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Guias e Dicas
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A escravidão no brasil, Manuais, Projetos, Pesquisas de História do Direito

LIVRO DE DR AGOSTINHO MARQUES PERDIGÃO MALHEIROS

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 25/05/2010

Pamela87
Pamela87 🇧🇷

4.5

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Baixe A escravidão no brasil e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para História do Direito, somente na Docsity! Dr. Agostinho Marques Perdigão Malheiros A ESCRAVIDÃO NO BRASIL ENSAIO HISTÓRICO-JURÍDICO-SOCIAL PARTE 2ª ÍNDIOS eBooksBrasil A Escravidão no Brasil - Vol. II (1867) Agostinho Marques Perdigão Malheiros (1824 - 1881) Fonte digital Digitalização de edição em papel de 1867 Rio de Janeiro - Typografia Nacional - Rua da Guarda Velha 1867 Transcrição para eBook eBooksBrasil © 2008 Agostinho Marques Perdigão Malheiros A ESCRAVIDÃO NO BRASIL ENSAIO HISTÓRICO-JURÍDICO-SOCIAL PELO Dr. Agostinho Marques Perdigão Malheiros _______________________________ PARTE 2.ª _______________________________ ÍNDIOS RIO DE JANEIRO. TYPOGRAPHIA NACIONAL, RUA DA GUARDA VELHA. ____________ 1867 ÍNDICE. INTRODUÇÃO Parte II. — Título Único. — Escravidão dos índios.— Extinção da mesma. — Catequese e civilização. Cap. I. — Os índios ao tempo da descoberta do Brasil. — Generalidades Cap. II. — Expedições. — Primeiras relações com os naturais. — Introdução da escravidão dos índios. — Seu desenvolvimento. — Determinações a respeito. — Colonização. — Regime colonial Cap. III. — Colonização; regime colonial (continuação). — Catequese — Os Jesuítas — Padres Manoel da Nóbrega, José de Anchieta — Missões de índios. — Guerras dos mesmos. — Novas providências sobre o seu cativeiro Cap. IV. — Leis de escravidão dos índios. — Jesuítas, e colonos. — Leis de liberdade dos gentios. — Novas leis de escravidão. — Caçadas de índios. — Os Paulistas Cap. V. — Bula do Papa Urbano VIII a favor dos índios. — Oposição do povo. — Expulsão de Jesuítas. — Administração de índios. — Padre Antônio Vieira. — Aldeias. — Entradas nos sertões para descer gentios. — Nova expulsão de Jesuítas. — Novas leis sobre índios e Jesuítas. — Guerra aos índios; destruição de tribos Cap. VI. — Leis sobre liberdade dos índios. — Missões Jesuíticas. — Regimento das missões. — Novas leis de escravidão. — Descimento de índios. — Guerras dos mesmos. — Novas providências. Cap. VII — Bula de Benedito XIV a favor dos índios. — Novas providências sobre os mesmos. — Guerra das Missões no Rio da Prata. — Oposição no Amazonas. — Os Jesuítas. — Leis de liberdade absoluta dos índios. — Nova forma do seu governo temporal. — Diretório para o Maranhão e Pará. — Expulsão dos Jesuítas. — Decadência das aldeias; dispersão dos índios. — Abolição do Diretório. — Novas providências Cap. VIII. — Restauração do sistema do terror contra os índios. — Guerra aos mesmos. — Bandeiras. — Novas providências para a sua catequese e civilização. — Sistema misto Cap. IX. — Direito novo. — Abolição completa e definitiva do cativeiro e servidão dos índios. — Proteção e favores. — Sistema atual. — Futuro dos índios ante a civilização. — Conclusão. Notas A ESCRAVIDÃO NO BRASIL. PARTE II. TÍTULO ÚNICO. ESCRAVIDÃO DOS ÍNDIOS. — EXTINÇÃO DA MESMA.— CATEQUESE E CIVILIZAÇÃO. CAPÍTULO I. OS ÍNDIOS AO TEMPO DA DESCOBERTA DO BRASIL. — GENERALIDADES. Tendo por fim especial nesta segunda parte do presente opúsculo historiar sucintamente a escravidão dos Indígenas até que foi definitiva e realmente extinta, e conseqüentemente tratar também da catequese e civilização dos mesmos não só no ponto de vista histórico mas igualmente no social, pede a boa ordem que alguma notícia se dê dos índios do Brasil ao tempo em que teve lugar a sua descoberta. Não investigaremos — quando, como, e por quem foi povoado o Brasil antes dela—; são questões, é verdade, de interesse histórico, e principalmente científico(1), mas alheias ao objeto que nos propomos(2). Pela mesma razão não nos demoraremos com a classificação dos povos que ocupavam então o território que constitui hoje o Império Brasileiro(3). Pretendem alguns que existiu um tronco comum, d’onde provieram as diversas nações e tribos, concorrendo não pouco para corroborar tal opinião a existência de uma denominada língua geral Guarani ou Tupi, e certa comunhão de tradições, de usos e costumes, e de idéias. Outros, porém, concluem que não há classificação possível(4). O certo e averiguado é que, ao tempo em que Pedro Álvares Cabral tocou em terra Americana, e engastou na coroa do Rei de Portugal D. Manoel, o Afortunado mais esse precioso diamante, que depois se chamou Brasil, era o país habitado por tribos diversas de índios, que, embora alguns indícios demonstrassem de certa comunhão talvez outr’ora existente de nacionalidade ou de raça, todavia se distinguiam perfeitamente umas das outras pelas suas qualidades físicas, por sua língua, usos e costumes, carácter, índole, e outros elementos(5). Das relações dos primeiros descobridores, dos primeiros povoadores, dos historiógrafos mais antigos das cousas do Brasil, dos Jesuítas e outros, em máxima parte confirmadas pelos estudos posteriores e até contemporâneos, assim como por ilustrados viajantes que têm percorrido diversas partes do Império, alguma cousa se pode dar como exato em relação aos usos e costumes da generalidade dessas tribos, seu estado social, sua indústria, suas habilitações para as ciências e artes, sua disposição enfim para a civilização européia(6). Entre eles era admitido o casamento como a base da família(7). Em regra dependia do consentimento paterno; mas, recusado este, às vezes era a mulher havida à força. As núpcias eram celebradas com certos ceremoniais, embora afetados da rudimental civilização em que então se achavam; o festim transformava-se em verdadeira bacanal. Das próprias prisioneiras, que reduziam à escravidão, não poucas vezes faziam suas eoncubinas e mulheres. A poligamia era tolerada, conforme os baveres e forças do varão; mas sempre distinguiam uma como a predileta, e verdadeira esposa. O adultério da mulher, porém, era tido em horror, e punido, às vezes, com a morte. A autoridade marital era reconhecida e sancionada, ao ponto exagerado de tratarem, embora não de modo geral, as mulheres antes como escravas, do que como verdadeiras consortes na vida comum que levavam(8). Sobre os filhos era reconhecido o pátrio poder muitos, que aliás poderiam ter morto e devorado(20). Os Indígenas eram, pode-se dizer, nômadas; conquanto em extensão determinada de território se vissem predominar certas tribos. Suas tabas eram de pouca duração. Tribos havia agrícolas; e portanto de costumes mais brandos, de mais sociabilidade. Outros mostraram-se destros cavaleiros(21). O litoral e as margens dos rios eram os lugares mais povoados, de que dão notícia as relações dos descobridores e viajantes; a pesca a isto convidava; eram, portanto, também navegantes. Outros viviam internados pelos sertões; a caça, os frutos silvestres eram o seu principal recurso: mais atrasados e bárbaros deviam naturalmente ser do que aqueles(22). Tais eram, em rápido esboço, os povos que ocupavam o território brasilíco desde o Prata até o Amazonas, desde o Oceano até o Paraguai, quando os Portugueses a ele aportaram em 1500 da era de Cristo. Que destino tiveram? Por que revoluções passaram depois da descoberta? Acaso aproveitaram eles da civilização européia? Qual o seu estado presente? Qual o seu futuro ante a civilização? Tais são as questões que nos vão suecessivamente ocupar. CAPÍTULO II. EXPEDIÇÕES. — PRIMEIRAS RELAÇÕES COM OS NATURAIS. — INTRODUÇÃO DA ESCRAVIDÃO DOS ÍNDIOS. — SEU DESENVOLVIMENTO. — DETERMINAÇÕES A RESPEITO. — COLONIZAÇÃO. — REGIME COLONIAL. É um fato, infelizmente confirmado pela história, que desde a mais remota antigüidade o vencedor ou conquistador, quando não matava o vencido ou o prisioneiro, reduzia-o à escravidão. Pretendeu-se mesmo que fosse esta última regra um progresso no Direito das gentes, um ato de humanidade; no entanto que era realmente de maior ferocidade por afetar já não exclusivamente o prisioneiro, e sim indefinidamente toda a sua descendência. Entre os índios acontecia que, em vez de devorarem os prisioneiros, reduziam-os ao seu cativeiro, sobretudo as mulheres que não houvessem tomado parte ativa na guerra; das quais não raras vezes faziam suas consortes. Os filhos, porém, eram livres, se livre o pai; porque entre eles seguia o filho a condição do pai e não a da mãe(23): do que há exemplo também em povos do velho mundo, quais foram os Visigodos(24). Quando Cabral, depois da sua feliz descoberta, resolveu seguir sua viagem para a Índia, conforme as instruções que recebera, expediu ao Rei de Portugal, como devia, um emissário, Gaspar de Lemos, a instruí-lo de tal achado; e, em troca de dois criminosos que deixou na terra, fez embarcar, entre outras cousas, dois dos seus naturais como amostra dos novos súditos d’El-Rei(25).—Os índios (Tupininquins) mostraram-se dóceis e bondosos; assistindo mesmo com reverência à missa que se celebrou(26). Em o ano seguinte 1501 teve lugar a primeira expedição de exploração da costa do Brasil, vindo como piloto e cosmógrafo Américo Vespucio, o qual percorreu o litoral desde o cabo de S. Roque até o de Santa Maria; desta expedição ficou na Cananéia para cumprir a pena de degredo um bacharel, que 30 anos mais tarde ainda aí foi encontrado(27). Em 15003 veio nova expedição, com o mesmo Américo. Fundou-se nesta época a primeira feitoria portuguesa no Brasil, próximo de Porto Seguro, onde fundeara a esquadrilha de Cabral, e à qual se deu o nome de Santa Cruz, composta do pessoal de 24 homens(28). É provável que de outras armadas que por este tempo se dirigiam à Índia, alguns navios que aportaram ao Brasil tivessem deixado colonos, mas não é isto bem averiguado(29). A atenção do Governo Português estava absorvida pelas conquistas na Índia e África, para onde se expediam grandes armadas, e grandes capitães quais os Almeidas, os Albuquerques. De sorte que houve intermitência de explorações das costas e território do Brasil por parte do mesmo Governo(30). Mas, havendo começado o tráfico de certos gêneros do país e sobretudo do pau brasil d’onde veio o nome que lhe ficou), os contratadores mandavam navios de conta própria a esse comércio. Do número destes foi a nau Bretoa, que, saindo de Lisboa em 22 de Fevereiro de 1511, aí voltou no fim de 8 meses, levando, além do pau brasil e outros gêneros, para cima de 30 índios cativos.(31). para o Sul, entrou na Bahia de Todos os Santos, onde encontrou o Português Diogo Álvares o Caramuru, em cuja companhia deixou dois homens(42). Obrigado a arribar, voltou de novo à Bahia; e aí achou uma caravela, que tomou a seu serviço, depois de fazer desembarcar os escravos que ela transportava(43). Descendo para o Sul entrou no Rio de Janeiro, onde se demorou três meses, bem tratado pelos da terra, a quem igualmente tratou bem(44). Proseguindo, ancorou junto à Cananéia, onde encontrou o bacharel Português Francisco de Chaves e vários Espanhóis. Já então os escravos se contavam por centenas, pois que o dito bacharel ofereceu-se-lhe trazer dentro de dez meses 400 escravos carregados de prata e ouro(45). Continuando na sua viagem, cujo fim era o estabelecimento no Rio da Prata, e sofrendo grande temporal, despachou seu irmão Pero Lopes de Souza a continuar a assentar padrões de posse. De volta, entrou Martim Afnso, em Janeiro de 1532, no porto de S. Vicente, onde encontrando o Português João Ramalho, que aí vivia entre os índios há vinte anos, se deliberou a fundar uma colônia, a primeira regular que no Brasil se levantou, não existindo até então senão as pequenas feitorias de Santa Cruz, Igarassú, e Santa Catarina. De acordo com Ramalho, e para maior auxílio da colônia marítima, fundou ao mesmo tempo outra em Serra-acima junto a Piratininga, d’onde veio o nome à aldeia, e é hoje S. Paulo; cujo governo confiou do mesmo João Ramalho, nomeado guarda-mor(46). No entanto o governo da Metrópole ocupava-se agora com mais interesse de promover a colonização da possessão Americana; e resolveu-se a dividi-la em grandes capitanias, que seriam distribuídas, como foram(47), por pessoas dignas por seus serviços e fidalguia, ou riqueza, com obrigação de trazerem gente e navios à sua custa(48). Essas doações eram de juroe herdade, e já não simples sesmarias por uma só vida, como a principio se tinha assentado: e acompanhadas de concessões extraordinárias aos donatários, com alçada até morte natural aos peães, escravos, e índios, atribuições judiciais, nomeação de autoridades e empregados, distribuição de sesmarias conforme as leis do Reino, assim como de cativar gentios para o seu serviço e dos navios, e de mandá-los vender à Lisboa até certo número cada ano livres de sisa, a que eram aliás sujeitos os escravos que ali entravam(49); doações confirmadas pelos forais de cada capitania(50). O governo reconhecia e legalizava assim com a sua autoridade soberana e onipotente o fato abusivo e odioso da escravidão dos Indígenas; e, longe de reprovar e punir, quase se diria que o acoroçoava. É verdade que os Espanhóis haviam dado o exemplo perverso de cativarem os desgraçados índios logo desde a primeira descoberta (1402) por Cristovão Colombo; a história das conquistas por eles feitas o demonstra para opróbio eterno dos descobridores e sua gente(51). É verdade que a Espanha fazia o comércio de escravos Africanos, que de Sevilha saíam para diversas partes. É verdade que leis de Espanha autorizaram o cativeiro de alguns índios, v. g. os Caraibes, e que até os mandavam marcar com ferro quente para se não confundirem se fugissem(52). É verdade que mesmo em Portugal se mantinha a escravidão dos Mouros e dos Africanos negros; e que destes já se fazia grande comércio(53). Não é, pois, muito de admirar, que esse ato de perversidade de povos, que se diziam civilizados e cristãos, se fizesse extensivo ao pobre e mesquinho gentio do Brasil; tanto mais, quanto faltavam os braços para os misteres dos donatários e dos colonos. Refere igualmente a História que chegou-se naquela época até a pôr em dúvida que os índios pertencessem à espécie humana! pretendendo-se que eram escravos por natureza! A tamanho desvario foram arrastados os Espanhóis, seus mais atrozes perseguidores, pela sede e ambição de riquezas(54), e a seu exemplo os Portugueses(55). Mas também, desde logo, e como fato providêncial, apareceu o incansável Dominicano Padre Bartholomeu Las Casas, Bispo de Chiapa, que tomou constantemente na América e na Europa a defesa dos índios, convenceu de falsas e anti-cristãs aquelas doutrinas, obteve do Regente de Espanha o Cardeal Ximenes e do Imperador Carlos V medidas a bem da liberdade desses infelizes nas possessões espanholas, e mostrou-se um seu acérrimo protetor, um verdadeiro apóstolo(56). Por oulro lado, reconhecido naqueles tempos em os Sumos Pontífices o poder de resolver questões temporais de grande alcance(57), não podiam eles deixar de intervir em objeto tão melindroso; muito mais porque de algum modo afetava o espiritual, quer dos pretendidos senhores, quer dos inculcados escravos. A Igreja. fiel intérprete da verdadeira doutrina de Cristo, reprovou sempre a escravidão. Os Apóstolos e Doutores assim o ensinaram e pregaram. Os Papas Alexandre III (fins do Século XII), Pio II (Bula de 7 de Outubro de 1462) o proclamaram quanto aos cristãos, censurando mesmo este último os que reduziam à escravidão os neófitos d’África. E, depois da descoberta da América, por vezes o repetiram logo desde o começo com especial referência aos povos desta parte do mundo; distinguindo-se nessa época Leão X, perante quem teve lugar a célebre disputa entre os Dominicanos e os Franciscanos sobre a liberdade dos índios, defendida por aqueles e impugnada por estes, decidindo a bem da liberdade aquele sábio e verdadeiramente cristão Sumo Pontífice. Em relação à Espanha, ou antes ao Peru, o Papa Paulo III, por Breve de 28 de Maio de 1537, dirigido ao Cardeal Pernambuco e S. Vicente; benéficos resultados de uma administração inteligente, religiosa, e zelosa. Em outras, depois dessa primeira prosperidade, manifestaram-se sintomas de decadência, devida principalmente ao mau governo delas, ou à ambição, injustiça, desobediência, e imoralidade dos colonos. Das outras dessa primitiva distribuição nenhuma logrou a colonização nessa época: A do Maranhão e mais duas, que couberam à trina sociedade do historiador João de Barros, Fernão Álvares, e Ayres da Cunha; porque a frota preparada com tamanho sacrifício naufragou desastrosamente. Alguns dos colonos, que se salvaram, fundaram na ilha da Trindade uma povoação Nazareth. Os índios lhes prestaram auxílio valioso, acompanhando mais de 200 deles os colonos restantes, quando se resolveram a abandonar a povoação(69). A sorte adversa, que não a culpa dos donatários e colonos, malogrou essa tentativa. Outro tanto se não pode dizer da Capitania de S. Tomé, depois Campos, dada a Pero de Góes. Conseguiu fundar a povoação Vila da Rainha. Durante a sua ausência em Portugal para promover capitais e gente, tudo foi desordem na colônia. O lamentável incidente de haver sido por um pirata entregue um dos Chefes índios aos seus inimigos, levantou os mesmos índios contra os colonos, que se viram forçados a abandonar a terra(70). Na Bahia, o seu donatário Francisco Pereira Coutinho conseguira fundar a povoação da Vitória. Mas a velhice, enfermidade, e fraqueza do donatário, a desmoralização e insubordinação dos povoadores trouxeram a ruína da colônia, retirando-se estes para os Ilhéus, e o donatário para Porto-Seguro; perecendo o mesmo com quase todos os seus às mãos dos índios de Itaparica(71). Na Capitania de Antônio Cardozo de Barros, nem se chegou a tentar a colonização(72). Em tal estado de cousas, não era possível que o Rei D. João III(73), que tão bem havia compreendido a vantagem de promover a colonização e o desenvolvimento da nova conquista, deixasse de tomar providências em ordem a coibir os abusos introduzidos sobretudo pelos colonos, e os defeitos reconhecidos da latitude de poderes, atribuições e isenções conferidos aos donatários(74), bem como de providenciar sobre a sorte dos verdadeiramente miseráveis indígenas, que, ou fizessem bem ou fizessem mal, eram desapiedadamente vexados, e escravizados pelos colonos. CAPÍTULO III CULONIZAÇÃO; REGIME COLONIAL (CONTINUAÇÃO). — CATEQUESE. — OS JESUÍTAS. — PADRES MANOEL DA NÓBREGA, JOSÉ DE ANCHIETA. — MISSÕES DE ÍNDIOS. — GUERRAS DOS MESMOS. — NOVAS PROVIDÊNCIAS SOBRE O SEU CATIVEIRO. A tentativa quase malograda de colonização; a desordem e perigo de decadência das Capitanias; a desmoralização dos colonos; a do próprio clero, que, longe de dar o exemplo do bem, levava vida desregrada; a falta sobretudo de unidade e centralização de governo, pois que os donatários eram independentes reciprocamente, e gozavam do privilégio de couto e homisio nos seus respectivos territórios; a perseverança dos Franceses em suas excursões ao Brasil; a audácia dos contrabandistas, que achavam apoio nos colonos; a insubordinação e irreligiosidade que lavravam em geral, concorrendo não pouco para este funesto resultado o fato de virem degradados criminosos ou por condenação ou por comutação de pena; e outros fatos de grave ponderação; reclamavam enérgicas providências. Duarte Coelho, de Pernambuco, em 1546 representava ao Rei que os donatários abusavam do sou direito de asilo, negando-se a entregar os criminosos que se refugiavam nas suas Capitanias; e em carta de 20 de Dezembro do mesmo ano rogava-lhe que lhe não mandasse mais degradados, que eram piores que peste, verdadeira peçonha(75). guerra ao gentio por mar ou por terra, ainda que estivessem levantados, sem licença do Governador ou dos Capitães, que só a dariam a pessoas de confiança; sob pena de morte e de perda de toda a fazenda: e isto porque — era costume (diz o Regim.) saltear e roubar os gentios de paz por diversos modos, atraindo-os enganosamente, e indo depois vendê-los, até aos seus próprios inimigos, d’onde resultava levantarem-se eles e fazerem guerra aos Cristãos, sendo esta a principal causa das desordens que tinham havido. Ao mesmo tempo, recomendava o Regimento, com cruel contradição — que fizesse a guerra aos que se mostrassem inimigos.... destruindo-lhes as aldeias e povoações, matando, e cativando.... e fazendo executar nas próprias aldeias alguns Chefes que pudesse aprisionar enquanto negociasse as pazes (!). A respeito dos índios amigos autorizava a concessão de terras e aldeamentos; sendo digno de nota que nesse Regimento se consignasse desde logo a idéia altamente profícua à civilizarão dos indígenas, qual a de exigir — que os convertidos se estabelecessem junto às povoações, porque com o trato dos cristãos mais facilmente se hão de policiar. Por outro lado, o mesmo Regimento proibiu que, atentos os graves inconvenientes demonstrados pela experiência, os colonos se internassem pelos sertões, e se comunicassem por semelhante meio de umas para outras Capitanias, sem licença do Governador, Capitães, ou povoadores, sob pena de açoites ou multa. Várias outras importantes providências foram tomadas. Se bem o recomendou o Regimento ao Governador, melhor o executou este, logo que se lhe ofereceu ocasião oportuna, com o fim de aterrar os gentios, não obstante prestarem-se ao serviço dos colonos a troco de quase insignificante remuneração: porquanto, levantando-se rixas entre eles, foram vítimas alguns colonos que se haviam imprudentemente embrenhado pelo sertão; para vingá-los foi mandado Pero de Góes, que, conseguindo apreender dois dos culpados, os fez fuzilar à boca de uma peça, como refere ele próprio em carta de 18 de Julho de 1551(89). Do seu lado, porém, os Jesuítas, abrazados no santo fervor da propagação da fé, da conversão e civilização do gentio, tendo nessa época diante dos olhos unicamente a religião, conforme a pureza do seu instituto(90), não pouparam trabalhos, fadigas, e até perigos para o conseguirem. De grande auxílio lhes foi na Bahia o Caramuru e seu genro Paulo Dias. O Padre Manoel da Nóbrega(91) em breve conseguiu, pela música, pelo canto, e pelo aparato das cerimônias religiosas, entusiasmar os jovens índios, e com estes percorrendo as aldeias arrebanhar muitos, mesmo adultos; igualmente pregava aos colonos, e dirigia a escola, à qual concorriam também alguns índios mansos(92). O Padre João de Aspilcueta Navarro chegou a pregar-lhes na língua indígena(93). Alguns outros foram a outras Capitanias em sua missão evangélica, quais o mesmo Navarro, Leonardo Nunes, Diogo Jacome, Francisco Pires, Vicente Rodrigues, Afonso Braz, Simão Gonçalves. Em meados de 4549 saiu Nóbrega a visitar as Capitanias do Sul, chegando até S. Vicente. A relaxação dos costumes continuava entre os colonos, não obstante os esforços dos Jesuítas; por tal forma, que Nóbrega, em carta de 9 de Agosto de 1549, o declara alto e bom som, dizendo ser o escândalo da mancebia, e a desordem da religião e justiça um mal geral entre colonos e indígenas, e até entre os próprios sacerdotes, em todas as Capitanias; e instava (bem como o Governador) pela presença urgente de um Bispo no Brasil(94). Os índios continuavam, apesar das últimas providências, a ser pelos colonos aleivosamente assaltados e escravizados, como se vê da carta dirigida ao Rei pelo Ouvidor Geral Pedro Borges em 7 de Fevereiro de 1550(95); e até pelos mesmos provocados a guerras destruidoras, como ainda em data de 5 de Julho de 1559 o denuncia formalmente Nóbrega ao Governador Tomé de Souza, dizendo que — em toda a costa se tem geralmente por grandes e pequenos que é grande serviço de Deus fazer aos gentios que se comam, e se travem uns com os outros; e nisso dizem consistir o bem e segurança da terra; e isto aprovam Capitães e prelados, eclesiásticos e seculares(96). A regra de Maquiavel — dividi para reinar — já então era praticada, independente de brilhantes discursos e teorias. Fundada a cidade de S. Salvador, cabeça do governo geral da colônia, e nela o primeiro Colégio de Jesuítas no Brasil, foi a mesma constituída sede do Bispado com a chegada do primeiro Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha(97). Outro Colégio de Jesuítas também se fundou no mesmo ano de 1549 em S. Vicente(98). Ao passo que o Governador Geral não se descuidava do bem temporal da colônia, seguindo porém a respeito dos índios o sistema do rigor, os Jesuítas prosseguiam na propagação da fé, e na consolidação dos princípios religiosos e da moral, meios reconhecidos os mais profícuos à boa ordem e prosperidade do estado civil e político; sem religião, sem moral, as melhores leis são quase de todo praticamente nulificadas. Os incansáveis e hercúleos trabalhos de Nóbrega, Navarro e seus companheiros o atestam. Sendo poucos para tão árdua tarefa, tiveram reforço; vindo ultimamente Luiz da Grã, e José de Anchieta(99), que chegaram à Bahia com o novo Governador geral Duarte da Costa em Julho de 1553. O Brasil era criado província à parte, tendo por provincial o Padre Manoel da Nóbrega. sucedeu D. Sebastião, então na menoridade, sob a regência de D. Catarina (e desde 1562 sob a do Cardeal D. Henrique), foi deliberado, à vista do crítico estado da colônia, mandar-se por Governador Geral (3.°) Mem de Sá, magistrado distinto por todos os dotes da inteligência e do coração; o qual chegou ao Brasil em 1558(110). Acudiu ele de pronto à Capitania do Espírito Santo, onde os índios se tinham levantado; aí perdeu o filho Fornão de Sá: assim como à dos Ilhéus, e à de Porto-Seguro, onde os terríveis Aimorés não deixávam repouso aos colonos(111). O governo da metrópole aprovou e lh’o agradeceu; e ao mesmo tempo, em carta Régia de 1558 recomendou-lhe toda a proteção aos Jesuítas na conversão dos gentios. Em outra carta Régia do mesmo ano, dirigida à Câmara de S. Salvador, igual recomendação se fez, e que aos convertidos se tratasse bem, não fossem vexados, nem se lhes tomassem as terras, porque, além de ser de razão e justiça, isto serviria de exemplo aos outros gentios(112). Mem de Sá começou nesta época a organizar as missões, reunindo várias aldeias de índios sob o governo de um principal d’entre eles, e auxílio espiritual dos Padres da Companhia(113), os quais todavia exerceram desde logo também alguma autoridade temporal, embora em forma palernal e conciliatória; tais foram as de S. Paulo, Espirito Santo, e outras. Proibiu a antropofagia, fazendo punir severamente a infração. Continuava entretanto o sistema do terror contra os índios que se atreviam a atacar as povoações e colonos; e também a guerra aberta para afugentá-los, quando se não submetiam, como sucedeu na Bahia e mais tarde em S. Vicente(114). Os selvagens persistiam por sua parte em infestar a terra com suas assaltadas; formando mesmo alianças entre si contra os Portügueses, como foi a celebrada Confederação dos Tamoios, conjurada pelos esforços dos Jesuítas e sobretudo do Padre José de Anchieta(115); e auxiliando os estrangeiros, quais os Franceses, contra os colonos. — Acaso eram eles instigados pelo espírito do mal? ou tal estado de cousas teve sua causa originária no fato não interrompido das vexações exercidas pelos colonos contra os pobres índios, fossem amigos e pior se inimigos? sofrendo agora os atuais colonos as conseqüências das culpas dos antecessores, e quiçá das suas próprias? O certo é que, se alguns Índios se mostravam assim inimigos, e até cruéis (por vingança), outros se prestavam com facilidade à catequese debaixo da direção dos Padres da Companhia(116). As missões criadas por Mem de Sá aumentavm e progrediam a olhos vistos; os índios se convertiam à religião cristã por milhares; o casamento era sancionado pelo Sacramento da Igreja; as escolas eram freqüentadas com proveito por número não pequeno deles(117). Os Jesuítas instituiram aulas da língua tupi(118). Com as providências tomadas, com os exemplos de castigo, e mais que tudo com a intervenção e influência dos Jesuítas, conseguiu Mem de Sá algum sossego; e a colônia dava indícios de prosperar; o gentio mostrava-se mais pacifico ou amedrontado(119). Cumprindo desalojar definitivamente os Franceses, já expulsos em 1560 do forte de Villegaignon, e fundar no Rio de Janeiro uma colônia, veio da Metrópole uma armada, que chegou à Bahia em Fevereiro de 1564, trazendo por Capitão-Mor Estácio de Sá, sobrinho do Governador. Com auxílios recebidos, principalmente de S. Vicente, entrou ele a barra em Fevereiro de 1565, e lançou os fundamentos da cidade de S. Sebastião junto ao Pão d’Açúcar. Os gentios, auxiliados e industriados pelos Franceses, incomodavam em extremo a nova colônia. Disto informado por José de Anchieta, e obtidos reforços da Metrópole e de Pernambuco, veio Mem de Sá em socorro de seu sobrinho: e, destroçando os Franceses e os índios em temíveis combates, conseguiu a paz; a cidade foi transferida para outro lugar mais apropriado, e é hoje a Capital do império. Mas Estácio de Sá havia perdido a vida em conseqüência de ferimentos no último combate(120). Deixando por Governador seu sobrinho Salvador Corrêa de Sá, voltou Mem de Sá à Bahia. Salvador repeliu os Franceses que o tinham vindo atacar, e foi batê-los a Cabo Frio, onde se haviam acoutado(121). De grande auxílio foi aos Portugueses o índio Ararigboia(122). — Os Jesuítas fundaram um outro colégio na nova povoação(123). Urgia no entanto tomar providências sobre os índios, a fim de que se harmonizassem as queixas dos colonos, que clamavam sempre por falta de braços, e a oposição dos Jesuítas às suas injustas e exageradas preterições; de um lado a escravidão formal ou disfarçada, de outro a proteção decidida à liberdade dos mesmos. Recebeu Mem de Sá uma Carta Régia o esse respeito, de conformidade com o Assento tomado pela Mesa de Consciência e Ordens(124), impondo restrições ao direito de cativar o gentio; declarando-se no Assento e na Carta que só seria legítimo, quando o fossem em guerra justa, ou entregues por seus pais para serem educados, ou dos que se vendessem, maiores de 20 anos. Na Carta se reconhecia que tinham havido abusos para reduzir a cativeiro os índios, e que para isto se usava de manhas, enganos, e força, a fim de serem eles induzidos a venderem-se, e a resgates injustos. Na mesma Carta se recomendava que nas aldeias fossem admitidos colonos morigerados, ainda fazendo-se-lhes algumas vantagens, no intuito de facilitar a civilização dos indígenas; o mesmo pensamento já manifestado no Regimento dado a Tomé de Souza. apreensão, sob pena de perderem todo o direito, e de ficarem ipso facto livres os aprisionados. Como era de esperar, atentos os hábitos dos colonos, levantaram estes tal clamor contra a lei, que em breve foi expedida ao Governador uma Carta Régia(128) mandando restabelecer o antigo sistema de resgates, e recomendando-o do modo seguinte: — No que toca ao resgate dos escravos se deve ter tal moderação, que não se impida de todo o dito resgate, pela necessidade que as fazendas deles têm, nem se permitam resgates manifestamente injustos, e a devassidão que até agora nisso houve(129). Mem de Sá não chegou a ser o seu executor; porquanto a Metrópole, entendendo conveniente dividir o Brasil em dois governos gerais, um ao Sul confiou ao Dr. Antônio Salema, e o outro ao Norte a Luiz de Brito e Almeida, sendo já falecido Mem de Sá, assim como o Bispo D. Pedro Leitão(130). Antes, porém, de se separarem para os seus respectivos governos, reuniram-se na Bahia em conselho com o Ouvidor Geral e Padres da Companhia, a fim de regularem a execução das leis sobre os índios; e assentou-se em 6 de Janeiro de 1574(131) no seguinte acordo, composto de 10 capítulos ou artigos, cujas idéias capitais são: 1.° que seria legítima a escravidão do índio aprisionado em guerra manifestamente lícita; entendendo-se por tal a que fosse feita pelos Governadores segundo os seus Regimentos, ou a que ocasionalmente se vissem os Capitães forçados a fazer, precedendo resolução com voto dos Oficiais da Câmara e outras pessoas experientes, dos Padres da Companhia, do Vigário, e do Provedor da Fazenda, de que se deveria lavrar auto; 2.°, que também se reputaria legitimamente cativo o índio que, maior de 21 anos e escravo de outros índios, preferisse ser escravo de cristão; 3.°, que o resgate não era aplicável ao índio manso; o qual não podia portanto ser por tal título reduzido a cativeiro; exceto se, fugindo da aldeia para o sertão, estivesse ausente mais de um ano; 4.°, que nenhum resgate seria válido, quando feito sem licença dos Governadores ou Capitães; devendo decidir sobre sua validade os Provedores e mais dois adjuntos eleitos em Câmara no princípio de cada ano; 5.°, que as pessoas que trouxessem índios de resgate, ou por mar ou por terra, dessem entrada na respectiva alfândega, antes de qualquer comunicacão com alguém; 6.° que só seria garantida aos colonos a propriedade sobre o índio de resgate, quando registrado; tendo-se por livres os que não estivessem; 7.° que os índios apreendidos em guerra que não fosse feita nas condições expostas, seriam livres: 8.° que os infratores ficariam sujeitos às penas de açoites, multa, e degredo, além das outras em que pudessem incorrer. Os dois Governadores, seguindo no seu governo, viram-se todavia a braços com o gentio, quiçá incitado pelos colonos, que agora achavam meio de assim arrebanharem trabalhadores para as suas fazendas e serviço. Mas o erro de dividir o Brasil em dois governos foi de pronto reconhecido; e logo em fins de 1577 restabeleceu-se o de um só, confiado a Lourenço da Veiga, que empossou-se em princípios de 1578(132). Neste mesmo ano El-Rei D. Sebastião perdera a vida em Alcaçarquevir (4 de Agosto de 1578); dando este desastre lugar a que pouco depois a coroa de Portugal fosse reunida à de Castela na cabeça de D. Felipe II, por falecimento do Cardeal Rei D. Henrique(133), e assim passasse o Brasil ao mesmo domínio. Por morte de Lourenço da Veiga (1581), foi o governo da colônia exercido interinamente por Cosmo Rangel de Macedo; tudo foi desordem na colônia; o gentio continuava alevantado: os colonos sofriam; os Franceses persistiam nas suas tentativas; e agora também os Ingleses começavam as suas. Com o nuvo Governador Manoel Telles Barreto vieram (1583), de reforço á Companhia de Jesus alguns companheiros, entre os quais o Padre Fernão Cardim(134). No seu tempo conseguiu-se a colonização da Paraíba, tantas vezes malograda. A ordem foi restabelecida. As tentativas dos estrangeiros burladas, e mesmo repelidas à força. De sorte que, nessa época, pode-se dizer, se em algumas Capitanias o estado era pouco lisonjeiro, em outras era próspero a ponto mesmo de se desenvolver (Pernambuco v. g.) o luxo entre os colonos já de modo notável. Falecendo Barreto (Março de 1587), passou o governo à Junta interina. A corte de Madri expediu a Lei de 22 de Agosto de 1587(135), pela qual se suscitava a observância da Lei de D. Sebastião de 1570, nela inserta, relativamente aos casos em que os índios podiam ser cativos, acrescentando-se que os que livres trabalhassem nas fazendas não pudessem jamais ser retidos como escravos, mas sim como inteiramente livres a serviço enquanto fosse sua vontade(136); lei em que se fundaram os Padres da Companhia, combinada com outras determinações anteriores, para se constituírem os protetores e defensores dos Indígenas(137). Em 1591 chegou ao Brasil o novo Governador geral D. Francisco de Souza; cuja idéia dominante de descoberta de minas, embora trouxesse a exploração e descobertas no sertão, todavia distraiu gente e cabedal, e impediu de acudir, como conviria, às agressões de Franceses, Ingleses, e Holandeses. Conseguiu-se no entanto a colonização do Rio Grande do Norte(138). Ainda outros fatos se passaram; dos quais merece especial menção o de começarem os Paulistas as suas excursões para o Sul, acossando os índios. Os Jesuilas, porém, sempre Ouvidor, deveria o Governador nomear Juiz especial, que conhecesse das causas dos Índios, dispensando todo o favor compatível com a justiça; assim como designar por Curador para as suas causas um cristão velho e de confiança, que de acordo com os Religiosos requeresse a bem dos mesmos. — Na 3.ª parte, olhando ao pretérito, e reconhecendo abusos no cativar os índios, ordenou que fossem restituídos à liberdade todos os que foram escravizados contra Direito, não obstante títulos de venda e mesmo sentenças em contrário, que foram declarados nulos. — Na 4.ª, finalmente, impôs as penas das Ordenações e Direito Comum(148) aos que trouxessem do sertão e tivessem por escravos os gentios, em contravenção ao que ficava decretado. No entanto, forçado Botelho a retirar-se em conseqüência de suas desavenças com o Bispo e Jesuítas, havia chegado ao Recife em Dezembro de 1607 o Governador D. Diogo de Menezes e Siqueira, depois Conde da Ericeira(149), que dali seguiu para a Bahia em fins de 1608. — Para o Sul (Espírito Santo, Rio de Janeiro, e S. Vicente) de novo separado, veio D. Francisco de Souza, igualmente Superintendente Geral das Minas, a quem sucedeu seu filho D. Luiz de Souza(150). Pelas últimas leis sobre os índios, ficavam estes sob a tutela quase exclusiva dos Padres da Companhia; os quais já cuidavam mais de atentar para os bens temporais da Ordem com vistas ambiciosas de predomínio(151) e desenvolviam a sua indústria agrícola e até comercial, com o grande auxílio do braço dos indígenas, que tinham em grande número nas fazendas e engenhos(152). Por modo que, faltando trabalhadores aos colonos para as suas lavouras e serviços, e opondo-se os Jesuítas a que escravizassem os índios (e nisto tinham razão), ou mesmo retirassem das aldeias ou povoaçõe os já domesticados, levantaram-se, sobretudo em S. Paulo, bandeiras para irem aprender índios bravos fora da jurisdição dos Padres(153). A Câmara da Paraíba fez chegar ao Rei uma representação datada de 19 de Abril de 1610 sobre o estado dos colonos e necessidade de lhes acudir. Em carta de 8 de Maio do mesmo ano igualmente o fez o Governador D. Diogo de Menezes. Feliciano Coelho (da Paraíba) queixava-se amargamente, receiando até que se degolassem reciprocamente índios e colonos. Ainda em Carta de 7 de Fevereiro de 1611 D. Diogo insistia em mudar-se de conduta a respeito dos índios e dos Jesuítas, tirando-se aos Padres a direção temporal das aldeias, e acabando-se mesmo com estas — porque eles e o Estado maiores vantagens ganhariam, introduzindo-se os gentios nas grandes povoações, onde somente, que não isolados delas em aldeias, poderiam ganhar os hábitos civilizados. Semelhante estado de cousas despertou a atenção da Corte, que, revendo tão melindroso assunto, promulgou a L. de 10 de Setembro de 1611(154); a qual contém as seguintes disposições capitais: 1.ª a liberdade dos índios é reconhecida em tese, sob penas aos infratores; 2.ª, todavia era reputado legitimo o cativeiro não só dos aprisionados em guerra justa, mas também dos resgatados quando cativos de outros índios, que, a não ser o resgate, os devorariam; 3.ª, nenhuma guerra se poderia fazer ao gentio senão quando este movesse guerra, levantamento, ou rebelião; precedendo resolução tomada pela Junta composta do Governador, Bispo (se presente), Chanceler e Desembargadores(155) e todos os Prelados das Ordens (presentes no lugar da Junta), e depois de competentemente aprovada pelo Rei; exceto em caso de perigo iminente, em que todavia ficava livre ao Rei a confirmação (e portanto a legitimação do cativeiro); 4.ª, que os resgatados serviriam como cativos somente 10 anos quando comprados por preço não excedente ao taxado pela Junta(156), e perpetuamente se fosse superior; 5.ª, que para o governo civil das aldeias, o Governador, sob parecer do Chanceler e do Provedor de Defuntos, nomeasse Capitão, que serviria por três anos; organizadas as aldeias em povoações de 300 casais quando muito, em tal distância das matas do pau brasil e dos engenhos, que lhes não pudessem fazer dano; e que se lhes distribuíssem terras; 6.ª, que, quanto ao espiritual, houvesse em cada aldeia uma Igreja com um Vigário, Clérigo Português conhecedor da língua indígena; e, em falta, religiosos da Companhia do Jesus; e, não os havendo, de quaisquer outras Religiões; apresentados pelo Rei ou pelo Governador, confirmados pelos Bispos, o sujeitos às visitações(157), e penas eclesiásticas; 7.ª, que nas aldeias deveriam residir os Capitães com suas famílias, e os Vigários; 8.ª, que nelas seria o Juiz Privativo o Capitão da aldeia; de cujas decisões caberia recurso para o Ouvidor, e Relação; 9.ª, que os índios delas poderiam ser dados a serviço mesmo particular, quando os procurassem e eles quisessem servir, por preço constante da taxa geral que fosse marcada para o Estado; 10.ª, que esta ordem se guardasse em todas as aldeias presentes e futuras, bem como nas que fossem criadas de índios mandados pela mesma Lei reslituir à sua liberdade por indevidamente escravizados; 11.ª, que todos os anos mandaria o Governador tirar devassa por um Desembargador contra os Capitães de aldeias, e quaisquer outras pessoas, relativamente à falta de observância da Lei; procedendo-se por ela na Relação breve e sumariamente contra os culpados. Os colonos haviam assim conseguido a vitória, abrindo-se de novo lugar à escravidão dos índios; o interesse pecuniário e metálico, a pretexto de — paz do Estado... e maior bem dos miseráveis que por tal sorte se pretendiam civilizar e cristianizar — levou de vencida a causa da justiça, da humanidade, e da verdadeira religião, aliás bem julgada na anterior Lei de 1609! Em vez do progresso, foi um passo altamente retrógrado, como a experiência veio confirmar. próprias missões dos Jesuítas, e até as aldeias, d’onde arrancavam mesmo os já reduzidos; por forma que dali trouxerão para cima de 15.000(168). — Por Dec. de 18 de Setembro de 1628 havia a Corte mandado que se punissem os culpados. — Os Jesuítas queixavam-se; e vieram a S. Paulo e ao Rio de Janeiro pedir providências. — Nada, porém, continha a audácia daqueles intrépidos aventureiros. Quase em fins da primeira metade do século XVII consolidou-se a conquista Holandesa no Brasil, não obstante a oposição de Matias de Albuquerque Coelho e de outros bravos; Pernambuco era definitivamente ocupado; a colônia holandesa estendia-se nessa época (1635–1644) desde Pernambuco até o Maranhão inclusivamente, apesar de serem os Holandeses grandemente incomodados pelas correrias do índio Antônio Felipe Camarão, do preto Henrique Dias, e de outros, intitulados — capitães das emboscadas —. O governo dessa Nova Holanda ou Brasil Holandês foi confiado ao príncipe Maurício de Nassau; cuja sábia, ativa e justa administração fez em breve prosperar a colônia (singular e natural contraste do procedimento mesquinho, suspeitoso e egoísta da metrópole portuguesa ou espanhola), e grangeou-lhe a estima e o respeito não só dos seus, mas dos próprios inimigos(169); a colonização mereceu-lhe especial cuidado; os índios eram homens. Deixemos, porém, tão vasto assunto histórico e social. Voltemos aos nossos indígenas, cuja escravidão ou liberdade foi sempre a questão abrasadora da colônia(170). CAPÍTULO V. BULA DO PAPA URBANO VIII A FAVOR DOS ÍNDIOS. — OPOSIÇÃO DO POVO. — EXPULSÃO DE JESUÍTAS. — ADMINISTRAÇÃO DE ÍNDIOS. — PADRE ANTÔNIO VIEIRA. — ALDEIAS. — ENTRADAS NOS SERTÕES PARA DESCER GENTIOS. — NOVA EXPULSÃO DE JESUÍTAS. — NOVAS LEIS SOBRE ÍNDIOS E JESUÍTAS. — GUERRA AOS ÍNDIOS; DESTRUIÇÃO DE TRIBOS. Dominava o sistema da Lei de 10 de Setembro de 1611. Os Paulistas prosseguiam cada vez mais ousados nas suas correrias ou caçadas, e assaltavam as missões jesuíticas até do Acaraí(171), sem que cousa alguma conseguissem os Padres do Governo do Brasil; por forma que resolveram mandar queixas diretas a Madri e ao Sumo Pontífice, despachando para aquela o Padre Ruy de Montoya(172), e para Roma Francisco Dias Tano(173). Mais bem sucedidos voltaram com uma Bula do Papa Urbano VIII (de 22 de Abril de 1639) publicando no Brasil a de Paulo III (de 28 de Maio de 1537), declarando incorrer em excomunhão os que cativassem e vendessem os índios. O povo e a Câmara do Rio de Janeiro se opuseram à execução da Bula; e, não obstante a proteção do Governador, Salvador Corrêa de Sá e Benavides, aos Jesuítas, foram estes constrangidos a desistir de quaisquer direitos que da Bula lhes pudessem vir, e a declarar que se não envolveriam mais na administração dos índios, exceto das Aldeias, onde se comprometeram a não admitir os dos particulares, como consta do Acordo de 22 de Junho de 1640(174). Em S. Paulo o levantamento contra os Jesuítas foi mais violento, porque trouxe a sua expulsão, conforme o acordo de 13 de Julho de 1640(175); e os Paulistas mandaram à Corte procuradores com uma representação contra os Padres, e com eles Amador Bueno enviado pela Câmara(176). A representação referida, e a anterior que haviam levado os Jesuítas contra os Paulistas, foram submetidas ao parecer de várias pessoas conspícuas; dando em resultado que se mandassem, por Alv. de 3 de Outubro de 1643 e C. R. da mesma data, restituir os Jesuítas aos seus colégios até que se deliberasse definitivamente(177): o que todavia não pôde ser logo executado(178). Na Bahia se havia deliberado por assento de 6 do Abril de 1643(179), confirmado pelo Rei em C. R. de 23 de Junho de 1655; fazer a guerra aos índios; o que foi confiado a Gaspar Rodrigues. No entanto, com a gloriosa revolução do 1.° de Dezembro de 1640 havia terminado para Portugal o domínio da Espanha, e sido elevado ao trono o Duque de Bragança aclamado Rei D. João IV. — E logo em 1641 o Brasil voltou ao domínio português à exceção da parte ocupada pelos Holandeses. O Conselho das Índias fora substituído pelo Ultramarino (1642), incumbido de prover ao que conviesse ao bem dos Estados ultramarinos, bom governo e aumento deles, e propagação do Santo Evangelho. O desejo de lançar fora os Holandeses agora mais se pronunciava. O Padre Antônio Vieira, em um célebre sermão E os novos Governadores, Baltazar de Souza Pereira, no Maranhão, e Inácio do Rego Barreto, no Pará, trouxeram instruções constantes dos seus regimentos(187), especiais para a execução das ditas determinações; o que todavia não conseguiram, em razão da oposição levantada pelos povos, que no Pará chegaram até a obrigar o Reitor dos Jesuítas, João de Souto Mayor, a declarar solenemente que os Padres se limitariam ao espiritual quanto aos índios, condição essencial de sua tolerância nessa Capitania. Pelo mesmo tempo chegava ao Maranhão o Padre Antônio Vieira (1653), da Companhia de Jesus, com carta do Rei de 21 de Outubro de 1652, autorizando-o a proceder como melhor entendesse relativamente aos índios; para o que deveria ser auxiliado pelos Governadores conforme as instruções a estes dadas(188). Na 1.ª Dominga da Quaresma pregou ele o seu 1.° sermão, em defesa da liberdade dos índios procurando captar a benevolência, e tentar a emenda ou correção dos moradores. E, passando-se ao Pará, exibiu a Carta Régia mencionada; dando esta lugar a um levantamento popular, de que resultou assinar ele um protesto de se não envolver em reformar as administrações de índios. Querendo, porém, aquilatar por si mesmo o procedimento dos colonos na apreensão deles, acompanhou uma expedição ao Alto Tocantins; e do que observou soube desde logo tirar partido em bem da sua Ordem e dos míseros Indígenas. A Corte Portuguesa, sempre vacilante e tímida em questão de tamanho alcance para a humanidade, e para a paz do Estado Brasílico, havia relaxado a restrição das Leis últimas, cedendo à representação dos procuradores do povo do Pará e Maranhão; e pela Provisão de 17 de Outubro de 1653(189) restabeleceu não só os casos anteriores de cativeiro dos índios, quando aprisionados em guerra justa, ou resgatados quando destinados à morte, e atados à corda para serem devorados, mas introduziu casos novos e tão latos, que era quase impossível deixar de haver índio que pudesse escapar a essa rede que assim se lançava contra todos, em bem suposto dos colonos, dos próprios índios, e desejada tranqüilidade e prosperidade do Estado. — Para se reputar justa a guerra — há de constar (diz a Provisão) que o dito gentio, livre ou vassalo, impediu a pregação do Evangelho, e deixou de defender as vidas e fazendas dos vassalos de El-Rei em qualquer parte; haver-se lançado com os inimigos da Coroa, e dado ajuda contra os vassalos. — Também será legítimo o cativeiro, se exercerem latrocínios no mar ou em terra, infestando os caminhos; salteando ou impedindo o comércio e trato dos homens, para suas fazendas e lavouras: se os índios, súditos de El-Rei, faltarem às obrigações que lhes foram postas e aceitas nos princípios de suas conquistas, negando os tributos, e não obedecendo quando forem chamados para trabalharem em o Real serviço, ou para pelejarem com os inimigos do Estado; se comerem carne humana, sendo meus súditos.— Igualmente poderão ser cativados aqueles gentios que estiverem em poder de seus inimigos, atados à corda para os comerem, e meus vassalos os remirem daquele perigo com as armas, ou por outra via; e os que forem escravos legitimamente dos senhores, a quem se tomaram por guerra justa, ou por via de comércio e resgate. Para este fim permitiu a Provisão (2.ª parte) que se pudessem fazer entradas no sertão por pessoas eleitas, à maioria de votos, pelos Capitães-mores, Oficiais da Câmara, Prelados das Religiões, e Vigário geral (onde houvesse); acompanhadas, porém, de Religiosos que fossem à conversão dos gentios. E quanto às aldeias, dispôs (parte 3.ª) que não lhes pusessem Capitães, e sim os Governadores as deixassem sob a direção e governo de um dos principais da sua nação, que fariam a repartição dos índios pelos colonos voluntariamente, mediante o salário costumado. Com esta Provisão chegaram (1654) os referidos Procuradores; a vitória era atualmente do povo; os Jesuítas derrotados. — Mas o Padre A. Vieira não se acovardava tão facilmente; e resolveu ir pessoalmente a Lisboa sobre tão melindroso assunto. Aos seus esforços foi devido criar-se aí a chamada Junta das Missões, para onde recorressem e apelassem os Missionários; ante a qual defendeu ele com ardor a necessidade da revogação da Provisão de 17 de Outubro de 1653: o que conseguiu em parte, como se vê da Lei de 9 de Abril de 1655. André Vidal de Negreiros, novo Governador do Pará e Maranhão (de novo reunidos), fiel ao seu Regimento de 14 de Abril de 1655(190) declara-se a favor dos índios(191). Pela referida Lei ou Provisão de 1655(192) conservaram-se os quatro antigos casos de escravidão, e eliminaram-se todos os outros introduzidos pela outra Provisão de 1653; confirmaram-se as entradas no sertão para conversão dos gentios e sua distribuição, escravos de resgate; confiou-se a direção delas, e mesmo a sua resolução, tempo e modo de fazê-las, aos Padres da Companhia(193) com plena autoridade espiritual e temporal; e bem assim a direção das aldeias(194). Estas novas resoluções da Corte, postas em execução por Vieira, auxiliado por Vidal, indo de encontro aos intentos e hábitos desumanos dos colonos no cativar os índios, produziram mais tarde os seus naturais efeitos na luta que de novo se travou entre os mesmos e os Jesuítas. Por enquanto prosseguiam estes, sob a direção de Vieira, nas suas missões; chegando a fazerem diversos da Companhia, e entre eles o próprio Vieira, várias entradas no sertão para a descida e conversão dos gentios(195): em uma destas — ficaram 240 prisioneiros; os quais, conforme as leis de S. M., a título de haverem impedido a pregação do Evangelho, foram julgados por escravos e entregues aos cumprisse a lei, e o Governador não, e que este mandava por fim subitamente executá-la(205), a Câmara de S. Luiz em Junta resolveu mandar ao rei uma representação, suspensa no entanto a dita Lei(206). Com a demora da resposta, em Belém suscitaram-se desordens, publicando a Câmara (1666) por bando a Lei; o que igualmente sucedeu depois em S. Luiz do Maranhão (1667). O Governador, assim forçado, pôs-lhe todavia na execução as restrições constantes das dúvidas submetidas à Corte. Afinal vieram estas resolvidas pela C. R. de 9 de Abril de 1667, que ordenou a inteira observância da Provisão de 1663, com os aditamentos seguintes: 1.° que aos missionários era proibida toda e qualquer intervenção na repartição dos índios: 2.° que seria esta sempre feita pelo Juiz mais velho(207), de acordo com a Lei de 18 de Outubro de 1666(208). O novo Governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, na sua execução, arrogou-se atribuições exorbitantes com ofensa dos direitos das Câmaras e dos Juízes. Efetuaram-se no entanto alguns descimentos de índios(209). Sucedendo-lhe Pedro César de Menezes, as novas dúvidas postas à execução das leis últimas suscitaram a expedição da C. R. de 21 de Novembro de 1673(210), pela qual foi declarado que se publicassem e cumprissem essas leis de 1663 e 1667, e se acrescentava que a eleição dos cabos das entradas, dos repartidores, e a deliberação de mandar ao sertão descer os gentios não se fariam sem autoridade dos Governadores. A perseguição aos índios era um mal incurável; e agora o ódio ia até à destruição do miserável gentio. Em 1664 tribos foram aniquiladas, quais as dos Tapuias do Urubu. No governo de Inácio Coelho da Silva (1679) igual sorte tiveram os índios Taramambezes, perseguidos por água e por terra, não se poupando sexo, idade, nem os fugitivos. Posteriormente fatos idênticos se repetiram(211). No entanto, o Governo da Metrópole não cessava de recomendar proteção aos índios e aos missionários, como ainda no Regimento novo de 23 de Janeiro de 1677 para os Governadores Gerais do Brasil(212). Continuavam as excursões pelo interior do país, já não tanto em busca de índios, como de minas de metais preciosos. Crescia a população. Os vexames e males provenientes do monopólio conferido à Companhia do comércio trouxeram a sua extinção (1663). Era criado o Arcebispado da Bahia, e os bispados do Rio de Janeiro e Pernambuco(213); sendo o l.° Arcebispo D. Gaspar Barata de Mendonça: e o bispado do Maranhão(214). Em fins de 1679 assentou-se no Rio da Prata a colônia do Sacramento, que deu origem em diversas épocas a graves complicações com a Espanha. A questão dos índios continuava a inquietar a colônia, e a provocar novas decisões da Metrópole; — A Câmara do Maranhão tinha ali por procurador do povo Paulo Martins Garro(215). — A de S. Paulo queixava-se de que os Jesuítas só desejavam os índios para si, de modo que entre os seus domésticos se contavam para cima de 700(216); chegando-se mesmo a lavrar aí em 24 de Junho de 1677 um acordo com o Reitor do Colégio, Padre Francisco de Morais, para que este não influisse em bem da liberdade dos índios sob pena de sofrer o que ao povo aprouvesse(217). — No Rio de Janeiro algumas desavenças se haviam levantado entre a Câmara e os Jesuítas(218). — No Espírito Santo resolvera-se fazer a guerra aos índios(219); o que foi incumbido aos Paulistas(220). Os Jesuítas, porém, não se deixavam reduzir à nulidade, nem se davam por vencidos nas lutas com os colonos, já não pelo amor santo e puro de reduzir à fé Católica os gentios, e de protegê-los contra os excessos dos povos, mas principalmente por amor próprio, e defesa da sua preeminência. A decidida influência dos Padres se revela claramente nas determinações que se tomaram, como veremos. Por outro lado, também o Bispo do Maranhão se queixou, por pretender que lhe cabia jurisdição sobre os Jesuítas em qualidade de simples Párocos(223). Outra causa grave de descontentamento do povo foi o monopólio conferido a uma nova Companhia de comércio do Grão-Pará e Maranhão pelo Alvará de 12 de Fevereiro de 1682(224). Já neste Alvará o acordo respectivo se fez modificação à Lei e Provisão referidas; porque se permitiu aos contratadores ou assentistas fazer no sertão as entradas que quisessem, e ter na Capitania até cem casais de índios a seu serviço, contanto que os baixassem à sua custa, e lhes dessem um sacerdote (escolhido pelo Ordinário) para os catequizar, sem que pessoa alguma, nem mesmo o Governador, se pudesse ingerir por qualquer forma em tal matéria. Tantas causas acumuladas deram em resultado no Maranhão a revolta aberta (1684) de Manoel Beckman (ou Bequimão), a deposição do Governador, a expulsão dos Jesuítas, e declarar-se extinta a Companhia do Comércio(225), tudo por deliberarão do uma denominada Junta dos Três Estados (clero, nobreza e povo). Os Padres sairam para Portugal em número de 27, depois de declararem, e se obrigarem, que em nenhum tempo por sua vontade nem leve pensamento volariam. Inúmeros índios assistiram ao seu embarque(226). Havendo os Padres saído em dois navios, um destes foi tomado por um corsário, que os deitou em terra; sendo pelo Governo Provisório do Maranhão mandados para Belém: o outro chegou à Bahia, onde já então se achava de novo o Padre Antônio Vieira, e daí seguiu para Lisboa. Também à Corte tinha ido Tomás Beckman, irmão do chefe da sublevação, em missão dos sublevados. Mas os do Maranhão, logo que se promulgou a citada lei de 1680, haviam mandado a Lisboa procuradores a reclamarem, distingindo-se entre eles Manoel Guedes Aranha, acérrimo defensor da escravidão. Conseguiram eles a Lei de 2 de Setembro de 1681(227), pela qual eram restabelecidas as administrações particulares de índios, visto estarem as aldeias muito diminutas e não baixarem índios para o serviço dos moradores, nem os haver para as entradas do sertão; havendo risco, por esta causa, de interromper-se o comércio, consistente na indústria dos mesmos índios, e até de perder-se a sua comunicação. Conseguintemente dispôz a Lei: 1.° que os moradores, ou individualmente, ou unidos em sociedades e companhias, averiguando o número de índios de que houvessem mister para as suas fazendas e serviços, e com a devida autorização do Governador, pudessem fazer descimentos; 2.° que os índios fossem sustentados pelos administradores e se lhes dessem terras para as suas lavouras; 3.° que para as entradas iria sempre um Religioso da Companhia, ou de Santo Antônio; ao qual ficariam sujeitos no espiritual, levantando os moradores Igreja para o culto; 4.° que, no temporal, seriam livres os descidos conforme as leis em vigor; decidindo o Governador as suas dúvidas, ouvindo sempre o Padre respectivo; 5.° que a distribuição dos índios entre os moradores seria feita na proporção do cabedal com que cada um houvesse concorrido para a entrada, descimento, e fundação da aldeia; 6.° que os índios trabalhariam, por salário, uma semana para os moradores; ficando-lhes outra semana livre para si em suas aldeias e lavouras; 7.° que não seriam obrigados a trabalhar, se lhes não fosse pago o salário do mês antecedente; 8.° que, para as entradas, só levariam os moradores metade dos da sua lotação, ficando a outra nas aldeias para conservação destas; 9.° que destes serviços eram isentas as mulheres; podendo elas, se quisessem, acompanhar os maridos ou pais ao trabalho, contanto que viessem dormir à aldeia. Era a escravidão disfarçada o que se restabelecia. A revolução, porém, do mesmo ano obstou à sua execução, não se fazendo pela mesma Lei obra alguma por se oferecer outro meio mais conveniente(228), de que trataremos. Os Jesuítas em Lisboa fizeram subir à presença do Rei um memorial dos P. missionários do Estado do Maranhão com 12 propostas relativamente aos negócios de índios, e à sua explusão; em o qual, queixando-se amargamente, concluíram pedindo a sua reintegração no Brasil e Maranhão, com vantagens e garantias as mais latas no espiritual e temporal relativamente aos índios e missões(229). Não eram os Jesuítas pessoas que se deixassem facilmente abater. Antes, porém, de resolver definitivamente sobre tão grave assunto, cumpria pôr cobro à revolta. Em 1685 chegou ao Maranhão o novo Governador Gomes Freire de Andrade; o qual tomou enérgicas providências, que trouxeram a paz ao Estado por algum tempo; e chamou os Padres que se achavam no Pará(230). Os Jesuítas voltavam agora, vencedores, de Belém e Lisboa. A C. R. e Regimento de 21 de Dezembro de 1686, denominado das missões, entregavam-lhes para sempre não só a direção espiritual das aldeias, e índios, mas também o governo temporal e político, objeto constante dos seus esforços e ambição(231), embora o mesmo concedessem aos Religiosos de Santo Antônio, e conseqüentemente a outras Ordens Religiosas(232), a quem se permitiu aldear índios. Reconhecendo o dito Regimento no seu preâmbulo que todos os esforços das leis promulgadas tinham sido inutilizados pela malícia dos moradores que inventam e descobrem novos modos de se não observarem, dispôs: 1.° que os Padres tornassem ao dito Estado; 2.° que teriam o governo não só espiritual que d’antes tinham, mas também o temporal e político das aldeias de sua administração, como igualmente se concedia moradores para fazerem a farinha quando fosse tempo apropriado, e lhes criarem de leite os filhos, a arbítrio dos Missionários; 21.°, que as aldeias fossem de 150 vizinhos, na forma do Regimento dado ao Governador; exceto quando se compusessem de nações inimigas, caso em que dentro do distrito das residências poderiam ser estabelecidos em pequenas freguesias; 22.°, que os índios descidos de novo seriam isentos de servir por dois anos, por ser necessário este lapso de tempo para serem doutrinados na fé (primeiro motivo de sua redução ) e para fazerem suas roças e se acomodarem à terra, antes que se arrependessem por causa do jugo do serviço; que a respeito de todos os índios descidos se deveriam religiosamente observar os pactos que com os mesmos se fizessem no sertão pelos missionários, por ser isto conforme à fé pública, fundada no Direito Natural, Civil, e das Gentes; que, se não quisessem os índios descer, mas se mostrassem inclinados a observar a Fé Cristã nos seus sertões, os Padres os estabelecessem em aldeias nos mesmos sertões do modo o mais cômodo — porque não permite a justiça que sejam tais homens obrigados a deixar as terras que habitam — quando não repugnam ser Cristãos, e além disto é conveniente que as aldeias se dilatem pelos sertões para que se possam mais facilmente penetrar e se tirem as vantagens pretendidas; 23.°, finalmente, que os Governadores dessem aos Missionários todo o auxílio, ajuda, e favor para sua segurança nas entradas nos sertões, e para mais facilmente fazerem as missões; que, outrossim, a Junta das Missões(233), à qual se daria Regimento, fizesse cumprir e executar fielmente o presente Regimento(234). Dominava, porlanto, o sistema das leis últimas, e o mencionado Regimento das Missões do Grão-Pará e Maranhão. Mas em breve se lhe foram descobrindo defeitos e lacunas, que exigiram novas providências. Gomes Freire de Andrade, em Junta com o Governador Artur de Sá e Menezes, Padres Superiores, Ouvidor, e Desembargadores, tomou um Assento declaratório de vários Capítulos do Regimento, o qual foi confirmado pelo Alvará de 22 de Março de 1688 com alguns novos additamentos(235); consistindo principalmente no seguinte: 1.° que os índios ou índias que casassem com escravas ou escravos, não pudessem servir aos senhores destes, nem a seus ascendentes, descendentes, ou parentes dentro do 2.° grau por Direito Canônico, pelo dolo que nisso poderia haver; 2.° que os que fossem às aldeias com licença do Governador, a apresentariam logo aos missionários ou diretores delas; nem se demorariam aí mais de 3 dias, salvo por causa justa atestada pelos missionários; tudo sob penas severas; 3.° que nos contratos com os índios interviesse o Governador; mas com audiência do Ouvidor Geral, quando fossem relativos a matérias de Justiça. Outra importante alteração foi decretada pelo Alvará de 24 de Abril de 1688(236), ordenando-se que os resgates se fizessem à custa da Real Fazenda, para o que se destinaram logo 2.000 cruzados para o Pará e 4.000 cruzados para o Maranhão; encarregados dos mesmos resgates os Prelados das missões: a distribuição dos índios resgatados seria feita pelas respectivas Câmaras, com autoridade do Governador, e assistência do Ouvidor Geral, preterindo as pessoas que deles maior necessidade tivessem para as suas lavouras e Fazendas, as quais reembolsariam as despesas do resgate em ordem a manter-se sempre aquela soma para este fim designada, e mais pagariam 3$000 de direitos por cabeça de índio, imposto destinado ao mesmo fim. Porém a mais grave modificação foi a do Alvará de 28 de Abril do mesmo ano 1688(237), que derrogou em parte a Lei do 1.° de Abril de 1680 e restabeleceu a de 9 de Abril de 1655 com algumas alterações. — Refere o Alvará no seu preâmbulo que, segundo informações(238), e ouvidas pessoas entendidas, com a providência absoluta da Lei de 1680 proibitiva do cativeiro dos índios ainda mesmo nos casos de guerra justa e de resgates, se havia não só impedido que se salvassem vidas e almas, porém que as guerras dos mesmos índios entre si e com os colonos se houvessem tornado mais bárbaras por se não pouparem as vidas, chegando os índios a prenderem à corda os prisioneiros para devorarem; ou, quando podiam, os iam vender aos estrangeiros, com grande dano do Estado: e que, sendo o principal intento no domínio das Conquistas a conservação delas pelo aumento da Fé e liberdade dos índios, e chamá-los ao grêmio da Igreja, ficavam restabelecidos os resgates e cativeiros, do modo seguinte: l.° que os resgates seriam feitos por conta da Real fazenda para com todos os que se achassem cativos de outros índios, quer presos à corda para serem devorados, quer dos cativados para serem vendidos a outras nações, contanto que não repudiassem eles os resgates por entenderem que outro meio tinham de livrarem a vida, e não houvesse influxo dos moradores para tais cativeiros; 2.° que para os resgates, modo de fazê-los, distribuição dos resgatados, reembolso das despesas à Fazenda, imposto, e outras particularidades, se observaria o Alvará anterior de 24 de Abril (com pequenas modificações); 3.° que, quanto ao cativeiro dos aprisionados em guerra com os colonos, seria legítimo não só quando em guerra defensiva contra as invasões dos índios principalmente se estes se opusessem com mão armada às entradas dos Missionários nos sertões e pregação do Evangelho, mas também em guerra ofensiva que os colonos fossem obrigados a fazer-lhes para impedir suas invasões; 4.° que, porém, se deveriam veriíicar exatamente as cláusulas aí declaradas para que tais guerras e cativeiros fossem legítimos, a saber: em guerra defensiva, somente no ato da invasão dos índios contra as aldeias ou povoações, com efetiva hostilidade; e na ofensiva, o temor certo e infalível da invasão dos mesmos, e esgotados os meios brandos, pacíficos, e conciliatórios de os fazer desistir do seu intento, ou quando, tendo feito hostilidades — não ser a jornada excedente a 4 meses; e isto com o fim de se proverem de braços para os seus serviços, satisfeitas assim as queixas dos moradores. Ainda em princípios do século XVIII novas providências foram tomadas pela Metrópole em relação aos índios, e a prover os colonos de gente para os trabalhos. Várias Cartas Régias se expediram, sobretudo para o Maranhão(246). Os tratados com a França, do 4 de Março do 1700 e 11 de abril de 1713 proibiram reciprocamente a entrada de súditos das duas Nações no território contestado entre ambas para resgatarem índios, ou fazerem comércio de escravos índios(247). Mas, como sempre, os abusos progrediam, e a tendência maliciosa para a opressão dos indígenas se tornava manifesta; do que resulavam o desrespeito às leis, a desordem da colônia, as novas guerras que os índios levantaram. Era por tal forma escandaloso o abuso, que a Provisão de 5 de Julho de 1715, expedida já por D. João V, mandou repreender o Capitão-mor José da Cunha d’Eça, por ter feito prender o procurador dos índios, contra os seus privilégios, pelo fato de estar ele requerendo a bem dos mesmos e contra as violações das Leis. Da mais notável é a Provisão de 9 de Março de 1718(248) exemplar eloqüente da constante perplexidade, luta, e eontradição do Governo da Metrópole em semelhante matéria. — Acedendo (preâmbulo) às representações do Governador, e tendo em vista os pareceres das Juntas sobre descimentos de índios para abastecer as aldeias, e as lavouras e fazendas dos moradores, e para a defensa do Estado, livrando-os sobretudo da barbaridade em que vivem, devorando-se uns aos outros; sobre consulta do Conselho Ultramarino, foi decretado: 1.° que, quanto aos descimenlos voluntários dos Índios que, a instâncias e diligências dos missionários, se quisessem deixar conduzir e reduzir, tratados, não como escravos, mas como livres, não podia haver dúvida que fossem lícitos; 2.° que quanto, porém, aos descimentos forçados, precedendo ameaças ou força, podia haver escrúpulo, porque — estes homens são livres e isentos de minha jurisdição (diz El-Rei) que os não pode obrigar a saírem, das suas terras para tomarem um modo de vida de que eles se não agradam, o que, se não é rigoroso cativeiro, em certo ponto o parece pelo que ofende a liberdade. Contudo, se estes índios (continua a Provisão) são como os Tapuias bravos, que andam nus, não reconhecem Rei nem Governador, não vivem com modo e forma de república, atropelam as leis da natureza, não fazem diferença de mãe e filha para satisfação da sua lascívia, comem-se uns aos outros, sendo esta gula a causa injustíssima das suas guerras, e ainda fora delas os excita a frecharem os meninos e inocentes, neste caso será permitido fazê-los baixar à força e por medo para as aldeias, por ser isto conforme à opinião dos Doutores sobre a matéria; com as duas limitações referidas na mesma lei, a saber: 1.° que se não façam tanto à força que hajam mortes, exceto quando se torne indispensável justa defesa pela oposição dos mesmos índios; 2.° que, se depois de aldeados, fugirem para viverem como bravos com ofensa das leis da natureza, possam ser constrangidos a voltar, sem que sejam mortos, e não se entendendo cativos os que voluntariamente tornarem. O Governo da Metrópole, cedendo sempre, por uma ou por outra forma, às exigências dos colonos, também por sua parte entendia que dos índios podia a seu bel-prazer dispor e lançar mão quando e como lhe parecesse, não só para dá-los a serviço particular, mas para empregá-los nos serviços públicos: como se a necessidade de tais serviços particulares ou públicos, ainda com um fim pio, pudesse jamais autorizar tais violências à liberdade dos mesmos índios! como se a utilidade do fim legitimasse os meios! Inúmeras cartas Régias dão testemunho dessas distribuições de índios(249); e algumas até autorizaram a venda para certos fins, ainda em datas próximas às leis que pareciam sustentar agora de modo mais permanente a sua liberdade, como v. g. a Carta Régia de 30 de Maio de 1718 que autorizou o resgate de 200 índios para com o produto da venda dos mesmos auxiliar-se a construção de uma nova Igreja Catedral no Maranhão(250). Moradores, o próprio Governo (apesar dos seus escrúpulos), e até os Jesuítas, degenerados dos seus primeiros e gloriosos tempos, todos praticavam de modo, que os índios eram de fato, contra algumas disposições humanas das leis, destinados só ao trabalho da colônia, e que neles se pretendia apenas um viveiro de trabalhadores, de cujas forças, sangue e indústria tirassem o maior proveito possivel, ainda com perigo e triste realidade da sua progressiva diminuição e desaparição, de que já tanto se queixavam(251). A redução à Fé Católica, a civilização dos Indígenas não eram senão pretextos irrisórios de semelhante procedimento; o bem espiritual era posto, de fato, à margem, a alma era no que menos se pensava e se cuidava. A realidade, a triste verdade era — tirar do braço indígena o maior proveito material possível, reduzir os índios a instrumento de trabalho, ainda mesmo aqueles que (quase por escárnio) se mandavam reputar livres, pois que de livres só tinham o nome, estivessem aldeados ou em mão particular, ou até nos sertões, que lá mesmo os iam buscar para o serviço, quisessem ou não eles deixar as suas terras e bosques, as suas pobres choupanas, as suas canoas, a vida enfim que tanto amavam na liberdade(252). Semelhante procedimento, e a tradição das ofensas praticadas sucessivamente por quase dois séculos, transmitida a todas as tribos (tradição que ainda hoje se conserva com ódio aos Portugueses), provocaram os índios a guerras contra os colonos. Por fins do século XVII foi o Rio Grande do Norte invadido por uma chusma deles, que pôs em grave perigo a Capitania; acossados foram atacar a do Maranhão. Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte eram os índios cruel e atrozmente perseguidos, a pretexto de barbaridades por eles cometidas; perseguição autorizada pela C. R. de 20 de Abril de 1708(256). Na Bahia assaltavam eles os colonos(257). E com maior dano em Mato Grosso os canoeiros Paiaguás(258); fazendo os Paulistas varias excursões para puni-los, aprisionando grande número, mas sem que eles se dessem por vencidos(259). No Maranhão as leis últimas sobre os índios eram iludidas na sua execução pela má vontade dos colonos; de sorte que expediu-se o Dec. de 13 de Abril de 1728 permitindo aos moradores que, à sua custa, e competentemente autorizados, baixassem os gentios para suas fazendas, casas, lavouras e fábricas, pelo proveito que daí vinha ao Estado, visto saírem da barbaridade e virem para o grêmio da Igreja; ficando no arbítrio do Governador, Bispo, Ouvidor Geral, Vereador mais velho, e do missionário do respectivo distrito, resolverem sobre o tempo de serviço, salário a pagar, e recurso contra as vexações que se exercessem(260). Os Padres da Companhia opuseram-se a isto e à respectiva deliberação da Junta, suscitando eles a execução e observância sobretudo do Regimento das Missões. As Câmaras do Pará, e do Maranhão, em 1732, representaram ao Rei(261), por intermédio do seu procurador Paulo da Silva Nunes, pedindo que se tirasse aos missionários a jurisdição temporal das aldeias e dos índios, entregando-se a capitães Portugueses. Tão graves eram as acusações, que El-Rei mandou a sindicar o Desembargador Francisco Duarte Santos; o qual, depois de minuciosas indagações, deu o seu parecer em 15 de Julho de 1735(262) a favor da conservação desse poder temporal (aliás já explicado nas C. R. de 26 de Fevereiro de 1693 e 27 de Março de 1721, conquanto não observadas na prática), chegando nesse seu parecer a concluir que — a supressão de tal poder aos missionários seria a ruína das aldeias (263). Entretanto, já a Resol. de 13 de Abril de 1734 havia disposto que se não pudesse fazer guerra ofensiva, sem que o Governador remetesse primeiro o seu voto e o dos ministros da Junta das Missões em segredo ao Conselho Ultramarino, para que este desse a última decisão(264). Nova representação fizeram os povos daquele Estado subir à presença do Rei, em data de 24 de Junho de 1734(265), em a qual longamente expuserão, a seu modo, as queixas que tinham contra os Jesuítas, e pediam providências. Não podia, porém, tolerar-se que a Colônia, e sobretudo o Maranhão e Pará, estivessem em contínua agitação por causa da liberdade ou escravidão de índios, com grande detrimento da Religião, da catequese e civilização dos mesmos, da paz do Estado e tranqüilidade dos povos, com habitual ofensa e desobediência mesmo formal às leis. O erro estava em manter-se aberta a porta ao cativeiro dos índios, franco em alguns casos, e disfarçado nos outros pelo modo por que se praticavam os descimentos e serviços. El-Rei, em sua piedade e religião, quis tentar ainda uma vez o auxílio da intervenção do Chefe da Cristandade, para que, falando ao coração, à consciência, e inspirando aos colonos o amor do próximo, o temor de Deus, e sentimentos mais humanos e cristãos, conseguisse a observância das leis promulgadas, e de outras providências que pretendia tomar de acordo com o Sumo Pontífice. Nova era se vai abrir a favor dos Indígenas. CAPÍTULO VII. BULA DE BENEDITO XIV A FAVOR DOS ÍNDIOS. — NOVAS PROVIDÊNCIAS SOBRE OS MESMOS. — GUERRA DAS MISSÕES NO RIO DA PRATA. — OPOSIÇÃO NO AMAZONAS. — OS JESUÍTAS. — LEIS DE LIBERDADE ABSOLUTA DOS ÍNDIOS. — NOVA FORMA DO SEU GOVERNO TEMPORAL. — DIRETÓRIO PARA O MARANHÃO E PARÁ. — EXPULSÃO DOS JESUÍTAS. — DECADÊNCIA DAS ALDEIAS; DISPERSÃO DOS ÍNDIOS. — ABOLIÇÃO DO DIRETÓRIO. — NOVAS PROVIDÊNCIAS. A instâncias do Rei D. João V expediu o SS. Padre Benedito XIV, a sua memorável Bula de 20 de Dezembro de 1741, em a qual, suscitando as dos seus antecessores Paulo III e Urbano VIII, proibia terminantemente que qualquer pessoa secular ou eclesiástica, de qualquer categoria que fosse, possuísse como escravos os índios e os reduzisse a cativeiro por qualquer forma, sob as penas de excomunhão latae sententiae; bula dirigida ao Arcebispo e Bispos do Brasil, e outros domínios nas Índias Ocidentais e América(266). Foi ela publicada no Pará pelo Bispo D. Frei Miguel de Bulhões, com muitas recomendações do Rei para que se fizesse efetiva a sua execução(267). Mas, infelizmente, surgiu logo oposição dos povos, que o impediram, ficando assim suspensa de fato; suspensão que durou alguns anos por entender o Bispo que, achando-se já então enfermo o Rei da moléstia de que veio a falecer, não 100.000 almas, só e exclusivamente em proveito dos mesmos Padres e da sua Ordem(274). Do lado do Norte (rios Madeira e Negro) não mais felizes foram os Comissários, sendo por parte de Portugal o Governador Capitão-General Francisco Xavier de Mendonça Furtado; porque os Índios, aconselhados e insinuados pelos Padres, retiravam-se das aldeias, levando comsigo os mantimentos, canoas e remeiros, impedindo deste modo que se prosseguisse na demarcação(275). Achava-se, portanto, travada a luta diretamente entre a Coroa e os Jesuítas. Antes de desfechar-lhes o golpe decisivo e mortal, cumpria desarmá-los. A liberdade dos Índios, por eles a principio em boa fé protegida contra os colonos e ultimamente esquecida pelos proveitos temporais que dos seus serviços retirava a Companhia, foi a própria arma de que se serviu o sagaz Ministro para quebrar o encanto do poder e influência da Ordem. Por Lei de 6 de Junho de 1755 se suscitou a observância do Breve de Benedito XIV, de 20 de Dezembro de 1741, assim como de várias leis do Reino sobre a liberdade de pessoa, bens, e comércio dos Índios do Pará e Maranhão(276). O preâmbulo desta lei resume eloqüentemente tudo quanto se poderia dizer para justificar semelhante decisão, nos termos seguintes — .... mandando examinar pelas pessoas do meu Conselho e por outros Ministros doutos e zelosos do serviço de Deus e meu, e do bem comum dos meus vassalos, que me pareceu consultar, as verdadeiras causas com que desde o descobrimento do Grão-Pará e Maranhão até agora não só se não tem multiplicado e civilizado os índios daquele Estado, desterrando-se dele a barbaridade e gentilismo, e propagando-se a doutrina Cristã, e o número dos Fiéis alumiados da luz do Evangelho, mas antes pelo contrário todos quantos Índios so desceram dos sertões para as Aldeias, em lugar de propagarem e prosperarem nelas de sorte que as suas comodidades e fortunas servissem de estímulo aos que vivem dispersos pelos matos para virem buscar nas povoações pelo meio das felicidades temporais o maior fim da bemaventurança eterna, unindo-se ao grêmio da Santa Madre Igreja, se tem visto muito diversamente, que, havendo descido muitos milhões de Índios, se foram extinguindo(277), de modo que é muito pequeno o número das povoações e dos moradores delas, vivendo ainda esses poucos em tão grande miséria que, em vez de convidarem e animarem os outros Índios bárbaros a que os imitem, lhes servem de escândalo para se internarem nas suas habitações silvestres com lamentável prejuízo da salvação das suas almas, e grave dano do mesmo Estado, não tendo os habitantes dele quem os sirva e ajude para colherem na cultura das terras os muitos e preciosos frutos em que elas abundam: — foi assentado por todos as votos, que a causa que tem produzido tão perniciosos efeitos consistiu, e consiste ainda, em se não haverem sustentado eficazmente os ditos índios na liberdade que a seu favor foi declarada pelos Sumos Pontífices e pelos Senhores Reis, meus predecessores, observando-se no seu genuíno sentido as leis por eles promulgadas .... cavilando-se sempre pela cobiça dos interesses particulares.... Conseguintemente, dispôs-se: 1.° que os Índios são livres em tudo e por tudo, conforme a Lei do 1.° de Abril de 1680, que se mandou observar; 2.° que não houvessem mais administrações, nem administradores; sendo facultado aos índios, como livres que são, servir a quem bem quiserem, na forma da Lei de 10 de Novembro de 1647; 3.° que como tais ficariam sujeitos às leis por incorporados nos povos confiados ao governo de El-Rei, e hábeis, como os outros súditos, sem distinção nem exceção alguma, para todas as honras, privilégios, e liberdades; 4.° que a respeito dos então possuidos como escravos, o mesmo se entenderia, observado o § 9.° da Lei de 10 de Setembro de 1611; com exceção somente dos descendentes de pretas escravas, que continuariam no domínio dos senhores emquanto outra providência se não desse; 5.° que, porém, para obviar os abusos que esta exceção poderia criar, os índios se deveriam ter por livres só pela presunção do Direito Divino, natural e positivo a favor da liberdade; incumbindo a prova do contrário a quem requeresse contra a liberdade, ainda sendo réu; 6.° que estas questões seriam tratadas sumariamente, pela verdade sabida, em uma só instância, e decididas em Junta composta do Diocesano, Governador, Superiores das Missões de Jesus, Santo Antônio, Carmo, e Mercês, Ouvidor Geral, Juiz de Fora, e Procurador dos Índios; sendo necessária pluralidade de votos contra a liberdade, e bastando a seu favor o empate deles: devendo a apelação ser apenas no efeito devolutivo, e não suspensivo, para a Mesa de Consciência e Ordens, onde seriam tais causas decididas de preferência a quaisquer outras; 7.° que, convindo promover a lavoura e indústria, interessando nisto reciprocamente os moradores e os Índios, o Governador em Junta de Ministros letrados, e ouvindo o Governador e Ministros de S. Luís do Maranhão, com acordo das duas respectivas Câmaras, taxasse os salários ou jornais devidos aos Índios conforme o preço comum do Estado; os quais seriam pagos por férias no fim de cada semana, em dinheiro, pano, ferramenta, ou outros objetos, como melhor parecesse aos trabalhadores; autorizada a sua cobrança executivamente, conforme o Alv. de 12 de Novembro de 1647, e abolidas quaisquer outras taxas; 8." que aos Índios ficava restituído o livre uso dos seus bens, até agora impedido com manifesta violência, observando-se o §40 do Alv. do 1.° de Abril de 1680(278); e conseqüentemente se deveriam erigir em vilas as aldeias que tivessem o competente número de índios, e em lugares as mais pequenas; repartindo-se pelos mesmos as terras adjacentes às suas respectivas aldeias; sustentando-se os índios no domínio e posse das terras para si e seus herdeiros; e castigando-se com todo o rigor quem os perturbasse; 9.° que, sendo o principal fim dilatar-se a pregação do Evangelho e levaram os Jesuítas no Brasil a excessos, que se podem qualificar verdadeira e formal rebelião contra o Governo, já por palavras, já por obras(284). Ao mesmo tempo que o Rei, de acordo com o Sumo Pontifice e Prelados Diocesanos, tomava providências contra os Jesuítas quanto ao espiritual (C.R. de 15, 19, e 20 de Abril de 1759), igualmente as tomava quanto ao temporal, conducentes ao mesmo fim, mandando-os conservar reclusos por suspeitos e sequestrar-lhes os bens (C. R. de 19 de Janeiro de 1759), e tirando-lhes o direito de ensinar (C. R. de 28 de Junho de 1759). Até que afinal, e pelas razões que fizeram urgente a sua deliberação, não obstante penderem da Cúria Romana reclamações, foi expedida a enérgica Lei de 3 de Setembro do mesmo ano de 1759, pela qual foram os Jesuítas declarados proscritos, desnaturalizados, e expulsos do Reino e seus domínios(285). Publicada no Brasil, foi ela executada com tal aparato, como se se tivera de combater algum formidável inimigo. Decretou-se, além disso, e fez-se efetivo o seqüestro dos seus bens, incorporação ao Estado como vacantes, e venda, com exceção somente dos destinados ao culto Divino (Alvará de 25 de Fevereiro de 1761, Provis. de 26 de Fevereiro e 4 de Março de 1773). Alterada ficara profundamente, como vimos acima, a legislação sobre os Índios com as leis de 1755 já citadas. A estas, porém, havia precedido o Alvará de 4 de Abril do mesmo ano, em que, para se facilitar o casamento dos colonos com as índias em proveito reciproco de uns e outros, bem geral da colonização, e desenvolvimento do Estado, se declarou não só que não havia nisto infâmia alguma, senão que ao contrário seriam eles e os seus descendentes merecedores de mais particular proteção, dando-se-lhes a preferência para os cargos, por capazes de qualquer emprego, honra, ou dignidade, proibindo-se que fossem injuriados com a denominação de caboclos, ou outra semelhante(286), Em execução das mesmas leis (de 1755), expediu o Governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, para o estabelecimento da Vila de Borba-a-Nova no Rio Madeira, um Regimento datado de 6 de Janeiro de 1756 aprovado por C. R. de 7 de Julho de 1757(287); o qual se fez extensivo às demais Vilas, e serviu de exemplar ao outro mais desenvolvido, composto de 95 capítulos e datado de 3 de Maio de 1757, expedido pelo mesmo Governador para o Pará e Maranhão enquanto não fosse por S. M. ordenado o contrário, nestes mesmos termos aprovado por Alv. de 17 de Agosto de 1758(288). A este tempo já o Alv. de 8 de Maio de 1758 havia feito extensivas a todo o Brasil as leis de 1755 sobre a liberdade de sua pessoa, bens, e comércio, que em favor dos Índios se tinham expedido para o Estado do Norte, ficando assim em tudo e por tudo igualados nos mesmos favores e garantias(289); suscitando-se a observância das ditas leis por diversas resoluções, como v. g. em Goiás pela C. R. de 18 de Outubro de 1758(290). No Grão-Pará e Maranhão se executava o tão celebrado referido Regimento ou Diretório cujas principais determinações são as seguintes: 1.° que, atenta a lastimosa rusticidade e ignorância com que alé então haviam sido educados os índios, e enquanto não tivessem capacidade para se governarem, haveria um Diretor, nomeado pelo Governador; o qual se deveria regular pelo que no mesmo se dispunha (Cap. 1.°); 2.° que, competindo o Governo nas Vilas aos Juízes e outras autoridades, e nas aldeias independentes delas aos respectivos principais, o Diretor não teria em caso algum jurisdição coativa; devendo representar às ditas autoridades, e também ao Governador do Estado, para proverem de remédio; mas sempre com brandura e suavidade para que o horror do castigo não afugentasse os Índios das povoações (Cap. 2.°); 3.° que seria o principal cuidado dos Diretores a catequese e civilização dos mesmos, conforme as intenções e zelo dos Reis de Portugal (Cap, 3.°); 4.° que, quanto ao espiritual, ficava isto à vigilância do Prelado respectivo; devendo, porém, os Diretores prestar de sua parte todo o auxílio e favor, e ser os primeiros a darem o exemplo de respeito à Igreja (Cap.4°); 5.° que, quanto à civilização pelos meios temporais, cuidariam de fazer aprender a língua portuguesa, banido o perniciosíssimo abuso de conservarem os índios na ignorância dela; que se creariam escolas para um e outro sexo, onde se lhes ensinaria também a doutrina Cristã, sendo os mestres pagos pelos pais ou em dinheiro ou em gêneros (Caps. 5.° a 8.°); 6.° que, tanto em público como no particular, dessem os Diretores aos Índios a devida consideração conforme a sua posição, cargos, e cabedais, a fim de que isto lhes servisse de estimulo a bem procederem; que não fossem chamados negros, pela infâmia e vileza que isto lhes trazia por equipará-los aos da Costa d’África como destinados para escravos dos brancos, segundo se pensava; que os Índios tomassem sobrenomes, com preferência de famílias Portuguesas, para evitar a confusão que do contrário se seguia, e a vileza de o não terem; que cuidassem de aconselhar a conveniência de construírem casas à semelhança das dos Portugueses, para que não vivessem todos promiscuamente com ofensa da honestidade; que por conselhos procurassem banir os vícios e sobretudo o da embriaguez, a que os índios se entregavam com paixão, mas sempre com brandura para que eles se não exasperassem e fugissem; que cuidassem igualmente de conseguir que os índios deixassem de andar nus, persuadindo-os ao trabalho para se vestirem (Caps. 9 a 15); 7.° que, sendo um dos fins das leis promulgadas concorrerem os Índios para o bem do Estado, além do proveito próprio, por nenhum morador fosse lícito retê-los além do tempo, sob penas aos transgressores (Cap. 67); 19.ª que, em bem dos Índios, a importância integral dos salários seria paga de pronto logo ao receberem-nos os moradores; mas que, entregue uma parte ao Índio, as outras duas ficariam em depósito no cofre para lhe serem entregues no fim, perdendo-as ele, se fugisse antes de acabar o tempo do serviço, a favor do morador; perdendo, porém, este não só a importância integral, mas ainda o dobro, se houvesse dado causa à deserção (Caps. 68 a 70); 20.ª que, em todo o caso, falecendo o Índio no trabalho ou impossibilitando-se para ele, o morador seria obrigado a pagar-lhe ou aos seus herdeiros o salário em proporção do serviço (Cap. 70); 21.ª que estas disposições seriam extensivas aos Principais e outros Índios, que mandassem Índios ao sertão, depositando título ou crédito da importância do salário se não tivessem dinheiro (Cap. 71); 22.ª que, preferindo os Índios recebê-los em fazendas, os Diretores não consentissem que lh’as dessem por preços exorbitantes, sob pena de responderem pelo prejuízo (Cap. 72); 23.ª que, para se fiscalizar este importante assunto da distribuição dos Índios, os Diretores remeteriam em cada ano ao Governador uma relação circunstanciada (Cap. 73); 24.ª que os Diretores cuidassem na construção de casas de Câmara e cadeia; assim como aconselhassem os Índios em construir para si (Cap. 74); 25.ª que, sendo causa de se acharem abandonadas as povoações não só às violências dos habitantes que obrigaram os Índios a fugir para os matos, mas o abuso de os reterem no serviço, os Diretores mandassem uma lista de todos os que se achassem ausentes, a fim de que, conhecido o motivo, se aplicasse remédio a tão grave mal (Cap. 75); 26.ª que, convindo que as povoações se aumentem e sejam populosas, constando pelo menos de 150 moradores, se poderiam reduzir as aldeias a povoações reunindo-as como melhor parecesse, mas sem violência dos Índios, sobretudo quando de nações diferentes; tentando-se, outrossim, para o mesmo fim o descimento de Índios, a cargo dos Juízes e Principais das vilas e aldeias, ainda à custa de maior despesa da Real Fazenda por assim se dilatar a fé (Caps. 76 a 79); 27.ª que, convindo muito a bem da civilização dos Índios a comunicação e comércio com os brancos, e tendo mostrado a experiência que o contrário tem resultado da odiosa separação em que até então uns e outros se conservaram, seria permitido estabelecerem-se os de exemplar procedimento nas povoações dos Índios, e até auxiliados e considerados, distribuindo-se-lhes terras, sem prejuízo, porém, dos mesmos Índios, primários e naturais senhores delas; sujeitos a condições para que não abusassem dos Índios, não os vexassem, não lhes tirassem suas terras, não os indispusessem com os brancos, sob penas mesmo de serem expulsos das povoaçõcs e de perderem tudo quanto aí tivessem (Caps. 80 a 86); 28.ª que, para extinguir essa abominável separação de Índios e brancos, fomentassem os Diretores os casamentos de uns e outros, por não haver nisto infâmia alguma; castigando-se os que, depois de casados, desprezassem os maridos ou as mulheres só pela qualidade de Índios (Cap. 87 a 91); 29.ª que antes de dois anos de assistência nas povoações não fossem os novo-descidos do sertão obrigados a servir (Cap. 94); 30.ª que, sendo os Diretores apenas uns tutores dos Índios, tivessem muito em cuidado tratá-los sempre com prudência, suavidade e brandura, tão recomendada nas leis; e que, esquecidos da própria conveniência, se entregassem exclusivamente aos interesses dos Índios, de modo que estes buscassem afinal voluntariamente as povoações; pois que deste modo se conseguiriam os altos e santíssimos fins das leis, a saber: dilatação da Fé, extinção do gentilismo, propagação do Evangelho, civilização dos Indígenas, bem comum dos vassalos, aumento da agricultura, introdução do comércio, e o estabelecimento, opulência e total felicidade do Estado (Caps. 92 a 95). Posto em execução este Regimento ou Diretório, começaram desde logo os abusos contra os desgraçados Índios, que, livres em nome, se viam inteiramente sujeitos sobretudo aos Diretores; os quais, longe de protetores, se constituiram verdugos, já no trato que davam a esses infelizes metendo-os em troncos em cárceres privados, e castigando-os até com açoites, já no modo desabrido e de desprezo com que se portavam mesmo para com os Principais, já nos excessos que cometiam, arrogando-se atribuições que lhes não competiam e expressamente eram confiadas às autoridades, já praticando mil outras violências e infrações, chegando ao excesso de impedirem que os Párocos doutrinassem os Índios na língua destes ainda que ignorassem os mesmos Índios a portuguesa. Interessados os Diretores na 6.ª parte do produto das lavouras e comércio, e sendo certo o lucro da extração das drogas do sertão, distraíam os índios quase exclusivamente neste serviço, com prejuízo da lavoura e das povoações, aplicando todos a este trabalho, sem distinção, contra as leis e o referido Diretório. Quando na lavoura, obrigavam os Índios a trabalho excessivo dia e noite pela esperança de maior vantagem no seu quinhão da 6.ª parte. Tais deduções se faziam no produto da venda dos gêneros dos Índios, que estes quase nada recebiam; e isto mesmo quase sempre em cousas inúteis. Se levavam os gêneros à capital, deduziam-se, além do dízimo para a Real Fazenda, despesas, quinto para o cabo da canoa, 6.ª parte para os Diretores, mais 3% para o Tesoureiro, 2$000 de novos direitos, e o viático para a Igreja! A distribuição a particulares importava violências, como anteriormente, obrigados os Índios, à simples ordem do Governador, a abandonar tudo para servirem aos moradores; e em poder destes eram tratados pior que escravos, pois só cuidavam de tirar dos mesmos o maior serviço possível, chegando à inqualificável barbaridade de lhes deitarem pimenta nos olhos se adormeciam prostrados de fadiga. Se os Índios, assim cruelmente tratados, fugiam, eram perseguidos no sertão em seus mocambos; e se apreendidos, castigados severamente com trabalhos e calceta, sem direito a prêmio ou salário algum.
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