilimitada generosidade: Deus é pai com características de mãe; todos são filhos e filhas de Deus; o Verbo ilumina cada pessoa que vem a este mundo; a redenção resgata toda a humanidade; e o arco-íris da benevolência divina cobre todas as cabeças e o universo inteiro. Como se passa deste sonho para o pesadelo da Inquisição? Não vale chorar nem rir. Importa compreender. É o que tentaremos sucintamente. 1. A pretensão da verdade absoluta leva à intolerância Para entender o comportamento da Igreja através da Inquisição, entre outros elementos importantes, faz-se mister considerar a autoconsciência que a própria Igreja fez e, em setores de direção, ainda faz de si mesma. Como ela constrói religiosamente a realidade? Como se representa a história humana? A leitura comum, que se encontra nos catecismos clássicos, é a seguinte: a humanidade foi criada na graça de Deus. A criação era um livro aberto que falava do Criador. Porém em Adão e em Eva ela decaiu. Perdeu os dons sobrenaturais (a graça) e mutilou os dons naturais (obscureceu a inteligência e enfraqueceu a vontade). As frases da criação se decompuseram em palavras soltas e sem nexo. Os seres humanos não conseguiam mais ler a vontade de Deus no alfabeto natural (revelação natural). Deus se compadeceu e nos entregou um outro livro, escrito por judeus e cristãos, as Escrituras sagradas, que contêm o alfabeto sobrenatural (revelação sobrenatural). Mediante ele, podemos refazer as frases da criação e assim ter acesso às verdades divinas sobre o ser humano e o universo. Nas Escrituras, como num depósito (depositum lidei), estão todas as verdades necessárias para a salvação. Mas o livro pode ser lido de mil maneiras. Qual é a leitura correta? Deus, novamente, se apiedou da humanidade e criou o Magistério: o Papa e os bispos. Eles são os representantes de Deus e os vigários de Cristo. A missão do Magistério é guardar fielmente, defender ciosamente e interpretar autenticamente o depósito das verdades salvíficas. Mas eles não são humanos, sujeitos a erros? Deus novamente se apiedou da fragilidade humana e concedeu ao Papa e aos bispos reunidos um privilégio único. Em questões que interessam a todos concernentes à fé e à moral, visando à salvação eterna, seus pronunciamentos gozam de infalibilidade. Eles não podem errar e por isso, na história, nunca erraram. Eis o que reza a doutrina, uma verdadeira metafísica religiosa, quer dizer, uma interpretação da história a partir dessa determinada ótica religiosa. As pessoas agora podem ficar tranquilas e gozar de plena segurança. Basta ouvir o que o Magistério ensina, vivê-lo coerentemente e já estão em conformidade com a vontade de Deus. O efeito é promissor: nada menos que a vida eterna. O Magistério, portanto, é portador exclusivo de uma verdade absoluta. A verdade não é objeto de uma busca. Mas de uma posse agradecida. Por mil formas esta verdade é distribuída por parte do Magistério cada vez com graus diferentes de certeza, mas sempre sob a assistência divina no horizonte da infalibilidade: pronunciamentos, admoestações, encíclicas, declarações dos sínodos e dos concílios, proclamação de dogmas de fé etc. Face à verdade absoluta, não cabem dúvidas e indagações da razão ou do coração. Tudo já está respondido pela instância suprema e divina. Qualquer experiência ou dado que conflita com as verdades reveladas só pode significar um equívoco ou um erro. A Igreja detém o monopólio dos meios que abrem o caminho para a eternidade. Sendo as coisas assim só existe um perigo fundamental: a heterodoxia, a heresia e o herege. Em outras palavras, a grande oposição se dá entre o dogma e a heresia. Para essa compreensão, erro gravíssimo e radical não é tanto a injustiça, o assassinato, a espoliação de povos e a opressão de classe, o genocídio e o ecocídio. Esses são atos e atitudes morais perversos mas corrigíveis; o caminho da eternidade continua aberto pelo arrependimento e o perdão; a fé não é negada, nem as verdades absolutas questionadas. Erro radical é a heresia ou a suspeição de heresia. Aqui se negam as verdades necessárias e se fecha o caminho para a eternidade. A perda é total. O mal, absoluto. O herege é o arquiinimigo da fé. O ser perigosíssimo. Se o perigo é máximo, máximas devem ser a vigilância e a repressão. Por isso, nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes. Consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros caminhos espirituais. O fiel, este é condenado á intolerância. Os inimigos da verdade e da reta doutrina (ortodoxia), os hereges verdadeiros ou presumidos devem ser perseguidos lá onde estiverem e exterminados. Deve-se esquadrinhar suas mentes, identificar os acenos do coração, desmascarar idéias que possam levar à heresia. Contra o mal absoluto – a heresia – valem todos os instrumentos e todas as armas. Pois se trata de salvaguardar o bem absoluto – a salvação eterna, apropriada pela adesão irrestrita à verdade absoluta como vem proposta, explicada e difundida pela Igreja. Fora da Igreja não há salvação, porque fora dela não existe revelação divina e por isso verdade absoluta. Podem existir verdades fragmentadas, não sicut opponet ad salutem consquendam (“como devem ser para se conseguir a salvação”, como repetem os textos dos concílios), mas incapazes de abrir caminho pelo matagal das confusões humanas e aceder à destinação eterna. Por isso a Igreja é imprescindível. 2. Uma lógica férrea e irretorquível Ao instaurar a Inquisição, a Igreja produz e habita esse discurso totalitário e intolerante. Quem quiser entender o presente Manual dos Inquisidores deverá imbuir-se dessa mentalidade e visão das coisas. Só assim fará justiça a seus autores. Então tudo aparece lógico e coerente. O inquisidor é extremamente fiel e imbuído da melhor das intenções. A arquitetônica de sua argumentação é irretorquível. É obra de mestre. Assim como quem quiser entender a repressão e a tortura dos regimes militares latino-americanos deverá entender a leitura da sociedade feita a partir da ideologia da segurança nacional e repassada às mentes dos torturadores e de seus mandantes. Da mesma forma as câmaras de gás e a limpeza genética perpetradas pelo nazifascismo. Ou, num nível maior, a cultura ocidental, que foi incapaz de acolher a diferença e alteridade e que por isso, historicamente, cometeu toda sorte de genocídios e exclusões, ainda hoje, no processo de sua mundialização. Em todos esses antifenômenos há uma lógica irretorquível. Em nome dela se excluem outros, eventualmente até são mortos. Uma vez aceito o sistema de idéias, tudo flui de forma férrea e coerente. É a verdade intra- sistêmica. Evidentemente, cabe analisar o sistema. A boa intenção dos torturadores certamente não é boa, pois produz a morte. O sistema é sacrificialista, pois exige mais e mais vítimas para se manter. Como pode, como pretende, ter o aval divino? Mas isso já é outra questão, não mais analítica, mas ética e teológica. 3. Os autores do Manual dos Inquisidores Trata-se de dois dominicanos, um do século XIV e outro do século XVI, peritos em jurisprudência e teologia: Nicolau Eymerich e Francisco Peña. A importância deles reside no fato de ambos procederem a uma grandiosa codificação das práticas e das justificativas (teologias e ideologias) acerca do controle das doutrinas na Igreja que culminaram na instituição da Inquisição. Sabemos que desde cedo a Igreja se viu ás voltas com doutrinas divergentes daquelas comumente estabelecidas pela tradição. O problema dos hereges perpassa toda a história da Igreja. O herege é aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência coletiva. Ele cria novos discursos a partir de novas visões da realidade religiosa. Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução e o passado. Com efeito, refletindo bem, a verdade, por mais absoluta que se apresente, não pode se fundir numa única fórmula. Uma coisa é a verdade nela mesma. Outra coisa são as suas várias formulações históricas. A verdade, como se vê nas várias culturas, permite várias linguagens. E as várias linguagens comunicam novas significações. Por isso a definição da verdade não pode cair sob o domínio da posse exclusiva de alguém, detentor de algum código. Mesmo participando da verdade e, de certa forma, possuindo-a, o ser humano pode buscá-la sempre de novo e sob mil formas. Mas eis que emerge o conflito. Como sobrevivem aqueles que buscam a verdade no meio daqueles que presumem havê-la encontrado? Pergunta-se: buscar a verdade não significa que ela ainda não foi encontrada? E se não a encontramos, estamos no erro e então não estamos em risco de perdição eterna? A conseqüência é previsível: o rompimento da comunhão entre um e outro. E aí começam os processos de exclusão. Nos primeiros séculos, os portadores de pensamento divergente eram punidos com a excomunhão, vale dizer, eram excluídos da comunidade eclesial. Portanto, era uma questão meramente intra-eclesial. Mas, quando o cristianismo se transformou em religião oficial do Império, a questão virou política. O cristianismo era considerado o fator principal de coesão e união política. Então, qualquer doutrina divergente colocava em risco a unidade política. Os representantes das novas doutrinas eram tidos por hereges. A punição era a excomunhão, o confisco dos bens, o banimento e mesmo a condenação à morte. A perseguição aos divergentes já ocorreu nos séculos IV e V com a crise do donatismo (os rigoristas no norte da África que não concediam o perdão aos que fraquejaram nas perseguições e não reconheciam os sacramentos administrados por eles). O controle e a repressão das novas doutrinas ganharam força no final do século XII e inicio do século XIII com a eclosão do movimento popular dos cátaros e valdenses no sul da França. Eram movimentos rigoristas, de volta ao espírito simples dos Atos dos Apóstolos, com a pregação itinerante do evangelho na linguagem do povo, levada a efeito, em sua grande maioria, por leigos. A Inquisição propriamente surgiu quando em 1232 o imperador Frederico II lançou editos de perseguição aos hereges em todo o Império pelo receio de divisões internas. O Papa Gregório IX, temendo as ambições político-religiosas do imperador, reivindicou para si essa tarefa e instituiu inquisidores papais. Estes foram recrutados entre os membros da ordem dos dominicanos (a partir de 1233), seja por sua rigorosa formação teológica (eram tomistas), seja também pelo fato de serem mendicantes e por isso presumivelmente desapegados de interesses mundanos. A partir de então se foi criando uma prática de controle severo das doutrinas, legitimadas com sucessivos documentos pontifícios como a bula de Inocência IV (Ad extirpanda) de 1252, que permitia a tortura nos acusados para quebrar-lhes a resistência. Até que em 1542 o Papa Paulo III Consoante o Manual, em primeiro lugar, o inquisidor se apresenta com poder apostólico, investido da autoridade papal; outras vezes se apresenta como “um enviado especial de Deus” (parte II,A,I). Em seguida mobiliza todas as forças eclesiais. Num determinado domingo na catedral, todos são obrigados a ouvir o sermão geral proferido pelo inquisidor. AI ouve que “se alguém souber que alguém disse ou fez algo contra a fé, que alguém admite tal ou tal erro, é obrigado a revelar ao inquisidor”, sob pena de excomunhão. Os delatores são animados a delatar, pois a delação os faz obedientes à fé divina (parte II,B,6). Mobiliza também todas as autoridades civis para que prestem juramento, sob pena de excomunhão, caso não dêem “assistência em tudo ao inquisidor, aplicando todas as leis canônicas contra os hereges, seus defensores, filhos e netos” (parte II,A,2). Começa ai o trabalho de recepção das denúncias a partir das delações ou da apresentação espontânea dos que se consideram em erro de doutrina. Há três tipos de processo: por acusação, por denúncia (delação), por investigação. A mais longa e complicada cabe aos interrogatórios dos hereges e das testemunhas. Curiosíssimos são os “dez truques dos hereges para responder sem confessar” e os “dez truques do inquisidor para neutralizar os truques dos hereges”. A malícia da mente do inquisidor é completa. A astúcia, refinadíssima. Como faziam os interrogadores militares da repressão política, deve-se, diz o Manual, dar a impressão de que se sabe de tudo: “Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo” (parte II, E, 23, 4). Os acusados são submetidos a todo tipo de pressão, são induzidos à confusão, os amigos são obrigados a pressioná-los, até a dormir com eles na cela, para obrigá-los a falar. Mas “colocam-se as testemunhas, além do escrivão inquisitorial, num bom lugar, na escuta, com a cumplicidade da escuridão” (parte II,E,23,9). E então são apanhados em confissão e condenados. Tudo sem maiores escrúpulos éticos. E, quando surgem, vale a acribia da sofistica teológica para justificar o que, no bom senso, é injustificável. Por exemplo: o inquisidor não deve prometer perdoar o acusado de heresia caso este confesse. O inquisidor sabe que não pode prometer perdão, porque a heresia não conhece perdão. Perguntam- se os autores do Manual: “Isto não é simplesmente uma desonestidade?” A resposta é rabulística: “reduzindo, mesmo numa proporção mínima, a pena atribuída a um delito (e é raríssimo que o culpado não tenha cometido vários delitos), o inquisitor que tiver prometido ‘perdoar’ terá mantido sua palavra” (parte II,E,23,1O). Portanto, não é desonestidade. O inquisidor mantém a boa consciência, porque, como se explica pouco antes no Manual, “tudo o que se fizer para a con- versão de hereges é perdão; e as penitências são perdão e remédio” (parte II,E,23,8). Outro exemplo clamoroso é o processo contra mortos denunciados de heresia. Para isso “não há limite de tempo”, diz o Manual. O morto é processado. Se condenado, lança-se o anátema sobre sua memória: “os filhos dos hereges serão declarados infames e inaptos a qualquer cargo público ou privilégio” (parte 111,22). E a efígie do condenado já falecido é queimada publicamente. Outras vezes, como os próprios autores do Manual contam, exumavam-se os cadáveres e abriam-se os processos contra eles. Sob o Papa Clemente VI (1342-1352), por exemplo, em Béziers, foi exumado, por ordem deste papa beneditino, o cadáver de frei Pedro João, dos franciscanos menores. Acusado publicamente de herege, o frade já morto foi condenado, quebraram-lhe os ossos e os queimaram (parte 1, 12). Os autores justificam: “Trata-se de uma sentença perfeitamente de acordo com o Direito, se bem que acabe, lamentavelmente, punindo quem não cometeu crime nenhum” (os filhos dos hereges). Mas continuam com escrúpulos e perguntam-se a si mesmos: “Como proceder contra um morto? Uma questão difícil, porque será que se pode abrir um processo contra quem, por definição, não pode comparecer? Não seria melhor falar claramente de ‘condenação da memória de Fulano’ do que ‘processo’? Sim, em direito civil. Mas evidente que não, em se tratando de um delito de lesa- majestade divina” (parte 111,22). Em vários lugares do Manual os autores concedem que são mais rigorosos que qualquer outro tribunal humano. Mas justificam: tratam dos crimes mais hediondos e terríveis, aqueles que ameaçam a salvação eterna que são as heresias. Lugar à parte ocupa o capítulo das torturas. Há precauções, pois os autores têm consciência dos abusos; nem o inquisidor sozinho deve torturar; precisa da permissão do bispo local. Mas praticamente todos os suspeitos e acusados passavam por vários tipos de tortura. “Tortura-se o acusado que vacilar nas respostas”; “o suspeito que só tem uma testemunha contra ele é torturado” (parte I1I,F,28), e por ai vai. A regra básica é esta: “É bom lembrar, antes de proceder à tortura, de que sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito a confessar a culpa que cala...; a tortura serve apenas como paliativo na falta de provas” (parte III,F,28,7). Por isso, para a Inquisição não há pessoas não-torturáveis. “Este é um direito que não conta nas ques- tões de heresia: nenhuma das pessoas isentas de tortura a propósito de qualquer delito não o será, tratando-se de heresia”, embora, de fato, se prevejam exceções a membros da alta hierarquia e da nobreza superior. Nem escapam os velhos e as crianças: “Pode-se torturá-los, mas com uma certa moderação; devem apanhar com pauladas ou, então, com chicotadas” (parte II,H). A confissão é tudo na Inquisição, não as provas, contrariamente ao senso do direito universal, pois, sabemos, a confissão pode ser extorquida sob coação. Os autores do Manual dos Inquisidores, num outro lugar, esclarecem: “Diante do tribunal da Inquisição basta a confissão do réu para condená-lo. O crime de heresia é concebido no cérebro e fica escondido na alma: portanto, é evidente que nada prova mais do que a confissão do réu. Eymerich tem razão (glosa do compi- lador e atualizador Peña) quando fala da total inutilidade da defesa” (parte lI,G,31). Com efeito, a defesa tem uma função meramente nominal, diria até perversa, pois não trata de defender o réu, mas de agilizar a sua condenação. O Manual ensina que “o papel do advogado é fazer o réu confessar logo e se arrepender, além de pedir a pena para o crime cometido” (parte II,G,3 1). O estatuto do defensor não é assegurado, como em qualquer legislação de Hamurabi (século XV a.C.) a Stalin ou Hitler. O lugar do defensor é no capitulo sobre “obstáculos à rapidez de um processo”. Os autores começam o capítulo acerca da “admissão de um defensor” com esta sentença: “O fato de dar direito de defesa ao réu também é motivo de lentidão no processo e de atraso na proclamação da sentença; essa concessão algumas vezes é necessária (no sentido de agilizar a sentença, porque o acusado não confessa: aclaração minha), outras não” (quando confessa: parte II,F,31). Ademais, o inquisidor deve ter o campo totalmente aberto à sua ação. Por isso “pode punir quem coloque entraves ao exercício da Inquisição; deve excomungar qualquer leigo que publicamente ou não discuta questões teológicas; ‘procederá’ (abrirá processo) contra qualquer advogado ou escrivão que der assistência a um herege” (parte 111,18). Como, em condições dessas, haver lugar para um advogado de defesa? O medo da heresia era tanto que implicava violação das comezinhas regras do sentido do direito universal e também a estupidificação dos leigos, que jamais podiam se ocupar com a teologia. A fé devia ser aceita, jamais pensada. A reflexão religiosa era monopólio exclusivo da hierarquia. Quem pensasse a fé, e pensar a fé significa discutir questões teológicas, era já suspeito de heresia, portanto, objeto da repressão. Não pensavam assim os agentes da repressão militar em regime de segurança nacional: quem discutir publicamente política é já suspeito de subversão e, logo, de sequestro, de tortura e de cárcere? Mudem os sinais, mas não a lógica de um sistema totalitário e por isso repressivo de toda e qualquer diferença. As punições variavam consoante o grau de adesão do acusado às doutrinas consideradas heréticas ou suspeitas de heresia, que vão desde a simples abjuração, expiação canônica, pagamento de multas, expropriação dos bens, excomunhão, prisões e a fogueira pelo braço secular. Os leitores verão a severidade das penas e também os processos psicológicos para demover os hereges convictos de suas doutrinas. Vão dos flagelos das prisões escuras, das torturas, das humilhações, tudo para “acordar a inteligência” e desdizer o que diz (parte II,H). Se este método não funcionar, então se utiliza a bondade, a presença da esposa e dos filhos. Se nada adiantar, será entregue ao braço secular e irá para o auto-de-fé. O Manual é claro ao subordinar o bem individual ao bem da Igreja: é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e aterrorizar os outros (ut alii terreantur); ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando ao bem de um indivíduo” (parte 11,22,10). Efetivamente, o mundo da Inquisição é marcado de medos, sermões aterradores dos inquisidores, delações, suspeitas, vinditas, perseguições e sobretudo autos-de-fé macabros, com condenados à fogueira in conspectu omnium. Que sobrou aqui do cristianismo como boa e alvissareira notícia de libertação, de fraternidade e sororidade universais, de amor ilimitado? 5. O que tornou possível a Inquisição e a continuação de seu espírito A Inquisição foi possível na Igreja romano-católica com processos de exclusão, torturas e condenações porque nas relações internas dela existem violências. A Inquisição é ponto de cristalização de uma violência anterior. A violência interna da Igreja romano-católica se dá na forma como o poder sagrado é distribuído. Ele sofre uma profunda dissimetria. Um pequeno grupo (é menos que 0,3% de toda a Igreja), a hierarquia (papa, bispos e padres), detém todos os meios de produção simbólica de forma excludente. Os demais não participam, não devem nem podem participar. São dependentes e meros beneficiários desses portadores exclusivos de poder. Não cabe aqui detalhar essa questão, feita por nós em outras obras (Igreja, carisma e poder; E a Igreja se fez povo; Leigos e ministérios). Basta a indicação de algumas pistas. Inicialmente o cristianismo era uma comunidade fraternal e sororal. A comunidade inteira se sentia herdeira de Jesus e portadora de seu poder. Este poder se diversificava em vários serviços e ministérios, consoante as necessidades da comunidade. Mais que ministérios institucionalizados e institucionais, havia ministros, pessoas geralmente com características carismáticas. A autoridade era moral, portanto, autoridade no sentido originário da palavra (aquilo que faz crescer os outros e que reforça e não tira o poder dos outros) e quase nada jurídica, embora essa dimensão estivesse também presente como em todas as comunidades que buscam certa ordem e funcionamento de sua vida interna. Mas o jurídico de forma alguma era hegemônico e era vivido dentro do espírito evangélico do poder como serviço desinteressado à comunidade. A Igreja se definia como comunidade dos seguidores de Jesus; a rede de comunicações formava o novo povo de Deus, em solidariedade com os demais povos. Com a transformação do cristianismo em religião do Império (séculos IV e V), novas responsabilidades tiveram que ser assumidas pelos cristãos (eram menos que 1/6 dos habitantes). Estes sentiram a necessidade de organizar-se e institucionalizar certas funções. Foi então que o aspecto jurídico ganhou corpo, assimilando a da tradição jurídica romana, que sempre foi fascinante. Surgiu o corpo clerical, distinto do corpo laical. Emergiu um corpo de peritos do sagrado que acumulou toda a responsabilidade pelo espaço da fé: produziu o discurso, o ethos e o rito. E articulou o poder religioso com o poder político dominante. O que se criou foi considerado oficial. Lentamente se impôs à produção mais espontânea das expressões da fé, das celebrações e dos costumes cristãos, feitos pelos fiéis, homens e mulheres, no quotidiano de suas vidas. O conceito dominante de Igreja agora é de hierarquia, o grupo dos consagrados pelo sacramento da ordem e que detém o poder sagrado na comunidade. De tal forma que a Igreja ficou sendo simplesmente sinônimo de hierarquia, presente ainda hoje na compreensão comum. Quando se As punições impostas são ainda compreendidas como benevolência e misericórdia da Igreja. Após a punição que o autor desta introdução recebeu da ex-Inquisição em 1984 (deposição como editor da Editora Vozes, deposição de redator da Revista Eclesiástica Brasileira, proibição de dar aulas, de falar publicamente, de dar entrevistas, de publicar qualquer texto e por fim a imposição de um “silêncio obsequioso” por tempo indeterminado, portanto punições nada banais para um intelectual cujo único instrumento e arma é a palavra falada e escrita), o atual Pontífice, através de seu Secretário de Estado, Cardeal Agostino Casaroli, me escreveu com data de 29 de julho de 1985: “Aquilo que, efetivamente, é requerido ao Rev. Padre, ou seja, ater-se a algumas limitações, entre as quais o obsequjosum silentium, visa como finalidade ajudá-lo a ter um período de pausa para repensar diante de Deus problemas que são de grande importância para um teólogo e para refletir nas suas responsabilidades diante dos irmãos de fé” (cf. Roma locuta: documentos sobre o livro Igreja: Carisma e Poder, CDDH, Petrópolis 1985, p.l52). A subjetividade das pessoas que sentem, que desenvolveram um sentido de justiça e de equidade dentro da Igreja, que militam, com riscos pessoais, até de ameaça de morte, na defesa e promoção dos direitos humanos pisoteados nas sociedades autoritárias do Terceiro Mundo, nada conta. Conta a objetividade da doutrina (fruto da subjetividade coletiva do corpo clerical que a impõe como objetiva aos Outros), que deve ser salvaguardada a preço do escândalo dos mais simples, daqueles que sofrem a contradição de uma Igreja que se compromete na observância dos direitos humanos na sociedade e não consegue fazer valê-los nas relações internas dela mesma. Não cabe refutar a lógica do sistema. Mas questionar o sistema mesmo. Dispensamo-nos desta tarefa, pois transcende o sentido da introdução deste Manual dos Inquisidores. Mas não será difícil o próprio leitor fazê-lo, pois: a) A Inquisição contradiz o bom senso das pessoas. Como se pode, em nome da verdade e ainda mais da verdade religiosa, perseguir, torturar, matar tanto e de forma tão obsessiva? Importa enfatizar que, mediante a Inquisição, a Igreja hierárquica introduziu os sacrifícios humanos. O auge do sacrificialismo furibundo da Inquisição no século XVI na Europa corresponde aos sacrifícios humanos perpetrados pelos colonizadores espanhóis chegados ao nosso Continente contra as culturas originárias dos astecas, maias, incas, chibchas e outras. Quando Hernán Cortez penetrou em 1519 no planalto de Anahuac no México, havia no Império asteca 25.200.000 habitantes. Menos de 80 anos, em 1595, só restaram 1.375.000 habitantes. A dizimação global, por guerras, doenças, excesso de trabalho-escravo na encomiendas, desestruturação cultural, nos dois primeiros séculos da colonização-invasão, foi da ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrifícios humanos: os astecas, que faziam sacrifícios rituais ao deus Sol para que sempre voltasse a nascer e assim garantisse a vida para todos os povos e para o universo, ou os espanhóis, que sacrificavam ao deus Mamona para serem ricos e fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunidos no Concílio de Trento (1545-1563), contemporâneo a todos esses fatos, não dizem sequer uma palavra. Estavam ocupados com questões internas da Instituição em confronto com a Reforma de Lutero. A verdade possui, em si, uma dimensão de libertação e humanização. Na Inquisição ela é afogada. Repugna à inteligência assumir uma pretensa verdade à força do terror. b) A Inquisição contradiz o sentido da verdade religiosa, da verdade simplesmente e a natureza da religião. A verdade é como o sol. Ele ilumina a todos e a todos se dá. Pode dizer a montanha à planta que está ao seu pé: por que sou mais alta e sou a primeira a ser bafejada pelo sol, você, plantazinha ao meu pé, não tem direito de receber sol nenhum? E a luz que tens não é luz e não vem do sol? Seria absurdo o discurso da montanha. E seria menos absurdo o discurso da teologia (ideologia) da verdade absoluta que subjaz aos órgãos de controle e repressão das doutrinas na Igreja romano-católica que nega verdade às outras religiões e a outras confissões cristãs? Todos estamos em algum nível da verdade. Como também todos estamos a caminho de uma verdade mais plena. A verdade não está apenas nas frases verdadeiras. Ela está fundamentalmente na vida, na profundidade do coração, nas relações entre as pessoas, no curso da história. Ela pode ser expressa de mil formas, num poema, numa música, numa catedral, numa parábola e num discurso. Na história, nossas formulações exprimem a verdade absoluta que está em todos, mas não logram exprimir todo o absoluto da Verdade. No dito fica sempre o não-dito. E todo ponto de vista é sempre a vista de um ponto. Por isso haverá sempre possibilidade de se dizer a verdade e a fé em doutrinas expressas em marcos inteligíveis de uma outra cultura, de uma outra tradição espiritual e, por que não dizê-lo também, no código de uma outra classe social. A Inquisição é contra a natureza da religião. Esta trabalha o sagrado que está na profundidade de cada pessoa, na história e no cosmos. O efeito da prática religiosa é a potenciação do sentido da vida, do sentimento de salvação, da formulação de uma esperança contra toda esperança e do apreço e salvaguarda da vida e do menor sinal de vida. Uma religião que produz morte e exige sacrifícios humanos desnatura a religião e se transforma num aparelho de controle social. c) A Inquisição nada tem a ver com Cristo, nem com o seu Evangelho. Se tem a ver, é contra eles. O próprio Cristo foi vitima da inquisição judaica de seu tempo. Como em seu nome instaurar uma inquisição? Não esqueçamos que o Grande Inquisidor de Dostoievski acabou condenando Jesus Cristo. Nem tem a ver com a Igreja em sua compreensão maior, teológica e sacramental. Pois a Igreja como comunidade dos professantes procura manter viva a memória de Jesus, do seu sonho, da irradiação do seu Espírito, na profunda alegria de sermos todos filhos e filhas de Deus e por isso irmãos e irmãs de toda humana criatura e de cada ser do universo. A Inquisição tem a ver sim com a patologia como distorção dessa convicção, e com o pecado como negação prática dessa proposta, carregada de promessa e de utopia. Mas sejamos realistas: quem é são pode ficar doente. E quem está na graça pode pecar. A “Santa” Inquisição é expressão de um componente neurótico-obsessivo do corpo clerical e cristaliza a dimensão de pecado que existe nas relações internas da Igreja. Pois, a própria Igreja- comunidade de fiéis se confessa santa e pecadora. Se assim é então aqui é o pecado Institucional que ganha a cena e a ocupa durante séculos. Seu espírito vaga assustador até os dias de hoje. E devemos nos precaver contra ele. Antes, ajudar a própria instituição eclesial a ser fiel à sua utopia originária e a ser um lugar de exercício de liberdade e de experimentação da graça humanitária de Deus. E isso se fará na medida em que os professantes da fé romano-católica se reapropriarem daquilo de que foram historicamente despojados: sua capacidade de experimentar o sonho de Jesus, de dizê-lo de forma criativa e responsável no interior da comunidade, de confrontá-lo solidariamente com outras experiências do evangelho de Deus na história e articulá-lo com o curso do mundo, onde se revela também e principalmente o desígnio de benquerença e de amor de Deus. A comunidade cristã viveu séculos sem a Inquisição. Isto significa que não precisou dela para viver e sobreviver. Portanto, ela é supérflua. Sua existência mantém o mesmo escândalo, denota uma patologia e concretiza um pecado. Nunca teve direito a existir. Não deve mais existir. Por amor a Deus, por fidelidade a Jesus Cristo e por respeito às opiniões religiosas diferentes nas sociedades humanas. LEONARDO BOFF Prof. de ética e Teologia na UERJ Rio de Janeiro, Sexta-feira Santa da Paixão de 1993. A perigosa travessia para a República Mundial Leonardo Boff Teólogo, escritor e professor da UERJ Quando uma arvore realizou suas virtualidades intrínsecas, diz-se que alcançou o climax. Morre e tomba. Quando uma pessoa gastou seu capital energético, envelhece e morre. Quando nos próximos dez bilhões de anos o soí tiver exaurido seu estoque de hidrogênio e em seguida de hélio, morrera como estrela brilhante. Transformar-se-á lentamente numa anã branca e por fim num buraco negro. Morrera carregando Consigo, muito antes, todo o sistema solar e o nosso planeta Terra. O inteiro universo, cada um dos seres, especialmente os orgânicos, caem sob a lei da entropia. Possuem virtualidades limitadas. Vão um dia desaparecer. Não acontece o mesmo com os sistemas sociais. Não estará nosso sistema de convivência esvaziado em suas virtualidades e a caminho de dissolução? Inegavelmente encontra-se numa profunda crise. É crise conjuntural que, superada, permite a inauguração de uma nova era de prosperidade? É crise estrutural que prepara seu desenlace final com um doente terminal na UTI? Assumo a hipótese de que estamos no coração de uma crise estrutural e terminal. Ela é estrutural porque afeta todas as instâncias, como uma bactéria que toma conta de todo o organismo e produz a septicemia e a consequente morte. É terminal porque representa o esgotamento do paradigma, quer dizer, das energias, dos sonhos e das estratégias capazes de equacionar as contradições internas do próprio sistema. Ele caminha fatalmente para a morta Nada poderá deter isso. É o fim do mundo? Sim e não. Sim, porque representa o fim deste tipo de mundo. Nilo, porque o mundo continuará. O fim propiciará a oportunidade para um novo mundo surgir, vale dizer, um novo padrão civilizatório, capaz de criar um novo sentido de vida para as pessoas e um novo horizonte de esperança para os povos e a humanidade. Esta dupla perspectiva de morte e de vida está presente na palavra crise no seu sentido originário sânscrito. Crise vem de kir ou krt que significa limpar e purificar. Dai deriva a palavra crisol, ele- mento químico purificador do ouro e outros metais, ou acrisolar, que quer dizer purificar e depurar. Todo processo de purificação implica morte e renascimento. Morte das gangas, do agregado e do contingente. E renascimento do cerne, da essência e do necessária O que passa pelo crisol da crise permanece e tem virtualidades para fundar um novo futuro. É a catársis que estamos passando no atual momento. Duas crises mortais para o atual sistema Há duas crises, produzidas pelo próprio sistema de convivialidade vigente e insolúveis com os recursos intrínsecos a ele. A social e a ecológica. A <vise soda/opõe ricos e pobres como nunca antes na humanidade. O processo produtivista, com a utilização das tecnologias de automação, consegue produzir bens e serviços com extrema rapi- dez e em escala crescente. Entretanto, tais bens são apropriados exclusivamente por pequenas elites de países ou de classes sociais dentro de países dependentes e pobres. Essa lógica o cuidado com a Terra e com seus filhos e filhas, e gerenciará os recursos limitados para que atendam minimamente a todos os viventes de hoje e aos que virão depois de nós. Espiritualidade e ética, bases da nova sociedade mundial O sofrimento provocado pela derrocada do antigo sistema mundial convencera a todos ele que não se poderá construir um novo pacto mundial fundado apenas entre os humanos. A Terra, os ecos- sistemas e todos os seres deverão entrar num pacto sociocósmico de sobrevivência e de fraterna convivência. Ele não se sustentara assentado numa cultura do paradigma único, puramente racional e material. Arco-íris, o sinal da aliança cósmica que Deus estabeleceu entre os viventes, após a devastação do dilúvio, servirá de referência e inspiração) comum. As diversidades coexistirão e convergirão na busca cio bem comum de todos. Para isso, demandar-se-á uma nova sensibilidade, cujas raízes se encontram na lógica do coração e no cuidado de uns para com os outros. Essa sensibilidade dará origem a uma profunda espiritualidade. O ser humano descobrirá o espiritual como dimensão objetiva do cosmos e de cada ser humana É dimensão de interioridade e história inerente a cada coisa. É aquela consciência que se sente inserida num todo maior e percebe o no secreto que perpassa tudo, formando uma incomensurável unidade dinâmica, diversa e convergente. Esse fio condutor vivo e irradiante será decifrado como Deus, que se revela em nosso coração com o entusiasmo de viver, de lutar, de criar e de plasmar a vida e a natureza consoante um propósito de sabedoria, de amorização e de beleza. Essa ótica funda uma nova ética, erguida sobre dois valores fundamentais, sem os quais não se preservará a vida e o nosso esplendoroso planeta azul-branco: a justa medida e o cuidado essencial. A justa medida garantiu que o cosmos e a vida chegassem até nós hoje. As culturas sobrevivem à medida que se regem por esse principio, chamado de regra áurea. Ao abandoná-lo, desestrutu- ram-se e morrem. A nossa é absolutamente sem medida em todos os campos. Daí a proximidade de sua dissolução. Que é a justa medida? É o equilíbrio entre o mais e o menos. É o ótimo relativo. É a sabedoria de lidar com os recursos limitados, naturais e culturais, de tal maneira que possam durar o mais possível ou possam se regenerar e reproduzir. A sustentabilidade de cada ser ou de qualquer ecossistema depende da justa medida. É ela que faz frente à lei inexorável da entropia, do desgaste irrefreável de todas as coisas. Sem a justa medida, tudo acaba antes e morre mais cedo. Com a justa medida, tudo se prolonga e vive mais longamente. O primeiro parágrafo da constituição mundial começará com a proclamação solene do princípio sagrado da justa medida. Não fizeram a mesma coisa os gregos com o seu méden ágan (nada de excesso) ou os romanos com o seu ne quid nimis (nada em demasia), ou os chineses com o seu wu-wei e yin-yang (a harmonia perfeita)? Sem a justa medida, os recursos limitados do planeta não serão suficientes para todos, humanos e demais seres vivos da natureza. Não se dirá: não consumiras, mas se dirá: consuma com responsabilidade; consuma com sentido de partilha; consuma com solidariedade. Não se dirá: não mostre a violência ou a dimensão de sombras do ser humano, mas se dirá: mostre-a na justa medida; mostre-a de forma construtiva; mostre o patológico como patológico, de forma que nosso ser equilibrado e curado pelo sadio. Sem a justa medida, o planeta não aguentará o consumismo. Sem a justa medida, os povos da Terra não coexistirão em paz nem convergirão na diversidade. Sem a justa medida não se encontrará a síntese criativa entre o simbólico e o diabólico presentes na história da humanidade e no coração de cada pessoa. Sem a justa medida, não encontraremos o equilíbrio entre o vôo para cima na direção do Pai/Mãe divinos e o mergulho para baixo em direção à construção social do pão cotidiano. Somente unindo Pai Nosso com pão nosso podemos dizer um Amém verdadeiro. O segundo valor ético fundador de um futuro comum para a Terra e para a humanidade será o cuidado essencial. Cuidar significa entreter uma relação amorosa com a realidade e com cada ser da criação. E investir coração, afeto e subjetividade. As coisas são mais que coisas que podemos usar. São valores que podemos apreciar, são símbolos que podemos decifrar. Cuidar significa envolver-se com as pessoas e as coisas, dar-lhes atenção, colocar-se junto delas, senti-las dentro do coração, entrar em comunhão com elas, valorizá-las e compreende-las em sua interioridade. Tudo de que cuidamos também amamos. E tudo que amamos também cuidamos. Pelo fato de nos ligarmos afetivamente com as pessoas e as coisas nos preocupamos com elas e sentimos responsabilidade por elas. Bem ensinavam os antigos, o que foi repetido por um dos maiores filósofos modernos, Martin Hiedegger: a essência do ser humano reside no cuidado. Se ele não for cuidado desde o seu nascimento até a morte, se desestruturará, definhará e acabará morrendo. Mais que pensar, amar e criar, ele precisa saber cuidar, condição para todas as demais expressões do humano. O cuidado funda o ethos mínimo da humanidade. O cuidado e a atitude ética adequada para com a natureza e para com a morada comum, a Terra. O cuidado salvara o amor, a vida, a convivência social e a Terra. O novo milênio somente será inaugurado quando triunfar a ética do cuidado essencial, mesmo no século XXI adentro. Ao redor dos valores da justa medida e do cuidado essencial, costurar-se-ão os pactos sociais e ecológicos que assentará em bases firmes a nova sociedade mundial emergente. Ela está em dores de parto, forcejando para nascer em todas as partes do mundo. Um pouco mais, mais um pouco e nascerá, cheia de vida e de esperança. Como o poeta Camões, podemos dizer: “Depois de procelosa tempestade Sombria noite e sibilante vento, Traz a manhã serena claridade, Esperança de porto e salvamento”. Identidade e Complexidade por Leonardo Boff Homem vem de humus que significa terra fecunda. Adão, Adam, em hebraico, "criatura humana feita de terra", provém de adamá, que quer dizer Mãe-Terra. O ser humano é filho e filha da Mãe- Terra. Ele é a Terra em seu momento de consciência, de responsabilidade e de amor. Estas palavras, Homo-humus, Adam-adamá, já apontam para a estreita relação do ser humano para com a Terra e através da Terra para com todo o universo. É nesta conexão que devemos buscar a identificação de sua natureza e de sua missão. 1. A carteira de identidade do ser humano A história pessoal é parte da história bio-sócio-cultural. Esta, por sua vez, é parte da história cósmica. Esse enraizamento confere ao ser humano concreto uma quádrupla identidade. Uma cósmica: somos feitos daquelas partículas elementares que têm a idade do universo (15 bilhões de anos) e daqueles materiais forjados há bilhões de anos no interior das grandes estrelas, especialmente os átomos de carbono, oxigênio e nitrogênio imprescindíveis à vida. Segundo informações do Tycho Brahe Planatarium de Copenhagen, cada dia, caem cerca de 30 toneladas de poeira cósmica sobre a Terra. Na Groenlândia pode ser vista e recolhida da neve junto com a poeira terrestre (com 2/3 de pureza). Bilhões destas partículas que podem ser mais antigas que a própria Terra e o sistema solar. Outra terrenal : surgimos a partir de formas primitivas de vida que se anunciaram na Terra há mais de 3,8 bilhões de anos com todos os seus componentes físico-químicos e ecológicos. Essas formas foram se complexificando até aparecerem os hominidas bípedes com um cérebro de 600 centímetros cúbitos. Este lhes permitia fabricar utensílios e abrigos. Com o evoluir da espécie hominida em milhões de anos, emergiu, por fim, o homo sapiens com um cérebro de 1500 centímetros cúbitos, do qual nós somos descendentes diretos. Ele não rompeu a linha evolutiva nem perdeu a herança acumulada de toda a trajetória terrenal da vida. A partir do surgimento dos mamíferos há 216 milhões de anos, incorporou o calor afetivo que une mãe/pai/filhos. Soube estendê-lo para um círculo maior na forma de enternecimento, de amizade e de amor. Em terceiro lugar, temos uma identidade cultural: o ser humano criou a cultura, realidade especificamente humana. Criou-a a partir de intervenções sobre si mesmo e sobre a natureza. Essas intervenções permitiram que criasse o habitat humano que o gregos, com justeza, chamava de ethos. Ethos, em grego - donde vem a palavra ética, é a morada humana. Quer dizer, aquele pedaço do mundo que escolhemos cuidadosamente, organizamos e nele construímos nossa habitação permanente. Intervir é trabalhar. O trabalho é o meio maior de forjamento da cultura. Ele não só cria instrumentos e aparatos tecnológicos para transformar a natureza, mas também suscita conteúdos da consciência, formas de sentir, de valorar, de se relacionar psicológica e socialmente com os outros. Pertence ao trabalho cultural a criação de linguagens, idéias, mitos, artes, etnias, organizações sociais como a cidade, os estados-nações e hoje a planetização. Cada cultura projetou seu grande sonho para cima e testemunhou seu encontro com o Mistério que se esconde e se revela no universo e em cada coisa. Chamou-o por mil nomes: Olorum da cultura nagô, Javé da cultura hebraica, Alá da cultura muçulmana, Tao da cultura chinesa e japonesa, Pai e Mãe da cultura cristã. Tudo na cultura leva a marca registrada do ser humano que vem marcado também por ela. Na perspectiva cosmogênica, entendemos por espírito a capacidade das energias primordiais e da própria matéria de interagirem entre si, de se auto-organizarem, de se constituírem em sistemas abertos, de se comunicarem e de se formarem a teia complexíssima de inter-retro-relações que sustentam o universo. O espírito é fundamentalmente relação, interação e auto-organização. Desde o primeiro momento da explosão primordial, criaram-se relações e interações, gerindo unidades ainda rudimentares que foram se organizando de forma sempre mais complexa. Emergia então o espírito. O universo é cheio de espírito porque é reativo, panrelacional, auto-organizativo e complexo. Neste sentido não há seres inertes à diferença de outros chamados seres vivos. Todos participam, em seu grau, do espírito e da vida. A diferença entre o espírito de uma rocha e o espírito humano não é de princípio, mas de grau. O princípio de relação, de interação e de auto-organização complexa se realiza em ambos, apenas de forma diferente. O espírito humano é este mesmo dinamismo tornado consciente. Sente-se inserido no todo e vinculado a um corpo animado e vivificado. Através desse corpo entra em contato com todos os demais corpos e energias do universo. No nível reflexo, espírito significa comunicação, irradiação, entusiasmo. Significa também criação e auto transcendência para além dele mesmo, gerindo comunidade com o mais distante e o mais diferente até com absoluta Alteridade, Deus. O homem/mulher-espírito é o que de mais aberto e de mais universal existe. É um nó de relações e re-ligações para todos os lados e dimensões. A vida consciente, livre, criadora, amorizadora caracteriza vida humana. É o espírito. É a águia na pujança de sua natureza de águia. É o símbolo em sua verdadeira acepção de ligar e re-ligar. Se o espírito é vida e relação, seu oposto não é matéria mas morte e ausência de relação. Pertence ao espírito também sua capacidade de encapsulamento, de recusa à comunicação com o outro, sua vontade de dominação. A águia pode virar galinha. É o império do dia-bólico como energia de desestruturação e morte. 4. A subjetividade é cósmica e pessoal Os seres todos do universo quanto mais complexos mais vitais se apresentam. E quanto mais vitais, também mais interioridade e subjetividade possuem. Esta interioridade e subjetividade vai, por sua vez, se densificando até atingir um grau eminente no ser humano. Ele possui um centro a partir donde organiza toda sua vida consciente. Possui profundidade, dimensão ameaçada de desaparecer na cultura materialista de consumo e de massas. Seu eu consciente dialoga com o seu eu profundo. Tão complexo quanto o macrocosmo é o microcosmos interior do ser humano. Vem habitado por energias ancestrais, por visões e arquétipos abissais, paixões, eventualmente tão virulentas quanto tufões e terremotos. Habitado por anjos e demônios, pelo sim-bólico e pelo dia-bólico, por tendência de ternura e compaixão que enxugam qualquer lágrima e desanuviam qualquer perplexidade. Dialogar com este universo interior, integrá-lo a partir de um centro pessoal e livre, canalizar as pluriformes energias, particularmente ligadas à libido, aos arquétipos do masculino e do feminino e do Self, harmonizar o sim-bólico com o dia-bólico num projeto coerente, livre e revelador da pessoa é realizar o processo de individuação/personalização. Assumir este processo é conferir um perfil singular e único ao espírito de cada pessoa humana. Significa construir a sua própria espiritualidade. Esta espiritualidade não vem enquadrada num marco religioso. Ela pertence à caminhada de cada um, rumo à escuta e à conquista de seu próprio coração. Obviamente para uma pessoa religiosa, dialogar com sua realidade profunda, escutar apelos que afloram de seu centro, significa ouvir Deus e escutar a sua Palavra. 5. Qual é a missão do ser humano no universo? As reflexões que vertebramos acima, colocam-nos naturalmente a pergunta: qual o sentido do ser humano no conjunto dos seres e no universo? Vamos logo dizendo: certamente não foi chamado à existência para dominar, ameaçar e destruir as demais espécies. Seria contra o sentido da seta do tempo que se rege pela lei mais universal que existe: a solidariedade cósmica. Ele é membro, entre outros tantos, da imensa comunidade universal, planetária e biótica. Por ser portador singular do espírito que pervade todas as coisas, é chamado a agradecer, a celebrar e a louvar a indescritível beleza e simetria dinâmica da criação. A admirar sua complexidade e sua criatividade. Convocado a ser capaz de fazer do caos e do dia-bólico condição para um cosmos mais rico e mais sim-bólico. A tradição judaico-cristã fala do sábado como a festa da criação. Os seis dias da criação representam o trabalho de Deus. No sábado Ele mesmo descansou, alegrou-se e festejou o resultado de sua ação criadora. O descanso é a plenitude do trabalho e da criação. Esse relato sim-bólico oferece uma indicação para o ser humano. Há seis dias para trabalhar e produzir. Mas há o dia da gratuidade, do ócio, da festa e da dança. O trabalho é penoso e divide as pessoas por seus vários interesses, distinta repartição de seus frutos. No sábado todos devem olvidar estas diferenças e se colocar no mesmo chão, iguais e confraternizados, como filhos e filhas da Terra, e irmãos e irmãs universais. Não cabe produzir nem obras, nem pensamentos, nem estruturar interesses. Importa festejar, comer, dançar e extasiar-se. Ao viver esta dimensão, o ser humano comparte da profunda gratuidade do universo. Cumpre sua missão cósmica na esteira da festa do próprio Deus. Quando volta, trabalhará sem sentir-se escravizado por ele ou vítima da lógica da produtividade. Por seu espírito e por sua autoconsciência, o ser humano se mostra sempre concriador. Ele intervém no seu projeto. Ele se faz responsável pelo sentido de sua liberdade e de sua criatividade. Emerge então como um ser ético. Ele pode agir com a natureza ou contra ela. Pode desentranhar virtualidades presentes em cada coisa e em cada ecossistema. Conhecendo as leis da natureza, ele pode usar esse conhecimento para prolongar a vida, reduzir e até anular a entropia dos processos evolutivos. O futuro da Terra dependeria assim do ser humano. As tradições dos povos falam do ser humano como jardineiro. Cultiva a Terra com cuidado e senso de estética. É um verdadeiro culto que gera cultura. Ele é chamado a completar a criação deixada incompleta. A acrescentar-lhe dimensões que possivelmente sem ele jamais viriam à luz. Tal vocação não deve servir de pretexto para o antropocentrismo e a ideologia da dominação do mundo. Sua intervenção no mundo deve se fazer sem sacrificar a comunidade planetária e cósmica da qual participa. Ele é vocacionado para ser o sím-bolos e não o dia-bólos da criação. Ele tem ainda a missão de médico da Terra. Historicamente se mostrou demente. Ameaçou, desestruturou e matou. A máquina que mata pode também salvar. Somos chamados a revitalizar, a animar e a reintegrar o que foi durante séculos agredido, ferido e desestruturado. Não podemos, numa atitude obscurantista, dar as costas à ciência e à técnica e deixar a Terra com suas chagas e enfermidades. Se a ferimos outrora e continuamos a magoá-la, devemos hoje saná-la e dar-lhe condições de saúde integral. As soluções terapêuticas devem se inspirar em muitas fontes e tradições curativas, ensaiadas pelos povos dos mais originários aos mais contemporâneos. Nesse afã não devemos desprezar o concurso de nossa civilização técnico-científica, apesar de ter sido ela a principal causadora de seu traumatismos. Por fim, nossa civilização tecnológica, tão sim-bólica quanto dia-bólica, suscita uma pergunta radical: qual é seu significado mais transcendente? A que ela, finalmente, se ordena? À dominação da Terra? A fazermo-nos apenas mais ricos materialmente, ao preço de ficarmos mais pobres espiritualmente porque mais alienados de nossas raízes cósmicas? Ao responder a estas indagações, surge outro aspecto da missão humano: a de salvar a Terra e a própria espécie homo. Importa reconhecer os inestimáveis méritos da civilização tecnológica. Foi ela que nos permitiu sair da Terra. Avançar para dentro do espaço exterior. Chegar à Lua e, mediante sondas, satélites e robôs, estudar quase todos os planetas e luas do sistema solar. Esta civilização tecnológica propiciou a realização de uma das aspirações mais ancestrais da humanidade: poder voar como os pássaros; poder viajar até onde pudéssemos ir. Até onde podemos ir? Até o sem fronteiras. Para além do sol, das estrelas, das galáxias e do inteiro universo. Até o infinito. Pois até lá chega nosso sonho e nosso desejo. E não voamos porque temos aviões e foguetes espaciais. Voamos porque ansiamos voar. É por causa desta sede irreprimível que criamos o avião e os foguetes. É a águia em nós que nos convoca sempre mais para cima e sempre mais para o alto. A aventura espacial, iniciada nos anos sessenta, revela a dimensão cósmica do projeto humano. Ela nos fornece uma compreensão mais concreta do radical desejo humano de sempre transcender, de violar todas as barreiras e de só se satisfazer com o infinito. O céu profundo, acima de nossa cabeças, é o maior sím-bolo desta transcendência. Por isso os seres humanos querem chegar lá. Bem o expressou o astronauta russo Yuri Romanenko ao retornar à Terra, depois de ter ficado dois anos no espaço: "O cosmos é um ímã. Depois de ter estado lá em cima, você só pensa em voltar para lá". Queremos voltar para o céu porque somos mais do que filho e filhas da Terra. Somos, na verdade, seres celestiais e cósmicos. Do cosmos viemos e para o cosmos queremos consciente e inconscientemente voltar. Sempre fomos errantes. A partir do neolítico ficamos, por breve tempo, sedentários em moradias, cidades e estados. Agora retomamos nossa errância rumo às estrelas, nossa verdadeira morada. Os materiais que nos constituem não foram formados no seio das grandes estrelas vermelhas? Mas não é a nossa origem estelar que explica a exploração do espaço acima de nossas cabeças. É por uma razão bem mais prática: sentimos a urgência de sobreviver como espécie. Primeiramente, o desenvolvimento exponencial do projeto técnico-científico deu origem ao princípio de autodestruição. Pela primeira vez na história nossa espécie pode se dizimar a si mesma. É natural que as pessoas não queiram aceitar esse eventual veredicto de morte. Os que podem, querem fugir para o espaço, bem longe da casa em chamas. Em segundo lugar, as ciências da Terra nos forneceram dados bastante precisos dos impactos que o planeta sofreu durante o tempo de sua formação. Algumas vezes quase todo seu capital biológico foi destruído, como, por exemplo, no período cretáceo-terciário, 67 milhões de anos atrás. Desaparecem, então, num lapso curto de tempo, os dinossauros. Curiosamente, constatou-se que todas as vezes que ocorreram dizimações em massa na biosfera, seguiu-se uma pluriferação fantástica de novas formas de vida. É uma espécie de vendetta do sistema-vida. Sabemos hoje que existem próximos à Terra cerca de 300 mil asteróides com mais de 100 metros de diâmetro. E mais de 2000 com um quilômetro ou mais. Na nuvem de Oort, nos confins do sistema solar (entre 20 a 100 mil unidades astronômicas), existem mais de um trilhão de meteoros, asteróides e cometas, alguns muito grandes. De vez em quando saem de lá, por razões gravitacionais ainda não esclarecidas, e colidem com os planetas solares. Nenhum planeta nem a Terra são imunes contra eles. Caindo aqui fariam estragos formidáveis. Alguns deles, dizem renomados cientistas, poderiam nos destruir. Fundamentalismo Leonardo Boff Hoje se fala muito de fundamentalismo. Fundamentalismo do mercado e do projeto neoliberal, fundamentalismo cristão, fundamentalismo islâmico, principal responsável pelos atentados de 11 de setembro, fundamentalismo das posturas políticas e bélicas do Presidente Bush. Tentemos esclarecer o leitor o que seja fundamentalismo e o risco que representa para a pacífica convivência humana e para o futuro da humanidade. O nicho do fundamentalismo se encontra no protestantismo americano, surgido nos meados do século 19 e formalizado, posteriormente, numa pequena coleção de livros que vinha sob o título Fundamentals: a testimony of the Truth (1909-1915). Trata-se de uma tendência de fiéis, pregadores e teólogos que tomavam as palavras da Bíblia ao pé da letra (o fundamento de tudo para a fé protestante é a Bíblia). Se Deus consignou sua revelação no Livro Sagrado, então tudo, cada palavra e cada sentença, devem ser verdadeiras e imutáveis. Em nome do literalismo, esses fiéis opunham-se às interpretações da assim chamada teologia liberal. Esta usava e usa os métodos histórico-críticos e hermenêuticos para interpretar textos escritos há 2-3 mil anos. Supõe- se que a história e as palavras não ficaram congeladas. Precisam ser interpretadas para resgatar- lhes o sentido original. Esse procedimento para os fundamentalistas é ofensivo a Deus. Por razões semelhantes, eles se opõem aos conhecimentos contemporâneos da história, das ciências, da geografia e especialmente da biologia que possam questionar a verdade bíblica. Para o fundamentalista, a criação se realizou mesmo em sete dias. O cristianismo detém o monopólio da verdade revelada. Jesus é o único caminho para a salvação. Fora dele há somente perdição. Daí o caráter militante e missionário de todo fundamentalista. Face aos demais caminhos espirituais ele é intolerante, pois eles significam simplesmente errância. Na moral é especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e à família. É contra os homossexuais, o movimento feminista e os movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política sempre exalta a ordem e a segurança a qualquer custo. O fundamentalismo protestante ganhou relevância social a partir dos anos 50 com as Eletronic Church. Pregadores nacionalmente famosos usam o rádio e a televisão em cadeia para suas pregações e campanhas conservadoras. Sob Ronald Reagan, significaram um fator político determinante. Combatem abertamente o Conselho Mundial de Igrejas em Genebra (que reúne mais de duas centenas de denominações cristãs) e todo tipo de ecumenismo, tidos como coisa do diabo. O catolicismo possui também seu tipo de fundamentalismo. Ele vem sob o nome de Restauração e Integrismo. Procura-se restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Visa-se uma integração de todos os elementos da sociedade e da história sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (seu corpo hierárquico encabeçado pelo Papa). O inimigo a combater é a modernidade, com suas liberdades e seu processo de secularização. Expressões do Integrismo é modernamente o Cardeal Josef Ratzinger, presidente da antiga Inquisição, que sustenta ainda a tese de que a Igreja Católica é a única Igreja de Cristo, também a única religião verdadeira, fora da qual não todos correm risco de perdição. Ou o arcebispo Marcel Lefebvre, que fundou sua Igreja paralela, considerada a fiel detentora da Tradição e da fé verdadeiras. Características fundamentalistas se encontram também em setores importantes do pentecostismo, também católico e nas igrejas evangelicais populares. Intolerância -Não é uma doutrina. Mas uma forma de interpretar e viver a doutrina. É a atitude daquele que confere caráter absoluto ao seu ponto de vista. Sendo assim, imediatamente surge um problema de graves conseqüências: quem se sente portador de uma verdade absoluta não pode tolerar outra verdade e seu destino é a intolerância. E a intolerância gera o desprezo do outro e o desprezo, a agressividade e a agressividade, a guerra contra o erro a ser combatido e exterminado. Irrompem guerras religiosas, violentíssimas, com incontáveis vítimas. Não há nenhuma religião mais guerreira que a tradição dos filhos de Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos. Cada qual vive da convicção tribalista de ser povo escolhido e portador exclusivo da revelação do Deus único e verdadeiro. Essa fé deve ser difundida em todo o mundo, em geral numa articulação com o poder colonialista e imperial, como historicamente ocorreu na América Latina, África e Ásia. O fundamentalismo, como atitude e tendência, se encontra em setores de todas as religiões e caminhos espirituais. Hoje em dia, o fundamentalismo judeu se centra na construção do Estado de Israel segundo o tamanho que lhe atribui à Bíblia hebraica. O fundamentalismo islâmico quer fazer do Alcorão a única forma de vida, de moral, de política e de organização do Estado entre os islâmicos e em todo o mundo. Todos os que se opõem a essa visão de mundo são obstáculos à instauração ''da cidade de Deus'' e conseqüentemente são infiéis e merecem ser perseguidos e eventualmente eliminados. Verdade -O fundamentalismo não possui apenas um rosto religioso. Todos os sistemas sejam culturais, científicos, políticos, econômicos e artísticos que se apresentam como portadores exclusivos de verdade e de solução única para os problemas devem ser considerados fundamentalistas. Vivemos atualmente sob o império feroz de vários fundamentalismos. O primeiro e mais visível de todos é o fundamentalismo da ideologia política do neoliberalismo, do modo de produção capitalista e de sua melhor expressão, o mercado mundialmente integrado. Ele se apresenta como a solução única para todos os países e para todos as carências da humanidade (todos precisam de um necessário choque de capitalismo, diz-se fundamentalisticamente). A lógica interna deste sistema, entretanto, é ser acumulador de bens e serviços, por isso, criador de grandes desigualdades (injustiças), explorador ou dispensador da força de trabalho e predador da natureza. Ele é apenas competitivo e nada cooperativo. Politicamente é democrático, economicamente é ditatorial. Por isso a economia capitalista destrói continuamente a democracia participativa. Onde se implanta, a cultura capitalista cria uma cosmovisão materialista, individualista e sem qualquer freio ético. Há teóricos que apresentam essa etapa como o fim da história. Para ela não haveria alternativa. Urge inserir-se nela. Caso contrário perde-se o ritmo da história. A condenação é a marginalidade ou a exclusão. Eis o pensamento único e a ditadura da globalização especialmente econômico-financeira (considero esta etapa como a idade de ferro da globalização), hegemonizada pelas potências ocidentais. Outro tipo de fundamentalismo comparece no paradigma científico moderno. Ele está assentado sobre a violência contra a natureza. Bem dizia Francis Bacon, pai da moderna metodologia científica: há de se torturar a natureza como o faz o inquisidor com seu inquirido, até que ela entregue todos os seus segredos. Impõe-se esse método, fundado no corte e na compartimentação da realidade una e diversa, como a única forma aceitável de acesso ao real. Desmoralizam-se outras formas de conhecimento que vão além ou ficam aquém dos caminhos da razão instrumental-analítica. Ocorre que o projeto da tecnociência gestou o princípio da autodestruição da vida. A máquina de morte já construída pode pôr fim à biosfera e impossibilitar o projeto planetário humano. Na guerra bacteriológica, basta meio quilo de toxina do botulismo para matar 1 bilhão de pessoas. Bin Laden - Nos dias atuais assistimos, estarrecidos, a dois tipos de fundamentalismo político. Um representado pelo presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e outro por Osama Bin Laden. O presidente americano urde seus discursos no melhor código fundamentalista: A luta é do bem (América) contra o mal (terrorismo islâmico). Ou se é contra o terrorismo e pela América ou se é a favor do terrorismo e contra a América. Não há matizes nem alternativas. O ataque terrorista não foi contra os Estados Unidos mas sim contra a humanidade, na suposição que eles são a própria humanidade. O projeto inicial de guerra se chamava Justiça Infinita, termo que usurpa a dimensão do Divino. Depois com menor arrogância, mas na linguagem da utopia, chamou-se de Liberdade Duradoura. Termina suas intervenções com ''God saves America. Há dezenas de anos que a política exterior dos Estados Unidos maltrata as nações árabes fazendo pacto com governantes despóticos (alguns emirados árabes nem constituição possuem) em razão da garantia do suprimento de petróleo. A partir de 1991, por ocasião da guerra contra o Iraque, já morreram naquele pais cerca de 1 milhão de crianças por causa do embargo que atinge os suprimentos medicinais e 5% da população foi morta em sistemáticos bombardeios. A atuação no conflito entre Israel e os palestinos é a posições dos Estados Unidos visivelmente unilateral, em favor dos ataques devastadores que a máquina de guerra israelense move contra a população palestina que usa pedras (intifada). A Arábia Saudita é ocupada por uma poderosa base militar americana, território sagrado do islamismo onde se situam as duas cidades santas Meca e Medina. Tal fato é para a fé islâmica tão vergonhoso quanto um católico tolerar a Máfia no governo do Vaticano. Coisas assim acumulam amargura, ressentimento, revolta e vontade de vindita. É o fermento do terrorismo muçulmano cujos efeitos nefastos todos assistimos e condenamos. Não menos fundamentalista é a retórica dos talibãs e de Osama Bin Laden. Este também coloca a guerra entre o bem (islamismo) e o mal (a América). Em seu famoso discurso após o atentado, divide o mundo entre dois campos: o campo dos fiéis e o campo dos infiéis. ''O chefe dos infiéis internacionais, o símbolo mundial moderno do paganismo, é a América e seus aliados.'' O atentado terrorista significa que ''a América foi atacada por Deus em um dos seus órgãos vitais - Graça e gratidão a Deus''. A cultura ocidental como um todo é vista como materialista, atéia, secularista, anti-ética e belicista. Daí a recusa em dialogar com ela e a vontade de estrangulá-la em nome do próprio Alá. Em nome de que Deus ambos falam? Não é seguramente em nome do Deus da vida, de Alá, o Grande e Misericordioso, nem em nome do Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, da ternura dos humildes e da opção pelos oprimidos. Falam em nome de ídolos que produzem mortes e vivem de sangue. É próprio do fundamentalismo responder terror com terror, pois se trata de conferir vitória à única verdade e ao bem e destruir a falsa ''verdade'' e o mal. Foi o que ambos, Bush e Bin Laden fizeram. Enquanto predominarem tais fundamentalismos seremos condenados à intolerância, à violência e à guerra e, no termo, à ameaça de dizimação da biosfera. Cegos - Não se há de sorrir nem de chorar. Mas de procurar entender. Todos os fundamentalismos, não obstante o variado matiz, possuem as mesmas constantes. Trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do arco-íris, em que a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra indissoluvelmente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos. Para o fundamentalista militante a morte é doce, pois transporta o mártir diretamente ao seio materno de ''Deus'', enquanto a vida é vivida como oportunidade de cumprir a missão divina de converter ou exterminar os infiéis. O grupo é o lar da identidade, o porto da plena segurança e a confirmação de estar do lado certo. Como enfrentar os fundamentalistas? Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e à prática fundamentalista. Por detrás do fundamentalismo político vigora uma experiência dolorosa de humilhação e de prolongado sofrimento. E procura-se infligir a mesma coisa ao outro, o que é manifestamente contraditório. Trazer o fundamentalista à realidade concreta, cheia de contradições, claro-escuros e nuances pode introduzir nele a dúvida e a insegurança. Estas possuem uma função terapêutica. Podem abrir uma brecha para a luz no muro das convicções cerradas e excludentes. Dialogar até a exaustão, negociar até o limite intransponível da razoabilidade, pode levar o fundamentalista a reconhecer o outro, seu direito de existir e a contribuição que poderá dar para uma convergência mínima na diversidade. Daí se evidencia que o dado originário não é o logos, a razão e as estruturas de compreensão, mas o pathos, o sentimento, a capacidade de simpatia e empatia, a dedicação, o cuidado e a comunhão com o diferente. Tudo começa com o sentimento. É o sentimento que nos faz sensíveis ao que está à nossa volta, que nos faz desgostar. É o sentimento que nos une às coisas e nos envolve com as pessoas. É o sentimento que produz encantamento face à grandeza dos céus, suscita veneração diante da complexidade da Mãe-Terra e alimenta enternecimento face à fragilidade de um recém-nascido. Recordemos a frase do Pequeno Príncipe de Antoine de Saint Exupéry, que fez fortuna na consciência coletiva dos milhões de leitores: “E com o coração (sentimento) que se vê corretamente; o essencial é invisível aos olhos”. E o sentimento que torna pessoas, coisas e situações importantes para nós. Esse sentimento profundo, repetimos, se chama cuidado. Somente aquilo que passou por uma emoção, que evocou um sentimento profundo e provocou cuidado nós, deixa marcas indeléveis e permanece definitivamente. A reflexão contemporânea resgatou a centralidade dos sentimento, a importância da ternura, da compaixão e do cuidado, especialmente a partir da psicologia profunda de Freud, Jung, Adler, Rogers e Hillman, e hodiernamente a partir da biologia genética e das implicações antropológicas da física quântica la Niels Bohr (1885-1962) la Werner Heisenberg (1901-1976). Mais do que o cartesiano cogito ergo sumi*: penso, logo existo, vale o sentio ergo sum: sinto, logo existo. O livro de Daniel Goleman, Inteligência Emocional, transformou-se num best-seller mundial porque, à base de investigações empíricas sobre o cérebro e a neurologia, mostrou aquilo que já Platão (427-347 aC), Santo Agostinho (354-430), a escola franciscana medieval com S. Boaventura e Duns Scotus no século XIII, Pascal (1623-1662), Schleiermacher (1768-1834 e Heidegger (1889-1976) ensinaram há muito tempo: a dinâmica humano é o pathos, é o sentimento, é o cuidado, é a lógica do coração. “A mente racional” - conclui Golemnan - “leva um ou dois momentos mais para registrar e reagir do que a mente emocional, o primeiro impulso... é do coração, não da cabeça”. Agora estamos em melhores condições para entender, em profundidade, a fábula-mito de Higino sobre o cuidado. tão essencial que é anterior ao espírito infundido por Júpiter e ao corpo fornecido pela Terra. Portanto, a concepção de como composto de espírito-corpo não é originária. A fábula diz: “O cuidado foi quem primeiro moldou o ser humano”. O cuidado se encontra antes, é um a priorí ontológico, está na origem da existência do ser humano. E essa origem não é apenas um começo temporal. A origem tem um sentido filosófico de fonte donde brota permanentemente o ser. Portanto, significa que o cuidado constitui, na existência humana, uma energia que jorra ininterruptamente em cada momento e circunstância. Cuidado é aquela força originante que continuamente faz surgir o ser humano. Sem ela, ele continuaria apenas uma porção de argila como qualquer outra à margem do rio, ou um espírito angelical desencarnado e fora do tempo histórico. Foi com cuidado que “Cuidado” moldou o ser humano. empenhou aí dedicação, ternura, devoção, sentimento e coração. E com isso criou responsabilidades e fez surgir a preocupação com o ser que ele plasmou. Essas dimensões, verdadeiros princípios constituintes, entraram na composição do ser humano. Viraram carne e sangue. Sem tais dimensões, o ser humano jamais seria humano. Por isso, a fábula-mito de Higino termina enfatizando que cuidado acompanhará o ser humano ao largo de toda a sua vida, ao longo de todo o temporal no mundo. Um psicanalista atento ao drama da civilização moderna como o norte-americano RolIo May podia comentar: “Nossa situação é a seguinte: na atual confusão de episódios racionalistas e técnicos perdemos de vista e nos despreocupamos do ser humano; precisamos agora voltar humildemente ao simples cuidado... é o mito do cuidado – e creio, muitas vezes, somente ele – que nos permite resistir ao cinismo e à apatia que são as doenças psicológicas do nosso tempo. O que nossa civilização precisa é superar a ditadura do modo-de-ser-trabalho-produção- dominação. Ela nos mantém reféns de uma lógica que hoje se mostra destrutiva da Terra e de seus recursos, das relações entre os povos, das interações entre capital e trabalho, de espiritualidade e de nosso sentido de pertença a um destino comum. Libertados dos trabalhos estafantes e desumanizadores, agora feito pelas máquinas automáticas, recuperaríamos o trabalho no seu sentido antropológico originário, como plasmação da natureza e com atividade criativa, trabalho capaz de realizar o ser humano e de construir sentidos cada vez mais integradores com a dinâmica da natureza Importa colocar cuidado em toda Para isso urge dimensão desenvolver a dimensão que está em nós. Isso significa: conceder a cidadania à nossa capacidade de sentir o outro, de ter compaixão com todos os seres que sofrem, humanos e não humanos, de obedecer mais à lógica do coração, da cordialidade e da gentileza do que à lógica da conquista e do uso utilitário das coisas. Dar centralidade ao cuidado não significa deixar de trabalhar e de intervir no mundo. Significa renunciar à vontade de poder que reduz tudo a objetos, desconectados da subjetividade humana. significa recusar-se a todo despotismo e a toda dominação. Significa impor limites à obsessão pela eficácia a qualquer custo. Significa ditadura da racionalidade fria e abstrata para dar lugar ao cuidado. Significa organizar o trabalho em sintonia com a natureza e suas indicações. Significa respeitar a comunhão que todas as coisas entretêm entre si e conosco. Significa colocar o interesse coletivo da sociedade, da comunidade biótica e terrenal acima exclusivamente humanos. Significa colocar-se junto e ao pé de cada coisa que queremos transformar para que ela não sofra, não seja desenraizada de seu habitat e possa manter as desenvolver-se e co-evoluir junto com seus ecossistemas e com a própria Terra. Significa captar a presença do Espírito para além dos nossos limites humanos, no universo, nas plantas, nos organismos vivos, nos grandes símios gorilas, chimpanzés e orangotangos, Estes são os antídotos ao sentimento de abandono que os pobres e os idosos sentem. Estas são as medicinas contra o descuido que os excluídos, os desempregados, os aposentados, os idosos e os denunciam na maioria das instituições públicas. Elas se preocupam cada vez menos com o ser humano e se ocupam cada vez mais com a economia, com as bolsas, com os juros, com o crescimento ilimitados de bens e serviços materiais, apropriados pelas classes privilegiadas à custa da dignidade e da compaixão necessárias face às carências das grandes maiorias. Este é o remédio que poderá impedir a devastação da biosfera e o comprometimento do frágil equilíbrio de Gaia. Este é o modo-de-ser que resgata a nossa humanidade mais essencial. 1. Cuidado com o nosso único planeta Cuidado todo especial merece nosso planeta Terra. T unicamente ele para viver e morar. E um sistema de sistemas e superorganismo de complexo equilíbrio, urdido ao longo de m e milhões de anos. Por causa do assalto predador do processo industrialista dos últimos séculos esse equilíbrio está prestes a romper-se em cadeia. Desde o começo da industrialização, no século XVIII a população mundial cresceu 8 vezes, consumindo mais e recursos naturais; somente a produção, baseada na exploração da natureza, cresceu mais de cem vezes. O agravamento deste quadro com a mundialização do acelerado processo produtivo faz aumentar a ameaça e, consequentemente, a necessidade de um cuidado es com o futuro da Terra. Parca é a consciência que pesa sobre o nosso belo planeta. Os que poderiam conscientizar a humanidade desfrutam gaiamente a viagem em seu Titanic de ilusões. Mal sabem que podemos ir ao encontro de um iceberg ecológico que nos fará afundar celeremente. Trágico é o fato de que faltam instâncias de gerenciamento global dos problemas da Terra. A ONU possui cerca de 40 projetos que tratam de problemas globais, como os climas, o desflorestamento, a contaminação do ar, dos solos e das águas, a fome, as epidemias, os problemas dos jovens, dos idosos, as migrações, entre outros. Ela é regida pelo velho paradigma das nações imperialistas que vêem os estados-blocos de poder mas não descobriram ainda a Terra como objeto de cuidado, de uma política coletiva de salvação terrenal. Para cuidar do planeta precisamos todos passa alfabetização ecológica e rever nossos hábitos de consumo. Importa desenvolver uma ética do cuidado. O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Fundo Nacional para a Natureza (WWF) e a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) elaboraram uma estratégia minuciosa para o futuro da vida sob o título: “Cuidando do Planeta Terra” (Caring for the Earth 1991). Aí estabelecem nove princípios de sustentabilidade da Terra. Projetam uma estratégia global fundada no cuidado: 1. Construir uma sociedade sustentável. 2. Respeitar e cuidar da comunidade dos seres vivos. 3. Melhorar a qualidade da vida humana. 4. Conservar a vitalidade e a diversidade do planeta. 5. Permanecer nos limites da capacidade de suporte Terra. 6. Modificar atitudes e práticas pessoais. 7. Permitir que as comunidades cuidem de seu próprio meio-ambiente. 8. Gerar uma estrutura nacional para integrar desenvolvimento e conservação. 9. Constituir uma aliança global. Estes princípios dão corpo ao cuidado essencial com a Terra. O cuidado essencial é a ética de um planeta sustentável. Bem enfatizava o citado documento Cuidando do Planeta Terra: “a ética de cuidado se aplica tanto a nível internacional como a níveis nacional e individual; nenhuma nação é auto-suficiente; todos lucrarão com a sustentabilidade mundial e todos estarão ameaçados se não conseguir-mos atingi-la”. Só essa ética do cuidado essencial poderá salvar-nos do pior. Só ela nos rasgará um horizonte de futuro esperança. 2. Cuidado com o próprio nicho ecológico O cuidado com a Terra representa o global. O cuidado com o próprio nicho ecológico representa o local. O ser humano tem os pés no chão (local) e a cabeça aberta para o infinito (global). O coração une chão e infinito, abismo e estrelas, local e global. A lógica do coração capacidade de encontrar a justa medida e construir o equilíbrio dinâmico. Para isso cada pessoa precisa descobrir-se como parte do ecossistema local e da comunidade biótica, seja em seu aspecto natureza, seja em sua dimensão de cultura. Precisa conhecer os irmãos e irmãs que compartem da mesma atmosfera, da mesma paisagem, do mesmo solo, dos mesmos mananciais, das mesmas fontes de nutrientes; precisa conhecer o tipo de plantas, animais e microorganismos que convivem naquele nicho ecológico comum; precisa conhecer a história daquela paisagem, frequentar aquelas cascatas e cavernas; precisa conhecer a história das populações que aí viveram sua saga e construíram seu habitat, como trabalharam a natureza, como a conservaram ou a depredaram, quem são seus poetas e sábios, heróis e heroínas, santos e santas, os pais/mães fundadores de civilização local. Cuidar do outro animus-anima implica um esforço ingente de superar a dominação dos sexos, desmontar o patriarcalismo e o machismo, por um lado, e o matriarcalismo e o feminismo por outro. Exige inventar relações que propiciem a manifestação das diferenças não mais entendidas como desigualdades, mas como riqueza da única e complexa substância humana. Essa convergência na diversidade cria espaço para uma experiência mais global e integrada de nossa própria humanidade, uma maneira mais cuidada de ser. 5. Cuidado com os pobres, oprimidos e excluídos Um dos maiores desafios lançados à política orientada pela ética e ao modo-de-se-cuidado é indubitavelmente o dos milhões e milhões de pobres, oprimidos e excluídos de nossa sociedade. Esse antifenômeno resulta de formas altamente injustas da organização social hoje mundialmente integrada. Com efeito, graças aos avanços tecnológicos, nas últimas décadas verificou-se um crescimento fantástico na produção de serviços e bens materiais, entretanto, desumanamente distribuídos, fazendo com que 2/3 da humanidade viva cm grande pobreza. Nada agride mais o modo-de-ser-cuidado do que a crueldade para com os próprios semelhantes. Como tratar esses condenados e ofendidos da Terra? A resposta a esta pergunta divide, de cima a baixo, as políticas públicas, as tradições humanísticas, as religiões e as igrejas cristãs. Cresce mais e na convicção) de que as estratégias meramente assistencialistas e paternalistas não) resolvem como nunca resolveram os problemas pobres e dos excluídos. Antes, perpetua-os, pois os mantêm na condição de dependentes e de esmoleres, humilhando-os pelo reconhecimento de sua força de transformação da sociedade. A libertação dos oprimidos deverá provir deles mesmos, na medida em que se conscientizam da injustiça de sua situação, se organizam entre si e começam com práticas que visam transformar estruturalmente as relações sociais iníquas. A opção pelos pobres contra a sua pobreza e em favor de sua vida e liberdade constituiu e ainda constitui a m registrada dos grupos sociais e das igrejas que se puseram à escuta do grito dos empobrecidos que podem ser tanto os trabalhadores explorados, os indígenas e negros discriminados, quanto as mulheres oprimidas e as minorias marginalizadas, como os portadores do vírus da Aids ou de qualquer outra deficiência. Não são poucos aqueles não sendo oprimidos se fizeram aliados dos oprimidos, para junto com eles e na perspectiva deles empenhar-se por transforma sociais profundas. O compromisso dos oprimidos e de seus aliados por um novo tipo de sociedade, na qual se supera a exploração do ser humano e a espoliação da Terra, revela a força política da dimensão-cuidado. Qual é o móvel último subjacente aos movimentos dos sem-terra, dos sem-teto, dos privados de direitos sociais, dos meninos e meninas de rua, dos idosos, dos povos da floresta, entre outros, senão com a vida humana? É o cuidado e o enternecimento pela inalienável dignidade da vida que move as pessoas e os movimentos a protestar, a resistir e a mobilizar-se para mudar a história. Os profetas antigos e modernos nos mostram a coexistência destas duas atitudes presentes no cuidado político: a dureza na denúncia dos opressores e o enternecimento no consolo das vítimas. Não tem cuidado com os empobrecidos e excluídos quem não os ama concretamente e não se arrisca por sua causa. A consolidação de uma sociedade mundial globalizada e o surgimento de paradigma civilizacional passa pelo cuidado com o marginalizados e excluídos. Se seus problemas não forem equacionados permaneceremos ainda na pré-história. Poderemos ter inaugurado o novo milênio, mas não a nova civilização e a era de paz eterna com e todos os humanos, os seres da criação e o nosso esplêndido planeta. 6. Cuidado com nosso corpo na saúde e na doença Quando falamos em corpo não devemos pensar no sentido usual da palavra, que contrapõe corpo a alma, matéria a espírito. Corpo seria uma parte do ser humano e não sua totalidade. Nas ciências contemporâneas prefere-se falar de corporeidade para expressar o ser humano como um todo vivo e orgânico. Fala-se de homem-corpo, homem-alma para designar dimensões totais do humano. Essa compreensão deixa para trás o dualismo corpo-alma e inaugura uma visão mais globalizante. Entre matéria e espírito está a vida que é a interação da matéria que se complexifica, se interioriza e se auto-organiza. Corpo é sempre animado. “Cuidar do corpo de alguém”, dizia um mestre do espírito, “é prestar atenção ao sopro que o anima”. Resumindo, podemos dizer que o corpo é aquela porção do universo que nós animamos, informamos, conscientizamos e personalizamos. É formado pelo pó cósmico, circulando no espaço interestelar há bilhões de anos, antes da formação das galáxias, das estrelas e dos planetas, pó esse provavelmente mais velho que o sistema solar e a própria Terra. O ferro que corre pelas veias do corpo, o fósforo e o cálcio que fortalecem os ossos e os nervos, os 18% de carbono e os 65% de oxigênio mostram que somos verdadeiramente cósmicos. Corpo é um ecossistema vivo que se articula com outros sistemas mais abrangentes. Pertencemos à espécie homo que pertence ao sistema Terra, que pertence ao sistema galáctico e ao sistema cósmico. Nele funciona um sistema interno de regulação de frio e de calor, de sono e de vigília, dos fenômenos da digestão, da respiração, das batidas cardíacas, entre outros. Mais ainda, O corpo vivo é subjetividade. Já se disse que “o corpo é nossa memória mais arcaica”, pois em seu todo e em cada uma de suas partes guarda informações do longo processo evolutiva Junto com a vida do corpo se realizam os vários níveis da consciência (a originária, a oral, a anal, a social, a autônoma e a transcendental), onde estas memórias se expressam e se enriquecem interagindo com o meio. Através do corpo se mostra a fragilidade humana. A vida corporal é mortal. Ela vai perdendo seu capital energético, seus equilíbrios, adoece e finalmente morre. A morte não vem no fim da vida. começará no seu primeiro momento. Vamos morrendo, lentamente, até acabar de morrer. A aceitação da mortalidade da vida nos entender de forma diferente a saúde e a doença. Quem é são pode ficar doente. A doença significa um dano à totalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou eu, em minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte que está doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões: em relação a si mesmo (experimenta os limites da vida mortal), em relação com a sociedade (se isola, deixa de trabalhar e tem que se tratar num centro de saúde), em relação com o sentido global da vida (crise na confiança fundamental da vida que se pergunta por que exatamente eu fiquei doente?). A doença remete à saúde. Toda cura deve reintegrar as dimensões da vida sã, no nível pessoal, social e no fundamental que diz respeito ao sentido supremo da existência e do universo. Por isso o primeiro passo consiste em reforçar a dimensão-saúde para que cure a dimensão doença.. Para reforçar a dimensão-saúde devemos enriquece nossa compreensão de saúde. Não podemos entendê-la como a ideologia dominante com suas técnicas sofisticadas e seus inúmeros coquetéis de vitaminas. A saúde é concebida como “saúde total”, como se fosse um fim em si mesma, sem responder à questão básica: que faço na vida com minha saúde? Distanciamo-nos da conhecida definição de saúde da Organização Mundial da Saúde da ONU que reza: “Saúde é um estado de bem-estar total, corporal, espiritual e social e não apenas inexistência de doença e fraqueza”. Essa compreensão não é realista, pois parte de uma suposição falsa, de que é possível uma existência sem dor e sem morte. É também inumana porque não recolhe a concretitude da vida que é mortal. Não descobre dentro de si a morte e seus acompanhantes, os achaques as fraquezas, as enfermidades, a agonia e a despedida final. Acresce ainda que a saúde não é um estado, mas um processo permanente de busca de equilíbrio dinâmico de todos os fatores que compõem a vida humana. Todos esses fatores estão a serviço da pessoa para que tenha força de ser pessoa, autônoma, livre, aberta e criativa várias injunções que vier a enfrentar. A força de ser pessoa significa a capacidade de acolher a vida assim como ela é, em suas virtudes e em seu entusiasmo intrínseco, mas também em sua finitude e em sua mortalidade. A força de ser pessoa traduz a capacidade de conviver, de crescer e de humanizar-se estas dimensões de vida, de doença e de morte. Saúde e cura designam o processo de adaptação e de integração das mais diversas situações, nas quais se dá a saúde, a doença, o sofrimento, a recuperação, o envelhecimento e o caminhar tranquilo para a grande passagem da morte. Saúde, portanto, não é um estado nem um ato existencial, mas uma atitude face às várias situações que podem ser doentias ou sãs. Ser pessoa não é simplesmente ter saúde, mas é saber enfrentar saudavelmente a doença e a saúde. Ser saudável significa realizar um sentido de vida que englobe a saúde, a doença e a morte. Alguém pode estar mortalmente doente e ser saudável porque com esta situação de morte cresce, se humaniza e sabe dar sentido àquilo que padece. Como disse um conhecido médico alemão: “Saúde não é a ausência de danos. Saúde é a força de viver com esses danos”. Saúde é acolher e amar a vicia assim como se apresenta, alegre e trabalhosa, saudável e doentia, limitada e aberta ao ilimitado que virá além da morte. Que significa cuidar de nosso corpo, assim entendido? Imensa tarefa. Implica cuidar da vida que o anima, cuidar do conjunto das relações com a realidade circundante, relações essas que passam pela higiene, pela alimentação, pelo ar que respiramos, pela forma como nos vestimos, pela maneira como organizamos nossa casa e nos situamos dentro de um determinado espaço ecológico. Esse reforça nossa identidade como seres nós-de-relações para todos os lados. Cuidar do corpo significa a busca de assimilação criativa de tudo que nos possa ocorrer na vicia, compromissos e trabalhos, encontros significativos e crises existenciais, sucessos e fracasso, saúde e sofrimento. Somente assim nos transformamos mais e mais em pessoas amadurecidas, autônomas, sábias e plenamente livres. 7. Cuidado com a cura integra do ser humano A cura integral do ser humano é tão importante que demanda um prolongamento de nossa reflexão anterior. Nas grandes tradições terapêuticas da humanidade sempre houve a percepção de que a cura é um processo global, envolvendo a totalidade do ser apenas e não a parte enferma. Reportemo-nos a nossa tradição ligada á figura de Asclépio (dos gregos) ou de Esculápio (dos latinos). Dessa tradição vem o pai da medicina clássica e moderna, Hipócrates (460-377 aC). Asclépio era, historicamente, um herói curador que possuía seu centro em Epidauro, no coração da Grécia. Por mais de mil anos acorriam ao seu templo os enfermos de todas as partes do mundo antigo. A eficácia de seus métodos era de tal ordem que, após a sua morte, Asclépio acabou sendo divinizado. Simultaneamente homem e deus sinalizava que a cura seria completa se resultasse da intervenção humana e divina, se fosse corporal e espiritual. No pórtico de seu templo os enfermos podiam ler o lema básico de sua medicina: "Puro deve ser aquele que entra no templo perfumado. Pureza é ter pensamentos sadios”. Diante do Rio Amazonas ficamos totalmente fascinados, fazemos a experiência da majestade. Ao penetrar na floresta, contemplamos sua inigualável biodiversidade e ficamos aterrados diante da imensidão de arvores, de águas, de animais e de vozes de todos os timbres, fazemos a experiência da grandeza. Diante dessa grandeza sentimos-nos um bicho frágil e insignificante irrompendo em nós o temor e o respeito silencioso, fazemos a experiência da limitação e da ameaça. Quando vivenciamos o fascínio do amor, fazemos a experiência de um absoluto valor, capaz de tudo transfigurar; fazemos da pessoa amada uma divindade, transformamos o brilho do Sol num ouro em cascata e transformamos a dureza do trabalho numa prazerosa preocupação. Ao ver a mão suplicante da criança faminta, somos tomados de compaixão e mostramos generosidade. Todas essas experiências são expressões do espírito que somos nós. Mas há uma experiência testemunhada desde os primórdios da hominização, a do Numinoso e do Divino no universo, na vida e na interioridade humana. Como não reconhecer por trás das leis da natureza um supremo Legislador? Como não admitir na ha dos céus a ação inteligente de uma infinita Sabedoria, e na existência do universo a exigência de um Criador? O ser humano chama essa suprema Realidade com mil nomes ou simplesmente dá-lhe o nome de Deus. Sente que Ele arde em seu interior na forma de uma presença que o acompanha e o ajuda a discernir o bem e o mal. O elã vital o leva a crescer, a trabalhar, a enfrentar obstáculos, a alcançar seus propósitos e a viver com esperança. Esse clã está no ser humano, mas é maior que ele. Não está em seu poder manipulá-lo, criá-lo ou destruí-lo. Encontra-se a mercê dele. Não é isso um indício da presença de Deus em seu interior? O ser humano pode cultivar o espaço do Divino, abrir-se ao diálogo com Deus, confiar a ele o destino da vida e encontrar nele o sentido da morte. Surge então a espiritualidade que dá origem às religiões. Elas expressam o encontro com Deus nos códigos das diferentes culturas. Os sábios de todos os povos sempre pregaram: sem o cultivo desse espaço espiritual, o ser humano se sentirá infeliz e doente e se descobrirá um errante sedento em busca de uma fonte que não encontra em lugar nenhum; mas se acolher o espírito e Aquele que o habita, se encherá de luz, de serenidade e de uma imarcescível felicidade. Cuidar do espírito significa cuidar dos valores que dão rumo à nossa vida e das significações que geram esperança para além de nossa morte. Cuidar do espírito implica colocar os compromissos éticos acima dos interesses pessoais ou coletivos. Cuidar do espírito demanda alimentar a brasa interior da contemplação e da oração para que nunca se apague. Significa especialmente cuidar da espiritualidade experienciando Deus em tudo e permitindo seu permanente nascer e renascer no coração. Então poderemos preparar-nos, com serenidade e jovialidade, para a derradeira travessia e para o grande encontro. 10. Cuidado com a grande travessia, a morte A entropia se manifesta em toda parte e também no tecido de nossa vida até consumir todo o nosso capital energético. então morremos. É o termo do homem-corpo. E o que acontece com o homem-alma-espírito? Qual é seu destino? Ele tem outro percurso. Ao imergir neste mundo começa a nascer, vai nascendo cada dia mais, até acabar de nascer. Uma analítica existencial atenta revela a presença de duas curvas na existência humana: a curva do homem-corpo e a curva do homem-alma-espírito. A curva do homem-corpo obedece a esse percurso: nasce, cresce, madura, envelhece e morre. A morte não vem de fora mas se processo dentro da vida como perda progressiva da força vital. A outra curva do homem-alma-espírito segue um percurso inverso. Nasce, começa como um pequeno sinal e desabrocha, realiza virtualidades como falar, relacionar-se, amar... vai nascendo mais e mais até acabar de nascer. Mas quando acaba de nascer? Quando as duas curvas existenciais se cruzam. Nesse cruzamento ocorre a morte real. O que significa a morte? Para o homem-corpo representa o termo de uma caminhada por esse mundo espácio-temporal. Para o homem-alma-espírito, a possibilidade de uma plena realização de seus dinamismos latentes que não conseguiam irromper devido aos condicionamentos do tempo e do espaço. A morte do homem-corpo tem a função de fazer cair todas as barreiras. E assim o homem-alma-espírito se liberta de todas as amarras e seu impulso interior pode realizar-se segundo a lógica infinita. A inteligência que via no claro-escuro, agora vê em plena luz; a vontade que se sentir condicionada, agora irrompe para a comunhão imediata com o objeto do desejo; o cuidado essencial que se exercia em ambiguidades, agora encontra sua plena autenticidade; o corpo que nos permitia comunhão e afastamento dos outros, é sentido agora como expressão plena de nossa união com a totalidade do cosmos. Na morte se dá, então, o verdadeiro nascimento do ser humano. Ele implode e explode para dentro de sua plena identidade. O cristianismo chama a esse momento de absoluta realização de ressurreição. Ressurreição é muito mais que reanimar um cadáver e voltar à vida anterior. Ressurreição é a plena concretização das virtualidades presentes no ser humano. Os apóstolos testemunharam que tal evento bem-aventurado se realizou em Jesus de Nazaré no momento de sua morte na cruz. Por isso é apresentado como o “Adão novíssimo” (1 Cor 15,45), a nova criatura que tocou o final dos tempos. Ele é o símbolo real de que o ser humano pode nascer definitivamente. Nesta perspectiva não vivemos para morrer. Morremos para ressuscitar, para viver mais e melhor. A morte significa a metamorfose para esse novo modo de ser em plenitude. Ao morrer, o ser humano deixa para trás de si um cadáver. É como um casulo que continha a crisálida. Cai o casulo e irrompe radiante borboleta, a vida em sua identidade inteira. E a ressurreição já na morte. O sentido que damos à vida depende do sentido que damos a morte. Se a morte é fim-derradeiro, então de pouco valem tantas lutas, empenho e sacrifício. Mas se a morte é fim-meta-alcançada, - então significa um peregrinar para a fonte. Ela pertence à vida e representa o modo sábio que a própria vida encontrou para chegar a uma plenitude negada neste universo demasiadamente pequeno para seu impulso e demasiadamente estreito para sua ânsia de infinito. Somente o Infinito pode saciar uma sede infinita. Cuidar de nossa grande travessia é internalizar uma compreensão esperançosa da morte. E cultivar nosso desejo do Infinito, impedindo que ele se identifique com objetos finitos. É meditar, contemplar e amar o Infinito como o nosso verdadeiro Objeto do desejo. É acreditar que ao morrer cairemos em seus braços para o abraço sem fim e para a comunhão infinita e eterna. Enfim é realizar a experiência dos místicos: a vida amada no Amado transformada.
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved