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Guias e Dicas
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O que é Etnomatemática?, Manuais, Projetos, Pesquisas de Engenharia Mecânica

Artigo - Artigo

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 06/10/2010

cassiano-santos-9
cassiano-santos-9 🇧🇷

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Baixe O que é Etnomatemática? e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Engenharia Mecânica, somente na Docsity! 1 § 1. O que é Etnomatemática A Construção do conceito Etnomatemática Introdução Desde o fim do século XIX os etnógrafos já utilizavam-se do termo Etnociência (Sturtevant - 1964) e conceitos com ele relacionados como Etnolinguística, Etnobotânica, Etnozoologia, Etnoastronomia, etc., com concepções bem diferentes da que hoje utilizamos para a Etnomatemática. Vamos tratar da Etnomatemática seguindo sua história, pois assim acredito possa chegar mais perto do que entendo por este termo tão polêmico. Em primeiro lugar o prefixo Etno se refere a Etnia, isto é, a um grupo de pessoas de mesma cultura, língua própria, ritos próprios, etc., ou seja características culturais bem delimitadas para que possamos caracterizá-los como um grupo diferenciado. No Brasil, por exemplo, temos uma quantidade muito grande de grupos étnicos, se pensarmos somente os índios, hoje tem-se como certo a existência de 153 tribos diferentes, 153 culturas com línguas próprias, ou seja 153 etnias indígenas conhecidas. Cada etnia constrói a sua Etnociência no seu processo de leitura do mundo. É a construção do conhecimento para a explicação do fenômeno, e, logicamente, cada uma dessas leituras é feita de forma bem diferente. Atualmente, o termo Etnociência propõe a redescoberta da ciência de outras etnias, que não a nossa cuja ciência advem da cultura ocidental. Etno, então, refere-se ao sistema de conhecimentos e cognições típicas de uma dada cultura. O termo Etnociência mesmo passou por vários significados desde o seu aparecimento. Como minha proposta vamos tentar entender todos estes significados para então tentar conceituar Etnomatemática. Etnociência No dicionário etnológico de Panoff e Perrina (Panoff-Perrina - ) aparece duas definições de Etnociência: a primeira diz que “ é o ramo de etnologia, que se dedica a comparar os conceitos positivos das sociedades exóticas com os que a ciência ocidental formalizou no quadro das disciplinas 2 constituíldas”. Chamamos a atenção para os termos “ positivo” e “ exótico”, que caracterizam uma posição eurocentrista e, mesmo, preconceituosa, típicas do início do século passado, imbuida da corrente positivista. Quando Levis-Strauss ( Levis-Strauss - ) se refere a Etnozoologia escreveu que: “ é o conhecimento positivo que os nativos ( da região estudada) possuem a respeito de animais, a técnica e rituais usados com os quais eles trabalham e as crenças que têm em relação a elas.” Isto nos coloca de imediato frente as seguintes perguntas: O que são conhecimentos positivos? O que seria um conhecimento negativo? O que seria uma sociedade exótica? Existe uma ciência ocidental diferente de outras ciências, digamos oriental, astral, etc.? A segunda definição de Etnociência dada por Panoff e Perrina como sendo “ toda e qualquer aplicação das disciplinas científicas ocidentais aos fenômenos naturais que são apreendidos de outra forma pelo pensamento indígena”. Todas estas concepções advêm dos trabalhos de Malinovisk e Boas, que foram os pioneiros na etnografia, em um contexto de uma época colonialista. Mas continua ainda sendo um conceito aceito por muitos pesquisadores, como por exemplo o casal Acher quando se refere a Etnomatemática explicita como sendo a matemática de povos não letrados, “reconhecendo, como pensamento matemático, noções que de alguma maneira correspondem ao que temos em nossa cultura”. Mas o que são povos letrados? Para mim não existe povos não letrados, pois o conceito de escrita que advogo é muito amplo. Qualquer forma de registrar algum conhecimento chamo de letramento, assim os Guaranis registram suas vidas em seus cocares, pode-se ler um cocar guaraní e saber praticamente toda a vida do seu proprietário. Por outro lado as pinturas corporais, habito bem difundido em quase todas tribos indígenas, também é uma forma de escrita, pois cada uma delas tem uma representação bem explicita. Todo artesanato admite um leitura quer no seu desenho, que na sua forma. Isto tudo é comum no saber- fazer de quase todos povos. Não conheço nenhuma etnia que não tenha alguma maneira de representar seus conhecimentos, portanto desconheço povos não-letrados neste meu sentido. Por outro lado esses autores também acreditam que a matemática só passou a existir com a escrita, no sentido de representar por letras as palavras e que a Etnomatemática não faz parte da História da Matemátaica ocidental. Se lembrarmos o quanto a matemática egípcia, portanto oriental, contribuiu para a matemática grega, teríamos que perguntar como esta matemática egípcia não estaria dentro do que para eles seria a matemática ocidental? Isto sem deixarmos também de levarem conta todo conhecimento matemático mesopotânio, que também foi fortemente usado na construção da matemática grega. Gostaria de citar também um etnolinguístico Favrod, que em seu livro tenta uma definição de sua ciência como: “ A Etnolinguística tenta estudar a 5 O primeiro pesquisador que tentou agrupar as várias tendências foi Huntig dizendo que Etnomatemática “ é a matemática usada por um grupo cultural definido na solução de problemas e atividades do dia a dia”. Outro pesquisador que deu uma ótima aproximação foi D´Ambrosio quando, em 1987, escreveu: “...as diferentes formas de matemática que são próprias de grupos culturais, chamamos de Etnomatemática”. Ainda se discute muito este termo, para os antropólogos é parte da Etnologia de um grupo, para os educadores é um métódo educacional da matemática e para outros pesquisadores, como D´Ambrosio e Gerdes é um sub-conjunto da Educação, que contém a Matemática como sub-conjunto. Toda esta polêmica leva os pesquisadores a terem certa prudência no uso deste termo, levando a explicitar sempre que usar a que conceito esta se referindo. Eu me utilizei certo tempo do expressão “Matemática Materna”, numa associação com a “Língua Materna”, termo já consagrado pelos linguístas, isto quando queria me referir aos conceitos matemáticos que os estudantes trazem para a escola, oriundos de seus contextos sociais; conceitos estes contruidos socialmente ou de origem antropológica, quando passados de uma geração à outra. Concepção de D´Ambrosio e de Gerdes Mas, mesmo com estas três inclusões, ainda é difícil precisar um conceito para Etnomatemática, foi pensando nisto que Bishop escreveu: “... é um conceito que ainda não encontrou sua definição. Em face das idéias e afirmações que temos, talvez fosse mais apropriado não usar ainda este termo na busca de um melhor entendimento – ou, se optarmos por utilizá-lo, devemos precisar claramente a conceituação que estiver sendo a ele aplicada.” Nesta linha prudência, que compartilho, Gerdes chama, então, de Acento Etnomatemático referíndo-se a pesquisa em si e de Movimento Etnomatemático quando for utilizado pedagogicamente. Para ele “Etnomatemáticos salientam e analisam as influências de fatores sócio- culturais sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento da Educação Etnomatemática Matemática 6 matemática.”, isto para se referir aos pesquisadores nesta área de conhecimento. Este estudo leva a ver a Matemática como um produto cultural, e, então, cada cultura, e mesmo sub-cultura, produz sua matemática específica, que resulta das necessidades específicas do grupo social. Como produto cultural tem sua história, nasce sob determinadas condições econômicas, sociais e culturais e desenvolve-se em determinada direção; nascida em outras condições teria um desenvolvimento em outra direção. Pode-se então dizer que o desenvolvimento da matemática é não-linear, como querem alguns matemáticos. Por uma teoria da Etnomatemática A busca de uma teoria para a Etnomatemática é hoje objeto de empenho dos educadores matemáticos que se dedicam ao estudo e pesquisa desse movimento. Para dar uma visão de quando essa corrente será definitivamente enunciada e aceita pela comunidade científica como teoria, temos que recorrer aos filósofos da ciência, pois são eles os responsáveis por caracterizar uma corrente científica, ou como dizem os kuhnianos, quando se tem uma “ciência normal”. Um dos nomes mais citados na filosofia da ciência, Sir Kar Popper, discute a questão sem nos revelar os caminhos que deve seguir um movimento científico para se tornar uma teoria. Segundo Popper, a ciência é um casamento entre a metafísica e a tecnologia, mas ele não explica como, onde e quando se dá esse casamento: “Nós inventamos nossos mitos e nossas teorias e os pomos a prova.” Ainda em seu texto, lemos: “ Vêem-se teorias como livre criação de nossas mentes, o resultado de um intuição quase poética.” Tendo em mente uma teoria em contrução, como por exemplo a Etnomatemática, evidentemente que não é a Popper que devemos recorrer para estudar o nascimento de uma ciência, pois até que ponto podemos caracterizar um movimento como um mito, no sentido da crença ou saber, quando estamos trabalhando no contexto de uma intuição poética? Recorremos então a outro filósofo da ciência que, no meu entender, responde a estas questões: Thomas S. Kuhn. Kuhn nos fornece com certa clareza os caminhos que devem ser percorridos por um acento científico, desde o seu nascimento até sua ruptura, através de uma revolução, “...mesmo sendo a ciência praticada por indivíduos, o conhecimento científico é intrinsecamente um produto de grupo e é impossível entender tanto a sua eficácia peculiar como a forma de seu desenvolvimento, sem fazer referência à natureza especial dos grupos que a produziram. Nesse sentido, o trabalho 7 desses grupos tem profundas raízes sociológicas, mas não de uma maneira que permita separar o sujeito de espistemologia.” Antes de tentar fazer uma análise kuhniana da Etnomatemática, procuremos caracterizar esse movimento como uma pesquisa. No meu entender, há três visões diferenciadas da Etnomatemática: em primeiro lugar, ela pode ser vista como uma parte da Etnociência e, nesta visão, estaria dentro da pesquisa antropológica – que acredito ser uma “ciência normal”. Matemática, muitas vezes chamada de Antropologia Matemática. Uma segunda maneira de ver a Etnomatemática é como uma pesquisa em História da Matemática. Esta concepção tem seu lugar resguardado pela comunidade científica e há vários pesquisadores que estudam a Etnomatemática neste ponto de vista. Esta visão é baseada na crença de uma evolução cultural, então os grupos étnicos estariam em um certo estágio histórico da matemática, deixando para o estágio mais superior a matemática ocidental. Estudemos, então, o seu desenvolvimento como teoria educacional, pois é com este sentido que usarei o termo Etnomatemática. Na tentatica então de encarar a Etnomatemática como uma teoria educacional, voltemos a Kuhn. Temos que entender primeiramente o que é para ele um paradigma , pois “ o paradigma tem que existir antes da teoria”, e nosso propósito e ver se a Etnomatemática como teoria educacional é de fato uma teoria. O que vem a ser um paradigma para Kuhn? “ Filosoficamente, o paradigma é um artefato que pode ser utilizado como expediente na solução de enigmas.” e a “ciência normal” se caracteriza pela solução de enigmas. “O cientista normal é um adepto da solução de enigmas - não apenas um mero ` solucionar de problemas`, mas uma solução de enigmas - que consiste, prototipicamente, a `ciência normal`”. “Cientísta normal” aqui no sentido daquele que pratica a ciência normal. Então, paradigma é para ele a instrumentação da ciência para a resolução de enigmas. Assim, para “qualquer enigma que deva ser solucionado pelo emprego do paradigma, este terá de ser uma construção, um artefato, um sistema, um instrumento com seu manual de instrução - para que possa ser utilizado com êxito - e um método de interpretação do que esse instrumento faz.” Num estudo feito sobre a obra de Kuhn por Margareth Masterman, ( A natureza do Paradigma - A critica e o desenvolvimento do conhecimento ( 1970 ) Edt. USP) , a autora encontrou 21 definições de paradigmas, que ela consegui categorizar me três grupos: 1 - Paradigma Metafísico ou Metaparadigma - um conjunto de crenças, um mito, um modelo e um novo modo de visualização; 10 Quando Paulus Gerdes, na introdução “Sobre o conceito de Etnomatemática” de seu livro “Estudos Etnomatemáticos” (1988) descreve como os pesquisadores tentam dar um sinônimo à Etnomatemática, estes o fazem através de metáforas. Assim algumas das expressões metafóricas que aparecem na literatura para Etnomatemática foram: • Zaslawsky (1973) - Sociomatemática (metáfora morta); • D´Ambrosio (1982) - Matemática Espontânea (é uma metáfora viva, pois para o Aurélio - “ espontânea é a que se desenvolve ou vegeta sem intervenção humana”); • Posner (1982) - Matemática Informal (metáfora morta, pois já está bem caracterizado o que é formal, apesar da temporalidade da forma matemática); • Caraher(1982), Kane (1987) - Matemática Oral (metáfora morta); • Gerdes (1982) - Matemática Oprimida (metáfora viva); • Caraher (1982), Gerdes (1982), Harris (1987) - Matemática Não- Estandartizada (metáfora morta, se soubermos o que é estandar ou padrão para a matemática, mesmo a matemática dita ocidental é temporal, sua forma depende da época); • Gerdes (1982 - 1985) - Matemática Escondida ou Congelada (metáfora viva); • Mellin-Olsen (1986) - Matemática Popular ou do Povo (metáfora viva); • Sebastiani (1987) - Maatemática Codificada no Saber-Fazer (metáfora viva). Todas estas linguagens metafóricas caracterizam um pré-paradigma, pois, “ o paradigma precisa ser uma `imagem` concreta, usada analogamente, porque precisa ser um `modo de ver`”. Hoje temos o paradigma Etnomatemática, pois Gerdes no seu livro já citado, nos fornece uma caracterização da Etnomatemática, este “modo de ver” ao “ salientar e analisar as influências dos fatores sócio-culturais sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento da matemática”. O termo matemática aparece na literatura quase sempre no sentido de produto cultural, universal e linear, os pesquisadores em Etnomatemática buscam dar um sentido de construção humana, então, dependente temporalmente e culturalmente para a matemática. Minha afirmação de que a Etnomatemática tem o estatus de paradigma kuhniano vem pela afirmação de Kuhn “ o paradigma precisa ter a propriedade do concretismo ou `crueza`, isto quer dizer que ele precisa ser literalmente, um modelo, uma imagem, uma seqüência analógica (desenho de usos de palavras na linguagem natural), ou alguma combinação destas três coisas”. Uma concepção assemelhada leva-nos a afirmar que a Etnomatemática é um paradigma para a Educação Matemática, pois apresenta 11 estas três características: é um modelo, uma imagem e tem uma seqüência analógica na linguagem natural. Se, por um lado, podemos falar em um “acento etnomatemático”, um “ movimento etnomatemático” e mesmo uma “ filosofia etnomatemmática” , garantindo sua caracterização como paradigma, ainda não temos uma definição do que vem a se a Etnomatemática, ou seja, ainda não é uma teoria. Concordo mais uma vez com Kuhn, “ o paradigma já existe quando a teoria ainda não existe”. Compartilho também das idéias de Alan Bishop que, em seu “Mathematical Enculturation” (1988), alerta sobre a necessidade de uma certa prudência no falar deste conceito, por este ainda não ser uma teoria; mas, por outro lado, como “modo de ver”, a Etnomatemática já possui sua garantia como paradigma. Tentativas atuais de conceituação No ICME de Budapeste (1988) Nebres, em sua conferência, num desafio aos educadores matemáticos para a década de 90, falou especificamente de três elos de uma corrente ainda não delineada na época: (i) Etnomatemática, (ii) Matemátoca Escolar e (iii) Matemática Pura Superior. Disse ele que nos anos 60 buscava-se estabelecer vínculos mais estreitos entre (ii) e (iii), trans portanto os objetos e estruturas de (iii) para (ii), e que no ano de 1988 iniciou-se um grande esforço no sentido de vincular (i) e (ii). No ICME seguinte, que aconteceu em Quebec (1992), na reunião do ESGEm, D´Ambrosio levantou a necessidade de se buscar a homogeneização conceitual, a própria definição de Etnomatemática, sendo construída através da investigações empírica e teorização. Mas isto não seria primordial, uma vez que o mais importante seria chegarmos todos a um consenso. Isto mostra a preocupação dos pesquisadores em Educação Matemática em encontrar um denominador comum para a Etnomatemática, isto porque esta corrente já estava tomando seu estatus na educação, com pesquisas importantes aparecendo em todas revistas especializadas. Outro pesquisador em Educação Matemática, Powell, escreveu que existem duas vertentes de Etnomatemática: a de D´Ambrosio e a de Ascher, que, apresar de diferentes, não são conflitantes. Isto aparece claramente já nos primordios da Etnomatemática, para o primeiro era a Matemática Espontânea e para Ascher a Matemática dos Povos não Letrados. Na falta de uma teoria e de uma definição precisa, D´Ambrosio propos um Programa Etnomatemático; para ele, é um programa no sentido de Lakatos, isto é, como ele mesmo escreveu: “ A metodologia do programa de pesquisa denominado Etnomatemática deve ser muito amplo. Ele focaliza a 12 geração, organização e difusão dos conhecimentos, e é no difundir que entra a parte da Educação. Estes quatros ramos correspondem ao que usualmente é estudado como: cognição, epistemologia, história e sociologia do conhecimento, incluindo a Educação.” O mesmo autor, fazendo um estudo etimológico da palavra Etnomatemática, dá uma aproximação do seu pensar sobre seu programa: “ é a arte ou técnica (techné = tica) de explicar, de entender, de se desempenhar na realidade (matema), dentro de um contexto cultural próprio(etno).” Por outro lado, o seu conceito de etno tem uma abrangência muito grande, refere-se a grupos culturais identificáveis, seus exemplos mostram o que ele entende por estes grupos: sociedades nacionais, sociedades tribais, grupos sindicais e profissionais, crianças de uma certa faixa etária, etc. e inclui memória cultural, códigos e símbolos. Outra vertente apontada por Powell é a Etnomatemática no ponto de vista de Marcia Archer. A autora se restringe ao conhecimento de povos não- letrados, retirando o termo “primitivo”, por este estar carregado da conotação evolucionista, que pode ser tão complexa como a das idéias matemáticas ocidentais. Para ela existem idéias matemáticas de povos não-letrados mas não existe matemática, pois esta nasce no pensamento ocidental. Marcia Ascher não dá ao seu trabalho um caráter explicitamente pedagógico. Temos que citar o trabalho de Gelsa Knijnik, no Brasil, que teve repercussão internacional. A autora, em sua tese com os Trabalhadores Sem- Terra do Brasil, desenvolveu o que chamou de uma Abordagem Etnomatemática, o que tem para ela o significado de : “A investigação das concepções, tradições e práticas matemáticas de um determinado grupo social, no intuito de incorporá-las ao currículo como conhecimento escolar.” Críticas à Etnomatemática As maiores críticas à Etnomatemática vêm dos seguintes autores: Milroy, Dowlling e Taylor. O primeiro fala do paradoxo da Etnomatemática quando pergunta: “ Como pode alguém que foi escolarizado dentro da Matemática Ocidental convencional `ver` qualquer outra forma de Matemática que não se pareça com esta Matemática, que lhe é familiar?” O autor tem razão em parte na sua preocupação, existe muitas pesquisas em Etnomatemática com a preocupação somente de traduzir o saber de um grupo social para a Matemática Institucional. Tive contato com várias pesquisas de tribos indígenas brasileiras onde os índios contam muito pouco, até três, quatro ou cinco e depois dizem muito e o pesquisador afirmar que têm um sistema de numeração de base três, quatro ou cinco. Isto para mim é um abuso do que o Milroy chama a atenção, e tentar transplantar dentro do cultural do outro a 15 concretos, que serão incorporados por ela, é uma postura bem diferenciada da de demonstrar por demonstrar. A importância da pesquisa de campo. No meu entender, a Etnomatemática, como recurso pedagógico, segue alguns passos que a caracterizo como passos na aprendizagem. Estes passos são, para mim, necessários para se incorporar a Etnomatemática no currículo escolar, currículo no sentido mais amplo possível, como muito bem descreve D´Ambrosio. No quadro abaixo tento resumir esses passos: Contexto social realidade A escola está fisicamente inserida num contexto social ( bairro, região, aldeia, etc.) mas, na maioria das vezes, não faz parte deste contexto. Seus professores e diretor vêm de outros lugares, somente para cumprir o horário de trabalho, não participando do ambiente social de onde seus alunos vêm. Isto leva estes alunos a considerar a escola e seu discurso como totalmente fora de suas realidades. A proposta, que apresento aqui, pretende de fato inserir esta escola no contexto social e não só estar lá fisicamente, havendo uma troca recíproca de saberes e fazendo com que ambas, a escola e o contexto, cresçam culturalmente. Para isto, é necessário, pelo menos, um envolvimento do professor, pois é ele quem vai dirigir o processo e, para isto, deve conhecer o contexto social onde seus alunos freqüentam. Conhecer não significa, necessariamente, morar perto da escola, mas saber dos anseios e das representações culturais mais importantes da sociedade envolvente. Isto, porque é ele quem vai nortear as pesquisas de campo, que sejam mais significativas para esta comunidade. Quando este professor propor a pesquisa de campo aos seus alunos, e junto com eles Etnografia ou pesquisa de campo Etnologia ou análise da pesquisa Modelo Técnicas e estratégias matemáticas Solução, Soluções ou Não-solução Ação Validação 16 buscarem temas para tal pesquisa, é o professor que poderá levar a escolha para temas que possam ter um significado importante à sociedade. Ele não deve ser quem vai determinar os temas, estes devem partir dos alunos, mas a orientação do professor é importante no sentido de uma escolha, que propicie uma ação à comunidade, visando um crescimento desta. Escolhida o tema, ou temas, o professor deve preparas seu alunos para a etnografia (pesquisa de campo). Quais são os requisitos mínimos que fazem com que uma pesquisa de campo possa trazer subsídios significativos, tanto para o pesquisado como para todo o grupo social a que ele pertence? A etnologia (análise da pesquisa) será feita em sala de aula com a participação de toda a turma e o professor. É neste momento que aparecem varias perguntas, os “porques” devem ser pensados como parte do processo. As respostas destes porques vai exigir estratégias as vezes diferenciadas. Muitas vezes a volta a campo se faz necessária na resposta as indagações, mas estamos interessados aqui nos porques onde a matemática pode servir como linguagem na sua resposta. Então a modelagem matemática é solicitada neste momento, ela, como leitura do mundo, propicia de maneira clara e concisa a solução de problemas interrogatórios. Mas a solução destes modelos requer a utilização de técnicas e estratégias matemáticas, que na maioria das vezes não estão ainda disponíveis aos alunos. Neste momento o professor é o instrumentalizador, que vai fazer com que a classe adquira esses novos instrumentais, necessários na solução do seu modelo. Pode aparecer uma solução, várias soluções ou mesmo nenhuma solução, todas as alternativas são importantes. Continuando o processo, uma validação da resposta encontrada deve ser feita em todos os passos, tanto no campo, na etnografia, na etnologia e também no modelo empregado. Finalmente uma ação de reformulação cultural deve ser proposta a comunidade. Da ação - o retorno da pesquisa à comunidade A ação deve vir de uma proposta do processo, com a finalidade de alterar de alguma maneira o contexto cultural, no sentido de crescimento cultural do meio. No meu entender, toda pesquisa etnográfica tem que ter, necessariamente, um retorno de seus resultados à comunidade - objeto da pesquisa. Esta proposta de retorno `a comunidade é, a meu ver, uma das ações imprescindível do processo. Compete a comunidade decidir de aceitá-la ou não. Acredito que um ensino com estas características é, sem dúvida, crítico e significativo. Crítico, pois os alunos, quando modelam sua própria realidade, devem fazer uma leitura crítica da mesma (a etnolonogia). Nesse momento, cada aluno faz uma análise política dessa realidade, refletindo sobre seu contexto, usando para isso, toda sua história de vida. A matemática 17 aparece então com mais significado, pois se mostra como ferramenta importante na leitura do mundo, podendo ajudar bastante o aluno nesta leitura crítica. Com isto estaremos ajudando esse aluno na sua formação como cidadão participante da comunidade. Por outro lado, a escola passa ser parte integrante dessa comunidade, recebendo e dando contribuições no crescimento cultural e muitas vezes mesmo no crescimento econômico da comunidade. Por tudo isto, creio que o Programa Pedagógico da Etnomatemática é um dos mais completo paradígma pedagógico existente. § 2. A formação do Professor/Índio Waimiri-Atroari Sobre a educação matemática Waimiri-Atroari A tribo Waimiri-Atroari é do tronco lingüístico Karib e seu território abrange parte dos estados do Amazonas e Roraima, ao norte de Manaus. Sua população hoje é estimada em aproximadamente 600 índios, distribuídos em 12 aldeias. Com a construção da Usina Hidroelétrica da Balbina (1988), parte de seu território foi inundado e em consequência deste fato a Eletronorte e Funai firmaram um convênio assistencial, onde um dos programas é a Educação. Este programa visa, além da criação e manutenção das escolas de aldeia, a formação do professor/ índio, professor esse escolhido sempre pela própria comunidade. Sou responsável na área de Matemática deste programa e venho trabalhando com estes professores há 6 anos. Além de sua formação em matemática, minha preocupação é também que eles sejam os pesquisadores de campo de seus conhecimento étnicos, conhecimentos que possam ser modelados na matemática institucional ou não, mas conhecimentos categorizados matemáticos. Como fruto deste trabalho tenho já alguns dados da evolução lingüística no sistema de numeração, nomes de algumas figuras geométricas e conceitos topológicos, que são construções sociais, refletindo o dinamismo cultural da tribo. Isto caracteriza a construção de conceitos matemáticos como fruto social, mostrando também que têm significados historicamente localizados. Mais de 300 anos de luta A história das incursões portuguesas na região do Rio Negro iniciou por volta de 1663 com a instalação de missões, provocando revolta entre os Waimiri-Atroari, que acarretou a morte de um missionário. Inicia-se a guerra entre índios e brancos desta região. Como represália o governador da Amazonas (Rui Vaz de Siqueira) enviou uma tropa à região, que queimou trezentas aldeias, setecentos índios foram mortos e quatrocentos levados à prisão. Após este fato, temos poucos registros sobre os Waimiri-Atroari, Há 20 “Tuparé ainam naemé?” “Tupanican anamei”, que o autor traduziu como: “Quantas nações há neste rio?” “Sá há uma, a nossa.” Na mesma página do livro o autor pergunta ao informante quantas malocas havia, este responde “anciá ean”, mostrando os dedos das duas mãos, que o autor traduziu por dez. No final do livro ele transcreve a numeração Waimiri-Atroari: 1 - tuim 2 - sananoburú 3 - sarenuá 4 - saqueroba 5 - tupaique 6 - turincaboná 7 - saquene 8 - seranoréneabunan 9 - saquerorémeabanan 10 - taparenon 20 - tiuimtemongonon 30 - sarcicamongen 40 - ieporé 50 - tuparémonongonon 100 - soroparetuparo. Hoje todos os índios com quem trabalhei, desconhecem estes termos e não acreditam que sejam da língua Waimiri-Atroari. Eles consultaram o velhos das aldeias e nenhum deles conhecia este tipo de numeração. Provavelmente o autor uso como interprete índio de outro etnia, e este deu a ele numeração de sua tribo. O que se sabe é esses número não são conhecidos de nenhuma tribo brasileira. O que temos hoje é nominação para os três primeiros números: awenini - um, typytyna - doi e takynynapa - três; acima destes usam wapy, que significa muitos ou warenpa, cujo o significado é de grande quantidade. Os mais velhos ainda usam termos como akynmy e pitymy para designa um. Estes termos já estão em desuso. A palavra awenini também tem o significado de sozinho e pitymy de solteiro. As formas geométricas que tive conhecimento na língua foram: itaktyhy para quadrado e mixop itaktyhy para retângulo. A palavra mixop significa comprido, mas a palavra itaktyhy não achei significado, fica mais próximo de ipake que é porta. O losango tem um nome bem específico maia pankaha waty, que significa: igual a ponto da lança da flecha. Para o círculo abermyhy, que quer dizer redondo. Perímetro foi dito por eles 21 asapanpankwaha, que se pode traduzir por “toda a beira”, diagonal = epakytyhy e mesmo para ângulo encontraram asa panta pankwaha, isto é “beira ponta dobrada” Outros termos que coletei foram: kawy - alto kyby - baixo taha - grande bahnja - pequeno mie - longe kypy - perto tydapra ou taha - grosso bakinja - fino mixop - comprido tákwa - curto natéme ou natahme - frente agytyhy ou apytylmy - atrás djapma najapy - direita makma najapy - esquerda eixyknaka - em cima kytany - embaixo. No primeiro encontro que tive com eles construimos juntos uma cartilha de matemática. Eles resolveram dar nome aos números de 4 á 9 usando a adição. Assim: 4 - takynynnapa awenini = 3 e 1 5 - takynynapa typytyna = 3 e 2 etc. 9 - takynynapa takynynapa takynynapa = 3 , 3 e 3. Quando levaram esta proposta às aldeias, os jovens acharam muita graça e aceitaram imediatamente. A grande reação foi dos mais velhos, que não aceitaram e me pareceu com uma reação contraria muito forte, no sentido de não se brincar com a língua. Meu trabalho de assessoria matemática Todo ano passo com os professores Waimiri-Atroari uma semana, isto desde 1994, com trabalho diário de mais de 8 horas. Geralmente pela manhã me preocupo com a formação matemática, então, conceitos matemáticos são ensinados de uma maneira, quando possível, com exemplos da realidade deles. Já foi trabalhado as quatro operações, frações, regra de três, juros e porcentagem, perímetro e área das figuras geométricas mais conhecidas e medida de ângulo. Cada ano tenho que retomar alguns conceitos pois na aldeia é muito difícil eles estudarem, mas tenho notado um crescimento 22 grande na aquisição dos conceitos estudados. Na parte da tarde trabalhamos cada ano temas diferentes: a planificação da construção da molca-escola no Núcleo, o uso da calculadora, entrevistas para modelação matemática, modelar matematicamente notícias de jornal, a modelagem de conhecimentos étnicos e neste último ano trabalhamos com jogos que são úteis no ato pedagógico. Geralmente a noite eles reservam para estudar e fazer o que chamo de “tarefa para casa”, que são problemas e exercícios onde são utilizados os conceitos desenvolvidos em sala de aula. Este trabalho tem-se mostrado muito promissor, no sentido de formação do professor/índio como: em primeiro lugar um conhecedor dos conceitos que estão estudando. Normalmente a História da Matemática é solicitada no intuito de mostra a criação do conceito e dando a visão de uma ciência construída pelo homem, sem verdades absolutas. Em segundo lugar a formação deles como pesquisadores de campo, etnógrafos mesmo, com minha solicitação todo ano de um trabalho de pesquisa de campo, eles já estão razoavelmente dominando o processo da etnografia, o que geralmente é muito difícil para um professor não-índio sem experiência. Iniciaram a aprendizagem de construção de um projeto pedagógico, fruto da pesquisa de campo. Eles, como detentores melhor do seus conhecimentos étnicos, são as pessoas mais apropriadas para este trabalho. Conhecem e vivem suas realidades, detêm o conhecimento dos valores culturais importantes, que devem ser transmitidos na escola e juntamente com a matemática acadêmica são capazes de fazer uma leitura mais profunda de sua realidade. Além disso, estão aptos também a compreender melhor o mundo do não-índio e de todo o papel que a matemática institucional exerce neste mundo, conseguem ler, analisar e criticar notícias jornalísticas que usam a matemática como ferramenta de compreensão. Sei que é um trabalho logo e que falta ainda muito na formação destes professores, isto é, quando eles poderão sozinhos desempenharem suas funções na aldeia na formação do índio, seus alunos, valorizando seus conhecimentos e sabendo compreender e criticar o mundo do não-índio. Espero poder continuar contribuindo nesta formação.
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