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Guias e Dicas
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Saúde Coletiva Uma proposta integral e transdisciplinar de cuidado, Notas de estudo de Enfermagem

A saúde tornou-se um pólo atrator dos problemas sociais gerados pela estrutura capitalista atual, e o campo da Saúde Coletiva é o núcleo central de equação desses problemas. Como estamos falando de um campo, e não de uma disciplina, há várias disciplinas implicadas, eu diria mesmo vários campos disciplinares implicados na dinâmica dele. Por isto, ele não pode funcionar segundo a lógica de uma disciplina única ou de um campo mono ou pluri disciplinar.

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 30/04/2010

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Baixe Saúde Coletiva Uma proposta integral e transdisciplinar de cuidado e outras Notas de estudo em PDF para Enfermagem, somente na Docsity! 1SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Saúde Coletiva Uma proposta integral e transdisciplinar de cuidado Editorial “'Ter saúde', de fato, não tem a ver com ‘não adoecer’, mas com as nossas condições de enfrentamento do próprio adoecimento, se e quando ele ocorrer”, afirma Victor Valla, na entrevista publicada nesta edição da IHU On-Line, que busca entender melhor a Saúde Coletiva como proposta integral e transdisciplinar de cuidado. Discutimos o tema precisamente no momento em que hospitais do País, especialmente no Nordeste, vivem semanas de caos. Não é por nada que a Profa. Dra. Stela Meneghel, do PPG de Saúde Coletiva da Unisinos, denuncia que, “desde o momento da formulação do SUS, as elites interessadas na manutenção de privilégios e do modelo assistencial privado de saúde iniciaram um boicote”. Segundo ela, “o desafio que temos pela frente, certamente, é o de fazer funcionar o SUS (‘a ousadia de fazer cumprir a lei!’)”. Maria Cecília Minayo, da Fundação Oswaldo Cruz; Jairnilson Paim, sanitarista baiano; Kenneth Camargo, da UERJ; Túlio Batista Franco, da Universidade Federal Fluminense; e Madel Luz, além dos nomes citados anteriormente, participam desta edição. O cuidado exige arranjos multi, inter e transdisciplinares. Como evitar que se retroceda a modelos monodisciplinares? Eis uma grande preocupação da área de Saúde Coletiva e, segundo Kenneth Camargo, da comissão que tem feito a avaliação da pós- graduação brasileira em Saúde Coletiva. Entender a Saúde Coletiva como um campo eminentemente interdisciplinar é abordado, de maneira sistemática, no Ciclo Cinema e Saúde Coletiva – Cuidado e Cuidador: os vários sentidos dessa relação, e também em diferentes entrevistas publicadas nas Notícias do Dia, na página eletrônica do IHU. Para citar as mais recentes, Thomas Josué Silva, professor da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, logo após o último congresso da Abrasco, falou sobre o tema, como também o médico argentino Hugo Spinelli. Agradecemos, de maneira muito especial, às professoras Maria Teresa Bustamante, coordenadora do PPG de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Juiz de Fora, e Stela Meneghel, do PPG de Saúde Coletiva da Unisinos, que foram nossas assessoras no desenvolvimento deste tema de capa. Attico Chassot, refletindo sobre os cada vez mais imperceptíveis limites entre o humano e o não-humano, provocativamente pergunta: “Levante o dedo quem tem zero de ciborgue”. Ele proferirá a conferência, nesta quarta-feira, no Ciclo sobre os desafios da física para o século XXI, que antecede o Simpósio Internacional Uma sociedade pós- humana? Possibilidades e limites das nanotecnologias, a ser realizado de 26 a 29 de maio de 2008, na Unisinos. Participam também desta edição Édison Gastaldo e Roberlei Panasiewicz. O primeiro reflete sobre a contribuição do antropólogo Louis Dumont (1911-1998) para a compreensão da ideologia individualista. Gastaldo, do PPG em Ciências Sociais da Unisinos, abordará o tema, nesta quarta-feira, no Ciclo de Estudos Fundamentos Antropológicos da Economia. Para o segundo, “o pluralismo religioso é um novo paradigma teológico, pois estimula a teologia cristã a repensar seus tratados teológicos”. Roberlei Panasiewicz, teólogo, é professor da PUC-Minas. Por sua vez, Guilherme Delgado, analisa a recente crise financeira internacional, e Laurício Neumann reflete sobre os impasses e contradições da educação universitária. A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana! 2SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Leia nesta edição PÁGINA 02 | Editorial A. Tema de capa » ENTREVISTAS PÁGINA 04 | Stela Meneghel: Saúde pública. Um processo em construção PÁGINA 09 | Maria Cecília Minayo: A integralidade em saúde: uma utopia a ser perseguida PÁGINA 12 | Túlio Franco: “A integralidade é uma diretriz que traz em si o significado ético-político do ‘cuidado- cuidador’, de trabalho em rede” PÁGINA 15 | Victor Valla: Saúde pública: cuidado integral PÁGINA 18 | Madel Luz: “A população fragilizada está em busca de cuidado” PÁGINA 20 | Kenneth Camargo: Integralidade: “um sistema de saúde que desejamos, mas ainda estamos longe de atingir” PÁGINA 22 | Jairnilson Silva Paim: A necessidade de avançar na democratização da saúde B. Destaques da semana » Brasil em Foco PÁGINA 25 | Guilherme Delgado: Crise financeira internacional: o melhor é esperar » Filme da Semana PÁGINA 29 | O ultimato Bourne, de Paul Greengrass » Memória PÁGINA 32 | Bruno Trentin, socialista e sindicalista » Teologia Pública PÁGINA 34 | Roberlei Panasiewicz : “O pluralismo religioso atual é um novo paradigma para a Teologia” PÁGINA 37 | Destaques On-Line PÁGINA 40 | Frases da semana C. IHU em Revista » EVENTOS PÁGINA 43 | Édison Gastaldo: Economia autônoma gera individualismo PÁGINA 46 | Attico Chassot: “Levante o dedo quem tem zero de ciborgue” PÁGINA 51 | Laurício Neumann: Impasses e contradições da educação universitária PÁGINA 58 | Luiza Carravetta: Gaúcho no cinema » PERFIL POPULAR PÁGINA 61| Anselmo Wolfart » IHU REPÓRTER PÁGINA 65| Paulo Aloísio Muller 5SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 medicina social”, indicando que o capitalismo socializou o corpo enquanto força de produção e de trabalho e este fato iria se consolidar por meio da medicina. Na América Latina, as repercussões da medicina social ocorreram mais tardiamente, e o período compreendido entre fim do século XIX até 1930 caracterizou-se pelas investigações no campo da higiene patrocinadas pelo Estado e desenvolvidas por institutos de pesquisa nos moldes europeus. O início do século XX correspondeu à criação dos institutos de medicina tropical, ao saneamento dos portos, às pesquisas baseadas na parasitologia e aos levantamentos entomológicos. Tratava-se de uma medicina higienista e influenciada, sobretudo, pela medicina urbana francesa, que previa o saneamento das cidades, a remoção dos cemitérios, a abertura de grandes avenidas sob a coordenação de agências estatais. Sob o pretexto do controle das doenças e “limpar” as cidades, o objetivo era eliminar as organizações populares, possíveis “focos” de rebeliões. Esta é a época das grandes campanhas de controle de doenças - a febre amarela, a malária e outras chamadas “tropicais”, atendendo as necessidades de saneamento dos portos para exportação de produtos da colônia aos países centrais. Essa saúde pública campanhista apresenta dois momentos: um deles voltado apenas ao saneamento dos portos (quando da elaboração do Regulamento Sanitário Internacional para inibir a exportação de doenças); o segundo voltado para a tornaria impossível a "tomada de poder" proposta pelos marxistas. O poder não é considerado como algo que o indivíduo cede a um soberano (concepção contratual jurídico-política), mas sim como uma relação de forças. Ao ser relação, o poder está em todas as partes, uma pessoa está atravessada por relações de poder, não pode ser considerada independente delas. Para Foucault, o poder não somente reprime, mas também produz efeitos de verdade e saber, constituindo verdades, práticas e subjetividades. Em duas edições a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: na edição 119, de 18-10-2004, e na edição 203, de 06-11-2006, ambas disponíveis para download na página do IHU. Além disso,o IHU organizou, durante o ano de 2004, o evento Ciclo de Estudos sobre Michel Foucault. (Nota da IHU On-Line) interiorização do homem e acompanhamento de projetos de interesse econômico, como a United Fruit na América Central e a borracha no Brasil. Na Europa, o advento da microbiologia e derrotas, como as da Comuna de Paris, contribuíram para que o movimento da Medicina Social sucumbisse. Medicina preventiva A partir de 1930, passaríamos a sofrer forte influência dos modelos americanos, como a proposta preventivista elaborada por Leavell & Clark, cujo livro foi amplamente distribuído pelas Escolas Médicas latino-americanas e que propunha a racionalização dos elevados custos da assistência médica. Estava inaugurada a medicina preventiva, fundamentada na história natural da doença e nos pressupostos de prevenção à saúde. A origem das doenças localizava-se em um período de pré-patogênese constituído pela tão criticada tríade de agentes e hospedeiros equilibrados em uma balança e que banalizava os determinantes sociais, econômicos e ambientais da doença (pode-se ver Sergio Arouca2 no livro O dilema preventivista3). A separação entre prevenção e assistência médica Os anos 1970, na América Latina, foram marcados pelas ditaduras e os modelos de atenção à saúde, nessa época, foram estruturados de forma centralizada e 2 Antônio Sérgio da Silva Arouca (1941-2003): médico sanitarista e político brasileiro. Formou-se em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como consultor da Organização Pan-americana de Saúde (OPAS), atuando em vários países como México, Honduras, Costa Rica, Cuba. Lecionou na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz, até se dedicar ser convidado para trabalhar com o governo sandinista da Nicarágua. Em 1982, retornando ao Brasil, foi eleito chefe do Departamento de Planejamento da ENSP, e em 1985, foi nomeado presidente da Fiocruz, cargo que assumiu até 1988. (Nota da IHU On- Line) 3 AROUCA, Sérgio. O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. São Paulo: Unesp: Fiocruz, 2003. 268 p. (Nota da IHU On-Line) 6SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 hierarquizada, focados no combate “às grandes endemias” e em algumas doenças de “pobre”, mantendo as profundas desigualdades em saúde entre os diversos grupos da população. Grandes contingentes da população não tinham acesso aos serviços de saúde (agricultores, empregados domésticos, trabalhadores informais). No Brasil, assim como em outros países, separou-se a prevenção (saúde pública) da assistência médica, quase que totalmente terceirizada e realizada por serviços e hospitais contratados e que atingiu níveis assombrosos de ineficiência, corrupção, superfaturamento, entre outros escândalos cuidadosamente guardados pelos órgãos de comunicação. (A epidemia de meningite que aconteceu entre 1973 e 1975, talvez tenha sido um dos casos mais emblemáticos: foi negada várias vezes pelas autoridades, enquanto a população sofrendo o evento, sabendo de sua ocorrência e gravidade, superlotava os corredores de hospitais e tinha negada a existência do fenômeno.) Novos modelos de atenção à saúde Por outro lado, nos anos de repressão começam a ser gestados, nos países da América Hispânica e no Brasil, uma série de movimentos pensando outros determinantes e novos modelos de atenção à saúde. Um deles foi o da epidemiologia social ou epidemiologia crítica, que se estendeu do México à Argentina, congregando um grupo expressivo de pensadores inseridos na corrente denominada Medicina Social. No Brasil, a Saúde Coletiva só iria emergir nos anos 1980, segundo Everardo Nunes4, “fundamentando-se na interdisciplinaridade como 4 Everardo Nunes: professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social, membro de corpo editorial da Ciência & Saúde Coletiva e membro de corpo editorial da Revista de Saúde Pública / Journal of Public Health. Nunes possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), especialização em Sociologia Industrial pela mesma universidade, mestrado em Sociologia da Medicina pela University of London e doutorado em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). (Nota da IHU On- Line) possibilitadora de um conhecimento ampliado de saúde e na multiprofissionalidade como forma de enfrentar a diversidade interna ao saber/fazer das práticas sanitárias. A Saúde Coletiva – constituída nos limites do biológico e do social – continua a ter pela frente a tarefa de investigar, compreender e interpretar os determinantes da produção social das doenças e da organização social dos serviços de saúde, tanto no plano diacrônico quanto no sincrônico da história. A Saúde Coletiva, ao introduzir as ciências humanas no campo da saúde, reestrutura as coordenadas deste campo, trazendo para seu interior as dimensões simbólica, ética e política”. IHU On-Line - Qual é a importância da integralidade na atenção à saúde? Stela Meneghel - A luta pela saúde da população brasileira pode ser considerada parte da luta pela transformação da sociedade brasileira. Saúde expressa no conceito ampliado, formulado na 8ª Conferência Nacional de Saúde, como o processo resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, lazer, liberdade, acesso à terra e aos serviços; valor universal e componente fundamental da democracia e da cidadania. A discussão atual sobre saúde traz, em seu bojo, a busca de eqüidade e de justiça social e aponta para as desigualdades relacionadas com a exclusão social. A partir da Conferência de Alma-Ata5, em 1978, foram se estruturando no Brasil vários projetos de atenção integral, pautados na atenção primária em saúde. Surgiram propostas como a do Programa de Interiorização 5 Em setembro de 1978 foi realizada a primeira Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, organizada pela OMS e UNICEF em Alma-Ata, capital do Cazaquistão. A Conferência foi assistida por mais de 700 participantes e resultou na adoção de uma Declaração que reafirmou o significado da saúde como um direito humano fundamental e uma das mais importantes metas sociais mundiais. (Nota da IHU On-Line) 7SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 e Assistência em Saúde e Saneamento (PIASS), as Ações Integradas em Saúde (AIS), os Sistemas Locais de Saúde (SILOS), o Sistema Unificado e Descentralizado em Saúde (SUDS). Porém, as questões estruturais, que envolviam financiamento, democratização e captação de recursos humanos, ainda não estavam postas. Esses projetos constituíram o embrião da Reforma Sanitária viabilizada pela implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovado no texto da Constituição Brasileira de 1988. Várias conferências de promoção à saúde (Ottawa, Sundswall e Adelaide) foram marcos importantes na construção do sistema único de saúde, havendo consenso sobre a necessidade de desenvolver políticas públicas saudáveis e fortalecer a ação comunitária para atuar na melhoria da qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. As conferências recomendaram “a saúde como direito e justiça humana”, aprofundaram o debate sobre a visão holística da saúde e lançaram o tema da interdisciplinaridade. Estabeleceram a necessidade de solidariedade e da igualdade social e denunciaram a inaceitabilidade de doenças resultantes da marginalidade, da desigualdade e da destruição do meio ambiente, postulando a criação de uma cultura para a saúde. As políticas de promoção à saúde buscaram eliminar as iniqüidades em saúde, garantir o respeito aos direitos humanos e acumular capital social, reduzindo as desigualdades entre países pobres e ricos, por meio de ações como a participação popular e o empoderamento (aquisição de poder técnico e político para atuar em prol da saúde). Desta maneira, a concepção do SUS teve em seus princípios doutrinários um forte componente relacionado ao conceito de promoção à saúde. O SUS caracteriza-se como um modelo descentralizado, com comando único em cada esfera de governo, atendimento integral e participação da comunidade, bem como integração da saúde com a seguridade social. Baseia-se na universalidade, eqüidade e integralidade do atendimento, garantindo à população o acesso às ações de promoção, proteção e recuperação da saúde. Porém, desde o momento de sua formulação, iniciou um movimento de boicote principalmente por parte das elites interessadas na manutenção de privilégios e do modelo assistencial privado de saúde. O desafio que temos pela frente, certamente, é o de fazer funcionar o SUS (“a ousadia de fazer cumprir a lei!”). IHU On-Line - Como a senhora avalia a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO)? Stela Meneghel - Para falar da nossa associação maior, a Abrasco, vou utilizar a referência do livro Saúde Coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco6, que recupera a caminhada daqueles que, a partir dos anos 1970, pensaram as questões sanitárias nacionais da maneira mais ampla possível, incluindo temas como universalidade, eqüidade, democracia e cidadania. O livro, organizado pela socióloga Nísia Trindade Lima7 e pelo médico José Paranaguá de Santana8, reúne artigos 6 LIMA, Nísia Trindade (Org.); SANTANA, José Paranaguá de (Org.). Saúde coletiva como compromisso: a trajetória da Abrasco. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006. (Nota da IHU On-Line) 7 Nísia Trindade Lima: pesquisadora titular da Casa de Oswaldo Cruz, unidade técnico-científica da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e Editora Científica da Editora Fiocruz. Também é professora adjunta de sociologia da universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Participa dos conselhos editoriais dos periódicos Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência e História, Ciências, Saúde - Manguinhos. Nísia Trindade Lima é mestre em Ciência Política pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ e doutora em Sociologia pela Sociedade Brasileira de Instrução - SBI/IUPERJ. (Nota da IHU On- Line) 8 José Paranaguá de Santana: pesquisador associado do NESP/CEAM/UnB. Médico, especialista em Medicina Comunitária e mestre em Medicina Tropical. Consultor Nacional em Desenvolvimento de Recursos Humanos da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) - Representação do Brasil e Médico da FIOCRUZ/Ministério da Saúde. (Nota da IHU On-Line) 10SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 continua a ser considerada a “Bíblia” da Promoção da Saúde, também ocorreu em 1986. O termo Saúde Coletiva veio do referido Movimento Sanitário histórico. Embora essa expressão “coletiva” tenha bastante inconsistência teórica, na verdade sendo um aposto ao termo Saúde, configura e sintetiza a idéia de saúde como um bem da coletividade, da sociedade, sendo, portanto, uma meta de conquistas que ultrapassam o sistema biomédico. Em segundo lugar, a expressão se opõe ao tradicional termo Saúde Pública, que geralmente foi usado para falar das intervenções do Estado voltadas para estancar epidemias, para tratar endemias, como um ato do poder oficial. No entanto, esse termo continua uma invenção brasileira. A nossos parceiros internacionais soa estranho que substituamos Saúde Pública por Saúde Coletiva. IHU On-Line - De que maneira podemos ver a Saúde Coletiva hoje na questão da integralidade na atenção e no cuidado à saúde? Qual é a importância de encarar o tratamento de saúde como um cuidado paliativo e integral? Que mudanças estão em curso nesse sentido? Maria Cecília Minayo - Uma das metas da Saúde Coletiva é a integralidade das ações tanto no atendimento médico como nas ações de promoção e prevenção. No entanto, essa meta é uma utopia que temos que perseguir, pois nem a integralidade nem a universalidade estão dadas com a qualidade que o cidadão brasileiro precisa e merece. Essa incompletude e essas falhas levam a opinião pública a menosprezar o SUS, pois o vêem como um sistema pobre para servir “mal” aos pobres. No meu modo de ver, todos nós somos responsáveis por essa construção que consiste desde decisões governamentais, transformação de estruturas, até reformas e transformação de mentalidade dos médicos e de toda a equipe de saúde. Cada uma das pequeninas peças que compõem o sistema SUS precisa ser permanentemente repensada. Essa avaliação sistêmica e essa ação, a meu ver, são muito mais difíceis que o princípio do Movimento Sanitário até a conquista da universalidade e outros atributos, pois agora é a hora da verdade: de pôr em prática aquilo que acreditamos, sem corporativismos. Freqüentemente, os autores da construção atual e do rumo atual não são os mesmos que atuaram na formulação política. Nesse sentido, julgo corajosa a postura do Ministro da Saúde atual, Dr. Temporão11, que está chamando os atores do processo para uma reforma estrutural dos serviços, visando ao usuário, à qualidade da atenção dispensada. IHU On-Line - A senhora já foi presidente da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO). Quais são os desafios e os méritos da instituição hoje? Qual é sua avaliação? Maria Cecília Minayo - Considero a Abrasco uma grande instituição brasileira, construída a partir dos anos de ditadura e visando a uma concepção e práticas de saúde mais ampliadas que a concepção apenas biomédica. Ela honra sua origem quando passa para a sociedade brasileira um conhecimento complexo sobre a relação saúde & sociedade; saúde & estado; saúde & medicina; saúde & terapêuticas tradicionais. Mas é também importante quando participa do debate acadêmico e político sobre ciência & tecnologia no Brasil; sobre interfaces do conhecimento; sobre as políticas sociais e saúde; sobre sociedade civil e a construção de uma sociedade saudável. E isso a Abrasco faz por meio de suas diretorias e, sobretudo, por meio de suas comissões temáticas e grupos de trabalho. 11 José Gomes Temporão: Atual ministro da Saúde, do governo Lula. Temporão pertence à geração de Sérgio Arouca e outros sanitaristas que ajudaram a dar forma ao Sistema Único de Saúde (SUS). Ele formou-se em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Temporão é mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ e doutor em Medicina Social pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line). 11SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 IHU On-Line - Quando falamos de Saúde Coletiva, qual é o impacto da violência sobre a saúde? Maria Cecília Minayo - A violência, desde os anos 1970, vem sendo paulatinamente incluída na pauta do setor saúde, primeiramente por parte de algumas categorias médicas, sobretudo os pediatras quando tratam da violência na infância. Em seguida, houve a apropriação do tema pelas organizações internacionais como a OMS (Organização Mundial de Saúde) e a OPAS (Organização Pan America de Saúde). Em 1994, a OPAS publicou uma resolução sobre o assunto, definindo-o como tema próprio da agenda do setor. Em 1997, na Assembléia de Ministros do mundo inteiro, a OMS também assumiu essa pauta e, no ano 2000, colocou a violência como uma das cinco primeiras prioridades para atuação na Região das Américas. Em 2002, ainda a OMS publicou um documento muito importante denominado Violência e saúde, no qual não se deixam dúvidas sobre sua posição. No caso brasileiro, desde 1998, o Ministério da Saúde se envolveu também com o tema, e em 2001 publicou uma portaria oficializando sua decisão de atuar por meio do documento Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes e violências. A ação do setor se deve ao fato das violências e acidentes constituírem, hoje, a segunda causa de mortalidade no país. E, na larga faixa de 5 a 49 anos, esses agravos constituem a primeira causa de óbito. Para que tenhamos uma dimensão desse fato, anualmente morrem mais de 100.000 pessoas por essas causas e na década de 1990 mais de um milhão de brasileiros foram fatalmente vitimizados por acidentes e violências. Esses dados estarrecem porque eles compreendem uma magnitude muito mais relevante que as perdas de vida em várias guerras do passado e do presente. Como a saúde trabalha com a promoção da vida, com a qualidade de vida, com os cuidados com a pessoa, a atenção e a prevenção da violência, fazem parte de sua agenda. De forma diferente do setor de segurança pública que busca o criminoso, o delinqüente, o infrator para puni-lo, o setor saúde busca a vítima para cuidar dela e para - do ponto de vista da promoção da saúde - trabalhar as relações que enredam vítimas e agressores nas ações contra a vida. 12SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 “A integralidade é uma diretriz que traz em si o significado ético-político do ‘cuidado-cuidador’, de trabalho em rede” ENTREVISTA COM TÚLIO BATISTA FRANCO Túlio Batista Franco, doutor em Saúde Coletiva pela Unicamp, é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde coordena o Programa de Pós- graduação em Saúde Coletiva da UFF. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, ele afirma que “a integralidade está ligada à idéia de uma alta eficácia nos serviços de saúde e um processo de trabalho centrado no usuário”. Túlio Franco possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e mestrado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Confira a entrevista: IHU On-Line - Qual é o lugar da integralidade no âmbito dos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)? Que desafios se inserem neste campo? Túlio Franco - A integralidade assume uma prioridade entre os princípios do SUS, pois ela significa a assistência ao usuário, em tudo o que representa sua necessidade. Isto vai desde a garantia de boas condições de vida, ser acolhido nas Unidades de Saúde, ter seus problemas resolvidos, até, sobretudo, possuir acesso a todas as tecnologias de cuidado. Portanto, a integralidade está ligada à idéia de uma alta eficácia nos serviços de saúde e um processo de trabalho centrado no usuário. Os principais desafios para a integralidade, como princípio e diretriz do SUS, está na sua inserção como rotina nas práticas de cuidado. Ou seja, é necessário dar à integralidade um conteúdo operacional, prático e fazer com que seja absorvida pelo conjunto dos gestores, trabalhadores e usuários, tornando-a presente na vida cotidiana dos serviços de saúde, seja no hospital, seja em unidades básicas, territórios e domicílios do Programa Saúde da Família, por exemplo. IHU On-Line – Quais são os desafios colocados às tentativas de integralidade na dinâmica de assistência à saúde nos serviços públicos? Túlio Franco - A primeira idéia de integralidade no SUS está vinculada ao conceito de integrar serviços de prevenção e promoção à saúde, com os de assistência. Isto está na origem do SUS e inscrito na Lei Orgânica da Saúde (Lei Federal 8080). Mas essa noção de integralidade já foi, há muito tempo, superada por outra, que tem por objetivo a produção de serviços de saúde, em rede, onde a integralidade opere de forma sistêmica, e seja incorporada como algo inerente aos serviços de saúde. Associamos a integralidade, do ponto de vista operacional, com a imagem de uma “linha de produção do cuidado”. O que é isso? As “linhas de cuidado” significam uma assistência que se produz por fluxos contínuos entre os serviços, com o acesso assegurado e tranqüilo do usuário, a toda a rede assistencial, buscando os recursos necessários à resolução do seu problema de saúde. Isso tem sido experimentado em vários municípios, que inovam na 15SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Saúde pública: cuidado integral ENTREVISTA COM VICTOR VALLA “Em que medida o ‘sofrimento difuso’ é compreendido, no Brasil, como elemento componente da demanda em saúde?”, questiona o professor Victor Valla, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, o “sofrimento difuso” ainda não está previsto como demanda legítima, e o sistema público de saúde “também não está estruturado para lidar com isso”. A idéia de cuidado integral, explica o professor, não trata “da cura de uma doença, mas da reconstituição ou da produção de um estado geral físico, mental, emocional, que não implica o não-adoecimento”. Por isso, ele reitera que o cuidado integral não é “uma mera concepção geral, mas um verdadeiro dispositivo de ação no campo da saúde”. Victor Valla, considerado um dos especialistas da educação em saúde no país, possui graduação em Educação, pela Saint Edward's University, mestrado em História Social, pela Universidade de São Paulo, doutorado em História Social, pela Universidade de São Paulo, e pós-doutorado, pela University of California. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal Fluminense e pesquisador titular do Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Pública. Confira a entrevista: IHU On-Line - Constata-se, hoje, que uma parcela considerável da população brasileira vive uma situação de “sofrimento difuso”, que se traduz em queixas de ansiedade, angústia, depressão, medo, pânico e dores generalizadas. Em que medida o atendimento da saúde pública no Brasil está instrumentalizado para lidar com tal sofrimento? Victor Valla – A instrumentalização de um sistema de serviços, como os da área de saúde, para lidar com sua demanda, envolve elementos diversos e muito complexos, que, para os fins dessa discussão, podem ser sintetizados em pelo menos dois pontos-chave: preparo dos profissionais especializados da área e organização sistêmica adequada à cobertura dos diversos aspectos previsíveis da demanda e da sua articulação. Pode-se notar que tanto o preparo profissional quanto a organização “adequada” do sistema pressupõem uma concepção da “demanda” a ser atendida, o que envolve não apenas o mapeamento da população, mas, também, das situações que serão consideradas objeto de atendimento. O próprio “mapeamento da demanda”, portanto, implica a seleção dos aspectos previstos para serem objeto de atendimento, o que, por sua vez, influi, inevitavelmente, tanto no perfil da formação profissional quanto no perfil do sistema de serviços. A discussão sobre e a instrumentalização do sistema brasileiro de saúde pública para lidar com o “sofrimento difuso”, portanto, deve começar com uma interrogação: em que 16SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 medida o “sofrimento difuso” é compreendido, no Brasil, como elemento componente da demanda em saúde? Se investigarmos quaisquer dos aspectos acima levantados, veremos que a noção de sofrimento difuso ainda não constitui, no Brasil, um elemento estruturante nem da formação profissional nem da organização do sistema na área de saúde. O “sofrimento difuso” não está previsto como demanda legítima. Os cursos de formação profissional na área, na sua maioria, não abordam sistematicamente o problema. O sistema público de saúde, por sua vez, expressando as concepções e práticas hegemônicas no campo médico, também não está estruturado para lidar com isso. Em termos funcionais, para além da precariedade do sistema como um todo, os entraves são inúmeros, envolvendo o despreparo profissional para compreender e abordar o problema, encaminhando-o adequadamente; a organização do atendimento médico segundo critérios de tempo e de produtividade, que dificultam também a abordagem adequada do problema, mesmo por parte dos profissionais que já avançaram nessa questão; a completa inadequação da organização burocrática do atendimento, envolvendo desde a desorientação do usuário até o seu submetimento a condições e tempos de espera verdadeiramente desumanos. Enfim, um conjunto de elementos que, em si, podem ampliar o próprio estado de sofrimento do usuário, porque reproduzem, na esfera dos serviços de saúde, a falta de comunicação e de compreensão, os sacrifícios, as incertezas, a não- resolutividade de problemas elementares que marcam a vida cotidiana dos pobres, produzindo seu adoecimento. O que se pode depreender daí é que ainda existe uma grande distância entre, de um lado, as concepções e meios disponíveis de intervenção médica e, de outro lado, as condições efetivas de vida que produzem e reiteram, cotidianamente, o sofrimento difuso. A resposta para isso é lenta, porque envolve mudanças culturais (inclusive de cultura científica) e materiais imensas. Exatamente por isso, deve merecer atenção especial de nossa parte. Um caminho fundamental, nesse caso, é admitirmos que não há compreensão adequada da demanda sem um reconhecimento de que o “objeto” da ação médica é um sujeito que deve ser sistematicamente ouvido, considerado e compreendido na construção de todas as noções e ações que constituem o chamado “atendimento à saúde”. IHU On-Line - Como situar a importância do cuidado integral e da atenção básica no processo de recuperação da saúde? Victor Valla – A idéia de “cuidado integral”, de antemão, pressupõe uma determinada significação de “recuperação da saúde”: não se trata, nesse caso, da cura de uma doença, mas da reconstituição ou da produção de um estado geral físico, mental, emocional, que não implica o não-adoecimento, mas condições gerais de saúde que envolvem certa capacidade de enfretamento de situações diferenciadas de exigência física, mental e emocional por parte das pessoas, incluindo-se, nesse caso, os próprios estados de adoecimento. “Ter saúde”, de fato, não tem a ver com “não adoecer”, mas com as nossas condições de enfrentamento do próprio adoecimento, se e quando ele ocorrer. A partir dessa perspectiva, o “cuidado integral” não é uma mera concepção geral, mas um verdadeiro dispositivo de ação no campo da saúde, tratando-se de uma concepção implicada com um conjunto encadeado de procedimentos capazes de uma abordagem integral da saúde, ou seja, uma abordagem dos aspectos diversificados implicados com a produção de um estado geral de enfrentamento das exigências físicas, mentais e emocionais, incluindo-se as situações de adoecimento. Assim, no que diz respeito aos estados de doença, o cuidado integral deve envolver todos os aspectos implicados, ainda que “remotamente”, com a produção e os desdobramentos do adoecimento, implicando etapas 17SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 diferenciadas de contato com o problema, que estarão relacionadas com as práticas sistemáticas de prevenção, incluídas as ações no interior do atendimento básico; com o encaminhamento correto e em tempo hábil do tratamento; e com o acompanhamento do processo de recuperação. A “atenção básica”, nessa perspectiva, é um dos itens componentes do “cuidado integral”, envolvendo o atendimento médico com vistas à elaboração diagnóstica e ao encaminhamento adequado do tratamento, bem como algumas práticas preventivas e ações de acompanhamento de estados que não são necessariamente de doença, mas de possibilidade de fragilização da saúde, exigindo o monitoramento de processos, como no caso de acompanhamento pré-natal, de acompanhamento do idoso ou do portador de alguma doença crônica. As propostas de acompanhamento estratégico de saúde da família têm posição similar. Compreendem práticas que permitem um olhar antecipado sobre o surgimento de problemas, ou, ainda, sua detecção ágil, aos primeiros sinais, garantindo-se, com isso, uma atenção igualmente ágil, capaz de antecipar-se ao agravamento do problema. Realizadas plenamente, as práticas de cuidado integral – das que se antecipam à doença e às que têm por finalidade acompanhar seus desdobramentos, garantindo a “recuperação da saúde” – pressupõem uma regularidade na relação entre o profissional de saúde e o usuário, que leva a uma conseqüente proximidade entre ambos e a um sentimento de estabilidade, de orientação, de relativa segurança do usuário em relação ao seu efetivo “atendimento”, elementos essenciais para a recuperação da saúde em sentido ampliado. Em outros termos, pressupõe uma humanização da relação entre profissionais e usuários, e uma humanização do próprio sistema, como condição da recuperação da saúde. IHU On-Line - Como avaliar e lidar com a busca alternativa de caminhos escolhidos pela população para a melhoria da saúde: as terapias alternativas, os novos caminhos de solidariedade e apoio social? Victor Valla – Encarando-as, principalmente, como um saber popular - sobre suas necessidades e sobre os meios disponíveis para saná-las –, que deve ser levado em conta na organização das políticas, do sistema, das práticas e das relações no campo da saúde. As práticas de apoio social são, antes de mais nada, indicativas de formas de ação e de relação, que apresentam grande potência de resolutividade dos problemas vividos pelas classes populares. São práticas pautadas em valores que, considerados na reorganização das práticas médicas, fariam uma verdadeira revolução na área da saúde, porque implicariam na sua reorganização sistêmica, envolvendo novas noções de atenção, de atendimento, acompanhamento, recuperação; nova organização do tempo, dos setores e dos percursos previstos para a realização do atendimento médico. Essa busca alternativa de caminhos é, também, indicativa da reiterada precariedade do sistema de saúde, do histórico descaso das classes dominantes com a saúde pública, da baixíssima resolutividade do atendimento em saúde. Nesse sentido, não pode se considerada como expressão de conformismo, mas como uma prática de resistência, por meio da realização concreta daquilo que é sistematicamente negado. Essa busca alternativa de caminhos afirma, todos os dias, que é possível e necessário garantir o atendimento humanizado da saúde, e o campo da saúde tem muito a aprender com os valores, a disposição e a inventividade afirmados nesses movimentos. 20SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Integralidade: “um sistema de saúde que desejamos, mas ainda estamos longe de atingir” ENTREVISTA COM KENNETH CAMARGO “Há uma certa tentação cientificista de reduzir a realidade, quer em termos dos coletivos, quer nos pacientes individuais, a modelos precisos, ‘racionais’. Do ponto de vista do planejamento, isso redunda na tecnocracia, no caso da atenção à saúde, na incapacidade de efetivamente lidar com os aspectos mais subjetivos das questões de saúde.” Essa é a opinião do professor Kenneth Camargo, em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line. Kenneth Rochel de Camargo Jr. concluiu o mestrado e o doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, tendo realizado pós-doutorado na McGill University em 2000/2001. Atualmente, é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, membro internacional do HIV Center for Clinical and Behavioral Studies, da Columbia University, editor associado do American Journal of Public Health e editor da revista Physis. IHU On-Line - Como se caracteriza a área de saúde coletiva no Brasil e qual é sua peculiaridade com respeito à América do Norte e Europa? Kenneth Camargo - A Saúde Coletiva se constitui como área no Brasil ao longo da década de 1970, pela junção de diversas matrizes teóricas, em particular da tradicional Saúde Pública com as Ciências Sociais e Humanas, com práticas concretas de atenção à saúde das pessoas e de exercício político da cidadania. Essa originalidade confere grande diferença com relação à maioria dos centros de pesquisa e ensino europeus e americanos (há exceções, como a Mailman School of Public Health da Columbia University, em New York), que tendem a trabalhar com apenas partes desse vasto campo interdisciplinar que definimos aqui, traduzido, por exemplo, na construção do SUS - processo ainda em curso, na verdade. IHU On-Line - Como caracterizar o campo da saúde coletiva no processo de construção inovadora de um saber multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar? Kenneth Camargo - A distinção entre multi, inter e trans funciona melhor no papel do que na vida real, diga- se de passagem. Acredito que com relação à Saúde Coletiva brasileira, o que observamos é um movimento de idas e vindas, com maior grau de articulação e organicidade em determinados lugares e ocasiões, que às vezes reflui. Uma preocupação grande da área, e mesmo da comissão que tem feito a avaliação da pós-graduação brasileira, é que o processo de avaliação pode representar uma ameaça aos arranjos multi, inter e transdisciplinares e acabar estimulando o retrocesso a modelos monodisciplinares. IHU On-Line – Qual é o lugar da discussão sobre a integralidade das ações de saúde no horizonte do sistema de saúde brasileiro? Kenneth Camargo - O problema aí é o que se pensa por integralidade - a definição (já clássica) de Ruben 21SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Mattos12 aponta para um caráter tríplice da integralidade, no qual destacaria a integração das ações de saúde e o acolhimento amplo das demandas formuladas aos serviços de saúde. Considerando-se esses dois aspectos, eu diria que ambos são pilares fundamentais do sistema de saúde que desejamos, mas ainda estamos longe de atingir. IHU On-Line - Há como apontar alguns dos equívocos na concepção tecnocrática do planejamento em saúde e no modelo de racionalidade da biomedicina? Kenneth Camargo - Só para ficar no que ambos compartilham, há uma certa tentação cientificista de reduzir a realidade, quer em termos dos coletivos, quer nos pacientes individuais, a modelos precisos, “racionais”. Do ponto de vista do planejamento, isso redunda na tecnocracia, no caso da atenção à saúde, na incapacidade de efetivamente lidar com os aspectos mais subjetivos das questões de saúde (entre outros problemas). Mas note-se que isso não significa o endosso de uma posição anticientífica, muito ao contrário; o acervo de conhecimentos confiáveis penosamente construído por séculos de pesquisas é um patrimônio valioso. O problema, a meu ver, está em estendê-lo para além dos limites razoáveis de sua aplicação. IHU On-Line – Qual é o lugar e significado da Estratégia de Saúde da Família na construção da integralidade nos serviços de saúde? Kenneth Camargo - Em tese, a ESF seria um instrumento de reorientação do modelo assistencial em direção às marcas de integralidade que desejamos. Na 12 Ruben Mattos: médico sanitarista, diretor do Instituto de Medicina Social da UERJ (IMS/UERJ). Graduado em Medicina, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e doutor em Saúde Coletiva, pela mesma instituição, organizou inúmeras obras, das quais citamos Trabalho em equipe sob o eixo da integralidade: valores, saberes e práticas (Rio de Janeiro: CEPESC; ABRASCO, 2007). (Nota da IHU On- Line) prática, em que pesem inegáveis avanços e contribuições dessa estratégia, há problemas consideráveis a serem vencidos, dos quais eu destacaria dois: a escassa articulação com os demais níveis de complexidade na atenção e a predominância de vínculos precários dos profissionais dos programas, em particular dos médicos, levando a um turnover intenso de mão-de-obra que significa um obstáculo importante para um dos pilares da estratégia proposta, que é a integração com a comunidade. 22SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 A necessidade de avançar na democratização da saúde ENTREVISTA COM JAIRNILSON SILVA PAIM Jairnilson Paim, sanitarista interdisciplinar, transita entre vigilância epidemiológica e gestão de serviços em suas pesquisas. Ele possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Bahia e mestrado em Medicina pela mesma instituição, onde atualmente é professor. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Pública. Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele afirma que “a forma mais efetiva de ver a saúde coletiva ‘na prática’ é avançando na democratização da saúde em termos de universalização da atenção, equidade, integralidade, efetividade e qualidade das ações, humanização do cuidado e participação social”. IHU On-Line - Como é a situação da saúde pública na Bahia? O conceito de Saúde Coletiva pode ser visto na prática? Jairnilson Paim - Entendo a Saúde Coletiva para além de um conceito: trata-se de um campo científico e um âmbito de práticas que tomam como objeto as necessidades de saúde da população e seus determinantes, bem como as práticas e políticas de saúde. A Saúde Coletiva apresenta convergências e divergências com a saúde pública institucionalizada. Entre as convergências, podem ser mencionadas a ênfase no estudo da distribuição dos problemas de saúde na população e a busca de respostas sociais organizadas para superá-los. Entre as diferenças, cabe sublinhar o compromisso radical da Saúde Coletiva com os valores da autonomia, emancipação, liberdade, solidariedade e a democratização. A Saúde Pública, pela sua história, vincula-se ao Estado e tem reproduzido práticas verticais, tecnocráticas e autoritárias. A Bahia foi um dos primeiros estados a desencadear o processo da Reforma Sanitária duas décadas atrás, mas o mesmo foi interrompido, observando-se um grande atraso na implementação do SUS e um sério retrocesso em termos de práticas inovadoras. Exibe péssimos indicadores de saúde, bem como de oferta e acesso aos serviços. Presentemente, todavia, há uma equipe de jovens dirigentes com formação em Saúde Coletiva na condução do SUS estadual, tendo a saúde como prioridade de governo. Constata-se um empenho muito intenso no sentido de superar o atraso e de melhorar as condições de saúde e a qualidade de vida das baianas e dos baianos. A forma mais efetiva de ver a “Saúde Coletiva na prática” é avançando na democratização da saúde em termos de universalização da atenção, equidade, integralidade, efetividade e qualidade das ações, humanização do cuidado e participação social. IHU On-Line - Como, no seu entendimento, deve ser o cuidado de um paciente quando falamos de Saúde Coletiva integrada e transdisciplinar? Jairnilson Paim - Em primeiro lugar, o “paciente” deve ser visto como um sujeito de direitos, um cidadão, uma pessoa nas suas dimensões biológicas, psicológicas e sociais. A interdisciplinaridade dos saberes que constituem o campo da Saúde Coletiva ajuda, portanto, a cuidar das pessoas, individual e coletivamente, nessa perspectiva integral. Contudo, faz- se necessária a revisão dos processos de trabalho em 25SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Brasil em Foco Crise financeira internacional: o melhor é esperar ENTREVISTA COM GUILHERME DELGADO A partir do momento em que o estado de confiança dos mercados começa a “se debilitar com crises financeiras desta natureza, estes mercados passam a dar sinais de que pode estar iniciando um processo de reversão cíclica da economia mundial.” A avaliação é do economista e pesquisador do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea) Guilherme Delgado. Na entrevista concedida à IHU On-Line, por telefone, ele ressalta que, embora a economia asiática tenha crescido nos últimos anos, os norte- americanos continuam sendo os responsáveis pelo crescimento mundial. Sobre a exposição do Brasil às crises externas, o pesquisador afirma que as possibilidades são “melhores do que foram no período do Fernando Henrique Cardoso”. E reitera que, na conjuntura atual, o País não sofrerá conseqüências de desestabilização, já que o governo formou “um ‘colchão’ de reservas cambiais, da ordem de 160 bilhões de dólares, o que reforça a proteção de crises financeiras” Mas alerta: “Isso não é um antídoto contra qualquer tipo de crise. No contexto atual, estamos protegidos, mas isso não é definitivo”. Delgado já foi entrevistado pela equipe da IHU On-Line, em outras ocasiões. No dia 10-7-2007, foi publicada, no sítio do IHU, a entrevista “A não convergência da política monetário-financeira e a do desenvolvimento”. A IHU On-Line o entrevistou na edição 228, de 16 de julho de 2007, com o título “Há dólar demais no sistema econômico brasileiro”, em que discute a elevação das taxas de juros no Brasil. O material está disponível no sítio do IHU, através do endereço (www.unisinos.br/ihu). IHU On-Line - O que significa a crise financeira internacional? Por que ela pode afetar a economia de outros países? Guilherme Delgado – De todos os mercados, o financeiro era o mais integrado internacionalmente, já que o processo de globalização começa pela área financeira. A negociação de títulos portadores de renda, como as hipotecas, por exemplo, deixou de ser uma peculiaridade de mercados nacionais, sendo negociada no plano internacional. Portanto, crises ou situações de muita bonança em mercados nacionais, principalmente em mercados de países centrais, se transmitem para o campo da economia. Nesse caso especifico, a crise que vem do sistema hipotecário americano deriva do fato de que as hipotecas imobiliárias contraídas no sistema bancário americano passaram a ser negociadas em escala global, por processos de minimização de risco dos próprios bancos. Por exemplo, ao comprar uma casa, a pessoa emite uma hipoteca. O banco que recebe esse título o negocia com outro banco ou agente financeiro. Este, por sua vez, para garantir a minimização de risco, passa aquele papel para 26SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 um terceiro. Assim, sucessivamente, cria-se uma cadeia da “felicidade” ou da “infelicidade” com esse processo de globalização. Essa exemplificação explica o motivo pelo qual uma crise bem localizada no sistema americano pode afetar outros sistemas, como o europeu, onde ocorreu a intervenção mais maciça do Banco Central Europeu para tentar provisionar os bancos, a fim de que eles não tivessem uma crise séria de liquidez com a inadimplência dos contratos. IHU On-Line - A partir de que momento a crise imobiliária americana pode influenciar ou gerar uma crise no mercado financeiro mundial? Guilherme Delgado – A crise do sistema imobiliário é um fenômeno que pode se dar a qualquer momento e em qualquer país. Ela não é novidade, e, nos últimos 15 anos, já ocorreram várias. A mais recente foi a crise do leste Asiático, entre 1997 e 1999, na qual os países da região passaram por uma conjuntura de caráter financeiro muito grave, que se propagaram para as economias internacionais. Na época, o Brasil foi uma vítima direta, já que os fundamentos macroeconômicos da nossa economia estavam muito precários. Nesse período, o País também tinha uma dependência externa muito grande de financiamento do balanço de pagamentos. Assim, essa crise asiática provocou a desestabilização da política cambial do final de 1998, originando uma exacerbada fuga de capital do Brasil. Portanto, o fato de, atualmente, estar ocorrendo uma crise focalizada em cima de hipotecas é apenas um momento peculiar, pois essa ordem econômica financeira global é muito instável. Não há garantias de que o “boom” de crescimento econômico, que vem se dando nos últimos seis, sete anos, puxado pela economia asiática, vá se prolongar por muito tempo. Em algum momento ele pode reverter. Quando vai reverter? Bom, ninguém tem bola de cristal. Mas, quando o estado de confiança dos mercados começa a se debilitar com crises financeiras desta natureza, estes mercados passam a dar sinais de que pode estar iniciando um processo de reversão cíclica da economia mundial. Entretanto, não há como saber exatamente em que momento a crise imobiliária vai gerar crise no mercado financeiro mundial. Possibilidades Compartilho com a opinião do economista Paul Samuelson13, que disse, através de um artigo publicado na última quarta-feira, 22-7-2008, no jornal O Estado de S. Paulo, que a crise americana pode influenciar o mercado mundial, dependendo do cenário que se estabeleça daqui para frente. Se, a partir de 2008, ocorrer uma recessão suave na economia norte- americana, e se prorrogar para o resto do mundo, isto provavelmente afetará negativamente a economia mundial. Por outro lado, se a intervenção dos Bancos Centrais for suficiente, nada mudará. É importante compreender que a economia é uma ciência pobre do ponto de vista de previsão, porque ela trabalha com as variáveis psicológicas e de natureza puramente avaliativa, que mudam o tempo todo. Por isso, nós não sabemos dizer exatamente o que ocorrerá no futuro. IHU On-Line - Economistas alertam que se a crise financeira dos Estados Unidos se prolongar, a balança comercial brasileira também poderá ser afetada. O Brasil está protegido e tem condições de se manter, caso a crise financeira permaneça? 13 Paul Anthony Samuelson (1915): economista americano. É considerado um economista "generalista”, pois suas contribuições para a ciência econômica são dados em vários campos. Desenvolveu teorias nos campos da economia estática e dinâmica, trabalho que lhe atribuiu o Nobel da Economia, em 1970. Seu livro Economics (Economia) fez parte dos grandes manuais de Economia do século XX, junto com as obras de Adam Smith. (Nota da IHU On-Line) 27SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Guilherme Delgado – Na hipótese de uma crise mais profunda dos mercados globais, isso afetaria todas as economias. Mas as conseqüências da crise serão diferentes em todos os países. Para ilustrar essa afirmação, vou resgatar brevemente um fato que aconteceu em 1982. Nesse ano, ocorreu a Moratória do México14, que desencadeou a grande crise financeira da qual a economia brasileira até hoje se ressente porque não recuperou o crescimento. Essa crise, por exemplo, afetou o Brasil, mas não, igualmente, outros países. Eu diria que, atualmente, o grau de exposição a crises externas da economia brasileira é bem melhor do que foi no período do Fernando Henrique Cardoso. Portanto, perante a crise que está ocorrendo, o Brasil está relativamente protegido. Aparentemente, nós não sofremos conseqüências de desestabilização, pois há hoje uma dependência de recursos externos muito menor do que tinha no governo de FHC. Atualmente, não temos déficits na conta corrente do balanço de pagamento. Ao contrário, há quatro anos temos superávit na conta corrente e um saldo comercial acima de 40 bilhões de dólares. Isso permitiu que, nos últimos anos, se formasse um “colchão” de reservas cambiais, da ordem de 160 bilhões de dólares. Esse valor deixa o sistema mais protegido à crises financeiras. Agora, isso não é um antídoto contra qualquer tipo de crise. No contexto atual, estamos protegidos, mas isso não é definitivo. 14 Moratória do México: O crédito barato na década de 1970 fez com que México obtivesse um crescimento econômico nesse período. Mas sua economia ainda ficou bastante vulnerável e dependente dos Estados Unidos. Quando o governo estadunidense aumentou as taxas de juros, devido à crise do petróleo, a exportação de produtos mexicanos diminuiu. Muitos países da América Latina foram atingidos pela crise devido ao alto endividamento de suas economias. Assim, a dificuldade de acesso a financiamento externo decorrente da moratória mexicana provocou graves crises de liquidez nos países latino-americanos. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line - Que conseqüências as oscilações podem trazer para o Brasil? Guilherme Delgado – Embora o crescimento mundial tenha se dado fortemente pela expansão chinesa, a economia norte-americana continua sancionando o crescimento mundial. Se a economia norte-americana se contrai, o mesmo irá ocorrer com a expansão econômica do leste asiático. Isso provoca uma recessão no comércio internacional, que afetaria o Brasil, reduzindo o superávit comercial que realizamos de maneira expressiva há quatro anos. Com isso, limitar-e-ia o crescimento e a expansão das exportações no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). As conseqüências para o Brasil vão depender da magnitude dessa recessão, da forma como o País poderia diversificar as exportações. Ao mesmo tempo, como temos um mercado interno que é a maior alavanca do PIB, já que as exportações correspondem a apenas 15% do PIB, nós podemos ter uma reorientação no processo de crescimento e não sentir de forma aguda o processo de recessão na economia mundial. IHU On-Line - Como o senhor avalia a atuação do governo perante a crise? Guilherme Delgado – Até agora, o governo está esperando, avaliando e resistindo, corretamente, a tomar medidas de ajuste fiscal. Uma elevação da taxa de juros, neste momento, seria inócua para melhorar a situação externa e contraproducente internamente. Inócua porque nós não precisamos atrair capital externo. Por sua vez, a elevação da taxa de juros tem um impacto fiscal imediato sobre o estoque da dívida pública interna. Portanto, não realizar ações de ortodoxia financeira é fundamental para não agravar a situação. Não fazer nada no momento, que é o que o governo está fazendo, é muito melhor do que fazer coisa errada. Essa atitude de esperar tem nos beneficiado. A ação dos Bancos Centrais europeus e americano, de reduzir a taxa de redesconto 30SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Toda essa trama de espionagem e mistério é mantida pela direção precisa de Greengrass. Não há diretor melhor na atualidade para fazer filmes de ação – ou melhor, para elevar o patamar de um gênero que se desgastou nos últimos anos. A supremacia Bourne mantém o ritmo veloz durante suas quase duas horas. Ainda assim, o diretor e o trio de roteiristas, Tony Gilroy, Scott Z. Burns e George Nolfi, conseguem desenvolver personagens e ações sem que nada pareça precipitado. Bourne quer vingar-se das pessoas que mataram sua mulher (Franka Potente, vista aqui apenas em flashback). Tudo o que aprendeu em seu treinamento poderá ser-lhe muito útil agora que caça os assassinos e as pessoas que roubaram a sua identidade. E, à medida que Bourne fica mais próximo de descobrir sua verdadeira identidade, menos ele gosta do que fica sabendo. Com O ultimato Bourne, a trajetória do personagem fecha-se num círculo perfeito. A resolução não é simples, mas é interessante e plausível. E dá ao homem misterioso que surgiu em A identidade Bourne (2002) o grand finale que ele merece. “Temos medo e não sabemos do quê”, afirma Matt Damon Matt Damon, em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 24-08-2007, afirma: “O fato é que ele (Jason Bourne) não sabe por que matava. Não sabe para que tipo de pessoas da CIA trabalhava. Mas sabe que há algo errado e quer descobrir o porquê disso. De certa forma, esse mal-estar dele diz muito sobre nosso mal-estar atual. Temos medo e não sabemos do quê. E digo isso muito como cidadão norte- americano. Lutamos, lutamos e a grande maioria dos americanos não sabe contra o que exatamente”. Jason Bourne (Matt Damon), “imerge no mundo contemporâneo, um mundo, esse sim, sem respiração ou pontos de ancoragem. Ele é um personagem atormentado, que vaga como um bólido por diversos cantos do mundo global, Estados Unidos, Rússia, França, Espanha, Marrocos, Inglaterra, Alemanha, como um fantasma de si mesmo. O que Bourne persegue? Seu eu, nada menos do que isso. Ao mesmo tempo em que persegue, é perseguido, pois tornou-se perigoso”, comenta Flávia Guerra no jornal O Estado de S. Paulo, 24-08-2007. Segundo ela, “usando técnica totalmente não discursiva, Greengrass apresenta sua visão complexa do mundo. Assim como em seu United 93 os seqüestradores não eram mostrados como demônios desmiolados e fanáticos, em O ultimato Bourne, o mundo não se dividide entre heróis e vilões. Greengrass fala de agências governamentais, a CIA, no caso, que se tornam criminosas pelo excesso de poder, e fala também de agentes que entram no coração da besta e depois não sabem mais como sair dele. Mas este não é mais o mundo da guerra fria, em que os dois campos em conflito podiam achar-se a fonte de todo o Bem e deslocar o Mal para o lado oposto. Embaralhou tudo. E O ultimato Bourne discute, entre outras coisas, essa ausência de porto seguro e perda da identidade - que, por paradoxo, torna-se dominante num tempo de individualismo exacerbado”. “Ainda que baseada na novela de Robert Lundlum, o monstro do thriller conspirativo, o filme tem pouco ou nada a ver com os livros originais”, escreve Rodrigo Fresán, em artigo publicado no jornal argentino Página/12, 26-08-2007. “Mas essa liberdade de 31SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 adaptação, longe de ser negativa, permite que a saga evada as marcas de uma época passada e se converta o espia amnésico num herói perfeito em tempos de terrorismo internacional. Há algo na saga que toca o americano médio, desde aquela manhã de 1963, em Dallas, e que manteve Lundlum no mais alto: a idéia de que tudo o que nos dizem pessoas como Dick Cheney15 e Donald Rumsfeld16 (perfeitos seres ludlumitas) não é, totalmente, correto. Daí que Bourne, nascido no início dos anos 1970, filho de Watergate e da Guerra Fria, equivale à revanche que desmascara. Assim, emociona que neste filme, Bourne deixe de ser o perseguido para se converter no perseguidor”. 15 Richard Bruce Cheney (1941): político estadunidense e empresário associado ao Partido Republicano. Atualmente, Cheney é o 46º vice- presidente dos EUA. Cheney foi figura-chave no endurecimento da política externa americana e é considerado o arquiteto da guerra do Iraque, mais especificamente na elaboração dos argumentos sobre uma conexão entre o regime de Saddam Hussein e a Al-Qaeda, assim como sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque. (Nota da IHU On-Line) 16 Donald Henry Rumsfeld (1932): político norte-americano, ex- secretário da Defesa dos EUA, tendo exercido o cargo de 20 de janeiro de 2001 a 8 de novembro de 2006, sob o governo do presidente George W. Bush. Em 2001, Donald Rumsfeld, desta vez por iniciativa de George W. Bush, foi de novo nomeado secretário da Defesa. Tornou-se o responsável pela planificação de uma nova estratégia militar norte- americana para o século XXI. No dia 8 de Novembro de 2006, Rumsfeld demitiu-se da Administração Bush, culpando-se pela grande derrota que o Partido Republicano teve nas eleições primárias do dia anterior. (Nota da IHU On-Line) 32SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Memória Bruno Trentin, socialista e sindicalista Traduzimos e reproduzimos o artigo que segue, publicado no jornal La Repubblica, 24-08-2007. Aos 81 anos, morreu Bruno Trentin, no dia 22-08-2007. Ele fora secretário da Confederazione Generale Italiana del Lavoro (CGIL), (www.cgil.it), de 1988 a 1994. Foi a CGIL a dar a notícia da morte de Bruno Trentin. O ex-líder sindical, que tinha 81 anos, faleceu na Policlínica Gemelli de Roma, onde estava baixado por uma grave pneumonia. Há um ano, Trentin caíra da bicicleta, na Áustria, acusando um grave trauma craniano que minara as defesas imunológicas. Agora o mundo político e sindical lhe rende homenagem, sublinhando sua visão moderna da sociedade e a plena hostilidade a toda deriva violenta. Giorgio Napolitano17, agora presidente da República, sentou com Bruno Trentin no Parlamento Europeu: “Desaparece com ele – diz – um grande protagonista das batalhas do trabalho, do processo de unidade do sindicato, da história democrática”. Fausto Bertinotti18, também ele líder sindical, atual presidente da Câmara, recorda seu papel: “Da elaboração da virada na CGIL de Di Viottorio, até o papel de guia da FIOM nos anos da insurreição operária, o ex- secretário geral da CGIL encarna a própria história do movimento dos trabalhadores”. Franco Marini19, 17 Giorgio Napolitano (1925): político italiano e o o atual e décimo- primeiro presidente da república italiana, eleito em 10 de maio de 2006. (Nota da IHU On-Line) 18 Fausto Bertinotti (1940): sindicalista italiano, até hoje um dos políticos mais influentes da Itália. É também escritor de diversas obras de caráter político-sindical. Foi eleito presidente da Câmara dos Deputados italiana em 29 de abril de 2006. (Nota da IHU On-Line) 19 Franco Marini (1933): sindicalista e político italiano. Filiado ao partido da Margarida (parte da coalizão A União), foi eleito senador nas presidente do Senado, um vitalício na CISL, fala dele como de um “intelectual refinado”. O primeiro-ministro Prodi20 recorda que não era fácil ter certas posições nos anos do terrorismo: no entanto, “ele se empenhou em definir políticas em tutela dos trabalhadores, no respeito escrupuloso dos valores da nossa Constituição”. O vice-primeiro-ministro Rutelli21 sublinha que Trentin “havia compreendido em tempo as grandes mudanças da sociedade”. “E também as profundas contradições do País”, acrescenta Enrico Letta. Presta-lhe homenagem, neste quadro, o presidente dos industrialistas Montezemolo: “Exprimo as condolências de Confindustria. Trentin era um interlocutor sério e leal. Guiou a CGIL em anos difíceis e desempenhou um papel essencial na definição dos acordos de julho de 93”. A manobra, nota o chefe da UIL Angeletti, “deu resultados preciosos também graças à sua coragem”. E nesta tecla bate o prefeito de Roma, Walter Veltroni22: “Apaixonado conselheiro comunal, “em 1993 esteve entre os protagonistas do corajoso eleições legislativas italianas de 2006 e também presidente da Câmara Alta do parlamento italiano em 29 de abril daquele ano. (Nota da IHU On-Line) 20 Romano Prodi (1939): político e economista italiano, primeiro- ministro da Itália. É líder do partido A Oliveira e da coalizão A União, e disputou com Silvio Berlusconi a chefia do governo da Itália nas eleições legislativas de 2006, obtendo a vitória por pequena margem de votos. (Nota da IHU On-Line) 21 Francesco Rutelli (1954): político italiano, ex-prefeito de Roma, e presidente da alta liberal do Partido das Margaridas. É vice-primeiro- ministro de Romano Prodi. (Nota da IHU On-Line) 22 Walter Veltroni (1955): político italiano e prefeito de Roma desde 2001. (Nota da IHU On-Line) 35SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 a compreensão do diálogo inter-religioso? Roberlei Panasiewicz - Penso que, por Geffré estar envolvido com a Teologia Hermenêutica, ele pôde refletir sobre a Teologia do Pluralismo Religioso com abertura desde o horizonte cristocêntrico. Contrapõe teologia hermenêutica à teologia dogmática. Enquanto esta última é metafísica e parte da autoridade do Magistério da Igreja Católica e, portanto, a verdade deve ser acatada, pois se funda nesta certeza, a teologia hermenêutica é diferente. Ela é histórica e está aberta ao risco da interpretação. Ao articular autor-texto- contexto-intérprete, ele propicia uma leitura dinâmica e atualizada do texto sagrado. A verdade, neste sentido, não está enclausurada na certeza dada pela autoridade, mas é fruto de um processo relacional. Aqui se encontra uma de suas grandes contribuições para o diálogo inter- religioso: pensar a verdade como sendo relacional. Quanto mais as tradições religiosas dialogarem entre si, maior será a percepção do Mistério que todas carregam em “vasos de barro”. IHU On-Line - Qual é a distinção que faz Claude Geffré ao falar voluntariamente de pluralidades e não tanto de pluralismos? Roberlei Panasiewicz - A pluralidade indica a variedade que existe na sociedade. Por exemplo, a pluralidade de culturas indica uma pluralidade de religiões. Refere-se à quantidade. Aponta para o externo. O pluralismo diz respeito às atitudes que acabam se desenvolvendo no interior destes diversos grupos ante as pluralidades. É uma disposição interna aos grupos. Por isso, Geffré diz que o pluralismo religioso é um novo paradigma teológico, pois estimula a teologia cristã a repensar seus tratados teológicos. A pluralidade externa provoca um pluralismo de respostas internas. Essas respostas podem ser inovadoras ou não. A pluralidade invoca o pluralismo. No caso do pluralismo religioso, as reflexões produzidas apontam para a riqueza do Mistério de Deus. IHU On-Line - Quais são as referências para um diálogo profícuo, no qual se respeitem as identidades sem cair em um relativismo de valores éticos e religiosos? Roberlei Panasiewicz - Para qualquer tipo de diálogo há exigência de disposições. Por excelência, o diálogo inter-religioso exige abertura, hermenêutica constante da identidade e tolerância. Abertura em relação a si mesmo, ou seja, trata-se de querer dialogar; em relação ao outro, significa saber escutar; em relação à verdade, saber que é relacional; em relação ao Mistério, compreender que está para além das doutrinas. Uma hermenêutica constante da identidade significa estar em processo contínuo de construção, resguardando e aprimorando cada especificidade (irredutibilidade). A tolerância aponta para o direito sagrado que cada tradição tem de ser ela mesma, de ser diferente. Ser tolerante significa resguardar essa atitude. Essas disposições são fundamentais para qualquer forma de diálogo, seja no dia-a-dia, na troca mística (na oração), na luta por melhores condições de vida e na construção da paz (ética), seja ainda no diálogo entre especialistas (nível teológico). Tendo tais disposições, pode-se articular qualquer forma de diálogo sem cair no relativismo. Como diz o profeta Isaías, quando se quer ampliar a tenda, deve-se aprofundar as estacas. A abertura, a clareza de identidade e a tolerância propiciam amadurecimento das tradições em diálogo sem colocar em risco suas especificidades. IHU On-Line - O diálogo inter-religioso se apresenta como uma estratégia necessária para nossa cultura, ou como uma dimensão essencial da catolicidade ou do próprio Deus? Roberlei Panasiewicz - Para além da catolicidade e da 36SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 própria cultura, penso que o diálogo, e, neste sentido, a troca simbólica, é uma dimensão essencial do ser humano. A felicidade humana só pode ser construída nesta troca simbólica. Quanto mais nos relacionamos, mais mergulhamos no mistério da vida e, paradoxalmente, mais encontramos sentido para nossa existência. Seguindo esse raciocínio, as religiões podem dar grande contribuição para a construção da felicidade humana fomentando diálogos. Assim, o diálogo inter- religioso pode propiciar novas descobertas do Mistério de Deus que as perpassa, favorecer na construção da felicidade humana através da troca simbólica e estimular os líderes e os adeptos a um convívio pacífico e almejar uma mudança de comportamento das lideranças políticas em prol do cuidado das pessoas e do cosmos. Penso, portanto, que o diálogo inter-religioso é de essencial importância para o cuidado do planeta. IHU On-Line - Há possibilidade real de um humanismo islâmico-hebraico-cristão, a ser entendido como uma relevante ocasião para o futuro do nosso planeta...? Roberlei Panasiewicz - Geffré trabalha com a hipótese de que existe um irredutível em cada tradição religiosa, ou seja, cada tradição tem sua especificidade, sua experiência de Deus que não pode ser assumida ou anulada na outra tradição. Essa irredutibilidade é que a torna singular. O diálogo entre elas é de fundamental importância no auxílio ao cuidado com a vida das pessoas, sobretudo dos empobrecidos e os que estão com a vida ameaçada, e no debate sobre os rumos do nosso planeta. Por isso, nos últimos anos, tem havido uma grande aproximação entre Teologia do Pluralismo Religioso e Teologia da Libertação. Como o diálogo entre as religiões pode propiciar mais justiça social e menos miséria? E também o contrário, como a luta por melhores condições de vida pode aproximar as religiões e pode auxiliar novas experiências do Mistério que transcende a todas as tradições religiosas? (E nenhuma tradição religiosa tem o seu monopólio.) É nesse sentido que as três grandes religiões monoteístas têm contribuições valiosas para o futuro do planeta. Como elas têm um tronco comum, fala-se em “ecumenismo abraâmico”, visando transformar as rivalidades em entendimentos em prol de demarcações de identidades e construções de solidariedades e proteção planetária. O Criador, no processo da criação, tornou o ser humano um co-criador, portanto, co-responsável no cuidado com o universo. Oxalá tenhamos esse cuidado! 37SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Destaques On-Line DESTAQUES DAS NOTÍCIAS DO DIA DO SÍTIO DO IHU Essa editoria veicula notícias e entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU. Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente. ENTREVISTAS ESPECIAIS FEITAS PELA IHU ON-LINE DISPONÍVEIS NAS NOTÍCIAS DO DIA DO SÍTIO DO IHU (WWW.UNISINOS.BR/IHU) DE 20- 08-2007 A 26-08-2007 O impacto do etanol sobre as populações indígenas Antonio Brand, historiador Confira nas Notícias do Dia 20-08-2007 O pesquisador Antonio Brand fala da mortalidade infantil e do problema da fome que assola as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul. Ele aborda também o problema da perda da autonomia dos índios e do evento que está organizando, intitulado Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas. Sindicato ‘coletivo’ x Sindicato ‘indivíduo’. A tensão permanente. Marisa Stedile, sindicalista Confira nas Notícias do Dia 21-08-2007 A presidente do Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região Metropolitana Marisa Stedile acredita que o sindicato vive em uma permanente tensão. Por um lado, precisa encaminhar as lutas gerais da categoria e, por outro, se exige que ele dê resposta imediata às demandas particulares. Segundo Marisa, a nova configuração do mundo do trabalho empurrou os sindicatos para a defensiva. Porém, a partir da eleição de Lula, a sindicalista enxerga um novo ascenso na luta sindical. Militância e cultura durante a ditadura militar brasileira Miliandre Garcia, historiadora Confira nas Notícias do Dia 22-08-2007 Miliandre Garcia fala sobre o livro de sua autoria, intitulado Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964), que analisa a origem e a riqueza dos projetos culturais e dos debates desenvolvidos no interior do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE). Televisão digital: uma nova era na TV Brasileira Valério Brittos, pesquisador Confira nas Notícias do Dia 23-08-2007 O professor da Unisinos, Valério Brittos, fala sobre seu mais recente livro A televisão brasileira na era digital: exclusão, esfera pública e movimentos estruturantes (São Paulo: Editora Paulus), escrito em parceria com César Bolaño. Na obra, os autores discutem os problemas atuais que mais envolvem a televisão digital no Brasil. Também traçam um diagnóstico sobre a produção televisiva, a indústria cultural, o estado da televisão digital no Brasil e no mundo e comentam sobre as falhas do governo em relação a essa nova tecnologia que chega ao país. 40SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 'Descobri aquele segredo há dez anos – ajudou-me a entender sua grandeza'. Irmã Nirmala Confira nas Notícias do Dia 27-08-2007 A irmã Nirmala Joshi conhecia há tempo o conteúdo das cartas escritas pela Madre Teresa. Mas, enquanto a beata de Skopje estava viva, não sabia nada de suas crises e do “lado obscuro” dos conflitos de fé, embora garanta não ter realmente ficado surpresa. “É tudo obra de Deus”, diz ela do quartel geral da Congregação de Calcutá durante a vigília de preparação das cerimônias pelo aniversário de nascimento da beata. “O Senhor cria os obstáculos na vida das pessoas santas como parte de um processo de purificação.” A entrevista com a irmã Nirmala foi publicada pelo jornal La Repubblica, 26-08- 2007. Frases da Semana SÍNTESE DAS FRASES PUBLICADAS DIARIAMENTE NAS NOTÍCIAS DO DIA NO SÍTIO DO IHU. Brastemp “[As pessoas] viram que não somos a Brastemp que imaginavam. Tiveram um choque de realidade" – Jacques Wagner, governador da Bahia pelo PT – Folha de S. Paulo, 21-08-2007. Design ‘heróico’ “Eu acho que muita gente da nova geração está hipnotizada pelo consumismo exagerado e pelo design ‘heróico’” - Tom Dixon, considerado um dos expoentes da atividade no Reino Unido e um dos mais celebrados designers em âmbito mundial – Folha de S. Paulo, 21-08- 2007. Nomes “A maioria dos americanos pensa que o Brasil e o México são os melhores amigos dos EUA, mas a grande maioria não saber dizer o nome os presidentes de cada um dos dois países” – Peter Hakim, presidente do Diálogo Interamericano – Clarín, 22-08-2007. Urubu “Com tanta sujeira naquelas bandas, por que raramente se vê um urubu no céu de Brasília?” – Joel Silveira, repórter, lida na missa de sétimo dia por Frei Clemente, que não resistiu e comentou: “Ah, deveriam mandar esta para o Renan”. A gargalhada foi geral – O Globo, 23-08-2007. Friedman “Milton Friedman deve estar se revirando no túmulo. Ele havia aconselhado com firmeza: nunca, nunca salve pessoas insensatas que cometeram erros graves e saíram prejudicadas” - Paul A. Samuelson, jornalista, no International Herald Tribune – Folha de S. Paulo, 23-08- 2007. Falta de provas “A tendência do Supremo Tribunal Federal no caso dos mensaleiros é a mesma do caso Fernando Collor: acatar a denúncia agora e no fim absolver boa parte dos envolvidos, pelo motivo de sempre - a falta de provas” – Eliane Cantanhêde, jornalista – Folha de S. Paulo, 24- 08-2007. 41SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Commodoty “Ele tratou a América Latina como uma commodity” - Álvaro Augusto Vidigal, ex-presidente da Bovespa, referindo-se a Edmund Phelps, prêmio Nobel de Economia – O Estado de S. Paulo, 24-08-2007. Aborto “O ministro da Saúde tem razão: aborto é questão de saúde pública!” – Lena Lavinas, doutora em economia e professora associada do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) – Folha de S. Paulo, 24-08-2007. “Quem julga o recurso ao aborto como uma escolha irresponsável de contracepção insiste em ignorar que toda contracepção - à exceção da esterilização - é falível. E é isso que justifica assegurar o direito ao aborto a todas as mulheres que optarem por lançar mão desse último recurso. Uma escolha que também nós, brasileiras, queremos ter” – Lena Lavinas, doutora em economia e professora associada do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) – Folha de S. Paulo, 24-08-2007. Chagas “Pasme, governadora. Eu jamais imaginei que o Rio Grande do Sul tivesse doença de Chagas” – Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República – Zero Hora, 26- 08-2007. Contrição “Levanto cedo, vou para o computador, planto as árvores e fico com a consciência mais leve. Não entendo muito sobre aquecimento global. Mas acompanho o tema e sei que sou parte do problema. A gente sente culpa, e comecei a fazer isso para aliviar um pouco a consciência” - Cecília Martinez, aposentada, jardineira eletrônica de um site ligado ao projeto SOS Mata Atlântica, em que internautas podem plantar árvores bancadas por empresas – Folha de S. Paulo, 26-08-2007. “Essas são as mesmas pessoas que hoje deletam o pecado pelo plantio de árvores na internet. Limpo minha semana perversa com uma boa ação. É uma tremenda descarga de responsabilidade" – Jorge Forbes, psicanalista, comentando o “ato de contrição eletrônica”, da pessoa da frase acima, lembrando que, há 30 anos, as pessoas iam à igreja, falavam o que tinham cometido, rezavam e comungavam até voltar a pecar – Folha de S. Paulo, 26-08-2007. 42SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 45SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 destinado por nascimento, abandona a sociedade e vai viver em isolamento, como um eremita. Estas pessoas por vezes podem se tornar elementos importantes na dinamização daquele sistema social, como foi o caso do Buda. Originalmente um príncipe brâmane, chamado Sidarta Gautama, sua renúncia à posição e prerrogativas que lhe eram devidas levou- o a se isolar e meditar. Da iluminação resultante, originou-se uma das maiores religiões de todo o mundo, que viria a relativizar mesmo a rígida estrutura do sistema de castas hinduísta. IHU On-Line - O que essas descobertas demonstram sobre as ideologias de hierarquia e igualdade? E sobre a emergência do individualismo na sociedade moderna, o que as obras de Dumont revelam? Édison Gastaldo - Hierarquia e igualitarismo são duas maneiras de organizar as sociedades humanas. Por toda parte, aspectos de uma e de outra ideologia podem ser encontrados: há relativo igualitarismo dentro de cada casta, e há hierarquia na sociedade individualista – que a estratificação por classes sociais ou o preconceito racial evidenciam claramente. É importante deixar claro que, ao se criticar alguns aspectos da sociedade individualista não se prega uma nostalgia das sociedades tradicionais: nestas sociedades, por exemplo, práticas como a escravidão, sacrifícios humanos ou o julgamento sumário, tortura e execução de criminosos em praça pública são maneiras normais de resolver problemas sociais, práticas que o Ocidente individualista busca erradicar, fundamentado em uma de suas premissas: o igualitarismo. O pensamento de Dumont pode ser, neste sentido, uma poderosa ferramenta teórica para pensarmos nosso estar no mundo. 46SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Os cada vez mais imperceptíveis limites entre o humano e o não-humano III CICLO DE ESTUDOS DESAFIOS DA FÍSICA PÁRA O SÉCULO XXI: O ADMIRÁVEL E DESAFIADOR MUNDO DAS NANOTECNOLOGIAS “Levante o dedo quem tem zero de ciborgue”, desafia o químico Attico Chassot, na entrevista exclusiva publicada a seguir, e concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo Chassot, não há dúvidas: “pelo acoplamento que temos, por exemplo, à memória de nosso computador pessoal, que é um apêndice de nossa memória orgânica, somos todos ciborgues. Quantos há que hoje não podem viver no mundo sem depender de memórias eletrônicas?”. A reflexão aberta pela palestra Os cada vez mais imperceptíveis limites entre o humano e o não-humano dá continuidade ao III Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI: o admirável e o desafiador mundo das nanotecnologias. A atividade acontece nesta quarta, 29-08-2007. Vale lembrar que o III Ciclo de Estudos Desafios da Física para o Século XXI tem o caráter preparatório para o Simpósio Internacional Uma sociedade pós-humana? Possibilidades e limites das nanotecnologias, a ser realizado nosso dias 26 a 29 de maio de 2008, na Unisinos. Para maiores detalhes, acesse nosso site, www.unisinos.br/ihu e confira. Chassot é licenciado em Química, mestre em Educação pela UFRGS, doutor em Educação pela UFRGS. E pós-doutor pela Universidade Complutense de Madri e escreveu diversos livros, entre os quais citamos: Para que(m) é útil o ensino de Química? (Canoas: ULBRA, 1995); Alfabetização científica: questões e desafios para a educação (Ijuí: Editora Unijuí: 2001); e A Ciência é masculina? É, sim senhora! (3. ed. revisada. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007). Este último foi tema do IHU Idéias do dia 20-08-2003, antes mesmo de sua publicação. A IHU On-Line entrevistou Chassot sobre os livros apresentados no Sala de Leitura na 87ª edição, de 9-12-2003. Na edição número 6 dos Cadernos IHU Em Formação, intitulada Física, evolução, auto-organização, sistema e caos, escreveu o comentário Mirada ao passado para fazer uma Terra Habitável. Suas contribuições mais recentes à IHU On-Line se deram com as entrevistas “A universidade parece que vive um momento de alienação para com a crise política do País”, na edição 154, de 05-09-2005, e “O antropocentrismo se esboroa cada vez mais”, publicada na edição 231, de 13-08-2007. 47SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 “Levante o dedo quem tem zero de ciborgue” ENTREVISTA COM ATTICO CHASSOT IHU On-Line - Os possíveis “andróides” do futuro, ágeis e inteligentes, serão capazes de desenvolver sentimentos humanos? Até que ponto a ciência e a tecnologia poderão avançar? Attico Chassot – Muito provavelmente, esse seja um campo de conhecimento no qual é temerário fazer qualquer previsão. Quando Júlio Verne1 escreveu muito de seus livros, não imaginaria que seria superado tão rapidamente. Aqui, as ilustrações se ampliam com discussões sobre ciborgues − entendidos como qualquer forma de acoplamento entre ser humano e máquina – e alguns exemplos da robótica, partindo de uma discussão quase bizantina sobre batizar ou não robôs. Muito provavelmente, entre os leitores desta entrevista, há aqueles que têm mais ou menos de ciborgues. Esse termo é da década de 1960, do século XX, e foi criado pela junção das palavras cybernetic organism, usado para designar uma criatura na qual há uma mistura de partes orgânicas e mecânicas2. Desde então, esse termo tem sido usado com muita flexibilidade. 1 Júlio Verne (1828-1905): escritor francês considerado por críticos literários como o precursor do gênero de ficção científica. Em seus livros fez predições sobre o aparecimento de novos avanços científicos, como os submarinos, máquinas voadoras e viagem à Lua. Entre suas obras mais famosas, destacamos, Vinte mil léguas submarinas, escrito em 1870. (Nota da IHU On-Line) 2 A palavra não está dicionarizada na última edição do Houaiss. Está no Aurélio Século XXI: “Suposto ser humano ao qual se adaptam dispositivos mecânicos que comandam suas funções fisiológicas vitais.” Pode ser encontrada com mais detalhes em http://en.wikipedia.org/wiki/Cyborg. Na Wikipédia, em português, o verbete é muito recente, mas está bem completo. (Nota do entrevistado) Timothy Lenoir3, uma das presenças anunciadas para o Simpósio Internacional Uma sociedade pós- humana? Possibilidades e limites das nanotecnologias4, na Unisinos, no ano que vem, diz que ciborgue é “qualquer forma de acoplamento entre ser humano e máquina”. Há os que classificam como ciborgues pessoas com implantes como marca- passos, próteses e até imunizações por vacinas, juntamente com organismos transgênicos, produzidos pela bioengenharia. Assim, pelo acoplamento que temos, por exemplo, à memória de nosso computador pessoal, que é um apêndice de nossa memória orgânica, somos todos ciborgues. Quantos existem hoje que não podem viver no mundo sem depender de memórias eletrônicas. Levante o dedo quem tem zero de ciborgue! Não esqueçam o quanto o telefone celular é para alguns um acoplamento que influi na qualidade de vida. Pensem como muitos de nós (e eu me incluo nestes), usando o computador, temos nosso humor diferente quando não estamos conectados à rede. Hoje, também se fala no inverso: a introdução de partes 3 Timothy Lenoir: filósofo da ciência americano, docente na Universidade de Duke, Estados Unidos. Entre outros livros, escreveu, The strategy of life: Teleology and mechanics in nineteenth century german biology (Dordrecht and Boston: D. Reidel, 1982) e Instituindo a Ciência: a produção cultural das disciplinas científicas (São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004). Lenoir será um dos conferencistas do Simpósio Internacional Uma sociedade pós-humana? Possibilidades e limites das nanotecnologias, que acontece de 26 a 29 de maio de 2008, na Unisinos. Confira a programação do evento no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, www.unisinos.br/ihu. (Nota da IHU On-Line) 4 O tema da conferência de Thimothy Lenoir é Biotécnica, nootécnica e nanotécnica. Os desafios para as ciências humanas. (Nota da IHU On-Line) 50SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 tenho nenhuma condição de responder a essa pergunta. Qualquer coisa que eu dissesse seria mera especulação. IHU On-Line - Como se dá a relação entre ciência e fé, quando falamos em nanotecnologias? Attico Chassot – Não sei se aqui cabe compartir e achar algo particular para as nanotecnologias. O assunto é relevante. Vou repetir o que tenho dito quando trabalho com o ensino de ciência em sala de aula aqui na Universidade e que está mais extensamente apresentado em meu livro A Ciência é masculina? É sim, senhora! (3. ed. Revisada. São Leopoldo: Unisinos, 2007). Há diferentes perspectivas para olharmos o mundo natural: podemos fazê-lo com os óculos das religiões, dos mitos, da ciência, do senso comum, do pensamento mágico, dos saberes populares. Não afirmamos qual é o melhor e mesmo que haja a necessidade de exclusividade, isto é, de nos valermos apenas de um destes óculos. Consideremos duas dessas perspectivas que trazes na tua pergunta: religião e ciência. Estas, mesmo que tenham uma ambição comum de oferecer uma leitura coerente do mundo sensível, ocupam o mesmo espaço: o espaço do pensamento humano. As religiões afirmam a existência de uma verdade global, imanente, eterna, completa, que trata tanto da natureza como do homem. Esta verdade só tem uma exigência para crê-la: a fé. A fé é o necessário e suficiente para a aceitação da verdade inquestionável. Os dogmas, arcabouços de uma determinada religião, devem ser aceitos mesmo com o pressuposto de paradigmas inexplicáveis; e mais, indiscutíveis. A ciência não tem a verdade, mas aceita algumas verdades transitórias, provisórias em um cenário parcial onde os humanos não são o centro da natureza, mas elementos da mesma. O entendimento destas verdades, e portanto a não crença nas mesmas, tem uma exigência: a razão. É o raciocínio, isto é, o uso da razão, a exigência fulcral para o conhecimento. Os paradigmas de qualquer conhecimento científico são constantemente postos à prova e substituídos quando deixam de oferecer explicações convincentes. E aqui parece que se podia pensar em uma não dicotomia. Não seria aqui o espaço privilegiado das religiões para o chamamento à concórdia e à recordação de princípios éticos? Assim, não se prognostica um choque entre o racionalismo científico e a autoridade da fé. Ao contrário: à ciência estaria reservado o papel de explicar e transformar o mundo, e às religiões, entre outras práticas que lhes são funções históricas, como a re- ligação dos humanos ao divino, estaria destinada, juntamente com outros grupos organizados de movimentos sociais, à garantia de que essas transformações sejam para melhor. Parece pouco? Ao contrário, é muito. São utopias, mas... 51SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Impasses e contradições da educação universitária ENTREVISTA COM LAURÍCIO NEUMANN Na entrevista a seguir, o Prof. Dr. Laurício Neumann, docente na Unisinos e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, como coordenador das publicações Cadernos IHU Idéias e Cadernos IHU em Formação, constata que “a maioria dos alunos, de diferentes cursos, relaciona as disciplinas de formação humanística com conhecimentos de formação de valores ou resgate de valores fundamentais. Outros alunos percebem tais disciplinas como uma estrutura ideológica que reproduz as idéias e os valores dominantes da sociedade, com o objetivo de moldar a consciência das pessoas. Também há estudantes que criticam a inserção da Unisinos na economia de mercado, a mercantilização da educação”. A discussão acontece no IHU Idéias desta semana, em 30-08-2007. Neumann é licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição (FAFIMC), em Viamão, mestre em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), e doutor em Educação, pela Unisinos, com a tese Sobre sentido das disciplinas de formação humanística e social de orientação cristã da Unisinos, conforme percepção de alunos e professores, defendida em 2007. Há 30 anos, é professor de disciplinas de formação humanística e social de orientação cristã na Unisinos, entre elas Fundamentos Antropológicos, Humanismo e Tecnologia, Deontologia, Ética Geral, Bioética e Pensamento Social Cristão. É autor dos seguintes livros Realidade brasileira, visão humanizadora (7. ed. Petrópolis: Vozes, 1985); Constituinte: vez e voz do povo? (6. ed. Porto Alegre: Evangraf, 1986); e Educação e comunicação alternativa (3. ed. Petrópolis: Vozes, 1990). 52SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 IHU On-Line – Somando sua experiência como docente da Unisinos aos resultados da sua pesquisa de doutorado, que conclusões você apresenta sobre o sentido dessas disciplinas? Laurício Neumann – Gostaria de dizer que os resultados da pesquisa enriqueceram minha experiência como professor das disciplinas de formação humanística, com uma base mais científica, permitindo compreender as falas de alunos e professores, como também as disciplinas de formação humanística em si e a proposta de formação humana integral da Companhia de Jesus num contexto maior, isto é, dentro e fora da sala de aula e da Unisinos. Neste contexto, a pesquisa permitiu compreender também os limites, as possibilidades e as contradições da formação humanística na Unisinos e fora dela. Antes de mostrar os resultados da pesquisa e fazer uma avaliação dos mesmos, gostaria de explicar como cheguei a estes resultados. Uma vez definido o foco da questão de pesquisa, optamos pelo método qualitativo de pesquisa, por entendermos que ele possibilitaria uma compreensão do fenômeno em maior profundidade. A partir de então, não mais priorizei a quantidade de depoimentos, mas a sua qualidade. Desse modo, optei pelo exame de um número menor de depoimentos, porém mais significativos, para nos ajudar a compreender o objeto de estudo, permitindo reflexões que apontaram caminhos na tentativa de responder à questão de pesquisa: “Qual é o sentido das disciplinas de formação humanística e social de orientação cristã da Unisinos para essa formação, na percepção de alunos e professores da Universidade, e quais ao os saberes que eles consideram importantes para as disciplinas atingirem os seus objetivos?”. Para responder à questão da pesquisa, defini como objetivo geral investigar como alunos e professores percebem essas disciplinas, abrangendo o período de 2000 a 2005, fazendo algumas reflexões, a fim de contribuir para uma discussão a respeito delas na Universidade. Como procedimentos metodológicos, analisei depoimentos de alunos de todas as turmas, que foram colhidos no início e no fim de cada semestre letivo, abrangendo o período de março de 2000 a novembro de 2005. Utilizei também, como fonte de informações, os diários de campo, isto é, registros de conversas informais e de manifestações espontâneas de alunos (em sala de aula e fora dela), sobre como eles percebem as disciplinas de formação humanística e sobre fatos e situações relacionados com a formação humanística e sua prática na Unisinos, no período de março de 2000 a novembro de 2005. Realizei também entrevistas abertas com alunos e professores das seis unidades acadêmicas. Nas entrevistas com os alunos, sempre tive o cuidado para que eles já tivessem feito três disciplinas de formação humanística do seu curso, uma de cada um dos três eixos temáticos: formação antropológica, América Latina e ética. IHU On-Line – Qual é a importância dessas disciplinas para a formação do aluno, na percepção de alunos e professores, num momento em que a sociedade se encontra carente de ética e valores morais? Laurício Neumann – Destaco, inicialmente, a importância dessas disciplinas na percepção de alunos, depois na percepção de professores. A maioria dos alunos, de diferentes cursos e períodos, identifica e relaciona as disciplinas de formação humanística com conhecimentos de formação de valores ou resgate de valores fundamentais, necessários, segundo eles, para o crescimento interior da pessoa, para o seu relacionamento, a orientação profissional, o respeito à vida, à integridade do Planeta e à compreensão dos avanços tecnológicos e científicos. Em contrapartida, há um outro grupo de alunos que percebe as disciplinas de formação humanística como uma estrutura ideológica que reproduz as idéias e os valores dominantes da sociedade, com o objetivo de moldar a consciência das 55SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Fiori define e caracteriza a universidade como encontro vivo e dialético de gerações, antigas e novas, com o objetivo de integrar e superar o passado e o presente, para projetar o futuro com novas formas de cultura e de civilização (1991, p. 22-31). Sem este convívio, encontro ou diálogo, podemos ter excelentes escolas profissionais ou técnicas, mas não universidade, reforça Fiori. A partir dessa visão comunitária e democrática de universidade, é perfeitamente compreensível para Fiori que tanto o professor quanto o aluno participem, ativa e representativamente, do governo da Universidade para ajudar a definir sua política cultural, sob pena de a universidade deixar de ser convívio e, conseqüentemente, deixar de ser universidade. Este governo, ao atingir a estrutura da universidade, atinge também as relações sociais da sociedade e vice-versa. A democratização cultural fará acontecer a democratização de todos os setores da vida social e vice- versa. Fiori denuncia que a universidade como instituição tenta sufocar e tornar estática a idéia de universidade, que em si é dinâmica, por isso trai suas origens e afasta- se do povo (1991, p.482). Esta realidade da universidade que se afasta do povo, ou que trai suas origens, também é denunciada por Habermas, quando afirma que a racionalidade instrumental técnica e científica migra, no capitalismo moderno, do mundo do trabalho para outros espaços da Ciclo de Estudos sobre o Brasil, do dia 30-09-2004, o professor Dr. Danilo Streck, do PPG em Educação da Unisinos, apresentou o livro A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. Sobre a obra, publicamos um artigo de autoria do professor Danilo na 117ª edição, de 27-09-2004. Confira, ainda, a edição 223, de 11-06-2007, intitulada Paulo Freire. Pedagogo da esperança. (Nota da IHU On-Line) 1 FIORI, Ernani Maria. Aspectos da Reforma Universitária. In: ARANTES, Otília Beatriz Fiori (coord.). Educação e Política.Porto Alegre: Editores L&M, 1991, p.17-51. v. 2. (Nota do entrevistado) 2 Idem. sociedade, onde penetra, contamina e transforma as instituições (1987, p. 453). Como conseqüência, o pensamento dominante da universidade que reproduz o pensamento dominante da sociedade, compromete a finalidade da universidade e o futuro da própria sociedade. Compromete também a autonomia da universidade em relação à sua finalidade e identidade, na medida em que se fecha sobre si mesma ou se abre unicamente para interesses de determinados segmentos da sociedade. IHU On-Line – Como conciliar a formação humanística e social de orientação cristã em uma universidade/empresa? Laurício Neumann – Depoimentos, tanto de alunos quanto de professores, revelam a percepção de que a Unisinos absorveu e reproduz dentro dela a lógica da economia de mercado, que penetrou em espaços onde anteriormente prevaleciam processos interativos e participativos. Enquanto a Unisinos prepara os alunos segundo as exigências da sociedade, para serem competitivos no mercado, acaba reproduzindo o mesmo modelo de racionalidade, denunciado por Habermas, afastando-se de sua missão e da sua finalidade como universidade. Se não fizer assim, dizem os alunos, “vai fechar as portas, pois não vai ter como sobreviver”. Percebemos aí o impasse e as contradições tanto por parte do aluno quanto por parte da universidade, ante o contexto do mundo contemporâneo. Apesar dessas percepções e contradições, os superiores provinciais jesuítas da América Latina na Carta sobre O neoliberalismo na América Latina buscam preservar seus princípios filosóficos e religiosos, denunciando a racionalidade econômica e a hegemonia do neoliberalismo. Reafirmam a sua missão evangelizadora de educação para valores cristãos, em oposição às 3 HABERMAS, Jürgen. Técnica e Ciência como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1987. (Nota do entrevistado) 56SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 ideologias que desumanizam e às lógicas do mercado e do consumismo. Afirmam também que o neoliberalismo subordina tudo ao mercado, inclusive a vida das pessoas e que o mercado, por sua vez, não aceita nenhuma regulamentação (1996, p. 191). Esse é um dilema que leva muitos alunos a uma crise de sentido, quando precisam enfrentar o mercado de trabalho, pois a racionalidade econômica tem embutido um conceito de pessoa humana que se opõe ao ideal da formação humana integral, proposta e defendida pela Companhia de Jesus. Por mais que os alunos desejem ser preparados para competir e conseguir uma oportunidade no mercado, pois fora dele a maioria não vê perspectivas, não significa que eles, como revelam os depoimentos, estejam concordando com a lógica e a racionalidade do mesmo, principalmente pela sua radicalidade em absolutizar tudo. Numa perspectiva dialética, os depoimentos apresentam contradições, na medida em que os alunos querem a preparação para o mercado, mas não aceitam que a Unisinos, como empresa educacional, entre nesta lógica. Eles têm consciência de que a opção da Unisinos pelo mercado compromete o conceito e a finalidade de ser universidade e, principalmente, compromete o seu ideal de formação humana integral e a justiça social, como também reduz os espaços de interação social. Considerando as circunstâncias atuais de impasse, crise e contradição em que se encontra a universidade diante da racionalidade econômica neoliberal, os provinciais jesuítas da América Latina propõem uma nova racionalidade que consiste na educação de “uma ética que respeite a dignidade de cada um e torne possível a 1 CABRAL, Pinto, F. A formação humana no projecto da Modernidade. Instituto Piaget: Lisboa, 1996. (Nota do entrevistado) liberdade, a convivência democrática e pacífica e o respeito aos direitos humanos” (2005, p. 142). Como educadores formadores de uma universidade que coloca a formação integral com destaque e ênfase na Missão e no Credo da educação, nos cabe identificar como os espaços de gestão, ensino, pesquisa e extensão são influenciados pela racionalidade instrumental técnica e científica e como os conflitos e as crises de “identidade” ou “sistema” se manifestam na universidade e na sociedade. Somos também desafiados a abrir espaços de ação comunicativa para a formação de sujeitos críticos, participativos e com uma boa base de formação de valores que orientem a interação social dos alunos como sujeitos responsáveis na família, na comunidade, na universidade e outras instituições da esfera social. Habermas deposita, na “ética comunicativa”, a possibilidade de superar o problema moderno da identidade, pois ela “exige não somente que as normas sejam universais, mas também que se chegue pela discussão a um consenso sobre o caráter universalizável dos interesses fixados de maneira normativa” (apud CABRAL, 1996, p. 4833). Trata-se de dupla exigência, que equivale a um duplo conflito, pois, de um lado, encontramos os problemas de legitimação e motivação dos quais dependem a integração social e a identidade coletiva, de outro, encontramos os problemas de regulação, dos quais depende a integração do sistema. Disso concluímos que estamos diante de duas ordens de problemas que reclamam soluções incompatíveis, observa Habermas (apud CABRAL, 1996, p. 4841). Historicamente, os documentos da Companhia de Jesus, em diversas passagens, afirmaram e reafirmaram a “formação integral” dos alunos, como uma educação 2 CONFERÊNCIA DE PROVINCIAIS JESUÍTAS DA AMÉRICA LATINA. Projeto educativo comum da Companhia de Jesus na América Latina. Rio de Janeiro: Daugraf, 2005. (Nota do entrevistado) 3 CABRAL, Pinto, F. A formação humana no projecto da Modernidade. Instituto Piaget: Lisboa, 1996. (Nota do entrevistado) 57SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 mais alicerçada em valores humanos e cristãos, junto com os conhecimentos propedêuticos e técnico- científicos, visando à formação da pessoa humana, sem discriminação, junto com a qualificação e a capacitação do profissional, inserido e comprometido com a comunidade (Companhia de Jesus, 1991, n. 35, 51, 79, 107, 1332). A Unisinos, uma das 200 instituições da Companhia de Jesus e uma das 27 da América Latina, também está convidada a descobrir novas perspectivas e novos campos de pesquisa, ensino e serviços de extensão universitária, de acordo com seu caráter próprio de universidade, para servir a fé, promover a justiça e ajudar a transformar a sociedade, pois este é o diferencial de uma universidade jesuítica. Este é o ideal histórico, permanentemente atualizado e contextualizado, que os jesuítas objetivam alcançar pela educação nas suas escolas e universidades. Isso, porém, não significa que o ideal seja alcançado ou permanentemente realizado, por mais que seja desejável, como constatamos pelas percepções de alunos e professores. Para que nos aproximemos desse ideal, 1 CABRAL, Pinto, F. A formação humana no projecto da Modernidade. Instituto Piaget: Lisboa, 1996. (Nota do entrevistado) 2 COMPANHIA DE JESUS. Características da Educação da Companhia de Jesus. São Paulo: Loyola, 1991. (Nota do entrevistado) precisamos partir do real, isto é, considerar os limites e as possibilidades que cada novo momento histórico impõe e propõe, política, econômica e socialmente, em âmbito tanto local quanto global. Na nossa prática, como educadores universitários, considerando os limites e as possibilidades entre o real, o possível e o desejável, inspiramo-nos em Freire, que nos propõe um questionamento pedagógico, existencial e ideológico muito sério: “A serviço de quem nós estamos? A serviço de que nós estamos? [...] O que é que eu quero? Qual é o meu sonho?” (1984, p. 293). Se o que nos move é o ideal da liberdade, da dignidade humana, da justiça, da solidariedade, da igualdade, da criatividade, da transformação, do risco, do desafio etc., então não podemos escolher uma educação que anula os sujeitos. Freire propôs a pedagogia do oprimido como possibilidade, assim como Habermas propôs a ação comunicativa também como possibilidade, por acreditar que ela seria capaz de resgatar a intersubjetividade, pelo diálogo, pela generosidade autêntica, humanista e não- humanitária, do exército de oprimidos que hoje constitui a sociedade, fruto da histórica violência opressora. 3 FREIRE, Paulo. Educação Popular. São Paulo: Lins, 1984. (Nota do entrevistado) 60SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 diferentes, embora a TV muito tenha herdado do cinema. As produções em tela grande de duas horas em média têm mais tempo para serem produzidas, são mais bem cuidadas, os atores preparam-se mais. A TV, além da tela pequena, é mais dinâmica, utilizando-se de formatos e programas para consumo mais rápido. Em alguns tipos de programas de TV, como no documentário, por exemplo, é possível ter produções que busquem inspiração no cinema. IHU On-Line - Desde o século XIX, diretores produzem filmes apresentando o gaúcho como homem do campo. Essa idéia foi reiterada no século XX e persiste até hoje. Como a senhora avalia a produção cinematográfica gaúcha? A figura do gaúcho como homem rural e guerreiro ainda é reafirmada? Luiza Carravetta - Considero importante o resgate das raízes do homem do Rio Grande do Sul. A nossa Literatura também é muito rica ao retratar o gaúcho. As características peculiares dos gaúchos chamam a atenção e, por isso, são alvo de obras ficcionais. Geralmente, as obras são ricas e procuram ser fiéis. Entretanto, é preciso ter muito cuidado para que estereótipos não sejam criados. IHU On-Line - A elaboração e escolha das cenas na gravação de A casa das sete mulheres favoreceu para enfatizar a imagem do gaúcho guerreiro? Luiza Carravetta - As cenas foram muito bem produzidas. As batalhas, com os grandes planos gerais, foram bem feitas. Os planos de detalhe trouxeram elementos enriquecedores. A intenção era mostrar o gaúcho guerreiro e isso foi conseguido numa reconstrução primorosa através da narrativa audiovisual. 61SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 Perfil Popular Anselmo Wolfart A estrada e a família são as paixões do motorista Anselmo Wolfart, o perfil popular da edição desta semana. Entrevistado pela filha, a jornalista Graziela Wolfart1, do IHU, Anselmo conta sua história de vida e relata o que o mundo fora do ambiente familiar, no interior de Poço das Antas, lhe ensinou. Confira, a seguir, a trajetória deste motorista, que também é goleiro nas horas de folga: 1 No próximo sábado, 1º de setembro, Graziela Wolfart e Adriano Krahl vão oficializar a união de sete anos, em cerimônia religiosa, que será celebrada em Montenegro. (Nota da IHU On-Line) Origens – “Eu nasci em Boa Vista.” Assim começa a contar sua história o motorista Anselmo Wolfart. Boa Vista é uma localidade pertencente ao município de Poço das Antas, no Rio Grande do Sul. Antes disso, pertencia a Montenegro, depois a Salvador do Sul e a Barão. Anselmo tem três irmãos e três irmãs. “Lá em casa, a nossa vida foi sempre simples. A gente trabalhava na roça, mas todo mundo foi estudar até a 5ª série. Todos ajudavam o pai a trabalhar, se criando juntos na roça, na colônia”, lembra, ao descrever a infância. Trabalho – Aos 17 anos, Anselmo saiu de casa para trabalhar com um tio, na localidade de Boa Vista 27, que ficava perto de onde a família morava, só que já pertencia ao município de Garibaldi. “Lá, eu comecei a sentir como era o mundo, como são as pessoas. Antes eu não sabia, vivia só no interior. Eu não sabia como era a vida numa cidade maior, não saía quase nunca. Quando saí de casa pra trabalhar fora, por conta, eu comecei a ver que tinha mais diversões e vi que existia um outro povo lá fora”, conta. O tio de Anselmo tinha um armazém, que ele ajudava a cuidar. “Eu também recolhia leite dos colonos, passando de caminhonete nas propriedades, pegando leite e levando para um fabricante de queijo.” O jovem motorista ficou trabalhando quatro anos com o tio. Depois, mudou-se para Montenegro, quando tinha 21 anos. O motivo da mudança: Anselmo conheceu uma moça, uma “guria bonita”, como ele define, que se tornou sua namorada e depois sua esposa, Arnilda, que também é natural de Poço das Antas, da localidade de Paris Baixo, 62SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 próxima à Boa Vista. Eles se conheceram num baile. Ela trabalhava e estudava em Montenegro e Anselmo quis ficar mais perto da namorada. “Fui procurar um serviço na cidade também, para ficar mais perto dela.” Chegando em Montenegro, ele conseguiu um emprego de motorista na empresa de ônibus da cidade. Pediu para sair depois de um ano e três meses, porque a empresa escalava os motoristas nos finais de semana também, e isso não estava certo para ele. “Arrumei uma namorada, e como eu ia namorar fim de semana se tinha que trabalhar?”, se explica. Logo conseguiu outro emprego de motorista na Comercial Montenegro, uma espécie de atacado de mercadorias diversas. A função dele era entregar material, de caminhão, para armazéns e rações para o interior. Depois de seis anos, trabalhou por conta, em casa, por cerca de meio ano. Foi quando conseguiu emprego como motorista na Tanac, onde está até hoje, completando 21 anos de empresa. Anselmo explica que a Tanac é uma empresa que trabalha com acácia. “É tirada a casca da acácia, e essa casca é moída, fervida, e é feito tanino desse líquido. O tanino é usado principalmente em curtumes, para curtir couro. Hoje, a Tanac exporta para mais de 70 países. Além disso, a empresa também faz muito produto para tratamento de água. É o tanfloc, um coagulante que também vem do tanino. A lenha da acácia é levada para Rio Grande, onde tem outra fábrica da Tanac que pica essa madeira, que depois vai toda para o Japão. Parece que eles usam essa madeira para fazer celulose”, conta. Ser motorista – Anselmo já está aposentado, mas não pode nem pensar em largar o volante. “É uma coisa em que eu me realizo. É um serviço que eu sempre fiz e, enquanto eu tenho saúde, prefiro sempre trabalhar. Gosto do meu trabalho porque hoje estou aqui, amanhã em outro lugar, vejo e conheço o mundo, outras pessoas, e ainda faz bem o dinheirinho”. Estudos – Enquanto ainda morava no interior, o motorista conclui os estudos até a 5ª série do ensino fundamental. Depois, já em Montenegro, a Tanac exigiu que os funcionários tivessem, pelo menos, o primeiro grau. “E daí eu terminei até a oitava série no Científico, uma escola de supletivo.” Casamento e família – Anselmo e Arnilda se casaram em janeiro de 1978. Depois de três anos casados, nasceu uma filha, a Graziela. “Ela sempre foi muito bonita. Começou a ir nas escolas, foi estudando, sempre se interessou pelos estudos, sempre foi muito conversadeira, gostava de falar e cantar. Começou a fazer faculdade de jornalismo e hoje ela trabalha na Unisinos, se formou nessa universidade e é uma jornalista. Agora, ela vai casar. Eu me sinto feliz, por um lado, porque ela está vendo o futuro dela, mas também fico triste, porque ela sai de casa, a gente perde um pedacinho, né?” O filho, Vagner, nasceu quase quatro anos depois da filha. “Veio o guri, mais um alemãozinho, bem gordo. Sempre foi sapequinha. E hoje está bem também. Ele estudou, mas não gostava muito, matava muita aula, as professoras chamavam o pai. Eu ia no colégio. Mas ele sempre foi muito inteligente. Hoje, ele mora em Porto Alegre. Fez vestibular em três faculdades particulares e passou. Mas ele botou na cabeça que não ia pagar a faculdade, que era muito caro. Ele decidiu que ia estudar na federal. Se esforçou e conseguiu. Hoje, ele estuda Administração de Empresas na UFRGS. Passou num concurso do Banrisul e é bancário. A família é tudo da minha vida.” 65SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 IHU REPÓRTER Paulo Aloísio Muller A vida profissional de Paulo Aloísio Muller, 37 anos, está alicerçada nos princípios e valores da Unisinos. Há 19 anos, desde o primeiro emprego, ele trabalha na universidade. Paulo já integrou o Correio e o Setor de Compras. Atualmente, ele é motorista de ambulância e também atua nos Transportes Administrativos. Natural de Estrela, no interior do Estado, Paulo é de origem humilde. Passou por algumas dificuldades e soube, com dignidade, superar cada uma delas. Confira, a seguir, a entrevista concedida com exclusividade à revista IHU On-Line. Origens - Meus pais eram agricultores, no município de Estrela, onde nasci. Quando era criança, já trabalhava. Ia à aula de manhã, e, à tarde, ajudava meus pais na roça para garantir o sustento da família. Tenho dois irmãos mais velhos. Minha relação com eles e com os meus pais sempre foi muito boa. Minha irmã cuidava de mim e me dava banho, quando eu era criança. Infância e estudos - Minha infância foi muito humilde. Para comprar lanche na escola, levava frutas para vender na cidade aos meus colegas. Comprava não só o lanche, mas também os livros. Cursei o Jardim de Infância, Pré, 1º e 2º Graus no Colégio Santo Antônio, de 1975 a 1987. Eu ia para a Escola, que fica a 10 km da cidade, de ônibus. Era muito amigo do motorista; sempre ia sentado ao lado dele. Criamos um laço de amizade muito grande. Eu não gostava muito de estudar, mas conseguia acompanhar as aulas. Nunca fui reprovado, embora tivesse algumas dificuldades. Trabalho e curso superior - Em 1988, com a ajuda do meu tio, o Padre Mallmann, diretor da Biblioteca da Unisinos, vim para São Leopoldo. Graças a ele, eu comecei a estudar e, em junho do mesmo ano, comecei a trabalhar no Correio da universidade. Eu era o único funcionário do setor. Me dedicava bastante. Ingressei no curso de Administração de Empresas. Por opção, não o concluí. Ainda não sei se é bem esta a área que eu quero. Fiquei no Correio até 1993. Um ano depois, fui convidado a trabalhar no Setor de Compras, onde permaneci por um ano. Logo após, fui chamado para trabalhar na Central de Serviços, que envolvia Correio, Transportes e Achados e Perdidos. Com isso, me chamaram para trabalhar junto ao Setor de Transportes. Comecei como ajudante. Tinha uma pessoa para fazer a distribuição dos serviços e eu fazia a parte de alimentação de planilhas. Em 2001, assumi a parte de distribuição de serviços. Em 2004, houve uma fase de terceirização da frota e da gestão de transportes, e eu, então, ficava como motorista de ambulância e monitorando os serviços. Um ano depois, a gestão de transporte da universidade foi retomada. Hoje, estou fazendo a distribuição do serviço, junto com um colega que me auxilia. Ao todo, são nove motoristas. Além de distribuir os serviços, sou motorista da ambulância da universidade, quando necessário. Família – Me casei em 1996 e tenho dois filhos: o Lucas, de 7 anos; e a Daniela, de 3. Minha família representa tudo para mim. Se não fossem meus pais, eu não estaria aqui. Dedico muito a eles tudo o que eu tenho. Vejo que os meus filhos se espelham em nós, os pais. Política brasileira - Temos que dar um basta nos nossos governantes. Há muita injustiça e corrupção. É hora de 66SÃO LEOPOLDO, 27 DE AGOSTO DE 2007 | EDIÇÃO 233 haver mais conscientização. Educação - Meus filhos estudam em uma escola pública. Considero a educação boa, em termos de aprendizado. Livros - Não me dedico muito à leitura, mas acompanho bastante os jornais, revistas etc. Lazer - Nas horas vagas, aos finais de semana, costumo ir à Estrela com a minha família, para visitar os meus pais e sogros. Moro em apartamento, e, indo para o interior, meus filhos têm mais liberdade. Eles podem correr à vontade. Também sou juiz de futebol, nos jogos de várzea, em Estrela. Hobby – Além de apitar, gosto de jogar bocha com os amigos. Filmes - Não gosto muito de assistir a filmes. Já minha esposa e meu filho são fascinados. Sonhos - Não tenho grandes sonhos. Quero apenas continuar levando a vida com saúde e ver a minha família bem. Unisinos - Trabalho aqui há 19 anos. Assim como outras empresas, a Unisinos também passa por dificuldades. É um orgulho permanecer aqui por tantos anos. Costumo executar o meu trabalho da melhor forma possível.
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