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QUE É UMA CONSTITUIÇÃO- Ferdinand lasale, Notas de estudo de Direito Constitucional

Ferdinand Lassale disorrendo sobre a constituição

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 24/09/2010

Bossa_nova
Bossa_nova 🇧🇷

4.6

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Baixe QUE É UMA CONSTITUIÇÃO- Ferdinand lasale e outras Notas de estudo em PDF para Direito Constitucional, somente na Docsity! QUE É UMA CONSTITUIÇÃO? Ferdinand Lassalle www.ebooksbrasil.org Que é Uma Constituição? Ferdinand Lassalle (1825-1864) Versão para eBook eBooksBrasil.com Fonte Digital: Que é uma Constituição? Edições e Publicações Brasil, São Paulo, 1933 Tradução: Walter Stönner Copyright © 2000-2006 Ferdinand Lassalle ÍNDICE Intróito Capítulo I Que é uma Constituição? Lei e Constituição Os fatores reais do poder A Monarquia A Aristocracia A grande burguesia Os banqueiros A pequena burguesia e a classe operária Os fatores do poder e as instituições jurídicas A folha de papel O sistema eleitoral das três classes A Câmara senhorial ou Senado O Rei e o Exército Poder organizado e poder inorgânico Capitulo II Algo de história constitucionalista Constituição feudal Absolutismo A revolução burguesa Capítulo III A arte e a sabedoria constitucionais O poder da Nação é invencível Conseqüências Conclusões práticas O Autor Ferdinand Lassalle foi economista, agitador e grande orador, ligando-se aos jovens hegelianos. Foi amigo de Marx e de Proudhon. Lassalle, contudo, não adotou o “socialismo científico” de Marx. Teve participação ativa na Revolução de 1848 em Düsseldorf, tendo sido preso. Partidário da unificação alemã e do sufrágio universal. Em 1863, formou o Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein [Associação Geral dos Trabalhadores Alemães], o primeiro partido trabalhista alemão, depois transformado no Partido Social Democrata. Defendia a colaboração com o governo para a implementação de medidas determinada Constituição, a da Prússia ou outra qualquer, para responder satisfatoriamente à pergunta por mim formulada: onde podemos encontrar o conceito de uma Constituição, seja ela qual for? Se fizesse esta indagação a um jurisconsulto, receberia mais ou menos esta resposta: “Constituição é um pacto juramentado entre o rei e o povo, estabelecendo os princípios alicerçais da legislação e do governo dentro de um país”. Ou generalizando, pois existe também a Constituição nos países de governo republicano: “A Constituição é a lei fundamental proclamada pelo país, na qual baseia-se a organização do Direito público dessa nação” Todas essas respostas jurídicas, porém, ou outras parecidas que se possam dar, distanciam-se muito de explicar cabalmente a pergunta que fiz. Estas, sejam as que forem, limitam-se a descrever exteriormente como se formam as Constituições e o que fazem, mas não explicam o que é uma Constituição. Dão-nos critérios, notas explicativas para conhecer juridicamente uma Constituição; porém não esclarecem onde está o conceito de toda Constituição, isto é: a essência constitucional. Não servem, pois, para orientar-nos sobre se uma determinada Constituição é, e porque, boa ou má, factível ou irrealizável, duradoura ou insustentável, pois para isso seria necessário que explicassem o conceito da Constituição. Primeiramente torna-se necessário sabermos qual é a verdadeira essência duma Constituição, e, depois, poderemos, saber se a Carta Constitucional determinada e concreta que estamos examinando se acomoda ou não às exigências substanciais. Para isso, porém, de nada servirão as definições jurídicas, que podem ser aplicadas a todos os papéis assinados por uma nação ou por esta e o seu rei, proclamando- as Constituições, seja qual for o seu conteúdo, sem penetrarmos na sua essência. O conceito da Constituição — como demonstrarei logo — é a fonte primitiva da qual nascem a arte e a sabedoria constitucionais. Repito, pois, minha pergunta: Que é uma Constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? Como o ignoramos, pois é agora que vamos desvendá-lo, aplicaremos um método que é de utilidade pôr em prática sempre que quisermos esclarecer o conceito duma coisa. Este método é muito simples. Baseia-se em compararmos a coisa cujo conceito não sabemos com outra semelhante a ela, esforçando-nos para penetrar clara e nitidamente nas diferenças que afastam uma da outra. LEI E CONSTITUIÇÃO Aplicando esse método, pergunto: Qual a diferença entre uma Constituição e uma Lei? Ambas, a lei e a Constituição, têm, evidentemente, uma essência genérica comum. Uma Constituição, para reger, necessita a aprovação legislativa, isto é, tem que ser também lei. Todavia não é uma lei como as outras, uma simples lei: é mais do que isso. Entre os dois conceitos não existe somente afinidade; há também 00 1F 00 1F 00 1F 00 1Fdesas se me lhan ça. Esta, que faz que a Constituição seja mais do que simples lei, poderia demonstrá-lo com centenas de exemplos. O país, por exemplo, não protesta pelo fato de constantemente serem aprovadas novas leis; pelo contrário, todos nós sabemos que se torna necessário que todos os anos seja criado maior ou menor número de leis. Não pode, porém, decretar-se uma única lei que seja, nova, sem alterar a situação legislativa vigente no momento da sua aprovação, pois se a nova lei não motivasse modificações no aparelhamento legal vigente, seria absolutamente supérflua e não teria motivos para ser a mesma aprovada. Por isso, não protestamos quando as leis são modificadas, pois notamos, e estamos cientes disso, que é esta a missão normal e natural dos governos... Mas, quando mexem na Constituição, protestamos e gritamos: Deixai a Constituição! Qual é a origem dessa diferença? Esta diferença é tão inegável, que existem, até, Constituições que dispõem taxativamente que a Constituição não poderá ser alterada de modo algum; noutras, consta que para reformá-la não é o bastante que uma simples maioria assim o deseje, mas que será necessário obter dois terços dos votos do Parlamento; existem ainda algumas onde se declara que não é da competência dos Corpos Legislativos sua modificação, nem mesmo unidos ao Poder Executivo, senão que para reformá-la deverá ser nomeada uma nova Assembléia Legislativa, ad hoc criada expressa e exclusivamente para esse fim para que a mesma se manifeste acerca da oportunidade ou conveniência de ser a Constituição modificada. Todos esses fatos demonstram que, no espírito unânime dos povos, uma Constituição deve ser qualquer coisa de mais sagrado, de mais firme e de mais imóvel que uma lei comum. Faço outra vez a pergunta anterior: qual a diferença entre uma Constituição e uma simples lei? A esta pergunta responderão: Constituição não é uma lei como as outras, é uma lei fundamental da nação. É possível, meus senhores, que nesta resposta se encontre, embora de um modo obscuro, a verdade que estamos investigando. Mas, a mesma, assim formulada, de forma bastante confusa, não pode deixar-nos satisfeitos. Imediatamente surge, substituindo a outra, esta interrogação: Como distinguir uma lei da lei fundamental? Como podeis ver, continuamos onde começamos. Somente ganhamos um vocábulo novo, ou melhor, um termo novo, “lei fundamental”, que de nada nos servirá enquanto não soubermos explicar qual é, repito, a diferença entre lei fundamental e outra lei qualquer. Intentemos, pois, aprofundar um pouco mais no assunto, indagando que idéias ou que noções são as que vão associadas instalada em Berlim. Os originais das leis guardam-se nos arquivos do Estado, e em outros arquivos, bibliotecas e depósitos, guardam-se as coleções legislativas impressas. Vamos supor, por um momento, que um grande incêndio irrompeu e que nele queimaram-se todos os arquivos do Estado, todas as bibliotecas públicas, que o sinistro destruisse também a tipografia concessionária onde se imprimia a Coleção legislativa e que ainda, por uma triste coincidência — estamos no terreno das suposições — igual desastre se desse em todas as cidades do país, desaparecendo inclusive todas as bibliotecas particulares onde existissem coleções, de tal maneira que em toda a Prússia não fosse possível achar um único exemplar das leis do país. Suponhamos isto. Suponhamos mais que o país, por causa deste sinistro, ficasse sem nenhuma das leis que o governavam e que por força das circunstâncias fosse necessário decretar novas leis. Julgai que neste caso o legislador, completamente livre, poderia fazer leis a capricho de acordo com o seu modo de pensar? A MONARQUIA Suponhamos que os senhores respondam: Visto que as leis desapareceram e que vamos redigir outras completamente novas, desde os alicerces até o telhado, nelas não reconheceremos à monarquia as prerrogativas que até agora gozou ao amparo das leis destruídas; mais ainda, não respeitaremos prerrogativas nem atribuições de espécie alguma; enfim: não queremos a monarquia. O monarca responderia assim: Podem estar destruídas as leis, porém, a realidade é que o Exército subsiste e me obedece, acatando minhas ordens; a realidade é que os comandantes dos arsenais e quartéis põem na rua os canhões e as baionetas quando eu o ordenar, e, apoiado neste poder real, efetivo, das baionetas e dos canhões, não tolero que venham me impor posições e prerrogativas em desacordo comigo. Como podeis ver, um rei a quem obedecem o Exército e os canhões... é uma parte da Constituição. A ARISTOCRACIA Suponhamos agora que os senhores dissessem: Somos tantos milhões de prussianos, entre os quais somente existe um punhado cada vez menor de grandes proprietários de terras pertencentes à nobreza. Não sabemos porque esse punhado, cada vez menor, de grandes proprietários agrícolas, hão de possuir tanta influência nos destinos do país como os restantes milhões de habitantes reunidos, formando somente eles uma Câmara alta que fiscaliza os acordos da Câmara dos Deputados, eleita esta pelos votos de todos os cidadãos, recusando sistematicamente todos os acordos que julgarem prejudiciais aos seus interesses. Imaginemos que os meus ouvintes dissessem: Destruídas as leis do passado, somos todos “iguais” e não precisamos absolutamente “para nada” da Câmara senhorial. Reconheço que não seria fácil à nobreza atirar contra o povo que assim pensasse seus exércitos de camponeses. Possivelmente teriam mais que fazer para livrar-se deles. Mas, a gravidade do caso é que os grandes fazendeiros da nobreza tiveram sempre grande influência na Corte e esta influência garante-lhes a saída do Exército e dos canhões para seus fins, como se este aparelhamento da força estivesse “diretamente” ao seu dispor. Vejam, pois, como uma nobreza influente e bem vista pelo rei e sua corte, é também uma parte da Constituição. A GRANDE BURGUESIA Ocorre-me agora assentar o suposto ao inverso, isto é, a suposição de que o rei e a nobreza aliados entre si para restabelecer a organização medieval, mas não ao pequeno proprietário, pretendessem impor o sistema que regeu na Idade Média; quer dizer, aplicada a toda a organização social, sem excluir a grande indústria, as fábricas e a produção mecanizada. É sabido que o “grande” capital não poderia, de forma alguma, progredir e mesmo viver sob o sistema medieval, impedindo-se seu desenvolvimento sob aquele regime. Entre outros motivos, porque neste regime se levantaria uma série de barreiras legais entre os diversos ramos de produção, por muita afinidade que os mesmos tivessem e nenhum industrial poderia reunir duas ou mais indústrias em suas mãos. Neste caso, por exemplo, entre as corporações dos fabricantes de pregos e os ferreiros existiriam constantes processos para deslindar as suas respectivas jurisdições; a estamparia não poderia empregar em sua fábrica somente a um tintureiro, etc. Ademais, sob o sistema gremial daquele tempo, estabelecer-se-ia por lei a quantidade estrita de produção de cada industrial e cada indústria somente poderia ocupar um determinado número de operários por igual. Isto basta para compreender que a grande produção, a indústria mecanizada, não poderia progredir com uma Constituição do tipo gremial. A grande indústria exige, sobretudo — e necessita como o ar que respiramos — ampla liberdade da fusão dos mais diferentes ramos do trabalho nas mãos dum mesmo capitalista, necessitando ao mesmo tempo da produção em “massa” e a livre concorrência, isto é, a possibilidade de empregar quantos operários necessitar, sem restrições. da consciência social do país. Todos os funcionários, burocratas e conselheiros do Estado ergueriam as mãos para o céu, e até os sisudos senadores teriam que discordar de tamanho absurdo. É que, dentro de certos limites, também a consciência coletiva e a cultura geral da Nação são partículas, e não pequenas, da Constituição. A PEQUENA BURGUESIA E A CLASSE OPERÁRIA Imaginemo-nos agora que o Governo, querendo proteger e satisfazer os privilégios da nobreza, dos banqueiros, dos grandes industriais e dos grandes capitalistas, tentasse privar das suas liberdades políticas a pequena burguesia e a classe operária. Poderia fazê-lo? Infelizmente, sim; poderia, mesmo que fosse transitoriamente; os fatos nos demonstram que poderia. Mas, e se o Governo pretendesse tirar à pequena burguesia e ao operariado, não somente as suas liberdades políticas, senão sua liberdade pessoal isto é, se pretendesse transformar pessoalmente ao trabalhador em escravo ou servo, tornando à situação em que se viveu durante os tempos da Idade Média? Subsistiria essa pretensão? Não, embora estivessem aliados ao rei a nobreza e toda a grande burguesia. Seria tempo perdido. O povo protestaria, gritando: antes morrer do que sermos escravos! A multidão sairia à rua sem necessidade que os seus patrões fechassem as fábricas, a pequena burguesia juntar-se- ia solidariamente com o povo e a resistência desse bloco seria invencível, pois nos casos extremos e desesperados também o povo, nós todos, somos uma parte integrante da Constituição. OS FATORES DO PODER E AS INSTITUIÇÕES JURÍDICAS __________________ A FOLHA DE PAPEL Essa é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem um país. Mas, que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição; com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos conceitos guardam entre si. Juntam-se esses fatores reais do poder, escrevemo-los em uma folha de papel, dá-se-lhes expressão escrita e a partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito, nas instituições jurídicas e quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por conseguinte é punido. Não desconheceis também o processo que se segue para transformar esses escritos em fatores reais do poder, transformando-os desta maneira em fatores jurídicos. Está claro que não aparece neles a declaração que o senhor Borsig, o industrial, a nobreza, o povo, são um fragmento da Constituição, ou que o banqueiro X é outro pedaço da mesma; não, isto se define de outra maneira mais limpa, mais diplomática. O SISTEMA ELEITORAL DAS TRÊS CLASSES Por exemplo, se o que se quer dizer é que determinados industriais e grandes capitalistas terão tais e quais prerrogativas no Governo e que o povo — operários, agricultores e pequenos burgueses — também têm certos direitos, não se fará constar com essa clareza e sim de modo diferente. O que se fará será, simplesmente decretar uma lei, como a célebre lei eleitoral das “três classes” que vigorou na Prússia desde o ano 1849,(2) na qual será dividida a nação em três grupos eleitorais, de acordo com os impostos por eles pagos e que naturalmente estarão de acordo também com as posses de cada eleitor. Segundo a estatística oficial organizada naquele ano (1849) pelo Governo, existiam na Prússia 3.255.703 eleitores que ficavam assim divididos: - ELEITORES Primeiro grupo 153.808 Segundo grupo 409.945 Terceiro grupo 2.691.950 Por essa estatística eleitoral vemos que na Prússia existiam 153.808 pessoas riquíssimas que possuíam tanto poder político como os 2.691.950 cidadãos modestos, operários e camponeses juntos, e que esses 153 808 indivíduos de máximos cabedais, somados aos 409.945 eleitores de posses médias que integravam a segunda classe, possuíam tanto poder político como o resto da nação; ainda mais, que os 153.808 grandes capitalistas e a metade somente dos 409.945 do segundo grupo dispunham de maior força política que a metade restante da segunda categoria somada aos 2.691.950 eleitores desprovidos de riqueza. Observai como por esse meio cômodo se chega exatamente ao mesmo resultado que se na Constituição constasse: o opulento terá o mesmo poder político que 17 cidadãos comuns, ou melhor, nos destinos políticos do país o prestar contas do que faz à pessoa do rei, sem manter relações com o resto do país. Conseguido isto, reconhecida ao rei a atribuição de preencher todos os postos vagos do Exército e colocado este sob a sujeição pessoal do rei, este conseguiu por se reunir um poder muito superior ao que goza a Nação inteira, supremacia esta que não ficaria diminuída embora o poder efetivo da nação fosse dez, vinte ou cinqüenta vezes maior do que o do Exército. A razão aparente deste contra-senso é simples. PODER ORGANIZADO E PODER INORGÂNICO O instrumento do poder político do rei, o Exército, está organizado, pode reunir-se a qualquer hora do dia ou da noite, funciona com uma disciplina única e pode ser utilizado em qualquer momento que dele se necessite. Entretanto, o poder que se apóia na Nação, meus senhores, embora seja, como de fato o é realmente, infinitamente maior, não está organizado; a vontade do povo, e sobretudo seu grau de acometimento, não é sempre fácil pulsá-la mesmo por aqueles que dele fazem parte. Perante a iminência do início de uma ação, nenhum deles é capaz de contar a soma dos que irão tentar defendê-la. Ademais, a nação carece desses instrumentos do poder organizado, desses fundamentos tão importantes de uma Constituição como acima demonstramos, isto é, dos canhões. É verdade que os canhões adquirem-se com o dinheiro fornecido pelo povo; certo também que se constroem e se aperfeiçoam graças às ciências que se desenvolvem no seio da sociedade civil, à química, à técnica, etc. Somente o fato de sua existência demonstra como é grande o poder da sociedade civil, até onde chegaram os progressos das ciências, das artes técnicas, dos métodos de fabricação e do trabalho humano... Mas, aqui calha a frase de Virgílio: Sie vos non vobis! Tu, povo, fabrica-os e paga-os, mas não para ti! Como os canhões são fabricados sempre para o poder organizado e somente para ele, a nação sabe que essas máquinas de destruição e de morte, testemunhas latentes de todo o seu poder, vomitarão a metralha sobre ela, infalivelmente, logo que se revoltar. Estas razões explicam porque um poder menos forte, porém organizado, pode sustentar-se anos a fio, sufocando o poder, muito mais forte, porém desorganizado, do país, até que a população um dia, cansada de ver os assuntos nacionais tão mal administrados e pior regidos e que tudo é feito contra sua vontade e contra os interesses gerais da nação, se levanta contra o poder organizado, opondo-lhe sua formidável supremacia, embora desorganizada. Tenho demonstrado a relação que guardam entre si as duas Constituições de um país: essa Constituição real e efetiva, integralizada pelos fatores reais e efetivos que regem a sociedade, e essa outra Constituição escrita, à qual, para distingui-la da primeira, vamos denominar de folha de papel (5). CAPÍTULO II _____________ ALGO DE HISTÓRIA CONSTITUCIONALISTA Uma Constituição real e efetiva a possuem e hão de possuí-la sempre todos os países, pois é um erro julgarmos que a Constituição é uma prerrogativa dos tempos modernos. Não é certo isso. Da mesma forma, e pela mesma lei da necessidade que todo corpo tem uma constituição própria, boa ou má, estruturada de uma ou de outra forma, todo país tem, necessariamente, uma Constituição real e efetiva, pois não é possível imaginar uma nação onde não existam os fatores reais do poder, quaisquer que eles sejam. Quando muito tempo antes de irromper a grande Revolução Francesa, sob a monarquia legítima e absoluta de Luiz XVI, o Poder imperante aboliu na França, por decreto de 3 de fevereiro de 1776, as prestações pessoais para a construção de vias públicas onde os agricultores eram obrigados a trabalhar gratuitamente na abertura e construção de rodovias e caminhos, determinando a criação, para atender às despesas de construção, de um imposto pago inclusive pela nobreza, o Parlamento francês protestou, opondo-se a essa medida: “Le peuple de France est taillable et corvéable á volonté, c’est une partie de la constitution que le roit ne peut changer”(6). Vejam como mesmo naquele tempo já falavam de uma Constituição e lhe reconheciam tal virtude, que nem o próprio rei podia mexer nela; tal como agora. Aquilo que a nobreza francesa chamava de constituição, ou seja a norma pela qual o povo — os deserdados da fortuna — era obrigado a suportar o peso de todos os impostos e prestações que quisessem lhe impor, não estava, é certo, escrito em nenhum papel ou documento especial, documento este onde em resumo constassem os direitos do país e os do Governo; era pois a expressão simples e clara dos fatores reais do poder que vigoravam na França medieval. É que na Idade Média o povo era realmente tão impotente que podiam impor-lhe os maiores sacrifícios e tributos à vontade do legislador. A realidade era esta: o povo estava sempre por baixo e devia continuar assim. Estas tradições de fato assentavam-se nos chamados precedentes, que ainda hoje na Inglaterra, acompanhando o maior parte das terras estão sob o domínio da aristocracia e que por este motivo os que as cultivam encontram emprego nesses serviços: uns como feudatários, outros como servos, outros, enfim, como colonos do senhor feudal; mas todos esses feudatários, verdadeiros vassalos, possuem um ponto de coincidência: são todos eles submetidos ao poder da nobreza que os obriga a formar suas hostes e a tomar as armas para fazerem a guerra aos seus visinhos, para resolver seus litígios ou suas ambições. Ademais, com as sobras dos produtos agrícolas que tira de suas terras, o senhor aumenta as suas hostes, contratando e trazendo para seus castelos chefes de armas e soldados, escudeiros e criados. Por sua vez, o príncipe não possui para afrontar esse poder da nobreza outra força efetiva, no fundo, que a própria dos que compõem a nobreza, que obedecem e atendem suas ordens guerreiras, pois a ajuda que lhe podem prestar as vilas, pouco povoadas e pouco numerosas, é insignificante. Qual seria, pois, a Constituição de um Estado desses? Não é difícil responder, pois a resposta provém necessariamente desse número de fatores reais do poder que acabamos de examinar. A Constituição desse país não pode ser outra coisa que uma Constituição feudal, na qual a nobreza ocupa um lugar de destaque. O príncipe não poderá criar sem seu consentimento novos impostos e somente ocupará entre eles a posição de primus inter pares; isto é, o primeiro posto entre seus iguais hierárquicos. Esta era, meus senhores, a Constituição prussiana e a da maior parte dos Estados na Idade Média. ABSOLUTISMO Continuando, vamos supor o seguinte: A população cresce e multiplica-se constantemente, a indústria e o comércio progridem e seu progresso facilita os recursos necessários para fomentar um novo incremento, transformando as vilas em cidades. Nasce ao mesmo tempo a pequena burguesia e os grêmios das cidades começam a desenvolver-se também, circulando o dinheiro e formando os capitais e a riqueza particular. Que resultaria disso? Que este incremento da população urbana que não depende da nobreza, que contrariamente tem interesses opostos a esta, contribuirá, no começo, beneficiando ao príncipe, reforçando as hostes armadas que o acompanham e aumentando os seus recursos obtidos com os subsídios dos burgueses e dos grêmios e que as contínuas lutas entre os nobres acarreta aos seus interesses grandes prejuízos, almejando, em benefício de seu comércio e de suas incipientes indústrias, a ordem e a tranqüilidade pública e ao mesmo tempo a organização de uma justiça ordeira dentro do país, auxiliando ao príncipe, para consegui-lo com homens e com dinheiro. Por esses meios poderá o príncipe dispor de bons soldados e de um exército muito mais eficiente para opor aos nobres. Nesse pé, em seu interesse, o príncipe irá diminuindo as prerrogativas e poderes da nobreza; assaltará e arrasará os castelos dos nobres que resistam a obedecê-lo ou que violem as leis do país, e quando finalmente, com o tempo, a indústria tiver desenvolvido bastante a riqueza pecuária e a população tiver crescido de forma que permita ao príncipe possuir um exército permanente, este príncipe enviará seus batalhões contra a nobreza como fez Frederico Guilherme I em 1740 sob o lema de: “Je stabilirai la souverainité comme un rocher de bronce”(7); obrigará a nobreza ao pagamento de impostos e acabará com a prerrogativa de receber, esta, qualquer imposto. Patenteia-se, mais uma vez, que com a transformação dos fatores reais do poder transforma-se também a Constituição vigente do país: sobre os escombros da sociedade feudal, surge a monarquia absoluta. Mas, o príncipe não acredita na necessidade de pôr por escrito a nova Constituição; a monarquia é uma instituição demasiado prática para proceder assim. O príncipe tem em suas mãos o instrumento real e efetivo do poder, tem o exército permanente, que forma a Constituição efetiva desta sociedade, e ele e os que o rodeiam, dão expressão a essa idéia, assinalando ao país a denominação de “Estado militar”. A nobreza que reconhece que não mais pode competir com o príncipe, renuncia a possuir um exército para defendê- la. Esquece rapidamente seus antagonismos com o príncipe, abandona seus castelos para concentrar-se na residência real, recebendo em troca disso uma pensão e contribui, com sua presença, a prestigiar a monarquia. A REVOLUÇÃO BURGUESA Entretanto, a indústria e o comércio desenvolvem-se progressivamente e ao mesmo tempo, acompanhando esse surto de prosperidade, cresce a população e melhora o gênero de vida da mesma. Há de parecer que esse progresso seja proveitoso ao príncipe porque cresce também seu exército e o seu poder; mas, o desenvolvimento da sociedade burguesa chega a alcançar proporções imensas, tão gigantescas, que o príncipe não pode, nem auxiliado pelos seus exércitos, acompanhar na mesma proporção o aumento formidável do poder da burguesia, e assim vemos para corroborá-lo que em 1657 a cidade de Berlim tinha uma população de 20.000 habitantes e o exército prussiano era de 30.000 homens; em 1819 a vencendo sempre, a não ser nos casos isolados que o sentimento nacional se aglutina, e num esforço supremo vence ao poder organizado do exército. Mas isto somente acontece em momentos históricos de grande emoção. Para evitar isso, depois da vitória de 1848, para que não fosse estéril o esforço da nação teria sido necessário que, aproveitando aquele triunfo, tivessem transformado o exército tão radicalmente, que não voltasse a ser o instrumento de força ao serviço do rei contra a nação. Não se fez. Mas isto se explica; porque geralmente os reis têm ao seu serviço melhores servidores do que o povo. Os daquele são práticos e os do povo quase sempre são retóricos; aqueles possuem o instinto de agir no momento oportuno, estes fazem discursos nas horas em que os outros dão as ordens para que os canhões sejam postos na rua contra o povo. CONSEQÜÊNCIAS Para chegarmos ao verdadeiro conceito do que é uma Constituição temos agido com grande cautela, lentamente. É possível que alguns dos meus ouvintes, muito impacientes, tenham achado o caminho um pouco longo para chegar ao fim almejado. De posse desse resultado, as coisas desenvolveram-se depressa e, como agora já podemos encarar o problema com mais clareza, poderemos estudar diversos fatos que têm a sua origem nos diferentes pontos de vista que temos estudado. PRIMEIRA CONSEQÜÊNCIA. Tivemos ocasião de ver que não foram adotadas as medidas que se impunham para substituir os fatores reais do poder dentro do país para transformar o Exército, de um Exército do rei num instrumento da nação. Certo que foi feita uma proposta encaminhada para consegui-lo, que representava o primeiro passo para esse fim e que era a sugestão apresentada por Stein na qual constavam medidas que teriam obrigado a todos os oficiais reacionários a resignar seus postos solicitando a sua aposentadoria. Aprovada essa proposta pela Assembléia Nacional de Berlim, toda a burguesia e a maior parte da população protestaram gritando: A Assembléia nacional deve preocupar- se da nova Constituição e não perder seu tempo atacando ao Governo e provocando interpelações sobre assuntos que competem ao poder executivo! Ocupai-vos da Constituição e somente da Constituição! — gritavam todos. Como podem ver os meus ouvintes, aquela burguesia e a metade da população do país não tinham a mais remota idéia do que real e efetivamente era uma Constituição. Para eles fazer uma Constituição escrita era o de menos; não havia pressa; uma Constituição escrita pode ser feita num caso de urgência, em vinte e quatro horas; mas, fazendo-a desta maneira, nada se consegue, se for prematura. Afastar os fatores reais e efetivos do poder dentro do país, intrometer-se no Poder executivo, imiscuir-se nele tanto e de tal forma, socavá-lo e transformá-lo de tal maneira que ficasse impossibilitado de aparecer como soberano perante a nação. É isto o que quiseram evitar, era o que importava e urgia afim de que mais tarde a Constituição escrita não fosse mais alguma coisa do que um pedaço de papel. E como não se fez ao seu devido tempo, à Assembléia nacional foi-lhe impossivel organizar tranqüilamente a sua Constituição por escrito; vendo então, embora tarde, que o Poder executivo ao qual tanto respeitara, em vez de pagar com a mesma moeda, deu-lhe um empurrão, valendo-se daquelas mesmas forças que, com delicadeza, a Assembléia conservara. SEGUNDA CONSEQÜÊNCIA. Suponhamos que a Assembléia nacional não tivesse sido dissolvida, e que esta tivesse chegado ao seu fim sem contratempos; isto é, conseguir o estudo e votação de uma Constituição para o país. Se isto tivesse acontecido, que modificações teria havido na marcha das coisas? Possivelmente, nenhuma; mais categórico: absolutamente nada e a prova está nos fatos. É certo que a Assembléia nacional foi dissolvida, mas o próprio rei, recolhendo a papelada póstuma da Assembléia nacional, proclamou em 5 de dezembro de 1848 uma Constituição que na maior parte de seus pontos correspondia exatamente àquela Constituição que da própria Assembléia Constituinte podíamos esperar. Esta Constituição foi o próprio rei quem a proclamou; não foi obrigado a aceitá-la; não lhe foi imposta; decretou-a ele voluntariamente, desde o seu monumento de vencedor. À primeira vista parece que esta Constituição, por ter nascido assim, teria de ser mais viável e vigorosa. Mas, infelizmente não foi assim. Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula produzindo maçãs e não figos. Igual acontece com as Constituições. De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder. Com aquela folha de papel datada a 5 de dezembro de 1848, o rei, espontaneamente, concordava com uma porção de concessões, mas todas elas iam de encontro à Constituição Se os que me ouviram não se limitaram a seguir e meditar cuidadosamente as minhas palavras, senão que, levando adiante as idéias que as animam, encontrar-se-ão de posse de todas as normas da arte e da sabedoria constitucionais. Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder, a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país regem, e as Constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar. Nesta conferência quis demonstrar de um modo especial o valor que representa o Exército como fator decisivo e importantíssimo do poder organizado; mas também existem outros valores como sejam as organizações dos funcionários públicos, etc., que podem ser considerados também como forças orgânicas do poder de uma sociedade. Se alguma vez os meus ouvintes ou leitores tiverem que dar seu voto para oferecer ao país uma Constituição, estou certo que saberão como devem ser feitas estas coisas e que não limitarão a sua intervenção redigindo e assinando uma folha de papel, deixando incólumes as forças reais que mandam no país. E não esqueçam, meus amigos, os governos têm servidores práticos, não retóricos, grandes servidores como eu os desejaria para o povo. FIM Notas (1) — Grandes industriais da Prússia. (2) — Vigorou até a revolução de 1918. (3) — Artigo 47 da Constituição Prussiana de 1848 (4) — Artigo 198 da mesma. (5) — Alusão à célebre frase de Frederico Guilherme IV que disse: “Julgo-me obrigado a fazer agora, solenemente, a declaração de que nem no presente nem para o futuro permitirei que entre Deus do céu e o meu país se interponha uma folha de papel escrita como se fosse uma segunda Providência”... (6) — O povo da França — isto é, os deserdados — pode estar sujeito a impostos e prestações sem limite, e é esta uma parte da Constituição que nem o rei pode modificar. (7) — Afirmarei a soberania como um rochedo de bronze. Versão para eBook eBooksBrasil.com __________________ Novembro 2000 Proibido todo e qualquer uso comercial. Se você pagou por esse livro VOCÊ FOI ROUBADO! Você tem este e muitos outros títulos GRÁTIS direto na fonte: eBooksBrasil.org Edições em pdf e eBookLibris eBooksBrasil.org __________________ Abril 2006 eBookLibris © 2006 eBooksBrasil.org
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