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Guias e Dicas
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Estado e Sociedade no Brasil, Notas de estudo de Administração Empresarial

apostila utilizada no curso

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 10/03/2010

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Baixe Estado e Sociedade no Brasil e outras Notas de estudo em PDF para Administração Empresarial, somente na Docsity! Jaime Antônio Scheffler Sardi Estado e Sociedade no Brasil Ouro Preto - Minas Gerais - Brasil 2009 PRESIDENTE DA REPÚBLICA Luiz Inácio Lula da Silva MINISTRO DA EDUCAÇÃO Fernando Haddad REITOR DA UFOP João Luiz Martins VICE-REITOR DA UFOP Antenor Rodrigues Barbosa Junior DIRETOR DO CEAD Jaime Antônio Scheffler Sardi VICE-DIRETORA DO CEAD Marger da Conceição Ventura Viana COORDENAÇÃO DA UAB/UFOP Tânia Rossi Garbin Gláucia Maria dos Santos Jorge COORDENAÇÃO DO CURSO DE ADMINISTRAÇÃO A DISTÂNCIA Jaime Antônio Scheffler Sardi COORDENAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CEAD Iracilene Carvalho Ferreira REVISORAS Elinor de Oliveira Carvalho Maria Teresa Guimarães CAPA E LAYOUT Danilo França do Nascimento DIAGRAMAÇÃO Alexandre Pereira de Vasconcellos Copyright © 2009. Todos os direitos desta edição pertencem ao Centro de Educação Aberta e a Distância da Universidade Federal de Ouro Preto (CEAD/UFOP). Reprodução permitida desde que citada a fonte. S244e Sardi, Jaime Antônio Scheffler. Estado e sociedade no Brasil / Jaime Antônio Scheffler Sardi. - Ouro Preto : UFOP, 2009. 107 p. ISBN: 978-85-98601-31-1 1. Estado. 2. Brasil - Ciência política. I. Universidade Federal de Ouro Preto. II. Título. CDU: 316.3:32(81) Catalogação: Sisbin/UFOP APRESENTAÇÃO Apresentação Caro Estudante, Neste fascículo, busca-se compreender um pouco mais da formação do Estado e da sociedade no Brasil. Trata-se de um assunto que permite infinitas interpretações, o que obriga o autor a fazer escolhas entre numerosos estudos existentes. Eis porque muitos trabalhos e autores eminentes não foram destacados. Estudar e fazer ciência é um processo interminável de tentar aproximar-se do real, de ler o mundo a partir do que se entende e a partir das leituras que outros fizeram. Os temas apresentados neste fascículo contemplam: 1.º - Uma retrospectiva das concepções clássicas de Estado, o que é indispensável para se estudar o Estado brasileiro. Sendo assim, foram selecionados Maquiavel, Lênin, Gramsci e Max Weber. 2.º - As primeiras aglomerações urbanas e o aparecimento das instituições de governo local com o modus vivendi. 3.º - A formulação de uma certa percepção do Brasil, a Sociedade e o Estado. Para isso se inclui uma resenha de Octavio Ianni sobre as interpretações do Brasil. 4.º - A questão do trabalho como eixo pelo qual também se pode interpretar o Brasil, incluídos conceitos do trabalho e um texto de Sérgio Buarque de Holanda sobre a sociedade mineradora. Consideramos que as diferentes maneiras de conceber e realizar trabalho estão na base da diferença econômica das sociedades. Bom Proveito. Prof. Jaime Antônio Scheffler Sardi Capítulo 1 Conceitos de Estado Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 10 e defender o Estado. • Racionalidade política: todos os meios são justificáveis para se atingir o fim político - manutenção do poder. • Ideologia ou manipulação do povo: a moral dos governantes é distinta da moral dos governados. (Para melhor compreender o que isso significa, pode-se traçar um paralelo exemplificando com uma ética de vendedor ou comerciante, que jamais falam mal do produto que vendem) Daí afirmar-se que a Política é considerada como possuidora de uma ética própria. • Segurança política: é concebida como um exército moderno que protege contra inimigos internos (conspiradores) e externos (outros principados). Niccolo Machiavel nasceu em 3 de maio de 1469, em Florença, Cidade- Estado que, na época, tinha primazia econômica e intelectual sobre as demais da Península Italiana. O pai era jurisconsulto e tesoureiro da Marca de Ancona. Há poucas notícias de sua juventude, todavia se sabe que, em 1494, era copista de um professor de literatura grega e latina, Marcelo Adriani. Aos 29 anos, Maquiavel foi nomeado segundo Chanceler da República de Florença e, em seguida, Secretário1. Em 1502, com a restauração dos Médici, Maquiavel foi privado de seu cargo de Secretário de Florença e exilado, em seguida. Quando, em 1513, houve uma conspiração para derrubar o Cardeal Giovanni de Médici, Maquiavel foi preso e torturado. Mais tarde foi anistiado pelo próprio cardeal, já Papa Leão X. Nesse repouso forçado Maquiavel escreveu as principais obras: O Príncipe, Os Discursos da Primeira Década de Tito Lívio, Os Sete Livros sobre a Arte da Guerra, As Comédias, A Vida de Castruccio Castracani. Uma vez recuperada a liberdade e as graças dos Médici, conseguiu do Cardeal Giulio de Médici o encargo remunerado de escrever a História Oficial de Florença, em nove volumes (Storie Fiorentine). Depois foi encarregado de inspecionar as fortificações de Florença e negociar com o Governador da Romanha. 1 - Secretário vem de secretariu, aquele que manipula os segredos do Estado, aquele que tem o poder da informação protegido na gaveta, um típico burocrata. Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 11 Em 1527, voltando de uma viagem à Cività Vecchia, adoeceu e morreu, sem ter recebido a absolvição dos pecados, conforme escreveu o filho Pero. Maquiavel elaborou uma teoria política combinando a experiência pessoal concreta de lidar com a res publica e um espírito de aguda observação do processo político, especialmente quanto ao modo como as decisões eram tomadas. É o que diz o Capítulo XV: (...) é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas. Do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz, aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar; e um homem que quisesse fazer profissão de bondade, é natural que se arruíne entre tantos que são maus. Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso segundo a necessidade. (Maquiavel, 1985, p. 138) Maquiavel descreve acontecimentos políticos com crueza e realismo. Para ele, quando o Estado se esfacela, prevalece a barbárie. Por isso qualquer ação com vistas a manter o Estado é válida. Aliás tinha uma certa obsessão pelos verbos mantenere e durare, repetindo-os em profusão. Preocupado com o poder (como ganhar, manter ou perder), afirma que o príncipe às vezes deve agir de forma radical, utilizando-se até da crueldade do cirurgião para evitar a desagregação política, já que os meios justificam os fins. A obra O Príncipe deve ser considerada um livro de ação política imediata, uma espécie de receituário, em que não se idealiza um Estado, um mundo e uma sociedade-modelo. Nela não se identificam elementos metafísicos, transcendentes ou imanentes. É pura práxis, realismo, movimento, ação concreta. Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 12 Além disso, pode ser incluída na lista dos mais importantes livros da História da Humanidade, junto com as Sutras Iogues dos Vedas de Patanjali, As Escrituras Budistas, A Bíblia, o Alcorão, Os Diálogos de Platão, a Divina Comédia, Dom Quixote de la Mancha, O Contrato Social, A Origem das Espécies, O Capital, Ulisses, as obras de Freud, entre outros, pela relevância e impacto causados. Maquiavel não foi um cientista contemplador, mas se envolvia com paixão diretamente nos acontecimentos políticos. Seu sonho - objetivo geral – era unificar os inúmeros reinos e principados da Península Itálica, freqüentemente submetidos a nações européias, como a França e a Espanha. No décimo primeiro capítulo de O Príncipe, declara haver cinco centros de poder na Península: o Papa, Veneza, o Rei de Nápoles, o Duque de Milão e os florentinos. Para Marcílio Marques Moreira, as obras de Maquiavel constituem um legado inestimável na evolução da trajetória da ciência política universal, considerando, porém, que não é fácil classificá-lo: é elitista e democrata a um só tempo; teórico empírico da força e ao mesmo tempo preconizador do domínio da lei sobre o Estado; determinista que se dobra à fortuna (sorte, oportunidade), mas defensor do livre-arbítrio incorporado à virtù; doutrinador da liderança para quem o consentimento das massas é a melhor garantia de estabilidade de qualquer regime; espectador objetivo do processo político, mas patriota apaixonado que aspira a redimir da desfortuna a Itália escrava e vituperada. (1979.) Publicado pela primeira vez em “Firenze. Die 10 Decembris 1513”, O Príncipe está divido em 26 capítulos, alguns curtíssimos, com meia página, como é o caso do primeiro. Eles estão enumerados a seguir: (para distribuição entre os alunos, para leitura e comentários) I - De quantas espécies são os principados e de quantos modos se adquirem. II - Dos principados hereditários. III - Dos principados mistos. IV - Por que razão o reino de Dario, ocupado por Alexandre, não se rebelou contra os sucessores deste. V - Da maneira de conservar cidades, ou principados que, antes da ocupação, se regiam por leis próprias. VI - Dos principados novos que se conquistam pelas armas e nobremente. Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 15 também a supressão das diferenças de classe e a oposição de classes. Por conseguinte, se tornará supérfluo, por não haver o que reprimir. Para Marx e Engels, de quem Lenin se diz herdeiro intelectual, o Estado é conduzido pela classe economicamente mais poderosa. Portanto é instrumento para subjugar a classe oprimida, tornando-se o direito uma forma de legitimação da exploração, isto é, de fazer com que os oprimidos concordem com a opressão. A seguir, são destacados fragmentos de Engels, da obra Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (.........), que o próprio Lenin cita em O Estado e a Revolução (.....): Como o Estado nasceu da necessidade de refrear as oposições de classe, mas como nasceu, ao mesmo tempo, em meio ao conflito dessas classes, ele é, via de regra, o Estado da classe mais poderosa, daquela que domina do ponto de vista econômico e que, graças a ele, se torna também classe politicamente dominante e adquire, assim, novos meios para esmagar e explorar a classe oprimida. Não somente o Estado antigo e o Estado feudal foram os órgãos de exploração dos escravos e dos servos. Mas o Estado representativo moderno é o instrumento da exploração do trabalho assalariado pelo capital. (O Estado e a Revolução, p. 31) O Estado (...) é a confissão de que esta sociedade está envolvida numa insolúvel contradição consigo mesma, tendo se cindido em oposições inconciliáveis que ela não pode conjurar. Mas para que os elementos antagônicos, as classes com interesses econômicos opostos, não se consumam, elas e a sociedade, numa luta estéril, impõe-se a necessidade de um poder que, colocado aparentemente acima da sociedade, deva atenuar o conflito, mantê-lo nos limites da “ordem”. (...) E este poder, nascido da sociedade, mas que se coloca acima dela e se torna cada vez mais estranho a ela, é o Estado. (Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, p. 177) E Lenin também afirma: Segundo Marx, o Estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão de uma classe por outra; é a criação de uma ordem que legaliza e fortalece esta opressão, diminuindo o conflito das classes”. (O Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 16 Estado e a Revolução, p.25) O Estado é a organização especial de um poder: é a organização da violência destinada a esmagar uma certa classe. (O Estado e a Revolução, p.43) De forma sintética, Lenin afirma que as instituições mais características do estado são a burocracia e o exército permanente, cujo fortalecimento sempre corresponde à ampliação de estruturas encarregadas de reprimir o proletariado, tanto nas monarquias quanto nas repúblicas. Diz que o exército e a burocracia são como parasitas sobre o corpo da sociedade burguesa, já que não participam do processo produtivo. Assim, o Estado e sua burocracia desaparecem quando não há mais nada a reprimir ou tentar conciliar. 1.3 - GRAMSCI Antônio Gramsci (1891-1937), intelectual italiano de vertente marxista, ficou preso pelo fascismo durante onze anos, morrendo no cárcere. Suas principais obras são: Concepção Dialética da História, Os Intelectuais e a Organização da Cultura, Literatura e Vida Nacional. Gramsci, ultrapassando Lenin, por ampliar e alargar as idéias, interpretou Marx e Engels. Assim, entende o Estado também como elemento de força sobre a sociedade. Mas, como o Estado não é apenas o aparato repressor, isto é, a burocracia somada às forças armadas, ele é constituído não só pela Sociedade Política, que inclui esses aparatos, mas também pela Sociedade Civil. Isso significa, em outras palavras, uma visão de Estado regulado, no qual há não só preocupação em reprimir e anular coercitivamente conflitos, mas preocupação e atividade no sentido de produzir ideologias que sedimentem consensos a favor do que preconiza. Para a criação de consensos Gramsci usa a palavra hegemonia4. Portanto uma classe é hegemônica quando exerce o poder coercitivo e quando o faz pela persuasão, pelo consenso. Os intelectuais elaboram ideários, isto é, conjuntos de idéias que, veiculados na sociedade, geram consensos, adesões. Em vista disso, Gramsci considera inseridos nos partidos políticos os que se empenham em produzir adesão, um esteio central. Sendo assim, as perguntas principais passam a ser para quem e para que se formulam certas idéias. O Estado é o conjunto complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente justifica e mantém os aparatos coercitivos, além de conseguir o consentimento ativo dos governados. 4 - A palavra significa supremacia, predominância. Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 17 Gramsci registra que a escola burguesa é classista, pois prepara seus próprios intelectuais, além de infiltrar-se nas classes populares, para cooptar os melhores elementos, que, uma vez assimilados, passam a aderir-se aos valores burgueses. Organizado e movido pela paixão, o partido político é, pois, o moderno príncipe, que exerce ação política sobre as instituições de natureza cultural- ideológica, com o objetivo de unificar, dirigir e coordenar a sociedade. Dito de outra maneira: trata-se de um processo de aquisição da hegemonia. Para Gramsci, portanto, a tomada do Estado não se dá apenas pela revolução leninista, mas também pela via da sociedade civil. Gramsci advoga que a existência do partido político pressupõe a confluência de três elementos: 1.º - O elemento difuso formado de homens comuns, médios, cuja participação é oferecida pela disciplina e pela fidelidade, e não pelo espírito criador e altamente gerencial. 2.º - O elemento principal de coesão, um tema centralizado no campo nacional, que torna eficiente e poderoso um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, representariam zero ou pouco mais. Este elemento é dotado, pois, de uma força altamente coesiva, centralizadora, disciplinadora e também inventiva. 3.º - O elemento médio, que articula o primeiro com o segundo, colocando-os em contato, não só físico, mas moral e intelectual. Portanto o partido político nunca fica completo, pois é um permanente vir a ser. Isso porque está sempre empenhado em conquistar adesões, assumir novas tarefas, representar novos segmentos. Sendo assim, ele só se torna completo quando, extinto, conta a sua história. É um paradoxo real, pois a completude - perfeição - apenas é atingida quando o partido político passa a ser inútil, sem missões a cumprir. Portanto extinto. Ele luta para dirimir os problemas e, em conseqüência, desaparecer. Outra dimensão interessante do pensamento de Gramsci diz respeito à educação. O Estado, via de regra, é que patrocina o ensino. Então não haveria espaço para se pensar diferente em relação ao que o Estado orienta, não haveria espaço para mudanças, transformações, novas concepções de mundo. Ocorre, segundo Gramsci, que a escola permite brechas, até a infiltração da crítica ao próprio Estado, crítica que pode contribuir para a Estado e Sociedade no Brasil Conceitos de Estado Página 20 de transformação de um homem em chefe político. A política exige ainda senso de proporção - distanciamento, neutralidade sobre os fatos. Os marxistas entendem o partido político como instrumento de mobilização social, como uma associação cujo objetivo é a tomada do poder. Em todos os lugares, para Weber, a política é anterior ao Estado, mesmo que atualmente se entenda a atividade política como reduzida ou vinculada à atividade estatal. Para Weber, há duas maneiras de se fazer política: viver da política ou viver para a política. O elemento econômico é que distingue aquele que vê na política uma permanente fonte de renda, em contraposição à visão missionária da política. Por isso, o político em condições normais, deve ser economicamente independente das vantagens que a atividade política possa lhe proporcionar. É uma visão de certa forma elitista e exclusivista, já que, segundo ela, somente quem possui fortuna pessoal, auto-suficiência financeira, pode se dedicar a essa atividade. Weber também é visto como institucionalista, por considerar que as transformações se dão quando politicamente se erigem instituições que determinam os acontecimentos. Já Marx e seus adeptos acham que a economia, e não a política, é que determina os acontecimentos. ATIVIDADES 1. Por que da obra de Maquiavel surgiu a idéia de que a política tem uma ética própria? 2. Os EUA são país hegemônico pelas armas e pelas idéias atualmente. Responda à luz das idéias de Gramsci: Por quais razões se diz que os EUA perderam a hegemonia espiritual nos últimos anos, ficando apenas com a hegemonia das armas? Qual das hegemonias você acha mais efetiva? 3. Por que o Estado, a longo prazo, deve desaparecer, na visão de Lênin, Marx e Engels? 4. Weber é institucionalista, isto é, considera que o nível político e a vontade humana determinam os acontecimentos. Já Marx entende que o nível econômico é determinante dos acontecimentos. Pesquise mais sobre o toque de idéias desses clássicos. Referências Bibliográficas Página 21 Referências Bibliográficas GERTZ, René (org.). Max Weber & Karl Marx. São Paulo: Hucitec, 1994. GRAMCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. JORGE, Wilson Edson.“O Conceito de Estado: síntese das teorias formuladas por Machiavel, Lenin, Gramsci, Weber”. In: Sinopses 8. Revista da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. São Paulo: dezembro de 1985. LENIN, Vladimir Ilitch. Lênin: Política. Florestan Fernandes (org.). São Paulo: Ática, 1978. MACHIAVELLI, Niccolo. O Príncipe. Trad. de Lívio Xavier. Rio de Janeiro: Tecnoprint-Ediouro, Coleção Universidade, 1985. MAQUIAVEL .O Príncipe. São Paulo: Nova Cultural, 1999. MOREIRA, Marcílio Marques. “Pensamento Político de Maquiavel”. In: Teoria Política. Cadernos da UNB. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1979. QUINTANEIRO, Tânia & BARBOSA, Maria & OIVEIRA, Márcia. Um Toque de Clássicos: Marx, Durkheim, Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. RIDOLFI, Roberto. Vita di Niccolò Machiavelli. Roma: Angelo Belardetti Editore, 1954. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 25 Neste capítulo estudamos a formação das primeiras aglomerações urbanas no território brasileiro. A rigor, ao estudar a formação histórico-social das cidades, estamos estudando a formação da própria sociedade. O texto deste capítulo foi produzido ao longo de semestres, como apostilas para a disciplina Gestão Pública, do Departamento de Engenharia de Produção, da Escola de Minas da Universidade de Ouro Preto sendo que primeiramente foi oferecida para a Secretaria Estadual de Minas e Energia, do Estado de Minas Gerais, em 2001. Por coincidência, durante uma dessas aulas, exatamente em 11 de setembro de 2001, trágicos acontecimentos abalavam os EUA. Essas apostilas intitulavam-se Gesta Municipalia (Governo das Cidades). E iniciavam-se com uma retrospectiva referente às cidades européias, para, depois, destacar que o Brasil é uma invenção portuguesa, um país sui generis, por razões apresentadas. GESTA MUNICIPALIA 1 - A civita (cidade) surgiu como entreposto comercial de produtos agrícolas e evoluíu para centro de produção industrial de mercadorias. Diz Marx: A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em imensa acumulação de mercadorias, e a mercadoria, isoladamente considerada, é a forma elementar dessa riqueza. (...) o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho gasto durante sua produção, (...). (O Capital, Livro I: O Processo de Produção do Capital, Capítulo I: A Mercadoria). Portanto a cidade capitalista tornou-se uma aglomeração concentrada na mercadoria mão-de-obra. Basta observar os imensos bairros operários que os economistas, de modo geral, denominam de local da reprodução da força de trabalho, para se ter mais clareza a respeito do que quis dizer Karl Marx. 2 - Para os brasileiros, também considerados herdeiros da chamada Civilização Ocidental, tudo teve início, em matéria de formação da urbe, na bacia do Mediterrâneo, onde o mundo começava e terminava. E Portugal, que “inventou o Brasil”, foi, na verdade, citado na Bíblia, no Livro de Jonas, Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 26 cerca de sete séculos antes de Cristo. O personagem Jonas - aquele que ficou três dias no ventre da baleia - queria esconder-se de Deus, e fugiu para fora do mundo, foi para Tarsis, hoje uma cidadezinha do Algarve, na costa atlântica portuguesa: E veio a palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim. E Jonas se levantou para fugir de diante da face do Senhor para Tarsis; e, descendo a Jope, ahou que um navio ia para Tarsis; pagou pois a sua passagem, e desceu para dentro dele, para ir com eles para Tarsis, para longe da face do Senhor.(Jonas, 1:1,2,3) Até o século X, Marselha, o grande porto da Gália, centralizava o comércio do Mediterrâneo. A partir do século XI, Veneza (Sul da Europa) e Flandres (Norte) assumiram relevância econômica. 3 - Por volta do ano 1000, houve ressurgimento do comércio e crescimento populacional em toda a Europa, como resultado do fim das grandes invasões escandinavas e húngaras. Os bispos proclamaram a Paz de Deus em 989 (Pax Dei). E os mouros ficaram na Ibéria de 711 a 1492, ano da retomada de Granada pelos cristãos e do descobrimento da América. 4 - Havia cidades na Europa medieval, antes do século X? Considerando-se que cidade é um espaço cuja população, em vez de viver do trabalho da terra, se consagra ao exercício do comércio e da indústria, a resposta é não. Além disso, até então, na grande maioria das vezes, as comunidade não gozavam de personalidade jurídica nem tinham instituições locais próprias. O sentido moderno de cidade inclui a existência de uma burguesia industrial e de organização municipal. 5 - Toda sociedade sedentária, por primitiva que fosse, experimentava a necessidade de fornecer espaços de reunião, lugares de encontro, arranjos do mercado, assembléias políticas e judiciárias, artefatos e lugares coletivos, mecanismos militares de defesa. Além disso, em torno de palácios, conventos, portos, reuniam-se mercadores e artesãos, sendo que parcela significativa deles era de judeus e árabes. 6 - Na Idade Média, aproximadamente no ano 1000, começou o processo de consolidação do Condado Portucalense, cuja povoação principal se situava Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 27 próximo da foz do rio Douro. Não era mais um lugar fora do mundo, mas um entreposto no caminho do Sul para o Norte da Europa. Portugal, o primeiro estado-nação da Europa, teve o governo de D. Afonso Henriques reconhecido em 1179, com a presença das três classes sociais: clero, nobreza e povo. Além disso, herdou modelos de gestão municipal do Império Romano, do qual seu território fez parte. A gesta municipalia já era exercida, ou seja, havia um gestor para as instituições locais. 7 - O povo era constituído pelos vilões1: a) vilão rico do campo; b) vilão pobre do campo; c) vilão rico da cidade ou burguês; d) vilão pobre da cidade ou gente miúda ou raia-miúda (arraia-miúda). O vilão não tinha nobreza, mas podia viver e trabalhar como quisesse, onde quisesse, cobrando o preço que quisesse. O homem bom era o vilão rico do campo e da vila, que podia ocupar cargos nos concelhos2 municipais. 8 - As Ordenações Afonsinas ou simplesmente Ordenações do Reino, editadas em 1446, continham o estatuto das “repúblicas municipais”, pequenos “estados” que no conjunto formavam o Reino de Portugal. Tornando-se caducadas as Ordenações Afonsinas, vieram as Ordenações Manuelinas, que foram introduzidas no Brasil, com um capítulo especial sobre a organização das Câmaras Municipais, atribuições, funcionamento, número de oficiais do concelho, código eleitoral, direitos, liberdades e imunidades. Em 1580, com a incorporação de Portugal à Espanha, o rei Felipe II mandou reformá-las, mas as alterações foram praticamente insignificantes. 9 - Raymundo Faoro chama a atenção para o episódio da noite de 24 de abril de 1500, a primeira sexta-feira do descobrimento, quando o capitão Pedro Álvares Cabral conseguiu entrevista solene com os donos da terra, registrada pelo escrivão Pêro Vaz de Caminha, desnudando muitas intenções e prenunciando uma decepção: 1 - Vilão (ant.): que habita numa vila. 2 - Concelho: o município (do latim municipium, antiga designação romana). Hoje, o concelho é gerido por uma câmara municipal, órgão executivo. Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 30 minúsculos, as casas eram paródia grosseira da antiga morada romana: um vestíbulo exíguo, um atrium servindo ao mesmo tempo de cozinha, sala de jantar e de recepção; e uma alcova lateral, furna escuríssima mal revelada por uma porta estreita e baixa. Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa”. 14 - A Câmara Municipal no Brasil eram exatamente igual à de Portugal, composta por número variável de oficiais, os quais tinham atribuições executivas, legislativas e judiciárias. Até hoje, talvez como resquício cultural, parcela significativa dos vereadores, passam ao largo de legislar e fiscalizar, dedicando os mandatos a tarefas típicas de poder executivo, como preocupar-se com postes, bueiros, banheiros públicos, etc. Não havia o prefeito, que só apareceu com a República. O tesoureiro e o escrivão eram funcionários escolhidos pelos oficiais-vereadores, ou camaristas na época. Junto à Câmara ficava a cadeia. 15 - A Carta Régia que criou a Vila Boa de Goiás, de 1736, registra: “... se faça logo a eleição das pessoas que hão de servir os cargos da terra onde haverá dois juízes ordinários, e dois vereadores e um procurador do Concelho...” Portanto só as autoridades locais eram eleitas. 16 - O juiz de fora3 era funcionário da Coroa. Como a vara era um símbolo de poder e de proteção, os oficiais eram obrigados a usar uma, vermelha ou branca. Isso deu origem a expressões empregadas até hoje no Judiciário, como Vara do Crime, Vara Cível, Primeira Vara. Quando um juiz do Concelho a colocava sobre o ombro de uma pessoa, esta estava a salvo de arbitrariedades de outra autoridade, especialmente de representantes do Rei. 17 - Apenas o homem bom (vilão rico) podia ser eleito para a Câmara, o que excluía a arraia-miúda, que, porém, votava. A posse do eleito ocorria sempre na Primeira Oitava do Natal, ou seja, em Primeiro de Janeiro, e era dada pelo ouvidor geral, pela “carta de confirmação de usanças”. 3 - De fora porque estranho à administração municipal. Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 31 18 - De 1532 a 1822, isto é, durante 290 anos, na América Portuguesa Colonial, nunca uma Câmara foi fechada nem sofreu qualquer ato de força praticado pela Coroa, ela ou seus membros. Esse é um dado revelador de como a Coroa, mesmo distante, levava em conta esses senados municipais. (Ferreira; 1980) 19 - Em 3 de maio de 1823, na instalação da Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil, os vereadores da velha Câmara Municipal do Rio de Janeiro foram barrados à entrada.O Deputado Andrada Machado assim se manifestou sobre o fato: “Oponho-me [à entrada] porque as câmaras municipais não têm representação alguma; não são mais do que corpos elegidos por vilas, para administrar as suas rendas, com certas atribuições; mas nada têm que saiba a representação: tudo o que é representação nacional está em nós concentrada; em nós somente e em mais ninguém”. Ficando os vereadores fora da Sessão Constituinte inaugural, terminava o pacto República Municipal - Coroa Portuguesa. As novas forças políticas articuladas no governo nacional dispensaram-no. 20 - Até 1822 a Câmara Municipal não tinha sofrido conseqüências da redistribuição de funções: “[tinha] funções muito mais importantes do que as das modernas municipalidades. Assim é que, além das atribuições de interesse peculiar do município, exerciam elas funções hoje a cargo do Ministério Público, denunciando crimes e abusos aos juízes, desempenhavam funções de polícia rural e de inspeção da higiene pública, auxiliavam no policiamento da terra”. (Leal, 1975, p.62) 21 - Depois de 1828 as Câmaras Municipais passaram a ser tuteladas pelos Presidentes de Província, Ministros do Império e pelo Imperador. A Lei de Organização Municipal especifica, no artigo 71, as respectivas funções, com perda de competência judiciária: “do centro urbano, estradas, pontes prisões, matadouros, abastecimento, iluminação, água, esgotos, saneamento, proteção contra loucos, ébrios e animais ferozes, defesa sanitária animal Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 32 e vegetal, inspeção de escolas primárias, assistência a menores, hospitais, cemitérios, sossego público, polícia de costumes, tranqüilidade, segurança, saúde e comodidade dos habitantes, asseio, elegância e regularidade externa dos edifícios e ruas das povoações.” ( Leal, 1975, p.75) Diz o artigo 78 da referida Lei: “É proibido porém todo o ajuntamento para tratar, ou decidir negócios não compreendidos neste Regimento, como proposições, deliberações e decisões feitas em nome do povo, e por isso, nulos, incompetentes, e contrários à Constituição do Império, art. 167, e muito menos para depor autoridades, ficando entendido, que são subordinadas aos Presidentes das províncias, primeiros administradores delas.” ( Leal, 1975, p.75) Mas, em 1834, por Ato Adicional de 12 de agosto, as Assembléias Provinciais passaram a exercer tutela sobre as Câmaras Municipais, em vez dos Presidentes de Províncias (delegados do Imperador). 22 - Em 1835, a Assembléia de São Paulo instituiu o Prefeito de livre nomeação, mas conservou a faculdade de nomear e demitir funcionários, até o próprio Prefeito, entendido como um funcionário técnico, administrador, gestor, uma espécie de secretário geral, sem autoridade política, mantida esta pelos vereadores. Foi a primeira experiência de separação entre a função legislativa e a função executiva. Algumas comunas não aceitaram essa situação, como Ubatuba e São Sebastião: “a resolução tem contribuído para serem elevados à eminência social indivíduos que o não devera, e demitidos outros que aliás seus serviços e conduta nunca libada faz honra ao seu caráter, por isso que se deve pedir que o Governo só possa nomear e demitir tais empregados sob propostas, e informações das respectivas Câmaras.” (Anais da Câmara de Ubatuba) 23 - Em 1890, no primeiro ano da República, os Estados, antigas Províncias, passaram a ter liberdade para legislar sobre a autonomia municipal. Assim, muitas Constituições Estaduais estabeleciam sistemas de fiscalização sobre as finanças. Podia haver eleição de Prefeitos, com separação entre funções Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 35 dormem o mesmo sono, sonham os mesmos sonhos, comem as mesmas comidas, comentam os mesmos assuntos, esperam o mesmo correio, gabam a passada prosperidade, lamuriam do mesmo presente e pitam longos cigarrões de palha, matadores do tempo.” (Lobato, 1972, p.7). 31 - Maria Graham, em Diário de Uma Viagem ao Brasil, apresenta esta descrição, feita a bordo de um navio ancorado na Bahia de Todos os Santos, em Salvador, em 17 de outubro de 1821: “Esta manhã, ao raiar da aurora, meus olhos abriram-se diante de um dos mais belos espetáculos que jamais contemplei. Uma cidade, magnífica de aspecto, vista do mar, está colocada ao longo da cumeeira e na declividade de uma alta e íngreme montanha. Uma vegetação riquíssima surge entremeada com as claras construções e além da cidade estende-se até o extremo da terra, onde ficam a pitoresca igreja e o Convento de Santo Antônio da Barra. Aqui e ali o solo vermelho vivo harmoniza-se com o telhado das casas. O pitoresco dos fortes, o movimento do embarque, os morros que se esfumam a distância, e a própria forma da baía, com suas ilhas e promontórios, tudo completa um panorama encantador; depois, há uma fresca brisa marítima que dá ânimo para apreciá-lo, não obstante o clima tropical.” Mas, na cidade, a paisagem deslumbrante deu lugar a uma decepção: “A rua pela qual entramos através do portão do arsenal é, sem dúvida nenhuma, o lugar mais sujo em que eu jamais estive. É extremamente estreita e, apesar disso, todos os artífices trazem seus bancos e ferramentas para a rua. Nos espaços que deixam livres, ao longo da parede, estão vendedores de frutas, salsichas, chouriços, peixe frito, azeite e doces, negros trançando chapéus ou tapetes, cadeiras, cães, porcos, aves domésticas, sem separação nem distinção. Como a sarjeta corre no meio da rua, tudo ali se atira das diferentes lojas, bem como das janelas. Ali vivem e se alimentam os animais. (...) As casas são repugnantemente sujas. (...) O andar térreo consiste geralmente em celas para os escravos, cavalariças etc.., as escadas são estreitas e escuras e, em mais de uma casa, esperamos numa passagem enquanto os criados corriam a abrir portas e janelas das salas de visita e a chamar as patroas que gozavam os trajes caseiros em seus Estado e Sociedade no Brasil As Primeiras Aglomerações Urbanas e o Aparecimento das Instituições de Governo Local Página 36 quartos. Quando apareciam, dificilmente poder-se-ia aceitar que a metade delas eram senhoras da sociedade.Como não usam nem coletes nem espartilhos, o corpo torna-se quase indecentemente desalinhado.” (Graham, 1956. ps.144, 145 e 148) ATIVIDADE (REALIzAR UMA DAS CITADAS A SEGUIR.) 1 - Ler e comentar “A cidade comercial: a corte barroca e o funcionário”, de Raimundo Faoro. In: Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro, Capítulo III (O Congelamento do Estamento Burocrático), qualquer edição. 2 - Escolher um autor dentre os citados neste capítulo, ler a obra indicada e fazer um apanhado das principais idéias. Referências Bibliográficas Página 37 Referências Bibliográficas DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Círculo do Livro, 1985. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo/Publifolha, 2 vol., 2000. FERREIRA, M. Rodrigues. As Repúblicas Municipais no Brasil. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo, 1980. GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e o do Brasil. São Paulo, Planeta do Brasil, 2007. GRAHAM, Maria. Diário de uma Viagem ao Brasil (1822). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. HOLANDA, Sergio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. PRADO JUNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1963. LEEDS, Anthony & LEEDS, Elizabeth. A Sociologia do Brasil Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. LOBATO, Monteiro. Cidades Mortas. São Paulo: Brasiliense, 1972. LOJKINE, Jean. O Estado Capitalista e a Questão Urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981. MARX, Karl. O Capital. Livro I “O Processo de Produção do Capital”, Capítulo I “A Mercadoria”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. MARX, Murillo. Cidade Brasileira. São Paulo: EDUSP, 1980. PAULA, Tanya Pitanguy. Abrindo os Baús: Tradições e Valores das Minas e das Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. PIRENNE, Henri. As Cidades da Idade Média. Lisboa: Publicações Europa- Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 41 CAPíTULO 3 - PRIMEIRA PARTE Certamente você, ao longo da vida, deparou com indagações deste tipo: Em que sociedade eu vivo? Por quais razões o destino quis que eu existisse neste tempo e lugar? Que lugar é este? E se eu tivesse outra língua, outra cultura? Pois bem, nosso desafio, neste capítulo, é levantar singularidades sobre a sociedade à qual estamos inseparavelmente vinculados, tal qual um peixe no aquário. Mas convém destacar que as percepções dependem dos percebedores: cada qual com seu acúmulo de leituras, de interações, de experiências e de contatos. Charles De Gaulle, já em idade avançada, depois de décadas de vida pública francesa, tendo a direção do governo francês por anos a fio, declarou: “Depois de tantos anos construí uma certa idéia da França”. Acrescentamos, pois, que a percepção é apenas uma aproximação do real. No Capítulo Segundo, registramos impressões de vários autores, que organizamos por critério cronológico e pelos vínculos com as formações urbanas. E as nossas impressões com referência ao país? Portanto – sugestão - vamos apresentá-las neste capítulo, tomando por referência as letras do alfabeto, para que não se tornem uma ladainha sem fim. Portanto vamos executar o sugerido, destacando o tema de cada comentário. A - APARELHO BUROCRáTICO ESTATAL: Foi transplantado. Pedro Álvares Cabral, na sua expedição, trouxe não apenas uma mentalidade de cobiça mas orientações para fundar um departamento estatal, apêndice de Portugal. O Príncipe Regente português D. João, 308 anos depois, trouxe a corte, com mais de dez mil ajudantes, acontecimento sem igual de transferência da sede de um Reino. B - A VOz DO BRASIL: Programa radiofônico instituído há 70 anos e ininterruptamente veiculado em cadeia nacional, tem um traço de brasilidade dos mais característicos. Portanto constitui um elemento unificador, pelas informações que transmite e pela oportunidade de uso da língua portuguesa para as populações dos mais recônditos rincões deste país-continente. O programa destaca ações das autoridades e esforça-se por extrair aspectos positivos dos acontecimentos, servindo ao Estado como ferramenta de legitimação. Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 42 C - CARNAVAL: Tem marcas das raízes africanas do Brasil, onde está a segundo maior população negra do Planeta, só menor que a da Nigéria. D - MESTIÇAGEM: Biologicamente, diz-se, é vantagem. O Brasil é, em números absolutos, o maior encontro étnico. Observando-se os traços físicos dos brasileiros, salta aos olhos origem múltipla, que permite reconstruir a história da formação do Brasil, a partir dos corpos. E - FAVELA: O fenômeno da moradia precária, sub-humana, inexistente nos mapas formais das cidades, que concentra a mão-de-obra da industrialização acelerada, é uma “brasilidade”. Graças a um mecanismo semântico, a palavra, que designa uma árvore encontrada também nas colinas da região do Arraial de Canudos, no interior da Bahia, passou a designar o morro ocupado, no retorno à capital federal, por soldados que combateram Antônio Conselheiro. Como não tinham onde morar, tiveram que construir barracos nos morros cariocas. Por extensão, a palavra passou a designar um tipo de conjunto de habitações de construção precária. Para aprofundamento do assunto, aconselha-se a leitura de Sociologia do Brasil Urbano, de Anthony e Elizabeth Leeds. F - NOVELA: Chama a atenção a proporção de tempo que a TV brasileira reserva a esse tipo de programa. É interessante para os observadores atentos que as tramas repetem a mentalidade historicamente consolidada segundo a qual o trabalho não costuma ser visto como virtude. Assim, além de não retratar de forma positiva o trabalho duro, árduo, repetitivo, como meio de ascensão e progresso, enfatizam golpes de herança, golpes do baú, estratégias desbragadas de puro alpinismo social, grande número de serviçais pobres tentando seduzir ricos, pessoas maniqueístas, inteiramente boas ou inteiramente más, ricos generosos com os pobres, ricos malvados e assim por diante. Possivelmente um retrato muito próximo do que a sociedade é de fato. G - VIOLêNCIA E CRIMINALIDADE: Dados respaldados pela ONU, convalidados pelo Ministério da Justiça do Brasil e sistematizados pelo suíço Keth Krause, registram que 10% dos homicídios do mundo acontecem no Brasil, com aproximadamente 48 mil mortes por ano, cifra trágica renovada anualmente ao longo da última década. Resultam tantas mortes da violência urbana, da criminalidade, de grupos de criminosos, organizados ou não. O Brasil, em números relativos e absolutos, está entre os países de maior índice de violência. Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 45 altíssima desigualdade social, oriunda do latifúndio e da escravidão. Aconselha-se a leitura do capítulo “Nação e Desigualdade”, de Macroeconomia da Estagnação, obra de Luiz Carlos Bresser Pereira. P - BAIxA ATIVIDADE EMPRESARIAL: Observa-se que o Brasil é praticamente desprovido de empresas transnacionais. Além do fator cultural, a causa tem a ver com uma sociedade estatalmente organizada e articulada. A política de juros altos e de carga tributária elevada, ao longo do século XX, assim como a ausência de poupança interna desestimularam o investimento produtivo empresarial. Por outro lado, pesquisas de mídia têm divulgado, de forma recorrente, que o Brasil está colocado no grupo de países que possuem elevado nível de exigências burocráticas para abertura de empresas. São numerosos carimbos, assinaturas, formulários, registros, além de, pelo menos, 150 dias exigidos de quem se propõe a abrir uma empresa. Entre esses motivos está também a herança da mentalidade ibérica, pródiga nessas exigências. q - PRECARIEDADE CRôNICA DOS SERVIÇOS PÚBLICOS: Tem várias raízes: 1 - O grosso do recurso público é canalizado para contratos privilegiados, para “os donos do poder”. 2 - É atitude recorrente ignorar as massas desprovidas de posse, os esquecidos, os sem voz e os usuários. 3 - Os servidores são vistos como subalternos que, mal pagos e mal treinados, muitas vezes atendem mal. 4 - Cria-se círculo vicioso do subdesenvolvimento. Vale dizer que legislação recente exige a realização de concursos públicos, o que diminui o apadrinhamento, a sinecura, o nepotismo. R - INDOLêNCIA: A idéia da preguiça, da falta de determinação e de disciplina está definitivamente ligada, na literatura brasileira, a Macunaíma, da obra de Mário de Andrade de mesmo nome. Na apresentação do “herói sem nenhum caráter”, está subjacente, segundo uns, a idéia de que o Brasil, por ser um ajuntamento de raças, se descaracterizou, juntando defeitos. Quanto a dois personagens de Walt Disney, Zé Carioca é o que vive de expedientes, sem horários, indolente, voltado para a diversão, o samba, a malandragem. Ele se contrapõe ao Tio Patinhas, altamente disciplinado, Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 46 pão-duro, férreo poupador. S - PAíS-CONTINENTE: O Brasil tem território vasto, que ocupa metade da América do Sul, com mapa em formato de pernil, que os acontecimentos pós-Independência não lograram fragmentar em países de pequena extensão, como aconteceu com os países hispânicos vizinhos. Entre os motivos, destaca-se a presença de uma monarquia mediadora, como elemento unificador, pacificando as tentativas separatistas (Cabanagem, no Amazonas; Balaiada, no Maranhão; Sabinada, na Bahia e Farrapos, no Rio Grande do Sul). Darcy Ribeiro, em Teoria do Brasil considera estes motivos como razão para a extensão territorial do Brasil: 1º - o núcleo de povoamento em Minas, no centro do território, articulando um mercado interno de transações entre o Norte e o Sul; 2º - o surgimento da riqueza gerada pelo café que, por sua vez, propiciou a industrialização; 3º - a vinda dos imigrantes europeus para substituir o trabalho escravo, ajudando decisivamente para manter o país unificado sob comando de uma monarquia relativamente frágil. Aconselha-se a leitura do Capítulo III, “Ordenações Sociopolíticas” e “O Estado Nacional”, da obra Os Brasileiros: Teoria do Brasil, de Darcy Ribeiro; T - FUTEBOL: Já se falou que o Brasil é uma pátria de chuteiras. O futebol é um esporte de regras de fácil compreensão, praticado até nos lugares mais carentes, na rua, no terreno baldio, até na ladeira. Teoricamente, basta uma bola, uma marca de trave para fazer a bola atravessar e quatro linhas imaginárias. U - HERANÇA MONáRqUICA. Assim como ocorre com o Catolicismo, em todos os lados, no Brasil estão resquícios da Monarquia. Este é o único país do Novo Mundo que, com a independência, não se tornou República. Até hoje as residências dos governantes são chamadas de palácios. O Carnaval, maior festa popular, engrandece os monarcas: populares se fantasiam de rei e rainha, imperatriz, príncipe e princesa; algumas escolas de samba têm nomes sugestivos (Império Serrano, Imperatriz Leopoldinense). A própria moeda, o real, tão presente no cotidiano, evoca a monarquia. V - CONGRESSO DISCREPANTE: Uma observação que se pode Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 47 fazer sobre o Brasil é que, considerando-se os membros do Congresso Nacional, de 34% a 45% são empresários, desde a promulgação da Constituição de 88. Obviamente o Congresso não é exatamente espelho da sociedade brasileira. Para maiores informações, aconselha-se a leitura do Relatório da Fundação Konrad Adenauer, Elites Econômicas e Poder Potitico no Brasil. x - O qUADRO A SEGUIR MOSTRA O FUNCIONAMENTO ELEITORAL BRASILEIRO EM VáRIAS éPOCAS: Tabela 1 - Regimes Eleitorais Período Período Regime Político Sistema Partidário 1822-1889 67 anos Monarquia Bipartidarismo: Liberais e Conservadores 1889-1930 41 anos República Velha Oligárquica Ausência de sistema partidário nacional. Partido único por Estado 1930-1937 7 anos Período de transição Partidos estaduais extintos. Ausência de sistema partidário nacional. Formações partidárias embrionárias 1937-1945 8 anos Estado Novo (Ditadura Vargas) Partidos políticos vedados e Congresso fechado 1945-1964 19 anos Democracia multipartidária Principais partidos: PSD, UDN e PTB 1964-1985 21 anos Ditadura militar Bipartidarismo: Arena e MDB 1985-dias atuais 24 anos Democracia (Nova República) Multipartidarismo. Principais partidos: PMDB, PSDB, PT, DEM, PP, PDT, PTB,PSB, PR, PPS e PC do B z - PAíS POPULOSO: O Brasil abriga a quarta maior população Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 50 Assim, estamos a um passo da tese de que a História do Brasil é uma história de revoluções brancas, uma história de conciliação e reforma. O clima intectual em que se forma difunde a tese do luso-tropicalismo como uma forma civilizatória original, diferente da hispano-americana, da anglo- americana e de outras, uma forma original, diferente e implicitamente caracterizada como a melhor. Nesta orientação, apesar de não serem unânimes, situam-se Gilberto Freyre, René Ribeiro, Thales de Azevedo, José Lins do Rego, Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Roberto da Matta e outros. Ianni diz que esta vertente é complementar à vertente do Estado demiurgo da Sociedade. Embora a sociedade seja inocente, boazinha, cabe ao Estado administrá-la, orientá-la, protegê-la. Por outro lado, justifica-se que o próprio Estado seja patriarcal, oligárquico, benfeitor, punitivo, deliberante, onisciente, ubíquo. 3.º GRUPO DE INTéRPRETES: CONSIDERAM OS TIPOS IDEAIS Trata-se de uma visão culturalista, segundo Ianni. É como se a História do país se tivesse desenvolvido em termos de signos, símbolos, emblemas, figuras, valores e ideais, sem que se revelassem relações e processos, estruturas de apropriação e dominação, nexos de movimentos. Incluem-se estas interpretações do homem: bandeirante, sertanejo, gaúcho, índio, desbravador, jeca-tatu, negro, imigrante, macunaíma, martim cererê3, saci-pererê4, preguiça, luxúria, homem cordial, pedro-malasartes5. Este grupo de intérpretes é composto por Sérgio Buarque de Holanda, Ribeiro Couto, Graça Aranha, Paulo Prado, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, da Semana de Arte Moderna de 22, e de certa forma Rui Barbosa, Silvio Romero e José de Alencar. Diante da complexidade de explicar a sociedade, eles recorrem às interpretações citadas, para dar algum ordenamento às contradições. 3 - Martim Cererê - poema de Cassiano Ricardo. 4 - Saci Pererê - personagem da mitologia brasileira. 5 - Pedro Malasartes - personagem da cultura portuguesa que representa a astúcia. Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 51 4.º GRUPO DE INTéRPRETES: CONSIDERAM O PAíS CATóLICO Para Ianni, o Catolicismo é uma presença poderosa no pensamento, na cultura e nas formas de sociabilidade, atravessando o período de Colônia, Monarquia e República. A simbologia da Primeira Missa remete à fundação. Da mesma forma a adoção de nomes, como Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil. O Catolicismo está presente na catequese das populações indígenas, na justificativa do escravismo, na casa-grande e participa das esferas políticas do poder monárquico, colonial e republicano. A preparação do Golpe Militar de 64, com que se instala a ditadura Segurança e Desenvolvimento, teve presença decisiva nas marchas Deus, Pátria e Família. Em várias ocasiões cruciais da História, mesmo durante a República, a alta hierarquia da Igreja Católica apresentou-se solidária com as elites dominantes, deliberantes, embora alguns setores do clero tenham permanecido solidários com os setores sociais subalternos. Na vertente que tem o Catolicismo na base de suas explicações, encontram-se estes autores: Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Gustavo Corção, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins, Farias Brito, Nestor Victor entre outros. Para Ianni, segundo a ideologia predominante, oficial e oficiosa, religiosa e secular, todos são católicos. Assim, com essa frase, eliminam-se o candomblé e suas variantes, assim como a pajelança e suas variantes; sem esquecer as variantes do protestantismo e do próprio catolicismo. Em todos os espaços públicos, do Palácio presidencial à Câmara Municipal, na escola e nos plenários do Congresso, no Gabinete do Reitor, há sempre um crucifixo ou alguma variante de ícones católicos, que aparecem na mídia em geral, como também na fixação de feriados. Na virada do Milênio, o Papa circula, com direito a feriado, aquém e além do Tratado de Tordesilhas, 500 anos depois da Primeira Missa. (2000, p.63) 5.º GRUPO DE INTéRPRETES: CONSIDERAM A FORMAÇÃO DO CAPITALISMO NACIONAL O debate referente a ser agrária ou industrial a vocação do Brasil ou à coexistência das duas adquiriu força nos anos 30. Ampliaram-se os argumentos em favor da necessidade de haver um capitalismo nacional, redefinindo-se Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 52 as relações com os Estados Unidos e a Inglaterra. Foi formulada e posta em movimento a política que levou o nome de industrialização substitutiva de importações. Ao lado dos setores sociais enraizados na vocação agrária, consolidou-se um segundo bloco de poder, de composição agroindustrial. São notáveis os autores desta vertente: Roberto Simonsen, Rômulo de Almeida, Jesus Soares Pereira, Celso Furtado, Francisco de Oliveira, Paulo Singer, Pandiá Calógeras, Cincinato Braga, Serzedelo Correia. Para Ianni, o projeto de capitalismo nacional teve sua época, isto é, gênese, ascensão, prosperidade, êxito, problemas, contradições, declínio e esgotamento. Foi errático, mas logrou sucesso inegável. Mobilizou setores em torno da idéia de nacionalismo, anti-imperialismo, transformação da sociedade. Fez a invenção do que hoje se denomina de popular, engendrou a categoria povo. Desenvolveu amplamente a politização das classes e grupos sociais subalternos. 6.º GRUPO DE INTéRPRETES: CONSIDERAM A FORMAÇÃO DO CAPITALISMO TRANSNACIONAL Junto com a tese de desenvolvimento do capitalismo verde-amarelo, apareceu e foi vigorosa a tese segundo a qual o Brasil deveria beneficiar-se ao máximo de uma inserção na economia mundial, no chamado capitalismo associado, defendendo-se que esse seria o único caminho eficaz para o desenvolvimento. Combatiam-se todas as fórmulas nacionalistas e preconizava-se o internacionalismo, o globalismo. Dentre os autores desta corrente estão Eugenio Gudin, Octávio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen e Delfim Neto, pessoas mais ou menos alinhadas com o ideário do Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, secundados pela Organização Mundial do Comércio. É um pensamento corrente, fortemente praticado nas associações de empresários, em amplos setores da mídia, nas corporações transnacionais. São muitos os profissionais, economistas, administradores, sociólogos, cientistas políticos formados nessa direção. Muitos intelectuais e empresários foram mobilizados pelo neoliberalismo no clima diplomático da Guerra Fria, posicionando-se no maniqueísmo da oposição capitalismo x comunismo. A primazia do mercado ocupa o lugar do planejamento. Os autores e atores empenhados na crítica ao capitalismo nacional pregam a associação com capital japonês, norte-americano e europeu. Entendem que é o melhor caminho para se chegar ao primeiro mundo. Preconizam o Estado Mínimo, Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 55 sintetizando aqui, identifica aqueles que considera precursores: Euclides da Cunha, Alberto Torres, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Silvio Romero, José Veríssimo, Machado de Assis, Lima Barreto, José de Alencar, José Bonifácio, Frei Caneca, Eduardo prado e Varnhagen. Os precursores foram desafiados a explicar uma sociedade dentro dos marcos do escravismo. Os clássicos, para Ianni, são aqueles fascinados pela “questão nacional”. Entam explicar a formação do Brasil a partir de sua sociedade, seu Estado, seu povo, cultura, mentalidade, tradições, a ordem e o progresso. A época em que se produzem os estudos dos clássicos é a época dos rescaldos da Primeira Guerra Mundial e da Revolução soviética, do crash da Bolsa de Nova York, da débâcle da economia cafeeira e da Revolução de 30. É a época, diz Ianni, da Semana de Arte Moderna, do Tenentismo, da fundação do Partido Comunista e do Centro Dom Vital. É quando se fundam em universidades e institutos de ensino e pesquisa de cunho universitário. Estão entre os clássicos: Jackson de Figueiredo, Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Roberto C. Simonsen, Caio Prado Junior e Eugênio Gudin. Por fim, Ianni classifica entre os “novos” os que realmente inovam em matéria de interpretar o Brasil, criam novos parâmetros, são beneficiários da elevação dos padrões de ensino das ciências sociais desenvolvidos no seio de universidades brasileiras. Inclui entre os “novos”: Mario de Andrade, Florestan Fernandes, Raimundo Faoro, Clovis Moura, Jacob Gorender, Celso Furtado, Antônio Cândido, Mario Pedrosa, Alfredo Bosi, Cândido Portinari, Graciliano Ramos e Oscar Niemeyer. Resumo feito pelo próprio Octavio Ianni: “Ao longo da história do Brasil, intérpretes brasileiros e estrangeiros interrogam continuamente a sociedade nacional, construindo e reconstruindo problemas históricos e teóricos. Apesar da diversidade das análises, é possível ordena-las segundo orientações, linhagens ou “famílias” de intelectuais delineando, assim, temas e perspectivas de futuro que se revelam recorrentes na história das interpretações sobre cultura, sociedade, economia e política no Brasil. Finalmente, considerado de uma perspectiva ampla, o diversificado conjunto d interpretações pode ser visto como uma complexa narrativa ficcional que combina a busca de esclarecimento e a criação de significados.” (Novembro de 2000). Estado e Sociedade no Brasil BRASIL: Um país mestiço e único Página 56 Palavras Finais Você pôde observar, a partir da síntese do trabalho de Octavio Ianni, a variedade a multiplicidade de maneiras de explicar o Brasil - a Sociedade e o Estado. Pode-se observar também como os trabalhos originais estão livres de esquematismos e receitas apriorísticas. Assim, muitas vezes o êxito de um empreendimento intelectual depende muito mais da ousadia, da criatividade, da cultura geral e da acuidade de observação do seu autor. Tudo leva a crer que sim. ATIVIDADE Você conseguiu identificar para qual das correntes de interpretação do Brasil pende a preferência de Octavio Ianni? E qual ou quais dessas interpretações do Brasil você considera a mais convincente? Identifique-a (s) e apresente os argumentos que justifiquem a sua escolha.. Talvez por ser uma lista muito extensa, o texto de Octavio Ianni não declina nomes de brasilianistas, isto é, de estrangeiros que vieram estudar fatos, paisagens, impressões e acontecimentos do Brasil, especialmente no século XIX. Mas, se você quiser conhecer sobre eles, eis o nome de alguns: Debret, Carl von Martius, Johan von Spix, Saint-Hilaire, Langsdorff, Proust, Darwin, Graham, Armitage, Malerba, Leithold & Rango, Mawe, Brackenridge, Alcide Dorbigny, Barman, Warren Dean, Taunay, Antonil, Luccok, Maria Graham, Varnhagen, Kenneth Light, Lambert, Humboldt, Koch-Grunberg, Max Schmidt, Herbert Smith, Nóbrega. Capítulo 4 Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 60 primeiras perguntas feitas a pessoas que acabamos de conhecer é saber o que ela faz. A filósofa Hannah Arendt diz: “A era moderna trouxe consigo a glorificação teórica do trabalho, e resultou na transformação efetiva de toda sociedade em uma sociedade de homens trabalhadores”. E mostra-se preocupada com o seguinte: “A possibilidade de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, isto é, sem a única atividade que lhes resta. Certamente nada poderia ser pior.” (1981, p.12 e13) Além disso, na vida cotidiana, é marcante a separação entre os que têm um trabalho e os que são dele privados. Da mesma forma é marcante a separação que se estabelece entre os trabalhadores plenos e os subempregados. Também vinculada à questão do trabalho está a disparidade de renda, que estabelece posições de poder, consumo, acesso à informação, à cultura, à saúde física, à beleza, ao prestígio. E é fato ainda que até os rentistas desobrigados de horários e jornadas, “nascidos à sombra”, vivem do resultado do trabalho (seu e/ou de outros). 2 - ORIGENS A palavra vem do latim, tripalium (chicote, instrumento feito de três paus aguçados, com pontas de ferro, com o qual os agricultores batiam o trigo, o milho, o linho, rasgando-os ou esfiapando-os). Dicionários latinos registram também tripalium como instrumento de tortura (empregado por monges em auto-suplício, para apagar os pecados, penitenciar-se). O verbo latino tripaliare quer dizer torturar. As demais línguas latinas seguem essa tendência: travail = francês, travallo = catalão, trabajo = espanhol, travaglio = italiano. Já em alemão se diz Arbeit, do latim arvum = terra arável. No português, a palavra apareceu no século XIII, segundo o Dicionário Houaiss (2001), que apresenta várias acepções, de esforço, labuta, criação, atividade profissional legalizada até trabalhos de cultos afro-brasileiros e parto. Nesse conjunto de acepções, todavia, há concordância de considerá-lo Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 61 como um fenômeno que implica produzir algo. E de que sua trajetória original tem a ver com a passagem pré-histórica da cultura da caça e pesca para a cultura agrária, de extrair o que a natureza gera para cultivar planejadamente (operar com labuta neuromuscular), em colaboração com a natureza. A seguir, tem a ver com a passagem da cultura agrária para a cultura industrial (organizações, empresas), tendendo a empregar sempre mais ciência nos processos de produção, métodos e técnicas racionais. A partir do século XV, trabalhar começou a ser uma atividade repetitiva e disciplinada, equivalendo a esforçar-se, laborar, operar, ativar forças espirituais e materiais, sedundo um fim. Para muitos, como Marx (1818-1983), é exatamente o trabalho que estabelece diferença entre o homem e os outros animais. Estes trabalham por instinto, sem consciência, já o homem tem intencionalidade, pode representar na imaginação, a priori, um produto ou resultado de sua ação. Pode antecipar na consciência o resultado das suas operações, projetar, planejar. Pode inventar livremente maneiras de chegar a determinado resultado, ao passo que os outros animais são programados tal qual a máquina. 3 - EFEITOS DO TRABALHO NA VIDA DO HOMEM O homem é produtor ou produto do trabalho? Marx, em O Capital, Livro I, Capítulo V, “Processo de Trabalho e Processo de Produzir Mais Valia” (cuja leitura se recomenda), responde: Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais. Não se trata aqui das formas instintivas, animais, de trabalho. Quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho, é imensa a distância histórica que medeia entre sua condição e a do homem primitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho. Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 62 Com efeito, ao trabalhar, o homem modifica o mundo em que vive. E o mundo, por sua vez, modificado pelo homem, como resultado do trabalho, passa a influenciar e modificar o próprio criador, o próprio homem. Exemplos: a - Ao trabalhar no desenvolvimento de apuradas técnicas de produzir alimentos, domesticando animais, o homem modificou sua dieta e viu seu corpo modificado. Assim, os japoneses, no século XVI, tinham estatura média de um metro e meio, mas as gerações subseqüentes apresentam estatura nitidamente aumentada, resultado das novas dietas alimentares. b - Ao trabalhar na criação do automóvel e do aço (que permite prédios verticais altíssimos), o homem alterou a vida urbana, que, por sua vez, está modificando seu jeito de ser e viver. c - Ao trabalhar, criando a imprensa e o livro, o homem pôde adotar novas formas de conceber e lidar com o mundo, disseminando conhecimentos úteis. d - Por trabalhar na produção de vacinas, o homem está evitando certas enfermidades. e - O trabalho dos professores nas escolas ( que leva à construção do conhecimento e a novas experiências) atua sobre o sistema neuromuscular das crianças, modificações que têm atuação sobre a própria sociedade. Em suma, para Marx, é indubitável que o trabalho produz modificações não apenas no mundo material, mas também, e principalmente, em nós mesmos. Friedrich Engels, amigo pessoal de Marx, escreveu a obra intitulado O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem, em que discorre, argumentando, sobre modificações corporais sofridas pelos símios, a partir do emprego de ferramentas, especialmente manuais, que levaram à conformação do corpo dos primeiros hominídeos. 4 - RETROSPECTIVA Na Grécia Clássica, aproximadamente no século IV antes de Cristo, as ações humanas eram classificadas em: Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 65 pode tornar-se um eleito, tocado pela graça divina. Enfatiza-se a frase do apóstolo São Paulo: “Aquele entre vós que não trabalha, este não merece comer”. Disso podemos depreender que um elemento importante para o vigor do capitalismo nos EUA foi o Protestantismo. Não houve castas de privilegiados vivendo do ócio: todos começaram como incansáveis trabalhadores. E orgulhosos de haver começado de baixo (self made man). Rainhas, monarcas, duques, condes, condessas, marquesas foram abolidos: o trabalho passou a representar distinção. Em vista, pois, de ser o trabalho um instrumento de purificação e um meio de salvação, necessariamente foi e é valorizado: A - Pelo trabalho se pode expressar concretamente o amor ao próximo. De que adianta a fé sem obras (trabalho)? Disse Jesus Cristo: O mandamento mais importante entre todos é “amar ao próximo como a si mesmo”. B - É no trabalho que se pode praticar a humildade, servir a Deus na pessoa do próximo. Exemplo: O Rotary Club, entidade laica fundada em 1910, em Illinois, nos EUA, cuja Filosofia é servir no trabalho, “dar de si antes de pensar em si”, “quem melhor serve, mais ganha”. C - A autoconfiança típica dos eleitos, pelo desejo de trabalhar, adquire-se com intensa atividade profissional, isto é, coragem para empreender. D - A riqueza só é eticamente condenável, se servir de tentação para a vadiagem ou o relaxamento. E - A riqueza, por si, em si não é pecado (como no Catolicismo), apenas a maneira de usá-la, se provocar ócio e sensualidade. F - A perda de tempo é o primeiro e o principal de todos os pecados. G - O trabalho é a própria finalidade da vida. Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 66 H - A falta de vontade de trabalhar é sintoma de ausência do estado de graça, pois o trabalho intensivo afugenta as dúvidas religiosas. I - É a vontade divina que estabelece camadas sociais e diferenciação entre profissões, e não o resultado de processos históricos. J - A Providência Divina é uma espécie de mão que coloca cada qual na sua posição no mundo do trabalho: lixeiro, cirurgião plástico, pastor, financista de Wall Street, cortador de cana, empresário, pescador, garimpeiro, etc. L - Como decorrência da ideologia de valorização extremada do trabalho, tem-se, além da especialização das ocupações, a possibilidade latente de apurar habilidades, realizando significativos progressos quantitativos e qualitativos na produção. Em outras palavras: a economia capitalista. M - A compulsão pela poupança pode favorecer o investimento produtivo, gerando mais riqueza. A figura emblemática é o tio Patinhas, de Walt Disney. Portanto os bancos têm como atividade central realizar a intermediação entre as pessoas que poupam (rentistas) e os tomadores de empréstimos (investidores). N - Trabalhadores sóbrios e aplicados, dóceis, submissos, convencidos de que agrada a Deus o trabalho humano, são a matéria-prima principal que garante a acumulação capitalista conduzida pela burguesia. O - Portanto a burguesia (os ricos) tem a consciência tranqüila com a certeza de que a distribuição desigual da riqueza é obra da Divina Providência, e não culpa da avareza acumuladora. MARx E A MAIS-VALIA COMO CONCEITO-CHAVE Para Marx (1818-1883), o que o homem produz é o que ele é. O trabalho pertence ao reino da necessidade. Mas o reino da liberdade tem de ser conquistado pelo esforço produtivo, depois do trabalho, no tempo livre, nas horas de lazer e de descanso, nos prêmios de gozar os prazeres da vida. Assim, ele criou o conceito de mais-valia, mecanismo que é chave para se Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 67 compreender a sociedade capitalista. Esse conceito está para a Economia capitalista como o de átomo está para a Química e o de célula para a Biologia. Recapitulando: Mais-Valia (absoluta) - extensão simples da jornada de trabalho limitada pelo cansaço físico do trabalhador. Mais-Valia (relativa) - redução do tempo de trabalho necessário para que o trabalhador crie um valor equivalente ao de sua força de trabalho. Exemplo: Trabalhando oito horas por dia um pescador consegue dez peixes, embora cinco sejam suficientes para ele se alimentar e garantir outros trabalhadores (a família). Portanto o trabalho necessário é de quatro horas e o trabalho excedente é também de quatro horas. Essas quatro horas excedentes, portanto, são embolsadas pelo capitalista que compra a força de trabalho. Se o patrão lhe entregar anzóis e redes melhores e barco maior, ele aumentará a eficiência. Supondo-se que, com oito horas, ele chegue a pescar 20 peixes em vez de dez, o trabalho excedente embolsado pelo capitalista aumentará para seis horas, embora, para subsistir, ele continue precisando de apenas cinco peixes. A taxa de mais-valia passou, portanto, de 100% para 300%. Portanto o trabalho necessário diminui e o trabalho excedente aumenta. (Sandroni,1985, p. 76-80). Na sociedade capitalista integrada - escola, empresa, Estado, etc - uma forma de baratear o custo de reprodução da força de trabalho é lançar mão das infraestruturas sociais (creche, escola pública, casa popular subsidiada) ou da inflação (concessão de reajustes salariais em níveis inferiores ao aumento do custo de vida) ou do exército de reserva ( contingente de desempregados assegurando mão-de-obra substitutiva barata, controlando e acalmando os trabalhadores nas pretensões de invadir a faixa de apropriação da mais- valia. Esses mecanismos de acumulação de capital podem ser combinados ou exclusivos. É necessário, pois, caracterizar trabalho produtivo e trabalho improdutivo. O produtivo corresponde a uma relação de trabalho em que ocorre apropriação de excedente. O improdutivo implica apropriação do excedente por um terceiro. Exemplo: Quando se contrata um jardineiro diretamente, ocorre trabalho improdutivo do Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 70 por delegados eleitos e revogáveis a qualquer momento. A coordenação entre duas ou várias oficinas ou departamentos é assegurada por reuniões dos respectivos delegados ou por assembléias comuns. A coordenação ao nível do conjunto d empresa e as relações com o resto da economia são tarefa dos conselhos operários, (...) a instauração da gestão operária é o que permitirá começar imediatamente a eliminar as contradições fundamentais da produção capitalista. A gestão operária marcará o fim da dominação do trabalho sobre o homem, e o começo da dominação do homem sobre seu trabalho.” 3 - Qual é a sua opinião sobre de Castoríadis? Será que conhecer o que se esconde no mundo do trabalho, or si só transforma o mundo? Ter clareza sobre como se reparte a riqueza e de que cada um se apropria, mas ficando parado, é uma opção razoável? Há saída ou é melhor conformar-se? Obs. Estudar mais sobre “Participação nos Lucros e Auto-Gestão.” 4 - Há uma tese recorrente segundo a qual a mais-valia é positiva, já que, no Primeiro Mundo (América do Norte, Europa e Japão), onde ela ocorre em níveis e proporções maiores, o operariado (que vive de vender sua mão- de-obra) tem o melhor padrão de vida. E até a riqueza gerada independe da existência de mercados fornecedores de mão-obra e matérias-primas baratas. Há economistas e administradores nos dois lados. Para reflexão, ficam estas palavras de Sartre, segundo o qual a verdade é uma construção nossa, pois ela não existe por si só: (...) “amanhã, depois da minha morte, alguns homem podem decidir estabelecer o fascismo; e os outros podem ser suficientemente covardes e desorganizados para consentirem nisso. Nesse momento, o fascismo será a verdade humana, e tanto pior para nós; na realidade, as coisas serão tais como o homem tiver decidido que elas sejam.” (O Existencialismo é um Humanismo, 1978, p. 240). Referências Bibliográficas Página 71 Referências Bibliográficas ALBORNOZ, Suzana. O que é Trabalho. São Paulo: Círculo do Livro, 1993. ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Forense/USP, 1981. CASTORÍADIS, Cornelius. Socialismo ou Barbárie. São Paulo: Brasiliense, 1983. GRAMSCI, Antonio. Notas sobre Maquiavelo, sobre Política y sobre el Estado Moderno. Buenos Aires, Lautaro, 1962. KARL, Marx. O Capital: crítica da economia política. Livro I – O Processo de Produção do Capital. 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Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 72 CAPíTULO 4 - PARTE DOIS 2 - O TRABALHO NO BRASIL: SERGIO BUARqUE DE HO- LANDA E UMA VISÃO DA SOCIEDADE MINERADORA “Uma sociedade sui generis que se foi constituindo nas Minas Gerais, agregado mais ou menos informe de elementos de várias procedências e de todos os estratos, espelhou, por longo tempo, sua formação compósita. Não parece excessivo dizer, ao menos em confronto com a de outras partes da América lusitana, que a ocupação do território se processou ali democraticamente. Muito mais, sem dúvida, do que a das áreas açucareiras. O sistema das demarcações já era, ao menos em teoria, e muitas vezes na prática, um convite à promiscuidade de gente de toda casta que afluiu para a região descobertos. Aqui lucram tanto os humildes como os abastados, ainda quando estes disponham de numerosos escravos e os primeiros de raros, pois tudo acontece como nos jogos: ganha o que tem mais sorte, não o que mais pode. Quando o legislador procura assegurar os pobres contra os poderosos, não por simples afetação, como se poderia supor. Ele sabe que aqueles buscam mais afanosamente do que estes tirar proveito das concessões, não dispondo de outros recursos que os deixem esperar ou descansar, e ao cabo esse afã só pode beneficiar o erário régio. E certo que as leis foram também no Brasil, “obedecidas, mas não cumpridas”, segundo o refrão popular nas Índias de Castela. Contudo o simples princípio de que se hão de defender os pobres e miseráveis “em parte de sua data, por achar com pinta rica”, de algum poderoso que pretenda esbulhá-los de seu bem - conforme se lê no Regimento de 1702 - representa ao menos um limite ideal para os abusos do poder, coisa que não existe, salvo por exceção, nas grandes propriedades canavieiras. Até a onipresença obrigatória dos agentes da Coroa, significando a todo instante os direitos do soberano, com um aparelho fiscal sempre ameaçador, mesmo se ineficaz ou momentaneamente complacente, é para o mineiro um desses limites. Acresce que os instrumentos rudimentares exigidos nas faisqueiras, a que de início todos se dedicam e que, mais tarde, nem Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 75 mecânicos e peões dava-se por muito menos oportunidade legal de ascenderem à condição de cavaleiros, quando menos de cavaleiros de contia, ainda quando não houvessem ganho honra de cavalaria ou não tivessem sido recebidos em ordem militar, condições estas que se requeriam, em princípio, dos fidalgos chamados de “espora dourada”. Nesse sentido não há demasia em dizer dos grandes proprietários e senhores de engenho do Brasil, título este, no conhecido juízo de Antonil, tão estimável proporcionadamente quanto o dos fidalgos no Reino, que sua posição eminente se compadece, em suma, com os princípios geralmente aceitos e as práticas consagradas e irrecorríveis. Fosse como fosse, os que detinham postos privilegiados, em tais condições, tinham-se tornado mal ou bem, portadores de uma tradição ancestral. Nada disso vai suceder nas terras do ouro. Para a distribuição das datas minerais, o que menos se quer do candidato é a posse de bens pecuniários, pois os mais necessitados, em geral, e os humildes, gente, em sua grande maioria, sem passado, e que a lei expressamente protege, porque esse é o interesse da Coroa e da Fazenda Real, são de ordinário os mais diligentes e esforçados no negócio: nem se vexam às vezes de ir catar ombro a ombro com o escravo, se o têm. Juntamente com eles, são mercadores e mecânicos, em número ainda mais avultado, os que lançam o primeiro fundamento da coo1onização nas Minas Gerais, e os que se acham em melhor posição para alçar-se a postos eminentes e dignificar-se. Isso por força de imposições locais, que se fazem valer muitas vezes em detrimento de costumes venerandos ou até de leis do Reino. É naturalmente compreensível que, sobre o tumulto inicial, se vá impor cada vez mais alguma aparência de estratificação. E apesar disso, durante longo tempo, a bem dizer em todo o curso do século XVIII, essa espécie de ordenação forçada, puramente exterior, não consegue dissimular ali a ebulição íntima. Existe, é claro, a norma externa, ao menos como um modelo formal, pois qualquer sociedade de homens se há de pretender civil e bem composta. Mas como impedir que venham constantemente à tona os contrastes entre a idealidade e uma realidade tangível e bruta? O que de tudo ressalta é a estrutura movediça que se Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 76 desmancha, em partes, e se recompõe continuamente, ao sabor de contingências imprevisíveis. Essa situação verdadeiramente sem precedentes no mesmo grau e na América lusitana, que os próprios agentes da Coroa acabam, não raro, por tolerar ou até fomentar, não podendo resistir sem prejuízo ao que se fizera regra geral, é para outros, menos comprometidos com ela, mais afeiçoados às velhas formas, motivo de indignação e surpresa. Como suportar tranqüilamente que o comando dos bisonhos corpos de ordenança seja confiado a indivíduos que saíram da classe dos tendeiros? Ou que no séqüito de um governante tomem lugar como se foram novos Martes, elementos de classe baixa, que ainda vivem de dar o sustento, o quarto, a roupa, aos que viajam, e capim às suas bestas? Não é certo que, desses, uns foram almocreves, outros taberneiros, ou alfaiates, ou viviam há pouco tempo de fazer sapatos, puxando a dentadas o couro? Dos cabos de milícia, quem o diz é ainda o Critilo das Cartas chilenas, alguns não admitem sequer que inflamam suas bengalas, nas mãos lixosas, quando pesam a libra de toucinho ou medem o frasco de cachaça, se lhes faltam os negros incumbidos de governar suas vendas. O pior é que dessa escória se vai levantando uma raça nova de magistrados, que parece trazer o selo da origem vil, no mais escandaloso desafio às leis do Reino. E como é irreprimível a força do contágio, todos, mesmo os grandes, e os que por dever de ofício deviam fazer respeitados os bons costumes, deixam-se emaranhar nesses atropelos. De sorte que um governador chega a tomar a frente do bispo em cerimônia pública e dar-lhe a esquerda na sege, violando uma regra comezinha de precedência, que admite exceção quando se trate de vice-rei, não de simples capitão-general. [...] Depois de tudo, não admira se nos dias de Cunha Meneses já andem cada vez mais em desuso os floretes e as bastas perucas brancas. Até os magistrados expõem os cabelos naturais; nem se pejam alguns de sair à missa de chicote em punho e chapéu fincado, “na forma em que passeiam os caixeiros”. Ao mesmo tempo vão desaparecendo as manifestações consagradas de Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 77 decoro e urbanidade. Não se sentam mais, os homens, direitos e graves, como antigamente, e as próprias damas aprenderam a atravessar as pernas sobre as pernas. Assim também perderam muitos o hábito de se despedir dos amigos, preferindo retirar-se das reuniões em segredo, pois é voz corrente, Doroteu, que os costumes se mudam com os tempos. Esse descrédito dos formalismos, a instabilidade nas maneiras de comportamento e a implantação fácil de modas novas e efêmeras, que tanto amarguram Critilo, são próprios de uma sociedade de meio aluvial como aquela, feita em sua imensa maioria de hordas de imigrantes, que não conheceram, em sua terra de origem, a oportunidade de assimilar os altos padrões de civilidade e luzimento. Some-se a isso a falta de sedimentação, aqui, das várias camadas dessa sociedade, que incessantemente se renovam, passando a abrigar elementos diversos que sobem dos socavões ou das tendas de negócio. O que se podia esperar de estável entre indivíduos recrutados unicamente segundo sua disposição para a luta áspera: luta contra a natureza, tanto mais bruta quanto mais dadivosa, e luta, ainda, contra interesses e facções rivais. [...] Mesmo nas Minas, passada a fase mais caótica da exploração aurífera, já se faria sentir a tendência para um tipo de estratificação social favorável ao maior prestígio dos que podem aparentar uma digna ociosidade. Não só é essa tendência a mais consentânea com velhas tradições lusitanas e hispânicas, como é a única verdadeiramente compatível com os processos de colonização daquelas partes. Como sucede com muitas sociedades de formação democrática, e onde os valores pecuniários governam largamente as atividades, tanto quanto as relações humanas, o loque da distinção está aqui nos que possam ou pareçam escapar a esta lei. O próprio lugar das aristocracias de sangue vem a ser vivamente reqüestado, à falta delas, por aqueles que se mostrem aptos à disposição de seus lazeres segundo outra ordem de valores, ordem essa com que os interesses simplesmente materiais já não ocupam o primeiro posto. Assim é que, já na segunda metade do século XVIII, e num meio quase inteiramente dominado pela cobiça de bens da fortuna, subitamente aparecem, e começam a mostrar-se cônscios de Estado e Sociedade no Brasil Interpretações do Brasil com Base no Trabalho Página 80 de fato algumas das figuras que mais se hão de notabilizar na vida política, administrativa, eclesiástica, científica do Brasil no século XVIII, e parte do seguinte. In: DIAS, Maria Odila Leite da Silva (organizadora). Sérgio Buarque de Holanda. São Paulo: Ática, 1985. Páginas. ATIVIDADES Este capítulo colocou em justaposição dois textos: uma apostila de aula sobre o tema Trabalho e um texto de Sergio Buarque de Holanda sobre a Sociedade Mineradora. Apesar parecem desconexos entre si, os dois textos têm um ponto em comum: o tema referente ao trabalho. Um realiza uma retrospectiva sobre a sua evolução e as concepções; o outro analisa como o preconceito contra o trabalho foi se formando nos grupos humanos, que passaram de errantes a sedentários, de homens pobres a homens e cabedais, de aventureiros garimpeiros a letrados bacharéis, de errantes a magistrados. Muitas são as conclusões possíveis, mas a principal é, de um lado, como as metrópoles ibéricas católicas, em contraposição à metrópole anglo-saxônica, agiam prestigiando o trabalho e vaçorizando o ócio diletante, a contemplação. De outro lado, como a sociedade e o Estado, no Brasil, foram e são afetados por uma mentalidade historicamente construída de ver no trabalho algo vil, desprezível, operado pela arraia- miúda e por escravos. Na chamada marcha da racionalidade, que o mundo Ocidental empreendeu nos últimos séculos, o Brasil ficou para trás. Qual teria sido o motivo? Qual a visão de trabalho teria sido a causa disso? Justifique seu ponto de vista. 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Avistamento da Terra: Acontece em 22 de abril, a horas de véspera: “primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à Terra de Vera Cruz”. Avistamento dos primeiros nativos: Dia 23 de abril: “uns sete ou oito” (...) “pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”. Partida do “Brasil”: dia primeiro de maio de 1500, rumo a Calicute, Índia. Um barco volta a Portugal levando a carta. Eis o texto integral da carta de achamento ao Rei D. Manuel: SENHOR, PÔSTO QUE O Capitão-mor desta Vossa frota, e assim (mesmo) os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Estado e Sociedade no Brasil A Carta de Pêro Vaz de Caminha Página 90 na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fôssem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem. E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas do sitio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um pôrto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram- se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás dêles. E um pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças. E estando Afonso Lopes, nosso pilôto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter- se logo no esquife a sondar o pôrto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um dêles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e festa. A feição dêles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que o homem e a terra de mostrar a cara. Acêrca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nêle um ôsso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-nos ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estôrvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sôbre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um dêles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um côto, muito basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como cêra (mas não era cêra), de maneira tal que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando êles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés Estado e Sociedade no Brasil A Carta de Pêro Vaz de Caminha Página 91 uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de (querer) falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um dêles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer- nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata! Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os houvesse ali. Mostraram-lhes um carneiro; não fizeram caso dêle. Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram mêdo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a bôca; não gostaram dêle nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não bebêram; apenas lavaram as bôcas e lançaram-na fora. Viu um dêles umas contas de rosário, brancas; fêz sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu- as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se êle queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou (a entregar) as contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão mandou pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E deitaram um manto por cima Estado e Sociedade no Brasil A Carta de Pêro Vaz de Caminha Página 92 dêles; e com sentindo, aconchegaram-se e adormeceram. Sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete braças de fundo. E entraram tôdas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças - ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão seguro que podem ficar nêle mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aquêles dois homens, e os deixassem ir com seu arco e setas aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um cascavel e uma campainha. E mandou com êles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com êles e saber de seu viver e (das suas) maneiras. E a mim mandou que fósse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aquêles que nós levamos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E êles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando sairam os que nós levávamos, e o mancebo degredado com êles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E muitos outros com éles. E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E com êle vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. E então se começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam cabaças d’água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que êles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a êle, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de Estado e Sociedade no Brasil A Carta de Pêro Vaz de Caminha Página 95 não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou êsses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé. Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde éles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a êles. E nós todos todos trás dêle, à distância de um tiro de pedra. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos dêles os iam logo pôr em terra; e outros não os punham. Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou mêdo. Éste que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria côr. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio dêles, sem implicarem nada com êle, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d’água; e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isso se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais constranger. E êles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho.Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais êle se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem. Estado e Sociedade no Brasil A Carta de Pêro Vaz de Caminha Página 96 E entre muitas falas que sôbre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por fôrça um par dêstes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar dêles outros dois destes degredados. E concordaram em que não era necessário tomar por fôrça homens, porque costume era dos que assim à força levavam para alguma parte dizerem que ha de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens dêsses degredados que aqui deixássemos do que êles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem êles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar. E que portanto não cuidássemos de aqui por fôrça tomar ninguém, nem (de) fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos. E assim ficou determinado por parecer melhor a todos. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Êles andavam ali na praia, à bôca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os bateis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jôgo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre êles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Êles davam dêsses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com êles, que êles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fêz que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fêz tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a êle, não por o reconhecerem por Senhor (visto que parece que não compreendem nem entendem isso), mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e Estado e Sociedade no Brasil A Carta de Pêro Vaz de Caminha Página 97 resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas. E então tornou-se o Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de prêto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre êles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, tôda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua côr natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma. Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum. Em seguida o Capitão foi subindo ao longo do rio que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com êle, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem êle a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra. Trazia êste velho o beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquêle buraco. E o Capitão lha fêz tirar. E êle não sei que diabo falava e ia com ela para a bôca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sôbre isso. E então enfadou- se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a Vossa Alteza. Andamos por ai vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dêle há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos dêles. Depois tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.
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