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Caminhos da Saúde Pública no Brasil, Notas de estudo de Enfermagem

É um prazer poder prefaciar Caminhos da Saúde Pública no Brasil, produzido como parte da celebração do Centenário da Organização Pan- Americana da Saúde (OPAS) no Brasil. Devo felicitar os que conceberam o título do livro, pois ele transmite uma forte imagem do que foi o passado e do que o futuro pode ser. Muitos são os caminhos que, quando seguidos, conduzem à boa saúde, e o conceito de caminho também implica que há um começo, um estado atual e um espaço adiante. Há um caminho adiante a ser c

Tipologia: Notas de estudo

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Baixe Caminhos da Saúde Pública no Brasil e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! p ii ; | gy b = Jacobo Finkelman Organizador = AN = ——— J udaSaúdi Pi íblica no Brasil É com emoção e alegria que introduzo os leitores a este belo documento que registra as relações da Organização Pan- Americana de Saúde (OPAS) com nosso país nos últimos cem anos. Criada em 1902, contemporânea, portanto, à Fundação Oswaldo Cruz, a OPAS tem sua trajetória profundamente vinculada às vicissitudes, erros, acertos, esperanças e, também, aos fracassos e problemas dos sistemas de saúde do continente americano. É importante salientar que a documentação que nos traz Caminhos da Saúde Pública no Brasil mostra que a contribuição da OPAS com o país e deste com a Organização foi algo que modernamente se denomina "um caso de sucesso". Nísia Trindade Lima, João Baptista Risi Junior, Roberto Passos Nogueira e Otávio Azevedo Mercadante lideram os grupos que prepararam os textos sobre a trama de parcerias, mútuo respeito e cooperação que caracterizaram durante este século de existência o Brasil e a OPAS; sobre a evolução das condições de saúde do país ao longo deste tempo e sobre a evolução do nosso sistema público de saúde. Não são apenas autores analisando uma história, mas protagonistas desta mesma história em tempos, posições e funções diversas. Os textos que abrem este livro, de Sir George Alleyne, diretor da OPAS, e Jacobo Finkelman, representante da Organização Jacoho Finkelman Organizador Caminhos da Saúde Pública no Brasil mae A É le Ê Ê o é Srapização par mncone eato Copyright © 2002 dos autores Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ/EDITORA e ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE/ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE ISBN: 85-7541-017-2 Capa, Projeto Gráfico: Carlota Rios e Gordeeff Editoração Eletrônica: Ramon Carlos de Moraes Revisão: Fernanda Veneu, Fani Knoploch e Janaina de Souza Silva Supervisão Editorial: Maria Cecilia G. B. Moreira Catalogação-na-fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca Lincoln de Freitas Filho F499c Finkelman, Jacobo (Org.) Caminhos da saúde pública no Brasil. / Organizado por Jacobo Finkelman. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. 328p. ilus., tab., graf., mapas 1. Política de saúde-Brasil. 2. Organização Pan-Americana da Saúde- história. 3. Sistema de saúde-Brasil. I. Título. CDD-20.ed.-362.1 2002 Editora Fiocruz Av. Brasil, 4036 - 1º andar - sala 112 - Manguinhos 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ Tels.: (21) 3882-9039 e 3882-9041 Telefax: (21) 3882-9006 http://www.fiocruz.br/editora e-mail: editora@fiocruz.br AUTORES E COLABORADORES Jacobo Finkelman (Organizador) Médico, mestre em saúde pública e administração em saúde, representante da Organização Pan- Americana da Saúde (OPAS) no Brasil jacobof@bra.ops-oms.org CAPÍTULO 1 Nísia Trindade Lima Cientista social, doutora em sociologia, pesquisadora e diretora da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz (COC/FIOCRUZ) e professora de sociologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) lima@coc.fiocruz.br Contribuições Abel Laerte Parker Administrador, mestre em biblioteconomia e ciência, diretor do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME/OPAS) abel@bireme.br Eduardo Correa Melo Médico veterinário, mestre em administração e em planificação em saúde animal, diretor do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA/OPAS) ecorrea@panaftosa.ops-oms.org Maria Helena P de Mello Jorge Advogada, doutora e livre-docente em saúde pública, professora associada da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP mhpjorge@usp.br Maurício Barreto Médico, doutor em epidemiologia, professor titular do ISC/UFBA mauricio@ufba.br Mauro da Rosa Elkhoury Médico veterinário, com especialização em saúde pública e epidemiologia, gerente técnico do Programa de Controle da Raiva do CENEPI/FUNASA/Ministério da Saúde mauro.elkhoury@funasa.gov.br Ruy Laurenti Médico, doutor em medicina e livre-docente em epidemiologia, professor titular da FSP/USP laurenti@usp.br Sabina Léa Davidson Gotlieb Odontóloga, doutora e livre-docente em saúde pública, professora associada da FSP/USP sgotlieb@usp.br Valeska Carvalho Figueiredo Médica, mestre em saúde pública, gerente da Divisão de Epidemiologia e Vigilância do INCA/Ministério da Saúde valeska@inca.org.br Zuleica Portela Albuquerque Médica, mestre em nutrição humana, profissional nacional do Projeto de Promoção de Saúde da OPAS zuleica@ bra.ops-oms.org CAPÍTULO 3 Otávio Azevedo Mercadante (Coordenador) Médico, mestre em saúde pública, professor associado da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM/Sta.Casa SP) e secretário executivo do Ministério da Saúde otavio@saude.gov.br Colaboradores Alfredo Schechtman Médico, mestre em saúde coletiva, assessor da área técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde alfredo.schechtmann@saude.gov.br Bianca Antunes Cortes Enfermeira, doutora em engenharia de produção, pesquisadora associada do Departamento de Pesquisa da COC/FIOCRUZ bcortes@coc.fiocruz.br Ermenegyldo Munhoz Júnior Arquiteto e urbanista, com especialização em demografia e planejamento, assessor do secretário-executivo do Ministério da Saúde gyl.munhoz® saude.gov.br Eugênio Vilaça Mendes Odontólogo, doutor em odontologia, consultor independente em desenvolvimento de saúde eugenio.bhz@terra.com.br Julio Alberto Wong Un Médico, doutor em saúde pública, supervisor do Programa de Controle do Câncer e seus Fatores de Risco do INCA/Ministério da Saúde jwong@inca.gov.br Marcelo Medeiros Maria do Socorro A. Lemos Médica, com especialização em epidemiologia e infectologia, consultora técnica do Projeto de Promoção de Saúde da OPAS msocorro.lemos@saude.gov.br Miguel Malo Serrano Médico, mestre em saúde internacional, coordenador do Projeto de Promoção de Saúde da OPAS miguel@bra.ops-oms.org Ricardo Henrique Sampaio Meirelles Médico, com especialização em pneumologia, sub-chefe da Divisão de Controle do Tabagismo e outros Fatores de Risco de Câncer do INCA/Ministério da Saúde ricardohm@inca.gov.br Roberto Passos Nogueira Sérgio Piola Médico, com especialização em saúde pública, pesquisador do IPEA piola@ipea.gov.br Solon Magalhães Vianna Odontólogo, livre-docente em saúde pública, consultor do IPEA e membro do Conselho Nacional de Saúde solon@yawl.com.br Valeska Carvalho Figueiredo IMAGENS Pesquisa Nísia Trindade Lima (Coordenadora) Cristiane Batista Cientista social, mestre em ciência política, assistente de pesquisa da COC/FIOCRUZ cris.santos@openlink.com.br Fotografias e reprodução das imagens Roberto Jesus Oscar Fotógrafo do Departamento de Arquivo e Documentação da COC/FIOCRUZ rob@coc.fiocruz.br Vinícius Pequeno de Souza Fotógrafo do Departamento de Arquivo e Documentação da COC/FIOCRUZ pequeno@coc.fiocruz.br as ferramentas apropriadas para abordar, simultaneamente, múltiplos pro- blemas. Estou particularmente feliz de ver a importância dada à promoção da saúde, pois acredito que a aplicação astuciosa de estratégias pertinentes representa um meio eficaz para tratar os complexos problemas defrontados na luta para melhorar a saúde do povo brasileiro. Durante os últimos cem anos, a OPAS seguiu diferentes caminhos em sua eterna busca por ser útil aos países da Região. Houve um tempo no qual a Organização foi reativa aos problemas de saúde dos países. Hoje o enfoque é muito mais proativo, nós cooperamos tecnicamente usando várias aborda- gens, apropriadas à situação de saúde dos países, individualmente. Não há dúvida, entretanto, que os caminhos que procuramos e trilhamos estão to- dos voltados para melhorar a saúde dos povos das Américas, na perspectiva de que essa saúde seja distribuída mais equitativamente. É importante que livros como este tenham um sabor histórico, não servindo apenas para que as gerações futuras possam reconhecer a luta daqueles que os precederam. É também importante observar os eventos históricos de saúde no contexto de outras circunstâncias sociais e apreciar as soluções que tiveram de ser buscadas. Com essa análise, podemos encon- trar meios de evitar alguns perigos e avançar mais rapidamente nos cami- nhos para a melhor saúde. A história dos progressos realizados neste país é importante para as Américas e, possivelmente, para o mundo. Por seu tama- nho, o Brasil apresenta vários tipos de microrregiões, o que, de certa forma, pode ser representativo de quase qualquer país no hemisfério. Caminhos da Saúde Pública no Brasil assinala, com singeleza, as diferenças que existem entre as regiões do Brasil. Por conta dessa diversida- de, organizou-se um sistema de informação capaz de demonstrar a natureza das diferenças e o tipo de sistema de saúde que certamente irá reduzir essas brechas. A coragem de estabelecer o sistema único de saúde e, ao mesmo tempo, de rumar para a verdadeira descentralização, é um aspecto histórico deste livro que chamará a atenção de muitos no exterior. Esta coragem e determinação de que todos os caminhos a serem seguidos conduzem à saú- de são vistas em muitos outros lugares. A OPAS sente orgulho de estar associada à produção desta obra e estamos agradecidos aos diversos autores que detalharam a relação deste país com a nossa Organização. Orgulhamo-nos dessa relação e poderíamos acrescentar numerosos exemplos da participação positiva do Brasil na vida de nossa Organização. Tenho insistido em que, neste ano do Centenário, nosso foco não deve estar primariamente dirigido ao que a OPAS fez, mas sim ao que foi alcançado na saúde nas Américas, com a assistência da Organização. Caminhos da Saúde Pública no Brasil é um bom exemplo desse enfoque. Desejo que seja lido e apreciado por muitos, não apenas pelos detalhes que fornece sobre o que ocorreu na saúde no Brasil, mas também por revelar os homens e as mulheres que fizeram essa história à medida que trilharam os diversos caminhos condutores à melhoria da saúde. George A. O. Alleyne Diretor da Organização Pan-Americana da Saúde APRESENTAÇÃO Este livro, que é parte das comemorações do centenário da Organi- zação Pan-Americana da Saúde (OPAS) no Brasil, surgiu da idéia de elaborar uma visão ampla daquilo que foi, no decorrer do século XX, a evolução das políticas, os principais programas e o desenvolvimento dos serviços voltados para a melhoria da saúde dos brasileiros. Pensamos que um livro de tal natureza deveria ir além do relato histórico e contribuir, de algum modo, para entender melhor o processo gradual de consolidação da saúde, enten- dido como um direito do cidadão e um dever do Estado, tal como está ex- presso na Constituição brasileira de 1988. Com esse propósito, um grupo seleto de autores foi convidado a con- tribuir com Caminhos da Saúde Pública no Brasil, relatando uma história muito rica sobre os desafios e as lutas que mudaram os perfis demográficos e epidemiológicos do país. Este livro tem o valor de reunir muitos aspectos his- tóricos significativos, de analisar as tendências dos principais problemas e dos indicadores de saúde e de discutir os principais critérios adotados pela socie- dade brasileira para organizar o seu sistema de saúde. desigualdades e iniquidades em saúde, observado a partir dos diferentes padrões epidemiológicos prevalentes no país. O terceiro capítulo, 'Evolução das Políticas e do Sistema de Saúde no Brasil', coordenado pelo Secretário Executivo do Ministério da Saúde, Dr. Otávio Azevedo Mercadante, aprofunda alguns dos aspectos relaciona- dos com as origens e transformações dos sistemas públicos de saúde do Brasil até a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1990, inspirado nos princípios e valores de universalidade, integralidade e solidariedade, consagrados na Constituição brasileira de 1988, assim como aborda a for- ma pela qual o SUS evoluiu até a data atual. Fornecem-se, neste capítulo, informações valiosas sobre os recursos disponíveis e o papel que o Estado assumiu para garantir o direito à saúde de todos os brasileiros. Discute-se, também, o papel da promoção da saúde, a partir das conclusões das gran- des conferências mundiais sobre o tema, a fim de tornar ainda mais amplos os horizontes da saúde no Brasil. Indicam-se alguns dos desafios a serem considerados na consolidação do SUS, tendo em conta a necessidade de fortalecer operacionalmente a resolutividade e a qualidade dos serviços de saúde, na medida em que se avança nos processos de descentralização e regionalização e, igualmente, na medida em que cresce o número de interlocutores e parceiros, demandando um compartilhamento de respon- sabilidades quanto à condução, prestação e financiamento dos serviços de saúde no país. Essas sugestões se sustentam, em parte, em dois exercícios realizados recentemente. O primeiro, apoiado na metodologia Delphi, apli- cada pelo IPEA em 2001; e o segundo, organizado em conjunto pelo Ministé- rio da Saúde e pela OPAS, em 2002, com base em proposta que detalha as 'funções essenciais da Saúde Pública', seguindo recomendações aprovadas pelo Conselho Diretor da OPAS. Caminhos da Saúde Pública no Brasil é produto do trabalho ár- duo e dedicado da autora do capítulo I e dos coordenadores dos dois outros capítulos, e traz a contribuição de inúmeras e destacadas personalidades da saúde pública brasileira, cujos nomes estão referidos em folhas que antece- dem esta apresentação. Queremos render tributo e reconhecimento aos doutores Walter Wyman, Rupert Blue, Hugh S. Cumming, Fred L. Soper, Abraham Horwitz, Hector Acuna, Carlyle Guerra do Macedo e George Alleyne, que, com sua visão, coragem e entusiasmo, construíram a mais antiga organização de co- operação técnica internacional especializada em saúde em nível mundial. Também gostaríamos de recordar e render homenagem aos que me antece- deram como representantes da OPAS e da OMS no Brasil. Para a Representação da OPAS no Brasil, é motivo de grande honra e satisfação que Caminhos da Saúde Pública no Brasil seja co-editado com a parceria da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), prestigiada instituição brasi- leira que celebrou seu centenário no ano 2000. A FIOCRUZ, instituição do Ministério da Saúde, e a OPAS têm histórias convergentes em interesses e desafios. Dedicamos este livro a todos, mulheres e homens, trabalhadores da saúde pública; aos cientistas e gestores, aos funcionários brasileiros da OPAS e aos de outras nacionalidades, que elegeram, como desafio de vida, lutar pela contínua e permanente melhoria da saúde da população, no Brasil e nas demais regiões do continente e do mundo. O Organizador 1 O BRASIL E A ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE: UMA HISTÓRIA EM TRÊS DIMENSÕES Nísia Trindade Lima acompanhar a história da organização, não obstante o peso diferenciado quanto à formulação e à aplicação de políticas específicas, esteja na formação de uma base comum para o desenvolvimento da agenda de problemas e da adoção de políticas de saúde, particularmente nos países da América Latina e Caribe. Com base nessa compreensão, este capítulo tem por objetivo apre- sentar em grandes linhas as características e diferenciações da história da OPAS durante estes cem anos, em sua relação com idéias, propostas de refor- ma sanitária, ações e políticas de saúde adotadas pelo Brasil. Nem sempre as relações são diretas, mas, como procurei demonstrar, o estudo da história da saúde no Brasil pode ser enriquecido ao se considerar a dimensão das relações interamericanas. As principais fontes utilizadas em sua elaboração foram os Boletins da Oficina Sanitária Pan-Americana, outros documentos oficiais e depoimentos de importantes lideranças no desenvolvimento das atividades da organização. Para tornar mais claro o texto, optei por dividi-lo em seções. Na primeira, comentam-se as atividades até 1947, quando ocorreu importante mudança nos rumos da organização devido ao programa de descentralização, e sua transformação em organismo regional da Organização Mundial da Saúde (OMS), criada em 1946. Na segunda seção, discutem-se os principais aspectos da gestão de Fred Soper, que dirigiu a OPAS de 1947 a 1958. Durante esse período, com o fortalecimento da organização, estabeleceu-se cooperação mais efetiva com o governo brasileiro, evidenciada, entre outras medidas, pela criação do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa (PANAFTOSA) , pelo apoio ao laboratório de produção da vacina de febre amarela, na Fundação Oswaldo Cruz, e pela criação da Zona V de representação regional, com sede no Rio de Janeiro. Na terceira seção, apresentam-se os grandes temas que envolveram as relações do Brasil com a OPAS no período que se estende de 1958 a 1982, marcado pela relação entre desenvolvimento e saúde e pelas propostas de reforma do ensino médico. Os documentos que mais bem expressam os novos conceitos e propostas para a saúde são A Carta de Punta del Leste, firmada em 1961, e a Declaração de Alma-Ata, que, em 1978, definiu a meta "saúde para todos". A partir da década de 1950, observa-se também a presença da OPAS na criação de importantes instituições e inovações na área de saúde ambiental. No ensino médico, destaca-se, entre outras importantes iniciativas, a criação em 1967 da Biblioteca Regional de Medicina (BIREME), sediada em São Paulo. Na década del970, observam-se importantes nexos entre as ações da OPAS e a articulação inicial do movimento sanitarista no Brasil. Em um con- texto marcado por regimes autoritários, acentua-se o papel desse organismo na revisão do ensino médico, na valorização das ciências sociais e no desenvol- vimento da medicina social. Outros temas em destaque foram a erradicação da varíola no mundo, meta alcançada inicialmente nas Américas, e a criação do Programa Ampliado de Imunização, em 1976, pela OPAS/OMS. Na quarta seção, discorre-se sobre as relações entre a OPAS e o Bra- sil, a partir de 1982, quando foi eleito pela XXI Conferência Sanitária Pan- Americana, realizada em Washington, o primeiro brasileiro a ocupar o cargo de diretor geral: Carlyle Guerra de Macedo. Discutem-se as principais inici- ativas da OPAS durante essa gestão, com ênfase nas que mais diretamente se relacionavam com o Brasil, procedendo-se do mesmo modo no que se refe- re à gestão de George Aleyne, com início em 1994. O foco principal da discussão encontra-se nos desafios colocados para a OPAS e para os países latino-americanos diante da crise econômica e das propostas de reforma do Estado, então em curso. O Brasil oferece neste contexto um campo bastante amplo de reflexões dada à implantação, em 1988, do Sistema Único de Saúde (SUS). Atenção especial é atribuída, finalmente, à proposta de ampliação da agenda de saúde para as Américas. A agenda de saúde pública no Brasil e o papel das Conferências Sanitárias Pan- Americanas (1902-1947) Saúde como questão internacional No século XIX, o conhecimento científico sobre as condições de saúde das coletividades humanas encontrava expressão no estudo da higie- ne, disciplina que se formava sob a influência do intenso processo de trans- formações pelo qual passavam as sociedades européias com o advento da Essas posições devem ser vistas, no entanto, como tipos de causali- dade e não como chaves classificatórias, nas quais devem ser enquadrados os médicos. Trata-se de explicações não necessariamente antagônicas, pois, muitas vezes, um médico atribuía ao contágio a origem de determinada do- ença, enquanto explicava outras como consequência de miasmas. O próprio conceito de neo-hipocratismo tem merecido a atenção de trabalhos recen- tes em história da medicina. Neles, o neo-hipocratismo é visto como referên- cia para concepções que pouco retinham dos fundamentos hipocráticos, a que recorriam, porém, em seu processo de legitimação (Gadelha, 1995). Tanto na versão contagionista como na anticontagionista, uma das características mais marcantes da higiene no período que antecedeu a con- sagração da bacteriologia consistia na indeterminação da doença.5 O ar, a água, as habitações, a sujeira, a pobreza, tudo poderia causá-la. A fluidez do diagnóstico era acompanhada pela imprecisão terapêutica. Essa caracterís- tica também permitia que os higienistas atuassem como tradutores dos mais diversos interesses. O estudo de Bruno Latour (1984) sobre a consagração de Louis Pasteur e da bacteriologia na França traz um argumento pertinente à presen- te reflexão. O ponto mais relevante da análise do autor consiste em propor uma visão alternativa à consagrada em toda uma linha de história da medici- na social. Estudos clássicos como o de George Rosen (1994), por exemplo, entendem que a bacteriologia teria gerado o abandono das questões sociais pela saúde pública. Tudo se resumiria à "caça aos micróbios", deslocando- se a observação do meio ambiente físico e social para a experimentação confinada ao laboratório. 5 Essa polarização representa uma simplificação do debate científico. Entre os extremos, podem ser his- toricamente identificadas nuanças nas concepções médicas sobre o que hoje denominamos doenças infecto- contagiosas. Durante o século XIX, também encontramos explicações fundamentadas no conceito de contágio, consideradas válidas para algumas doenças, e a atribuição de causas infecciosas, para outras. No Brasil, isto fica claro nos estudos históricos sobre a febre amarela (Benchimol, 1999, 2001; Chalhoub, 1996). O que teria acontecido, segundo Latour, seria uma mudança nas representações sobre a natureza da sociedade. Em sua perspectiva, tratava- se de uma lição de sociologia dada pelos pastorianos, uma vez que o que indicavam era a impossibilidade de se observar relações sociais e econômi¬ cas sem considerar a presença dos micróbios. Seria impossível identificar relações entre pessoas, pois os micróbios estariam presentes em toda parte, assumindo o papel de verdadeiros mediadores das relações humanas. O micróbio poderia mesmo promover a indistinção das barreiras sociais entre ricos e pobres, como afirmavam legisladores de fins do século XIX. Este ponto foi abordado de forma muito sugestiva pelo médico norte- americano Cyrus Edson, que, em fins do século XIX, apresentou o micróbio como "nivelador social". As ações públicas de saúde seriam uma decorrên- cia do encadeamento de seres humanos e sociedades reveladores da "di- mensão socialista do micróbio" (Hochman, 1996: 40). Em suma, o estudo dos micróbios entrelaçava-se fortemente ao da própria sociedade, redefinindo relações, formas de contato e as noções de pureza e de risco.6 As proximidades entre medicina e sociologia, durante o século XIX, têm sido lembradas por diferentes estudos que observam a transposição de teorias e metáforas, por exemplo, o recurso a metáforas baseadas em analo- gias orgânicas na proposta de filosofia social de Saint-Simon e na sociologia de Emile Durkheim. O estudo realizado por Murard & Zylberman (1985) reforça o argumento até aqui apresentado. Os autores entendem que a higiene de fins do século XIX e início do século XX pode ser entendida como ciência social aplicada. Observam que, desde 1829, anunciava-se o programa dos higienistas na França: a medicina não teria por objeto apenas estudar e combater as doenças; ela apresentava fortes relações com a organização 6É importante observar que não procedem tentativas de estabelecer uma relação de causalidade direta entre o conhecimento científico, mais especificamente o referido à bacteriologia, e sentimentos de aversão ao que é considerado impuro e perigoso à saúde. Este ponto é enfatizado especialmente nas obras de Norbert Elias (1990) e Mary Douglas (1976). social. As idéias divulgadas em periódicos, como os Annales d'Hygiène Publique et de Medicine Légale, em um momento marcado por ações de combate à cólera e à febre amarela, indicariam a articulação da medicina com problemáticas sociais. À semelhança da análise de Latour, os autores observam que os pastorianos representaram, até certo ponto, uma continuidade em rela- ção aos higienistas que discutiam anteriormente as idéias de transmissão das doenças. Consideravam um equívoco atribuir, à mudança nas expli- cações sobre contágio e à ênfase em pesquisas laboratoriais, uma altera- ção radical no que se refere ao escopo da ação dos higienistas. Em ou- tras palavras, a ênfase no papel dos micróbios na transmissão das doen- ças não implicaria o abandono de temáticas sociais. Na verdade, deslo¬ cava-se a atenção, dirigida anteriormente para o meio ambiente, para as pessoas infectadas, acentuando-se os aspectos normalizadores da higie- ne sobre a sociedade. A literatura tem sido mais atenta a esse ideal e discurso normalizador, deixando um pouco de lado o problema de como encontra efetividade no plano das relações sociais. Baseada fundamentalmente em fontes elabora- das por médicos do século XIX, muitas vezes o que se faz é reificar as inter- pretações elaboradas por eles sobre seu papel e capacidade de intervenção, reiterando o binômio cidade-doença, e as relações entre medicina e contro- le do espaço urbano.7 Em geral, os movimentos de reforma da saúde pública na Europa, quer na França, Alemanha ou Inglaterra, tenderam a se voltar para os cená- rios urbanos e, ainda que destacassem a associação cidade massiva e doen- ça, revelavam certa dose de otimismo na crença de que a higiene permitiria intervir positivamente sobre o insalubre espaço urbano. O otimismo diante da possibilidade de intervenção científica compensava o sombrio diagnosti- 7 Para uma crítica dessas tendências, na historiografia européia e na produção intelectual brasileira sobre medicina social, ver o artigo de Rezende de Carvalho & Lima (1992). Oito anos após este colóquio e na mesma cidade, foi realizada a segunda Conferência. A terceira Conferência realizou-se em 1866, em Constantinopla, e a seguinte, em Viena, em 1874. A quinta Conferência Sanitária Internacional foi a primeira a se realizar no continente america- no e teve lugar em Washington em 1881. Aristides Moll, editor científico da Oficina Sanitária Pan-Americanana, nas décadas de 1920 e 1930, che- gou a apontá-la como a primeira conferência sanitária pan-americana (Veronelli & Testa, 2002; Moll, 1940). Entretanto, a representação dos países americanos era basicamente dos corpos diplomáticos, com reduzi- da presença das autoridades sanitárias nacionais. Um dos fatos mais significativos, durante a quinta Conferência, foi a participação de Carlos Finlay, delegado especial de Espanha, representando Cuba e Porto Rico. Finlay apresentou sua teoria sobre a transmissão da febre amarela, considerando-a como uma concepção alternativa aos argumentos contagionista e anticontagionista. A posição do cientista estava fundamenta- da na seguinte hipótese: a presença de agente inteiramente independente para a existência tanto da doença como do homem doente, mas absoluta- mente necessário para que a enfermidade fosse transmitida do portador da febre amarela ao indivíduo são. Este agente, ou vetor, era um mosquito, e sua hipótese só foi considerada plenamente demonstrada vinte anos depois.10 Apenas em 1903, na sexta Conferência, consideraram-se como fa- tos científicos estabelecidos o papel do rato na transmissão da peste e do Stegomia fasciata (atualmente Aedes aegypti) na transmissão da febre amarela. Essa resolução teve evidentes efeitos práticos, de crucial importân- cia para o intercâmbio e comércio internacionais, devido ao problema acar- retado pela quarentena dos navios. 10 Antes de Finlay, investigações sobre a transmissão da malária levaram alguns médicos a sugerir vínculos entre mosquitos e febre amarela, como foi o caso de e John Crawford, em 1807. Também Louis Daniel Beauperthuy (1825-1871), médico e naturalista francês que trabalhou na Venezuela, apresentou a hipó- tese da transmissão da febre amarela por mosquitos (Cueto, 1996a). Os debates sobre a transmissibilidade das doenças nunca foram estritamente científicos. No que se refere à imposição de quarentenas, a politização do tema seria flagrante uma vez que interferiam no fluxo comer- cial, no comércio internacional e no deslocamento populacional. O cólera, a peste e a febre amarela eram as três doenças em relação às quais havia maior atenção dos países; seu significado transcendia ações específicas de comba- te e consistiram importantes elementos na própria configuração e reconfiguração dos Estados modernos. No caso das Américas, a febre amarela, em fins do século XIX e início do século XX, era considerada o grande desafio de política sanitária, especialmente no que se refere ao comércio entre as nações. Em parte, desempenhou no continente americano papel similar ao do cólera na Eu- ropa. Foi uma das doenças mais marcantes da história da saúde pública brasileira, com impactos sobre os processos políticos e o desenvolvimento científico no país. Brasil: imenso hospital As imagens que associam o Brasil a doenças, especialmente às de natureza transmissível, ao contrário do que a primeira impressão pode indi- car, são relativamente recentes em nossa história. Até a segunda metade do século XIX, prevalecia a idéia de "um mundo sem mal", caracterizado por uma natureza e um clima benévolos e pela longevidade de seus habitantes, conforme expressão utilizada por Sérgio Buarque de Holanda, em Visões do Paraíso, para se referir às impressões suscitadas pelos textos de cronistas e viajantes (Lima, 2000). A despeito de registros de incidência de varíola e febre amarela desde o período colonial, no início do século XIX, as referências a um país saudável ainda eram frequentes. As principais cidades, particularmente o Rio de Janeiro, então capital do Império, que, no final daquele século, era considerada um celeiro de doenças, não eram vistas do mesmo modo, tal como se pode observar no discurso do renomado médico Francisco de Mello Franco: Não só pelo que tenho observado por mim mesmo, mas segundo o que tenho inquirido de médicos que, por muitos anos com grande reputa- ção, têm praticado nesta capital do Brasil, não se encontra febre alguma contagiosa (...) o que na verdade maravilha a quem exercitou a clínica na Europa, onde o contágio de algumas febres é conhecido até mesmo do povo. (Ferreira, 1996:96) O impacto da epidemia de febre amarela no Rio de Janeiro, de 1849 a 1850, alterou sensivelmente essa imagem pública. O fato de ter feito vítimas fatais na elite favoreceu a compreensão do quadro sanitário do Brasil como um problema científico e político importante, ampliando a repercussão das polêmicas médicas sobre o assunto. As controvérsias sobre as origens, causas e formas de transmissão das doenças infecciosas são inúmeras e têm sido bastante documentadas nos estudos sobre história da medicina e nas pesquisas históricas sobre o Rio de Janeiro (Benchimol, 1999). Do "mundo sem mal", passou-se a lidar com expressões opostas, como a de Rui Barbosa que, em discurso de home- nagem póstuma a Oswaldo Cruz, em 1917, referiu-se ao Brasil como o "país da febre amarela". No mesmo texto, o intelectual baiano afirmava que, ao debelar a epidemia dessa enfermidade no Rio de Janeiro, Oswaldo Cruz pro- movera a efetiva "abertura dos portos às nações amigas" (Barbosa, 1917). Cada doença evocava, por sua vez, uma série de temas que despertavam inevi- táveis tensões sociais; entre elas, as motivadas pela referência a diferentes pa- drões imunológicos dos grupos étnicos que formavam o Brasil. Considerava- se, por exemplo, que a febre amarela vitimava mais os brancos e os imigrantes europeus do que a população de origem africana (Chalhoub, 1996). No início do século XX, o surto de peste bubônica que assolou Santos viria agravar o quadro sanitário e a percepção pública sobre os ris- cos representadas pelas epidemias. A criação do Instituto Butantan, em São propostas: a criação do Ministério da Saúde.13 A solução para uma maior centralização das ações sanitárias no âmbito federal ocorreu em 1920, com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, dirigido desde sua fundação até 1926 pelo cientista Carlos Chagas. Note-se que esse tema - a unificação dos serviços de saúde e a constituição de uma autoridade sanitária nacional - esteve também forte- mente presente no debate da OPAS. Como veremos com mais detalhes, dessa geração de cientistas, Oswaldo Cruz, Raul de Almeida Magalhães e Carlos Chagas representaram o Brasil na condição de delegados nas Conferências Pan-Americanas de Saúde, e os dois últimos participaram também do corpo diretivo da organização. A construção de uma identidade profissional mais delimitada pode também ser relacionada às mobilizações dos anos de 1910 e 1920. A ênfase na saúde coletiva e nas chamadas endemias rurais marcou a constituição do Departamento Nacional de Saúde Pública e a formação de novas gerações de profissionais. O termo sanitarista substituiu progressivamente a referência tradicional aos higienistas, indicando especialização profissional e maior distinção entre as atividades científicas no laboratório e as atividades de saúde pública. Tal processo não ocorreu isoladamente no Brasil e contou com a participação ativa da Fundação Rockefeller no ensino médico, como foi o caso da criação da cadeira de higiene na Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1918 (Castro Santos, 1987, 1989). Muitos profissionais brasilei- ros completaram seu processo de especialização, nas décadas de 1920, 1930 e 1940, na Escola John Hopkins de Higiene e Saúde Pública, importan- te centro de pesquisa e ensino financiado pela Fundação Rockefeller nos Estados Unidos (Fee, 1987). Um dos efeitos mais notáveis da campanha consistiu na criação dos postos de profilaxia rural em diferentes estados, que significaram, ainda que 13 A análise da relação entre o movimento sanitarista e a implementação de políticas de saúde está desenvol- vida nos trabalhos de Castro Santos (1987) e Hochman (1998). pequeno fosse o resultado para a melhoria das condições de vida, a presen- ça do Estado na implementação de políticas de atenção à saúde de populações que, como afirmaram Arthur Neiva e Belisário Penna (1916: 199), só sabiam de governos "porque se lhes cobravam impostos de bezerros, de bois, de cavalos, de burros". Ainda é possível afirmar que a campanha transformou em problema social, tema de debate público, uma questão que até aquele momen- to encontrava-se em foco especialmente nos periódicos médicos - a doença e o abandono como marcas constitutivas das áreas rurais do Brasil.14 Entre os estudos que se dedicaram a analisar as políticas de saúde pública durante a Primeira República, o de Luiz Antônio de Castro Santos trouxe uma contribuição relevante ao propor uma abordagem mais proces- sual para as relações entre movimento sanitarista, políticas de saúde e cons- trução da nacionalidade, acentuando que causas diversas poderiam ser apon- tadas. Identificou duas fases das ações sanitaristas durante a Primeira Repú- blica: a primeira voltada ao combate às epidemias urbanas, quando as preo- cupações com a saúde dos imigrantes desempenharam papel central; a se- gunda, ao saneamento rural, em que se fez sentir a força das idéias naciona- listas então em debate (Castro Santos, 1985, 1987). O papel que o movimento pela reforma da saúde pública desempe- nhou na consolidação do Estado nacional no Brasil foi bem explorado por Gilberto Hochman (1998), que, com base no conceito de interdependência social, relacionou as possibilidades de expansão territorial da autoridade pública ao impacto das idéias científicas sobre transmissibilidade de doen- ças. Os caminhos trilhados pelos sanitaristas nesse período, a partir da abor- dagem da doença como principal problema nacional, interagiram decisiva- mente com questões cruciais da ordem política brasileira: as relações entre o público e o privado e entre poder local e poder central. Temas que, ade- mais, desnecessário lembrar, permanecem de evidente atualidade. 14 Deve-se notar que, dificilmente, os debates no campo médico restringiam-se aos periódicos especializados. Artigos tratando de polêmicas científicas eram publicados nos jornais da grande imprensa. Ver a respeito os trabalhos de Benchimol (1999) e Ferreira (1996). O debate sobre a identidade nacional no Brasil tem origens muito anteriores, mas alcançou considerável expressão durante a Primeira Re- pública, uma vez que muitos intelectuais associaram, a essa forma de go- verno, o ideário do progresso e a afirmação do processo civilizatório em um país que parecia estar condenado por seu passado colonial e escravista, e pela propalada inferioridade racial de sua população. Os intelectuais que participaram da campanha do saneamento partiam de uma crítica à idéia da inviabilidade do país como nação, contestando qualquer tipo de fatalismo baseado na raça ou no clima, ao mesmo tempo que se opunham às versões ufanista e romântica que consideravam idealizar a natureza e o homem brasileiros.15 Entre os principais resultados do movimento de reforma da saúde durante a Primeira República (1889-1930), destaca-se a consolidação da imagem de uma sociedade marcada pela presença das doenças transmissíveis, o que, de forma satírica, encontraria, mais tarde, expressão em Macunaíma, de Mario de Andrade: uPouca saúde, muita saúva: os males do Brasil são". A organização da saúde nas décadas de 1930 e 1940: de imenso hospital a laboratório de saúde pública Os estudos históricos sobre a constituição da área de saúde no Bra- sil têm privilegiado o período da Primeira República, o que em parte pode ser explicado pela centralidade política que o tema recebeu e sua percepção como problema-chave - problema vital, como o denominou Monteiro Lobato. Foi o período da proposta da primeira reforma sanitária, cuja tônica radica¬ 15 O ufanismo, termo utilizado em estudos recentes para se referir à corrente de pensamento que propunha a autocongratulação dos brasileiros, encontrou sua expressão máxima no livro Porque me Ufano de meu País, do monarquista Conde de Afonso Celso (Oliveira, 1990; Carvalho, 1994). os Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas reali- zaram, de 15 a 28 de janeiro de 1942, no Rio de Janeiro, uma Reunião de Consulta, cuja ata final documenta, no capítulo "Melhoramentos em Saúde Pública", esse importante marco da história desse campo de ação governamental (...) Dessa reunião resultaram entendimentos entre os Governos do Brasil e dos Estados Unidos da América que levaram à criação, em 1942, no Ministério da Educação em Saúde, de um Serviço Especial de Saúde Pública destinado a desenvolver inicialmente no Vale do Amazonas e, em seguida, no Vale do Rio Doce, atividades gerais de saúde e saneamento que também incluiriam o combate à malária, a assistência médico-sanitária dos trabalhadores ligados ao desenvolvi- mento econômico das duas regiões (...), o preparo e o aperfeiçoamen- to de médicos e engenheiros sanitaristas, de enfermeiras e outros pro- fissionais de saúde, (apud Braga, 1984: 104) O que vale a pena destacar é o fato de esses programas terem tido impacto relevante na formação ou consolidação da liderança de sanitaristas brasileiros e, mais do que isso, o fato de o Brasil poder ser considerado um grande laboratório de conhecimentos e práticas de saúde pública, de crucial importância na trajetória também dos norte-americanos. Fred Soper talvez seja o mais notável exemplo desse fato. Em suas memórias, a experiência no Serviço de Febre Amarela e na campanha de erradicação do Anopheles gambiae é realçada como elemento decisivo para a atuação posterior em outros países da América e da África. De imenso hospital, o Brasil transfor¬ mara-se em grande laboratório e escola para as campanhas de saúde públi- ca e formação de um novo tipo de sanitarismo. 0 Brasil e a atuação da OPAS em sua primeira fase No longo período que se estende da criação da OPAS até 1947, pode-se afirmar que dois elementos foram os mais relevantes em sua relação com os países que a integravam: a difusão de idéias científicas e relacionadas a ações de saúde - principalmente por meio das Conferên¬ cias Sanitárias Pan-Americanas e do Boletim da Oficina Sanitária Pan- Americana16 - e a proposta de regulação da notificação e formas de combate às doenças transmissíveis com a aprovação do Código Sanitário Pan-Americano em 1924. No Brasil, o debate e as campanhas contra a febre amarela e seu vetor ocupavam posição de destaque, o que se estenderia até a década de 1950, com a criação de um programa de erradicação do Aedes aegypti para o continente americano. Seria simplificador, no entanto, observar, apenas do ponto de vista das ações de combate a essa doença, as relações e as influências recíprocas entre os fóruns promovidos pela OPAS e as ações de saúde pública realizadas no Brasil. Não existem muitas fontes sobre a atua¬ ção de brasileiros nesse organismo, mas, principalmente pelas Conferências Pan-Americanas, podem-se levantar algumas possibilidades de interpreta- ção. É possível identificar, no âmbito desses fóruns, temas que constituíam a agenda de saúde pública no Brasil, principalmente a idéia de reforma da saúde pública com a criação de um Ministério da Saúde. Em janeiro de 1902, na cidade do México, realizou-se a segunda Conferência Internacional dos Estados Americanos. Atendendo à recomen- dação de seu Comitê de Política Sanitária Internacional, a Conferência apro- vou a convocação de uma convenção geral de representantes dos organis- mos sanitários das repúblicas americanas para decidir sobre a notificação de enfermidades, o intercâmbio dessa informação entre as repúblicas, a realização de convenções periódicas sobre a matéria e o estabelecimento de uma oficina permanente em Washington para coordenar essas atividades. A primeira Convenção Sanitária Internacional foi realizada em Washington, de 2 a 4 de dezembro de 1902, e criou a Oficina Sanitária Internacional, que funcionou como apêndice do serviço de saúde pública dos EUA, acumulan- do o Cirurgião Geral, chefe desse serviço, a direção da Oficina Sanitária Internacional até 1936 (OPAS, 1992; Macedo, 1977; Bustamante, 1972). 16 Passarei a me referir à publicação como Boletim. Nas referências bibliográficas empregarei a sigla BOSP. Em 1905, realizou-se a segunda Convenção Sanitária, que estabeleceu propostas relativas a quarentenas e notificação de enfermidades no continente. Seria, segundo alguns autores, a precursora do Código Sanitário Pan-Americano. Em dezembro de 1907, teve lugar a terceira na cidade do México, cabendo a Oswaldo Cruz representar o Brasil. Em 1909, na Costa Rica, ocorreu a quarta reunião em que se propôs a mudança do nome Convenção para Conferência e, em 1911, a quinta Conferência, realizada em Santiago do Chile, em que se deci- diu nomear a Oficina como Oficina Sanitária Pan-Americana, responsabilizando- a pela elaboração de um projeto de Código Sanitário Marítimo Internacional. Representaram o Brasil Ismael da Rocha e Antonino Ferrari (Barreto, 1942). Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, houve um longo intervalo e, em 1920, na cidade de Montevidéu, realizou-se a sexta Conferência Sanitária Internacional, em que compareceu como delegado brasileiro Raul Leitão da Cunha. A Conferência ratificou o nome do Cirurgião Geral do Serviço de Saúde dos EUA, Hugh Cumming, como Diretor da Oficina, posição que ocupou até 1947, apesar de ter deixado o cargo de Cirurgião Geral dos EUA em 1936. Nessa conferência, deliberou-se pela criação do Boletim Pan-Americano de Saúde, publicado mensalmente a partir de 1922, cujo nome foi alterado pos- teriormente para Boletim da Oficina Sanitária Pan-Americana. Na VI Con- ferência Sanitária, a Oficina definiu sua reestruturação. Pouco a pouco, esten- deu seu raio de ação e constituiu um centro consultor (Ata da IX Conferência). Em Havana, 1924, na VII Conferência Sanitária Pan-Americana, con- tando com Uiz do Nascimento Gurgel e Raul de Almeida Magalhães como delegados do Brasil, aprovou-se o projeto do Código Sanitário Marítimo Internacional, logo designado como Código Sanitário Pan-Americano. Esse documento foi objeto de discussões posteriores pelo Poder Legislativo de cada país integrante do organismo, para efeito de ratificação, e definiram-se como suas finalidades (Soper, 1948): 1) prevenir a propagação internacional de infecções ou doenças susce¬ tíveis de serem transmitidas a seres humanos; sexuais. Note-se que esse debate foi também muito intenso no Brasil com predomínio da tese do controle sanitário e orientação médica (Carrara, 1996). Durante a VIII Conferência, em que se discutiram prioritariamente assuntos concernentes ao Código Sanitário Internacional, o tema que provo- cou mais controvérsias, a julgar pelas atas publicadas no Boletim, foi a reco- mendação da unificação da autoridade sanitária nacional nos países, seja pela criação de um Ministério da Saúde, seja pela criação de um Departa- mento Nacional de Saúde. Durante o debate, houve clara manifestação, con- trária dos delegados argentinos. A delegação do Peru apresentou documento sobre a criação de Mi- nistérios da Higiene, denominado As bases em que se apóia a criação do Ministério da Higiene, propondo que a VIII Conferência Sanitária Pan- Americana reiterasse sua adesão à reforma do Estado, com ênfase na criação de ministérios consagrados aos assuntos médico-sanitários ou departamentos nacionais que centralizassem os serviços sanitários. Como observa Paz Soldan (BOSP, ano 7, n. 1, jan. 1928, p. 146): Creio que a medicina social, no atual momento, deve ser aplicada com critério político e que cabe aos higienistas reivindicar para si o direito de governar e dirigir as coisas relacionadas com a saúde pública senão (...) contrárias ao bem e ao progresso sanitário da coletividade. Um Ministério de Higiene para os Higienistas. Aqui está minha convicção, (grifo meu) A presença e a ênfase nesse tema têm importância especial, pois coloca a reforma do Estado, a reforma sanitária preconizada à época, como uma preocupação importante no debate sobre a adoção de políticas co- muns pelos países americanos. No Brasil, como vimos, desde meados da década de 1910, isto estava colocado - a proposta de centralização dos serviços e ações de saúde, preferencialmente com a criação de um ministé- rio. De que forma o tema estava sendo articulado por outros países da Améri- ca, sobretudo da América do Sul, é matéria que merece atenção. No Peru, por exemplo, ocorreu mobilização social semelhante ao movimento sanitarista brasileiro - o movimento de Riforma Médica. Seu principal líder, Paz Soldan, publicou inclusive artigo na revista Saúde, periódico oficial da Liga Pró- Saneamento do Brasil, que encerrava com a frase: "Eugenizar é sanear"17 (Lima & Britto, 1996). Importa observar que o médico peruano atuou também durante longo período na OPAS (no Peru) - aproximadamente cinquenta anos. Após a VIII Conferência, intensificou-se o processo de ratificação do Código, o que possivelmente foi favorecido pelas missões de reconheci- mento realizadas a vários países, inclusive ao Brasil, por John Long, primei- ro e mais importante "comissário itinerante" da OPAS.18 NO Boletim Pan- Americano de Saúde (ano 8, n . l l , nov. 1929), aparece a notícia de que o Brasil ratificara o Código em sessão do Congresso de 13/8, publicada no Diário Oficial em 15 de agosto de 1929. Neste mesmo número, é publicado o Código Sanitário em português (Cf. página seguinte). A VI Conferência havia instituído o Conselho Diretor da Oficina Sani- tária Pan-Americana, que se tornou mais efetivo após a aprovação do Código Sanitário. Em reunião dessa instância deliberativa, realizada em 1929, foi outorgado um voto de aplauso às autoridades sanitárias brasileiras pelos esforços empreendidos no combate à febre amarela (BOSP, ano 8, n . l l , nov. 1929). Além das doenças transmissíveis, o câncer e problemas de nutrição passaram a figurar na pauta das reuniões que se seguem à VIII Conferência. Em 1934, a IX Conferência teve início com homenagem póstuma a Carlos Chagas. Hugh Cumming lastimou também as mortes de João Pedro de Albuquerque, do Brasil, e Mario Lebredo, de Cuba - membros do Conselho Diretor da OPAS. A delegação do Brasil, formada por Servulo de Lima e Orlando 17 A respeito das diferentes correntes eugenistas e de suas especificidades na América Latina, ver o trabalho de Nancy Stepan (1991) 18 O Boletim, ano 8, n. 11, relata a visita de Long a diversos países da América Latina na condição de representante viajero. As informações mostram que, no Uruguai, o Código Sanitário havia sido ratificado pelo Congresso; no Paraguai, estava em processo de discussão. O informe sobre o Chile dá conta de melhoria nas condições sanitárias: boa água potável, leite pasteurizado etc. No caso da Bolívia, refere-se à ratificação do Código, pouco tempo depois de sua visita. No Brasil, chegou a 7 de setembro de 1928, fazendo contato com o Dr. Barros Barreto e o Dr. Mattos, destacando, em seu relato, as medidas de controle da febre amarela e da peste. Roças, não se pronunciou na seção de informes gerais, pois o que levavam à Conferência referia-se à profilaxia da febre amarela e da varíola e deixaram então para fazê-lo na respectiva comissão. O Brasil esteve também em exposição no relato de Fred Soper, que havia solicitado autorização para participar como observador, representan- do a Fundação Rockefeller Em seção secreta apresentou os resultados de A preocupação em veicular, no Boletim da Oficina Sanitária Pan- Americana, informações do governo brasileiro, no campo da saúde, esteve presente desde 1926, quando Clementino Fraga era o Diretor do Departamen- to Nacional de Saúde Pública, e se passou a publicar o 'Noticiário brasileiro'. Após a revolução de 1930, com a criação do Ministério de Educação e Saúde, a atenção com a imagem pública relacionada às políticas sociais e, especifica¬ mente às de saúde pública, se acentuaria particularmente no período autoritá- rio do Estado Novo (1937-1945). O ministro Gustavo Capanema e, na implementação dos assuntos de saúde, João de Barros Barreto desenvolveram intensa atividade de divulgação não apenas de sucessos no combate a doenças transmissíveis, mas de reorientações na administração pública, com ênfase em racionalidade, extensão territorial e constituição de sólida burocracia. É a partir desse enquadramento, aliado à atmosfera da Segunda Guerra Mundial, que pode ser melhor avaliado o impacto da realização da XI Conferência Sanitária Pan-Americana, no Rio de Janeiro, em 1942. No plano interno, um ano antes, durante as comemorações do aniversário do Estado Novo, o ministro Capanema promovera a I Conferência Nacional de Saúde, dando início, em um período ditatorial, ao estabelecimento de fórum de especial significado para a constituição da política nacional de saúde (Hochman & Fonseca, 2000). A XI Conferência Pan-Americana de Saúde teve início na data come- morativa da Independência do Brasil. Em sua comissão organizadora, con- tou com Barros Barreto (presidente), Raul Godinho (secretário geral exe- cutivo) e, na posição de vogais, com Mário Pinoti, Carlos Sá, Décio Parreiras e Humberto Pascali. Entre seus relatores, figuravam também nomes expressi- vos do sanitarismo e da ciência nacionais: Adelmo Mendonça, Carlos Chagas Filho, Eder Jansen de Mello, Francisco Borges Vieira, Francisco de Magalhães Neto, Genésio Pacheco, Geraldo Paula Souza, Guilherme Lacorte, Henrique Aragão, Otavio de Magalhães, Paulo Parreira Horta e Samuel Pessoa. Outro evento importante, paralelo à Conferência, foi a Exposição Pan- Americana de Higiene, em que se destacavam as realizações do Brasil no com- bate às doenças transmissíveis, notadamente a febre amarela e a malária. O conflito mundial, e como corolário a defesa continental e da saúde, figurou como primeiro e mais importante tema abordado, inclusive com a indi- cação de realização de inquérito sobre a distribuição geográfica das doenças transmissíveis de importância em tempo de guerra. Sugeriu-se também a coope¬ ração integral entre os serviços de saúde, militares e civis (Ata Final da XI Confe- rência, BOSP, ano 22, n. 3, mar. 1943). Ademais, a primeira metade do século XX, e aí não reside naturalmente nenhum paradoxo, viu nascer as formas modernas de cooperação internacional e também a generalização da guerra como fenôme¬ no mundial. Na perspectiva do pensamento sanitarista da época, poucos discur- sos são tão expressivos como o de Fred Soper (1943: 321): Provavelmente o maior obstáculo à erradicação de enfermidades trans- mitidas por artrópodes é a guerra. Em tempos de paz, o trânsito global, especialmente o aéreo, é uma constante ameaça para esses programas, porém resulta de menor importância comparado às operações militares em grande escala. Certamente não existe mais dura prova para as técni- cas de medicina preventiva do que a apresentada pelas condições de prolongada campanha militar e suas inevitáveis sequelas. Quando, aos riscos normais e inevitáveis de doença que representa o conflito arma- do, se acrescenta o espectro funesto da guerra biológica deliberada (que pode incluir a disseminação de enfermidades propagadas por artrópodos) se faz evidente a possibilidade que se coíba a erradicação destas infecções. Na ausência de conflitos mundiais e sobretudo aque- les em que os fins parecem justificar medidas extremas, tais como a guerra biológica, existe toda razão para pensar que a incidência das enfermidades transmitidas por artrópodos continuará em descenso. Nenhuma delas haveria de ameaçar novamente a civilização. Na abordagem das doenças transmissíveis, a XI Conferência apro- vou resolução que apresentava a malária como "a doença que maiores pre- juízos causa a maioria das nações do continente" e recomendava que os departamentos nacionais de saúde dos países americanos aceitassem as re- comendações da Comissão de Malária da Oficina Sanitária Pan-Americana e a considerassem como seu órgão consultivo. Observe-se que, nos Boletins relativos à década de 1940, em vários momentos, acentuava-se a malária como grave problema sanitário do continente e, mesmo no início dos anos 1920, anteriormente à manifestação da epidemia motivada pelo Anopheles gambiae, o Boletim apresentava, na primeira página, mensagem de adver- tência sobre a necessidade de combater essa enfermidade. ções aprovadas nas diferentes instâncias e mesmo nas Conferências Sani- tárias Pan-Americanas seriam mais bem definidas como recomendações, cuja aplicação dependia de processo intenso de trabalho e convencimen- to das autoridades sanitárias dos países. No próprio debate sobre a implementação do Código Sanitário, durante a VIII Conferência, o ponto foi bem observado por John Long, que afirmou não ter a Oficina "poder coercitivo algum", não podendo exercer qualquer controle para seu cumprimento por cada país. As ações de cooperação técnica, embora bastante incipientes, basi- camente restringindo-se à atividade do representante itinerante, começavam a apresentar alguns programas de maior impacto, entre os quais se destaca- vam a criação do Instituto de Nutrição do Centro América e Panamá, em 1946, e o programa de bolsas de estudos, com início oficial em julho de 1939. Esse programa de bolsas incluía as seguintes modalidades: saúde pú- blica - concedidas pelo diretor geral do Serviço de Saúde Pública dos Esta- dos Unidos da América, após recomendação do diretor da OPAS -; medicina - por convênios estabelecidos entre a OPAS e o coordenador de relações comerciais e culturais dos EUA -, e residência médica - concedida por hospitais norte-americanos. Observa-se, ao final do período em análise, a presença mais marcante do Brasil na OPAS. Tal constatação está fundamentada em evidências, como a liderança continental que passou a exercer Barros Barreto, a maior presen- ça do país no debate científico durante as conferências sanitárias e a visibi- lidade internacional das atividades de combate à febre amarela e à malária, realizadas em larga medida com base em cooperação entre o governo brasi- leiro e a Fundação Rockefeller. No plano da formação de pautas de temas e consensos básicos so- bre questões de saúde, o Boletim representou também uma das mais impor- tantes atividades. Tendo seu primeiro número publicado em 1922, consistiu em importante meio de formação de opinião entre médicos e gestores de saúde pública.20 Nesse periódico, há um número expressivo de artigos pu- blicados por brasileiros e de seções que existiram, por considerável tempo, como a 'Seção Portuguesa' com notas e registros produzidos sobre a situa- ção sanitária do país e dos estados da Federação, e que, em fins da década de 1930, seria substituída pelo 'Noticiário Brasileiro'. João de Barros Barreto foi o sanitarista brasileiro que mais publi- cou artigos nessa primeira fase da organização. Além da febre amarela, ou- tro tema muito presente nos artigos relacionados ao Brasil foi a reforma administrativa na área da saúde promovida durante o Governo Vargas. Da criação da OPAS até o término da gestão de Hugh Cumming, mu- danças importantes ocorreram no Brasil, relacionadas, de modos diversos, à nova configuração mundial que vai se delineando nas décadas de 1930 e 1940. Ao final desse período, encerrava-se também o regime autoritário do Estado Novo, que trouxe profundas implicações para a economia e a socie- dade brasileiras. Na área de saúde, consolidava-se um novo tipo de sanitarismo, cujas lideranças receberam forte influência das agências norte- americanas que cooperavam com o governo brasileiro no campo da saúde. Esse fato, como foi apenas parcialmente apontado, teria expressivo impacto nas relações entre o Brasil e a OPAS. 0 Brasil e a nova fase da Organização Pan-Americana da Saúde (1947-1958) As relações entre o Brasil e a OPAS, no período de 1947 a 1958, devem ser entendidas tomando-se em consideração dois fatores fundamen- tais: de um lado, a decisão dos Estados Unidos da América do Norte em 20 Miguel Bustamente, em retrospectiva histórica sobre os cinquenta primeiros anos da OPAS, apresenta dados sobre a tiragem e circulação desse importante periódico, que publicava artigos em espanhol, portu- guês, inglês e francês, e era distribuído gratuitamente a médicos e a outras pessoas relacionadas com os departamentos de Higiene Nacionais e locais. estabelecer acordos bilaterais entre o Instituto de Assuntos Interamericanos, criado em 1942 e subordinado ao Departamento de Estado, e os governos latino-americanos, e, de outro, a criação da Organização Mundial da Saúde, em 1946. Ambos os fatos, relacionados à conjuntura que se inaugura com a Segunda Guerra, indicam a importância estratégica atribuída à saúde na nova ordem mundial e continental que se configurava. A saúde como questão estratégica nas relações entre Brasil e Estados Unidos No Brasil, o período da Segunda Guerra implicou notável altera- ção nas relações internacionais com a progressiva aproximação aos Es- tados Unidos da América do Norte, gerando mudança na posição de neutralidade e na característica da política externa que Gerson Moura (1980) definiu como "autonomia na dependência". Pouco se tem anali- sado, entretanto, o papel das ações relativas à saúde naquele contexto. O estudo de André Campos (2000) vem preencher essa lacuna, contribuin- do tanto para que se considere o cenário da política externa, dimensão pouco presente nos estudos históricos sobre saúde, como, principalmen- te, para o reconhecimento da importância estratégica de questões sanitá- rias nas relações internacionais. Esse novo contexto afetaria a posição da OPAS de diferentes manei- ras. A sustentação financeira das políticas do organismo pelo governo norte- americano passou por alguns revezes que se explicam pelo maior interesse em atuação mais direta nos países, em detrimento da aposta no fortaleci- mento de um organismo baseado em relações intergovernamentais. Isso ocorreu mesmo considerando o total apoio do governo norte-americano à eleição de Fred Soper. O fato é que, nas décadas de 1930 e 1940, foram adotadas várias "políticas de apoio aos países da América Latina; entre elas, a criação de Concebido originalmente para promover o saneamento em regiões como a Amazônia, onde se previa a exploração comercial da borracha, e o vale do rio Doce, destinado à extração de riquezas minerais, o SESP, posterior- mente, teria como atividade principal a implementação de um modelo base- ado no estabelecimento de redes integradas de unidades de saúde, valori- zando a cooperação com os governos estaduais, o que contrastava com o modelo verticalizado das campanhas de saúde pública (Campos, 2000). Como ocorrera com outras políticas implementadas no Brasil, o modelo norte-americano, fundamentado na idéia de medicina preventiva, sofreria alterações locais, que ficam bastante claras no relato de dois 'sespianos', Ernani Braga e Marcolino Candau. Ambos viriam a ter posição significativa na OPAS, sendo Candau o segundo diretor da OMS, cargo que ocupou de 1953 a 1973. Destaca-se o seguinte trecho: No Brasil, especialmente nos últimos anos, observou-se, sob o con- trole do governo, o desenvolvimento de um extenso programa de as- sistência médico-social compulsório para as classes assalariadas, pro- grama esse que, apesar de vir atender a uma razoável parte de nossa população, não pode ainda cogitar da grande massa constituída pelos habitantes da zona rural, os quais por não trabalharem em regime regular de emprego, não sendo portanto obrigados a contribuir para as organizações de seguro médico-social, vêem-se, em sua maioria, totalmente desprovidos de qualquer tipo de assistência médico-sani¬ tária, a não ser, aqui e ali e assim mesmo muito mal, aquela que é prestada pelos serviços oficiais de saúde e pelas instituições de cari- dade. (Candau & Braga, 1984: 59)23 Se a Fundação Rockefeller vem merecendo crescente atenção de historiadores e cientistas sociais pela intensa atividade no país durante as décadas de 1920 a 1950,24 o SESP tem sido menos estudado. Um aspecto 23 O artigo fora originalmente publicado na Revista da Fundação Especial de Saúde Pública, 2 (2), dez. 1948. 24No caso do Brasil, ver os trabalhos de Castro Santos (1987, 1989); Benchimol (2001); Faria (1994); Marinho (2001). Na América Latina, ver principalmente os trabalhos de Cueto (1996b). importante consiste no fato de sua administração ter se organizado, contan- do com o que se considerava "máquina extraordinariamente bem azeitada",25 montada pelo governo brasileiro e pela Fundação Rockefeller na campanha contra o Anopheles gambiae, realizada em 1937, no Nordeste. Respeitadas as diferenças, ambas organizações empreenderam programas que mobilizaram muitos recursos financeiros e humanos, com sensível impacto na formação de gerações de sanitaristas, fato que torna por vezes mais difícil avaliar a importância da cooperação intergovernamental e interamericana sob liderança da OPAS. Certamente, o melhor caminho não é estabelecer comparação entre esses organismos, de natureza diversa, mas situar o tema da cooperação interamericana em uma moldura mais ampla que permita considerar, no plano macro-socio¬ lógico, as mudanças na posição do governo norte-americano e suas impli- cações para a OPAS, e, no plano micro-sociológico, a formação e trajetória de atores sociais com papel destacado em todos esses organismos e na história da saúde no Brasil. No que se refere às relações interamericanas, uma importante característica do período foi a mudança do padrão de relacionamento que, desde o início, marcara as atividades da Oficina Sanitária Pan-Ame¬ ricana: sua subordinação à política de saúde do governo norte-america- no. É possível indicar uma fase de transição que, posteriormente, impli- caria maior presença dos países latino-americanos na gestão da OPAS, O que se expressou na eleição do chileno Abrahan Horwitz para o cargo de diretor geral em 1958. Para a análise, ainda que breve, da gestão de Fred Soper como diretor da OPAS, é necessário considerar essa dimensão e, também, um se- gundo fato, este mais destacado nos balanços históricos: a criação da OMS em 1946. 25 A expressão foi utilizada por Marcolino Candau. Ver Ernani Braga (1984). O Brasil e a criação da Organização Mundial da Saúde A presença do Brasil na criação da OMS tem sido mencionada tanto nos trabalhos retrospectivos sobre esse organismo como naqueles que vêm se detendo na história da OPAS. Ressalta-se o fato de o médico paulista, Geral- do Paula Souza, ter apresentado a proposta de criação de uma nova entida- de para a saúde mundial. Merece registro a participação de Paula Souza no grupo de sanitaristas brasileiros que, na década de 1940, estava recriando a Sociedade Brasileira de Higiene, muitos com atuação no SESP, entre eles Marcolino Candau e Maneco Ferreira. Com a instauração do VII Congresso Brasileiro de Higiene, realiza- do em 1947, e presidido por Marcolino Candau, retomam-se as atividades da antiga Sociedade Brasileira de Higiene, criada em 1923.26 O colóquio realizou-se em São Paulo, na Faculdade de Higiene e Saúde Pública, dirigida por Geraldo de Paula Souza, e pautou-se pela defesa de uma atuação em âmbito nacional que conferisse a esse grupo protagonismo semelhante ao que alcançara o movimento sanitarista da Primeira República. Em 1945, durante a Conferência de São Francisco, nos Estados Unidos, realizada com o objetivo de aprovar projeto de Constituição da Orga- nização das Nações Unidas, Paula Souza teria verificado a falta de referências a questões de higiene e saúde. Isso motivou a apresentação de proposta, junta- mente com a delegação da China, de se constituir um comitê responsável por avaliar as possibilidades de se criar uma organização internacional de saúde. No ano seguinte, o Conselho econômico e Social das Nações Unidas reuniu-se para convocar Comissão Técnica Preparatória da Conferência Sa- nitária Internacional, cujo fim seria criar uma organização internacional. Esse comitê, reunido em Paris em março-abril de 1946, foi integrado por 16 especialistas em saúde pública e representantes de quatro organizações in¬ 26 Para o estudo da primeira fase da Sociedade Brasileira de Higiene, ver Madel Luz (1979). da nova organização internacional em matéria de saúde dominou o debate. Nesse fórum, ocorreram mudanças importantes em termos da estrutura e ins- tâncias decisórias e da agenda de questões prioritárias. Desde então, a Confe- rência Sanitária Pan-Americana, além de traçar diretrizes de política sanitária para o continente americano, passou a atuar como comitê Regional da Orga- nização Mundial da Saúde, contando com a participação de dirigentes desse organismo. A Oficina Sanitária Pan-Americana transformou-se em Organiza- ção Sanitária Pan-Americana, constituída pelos seguintes organismos: 1) a Conferência Sanitária Pan-Americana, corpo diretor supremo, com atribuições de decidir sobre políticas e eleger o diretor, composta de repre- sentantes dos governos-membros e reunindo-se a cada quatro anos; 2)o Conselho Diretor, também composto pelos governos-membros, reu- nindo-se nos anos em que não se realizasse a conferência, e com atribuições similares; 3) o comitê Executivo, inicialmente composto de sete governos-mem- bros, eleitos pelo Conselho Diretor ou pela Conferência para mandados de três anos em forma alternada, que deveria reunir-se regularmente duas vezes por ano e com funções de acompanhar o trabalho da Secretaria e preparar as reuniões do Conselho ou da Conferência; 4) a Oficina (Repartição) Sanitária Pan-Americana, que deixava de ser uma junta ou conselho para ser a Secretaria Executiva da Organização, sob o comando e responsabilidade do diretor, seguindo as orientações e decisões dos governos por meio da Conferência, do Conselho ou do comitê Executivo. É interessante observar a composição dessas instâncias, segundo a deliberação da XII Conferência: • Conselho Diretivo: reunião anual com representante de cada país. • comitê Executivo: Brasil - Heitor Pragues Froes; Costa Rica - Solón Nunez; Cuba - Luiz Espinosa; EUA - Thomas Parran; México - Ignacio Morones Prieto; Uruguai - Enrique Claveaux. • Oficina: Hugh Cumming (diretor emérito), Fred Soper (diretor), John Murdock (subdiretor) e Miguel Bustamante (secretário geral). • Membros de honra: Peru - Carlos Paz Soldán; Guatemala - Luis Gaitas; México - Manuel Martinez Bási; Brasil - João de Barros Barreto; Venezuela - Eugenio Fernandez. No que se refere à mudança na pauta de temas prioritários, desta¬ cam-se a inclusão e o relevo conferido a temas como organização de servi- ços nacionais de saúde, zoonoses, saúde dos trabalhadores, migrações, ali- mentos, fármacos e as relações entre a saúde pública e os seguros sociais. A saúde materno-infantil seria objeto da Declaração de Caracas que estabele- cia "os direitos da criança a uma vida saudável e à saúde". Outra área que viria a se desenvolver com maior intensidade após a Conferência é a de engenharia sanitária, consistindo o saneamento básico tema central da cooperação técni- ca efetivada pela OPAS, especialmente a partir da década de 1950. Em 1948, criou-se a Associação Interamericana de Engenharia Sanitária. No plano das novas relações internacionais, ao lado das bases em que se deveria firmar acordo com a OMS, o outro tema prioritário, a esse intrinsecamente relacionado, foi a sustentação financeira da Organização, diante de um orçamento historicamente reduzido e também, como vimos, das novas relações que se estabeleciam com o governo dos Estados Unidos. Após intenso processo de negociação com os governos, o orçamento de VS$ 85.000, em 1947, alcançou a cifra de US$ 1.300.000, em 1948. Tal ampliação orçamentária foi decisiva para a negociação do acordo com a OMS. O orçamento estava baseado em uma cota de contribuição dos países de US$ 1,00 por 1.000 habitantes, acrescida de contribuição voluntária dos seguintes países: Argentina (US$ 400.000), Brasil (US$ 260.000), Chile (US$ 1.900), República Dominicana (US$ 5.000), El Salvador (US$ 2.500), México (US$ 200.000), Venezuela (US$ 75.000), Uruguai (US$ 50.000). Em informe apresentado à 2ª reunião do Conselho Diretivo da Organi- zação Sanitária Pan-Americana (México), Soper (1948) destacou a ampliação dos objetivos e finalidades da OPAS, a partir da XII Conferência Sanitária Pan- Americana. A Oficina deveria acrescentar a seu programa os aspectos médico- sanitários e de assistência médica e seguridade social, assim como deveria atuar como a Oficina Regional da Organização Mundial da Saúde no Hemisfério Oci- dental, sobre a base de um acordo que se negociaria com a Organização. Não obstante a ampliação da agenda, a febre amarela continuou como tema prioritário do Brasil ao menos nos três primeiros anos da gestão de Soper. Na reunião do Conselho Diretivo da Organização Sanitária Pan-Ameri¬ cana, celebrada em Buenos Aires em 1947, Heitor Praguer Froes, Diretor geral do Departamento Nacional de Saúde e delegado do Brasil, apresentou o pro¬ jeto da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti, que reco- mendou os seguintes pontos: 1) ser realizada mediante acordo entre os repre- sentantes dos interessados e abranger todos os países ou regiões em que existisse o Aedes aegypti; 2) ser realizada sob os auspícios da Oficina Sanitária Pan-Americana, que faria os acordos necessários, encarregando-se de reunir o pessoal técnico necessário e formar novos técnicos; 3) o financiamento se faria, quanto possível, pelos países ou regiões interessados. As recomendações foram precedidas de uma análise da situação dos diversos países latino-americanos e dos Estados Unidos com respeito à presença de vetores da doença. Durante as décadas de 1950 e 1960, em reuniões das instâncias deliberativas da OPAS e em informes e artigos publicados no Boletim, a erradicação do Aedes aegypti constava como uma das principais preocupações para a cooperação interamericana em saúde. Também no que se refere a essa importante atividade, ocorreram tensões e divergências entre a direção da OPAS e o governo norte-americano. Em mais de uma oportunidade, Fred Soper acen- tuou os obstáculos para a erradicação do mosquito, lembrando o fato de os EUA terem se recusado sistematicamente a participar da campanha continental de erradicação do Aedes aegypti (BOSP, v. 55, ano 42, set. 1963). A ampliação da agenda não implicava perda de importância do comba- te a doenças transmissíveis, acompanhando, ademais, tendência histórica no campo da saúde pública. O próprio Fred Soper (1948: 987) diria a respeito: para Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela; a Zona V, no Rio de Janeiro, para o Brasil; e a Zona VI, em Buenos Aires, para Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai (OPAS, 1992; Courtney, 1954).27 27 As informações foram extraídas do BOSP (V. 36, ano 33, n.5, maio. 1954) e referem-se ao período de atuação de Kenneth Courtney, segundo artigo de sua autoria. Em julho de 1951, foi firmado convênio entre a OPAS e o governo do Brasil, que estabeleceu o Escritório de Zona para representar a OPAS no país. O primeiro representante, Kenneth Courtney, foi designado em outubro do mesmo ano. De 1954 a 2002, atuaram como representantes do organismo no país: Hector Argentino Call, Donald Damude, Santiago Renjifo, Raul Vera, Vasquez Vigo, Jorge Athins, Manuel Sirvent-Ramos, Frederico Bresani, Carlos Davila, Florentino Garcia Scarponi, Francisco Salazar, Enrique Najera Morrondo, Ramon Alvarez Gutierrez, Hugo Villegas, Rodolfo Rodrigues, David Tejada, Armando Lopez Scavino e Jacobo Finkelman. A montagem do Escritório de Zona da OPAS no Brasil ocorreu no mesmo período em que o país criava uma pasta autônoma para a área, o Ministério da Saúde, criado em 1953. Da estrutura do ministério faziam par- te o Departamento Nacional de Saúde, o Serviço Especial de Saúde Pública, o Departamento Nacional da Criança e o Instituto Oswaldo Cruz. O Escritório da Zona V, além de assessorar as autoridades sanitárias federais e estaduais, prestou assistência na obtenção de materiais e equipa- mentos de saúde pública e colaborou em diversos programas, com destaque para o programa de febre amarela, a criação do PANAFTOSA e o programa de bolsas de estudos. Em 1950, firmou-se um convênio entre o Departamento Nacional de Saúde e a Repartição Sanitária Pan-Americana, estabelecendo coopera- ção com vistas a uma campanha continental contra a febre amarela. O Insti- tuto Oswaldo Cruz e o Serviço Nacional de Febre Amarela do Departamento Nacional de Saúde do Brasil, por meio da OPAS, proporcionariam serviços patológicos, sorológicos e de diagnóstico, como também forneceriam vaci- na -contra febre amarela para uso nas Américas. A criação do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa - Regional 77 - representou outro marco importante nessa nova fase de relação entre a OPAS e o Brasil. Com verbas designadas pelo Conselho econômico e Social da Organização dos Estados Americanos e a aceitação da oferta do Brasil para sediar o novo organismo, instalou-se, em 1951, com a incumbência de pro- porcionar: 1) serviços de diagnóstico aos países que enviassem amostras; 2) serviços de assessoramento e consulta aos países latino-americanos que encaminhassem pedidos de assistência em programas de combate à febre aftosa ou prevenir sua introdução nos respectivos territórios nacionais; 3) cursos de adestramento aos veterinários dos Departamentos de Agricul- tura dos diversos países da América Central, Antilhas e América do Sul no campo da prevenção, diagnóstico e profilaxia da febre aftosa. (A criação e as conquistas da PANAFTOSA são apresentadas em texto complementar, que se integra a este capítulo). Deve também ser destacado o programa de bolsas de estudo conce- didas a médicos, engenheiros, enfermeiros, veterinários e técnicos de labo- ratório brasileiros para estudos no país ou no exterior, assim como de es- trangeiros para estudos no Brasil. Igualmente importantes foram os Progra- mas de Higiene Materno-infantil, em cooperação com a UNICEF, e de Adestra- mento em Sorologia de Doenças Venéreas, em cooperação com a Faculdade de Higiene e Saúde Pública da Universidade de São Paulo (Courtney, 1954). Sob o signo do desenvolvimento e da medicina social: as relações entre o Brasil e a OPAS no período 1958-1982 Uma das mais importantes transformações ocorridas na socieda- de brasileira durante a segunda metade do século XX consistiu no proces- so de urbanização. Ainda rural em 1960, duas décadas mais tarde tornara- se o Brasil um país de população predominantemente urbana. Esse percentual, que era de 31,2% em 1940, passou a 44, 7% em 1960, e a 67,6% em 1980, com sensível aumento na velocidade da mudança na dé- cada de 1960, quando se deu a efetiva inclusão do país na faixa das nações urbanas (Santos, 1985). Tal processo influenciou as condições ambientais mental importância nesse processo foi o Programa de Preparação Estratégi- ca de Pessoal de Saúde (PPREPS), criado em 1975 por convênio entre o gover- no brasileiro e a OPAS. Sob o signo do desenvolvimento O conceito de desenvolvimento encontra-se entre os que mais defi- nições, revisões e qualificações recebeu. Desenvolvimento - econômico, social, humano, sustentável: são termos que se sucederam desde o final da década de 1950 e que também levariam, cada um deles, a um inventário de múltiplos significados e concepções divergentes. No início dos anos 1960, dominava o debate teórico e prático em áreas diversas do conhecimento e da implementação de políticas e teve presença marcante na proposta da saúde como um direito. A qualificação do desenvolvimento como econômico e social orien- tou a Carta de Punta del Leste, firmada, em 1961, em reunião especial do Conselho Interamericano econômico e Social. O documento definiu dois objetivos gerais: aumentar a esperança de vida em no mínimo cinco anos e ampliar a capacidade para a aprendizagem e a produção mediante o melho- ramento da saúde individual e coletiva. Como objetivos específicos, estabele- ceu o abastecimento de água e saneamento, a redução da mortalidade infan- til, o controle das enfermidades transmissíveis, melhoras na nutrição, capacitação e desenvolvimento de pessoal de saúde, fortalecimento de servi- ços básicos e intensificação da investigação científica (OPAS, 1992). O documento reconhecia a saúde como componente essencial do desenvolvimento, enfatizando a necessidade do planejamento, sob a condu- ção do Estado, para a consecução dos objetivos nacionais de bem-estar, democracia e segurança. Em termos políticos e estratégicos, deu fundamen- tos para a Aliança para o Progresso, proposta pelos EUA, para a cooperação regional e para a legitimação, civil e política, da doutrina de segurança na- cional desenvolvida pelo Colégio Interamericano de Defesa. Um ano antes, reunião realizada em Bogotá já havia contribuído para esse processo median- te o estabelecimento de Fundo para o Desenvolvimento econômico e Social. Em 1963, a OPAS convocou uma reunião de ministros de saúde com a missão de estabelecer o Plano Decenal de Saúde Pública para as Américas, calcado na compreensão da saúde como problema técnico, social, econô¬ mico, jurídico e cultural. Estabeleceu-se também associação com o Banco Interamericano de Desenvolvimento denominado por Abrahan Horwitz "Ban- co de saúde", o que permitiu o investimento em programas de saúde no continente durante as décadas de 1960 e 1970 (OPAS, 1992). Outra associação frequente estabeleceu-se entre saúde e riqueza e doença e pobreza. O tema não era novo, mas tendia a prevalecer a idéia de que o desenvolvimento econômico, ao promover um ambiente social ade- quado, implicaria aumento da expectativa de vida e de melhores condições de saúde física, mental e social. Note-se que durante a década de 1960, entre as teses sobre desenvolvimento que influenciavam os debates nos organismos internacionais de saúde, destacam-se as do economista sueco Gunnar Myrdal. Para ele, o êxito dos programas de saúde dependia do desenvolvimento simul- tâneo de outros programas, como o aumento da produção agrícola, a melhoria da educação e a redução da pobreza absoluta (Myrdal, 1968). A associação entre urbanização intensa, pobreza e doença era cons- tante, reeditando, em novas bases, o impacto do fenômeno urbano do século XIX a que nos referimos no início deste capítulo. Muitos pronunciamentos do diretor geral da OMS, Marcolino Candau, referem-se a esse problema. Aliás, sua gestão no organismo mundial de saúde também mereceria análise mais aprofundada, uma vez que o sanitarista brasileiro permaneceu no cargo por vinte anos e vinha de uma experiência, já mencionada, de organização de ações de saúde no Brasil e na vice-direção da OPAS. OS balanços históricos sobre a OPAS tendem a conferir maior atenção a relações entre os dois organis- mos no período em que essas foram particularmente difíceis, antes da assina- tura do acordo que a definiu como Oficina regional da Américas, em 1949. Na América Latina, a CEPAL desempenhou papel de relevo ao problematizar o conceito de desenvolvimento como equivalente a cresci- mento econômico, sem que mudanças estruturais fossem propostas. Inú- meras críticas foram formuladas, desde então, quer às perspectivas que conferiam ao termo o sentido de progresso linear, ou de mudança nos países 'retardatários' sob o impulso das nações já desenvolvidas, quer à pertinência do conceito alternativo de dependência e às possibilidades explicativas dessa teoria para os países latino-americanos. Para os propó- sitos deste trabalho, trata-se de acentuar o intenso clima de debates teóri- cos e políticos e de como os organismos internacionais de saúde atuaram de forma efetiva nesse processo. No Brasil, durante as décadas de 1950 e 1960, uma das mais importan- tes correntes de pensamento em saúde pública ficou conhecida como sanitarismo desenvolvimentista. De acordo com Eliana Labra (1988), suas principais carac- terísticas encontravam-se na crítica ao modelo campanhista e à inversão dos termos propostos pelo movimento sanitarista da Primeira República que enfatizara o papel da saúde no progresso nacional e na própria formação da nacionalidade brasileira. Para o sanitarismo desenvolvimentista, "o nível de saú- de de uma população depende em primeiro lugar do grau de desenvolvimento econômico de um país" (Labra, 1988). Reunindo intelectuais como Mario Magalhães da Silveira, Samuel Pessoa e Josué de Castro, esta concepção predo- minou durante a III Conferência Nacional de Saúde e é vista, pelo movimento sanitarista mais recente, como precursora das propostas posteriores de reforma do setor saúde e das teses consagradas durante a VIII Conferência. De acordo com Madel Luz (1979: 43), essa corrente conseguiu formular: definições básicas sobre como deveriam ser os Planos de Saúde, tendo por base uma filosofia de ação calcada na demonstração das relações entre saúde e economia, necessidade de uma estrutura permanente de saúde, definição de que essa estrutura deveria ser de responsabilidade municipal embora com assistência técnica e mesmo financeira de ou- tras esferas de governo. O estabelecimento do Programa Ampliado de Imunização (PAI) nas Américas viria a ser uma das principais iniciativas do novo período de gestão da OPAS, com a eleição, em 1974, pela XIX Conferência Sanitária Pan-Ameri¬ cana, de Héctor R. Acuña, do México. Em 1976, o PAI foi estabelecido nas Américas com o objetivo de ampliar a cobertura vacinal dos grupos mais suscetíveis à poliomielite, ao sarampo, ao tétano, à coqueluche, à difteria e à tuberculose (Macedo, 1977). Em 1977, a Assembléia Mundial de Saúde aprovou o PAI; em larga medida, uma decorrência do sucesso da erradicação da varíola e de avan- ços no desenvolvimento tecnológico e produção de vacinas. O Programa foi criado pelos governos membros da OMS para coordenar os esforços de promoção e apoio do uso de vacinas em todo o mundo. Na mesma Assem- bléia, declarou-se a meta de "saúde para todos no ano 2000". Outras iniciativas adotadas em 1975, no âmbito da OMS, teriam im- portância para o alcance desse objetivo. A preocupação com os ainda altos índices de mortalidade infantil determinou o estabelecimento do Programa Mundial de Luta contra as Diarréias que estabelece a utilização de soluções para reidratação oral. Nessa mesma Assembléia, foram adotados o conceito de medicamentos essenciais e a utilização de genéricos para os produtos sem proteção de propriedade, definindo-se ainda a estratégia da Atenção Primária à Saúde. Erradicação da varíola e Programa Ampliado de Imunização A erradicação da varíola consiste em tema de grande interesse para os estudiosos dos fenômenos da saúde coletiva e os gestores dos sistemas de saúde. Resultado do esforço articulado de diferentes atores institucionais, revela ainda forte associação entre conhecimento epidemiológico e ações de saúde pública. Uma das primeiras doenças a ser combatida por meio da vacinação, apenas durante a década de 1950 passou a varíola a figurar nas resoluções da OPAS em termos de uma meta de erradicação. Não foram pou- cas as controvérsias científicas sobre o tema. Registre-se, por exemplo, o intenso debate sobre a univacinação durante a IX Conferência Pan-America¬ na de Saúde. Os estudos históricos têm demonstrado o quanto foi difícil estabelecer a vacina como fato científico, algo que não se resume aos episó- dios de reação popular como a Revolta da Vacina do início do século XX. Na década de 1960, o Brasil era o único país das Américas ainda endêmico com relação à varíola. Nesse período, a iniciativa da OMS de erradicar a doença teve muitas implicações para o país, instituindo-se em 1966, por Decreto Federal, a Campanha de Erradicação da Varíola. O apoio da OPAS às ações então implementadas ocorreu em diversas linhas de assis- tência técnica, em conformidade com o programa da OMS: produção e con- trole de qualidade de vacinas, consultoria técnica, veículos e equipamentos de vacinação.30 A Campanha de Erradicação da Varíola, realizada de 1966 a 1973, teve importante impacto para as ações de controle de doenças transmissíveis no Brasil. Por um lado, contribuiu para a formação de quadros profissionais com experiência no planejamento e execução de programas de vacinação e em atividades de investigação epidemiológica. Por outro, no plano da or- ganização das ações de saúde, permitiu a inserção dessas atividades nas secretarias estaduais de saúde, mediante a criação de unidades de vigilân- cia epidemiológica apoiadas pela Fundação SESP. A experiência acumulada contribuiu para a formulação e execução do Plano Nacional de Controle da Poliomielite (1971-1973), do Programa Nacional de Imunizações (1973) e da Campanha Nacional de Vacinação contra a Meningite Meningocócica (1975). O Plano Nacional de Controle da Poliomielite baseava-se na realiza- ção de campanhas de vacinação em um só dia, em âmbito estadual. Apesar 30 Agradeço a João Baptista Risi Jr. pelas informações e comentários a respeito desta seção. de nem todos os estados terem sido cobertos, tal experiência fundamentou a estratégia de "dias nacionais de vacinação" implantada no Brasil a partir de 1980. A criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI) ocorreu ao mesmo tempo em que se extinguia a Campanha de Erradicação da Varíola e se incorporavam ao novo programa as atividades de controle da poliomieli- te. Deve-se registrar que o PNI antecedeu o PAI. Após a constituição do Programa Ampliado de Imunização pela OPAS/ OMS, algumas iniciativas desse organismo desempenharam papel relevante na consolidação do programa brasileiro. Destacam-se, entre elas, o 'fundo rotatório' para compra de vacinas, o suporte técnico a diferentes ações, inclusive na área de produção de vacinas, e o desenvolvimento do sistema de refrigeração das vacinas (cadeia de frio), de grande importância em um país com dimensões continentais e grandes contrastes sociais, e também bastante desigual no que se refere à densidade demográfica de suas regiões. A estratégia de campanhas de vacinação não ocorreu sem susci- tar uma série de controvérsias e críticas por parte dos que ressaltavam que as atividades de imunização deveriam ser integradas à atenção bási- ca, centrada na rotina de serviços permanentes, em lugar de serem obje¬ to de programas especiais. Tal concepção predominou tanto no Brasil como na OPAS/OMS durante o período de 1974 a 1979. Nesse período, organizaram-se, também em âmbito nacional, as atividades de vigilância epidemiológica de poliomielite. A identificação de contradições entre estratégias de campanha e o foco na atenção primária à saúde não se constituiu como uma peculiaridade do sanitarismo brasileiro, encontrando-se presente nos fóruns internacio- nais organizados pela OPAS/OMS. NO âmbito desse organismo, estudo inde- pendente realizado na década de 1990 concluiria pela possibilidade de su- perar perspectivas dicotômicas entre atenção primária e campanhas de imu- nização, apontando o impacto positivo da campanha de erradicação da po- liomielite no desenvolvimento dos serviços de assistência à saúde (OPAS, 1995). sociólogo Juan César Garcia, com o apoio da OPAS e da Fundação Milbank. Esse trabalho estimulou a criação de cursos de pós-graduação em medicina social, em diferentes países, e a revisão das abordagens predominantes em centros e institutos de saúde pública. Em 1973, criou-se o primeiro curso de medicina social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Instituto de Medicina Social - UERJ), com apoio da OPAS, da Fundação Kellog e da principal agência de fomento à pesquisa no Brasil daquele período - a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP). Um ano mais tarde, organizou-se o curso de pós-graduação em medicina social de Xochimilco, na Universida- de Autónoma do México (Escorei, 1998; Nunes, 2002). No início da década de 1980, verificava-se a institucionalização, no Brasil, da abordagem da medicina social, ainda que, naturalmente, compor- tasse inúmeras clivagens e diferenciações nos planos teórico e político. En¬ contrava-se representada pelos seguintes centros: os departamentos de me- dicina preventiva da Universidade de Campinas (UNICAMP) e da Universidade de São Paulo (USP), o Instituto de Medicina Social da UERJ e pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP),31 na Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) (Escorei, 1998; Teixeira, 1985). Uma das implicações desse processo foi a incorporação de cientistas sociais aos quadros docentes dessas instituições. No que se refere ao instrumental analítico adotado, pode-se, em um primei- ro momento, identificar o predomínio de abordagens marxistas e do pensa- mento de Michel Foucault.32 O estudo de Sarah Escorei (1998) sobre o movimento sanitário brasileiro das décadas de 1970 e 1980 traz importante contribuição ao de- monstrar o quanto essa base institucional, em que se verifica o apoio efetivo de organismos internacionais como a OPAS, teve papel decisivo ao constituir a 31 No caso da ENSP/FIOCRUZ, devem ser consideradas as experiências dos Programas de Estudos Socioeconômicos em Saúde (PESES) e o de Estudos e Pesquisas Populacionais e Epidemiológicas (PEPPE), implementados com a cooperação entre a Fundação Oswaldo Cruz e a FINEP (Teixeira, 1985). 32 Para uma crítica da apropriação dessas perspectivas no campo da saúde coletiva, ver o artigo de Rezende de Carvalho & Lima (1992). base acadêmica, ou universitária, para a articulação do movimento. Tais espaços foram também fóruns de debates para os projetos e teses que viriam mais tarde a ganhar notável visibilidade durante a VIII Conferência Nacional de Saúde. Realizada no período de redemocratização, a Conferência incluiu em seu ternário três questões principais: a saúde como dever do Estado e direito do cidadão, a reformulação do Sistema Nacional de Saúde e o finan- ciamento setorial, dando relevo às relações entre saúde e democracia. No mesmo estudo, apontam-se outros antecedentes do movimento sanitarista, especialmente iniciativas vinculadas ao II Plano Nacional de De- senvolvimento, implementado durante o Governo Geisel (1974-1978). Segundo a autora: Diretamente vinculados ao II PND, surgiram nessa conjuntura três espa- ços institucionais que podemos chamar de pilares institucionais, estí- mulos oficiais à estruturação/articulação do movimento sanitário: o setor saúde do Centro Nacional de Recursos Humanos do Instituto de Pesquisa econômica e Aplicada (CNRH/IPEA), a Financiadora de Estu- dos e Projetos (FINEP) e o Programa de Preparação Estartégica de Pesso- al de Saúde da OPAS (PPREPS /OPAS). (Escorei, 1998) O Programa de Preparação Estratégica de Pessoal de Saúde/OPAS surgiu como consequência da criação, pelo Ministério da Saúde, de um grupo de trabalho interministerial dedicado a formular propostas na área de formação e distribuição de pessoal de saúde para o II PND. Em 1975, o Governo brasileiro assinou convênio com a OPAS/OMS para implementar as ações de formação e distribuição de pessoal de saúde, criando o PPREPS. Sua condução ficou a cargo de comissão composta por representantes dos mi- nistérios da Saúde e da Educação e Cultura e da OPAS, sob a presidência do secretário geral do Ministério da Saúde - José Carlos Seixas, e secretariadas pelo coordenador do Grupo Técnico do PPREPS, Carlyle Guerra de Macedo. De 1975 a 1978, o PPREPS desenvolveu projetos de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos com as secretarias estaduais de saú- de, de integração docente assistencial, a cargo de universidades e de tecnologia educacional, executado pelo NUTES/CLATES. A área de desenvolvi- mento de recursos humanos teve impactos locais expressivos, sobretudo no Nordeste, e desenvolveu-se de forma articulada ao Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento (PIASS) (Escorei, 1998). Ao acentuar o papel da OPAS na configuração de espaços acadêmi- cos e na implementação de políticas públicas de formação de recursos hu- manos na área de saúde, coloco em evidência a contribuição desse organis- mo para a institucionalização da perspectiva da medicina social no Brasil. Uma segunda dimensão que também deve ser realçada consiste no seu re- verso, ou seja, quanto essas experiências repercutiram no desenvolvimento de programas pela OPAS. O compartilhamento com técnicos brasileiros na condução de projetos e os desafios enfrentados na implementação prática de propostas para a saúde consistiram, certamente, em uma base para ou- tras iniciativas da organização. 0 Brasil e as propostas de promoção da saúde a partir da década de 1980 Quando se criou a OPAS seu objetivo manifesto era combater as doenças infecciosas para estimular o comércio entre as nações. Atualmente se proclama a saúde como direito humano e como fundamento da paz entre as nações. Carlyle Guerra de Macedo (BOSP, v.100, n.l, jan.1986) A visão retrospectiva sobre a OPAS põe em evidência temas que não seriam observados se nos limitássemos ao conceito mais restrito de saúde. Evitando o risco de anacronismo, uma das constatações que se fazem impe- riosas é exatamente o alargamento da agenda da saúde, em grande medida relacionado ao aumento da consciência sobre a interdependência nas soci- edades humanas no final do século XX. na privatização de empresas públicas e na redução da intervenção do Estado na oferta de bens e serviços de natureza social. À esfera pública caberia uma ação direcionada para os grupos sociais impossibilitados de responder às ofertas de mercado para o provi- mento desses serviços. No curto prazo, a proposta consistia em diminuir o déficit fiscal através da redução do gasto público. Em suma, as políticas de ajuste ocorridas na década de 1980 fizeram parte de um movimento de ajus- te global, caracterizado por uma postura hierárquica das relações econô¬ micas e políticas internacionais. Durante o período, o Banco Mundial e o FMI passaram a formular e difundir uma agenda para a saúde baseada nesses novos princípios. O modo de difusão dessa agenda entre os organismos de cooperação internacional e a diversidade das respostas que vem suscitando não são suficientemente conhecidos e mereceriam análise mais aprofundada. Contribuição importante é apresentada em estudo realizado por Costa & Mello (1994). Segundo os autores, a partir da década de 1980, o 'paradigma da economia da saúde', baseado nos princípios da focalização e da seletividade, passou a orientar a ação de organismos como o Banco Mun- dial, contrapondo-se ao tradicional 'paradigma da saúde pública', que ori- entou historicamente as iniciativas da OPAS, OU a sua associação ao desenvolvimentismo na década de 1950. Entretanto, os efeitos dessa política e sua efetivação não estão dados a priori, dependendo da capacidade dos de- mais atores apresentarem alternativas para os problemas contemporâneos de sustentação das políticas sociais. A questão mais relevante, para os propósitos desta seção, consiste em identificar a possibilidade de dissensos e respostas diferenciadas às propostas de ajuste neoliberal para a área de saúde. Historicamente a OPAS legitimou-se como organismo de cooperação internacional, a partir da criação de diversos fóruns, nos quais era possível o estabelecimento de uma agenda de saúde pública comum para os países latino-americanos, em que pesem controvérsias científicas e políticas. As Conferências Pan-Americanas de Saúde e o Boletim cumpriram papel importante para a consecução de tais objetivos e influenciaram, pode-se dizer, a gestação de uma cultura institucional e profissional. Não seria dema- siado sugerir que, em muitos momentos da história desta instituição, interes- ses de grupos profissionais e de comunidades científicas tiveram um peso tão relevante quanto os interesses nacionais dos países que a integram. Isso apenas indica a complexidade do tema da formação e difusão de agendas para a área de saúde, o que não pode ser adequadamente avaliado, levando- se em conta apenas as propostas de ajuste econômico. O que mencionei como proposta dissonante está relacionado à importância atribuída por este organismo a princípios como equidade e universalidade de acesso a bens e serviços, que seriam constitutivos do paradigma da saúde coletiva. É a partir dessa compreensão que pode ser mais bem avaliado o documento "A saúde pública nas Américas", em processo de discussão pe- los países do continente (documento da 126a sessão do comitê Executivo, 1994). Decorreu de visão particular sobre a reforma setorial da saúde nos países americanos e da proposição de uma metodologia de acompanha- mento das 'funções essenciais de saúde pública' em sua relação com o forta- lecimento da função dirigente da autoridade sanitária. Seu ponto de partida pode ser identificado na crítica à concentração dos processos de reforma do setor saúde nas mudanças estruturais, financeiras e organizacionais dos siste- mas de saúde e de ajustes na prestação dos serviços aos indivíduos. Ressalta- se, entre outros aspectos, a pequena atenção dedicada à saúde pública. Entre os objetivos da iniciativa "A saúde pública nas Américas", destacam-se: pro- mover conceito comum de saúde pública e suas funções essenciais nas Améri- cas; criar metodologia para avaliação; propor um plano continental de ação para fortalecer a infra-estrutura e melhorar a prática de saúde pública. Outra questão importante consiste na afinidade entre algumas pro- postas, como, por exemplo, a redefinição do papel do Estado e a descentralização política. A redefinição do papel do Estado vem favorecen- do o processo de descentralização, tendo por base a defesa de participação mais ativa e direta de instâncias estaduais e municipais no processo decisório e na gestão de responsabilidades até então exclusivas do poder central. A redemocratização, iniciada na década de 1980 na América Latina, impulsio- nou o processo de descentralização política, fiscal e administrativa e de 'res- tauração' do federalismo, juntamente com o compromisso de melhorar os serviços públicos e de promover a distribuição de renda. O debate sobre descentralização no âmbito da OPAS resultou na deli- beração pelo Conselho Diretor, em 1988, sobre a necessidade de rápida transformação nos sistemas de saúde por meio de estratégia para o desen- volvimento e consolidação dos Sistemas Locais de Saúde (SILOS). Esse proje- to tinha por finalidade descentralizar os serviços de prestação primária de saúde com o intuito de alcançar a meta de "saúde para todos", prevendo o aumento da cobertura e a ampliação dos serviços que estavam até então desativados. A OPAS promoveu e apoiou os esforços dos países em criar redes de sistemas locais de saúde que pudessem responder às necessidades espe- cíficas das comunidades. Propôs, então, um sistema descentralizado de ser- viços com três níveis de atenção e recursos que atuassem conjuntamente: 1) nível básico, local ou primário, responsável pelos serviços de saúde da comunidade e pela ampliação da cobertura; 2) nível intermediário ou regi- onal, no qual inclui serviços integrados de prevenção, cura e reabilitação em estabelecimentos hospitalares; 3) nível nacional, que compreende centros médicos e institutos de investigação científica altamente desenvolvidos {BOSP, v. 109, n. 5 e 6, nov. e dez. 1990; OPAS, 1992). No caso específico do Brasil, a federação, como instituição, e, no terreno próprio das políticas sociais, o gasto social como política pública, passaram por profundas transformações trazidas tanto pelo compromisso assumido com a redemocratização como pelo novo paradigma econômico. A proposta descentralizadora foi reforçada pela crítica ao padrão de prote¬ ção social construído pelos governos autoritários: hipercentralizado, institucionalmente fragmentado e iníquo do ponto de vista dos serviços e benefícios distribuídos. O objetivo era a correção das distorções do sistema
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