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Guias e Dicas
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Trilogia Ciclo da Herança - 1- Eragon, Manuais, Projetos, Pesquisas de Análise de Sistemas de Engenharia

Livro de Aventura

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2010

Compartilhado em 06/10/2010

rauni-marques-7
rauni-marques-7 🇧🇷

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Baixe Trilogia Ciclo da Herança - 1- Eragon e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Análise de Sistemas de Engenharia, somente na Docsity! Este livro é dedicado à minha mãe, por me mostrar a magia no mundo; a meu pai, por ter revelado uma nova maneira de ver a vida. E também à minha irmã, Ângela, por me ajudar quando estou triste. como observadoras de um outro mundo. O desgosto contorceu-lhe os lábios enquanto se voltava para a elfa inconsciente. A beleza dela, que teria encantado qualquer homem mortal, não tinha nenhuma graça para o Espectro. Confirmou o sumiço da pedra e pegou seu cavalo escondido entre as árvores. Depois de amarrar a elfa à sela, montou no animal e seguiu em direção à saída da floresta. Extinguiu o fogo em seu caminho, mas deixou todo o resto ardendo. A DESCOBERTA Eragon ajoelhou-se no tapete de grama pisado e examinou atentamente as pegadas com seu olhar experiente. As marcas disseram-lhe que o cervo esteve naquela campina há apenas meia hora. Logo, todos iriam dormir. Seu alvo, uma pequena corça que mancava da pata esquerda dianteira, ainda estava com o rebanho. Ele estava surpreso por ela ter conseguido ir tão longe sem que um lobo ou urso a tivesse capturado. O céu estava limpo e escuro, e uma brisa suave agitava o ar. Uma nuvem prateada pairava sobre as montanhas que o cercavam, cujos cumes resplandeciam com a luz avermelhada da lua da época da colheita, aninhada entre dois picos. Riachos corriam montanha abaixo, brotando das frias geleiras e das brilhantes camadas de neve. Uma névoa pesada arrastava-se acima do solo do vale, quase espessa o bastante para ocultar os seus pés. Eragon tinha quinze anos, faltava menos de um ano para a idade adulta. Sobrancelhas escuras repousavam acima dos seus vivos olhos castanhos. Suas roupas eram surradas por causa do trabalho. Uma faca de caça, com o cabo feito de osso, estava presa à cinta. E um tubo de pele de veado protegia da neblina o arco feito de teixo. Carregava também uma saca com estrutura de madeira. A corça levou-o até os recônditos da Espinha, uma cadeia de montanhas indomadas que se estendia do começo ao fim das terras da Alagaésia. Freqüentemente histórias estranhas e homens surgiam dessas montanhas trazendo maus agouros e doenças. Apesar disso, Eragon não temia a Espinha, ele era o único caçador perto de Carvahall que ousava caçar em seus recantos mais íngremes. Era a terceira noite da caçada e metade de sua ração já havia sido consumida. Se não abatesse a corça, seria forçado a voltar para casa de mãos vazias. Sua família precisava da carne para o inverno que se aproximava rapidamente. Eles não tinham condições financeiras para comprá-la no Carvahall. Eragon estava em pé, confiante, sob o luar enevoado. Logo, entrou na floresta em direção a um vale estreito e profundo, onde tinha certeza de que o animal estaria. As árvores bloqueavam a visão do céu e produziam sombras diáfanas no chão. Só olhava para as pegadas ocasionalmente, pois conhecia o caminho. No vale estreito, esticou o arco com segurança, sacou três flechas, pondo uma na arma e segurando as outras com a mão esquerda. O luar revelou uns vinte pequenos montes imóveis. Eram os cervos deitados na grama. A corça que ele queria estava na ponta do rebanho, com a pata dianteira esquerda esticada de uma maneira peculiar. Eragon aproximou-se sorrateiramente, mantendo o arco em prontidão. Todo o trabalho que teve nos últimos três dias levou-o a este momento. Respirou fundo pela última vez, e... Uma explosão quebrou o silêncio da noite. O rebanho disparou. Eragon pulou para a frente, saiu correndo pela grama enquanto o vento queimava seu rosto. Parou de repente e lançou uma flecha em direção ao animal que saltava. Errou por um triz, e a flecha se perdeu na escuridão. Praguejou e virou-se, preparando instintivamente outra flecha. Atrás dele, onde os cervos haviam estado, ardia sem chama um grande círculo de árvores e grama. Muitos dos pinheiros estavam desprovidos de seus galhos. A grama do lado de fora do círculo estava amassada. Uma coluna de fumaça subia, enroscando-se pelo ar e propagando um cheiro de queimado. No centro do lugar onde aconteceu a explosão, repousava uma pedra azul polida. A névoa serpenteava pela área incendiada e envolvia a pedra. Eragon esperou para ver se não havia perigo durante longos minutos, mas a única coisa que se movia era a névoa. Cautelosamente, afrouxou a tensão do arco e avançou. O luar produziu uma pálida sombra sobre ele quando parou em frente à pedra. Tocou-lhe com uma flecha e saltou para trás. Como nada aconteceu, pegou a pedra com muito cuidado. A natureza jamais havia polido uma pedra como aquela. Na superfície não havia uma falha sequer, era azul-escura, exceto pelas finas veias brancas que se espalhavam sobre ela como uma teia de aranha. A pedra era fria e não produzia atrito quando tocada, como seda endurecida. Era oval e tinha uns trinta centímetros de comprimento. Pesava alguns quilos, embora parecesse mais leve do que deveria. Eragon achou a pedra tão bela quanto assustadora. De onde ela veio? Para que serviria? Pensou. Depois, um pensamento mais perturbador surgiu em sua mente: Será que ela veio parar aqui por acidente ou estarei destinado a possuí-la? Se ele tinha aprendido algo com as antigas histórias, era tratar com muito cuidado a magia e aqueles que a usavam. Mas o que farei com a pedra? Seria cansativo carregá-la e havia a chance de ser perigoso. Talvez fosse melhor deixá-la para trás. Um tremor de indecisão percorreu-o, e ele quase a deixou cair, mas algo acalmou sua mão. Pelo menos, poderei comprar um pouco de comida com ela, decidiu ele, dando de ombros e enfiando a pedra em sua saca. O vale estava muito exposto para servir como abrigo seguro, então voltou para a floresta e estendeu sua manta de dormir embaixo das raízes de uma árvore caída. Depois de um jantar frio de pão e queijo, se enrolou nos cobertores e adormeceu, meditando no que havia acontecido. VALE PALANCAR O sol nasceu na manhã seguinte com uma bela mistura de chamas rosadas e amarelas. O ar estava fresco, doce e muito frio. Havia gelo nas margens dos riachos e poças pequenas estavam completamente congeladas. Depois de comer um mingau no desjejum, Eragon voltou para o vale e examinou a área queimada. A luz da manhã não revelou novos detalhes, então ele seguiu em direção a sua casa. A trilha tosca estava ligeiramente desgastada e, em certos lugares, não existia. Por ter sido feita pelos animais, ela freqüentemente retrocedia e fazia longos desvios. Mesmo assim, com todas as suas falhas, ainda era o caminho mais rápido para sair das montanhas. A Espinha era um dos poucos lugares que o rei Galbatorix não podia dizer que era dele. Ainda contavam histórias sobre como metade do exército dele desapareceu depois de marchar para dentro da antiga floresta. Uma nuvem de fatalidade e de má sorte parecia pairar sobre o lugar. Embora as árvores crescessem bem altas, e o céu fosse brilhante, poucas pessoas conseguiam ficar um bom tempo na Espinha sem sofrer um acidente. Eragon era um dos poucos que conseguiam, não por causa de um dom em particular, ele achava, mas por causa de sua constante vigilância e reflexos aguçados. Já caminhava naquelas montanhas há vários anos, mesmo assim ainda procedia com muita cautela. Todas as vezes em que achava que tinha desvendado os segredos das montanhas, algo acontecia para frustrar a compreensão que ele tinha delas, como o aparecimento da pedra. Mantinha o passo acelerado, e os quilômetros desapareciam rapidamente. No final da tarde, chegou à beira do precipício de uma ravina. O rio Anora corria lá embaixo, na direção do vale Palancar. Alimentado por centenas de pequenos riachos, o rio era uma força bruta que lutava contra as rochas e pedras que barravam seu caminho. Um rugido baixo enchia o ar. Acampou em um pequeno bosque perto da ravina e viu a lua nascer antes de se deitar. O tempo ficou ainda mais frio no dia seguinte e na primeira metade do outro. Eragon viajava rapidamente e viu pouco da vida selvagem. Logo depois do meio-dia, ouviu as cataratas Igualda cobrindo tudo com o som abafado de milhares de litros de água caindo. A trilha levou-o até uma chapada de ardósia úmida, por onde o rio havia passado que se lançava no vazio do ar e caía por encostas cheias de musgo. Perante ele estava o vale Palancar, exposto como um mapa aberto. A base das cataratas Igualda, a mais de oitocentos metros abaixo, era o ponto mais ao norte do vale. Perto das cataratas ficava Carvahall, um punhado de edificações de cor marrom. A fumaça branca subia das chaminés, desafiando a área selvagem em volta. Naquela altura, as fazendas eram pequenos retalhos quadrados, menores do que a ponta do dedo dele. A terra em volta delas era ressecada ou arenosa, onde o mato seco dançava ao vento. O rio Anora cortava a terra desde as cataratas até o lado sul de Palancar, refletindo grandes porções da luz do sol. Longe, ele corria por fora do vilarejo de Therinsford e pela solitária montanha Utgard. Além daquilo, ele sabia apenas que o rio virava para o norte e corria para o oceano. Depois de uma pausa, Eragon saiu da chapada e começou a descer a trilha, contraindo o rosto durante o percurso. Quando chegou lá embaixo, o suave crepúsculo banhava todas as coisas, reduzindo cores e formas a massas cinzentas. As luzes de Carvahall brilhavam bem perto, sob o sol que se punha. As casas projetavam sombras compridas. Além de Therinsford, Carvahall era o único vilarejo no vale Palancar. O povoado era isolado, cercado por uma terra rude e bela. Poucos passavam por ali, com exceção dos mercadores e caçadores. O vilarejo era formado por edificações resistentes feitas de madeira com tetos baixos - alguns eram feitos de sapê e outros de tábua. A fumaça subia das chaminés, dando ao ar um cheiro amadeirado. As casas tinham varandas largas, onde as pessoas se reuniam para conversar ou comerciar. Ocasionalmente, uma janela brilhava quando uma vela ou lampião era aceso. Eragon ouviu homens falando alto sob o ar da noite enquanto as esposas vinham buscar seus maridos, brigando por estarem atrasados. Eragon seguiu caminho por entre as casas até o açougue, que era um casarão com grossas pilastras de madeira. Lá em cima, a chaminé expelia fumaça preta. Ele abriu a porta. O salão espaçoso estava quente e bem iluminado pelo fogo aceso na lareira de pedra. Um balcão se esticava até a outra extremidade do salão. Havia palha salpicada por todo o piso. Tudo estava extremamente limpo, como se o dono passasse o tempo livre raspando todas as rachaduras do lugar para remover a sujeira. Atrás do balcão estava o açougueiro Sloan. Era um homem pequeno, usava camisa de algodão e um longo avental manchado de sangue. Uma variedade impressionante de facas pendia de seu cinto. Tinha um rosto pálido com marcas de espinhas, e seus olhos negros eram suspeitos. Limpava o balcão com um trapo. A boca de Sloan retorceu-se quando Eragon entrou. - Ora, o poderoso caçador veio se juntar ao resto dos mortais. Quantos você pegou desta vez? - Nenhum. - Foi a resposta curta de Eragon. Ele nunca gostou de Sloan. O açougueiro sempre o tratou com desdém, como se ele fosse sujo. Viúvo, Sloan parecia se importar com apenas uma pessoa: a filha dele, Katrina, a quem ele amava. - Estou impressionado - disse Sloan, surpreso. Ele deu as costas para Eragon para raspar algo da parede. - E é por isso que você veio aqui? - É - admitiu Eragon constrangido. - Então, se esse é o caso, pode ir mostrando o dinheiro. - Sloan tamborilava os dedos enquanto Eragon movia os pés e continuava em silêncio. - Vamos, você tem dinheiro ou não tem. E então? - Eu não tenho dinheiro, mas tenho... - O quê? Não tem dinheiro? - interrompeu-o o açougueiro rispidamente. - E espera comprar carne! Os outros comerciantes estão dando mercadorias? Acha que devo dar carne a você sem cobrar nada? Além do mais, está tarde. Volte amanhã com dinheiro. O expediente encerrou por hoje. Eragon olhou fixamente para ele. - Não posso esperar até amanhã, Sloan. Garanto que não vai perder seu tempo. Encontrei algo com o qual posso pagá-lo. - Ele tirou a pedra da mochila e colocou-a gentilmente em cima do balcão todo cortado, onde ela brilhou com as luzes das chamas dançantes. - Deve ter roubado - resmungou Sloan, inclinando-se para a frente com uma expressão interessada. Ignorando o comentário, Eragon perguntou: - Isso basta? Sloan pegou a pedra e sentiu o peso dela, tentando determinar seu valor. Passou as mãos em sua superfície suave e examinou as veias brancas. Com um olhar de quem calculava, a pôs no balcão. - É bonita, mas quanto vale? - Não sei - admitiu Eragon. - Mas ninguém se daria ao trabalho de poli-la se não tivesse algum valor. - Obviamente - concordou Sloan, demonstrando impaciência. - Mas quanto vale? Como você não sabe, sugiro que procure um mercador que saiba ou que aceite a minha oferta de três coroas. - Isso é uma oferta desprezível! Deve valer, pelo menos, dez vezes mais - rebelou-se Eragon. - Três coroas não seriam suficientes para comprar carne para uma semana. Sloan deu de ombros. - Se não gostou da minha oferta, espere os mercadores chegarem. De qualquer forma, estou farto desta conversa. Os mercadores formavam um grupo nômade de vendedores e artistas que visitavam o Carvahall toda primavera e todo inverno. Compravam o excedente que os aldeões e os fazendeiros locais produziam e vendiam o que eles precisavam para enfrentar outro ano: sementes, animais, tecidos e suprimentos como sal e açúcar. A casa tinha cobertura de telhas e uma chaminé de tijolos. Os beirais do telhado pendiam sobre as paredes de cor branca desbotada, produzindo uma sombra no chão abaixo. Um lado da varanda cercada estava repleto de lenha cortada, pronta para o fogo. Uma mistura de ferramentas para o trabalho na fazenda estava do outro lado. A casa ficou abandonada durante meio século até eles se mudarem, depois que a esposa de Garrow, Marian, morreu. A casa ficava a dezesseis quilômetros do Carvahall, mais longe do que a de qualquer outra pessoa. O povo achava que toda aquela distância era perigosa, pois a família não podia contar com a ajuda do vilarejo quando tinha problemas, mas o tio de Eragon não dava ouvidos a ninguém. A uns trinta metros da casa, em um galpão de cor apagada, viviam dois cavalos, Birka e Brugh, junto com algumas galinhas e uma vaca. Às vezes, também havia um porco, mas eles não tiveram dinheiro para comprar um este ano. Uma carroça ficava espremida entre as baias. No limite da propriedade, uma grossa linha de árvores acompanhava o rio Anora. Ele viu uma luz se mover atrás de uma janela enquanto, cansado, se aproximava da varanda. - Tio, sou eu, Eragon. Deixe-me entrar. Uma cortininha foi puxada para trás por um instante e, depois, a porta foi aberta para dentro. Garrow permaneceu com a mão na porta. Suas roupas muito usadas vestiam-no como andrajos numa carcaça. Um rosto magro, faminto, com olhos intensos, observava tudo por baixo de cabelos que começavam a ficar grisalhos. Tinha a aparência de um homem que havia sido parcialmente mumificado antes de descobrirem que ainda estava vivo. - Roran está dormindo. - Foi a resposta dele para o olhar inquisidor de Eragon. A luz de um lampião tremeluzia em cima de uma mesa de madeira tão velha que os nós e veios da madeira sobressaíam em relevo como uma impressão digital gigantesca. Perto de um fogão à lenha ficavam carreiras de utensílios de cozinha, pendurados na parede em pregos feitos em casa. Uma segunda porta dava acesso ao resto da casa. O piso era feito de tábuas, polidas pelos pés que as pisaram durante anos. Eragon tirou a saca das costas e pegou a carne. - O que é isso? Por que você comprou carne? Onde conseguiu o dinheiro? - Perguntou com rispidez seu tio ao ver os embrulhos. Eragon respirou fundo antes de responder: - Não, Horst comprou a carne para nós. - Você deixou que ele pagasse? Eu já disse que não vou pedir comida a ninguém. Se não formos capazes de nos alimentarmos, talvez seja melhor nos mudarmos para a cidade. Quando menos esperarmos, estarão nos mandando roupas usadas e perguntando se conseguiremos sobreviver ao inverno. - O rosto de Garrow estava empalidecido pela raiva. - Eu não aceitei caridade de ninguém - respondeu Eragon. - Horst concordou em me deixar pagar a dívida trabalhando para ele nesta primavera. Ele precisará de alguém para ajudá-lo, pois Albriech vai viajar. - E onde você vai arranjar tempo para trabalhar para ele? Vai ignorar todas as coisas que precisam ser feitas aqui? - perguntou Garrow, forçando o tom de sua voz para baixo. Eragon pendurou o arco e a aljava em uns ganchos ao lado da porta da frente. - Não sei como farei - respondeu ele, irritado. - Além disso, encontrei algo que pode valer algum dinheiro. - Ele pôs a pedra em cima da mesa. Garrow inclinou-se sobre ela: o olhar faminto em seu rosto tornou-se voraz, e os dedos dele contraíam-se de um modo estranho. - Você achou isso na Espinha? - Achei - respondeu Eragon. Ele explicou o que aconteceu. - E para piorar as coisas, perdi a minha melhor flecha. Terei de fazer mais flechas logo. - Olharam para a pedra em meio à escuridão incipiente. - Como estava o tempo? - perguntou o tio, enquanto levantava a pedra. Suas mãos apertaram-na como se temessem que a pedra fosse desaparecer de repente. - Frio. - Foi a resposta de Eragon. - Não nevou, mas as noites eram congelantes. - Garrow ficou preocupado com essas notícias. - Amanhã você deve ajudar Roran a acabar de colher a cevada. Se conseguirmos colher as abóboras também, o frio não nos incomodará. Ele passou a pedra para Eragon. - Tome, fique com ela. Quando os mercadores chegarem, descobriremos o valor disto. Vendê-la será a melhor coisa a fazer. Quanto menos nos envolvermos com magia, melhor. Por que Horst pagou pela carne? Eragon levou apenas um minuto para explicar sua briga com Sloan. - Não entendo o que o deixou tão zangado. Garrow deu de ombros. - A esposa de Sloan, Ismira, caiu das cataratas Igualda um ano antes de você ser trazido para cá. Ele não passa perto da Espinha desde então. Não passa perto de lá e não quer ter nada a ver com aquele lugar. Mas isso não era motivo para recusar o seu pagamento. Acho que ele queria arranjar um problema com você. Eragon inclinou-se para frente e disse: - É bom estar de volta. O olhar de Garrow suavizou-se, e ele concordou com a cabeça. Eragon entrou tropeçando em seu quarto, colocou a pedra embaixo da cama e jogou-se em cima do colchão. Casa. Pela primeira vez, desde o começo da caçada, relaxou completamente quando o sono tomou conta dele. HISTÓRIAS DE DRAGÕES Ao amanhecer, os raios do sol entraram pela janela, aquecendo o rosto de Eragon. Esfregando os olhos, sentou na beira da cama. O piso de pinho estava frio sob seus pés. Esticou as pernas doloridas e coçou as costas enquanto bocejava. Ao lado da cama havia uma carreira de prateleiras cobertas com os objetos que ele colecionava. Havia pedaços retortos de madeira, fragmentos estranhos de conchas, pedras quebradas que revelavam um interior brilhante e pedaços de grama seca amarrados em nós. Seu item favorito era uma raiz tão retorcida que ele nunca se cansava de olhar para ela. O resto do quarto estava vazio, exceto pela pequena cômoda e pela mesa-de-cabeceira. Colocou as botas e olhou para o chão, pensando. Este era um dia especial. Foi mais ou menos a esta hora, há dezesseis anos, que sua mãe, Selena, voltou para casa, no Carvahall, sozinha e grávida. Ela ficou longe durante seis anos, vivendo nas cidades. Quando retornou, usava roupas caras e tinha o cabelo preso por uma rede de pérolas. Foi procurar o irmão, Garrow, e pediu para ficar com ele até o bebê nascer. Depois de cinco meses, o menino nasceu. Todos ficaram chocados quando Selena, chorosa, implorou para que Garrow e Marian o criassem. Quando eles perguntaram por que, ela apenas chorou e disse: - Eu preciso. Os apelos dela aumentaram desesperadamente até que eles finalmente concordaram. Deu a ele o nome de Eragon. Partiu cedo na manhã seguinte e nunca mais voltou. Eragon ainda se lembrava de como se sentiu quando Marian contou-lhe a história antes de morrer. Saber que Garrow e Marian não eram seus pais verdadeiros perturbava-o muito. Coisas que eram inalteráveis e indiscutíveis de repente foram colocadas em questão. Finalmente, acabou aprendendo a viver com aquilo, mas sempre desconfiava que não tinha sido bom o bastante para a mãe. Sei que havia um bom motivo para ela ter feito o que fez. Eu só queria saber qual. Outra coisa o incomodava: quem era seu pai? Selena não tinha contado a ninguém e, seja lá quem fosse, nunca foi procurar Eragon. Queria saber quem era, nem que fosse apenas o nome. Seria bom conhecer a linhagem dele. Suspirou e foi até a mesa-de-cabeceira, onde lavou o rosto, tremendo enquanto a água escorria pelo pescoço. Refrescado, pegou a pedra que estava embaixo da cama e colocou-a em uma prateleira. A luz da manhã a acariciava, projetando uma sombra na parede. Tocou-a mais uma vez, depois foi depressa para a cozinha, ansioso para rever sua família. Garrow e Roran já estavam lá, comendo frango. Enquanto Eragon os cumprimentava, Roran ficou em pé sorrindo. Roran era dois anos mais velho do que Eragon, musculoso, forte e meticuloso em seus movimentos. Não poderiam ser mais próximos mesmo se fossem irmãos de verdade. Roran sorriu. - Estou feliz porque você voltou. Como foi a viagem? - Difícil - respondeu Eragon. - O tio contou a você o que aconteceu? - Eragon pegou um pedaço de frango que devorou avidamente. - Não - informou Roran, e a história rapidamente foi contada. Devido à insistência de Roran, Eragon largou a comida para mostrar-lhe a pedra. Esta provocou uma admiração considerável em Roran, mas ele logo perguntou nervosamente: - Você conseguiu falar com Katrina? - Não. Não surgiu uma oportunidade depois da discussão com Sloan. Mas ela vai esperá-lo quando os mercadores chegarem. Dei o recado a Horst, e ele o passará a ela. - Você contou a Horst? - indagou Roran, incrédulo. - Isso era segredo. Se eu quisesse que todos soubessem, poderia ter acendido uma fogueira e ter feito sinais de fumaça. Se Sloan descobrir, não me deixará vê-la . - Horst será discreto - garantiu Eragon. - Ele não deixará que ninguém fique à mercê de Sloan, muito menos você. - Roran não parecia estar muito convencido, porém não discutiu mais. Voltaram para as suas refeições ante a presença taciturna de Garrow. Quando as últimas mordidas foram dadas, os três foram trabalhar no campo. O sol estava frio e pálido, provendo pouco conforto. Sob seus olhos atentos, os últimos grãos de cevada foram armazenados no galpão. Juntaram abóboras, repolhos, beterrabas, ervilhas, nabos, feijões e guardaram tudo no porão dos legumes. Depois de horas de trabalho, esticaram seus músculos doloridos, sentindo a satisfação de terem terminado a colheita. Os dias que se seguiram foram ocupados preparando a comida para o inverno, fazendo conservas, salgando e descascando alimentos. Nove dias depois da volta de Eragon, uma nevasca cruel veio das montanhas e pairou em cima do vale. A neve caía como um lençol, cobrindo todo o campo de branco. Só ousavam sair de casa para pegar lenha para o fogo e para alimentar os animais, pois temiam perder-se no meio dos ventos uivantes e da paisagem descaracterizada. Passavam o tempo aconchegados perto do fogão enquanto golpes de vento faziam tremer as pesadas cortinas nas janelas. Dias depois, finalmente, a tempestade passou, revelando um mundo exótico de suaves montes brancos. - Temo que os mercadores não venham este ano por causa deste tempo tão ruim - disse Garrow. - Eles já estão atrasados. Vamos dar-lhes uma chance, esperando mais um pouco antes de irmos ao Carvahall. Mas se não aparecerem logo, teremos de comprar as provisões que sobrarem do povo da cidade. - Seu semblante era resignado. Ficavam mais ansiosos conforme os dias se arrastavam sem dar nenhum sinal dos mercadores. A conversa era pouca, e a depressão estendia-se sobre a casa. Na oitava manhã, Roran foi andando até a estrada e confirmou que os mercadores ainda não haviam chegado. Levaram o dia preparando a viagem para o Carvahall, juntando, com sorrisos amargos, itens que podiam ser vendidos. Naquela tarde, sem esperança, Eragon foi verificar a estrada de novo. Viu cortes profundos na neve e numerosas pegadas entre eles. Exultante, voltou correndo para casa, gritando, dando novo vigor a seus preparativos. Carregaram a carroça com o excedente dos produtos agrícolas antes do amanhecer. Garrow colocou o dinheiro ganho naquele ano em uma sacola de couro e amarrou-a cuidadosamente no cinto. Eragon pôs a pedra embrulhada entre os sacos de grãos para que ela não rolasse com o sacolejo da carroça. Depois de um café da manhã apressado, arrearam os cavalos e limparam a trilha que desembocava na estrada. As carroças dos mercadores já haviam aberto sulcos na neve, fazendo-os avançarem mais depressa. Ao meio-dia, já podiam ver o Carvahall. Sob a luz do dia, aquele era um vilarejo tosco, repleto de gritos e risos. Os mercadores instalaram-se em um campo baldio nas cercanias da cidade. Grupos de carroças, barracas e fogueiras estavam espalhados pelo lugar. Eram pontos coloridos na neve. As quatro tendas dos trovadores eram decoradas com muitas cores. Um fluxo constante de pessoas ligava o acampamento ao vilarejo. Multidões agitavam-se em volta de uma fila de barracas e tendas iluminadas, enchendo a rua principal. Cavalos relinchavam por causa do barulho. A neve foi amassada, dando à rua uma superfície escorregadia. Em outros lugares, as fogueiras derreteram a neve. Castanhas assadas acrescentavam um rico aroma aos cheiros que os envolviam. Garrow estacionou a carroça e prendeu os cavalos. Em seguida, tirou moedas da sacola. - Vão comer alguma coisa. Roran, faça o que quiser, só não deixe de estar na casa de Horst na hora do jantar. Eragon, pegue aquela pedra e venha comigo. - Eragon sorriu para Roran e guardou o dinheiro, já planejando como gastá-lo. Garrow tomou o caminho para o Carvahall com Eragon bem atrás dele. - O que você acha? - perguntou Eragon. - Vou obter mais informações antes de tirar conclusões. Leve a pedra de volta para a carroça e, depois, faça o que quiser. Encontrarei vocês no jantar na casa do Horst. Eragon esquivou-se pelo meio da multidão e, feliz, correu para a carroça. As vendas ocupariam seu tio durante horas, tempo que ele planejava aproveitar totalmente. Escondeu a pedra embaixo das bolsas e partiu para a cidade com um passo presunçoso. Ele andava de uma barraquinha a outra, avaliando as mercadorias com seu olhar de comprador, apesar de seu humilde estoque de moedas. Quando falava com os mercadores, eles confirmavam o que Merlock havia dito sobre a instabilidade na Alagaésia. Várias vezes, a mensagem era repetida: a segurança do ano passado nos abandonou, novos perigos apareceram. Nada mais é seguro. Mais tarde, naquele dia, comprou três bastões de doce maltado e uma tortinha de cereja extremamente quente. Aquele calor foi bom depois de passar horas em pé na neve. Lambeu a calda grudenta dos dedos com pena, querendo mais. Sentou-se à beira de uma varanda e mordiscou um pedaço do doce. Dois meninos do Carvahall lutavam perto dele, mas Eragon não sentiu nenhuma vontade de se juntar a eles. Conforme o dia chegava ao final da tarde, os mercadores iam negociar nas casas das pessoas. Eragon esperava impaciente pela noite, quando os trovadores apareciam para contar histórias e fazer truques. Ele adorava ouvir contos sobre magia, deuses e, se tivesse muita sorte, sobre os Cavaleiros de Dragões. O Carvahall tinha o seu próprio contador de histórias, Brom, amigo de Eragon, mas os contos dele ficaram velhos, ao passo que os trovadores sempre tinham histórias novas que ele ouvia avidamente. Eragon tinha acabado de quebrar uma ponta de gelo do beiral da varanda quando viu Sloan ali perto. O açougueiro não o viu, então Eragon abaixou a cabeça e saiu correndo, virando uma esquina, em direção à taverna do Morn. O interior estava quente e repleto da fumaça oleosa das velas feitas de gordura. Os chifres do urgal, pretos e brilhantes - cuja envergadura retorcida tinha a extensão dos braços dele esticados, - estavam pendurados acima da porta. O bar era comprido e baixo, com uma pilha de pedaços de madeira de um lado para os clientes cortarem. Morn atendia no bar com as mangas enroladas até os cotovelos. A metade de baixo de seu rosto era curta e amassada, como se tivesse encostado o queixo em uma roda de moagem. As pessoas lotavam as sólidas mesas de carvalho e ouviam dois mercadores que tinham encerrado seus negócios mais cedo e foram beber cerveja. Morn olhou por cima de uma caneca que ele limpava. - Eragon! Que bom ver você! Onde está o seu tio? - Comprando - disse Eragon, dando de ombros. - Ele ainda vai demorar. - E Roran? Ele está aqui? - perguntou Moro enquanto passava o pano em outra caneca. - Está, não havia nenhum animal doente para evitar que ele viesse este ano. - Que bom, que bom! Eragon apontou para os dois mercadores. - Quem são eles? - Compradores de grãos. Compraram o estoque de todo mundo por preços ridiculamente baixos e, agora, estão contando histórias fantásticas, esperando que acreditemos nelas. Eragon entendeu por que Moro estava tão chateado. As pessoas precisam daquele dinheiro. Não podemos viver sem ele. - Que tipo de histórias? Morn bufou. - Eles disseram que os varden fizeram um pacto com os urgals e que estão formando um exército para nos atacar. Supostamente, foi apenas pela graça do nosso rei que fomos protegidos por tanto tempo, como se Galbatorix se importasse se nosso vilarejo fosse completamente destruído. Vá ouvi-los. Tenho muito mais a fazer do que ficar explicando as mentiras deles. O primeiro mercador enchia a cadeira com a sua enorme cintura. Todos os seus movimentos faziam-na protestar bem alto. Não havia um sinal sequer de pêlos no rosto, suas mãos gordas eram lisas como as de um bebê, e ele tinha lábios projetados para fora que pendiam petulantemente quando bebia em um garrafão. O segundo homem tinha um rosto avermelhado. A pele em volta da mandíbula era ressecada e gorda, recheada com caroços de banha dura, como manteiga rançosa fria. Contrastando com o pescoço e com o papo, o resto do corpo era magro e se unia forma não-natural. O primeiro mercador tentava, em vão, puxar para dentro da cadeira as laterais do seu corpo que escorregavam para fora. Ele disse: - Não, não, vocês não entendem. Foi só pelos incessantes esforços do rei em favor de vocês que podemos conversar agora em segurança. Se ele, em toda a sua sabedoria, retirasse o seu apoio, vocês estariam arruinados! Alguém gritou: - Certo, então por que você também não nos conta que os Cavaleiros voltaram e que cada um de vocês matou uns cem elfos? Acha que somos crianças para acreditarmos na sua história? Podemos cuidar de nós mesmos. - O grupo riu. O mercador começou a responder quando o companheiro magro interferiu com um aceno de mão. Nos dedos, jóias vistosas brilhavam. - Vocês não entenderam direito. Nós sabemos que o Império não pode tomar conta de cada um de nós, como vocês desejam, mas pode evitar que urgals e outras abominações invadam este - ele procurou vagamente pelo termo correto - lugar. O mercador continuou: - Vocês estão com raiva do Império por tratar pessoas injustamente, é uma preocupação legítima, mas um governo não pode agradar a todos. Inevitavelmente, haverá discussões e conflitos. Entretanto, a maioria de nós não tem nada do que reclamar. Todo país tem um pequeno grupo de pessoas descontentes que não estão satisfeitas com o equilíbrio do poder. - É - gritou uma mulher -, se você quiser chamar os varden de "pequeno grupo"! O homem gordo suspirou. - Já explicamos que os varden não têm interesse em ajudá-los. Isso é apenas uma mentira perpetuada pelos traidores em uma tentativa de abalar o Império e nos convencer de que a verdadeira ameaça está dentro, e não fora, das nossas fronteiras. Tudo o que eles querem é depor o rei e tomar posse das nossas terras. Eles têm espiões por toda parte enquanto preparam a invasão. Nunca se sabe quem está trabalhando para eles. Eragon não concordou, mas as palavras dos mercadores eram serenas, e as pessoas concordavam com a cabeça. Ele deu um passo à frente e disse: - Como vocês sabem disso? Posso dizer que as nuvens são verdes, mas não quer dizer que isso seja verdade. Provem que não estão mentindo. - Os dois homens olharam furiosamente para ele enquanto o povo do vilarejo esperava a resposta em silêncio. O mercador magro falou primeiro. Ele evitou os olhos de Eragon. - Vocês não ensinam seus filhos a respeitarem os mais velhos? Ou vocês deixam garotos desafiarem homens quando bem entendem? Os ouvintes ajeitaram-se de modo inquieto e olharam fixamente para Eragon. Aí, um homem disse: - Responda à pergunta. - É o senso comum - disse o gordo, com gotas de suor em cima do lábio superior. A resposta dele irritou o pessoal do vilarejo, e a discussão recomeçou. Eragon voltou ao bar com um gosto amargo na boca. Ele nunca havia encontrado alguém que favorecesse o Império e reprovasse seus inimigos. Havia um ódio do Império entranhado em Carvahall, a natureza disso era quase hereditária. O Império nunca os ajudou nos anos difíceis, quando eles quase passaram fome. E os cobradores de impostos eram impiedosos. Ele sentiu-se justificado ao discordar dos mercadores quanto à misericórdia do rei, mas especulou, de fato, sobre os varden. Os varden formavam um grupo rebelde que invadia e atacava o Império constantemente. A identidade do líder deles era um mistério, como também quem havia formado o grupo nos anos seguintes à ascensão de Galbatorix ao trono há mais de um século. O grupo ganhava muita simpatia quando conseguia se livrar dos esforços do rei para destruí-los. Pouco se sabia dos varden exceto que se você fosse um fugitivo e tivesse de se esconder, ou se odiasse o Império, aí eles o aceitariam. O único problema era achá-los. Morn inclinou-se sobre o bar e disse: - Incrível, não é? Eles são piores do que abutres voando em círculos sobre um animal morto. Haverá encrenca se ficarem aqui por muito mais tempo. - Para nós ou para eles? - Para eles - disse Morn, enquanto vozes zangadas enchiam a taverna. Eragon saiu quando a discussão ameaçou ficar violenta. A porta bateu atrás dele, cortando as vozes. Estava no começo da noite, e o sol desaparecia rapidamente. As casas projetavam sombras compridas no chão. Enquanto Eragon descia a rua, notou Roran e Katrina em pé numa viela. Roran disse algo que Eragon não conseguiu ouvir. Katrina olhou para baixo, para as mãos dela, e respondeu em voz baixa. Depois, ficou nas pontas dos pés e beijou-o antes de sair correndo. Eragon foi andando depressa na direção de Roran e brincou: - Está se divertindo? - Roran resmungou de forma não-comprometedora uma resposta conforme começou a andar. - Você ouviu as novidades que os mercadores contaram? - perguntou Eragon, seguindo-o. A maioria das pessoas do vilarejo estava dentro de casa, conversando com os mercadores ou esperando até ficar escuro o bastante para a atuação dos trovadores. - Ouvi. - Roran parecia estar distraído. - Qual é a sua opinião sobre Sloan? - Achei que isso fosse óbvio. - Haverá sangue entre nós quando ele descobrir sobre mim e Katrina - afirmou Roran. Um floco de neve caiu no nariz de Eragon, que olhou para cima. O céu havia ficado cinza. Ele não conseguia pensar em nada apropriado para dizer. Roran estava certo. Segurou forte no ombro do primo enquanto continuavam descendo pela pequena rua secundária. O jantar na casa de Horst era farto. O salão estava repleto de conversas e risos. Licores doces e cervejas encorpadas eram consumidos em generosas doses, contribuindo para nutrir aquela atmosfera ruidosa. Quando os pratos estavam vazios, os convidados de Horst saíram da casa e dirigiram-se para o acampamento dos mercadores. Um círculo de postes, com velas no topo, foi montado no chão em volta de uma grande clareira. Fogueiras ardiam ao fundo, pintando o chão com sombras dançantes. O povo do vilarejo juntou-se lentamente em volta do círculo e esperou, ansioso, no frio. Os trovadores saíram das suas barracas, fazendo acrobacias vestidos com roupas com franjas, seguidos por menestréis mais velhos e mais pomposos. Os menestréis proviam a música e a narração, enquanto seus companheiros mais jovens encenavam as histórias. As primeiras peças eram puro entretenimento: dissolutas, cheias de graça, quedas e personagens ridículos. Mais tarde, entretanto, quando as velas começaram a espocar em seus pedestais e quando todos haviam se reunido, formando um círculo coeso, o velho contador de histórias, Brom, deu um passo à frente. Uma barba branca, com pequenos nós, ondulava sobre o peito dele. E uma capa preta comprida escondia seus ombros curvados, obscurecendo o corpo. Abriu os braços e, imitando garras com as mãos, recitou para todos: - As areias do tempo não podem ser detidas. Os anos passam, quer queiramos ou não... Mas podemos nos lembrar. O que foi perdido pode, entretanto, viver na nossa memória. O que vocês estão para ouvir é imperfeito e fragmentado, mas guardem tudo com cuidado, pois, sem vocês, isso não poderá existir. Passo a vocês agora uma lembrança que foi esquecida, escondida na bruma nebulosa que repousa atrás de nós. Seus olhos entusiasmados examinavam os rostos interessados. O olhar dele demorou-se em Eragon, o último de todos. - Antes dos pais dos seus avós nascerem, e sim, até mesmo antes dos pais deles, a ordem dos Cavaleiros de Dragões foi formada. Proteger e guardar era a missão e, durante milhares de anos, eles tiveram sucesso. A proeza na batalha era inigualável, pois cada um tinha a força de dez homens. Eram imortais, a não ser que uma lâmina ou um veneno os atacasse. Seus poderes eram usados apenas para o bem e, sob a proteção deles, cidades e altas torres foram construídas. Enquanto mantiveram a paz, a terra prosperava. Foi uma época de ouro. Os elfos eram nossos aliados, e os anões, nossos amigos. A riqueza enchia nossas cidades, e os homens prosperavam. Mas chorem, pois isso não podia durar muito tempo. Brom olhou para baixo, silenciosamente. Uma tristeza infinita ressoava em sua voz. - Embora nenhum inimigo pudesse destruí-os, eles não tinham como se protegerem de si mesmos. E aconteceu, no auge do poder, que um menino, chamado Galbatorix, nasceu na província de Inzilbêth, que deixou de existir. Aos dez anos ele foi testado, segundo o costume, e descobriu-se que um grande poder residia nele. Os Cavaleiros aceitaram-no como um deles. "Ele passou pelo treinamento, superando todos os outros em habilidade”. Dotado de uma mente veloz e um corpo forte, ele ascendeu rapidamente na hierarquia dos Cavaleiros. Alguns viram a rápida ascensão como um perigo e alertaram os outros, mas os Cavaleiros ficaram arrogantes por causa do seu poder e ignoraram o aviso. Infelizmente, o infortúnio nasceu naquele dia. pequeno pedaço se mexeu, como se estivesse se equilibrando em cima de alguma coisa, em seguida se ergueu e caiu no chão. Depois de outra série de chiados, uma pequena cabeça escura saiu pelo buraco, seguida de um estranho corpo distorcido. Eragon agarrou a faca com mais força e segurou-a imóvel. Logo, a criatura havia saído completamente da pedra. Ela ficou parada por um momento, depois, agitou-se em direção ao luar. Eragon recuou, chocado. Em pé, na frente dele, lambendo a membrana que o envolvia, estava um dragão. O DESPERTAR O dragão não era maior do que seu antebraço, porém era magnífico e nobre. As escamas dele eram de um azul-safira forte, da mesma cor da pedra. E ele percebeu que não era uma pedra, era um ovo. O dragão bateu as asas. Eram elas que fizeram-no parecer tão distorcido. As asas eram muito mais compridas do que o corpo e guarnecidas de dedos finos, com ossos que se esticavam da borda dianteira da asa, formando uma linha de garras bem separadas. A cabeça do dragão era mais ou menos triangular. Duas pequenas presas brancas diminutas, curvadas para baixo, despontavam da sua mandíbula superior. Pareciam ser muito afiadas. Suas garras também eram muito brancas, como marfim polido e ligeiramente serrilhadas na curvatura interna. Uma fileira de pequenos espinhos descia pelas costas da criatura, desde a base da cabeça até a ponta da cauda. Uma depressão, onde seu pescoço e seus ombros se juntavam, criava um vão maior do que o normal entre os espinhos. Eragon moveu-se um pouco, e a cabeça do dragão virou-se depressa. Firmes olhos azul-claros fixaram-se nele, que continuou imóvel. Aquele bicho poderia ser um inimigo formidável se resolvesse atacar. O dragão perdeu o interesse por Eragon e, desajeitado, explorou o quarto, gritando quando batia em uma parede ou em um móvel. Com um bater das asas, pulou em cima da cama e engatinhou até o travesseiro, chiando. A boca estava aberta de modo piedoso, como a de um pássaro jovem, exibindo carreiras de dentes pontudos. Eragon sentou-se cuidadosamente na beira da cama. O dragão cheirou a mão dele e mordiscou sua manga. Ele puxou o braço para trás. Um sorriso tomou os lábios de Eragon enquanto olhava para a pequena criatura. Hesitante, esticou o braço e, com a mão direita, tocou o flanco do animal. Uma explosão de energia gelada entrou pela mão dele e correu pelo braço, queimando-lhe as veias como fogo líquido. Caiu para trás dando um forte grito. Um barulho metálico encheu seus ouvidos, e ele ouviu um silencioso grito de fúria. Todas as partes de seu corpo queimavam de dor. Fez força para se mover, mas não conseguiu. Depois do que pareceram ser horas, o calor voltou aos seus membros, deixando-os formigantes. Tremendo incontrolavelmente, fez força e pôs-se de pé. Sua mão estava dormente, e seus dedos, paralisados. Assustado, ele observava o meio da palma de sua mão brilhar e formar um desenho oval branco e difuso. A pele coçava e queimava como em uma mordida de aranha. Seu coração batia freneticamente. Eragon piscou, tentando entender o que havia acontecido. Algo tocava sua consciência como um dedo passando em cima da pele. Sentiu novamente, mas, desta vez, tomou a forma de uma corrente de pensamentos, pela qual ele sentia uma curiosidade crescente. Era como se um muro invisível que cercava seus pensamentos tivesse caído e, agora, estivesse livre para explorar a sua mente. Temia que, sem nada para segurá-lo, pudesse flutuar para fora do corpo e ser incapaz de voltar, virando um espírito etéreo. Com medo, ele se afastou. Esse novo sentido desapareceu como se tivesse fechado os olhos. Lançou um olhar desconfiado para o dragão imóvel. Uma perna escamosa raspou nele, e Eragon se afastou. Porém, a energia não deu outro choque. Confuso, acariciou a cabeça do dragão com a mão direita. Um formigamento leve subiu pelo braço. O dragão tocou-o com o nariz, arqueando as costas como um gato. Eragon passou um dedo por cima das finas membranas da asa dele. Pareciam um pergaminho velho, aveludadas e quentes, mas ainda estavam levemente úmidas. Centenas de veias finas pulsavam no meio delas. Novamente, a corrente de pensamentos tocou a sua mente, mas, em vez de curiosidade, ele sentiu uma fome voraz, avassaladora. Levantou-se com um suspiro. Aquele era um animal perigoso, Eragon sabia disso. Entretanto, o dragão parecia tão indefeso engatinhando na sua cama, que ele não podia ver mal algum em ficar com o animal. O dragão chorou em tom fraco, como se pedisse comida. Eragon coçou a cabeça dele rapidamente para que o bicho ficasse quietinho. Decidiu que pensaria nisso depois e saiu do quarto, fechando a porta cuidadosamente. Ao voltar com dois pedaços de carne-seca, encontrou o dragão sentado no peitoril da janela, olhando a lua. Cortou a carne em pequenos quadrados e ofereceu um ao dragão. O animal cheirou o quadrado com cuidado e, depois, lançou a cabeça para a frente como uma cobra, arrancando o pedaço de carne dos dedos dele, engolindo-o inteiro com um movimento peculiar. O dragão procurou mais comida na mão de Eragon. Alimentou o dragão, tendo o cuidado de não deixar os dedos no caminho. Quando restava apenas um pedaço de carne, a barriga do dragão estava enorme. Ele ofereceu a última porção, o dragão hesitou por um momento e, em seguida, preguiçosamente mordeu-a. Depois de comer, o animal engatinhou para o braço do rapaz e aninhou-se no peito dele. Por fim, bufou, e uma pequena nuvem de fumaça preta saiu de seu nariz. Eragon olhou maravilhado para aquilo. Exatamente quando ele percebeu que o dragão havia adormecido, um zumbido baixo saiu da garganta do animal, que vibrava. Gentilmente, levou o bicho para a cama e colocou-o perto do seu travesseiro. O dragão, de olhos fechados, passou a cauda em volta da cabeceira, satisfeito. Eragon deitou-se ao seu lado, esticando as mãos na escuridão. Eragon se deparou com um difícil dilema: se criasse o dragão, poderia se tornar um Cavaleiro. Mitos e histórias sobre os Cavaleiros eram muito apreciados, e ser um deles o colocaria automaticamente entre essas lendas. Entretanto, se o Império descobrisse o dragão, ele e a sua família seriam mortos, a não ser que se juntasse ao rei. Ninguém podia, ou iria, ajudá-los.. A solução mais simples seria matar o dragão, mas a idéia era repugnante, e ele a rejeitou. Respeitava demais os dragões para sequer considerar tal possibilidade. Além disso, o que poderia nos entregar? Pensou ele. Moramos em uma área isolada e não fizemos nada para chamar a atenção. O problema seria convencer Garrow e Roran a deixá-lo ficar com o dragão. Nenhum deles gostaria de ter um dragão por perto. Eu poderia criá-lo em segredo. Em um mês ou dois, o dragão estará grande o bastante para Garrow poder se livrar dele, mas será que ele vai aceitá-lo? E mesmo que aceite, será que conseguirei arranjar comida bastante para alimentar o dragão enquanto estiver escondido? Ele não é maior do que um gatinho, mas comeu uma mão cheia de carne! Acho que ele será capaz de caçar um dia, mas quanto tempo isso levará? Será que ele conseguirá sobreviver ao frio lá fora? Ao mesmo tempo, Eragon queria o dragão. Quanto mais pensava nisso, mais certeza tinha. Não importava como as coisas ficariam com Garrow, Eragon ia fazer de tudo para proteger o animal. Determinado, adormeceu encostado ao dragão. Quando a aurora chegou, o dragão estava sentado em cima da cabeceira da cama, como uma antiga sentinela dando as boas-vindas ao novo dia. Eragon maravilhou-se com a sua cor. Nunca havia visto um azul tão claro e firme. As escamas pareciam centenas de pequenas pedras preciosas. Notou que a marca oval na palma da sua mão, onde havia tocado o dragão, tinha um brilho prateado. Esperava manter aquilo escondido ao deixar as mãos sujas. O dragão saltou da cama e planou até o chão. Eragon pegou-o com cuidado e saiu da casa silenciosa, parando para pegar carne, algumas tiras de couro e o máximo de panos velhos que podia carregar. A fria manhã estava bonita. Uma camada fresca de neve cobria a fazenda. Sorriu quando a criaturinha, na segurança dos seus braços, olhou em volta, interessada. Atravessando os campos depressa, entrou silenciosamente na floresta escura, procurando um lugar seguro para deixar o dragão. Finalmente, achou uma sorveira, sozinha em uma pequena colina árida. Os galhos dela, dedos cinza cobertos de neve nas pontas, apontavam para o céu. Pôs o dragão perto da base do tronco e jogou o couro no chão. Com alguns movimentos habilidosos, ele fez um laço corrediço e passou-o pela cabeça do dragão, enquanto o animal explorava os pequenos montes de neve que cercavam a árvore. O couro estava gasto, mas ia agüentar. Ele viu o dragão rastejando em volta da árvore, então soltou o laço corrediço do pescoço do animal e, para evitar que o bicho se enforcasse, fez uma cinta improvisada para as pernas dele. Depois, juntou uma braçada de gravetos, fez uma pequena cabana rudimentar nos galhos cobrindo o interior com os panos velhos - e guardou a carne. Quando a árvore balançava, a neve caía em seu rosto. Pendurou mais alguns trapos na frente do abrigo para manter o calor lá dentro. Satisfeito, apreciou seu trabalho. - Chegou a hora de apresentá-lo à sua nova casa - disse, e ergueu o dragão até os galhos. O animal se contorceu, querendo se soltar, entrou na cabana, onde comeu um pedaço de carne, enrolou-se e piscou envergonhadamente para ele. - Você não terá problemas enquanto ficar aqui - explicou. O dragão piscou de novo. Certo de que o animal não o havia entendido, Eragon procurou em sua mente até sentir a consciência do dragão. Novamente, sentiu a terrível sensação de abertura, de um espaço tão grande que o pressionava como um pesado cobertor. Juntando suas forças, concentrou-se no dragão e tentou impor-lhe a idéia: Fique aqui. O dragão parou de se mexer e virou a cabeça para ele. Eragon tentou com mais força: Fique aqui. Uma sensação de entendimento sutil surgiu naquela ligação, mas Eragon tinha dúvidas se o dragão havia entendido a mensagem. Afinal, ele é apenas um animal. Desfez aquele contato com certo alívio, voltando a sentir a segurança de sua própria mente envolvendo-o. Eragon deixou a árvore, olhando de vez em quando para trás. O dragão colocou a cabeça para fora do abrigo e observou, com seus olhos grandes, Eragon distanciar-se. Depois de uma caminhada apressada para casa, entrou escondido no quarto para se livrar dos pedaços da casca do ovo. Tinha certeza de que Garrow e Roran não dariam falta do ovo, pois os dois tiraram-no da mente depois que souberam que não poderia ser vendido. Quando sua família acordou, Roran disse ter ouvido alguns barulhos à noite, mas, para o alívio de Eragon, não continuou no assunto. O entusiasmo de Eragon fez o dia passar depressa. A marca em sua mão era fácil de ser escondida, então, não levou muito tempo para deixar de se preocupar com ela. Logo, voltou à árvore, levando salsichas que havia roubado no porão. Apreensivo, ele se aproximou da árvore. Será que o dragão conseguirá sobreviver ao inverno aqui fora? Seu receio era infundado. O dragão estava empoleirado em um galho, mordiscando alguma coisa que estava entre suas patas dianteiras. Começou a chiar animadamente quando viu Eragon, que ficou feliz ao ver que o animal não havia saído da árvore, acima do alcance dos predadores maiores. Assim que Eragon colocou as salsichas na base do tronco, o dragão voou para baixo. Enquanto o bicho devorava com voracidade a comida, Eragon examinou o abrigo. Toda a carne que ele havia deixado desapareceu, mas a cabaninha estava intacta e havia tufos de penas espalhados pelo chão. Que bom! Ele pode caçar a sua própria comida. De repente, lembrou que não sabia se o dragão era ele ou ela. Eragon levantou o animal e virou-o de cabeça para baixo, ignorando os gritos de reprovação do bicho. Mas Eragon não conseguiu encontrar nenhum sinal característico. Parece que ele não vai revelar seus segredos sem um pouco de resistência. Eragon passou um longo tempo com o dragão. Ele soltou-o, colocou-o no ombro e foi explorar a floresta. As árvores carregadas de neve observavam-nos como os solenes pilares de uma grande catedral. Naquele isolamento, Eragon mostrou ao dragão o que sabia sobre a floresta, sem se importar com o fato de o animal estar entendendo ou não. O que importava mesmo era o simples ato de compartilhar aquilo com o bicho. Eragon falava com ele sem parar. O dragão olhava para baixo, para ele, com olhos brilhantes, absorvendo as palavras. Durante um tempo, Eragon apenas ficou sentado com o dragão pousado em seus braços, observando-o maravilhado, ainda impressionado com os eventos acontecidos recentemente. Eragon tomou o caminho de casa ao pôr-do-sol, consciente de que dois olhos azuis fulminavam suas costas, indignados por terem sido deixados para trás. Naquela noite, pensou em todas as coisas que poderiam acontecer com um pequeno animal desprotegido. Pensamentos sobre tempestades de neve e animais malvados atormentavam-no. Demorou horas para cair no sono. Seus sonhos eram sobre raposas e lobos negros comendo o dragão com dentes sangrentos. Como brilho do sol da manhã, Eragon saiu correndo de casa com comida e com pedaços de pano que serviriam de proteção extra para a pequena cabana. Encontrou o dragão acordado e a salvo, observando o sol nascer do alto da árvore. Agradeceu fervorosamente a todos os deuses, conhecidos e desconhecidos. O dragão desceu até o solo, quando Eragon se aproximou, e pulou nos braços dele, aconchegando-se ao peito do rapaz. O frio não havia feito mal ao bichinho, mas ele parecia assustado. Uma baforada de fumaça preta saiu de suas narinas. Eragon acariciou-o carinhosamente, sentou, encostando-se na árvore, e sussurrou baixinho. Ele ficou imóvel quando o dragão enfiou a cabeça embaixo do seu casaco. Depois de um tempo, saiu do abraço do rapaz e foi para o ombro dele. Eragon alimentou-o e então ajeitou os novos trapos em volta da cabana. Brincaram por um tempo, mas Eragon tinha de voltar logo para casa. Uma rotina tranqüila foi rapidamente estabelecida. Todas as manhãs, Eragon corria até a árvore e dava o café da manhã ao dragão antes de voltar correndo. Durante o dia, Eragon tentava acabar suas tarefas o mais rápido possível para poder visitar o dragão de novo. Tanto Garrow quanto Roran notaram seu comportamento e perguntaram por que ele passava tanto tempo fora de casa. Eragon deu de ombros e começou a se certificar de que não estava sendo seguido até a árvore. Tudo terá de ser resumido para um tamanho aceitável. Mas, antes de começarmos apropriadamente, preciso do meu cachimbo. Eragon esperou pacientemente enquanto Brom comprimia o tabaco. Ele gostava de Brom. Às vezes, o velho era irascível, mas parecia que nunca se importava de reservar um tempo a Eragon. Uma vez, o rapaz perguntou a Brom de onde ele tinha vindo, e o ancião riu e disse: - De um vilarejo bem parecido com o Carvahall, só que não tão interessante. A curiosidade aumentou, e Eragon indagou ao tio. Mas Garrow só pôde dizer a ele que Brom comprou uma casa no Carvahall há quase quinze anos e que morava lá, em paz, desde então. Brom usou uma pederneira para acender o cachimbo. Ele deu algumas baforadas e disse: - Então... Não teremos de parar, exceto pelo chá. Agora, quanto aos Cavaleiros, ou Shur'tugal, como são chamados pelos elfos. Começar por onde? Eles existiram durante incontáveis anos e, no auge do poder, dominaram por duas vezes as terras do Império. Numerosas histórias foram contadas sobre eles, na maioria, falsas. Se acreditássemos em tudo que era dito, acharíamos que eles tinham poderes parecidos com os de um semi-deus. Estudiosos dedicaram a vida à separação das fantasias dos fatos, mas duvida-se que algum deles tenha obtido sucesso. Entretanto, não será uma tarefa impossível se nos concentrarmos nas três áreas que você especificou: Como os Cavaleiros surgiram? Por que eram tão conceituados? E de onde vieram os dragões? Começarei com o último item. Eragon recostou-se e escutou a voz hipnotizante do homem. - Os dragões não tiveram um começo específico, a não ser que isso tenha acontecido junto com a criação da própria Alagaésia. E se terão um fim, isso acontecerá quando este mundo perecer, pois sofrem junto com esta terra. Eles, os anões, e alguns poucos outros são seus verdadeiros habitantes. Vivem aqui antes de todos os outros, fortes e orgulhosos em sua glória primária. O mundo deles era imutável até que os primeiros elfos atravessaram o mar com seus navios prateados. - De onde os elfos vieram? - interrompeu Eragon. - E por que são chamados de "povo justo"? Eles existem de verdade? Brom fechou a cara. - Você quer que eu responda às primeiras perguntas ou não? Isso não acontecerá se você quiser explorar todas as informações sobre as quais não tiver conhecimento. - Sinto muito - disse Eragon. Ele abaixou a cabeça e tentou parecer arrependido. - Você não sente, não - Brom disse com um certo prazer. Ele desviou o olhar para o fogo e observou- o lamber a parte de baixo da chaleira. - Se você realmente quer saber, os elfos não são lendas e são chamados de "povo justo" por serem mais amáveis do que as outras raças. Eles vieram do que chamam de Alalea, embora ninguém, apenas eles, saibam o que seja ou onde fique. "Bem", ele olhou de modo zangado por baixo de suas grossas sobrancelhas para garantir que não haveria mais interrupções, "os elfos eram uma raça orgulhosa e forte na magia”. No começo, viam os dragões como meros animais. Dessa crença despontou um erro fatal. Um jovem elfo impetuoso caçou um dragão, do modo como caçaria um gamo, e o matou. Indignados, os dragões acuaram e mataram o elfo. Infelizmente, o banho de sangue não parou por aí. Os dragões se uniram e atacaram a nação élfica. Apavorados com o terrível mal-entendido, os elfos tentaram pôr um fim às hostilidades, mas não conseguiam uma maneira de se comunicar com os dragões. "Portanto, para abreviar bastante uma série de eventos complicados, houve uma guerra muito longa e sangrenta, pela qual ambos os lados lamentaram-se depois. No começo, os elfos lutavam apenas para se defender, pois eles se opunham a aumentar o conflito. A ferocidade dos dragões, no entanto, forçou-os a atacar para garantir a própria sobrevivência. Isso durou cinco anos e teria continuado por muito mais tempo se um elfo chamado Eragon não tivesse achado um ovo de dragão." Eragon piscou surpreso. "Ah, já vi que você não conhecia o seu xará", disse Brom. - Não. - A chaleira soltou um assovio estridente. “Por que eu ganhei o nome de um elfo?” - Então, você vai achar isso muito mais interessante - disse Brom. Ele tirou a chaleira de cima do fogo com um gancho e colocou a água fervente em duas canecas. Ao dar uma a Eragon, alertou: - Essas folhas não precisam ficar em infusão por muito tempo. É melhor você beber logo antes que fique forte demais. Eragon tentou dar um gole, mas queimou a língua. Brom pôs a sua caneca de lado e continuou a fumar o cachimbo. - Ninguém sabe por que aquele ovo foi abandonado. Alguns dizem que os pais foram mortos em um ataque dos elfos. Outros acreditam que os dragões deixaram o ovo lá de propósito. Seja como for, Eragon enxergou o valor de criar um dragão amigo. Cuidou do animal em segredo e, segundo o costume da língua antiga, chamou-o de Bid'Daum. Quando Bid'Daum atingiu um bom tamanho, eles viajaram juntos entre os dragões e os convenceram a viver em paz com os elfos. Tratados foram feitos entre as duas raças. Para garantir que nunca haveria guerra de novo, decidiram que era necessário criar os Cavaleiros. "No começo, os Cavaleiros deviam servir meramente como um meio de comunicação entre os elfos e os dragões. Contudo, com o passar do tempo, o valor deles foi reconhecido, e eles ganharam mais autorida- de. Finalmente, adotaram a ilha Vroengard como lar e lá construíram uma cidade, Dorú Areaba. Antes que Galbatorix os depusesse, os Cavaleiros tinham mais poder do que todos os reis na Alagaésia. Agora, acredito ter respondido a duas das suas perguntas”. - Respondeu - disse Eragon distraidamente. Parecia uma coincidência incrível ele ter recebido o nome do primeiro Cavaleiro. Por algum motivo, sentia que seu nome não era mais o mesmo. - O que quer dizer Eragon? - Eu não sei - respondeu Brom. - É muito antigo. Duvido que alguém lembre, exceto os elfos, e a sorte terá sorrido para você antes de conseguir falar com um deles. Porém, é um bom nome de se ter, você devia se orgulhar. Nem todos têm um nome tão honroso. Eragon tentou tirar essa questão da mente e se concentrou no que estava aprendendo com Brom. Mas ainda faltava alguma coisa. - Eu não entendo. Onde nós estávamos quando os Cavaleiros foram criados? - Nós? - perguntou Brom, erguendo uma sobrancelha. - O senhor sabe, todos nós. - Eragon gesticulou com as mãos indistintamente. - Os humanos em geral. Brom riu. - Nós não somos mais nativos desta terra do que os elfos. Nossos ancestrais precisaram de trezentos anos para chegar aqui e se juntarem aos Cavaleiros. - Não pode ser - protestou Eragon. - Nós sempre vivemos no vale Palancar. - Isso é um fato para algumas gerações, mas, antes disso, não. Isso nem se aplica a você - disse Brom gentilmente. - Embora você se considere parte da família de Garrow, e com razão, o seu pai não era daqui. Pode perguntar por aí e descobrirá muitas pessoas que não estão aqui há muito tempo. Este vale é antigo, mas nem sempre nos pertenceu. Eragon olhou com uma expressão zangada e deu um gole no chá, que ainda estava quente o bastante para queimar sua garganta. Aquele era seu lar, apesar de quem fosse o seu pai! - O que aconteceu com os anões depois que os Cavaleiros foram destruídos? - Ninguém sabe ao certo. Eles lutaram com os Cavaleiros nas primeiras batalhas, mas, quando ficou claro que Galbatorix venceria, fecharam todas as entradas dos túneis e desapareceram no subsolo. Pelo que sei, nenhum anão foi visto desde então. - E os dragões? - perguntou ele. - O que houve com eles? Com certeza, não foram todos mortos. Brom respondeu pesaroso: - Esse é o maior mistério na Alagaésia hoje em dia: quantos dragões sobreviveram ao massacre de Galbatorix? Ele poupou os que concordaram em servi-lo, mas só os dragões dos Renegados participariam da loucura dele. Se quaisquer dragões além de Shruikan ainda estão vivos, devem estar escondidos para não serem nunca achados pelo Império. Então, de onde o meu dragão veio? Pensou Eragon. - Os urgals estavam aqui quando os elfos vieram para a Alagaésia? - perguntou ele. - Não. Eles seguiram os elfos, cruzando o mar, como carrapatos atrás de sangue. Eles foram uma das razões por que os Cavaleiros ganharam valor por sua proeza na batalha e por sua capacidade de manter a paz... Muita coisa pode ser aprendida com essa história. É uma pena o rei fazer dela um tópico delicado - lamentou Brom. - É, ouvi a sua história na última vez em que estive na cidade. - Como história! - berrou Brom. Os olhos dele faiscavam. - Se aquilo foi apenas uma história, então os rumores da minha morte são verdadeiros, e você está falando com um fantasma! Respeite o passado, você nunca sabe como ele poderá afetá-lo. Eragon esperou a expressão no rosto de Brom melhorar antes de ousar perguntar: - Qual era o tamanho dos dragões? Uma nuvem escura de fumaça rodopiava em cima de Brom como uma tempestade em miniatura. - Eram maiores do que uma casa. Até mesmo os menores tinham asas cuja envergadura passava de trinta metros. Eles nunca paravam de crescer. Alguns dos mais antigos, antes do Império matá-los, podiam se passar por grandes colinas. O medo tomou conta de Eragon. Como conseguirei esconder meu dragão daqui a alguns anos? Ele ficou com raiva, mas manteve a voz calma. - Quando chegavam à idade adulta? - Bem - disse Brom, coçando o queixo, - eles só conseguiam cuspir fogo depois dos cinco ou seis meses de idade, que era a época em que eles podiam acasalar. Quanto mais velho um dragão fosse, maior era a chama que podia cuspir. Alguns deles podiam manter a chama acesa durante vários minutos. - Brom fez um anel de fumaça e observou-o flutuar até o teto. - Ouvi dizer que as escamas deles brilhavam como pedras preciosas. . Brom inclinou-se para a frente e murmurou: - Você ouviu direito. Eles tinham todas as cores e tonalidades. Conta-se que um grupo deles parecia um arco-íris vivo, constantemente se movimentando e brilhando. Mas quem lhe contou isso? Eragon ficou paralisado por um segundo e mentiu: - Um mercador. - Como se chamava? - perguntou Brom. Suas sobrancelhas emaranhadas encontraram-se, formando uma grossa linha branca, as rugas na testa se aprofundavam. Ignorado, o cachimbo se apagou. Eragon fingiu pensar. - Sei lá. Ele estava conversando na taverna do Morn, mas não descobri quem era. - Gostaria que tivesse descoberto - resmungou Brom. - Ele também disse que um Cavaleiro podia ler os pensamentos do seu dragão - Eragon disse rapidamente, esperando que o mercador fictício o protegeria de qualquer suspeita. Os olhos de Brom se estreitaram. Lentamente, ele pegou a pederneira e produziu uma faísca. Uma fumaça subiu, e ele deu um longo trago em seu cachimbo, exalando bem devagar. Em um tom de voz sem emoção, ele disse: - O mercador estava errado. Isso não está em nenhuma das histórias, e eu conheço todas elas. Ele disse mais alguma coisa? Eragon deu de ombros. - Não. - Brom estava interessado demais no mercador para ele continuar mentindo. Naturalmente, ele perguntou: - Os dragões vivem muito tempo? Brom não respondeu imediatamente. Afundou o queixo no peito enquanto, pensativo, seus dedos apertavam o cachimbo. A luz refletia em seu anel. - Desculpe, meus pensamentos estavam longe. Sim, um dragão vive durante um bom tempo, para sempre, de fato, viverá enquanto não for morto ou até que o seu Cavaleiro morra. - Como se tem certeza disso? - retrucou Eragon. - Se os dragões morrem quando seus Cavaleiros morrem, então eles só vivem uns sessenta ou setenta anos. O senhor disse durante a sua... narrativa que os Cavaleiros viveram centenas de anos, mas isso é impossível. - O pensamento de viver mais do que sua família e seus amigos o incomodava. Um calmo sorriso mexeu os lábios de Brom, enquanto ele falou com sagacidade: - O que é possível é algo subjetivo. Alguns dizem que ninguém sobrevive a uma viagem pela Espinha, mas você sobreviveu. É uma questão de perspectiva. Você tem que ser muito sábio para saber tanto com tão pouca idade. - Eragon ficou com o rosto corado, e o velho homem riu. - Não fique zangado. Não se pode esperar que você saiba essas coisas. Você esquece que os dragões eram mágicos, eles afetavam tudo em volta deles de um modo estranho. Os Cavaleiros eram as pessoas mais próximas deles e, como tal, eram os que mais vivenciavam isso. O efeito colateral mais comum era ter a vida prolongada. Nosso rei já viveu tempo o bastante para provar isso, mas as pessoas atribuem sua vida longa aos seus poderes mágicos. Também havia outras mudanças menos notáveis. Todos os Cavaleiros tinham o corpo mais forte, a mente mais perspicaz e a visão mais aguçada do que os homens normais. Junto com tudo isso, um Cavaleiro humano adquiria, lentamente, orelhas pontudas, embora elas nunca fossem tão proeminentes quanto as de um elfo. Ele continuou a repassar a lista, mas o dragão recusava todos os nomes que ele sugeria. O dragão parecia rir de algo que Eragon não entendia, mas o rapaz ignorou e continuou a sugerir nomes. - Havia Ingothold, que matou a... - Uma revelação fez que ele parasse. - Já sei qual é o problema! Eu só falei nomes masculinos e você é um dragão fêmea! Isso. O dragão dobrou as asas, satisfeito. Agora que sabia o que procurar, Eragon pensou em mais uma meia dúzia de nomes. Ele pensou em Miremel, mas não ficou bom, pois, afinal, esse era o nome de um dragão marrom. Otelia e Lenora também foram descartados. Ele já estava prestes a desistir quando se lembrou do último nome que Brom havia sussurrado. Eragon gostou, mas será que o dragão gostaria? Ele perguntou: - Você é Saphira? - Ela olhou para ele com olhos inteligentes. No fundo da mente, sentiu a satisfação dela. Sou. Algo disparou em sua mente, e a voz dela ecoou, como se viesse de uma grande distância. Ele deu um sorriso largo como resposta. Saphira começou a zumbir. A FUTURA MILLER O sol já havia se posto quando o jantar foi servido. Um vento forte uivava lá fora, estremecendo a casa. Eragon olhava para Roran atentamente, esperando o inevitável. Finalmente: - Eu recebi uma oferta de emprego em um moinho em Therinsford... Que pretendo aceitar. Garrow acabou de mastigar o conteúdo de sua boca cheia com uma lentidão proposital e pôs o garfo na mesa. Ele se recostou na cadeira, cruzou os dedos atrás da cabeça e pronunciou uma única pergunta seca: - Por quê? Roran explicava enquanto Eragon pegava a sua comida distraidamente. - Entendo. - Foi o único comentário de Garrow. Ele ficou em silêncio e olhou para o teto. Ninguém se moveu enquanto esperavam a resposta. - Bem, quando você vai partir? - O quê? - perguntou Roran. Garrow inclinou-se para a frente com um brilho nos olhos. - Você pensou que eu o impediria? Eu já esperava que você casasse logo. Será bom ver esta família crescendo novamente. Katrina será afortunada por ter você. - Uma expressão de grande surpresa tomou conta do rosto de Roran. Depois, ele deu um grande sorriso aliviado. - Então, quando você vai partir? - perguntou Garrow. Roran recuperou a voz. - Quando Dempton voltar para pegar as peças para o moinho. Garrow concordou com a cabeça. - E isso será em... - Duas semanas. - Ótimo. Assim teremos tempo para nos preparar. Será diferente ter a casa só para nós. Mas se tudo der certo, não será assim por muito tempo. - Ele olhou por cima da mesa e perguntou: - Eragon, você sabia disso? Eragon deu de ombros pesaroso. - Até hoje, não... É uma loucura. Garrow passou a mão em seu rosto. - Esse é o curso natural da vida. - Ele se levantou da cadeira. - Tudo vai dar certo, o tempo acertará tudo. Mas, por enquanto, vamos lavar a louça. - Eragon e Roran ajudaram-no em silêncio. Os dias seguintes foram difíceis. O humor de Eragon não foi dos melhores. Exceto pelas respostas curtas para perguntas diretas, ele não falava com ninguém. Havia pequenos lembretes da partida de Roran por toda parte. Garrow fazia uma mala para ele, havia coisas faltando nas paredes e um vazio estranho que tomava conta da casa. Fazia quase uma semana que ele havia percebido que a distância entre ele e Roran havia aumentado. Quando eles se falavam, as palavras não saíam facilmente. Sentiam-se pouco à vontade. Saphira era um bálsamo para a frustração de Eragon. Ele podia conversar abertamente com ela. Suas emoções estavam completamente abertas para a mente dela, e ela o entendia melhor do que ninguém. Durante as semanas antes da partida de Roran, ela passou por outro ímpeto de crescimento. Saphira ganhou trinta e um centímetros nos ombros, deixando-a mais alta do que Eragon. Ele descobriu que a pequena depressão entre o pescoço e os ombros dela era um lugar perfeito para se sentar. Ele, freqüentemente, sentava ali à tarde, acariciando o pescoço dela enquanto explicava o significado de várias palavras. Logo, ela entendia tudo o que ele dizia e, com freqüência, fazia comentários. Para Eragon, essa parte da vida era muito boa. Saphira era tão real e tão complexa quanto qualquer pessoa. A personalidade dela era eclética e, às vezes, completamente diferente, entretanto os dois se entendiam em um nível bem profundo. As ações e os pensamentos dela constantemente revelavam novos aspectos de sua índole. Uma vez, pegou uma águia e, em vez de devorá-la, a soltou, dizendo: Nenhuma caçadora dos céus deve acabar como uma presa. É melhor morrer voando do que presa no chão. Os planos de Eragon de deixar sua família ver Saphira foram dissipados pela decisão de Roran e pelos conselhos da própria Saphira para ter cautela. Ela estava relutante quanto a ser vista, e ele, em parte por egoísmo, concordou. No momento em que a existência dela fosse divulgada, sabia que gritos, acusações e medo seriam direcionados a ele... Então, Eragon deixou isso para outra hora. Decidiu que esperaria um sinal que indicasse o momento certo. Na noite anterior à partida de Roran, Eragon foi falar com ele. Aproximou-se lentamente pelo corredor até a porta aberta do quarto de Roran. Uma lamparina de óleo estava em cima da mesa-de- cabeceira, pintando as paredes com uma luz quente e oscilante. A cabeceira da cama projetava compridas sombras nas prateleiras vazias, chegando até o teto. Roran, de olhos ocultos pelas sombras e com os músculos da nuca tensos, enrolava cobertores em volta de suas roupas e de seus pertences. Ele fez urna pausa e, depois, pegou uma coisa no travesseiro e ficou jogando-a para cima e para baixo com a mão. Era uma pedra polida que Eragon lhe dera há vários anos. Roran começou a colocá-la na mala, mas depois parou e colocou-a na prateleira. Um nó se formou na garganta de Eragon e ele saiu. ESTRANHOS NO CARVAHALL O café estava frio, mas o chá estava quente. O gelo por dentro das janelas havia se derretido com o fogo da manhã, molhando o piso de madeira, marcando-o com poças escuras. Eragon olhou para Garrow e Roran ao lado do fogão e lembrou que essa seria a última vez que ele veria todos juntos durante vários meses. Roran estava sentado em uma cadeira, amarrando as botas. Sua bolsa cheia estava no chão, perto dele. Garrow estava em pé entre eles, com as mãos enfiadas bem fundo nos bolsos. A camisa dele pendia bem solta, sua pele demonstrava que estava tenso. Apesar da insistência do jovem, ele se recusou a ir com eles. Quando foi pressionado a dizer o porquê, apenas explicou que seria melhor assim. - Você já pegou tudo? - perguntou Garrow a Roran. - Já. Ele concordou com a cabeça e pegou uma bolsinha de dentro do bolso. As moedas fizeram barulho quando deu a bolsa a Roran. - Vim economizando isto para você. Não é muito, mas se quiser comprar alguma besteira, será o suficiente. - Obrigado, mas não pretendo gastar meu dinheiro com besteiras - disse Roran. - Faça o que quiser, o dinheiro é seu - afirmou Garrow. - Não tenho mais nada para dar a você, a não ser a minha bênção de pai. Você pode aceitá-la ou não, mas ela pode valer alguma coisa. A voz de Roran estava embargada por causa da emoção. - Eu ficaria honrado de recebê-la. - Então, receba-a e vá em paz - disse Garrow e beijou-o na testa. Ele se virou e acrescentou com uma voz mais alta: - Não pense que esqueci de você, Eragon. Tenho algumas palavras para dizer a vocês dois. Chegou a hora de dizê-las, pois vocês precisarão enfrentar o mundo. Prestem atenção, e elas serão muito úteis. Garrow olhou com severidade para os dois. - Primeiro: nunca deixem ninguém dominar seu corpo ou sua mente. Tenham cuidado especial para que seus pensamentos permaneçam livres. Um indivíduo pode ser livre, contudo pode estar mais preso do que um escravo. Dêem seus ouvidos às pessoas, mas nunca o coração. Demonstrem respeito por aqueles que estão no poder, mas nunca os sigam cegamente. Julguem com lógica e razão, mas nunca façam comentários. “Nunca considerem alguém como superior a vocês, não importa que posto ou situação eles tenham na vida. Tratem todos com justiça, ou poderão querer se vingar. Tenham cautela com o dinheiro. Atenham-se às suas crenças, e os outros ouvirão. - Garrow continuou em um ritmo mais lento. - Quanto aos assuntos do amor... O meu único conselho é que vocês sejam sinceros. É a ferramenta mais poderosa para abrir um coração ou ganhar um perdão. É tudo o que eu tinha a dizer”. Ele parecia estar um pouco constrangido com seu discurso. Pegou a bolsa de Roran do chão. - Agora, você deve ir. O alvorecer se aproxima, e Dempton estará esperando. Roran colocou a bolsa no ombro e abraçou Garrow. - Voltarei assim que puder - disse. - Que bom! - respondeu Garrow. - Mas, agora, vá e não se preocupe conosco. Eles se separaram relutantes. Eragon e Roran saíram, se viraram e acenaram. Garrow ergueu sua mão magra, seus olhos estavam tristes, ficou observando enquanto eles caminhavam com dificuldade até a estrada. Depois de um longo momento, fechou a porta. Quando o som desse ato correu pelo ar da manhã, Roran parou. Eragon olhou para trás e examinou o campo. Seus olhos pararam nas construções solitárias pequenas. Pareciam frágeis. Um fio fino de fumaça subia e ele era a única prova de que aquela fazenda tomada pela neve estava habitada. - Esse é o nosso mundo - acrescentou Roran melancolicamente. Eragon tremeu impaciente e resmungou: - E é muito bom também. Roran concordou com a cabeça, esticou os ombros e seguiu em direção a seu novo futuro. A casa saiu de vista quando eles desceram a colina. “Isso. Tenho de ir para casa! Preciso chegar lá antes deles”. - Acho que o senhor tem razão. Talvez, eu esteja ficando doente. - Então, a sua casa é o melhor lugar para você ficar agora. É uma longa caminhada, mas tenho certeza de que você estará melhor quando chegar. Deixe-me acompanhá-lo até a estrada. - Eragon não protestou quando Brom pegou seu braço e levou-o para longe em um passo apressado. O cajado de Brom afundava na neve conforme passavam pelas casas. - Por que o senhor estava me procurando? Brom deu de ombros. - Por pura curiosidade. Soube que você estava na cidade e achei que poderia ter lembrado o nome daquele mercador. Mercador? O que ele está falando? Eragon olhou-o de modo inexpressivo. A perturbação dele chamou a atenção dos olhos investigativos de Brom. - Não - disse ele e depois tentou se redimir. - Temo que ainda não lembre. Brom suspirou de forma rude, como se algo tivesse sido confirmado, e esfregou seu nariz curvado. - Bem, então... Se você lembrar, vá me contar. Estou muito interessado nesse mercador que diz saber tanto sobre dragões. - Eragon concordou com a cabeça, com um ar distraído. Caminharam em silêncio até a estrada, e Brom disse: - Vá depressa para casa. Não acho uma boa idéia demorar-se no caminho. - Ele esticou uma das mãos retorcidas. Eragon apertou-a, mas quando ele ia soltando-a, algo na mão de Brom prendeu na luva dele, puxando-a. A luva caiu no chão. O velho pegou-a. - Fui desajeitado - desculpou-se e entregou-a ao rapaz. Quando Eragon pegou a luva, os fortes dedos de Brom agarraram seu pulso e viraram-no rapidamente. A palma da mão do rapaz ficou voltada para cima por alguns instantes, revelando a marca prateada. Os olhos de Brom brilharam, mas ele permitiu que Eragon puxasse a mão para trás e que a enfiasse na luva. - Até logo - disse Eragon forçadamente, perturbado, e saiu depressa pela estrada. Atrás dele, ouviu Brom assoviando uma música alegre. O VÔO DO DESTINO A mente de Eragon agitava-se enquanto ele se apressava no caminho. Corria o mais rápido que podia, recusando-se a parar até mesmo quando sua respiração ficava difícil, provocando grandes arfadas. Enquanto vencia a estrada fria, tentou fazer um contato mental com Saphira, mas ela ainda estava longe demais. Pensou no que falaria para Garrow. Agora, não havia escolha: teria de revelar a existência de Saphira. Eragon chegou em casa, ofegante e com o coração disparado. Garrow estava perto do galpão com os cavalos. Eragon hesitou. Será que devo falar com ele agora? Ele não acreditará, a não ser que Saphira esteja aqui. É melhor eu achá-la primeiro. Ele contornou a fazenda e entrou na floresta. Saphira!, gritou ele com o pensamento. Estou indo, - foi a fraca resposta. Por essas palavras, ele percebeu a apreensão dela. Esperou impaciente, embora não tenha demorado muito para que o som das asas batendo enchesse o ar. Aterrissou em meio a uma nuvem de fumaça. - O que houve? - Perguntou ela. Ele tocou-a no ombro e fechou os olhos. Acalmando a mente, contou a ela rapidamente o que havia acontecido. Quando falou nos estranhos, Saphira recuou. Ela se ergueu e soltou um rugido ensurdecedor e depois chicoteou com a cauda acima de sua cabeça. Ele, surpreso, arrastou-se para trás, abaixando-se, enquanto a cauda dela atingia um monte de neve. Sede de sangue e medo emanaram dela em grandes ondas atordoantes. Fogo! Inimigos! Morte! Assassinos! Qual é o problema? - Ele pôs todas as suas forças nas palavras, mas uma muralha de ferro cercava a mente de Saphira, isolando seus pensamentos. Ela soltou outro rugido e sulcou a terra com as suas garras, rasgando o chão congelado. Pare! Garrow vai ouvir! Juramentos quebrados, almas assassinadas, ovos quebrados! Sangue por toda parte. Assassinos! De modo frenético, ele bloqueou as emoções de Saphira e ficou observando sua cauda. Quando ela passou por ele, Eragon se jogou para o lado e agarrou um dos espinhos nas costas. Segurando com força, ele puxou a si mesmo até a pequena cavidade que havia na base do pescoço dela e se agarrou com mais força quando ela se levantou de novo. - Chega, Saphira! - gritou bem alto. O fluxo de pensamentos dela parou abruptamente. Ele passou a mão em cima das escamas. - Tudo vai dar certo. - Ela se agachou, e as suas asas ficaram para cima. Elas ficaram paradas por um instante, mas depois se abaixaram, enquanto ela se lançava para o céu. À medida que Eragon gritava, o chão ficava distante, e eles subiam mais alto do que as árvores. A turbulência do ar batia nele, deixando-o sem fôlego para falar. Saphira ignorou o pavor dele e inclinou-se em direção à Espinha. Lá embaixo, ele observou a fazenda e o rio Anora. Seu estômago ficou embrulhado. Apertou os braços em volta do pescoço de Saphira e se concentrou nas escamas que estavam na frente do nariz dele, tentando não vomitar enquanto ela subia cada vez mais. Quando ela nivelou o vôo, ele ganhou coragem para olhar em volta. O ar estava tão frio que gelo se formou em seus cílios. Chegaram às montanhas muito mais rápido do que poderia imaginar. Do ar, os picos pareciam dentes gigantes, afiados como navalhas, esperando para cortá-los em fatias. Saphira deu uma guinada inesperada, e Eragon vomitou sobre a lateral do corpo dela. Ele lambeu os lábios, sentindo o gosto de bílis, e pressionou a cabeça contra o pescoço do dragão. Precisamos voltar, - implorou. - Os estranhos estão indo para a fazenda. Garrow precisa ser avisado. Faça a volta! - Não houve resposta. Tentou entrar na mente dela, mas estava bloqueada por uma barreira de medo e raiva. Determinado a fazê-la dar a volta, ele, de modo assustador, penetrou em sua armadura mental. Fez pressão nos pontos mais fracos, minou as partes mais fortes e lutou para fazê-la ouvir, mas não obteve nenhum resultado. Logo, as montanhas cercaram-nos, formando gigantescas paredes brancas quebradas por precipícios de granito. Havia geleiras azuis entre os picos, como rios congelados. Vales e ravinas compridas se abriam no solo. Ele ouvia os gritos apavorados dos pássaros lá embaixo quando Saphira aparecia. E viu um rebanho de cabritos lanosos pulando de pedra em pedra em um penhasco. Eragon era açoitado pelos fortes golpes de ar produzidos pelas asas de Saphira, e sempre que ela mexia o pescoço, ele era jogado de um lado para o outro. Ela parecia incansável. Temia que ela fosse voar durante a noite toda. Finalmente, quando ficou escuro, ela se inclinou, mergulhando devagar. Ele olhou para a frente e viu que estavam na direção de uma pequena clareira em um vale. Saphira desceu voando em espiral, planando prazerosamente sobre as copas das árvores. Ela se jogou para trás quando o chão se aproximou, enchendo as asas com ar, aterrissando nas patas traseiras. Seus poderosos músculos formaram pequenas ondas quando absorveram o impacto da descida. Ela se apoiou nas quatro patas e deu um pulo para não perder o equilíbrio. Eragon pulou sem esperar que dobrasse as asas. Ao bater no chão, seus joelhos cederam, e ele caiu de rosto na neve. Ele arfava, enquanto uma dor alucinante lacerava suas pernas, enchendo os olhos de lágrimas. Os músculos, que estavam com câimbras por ter se agarrado durante tanto tempo, tremiam violentamente. Ele rolou de costas, tremendo, e esticou seus membros o máximo que podia. Depois, forçou a si mesmo a olhar para baixo. Duas grandes manchas escureceram a calça de lã na parte interior das coxas. Ele tocou o tecido. Estava molhado. Assustado, tirou a calça e fez uma careta. As pernas, na parte interna, estavam esfoladas e cheias de sangue. Não havia mais pele, arrancada pelas duras escamas de Saphira. Ele, cuidadosamente, tocou as lesões e ficou horrorizado. O frio o castigava enquanto vestia a calça, e gritou quando ela raspou nas feridas sensíveis. Tentou ficar em pé, mas suas pernas não suportaram seu peso. A noite, que chegava rápido, escureceu a área que o cercava. As montanhas sombreadas não eram familiares. Estou na Espinha. Não sei onde, no meio do inverno, com um dragão enlouquecido e sem poder andar ou achar abrigo. A noite está caindo. Preciso voltar à fazenda amanhã. E o único modo de fazer isso é voando, o que eu não agüento mais fazer. Ele respirou fundo. Oh, como eu queria que Saphira pudesse cuspir fogo. Ele virou a cabeça e a viu perto dele, agachada bem baixo no chão. Ele pôs a mão no lado do corpo dela e sentiu que ela tremia. A barreira na mente dela havia desaparecido. Sem ela, o medo de Saphira o queimou. Ele apertou-a e, lentamente, acalmou-a com imagens tranqüilizantes. Por que os estranhos assustam você? Assassinos, - sussurrou ela. Garrow está em perigo, e você me seqüestrou nessa viagem ridícula! Você não é capaz de me proteger?- Ela rosnou profundamente e bateu as mandíbulas com força. - Ah, mas se você acha que é capaz, por que fugiu? A morte é um veneno. Ele se apoiou em um cotovelo e reprimiu a frustração. Saphira, veja onde estamos! O sol se pôs, e o seu vôo tirou a pele das minhas pernas com tanta facilidade quanto eu descamaria um peixe. Era isso que você queria? Não. Então, por que fez isso? - Perguntou. Através do elo que tinha com Saphira, Eragon sentiu o arrependimento dela pela dor que ele sentia, mas não quanto às suas ações. A baixa temperatura adormeceu suas pernas. Embora o frio tivesse aplacado a dor, ele sabia que sua condição não era boa. Ele mudou de assunto. - Vou congelar a não ser que você faça um abrigo ou um buraco onde eu possa me manter aquecido. Até mesmo uma pilha de galhos e ramos de pinheiro já serve. Ela parecia estar aliviada por ele ter parado de interrogá-la. Não há necessidade disso. Vou me enrolar ao seu redor e cobri-lo com as minhas asas. O fogo dentro de mim manterá o frio longe. Eragon deixou a cabeça cair para trás, batendo no chão. Tudo bem, mas raspe a neve do chão. Ficará mais confortável. - Em resposta, Saphira raspou um monte de neve com a cauda, limpando o lugar com um poderoso golpe. Ela varreu a área de novo para remover os poucos e últimos centímetros de neve endurecida. Ele olhou para a terra exposta com aversão. Não posso andar até lá. Você terá de me ajudar. A cabeça dela, maior do que o tronco dele, passou por cima do rapaz e foi repousar ao seu lado. Ele olhou fixamente para os grandes olhos cor de safira e segurou um dos seus espinhos cor de marfim. Saphira levantou a cabeça e arrastou-o lentamente até a área limpa. Devagar. Devagar. Viu estrelas quando passou por cima de uma pedra, mas suportou firme. Depois que ele a soltou, Saphira deitou-se de lado, expondo seu abdômen quente. Ele se encolheu, encostando-se nas escamas macias do lado de baixo. Ela esticou a asa direita sobre ele, deixando-o em completa escuridão, formando uma tenda viva. Quase que imediatamente, o ar começou a perder a sua frigidez. Enfiou os braços dentro do casaco e enrolou as mangas vazias em volta do pescoço. Pela primeira vez, notou que a fome corroía seu estômago. Mas isso não o distraiu de sua maior preocupação: será que conseguiria voltar à fazenda antes que os estranhos chegassem? E se não conseguisse, o que aconteceria? Mesmo que eu me esforce para montar em Saphira de novo, só conseguiremos chegar lá pelo meio da tarde. Os estranhos podem chegar à fazenda muito antes disso. Ele fechou os olhos e sentiu uma única lágrima escorrendo em seu rosto. O que eu fiz? FIM DA INOCÊNCIA Quando Eragon abriu os olhos na manhã seguinte, pensou que o céu havia caído. Uma superfície lisa e azul esticava-se sobre sua cabeça e inclinava-se até o chão. Ainda meio adormecido, ergueu a mão titubeante e sentiu uma fina membrana com os dedos. Precisou de um longo minuto para perceber o que estava olhando. Virou o pescoço levemente e olhou fixamente para as ancas escamosas onde sua cabeça repousava. Lentamente, tirou as pernas da sua posição fetal, fazendo as cascas dos machucados se romperem. A dor estava um pouco menos intensa do que ontem, mas ele se encolheu quando pensou em andar. Uma fome lancinante lembrou-o de suas refeições perdidas. Conseguiu juntar energia para se mexer e bateu de modo fraco na lateral do corpo de Saphira. - Ei! Acorde! - gritou. Ela se virou e levantou a asa, permitindo a entrada da luz do sol. Eragon apertou os olhos quando a neve cegou-o momentaneamente. A seu lado, Saphira espreguiçou-se como um gato e bocejou, exibindo fileiras de dentes brancos. Quando os olhos de Eragon se adaptaram à luz, ele examinou o lugar onde estavam. Montanhas imponentes e desconhecidas cercavam- nos, projetando sombras compridas na clareira. Perto dali, viu uma trilha cortando a neve em direção à floresta de onde vinha o gorgolejo abafado de um riacho. Saphira mentalmente mostrou a ele uma imagem de Garrow pendurado embaixo dela enquanto ela voava. Você consegue levantar nós dois? Eu tenho que conseguir. Eragon escavou em meio aos destroços até achar uma prancha de madeira e algumas tiras de couro. Pediu a Saphira que fizesse um buraco em cada uma das extremidades da prancha usando uma de suas garras; passou uma tira de couro por cada um dos buracos e as amarrou em suas patas dianteiras. Depois de verificar se os nós estavam firmes, ele rolou Garrow para cima da prancha e prendeu-o bem firme. Ao fazer isso, um pedaço de pano preto caiu da mão do tio. E era igual às roupas dos estranhos. Com raiva, enfiou o pedaço de pano no bolso e montou em Saphira, fechando os olhos quando seu corpo se assentava em meio a uma forte onda de dor. Agora! Ela pulou para cima, suas pernas traseiras afundaram no chão. Suas asas rasgavam o ar enquanto decolava lentamente. Tendões esticavam-se e destacavam-se enquanto ela lutava contra a gravidade. Por um longo e doloroso segundo, nada aconteceu, mas ela se jogou para a frente com força, e eles subiram mais alto. Assim que estavam em cima da floresta, Eragon disse a ela: Siga a estrada. Assim, você terá espaço se precisar pousar. Eu posso ser vista. Isso não tem mais importância! Ela não argumentou mais, visto que deu uma guinada na direção da estrada e seguiu para o Carvahall. Garrow balançou com força embaixo deles. Só as delgadas tiras de couro impediram que ele caísse. O peso extra deixou Saphira mais lenta. Logo, a cabeça se curvava e havia espuma em sua boca. Lutou para continuar, mas eles ainda estavam a quase cinco quilômetros do Carvahall quando fechou as asas e mergulhou na direção da estrada. As patas traseiras tocaram o chão, produzindo uma chuva de neve. Eragon caiu de cima dela, de lado, pesadamente para evitar machucar ainda mais as pernas. Fez um grande esforço para ficar em pé e foi desamarrar as tiras de couro das patas de Saphira. A forte respiração ofegante do dragão enchia o ar. Ache um lugar seguro para descansar, - disse ele. - Não sei por quanto tempo ficarei longe, então você terá de se cuidar por um tempo. Eu esperarei, - disse ela. Ele cerrou os dentes e começou a arrastar Garrow pela estrada. Os primeiros passos provocaram uma explosão de agonia pelo seu corpo. - Não consigo fazer isso! - berrou ele para o alto e depois deu mais alguns passos. Fechou a boca com um rosnado. Eragon olhava para o chão entre seus pés enquanto se forçava a manter um passo constante. Foi uma luta contra seu corpo debilitado, uma luta que ele se recusava a perder. Os minutos arrastavam-se em uma velocidade agonizante. Cada metro vencido parecia ser muitas vezes maior. Ansioso imaginava se Carvahall ainda existia ou se os estranhos também a tinham incendiado. Depois de um tempo, em meio a uma onda de dor, ouviu gritos e olhou para cima. Brom corria em sua direção, de olhos arregalados, cabelos despenteados e com um lado da cabeça repleto de sangue seco. Agitava os braços freneticamente antes de largar seu cajado e agarrar os braços de Eragon, falando algo em voz alta. Eragon piscou sem entender nada. Sem dar nenhum aviso, o chão aproximou-se dele rapidamente. Sentiu o gosto de sangue e desmaiou. VIGÍLIA DE MORTE Sonhos perturbavam a mente de Eragon, reproduzindo-se e vivendo segundo suas próprias leis. Ele observava um grupo de pessoas, montadas em cavalos pomposos, que se aproximavam de um rio solitário. Muitas tinham cabelos prateados e portavam grandes lanças. Um navio belo e estranho esperava por elas, sob o luar. As figuras embarcaram lentamente no navio, e duas delas, mais altas do que as outras, andavam de braços dados. Seus rostos estavam encobertos por capuzes, mas ele podia distinguir que uma delas era uma mulher. Ficaram em pé no convés do navio e olharam para a terra. Um homem estava sozinho em uma praia coberta de cascalhos, o único que não embarcou no navio. Jogou a cabeça para trás e soltou um longo grito de dor. Conforme ficava mais fraco, o navio descia o rio, sem brisa ou sem a ajuda dos remos, indo em direção à terra plana e vazia. A visão ficou embaçada, mas pouco antes de desaparecer, Eragon viu de relance dois dragões no céu. Eragon percebeu os rangidos pela primeira vez: para a frente e para trás, para a frente e para trás. O som persistente o fez abrir os olhos e ver a parte de baixo de um telhado feito com finas telhas de madeira. Um cobertor pesado estava sobre ele, escondendo sua nudez. Alguém colocou ataduras em suas pernas e um pedaço de pano limpo em volta das articulações dos seus dedos. Ele encontrava-se em uma cabana de um cômodo. Um pilão estava em uma mesa com tigelas e plantas. Fileiras de ervas secas pendiam nas paredes e enchiam o ar com fortes aromas naturais. Chamas crepitavam dentro de uma lareira, na frente da qual estava sentada uma mulher rotunda em uma cadeira de balanço de vime - a curandeira da cidade, Gertrude. A cabeça dela estava caída para a frente; seus olhos, fechados. Um par de agulhas de tricô e uma bola de linha de lã repousavam em seu colo. Embora sentindo-se muito enfraquecido, Eragon conseguiu sentar-se. Isso o ajudou a clarear os pensamentos.. Repassou as lembranças dos últimos dois dias. Seu primeiro pensamento foi sobre Garrow, o segundo sobre Saphira. Espero que ela esteja em um lugar seguro. Tentou contatá-la, mas não conseguiu. Onde quer que ela estivesse, era longe do Carvahall. Pelo menos, Brom me trouxe até o Carvahall. O que será que aconteceu com ele? Havia todo aquele sangue. Gertrude se mexeu e abriu seus olhos brilhantes. - Oh! - disse ela. - Você acordou. Que bom! - Sua voz era forte e aconchegante. - Como você está se sentindo? - Estou bem. Onde está Garrow? Gertrude arrastou a sua cadeira para perto da cama. - Está na casa de Horst. Não havia espaço suficiente para vocês dois aqui. E, devo admitir, isso tem me deixado bem ocupada, indo para lá e para cá, vendo se vocês dois estão bem. Eragon deixou o medo de lado e perguntou: - Como ele está? Houve uma longa pausa enquanto ela examinava as mãos. - Não está bem. Ele tem uma febre que se recusa a ceder, e as feridas não estão secando. - Eu preciso vê-lo. - Eragon tentou levantar-se. - Só depois de comer - disse com firmeza, empurrando-o para baixo. - Não gastei esse tempo todo, ficando sentada ao seu lado, para que você se levante e se machuque por aí. Metade da pele das suas pernas foi arrancada, e a sua febre só cedeu ontem à noite. Não se preocupe com Garrovv. Ele ficará bem. Ele é um homem forte. - Gertrude pendurou uma chaleira acima do fogo e começou a picar cenouras para a sopa. - Há quanto tempo estou aqui? - Há dois dias inteiros. Dois dias! Isso significava que sua última refeição foi há quatro manhãs! Só de pensar nisso, Eragon sentiu-se fraco. Saphira está sozinha esse tempo todo. Espero que ela esteja bem. - A cidade inteira quer saber o que aconteceu. Eles mandaram homens até a sua fazenda e a viram destruída. - Eragon concordou com a cabeça; “já esperava isso”. - O seu galpão foi queimado... Foi assim que Garrow se feriu? - Eu Eu não sei - disse Eragon. - Não estava lá quando tudo aconteceu. - Bem, não importa. Sei que tudo vai se resolver. - Gertrude voltou a tricotar enquanto esperava a sopa ferver. - Você tem uma bela cicatriz na palma da sua mão. Ele, por reflexo, fechou o punho. - Tenho. - Como você a arranjou? Várias respostas possíveis vieram à sua mente, mas ele escolheu a mais simples: - Eu a tenho desde que nasci. Nunca perguntei ao Garrow como ela apareceu. - Humm. - O silêncio não foi quebrado até a sopa começar a ferver. Gertrude colocou-a em uma tigela e passou-a para Eragon, junto com uma colher. Ele aceitou-a agradecido e provou-a com cuidado. Estava deliciosa. Quando terminou, ele perguntou: - Posso visitar Garrow agora? Gertrude suspirou. - Você é um rapaz bem determinado, não é? Bem, se você quer ir de verdade, não vou impedi-lo. Vista as roupas, e nós iremos. Ela ficou de costas enquanto ele lutava para vestir a calça, se contraindo quando a roupa se arrastava em cima das ataduras. E, depois, vestiu a camisa. Gertrude ajudou-o a ficar em pé. Suas pernas estavam fracas, mas já não doíam tanto quanto antes. - Dê alguns passos - ordenou ela e, depois, falou friamente: - Pelo menos você não terá de ir rastejando até lá. Do lado de fora, um vento forte soprou a fumaça das casas vizinhas nos seus rostos. Nuvens de tempestade escondiam a Espinha e cobriam todo o vale enquanto uma cortina de neve avançava na direção do vilarejo, escurecendo a região montanhosa. Eragon apoiava-se pesadamente em Gertrude à medida que eles atravessavam o Carvahall. Horst construiu sua casa de dois andares em uma colina para poder apreciar a vista das montanhas. Empregou nela toda a habilidade que tinha. O telhado feito de lascas de pedra de xisto encobria uma varanda cercada, que se estendia a partir de uma janela alta no segundo andar. Em cada uma das saídas do escoamento de água havia uma gárgula zangada. E todas as janelas e portas eram enfeitadas com entalhes de serpentes, cervos, corvos e videiras torcidas. A porta foi aberta por Elain, a esposa de Horst, que era uma mulher pequena e magrinha, com feições refinadas e com os sedosos cabelos louros presos em um coque. Seu vestido era discreto e elegante, e seus movimentos graciosos. - Por favor, entrem - disse baixinho. Eles atravessaram o portal e entraram em uma grande sala bem iluminada. Uma escada, que tinha um corrimão polido, ziguezagueava até o chão. As paredes tinham a cor do mel. Elain deu um sorriso triste para Eragon, mas se dirigiu a Gertrude: - Eu já ia mandar chamá-la. Ele não está nada bem. Você devia vê-lo imediatamente. - Elain, você terá de ajudar Eragon a subir a escada - disse Gertrude e subiu correndo, dois degraus de cada vez. - Está tudo bem. Consigo subir sozinho. - Tem certeza? - perguntou Elain. Ele concordou com a cabeça, mas ela olhou para ele desconfiada. - Bem... Quando terminar, desça e vá falar comigo na cozinha. Fiz uma torta fresquinha que acho que você vai gostar. - Assim que ela saiu, ele se jogou contra a parede, agradecendo ter conseguido aquele apoio. Depois, começou a subir a escada, um doloroso passo por vez. Quando chegou ao topo, contemplou um corredor comprido pontilhado por várias portas. A última estava levemente aberta. Respirando fundo, moveu- se com dificuldade até ela. Katrina estava ao lado de uma lareira, fervendo panos. Ela levantou o olhar, sussurrou uma condolência e voltou a trabalhar. Gertrude estava ao lado dela, moendo ervas para fazer um curativo. Um balde a seus pés continha neve que se derretia, virando água gelada. Garrow estava deitado em uma cama, embaixo de uma pilha alta de cobertores. O suor cobria sua testa, e seus olhos agitavam-se cegamente embaixo de suas pálpebras. A pele do rosto estava contraída como a de um cadáver. Estava imóvel, salvo os suaves tremores de sua leve respiração. Eragon tocou a testa do tio com uma sensação de irrealidade. Ela queimava contra a mão dele. Apreensivo, levantou os cobertores e viu que as várias feridas de Garrow estavam cobertas com pedaços de pano. As queimaduras das quais as ataduras estavam sendo trocadas estavam expostas ao ar. Elas não tinham começado a sarar. Eragon olhou para Gertrude com uma expressão desesperançada. - Você não pode fazer nada acerca dessas feridas? Ela apertou um pano dentro do balde de água gelada e, depois, colocou o pano frio em cima da cabeça de Garrow. - Eu já tentei tudo: pomadas, cataplasmas, tinturas, mas nada adianta. Se as feridas fechassem, ele teria uma chance muito melhor. Mas, ainda assim, as coisas podem melhorar. Ele é vigoroso e forte. Eragon chegou para o canto e se agachou no chão. As coisas não deviam ter acontecido assim! O silêncio engoliu seus pensamentos. Ele olhava admirado para a cama. Depois de um tempo, notou Katrina ajoelhada ao seu lado. Ela pôs o braço em volta dele. Como ele não respondeu, saiu envergonhada. - Por que você não fica conosco? Assim, ficará mais perto do seu tio, e Gertrude terá a cama dela de volta. - E vocês têm um lugar para mim? - perguntou ele, hesitante. - Claro. - Ela limpou as mãos. - Venha comigo. Vou aprontar as coisas para você. - Ela levou-o até um quarto desocupado no andar superior. Ele se sentou na beira da cama. - Você precisa de mais alguma coisa? - perguntou ela. Eragon balançou a cabeça. - Nesse caso, estarei lá embaixo. Se precisar de ajuda, pode me chamar. Ouviu-a descendo a escada. Depois, ele abriu a porta e atravessou o corredor até o quarto de Garrow. Gertrude deu-lhe um sorrisinho por cima de suas velozes agulhas de tricô. - Como ele está? - Sussurrou Eragon. A voz dela estava arrastada por causa do cansaço. - Ele está fraco, mas a febre baixou um pouco, e algumas das queimaduras estão melhorando. Precisamos esperar para ver, mas isso pode significar que ele vai se recuperar. As boas notícias melhoraram o ânimo de Eragon, e ele voltou para seu quarto. A escuridão não parecia amigável enquanto ele se ajeitava embaixo das cobertas. Finalmente, conseguiu dormir, curando as feridas que o corpo e a alma sofreram. A LOUCURA DA VIDA Estava escuro quando Eragon acordou de repente, assustado e ofegante, sentando na cama. O quarto estava frio, sentiu arrepios nos braços e nos ombros. Faltavam algumas horas para o amanhecer. Era aquela hora em que nada se move, em que a vida espera pelos primeiros toques quentes da luz do sol. Seu coração batia forte por causa da terrível premonição que lhe tomou conta. Parecia que um manto havia coberto o mundo e o lugar mais escuro era o seu quarto. Levantou-se da cama silenciosamente e vestiu-se. Apreensivo, atravessou o corredor. O pavor tomou conta dele ao ver a porta do quarto de Garrow aberta e várias pessoas amontoadas lá dentro. Garrow estava deitado pacificamente na cama. Ele estava vestido com roupas claras, o cabelo estava penteado para trás, e o rosto estava calmo. Poderia estar dormindo se não fosse pelo amuleto de prata amarrado em volta de seu pescoço e pelo ramo seco de cicuta-da-europa em seu peito, que eram os últimos presentes dos vivos para os mortos. Katrina estava ao lado da cama, com o rosto pálido e os olhos baixos. Ele a ouviu sussurrando: - Eu esperava chamá-lo de pai um dia... Chamá-lo de pai, pensou ele amargamente. Um direito que nem eu tinha. Ele se sentia como um fantasma, exaurido de toda vitalidade. Tudo perdeu o sentido, exceto o rosto de Garrow. As lágrimas inundaram a face de Eragon. Ele ficou parado, com os ombros tremendo, mas chorava sem fazer nenhum ruído. Mãe, tia, tio - perdeu todos. O peso de sua dor era esmagador, uma força monstruosa que o fez cambalear. Alguém o conduziu de volta para o quarto, falando palavras de consolo. Ele caiu na cama, cobriu a cabeça com os braços e soluçou convulsivamente. Eragon sentiu Saphira fazendo contato, mas a ignorou e se deixou levar pelo pesar. Ele não podia aceitar que Garrow houvesse partido. Se aceitasse, não restaria mais nada em que acreditar. Apenas um mundo implacável, impiedoso, que apagava as vidas como a chama de uma vela ao vento. Frustrado e apavorado, virou seu rosto encharcado pelas lágrimas em direção ao céu e gritou: - Que deus faria isso? Mostre-se! - Ele ouviu pessoas correndo para o quarto dele, mas nenhuma resposta veio lá de cima. - Ele não merecia isso! Mãos confortantes tocaram-no, e ele viu que Elain estava sentada a seu lado. Ela o abraçou enquanto ele chorava e, finalmente, por pura exaustão, relutantemente, adormeceu. A ESPADA DE UM CAVALEIRO A aflição tomou conta de Eragon quando ele acordou. Embora mantivesse os olhos fechados, não conseguia deter uma nova torrente de lágrimas. Ele tentava se lembrar de alguma coisa, procurava alguma idéia que o ajudasse a preservar a sanidade. “Não posso viver assim”, lastimou-se. Então, não viva assim. - As palavras de Saphira reverberaram na mente dele. Como? Garrow partiu para sempre! E, com o tempo, terei o mesmo destino. Amor, família, realizações - tudo isso é tirado de nós, e ficamos sem nada. Que valor têm as coisas que fazemos? O valor está no ato. O seu valor acaba quando você se rende ao desejo de mudar, de viver a vida. As opções estão à sua frente, escolha uma e dedique-se a ela. As ações darão a você uma nova esperança e um novo propósito. Mas o que posso fazer? A única orientação verdadeira está dentro do seu coração. Nada menos do que o seu desejo supremo pode ajudá-lo. Ela o deixou pensando em suas afirmações. Eragon examinou suas emoções. Ficou surpreso ao ver que, mais do que o pesar, também achou dentro de si uma raiva abrasadora. O que você quer que eu faça? Que vá atrás dos estranhos? Isso. A resposta franca o confundiu. Ele respirou fundo, tremendo. Por quê? Lembra-se do que você disse na Espinha? Como você me lembrou dos meus deveres enquanto dragão? E como voltei com você apesar de meus instintos dizerem o contrário? Então, você também deve se controlar. Eu pensei e refleti muito nos últimos dias e percebi o que significa ser um dragão e um Cavaleiro: o nosso destino é tentar fazer o impossível, tentar realizar grandes feitos apesar do medo. É a nossa responsabilidade quanto ao futuro. Não importa o que você diga, essas razões não são fortes o bastante para eu partir! - Gritou Eragon. Então, aqui vão mais outras. As minhas pegadas foram vistas, e as pessoas estão cientes da minha presença. Finalmente, eu serei exposta. Além disso, não resta mais nada aqui para você. Não há mais fazenda,família e... Roran não morreu! - Disse ele com veemência. Mas, se você ficar, terá de explicar o que aconteceu de verdade. Ele tem o direito de saber como e por que o pai dele morreu. O que ele fará assim que souber da minha existência? Os argumentos de Saphira giravam na mente de Eragon, mas ele não queria pensar na idéia de deixar o vale Palancar, pois lá era seu lar. Entretanto, o pensamento de se vingar contra os estranhos era algo extremamente confortante. Eu sou forte o bastante para isso? Você me tem. A dúvida o assolava. Seria uma coisa desesperada e radical de se fazer. O desprezo por sua indecisão aumentou, e um sorriso hostil surgiu em seus lábios. Saphira estava certa. Nada importava mais, exceto o ato em si. Agir é o certo. E o que lhe daria mais satisfação do que caçar os estranhos? Uma energia incrível e uma grande força começaram a crescer dentro dele, reunindo suas emoções e forjando-as em uma barra sólida de ira, com uma palavra gravada nela: vingança. A cabeça dele latejou quando falou com convicção: Eu vou me vingar. Interrompeu o contato com Saphira e levantou-se da cama. Seu corpo estava tenso como uma mola de aço apertada. Ainda era de manhã bem cedo. Dormira apenas algumas horas. “Nada é mais perigoso do que um inimigo que não tem nada a perder”, pensou ele. “E é isso que eu virei”. Ontem, ele tinha dificuldade para andar aprumado, mas agora movia se com mais segurança, era mantido ereto por sua força de vontade implacável. A dor que seu corpo produzia foi desafiada e ignorada. Quando saía sorrateiramente da casa, ouviu o murmúrio de duas pessoas conversando. Curioso, parou para escutar. Elain falava com sua voz delicada: - ... Um lugar onde ficar. Nós temos espaço de sobra. Horst respondeu algo inaudível com sua voz grave. - É, o pobre rapaz - respondeu Elain. Desta vez, Eragon conseguiu ouvir a resposta de Horst. - Talvez... - Houve uma longa pausa. - Andei pensando no que Eragon disse e acho que ele não nos contou tudo. - Como assim? - quis saber Elain. Havia um tom de preocupação em sua voz. - Quando fomos até a fazenda, havia marcas na estrada ao lado da maca na qual ele arrastou Garrow. Depois, chegamos a um ponto em que a neve estava repleta de pegadas, remexida. Os rastros e os sinais da maca pararam ali, mas também vimos as mesmas pegadas gigantes da fazenda. E quanto às pernas dele? Não acredito que ele não tenha notado a perda de tanta pele. Eu não queria pressioná-lo antes, mas acho que agora farei mais pressão. - Talvez o que viu o assustou tanto que não quer falar sobre isso - sugeriu Elain. - Você viu como ele estava confuso. - Isso ainda não explica como conseguiu trazer Garrow até perto da cidade sem deixar nenhum rastro. Saphira estava certa, pensou Eragon. É hora de partir. Muitas perguntas de muitas pessoas. Mais cedo ou mais tarde, todos descobrirão as respostas. Ele continuou a andar pela casa, ficando tenso sempre que o piso rangia. As ruas estavam vazias, poucas pessoas saíam a essa hora do dia. Ele parou um instante e fez força para se concentrar. Não preciso de um cavalo. Saphira será a minha montaria, mas preciso de uma sela. Ela pode caçar para nós dois, então não preciso me preocupar com a comida - embora eu deva arranjar um pouco agora. E as outras coisas de que preciso acharei enterradas na nossa casa. Ele foi até o curtume de Gedric nos arredores de Carvahall. O cheiro horrível o fez encolher-se, mas não parou e seguiu em direção a um barracão, perto de uma colina, onde as peles curadas eram guardadas. Ele pegou três peles grandes de vaca da fileira pendurada no teto. O roubo fez Eragon sentir-se culpado, mas ele ponderou: “Não é um roubo de verdade. Pagarei Gedric algum dia, e a Horst também”. Eragon enrolou o couro grosso e levou-o até um aglomerado de árvores longe do vilarejo. Ele escondeu as peles entre os galhos de uma árvore e voltou para o Carvahall. Agora, vou arranjar comida. Foi até a taverna, com a intenção de tirar comida de lá, mas depois deu um sorriso maroto e mudou de direção. Se ia roubar, que fosse de Sloan. Entrou sorrateiramente na casa do açougueiro. A porta da frente ficava trancada sempre que Sloan não estava lá, mas a porta lateral ficava fechada com uma fina corrente, que ele conseguiu quebrar facilmente. Os cômodos lá dentro estavam escuros. Tateou cegamente até que suas mãos encontraram pilhas de carne enroladas com panos. Eragon enfiou o máximo possível de peças de carne embaixo de sua camisa, voltando correndo para a rua e, furtivamente, fechando a porta. Uma mulher gritou o nome dele ali perto. Ele segurou a parte de baixo de sua camisa para que a carne não caísse e se abaixou ao virar uma esquina. Tremeu quando Horst passou entre duas casas, a poucos metros de distância. Eragon correu assim que Horst saiu de vista. Suas pernas queimavam enquanto corria por um beco, de volta às árvores. Escondeu-se em meio aos troncos e virou-se para ver se estava sendo perseguido. Não havia ninguém por perto. Aliviado, respirou mais tranqüilo e foi pegar o couro na árvore. Mas não estava mais lá. - Está indo a algum lugar? Eragon se virou depressa. Brom fez uma cara feia para ele. Havia uma ferida feia na lateral de sua cabeça. Um espadim pendia de seu cinto em uma bainha marrom. As peles estavam nas mãos dele. Eragon estreitou os olhos, irritado. Como aquele velho conseguiu espionar o que ele estava fazendo? Tudo estava tão quieto, que podia jurar que não havia ninguém por perto. - Trate de me devolver isso! - disparou. - Por quê? Para que você possa fugir antes mesmo de Garrow ser enterrado? - A acusação foi dura. - Isso não é da sua conta! - gritou visivelmente nervoso. - Por que você me seguiu? - Eu não segui - resmungou Brom. - Estava esperando você aqui. Bem, aonde está indo? - A lugar nenhum. - Eragon jogou-se em direção às peles e tirou-as das mãos de Brom, que não fez nada para impedi-lo. - De todos os nomes que você me deu, esse foi o único que ela gostou. E acho que era apropriado para ela - acrescentou Eragon rapidamente. - De fato - aquiesceu Brom. Havia algo na voz dele que Eragon não conseguiu identificar. Será que era perda, admiração, medo, inveja? Ele não tinha certeza, poderia ser tudo isso ou nada disso. Brom elevou o tom da voz e disse: - Saudações, Saphira. É uma honra conhecê-la. - Ele fez um trejeito estranho com a mão e se curvou. Eu gosto dele, - disse Saphira baixinho. É claro que gosta, todo mundo gosta de ser bajulado. - Eragon tocou-a no ombro e foi para a casa em ruínas. Saphira foi atrás dele com Brom. O velho estava com uma aparência vibrante, viva. Eragon entrou na casa e arrastou-se por baixo da porta, atrás da qual estavam os restos do seu quarto. Ele mal o reconheceu sob as pilhas de madeira quebrada. Guiado pela memória, procurou no lugar onde ficava uma parede interna e achou a sua saca vazia. Parte da armação estava quebrada, mas o dano podia ser reparado facilmente. Ele continuou a remexer nos destroços e, por acaso, achou a ponta do seu arco, que ainda estava em seu tubo de pele de veado. Embora o couro estivesse arranhado e gasto, ele ficou feliz ao ver que a madeira do arco estava intacta. Até que enfim, um pouco de sorte. Ele esticou o arco e puxou para testá-lo. O arco se curvou graciosamente, sem estalar ou rachar. Satisfeito, começou a caçar a aljava das flechas, que achou soterrada bem perto. Muitas das flechas estavam quebradas. Afrouxou o arco e passou-o, junto com a aljava, para Brom, que disse: - É preciso ter um braço forte para puxar isto. - Eragon aceitou o elogio em silêncio. Procurou no resto da casa outros itens que poderiam ser úteis e jogou os objetos perto de Brom. Era uma pilha bem pequena. - E agora? - perguntou Brom. Os olhos dele estavam brilhantes e inquisidores. Eragon olhou para o lado. - Acharemos um lugar para nos esconder. - Tem algum em mente? - Tenho. - Eragon embrulhou todos os suprimentos, exceto o arco, formando um embrulho apertado, e o amarrou. Jogando-o nas costas, ele disse: - Por aqui - e saiu na direção da floresta. Saphira, siga-nos pelo ar. As suas pegadas são facilmente visíveis e fáceis de seguir. Tudo bem. - Ela decolou atrás deles. O destino deles ficava perto, mas Eragon tomou uma rota tortuosa para confundir quem quisesse persegui-los. Passou mais de uma hora até que ele finalmente parasse perto de um arbusto bem escondido. A clareira que havia no meio do bosque era grande o bastante para abrigar uma fogueira, duas pessoas e um dragão. Esquilos vermelhos corriam nas árvores, reclamando em protesto da intrusão deles. Brom se soltou dos galhos de uma videira e olhou em volta interessado. - Alguém mais conhece este lugar? - perguntou ele. - Não. Eu o achei quando nos mudamos para cá. Levei uma semana para chegar até o centro e outra para retirar todos os galhos mortos. - Saphira pousou ao lado deles e dobrou as asas, tendo o cuidado de evitar os espinhos. Ela se enroscou, quebrando galhos finos com suas escamas duras, e descansou a cabeça no chão. Seus olhos misteriosos os observavam atentamente. Brom inclinou-se sobre o seu cajado e fixou o olhar nela. Seu escrutínio deixou Eragon nervoso. Eragon os observou até que a fome o forçou a agir. Ele fez uma fogueira, encheu uma panela com neve e a colocou em cima das chamas para derretê-la. Quando a água estava quente, cortou pedaços de carne e os jogou na panela junto com uma pitada de sal. “Não é uma refeição de primeira”, pensou com raiva, “mas vai servir. Provavelmente, comerei só isso por algum tempo, então é melhor ir me acostumando”. O cozido fervia em fogo brando silenciosamente, soltando um rico aroma na clareira. A ponta da língua de Saphira saiu de sua boca e provou o ar. Quando a carne estava macia, Brom se aproximou, e Eragon serviu a comida. Eles comeram em silêncio, evitando cruzar os olhares. Depois, Brom pegou o cachimbo e acendeu-o vagarosamente. - Por que você quer viajar comigo? - perguntou Eragon. Uma nuvem de fumaça saiu dos lábios de Brom e subiu em espiral através das árvores até desaparecer. - Tenho interesse pessoal em mantê-lo vivo - disse. - Como assim? - exigiu uma resposta Eragon. - Falando diretamente, sou um contador de histórias e acho que você dará uma boa história. Você é o primeiro Cavaleiro a existir fora do controle do rei em mais de cem anos. O que acontecerá? Você perecerá como um mártir? Você se juntará aos varden? Ou matará o rei Galbatorix? São perguntas fascinantes. E estarei presente para ver todos os detalhes, não importa o que eu tenha de fazer. Um nó se formou no estômago de Eragon. Ele não podia se ver fazendo nenhuma daquelas coisas, muito menos se tornar um mártir. “Eu quero a minha vingança, mas quanto ao resto... Não tenho nenhuma ambição”. - Tudo bem, mas diga-me: como consegue falar com Saphira? - Brom colocou mais fumo em seu cachimbo sem pressa. Depois de acendê-lo mais uma vez e de colocá-lo na boca, ele disse: - Muito bem, se você quer respostas, respostas você terá. Mas talvez nem todas sejam do seu agrado. - Ele se levantou, trouxe o seu embrulho para perto do fogo e tirou um longo objeto envolvido com um pano. Devia ter mais ou menos um metro e meio e, pelo jeito como ele o segurava, devia ser bem pesado. Retirou o pano, faixa por faixa, como se uma múmia estivesse sendo descoberta. Eragon olhava admirado, imobilizado, quando uma espada foi revelada. O botão da espada era dourado e tinha a forma de uma lágrima, com as laterais cortadas, e tinha um rubi do tamanho de um pequeno ovo. O punho estava envolto por um fio prateado, polido até que brilhasse como uma estrela. A bainha era vermelha como o vinho e lisa como vidro, adornada unicamente por um estranho símbolo negro, entalhado nela. Ao lado da espada estava um cinto de couro com uma pesada fivela. A última faixa de pano caiu, e Brom passou a arma para Eragon. O punho encaixou-se na mão de Eragon como se tivesse sido feito para ele. Eragon desembainhou a espada lentamente. Ela deslizou para fora da bainha sem produzir nenhum ruído. A lâmina lisa tinha uma cor vermelha que refletia todas as cores do arco-íris e brilhou com a luz da fogueira. As laterais afiadas se curvavam graciosamente até formarem uma ponta afiada. Uma duplicata do símbolo negro estava inscrita no metal. O balanceamento da espada era perfeito, parecia uma extensão do braço dele, ao contrário das ferramentas brutas da fazenda com as quais ele estava acostumado. Um ar poderoso pairava sobre ela, como se uma força que não pudesse ser detida residisse em seu âmago. Ela foi criada para as convulsões violentas da batalha, para tirar a vida dos homens, porém também contava com uma beleza incrível. - Uma vez, essa espada já foi de um Cavaleiro - disse Brom sério. - Quando um Cavaleiro terminava o seu treinamento, os elfos o presenteavam com uma espada. Os métodos do forjamento continuam sendo segredo. Portanto, as espadas deles são eternamente afiadas e nunca enferrujam. O costume era que a cor da lâmina combinasse com a cor do dragão do Cavaleiro, mas acho que podemos fazer uma exceção neste caso. O nome dessa espada é Czar'roc. Não sei o que significa. Talvez, algo pessoal para o Cavaleiro que a possuía. - Ele observou Eragon brandindo a espada. - Onde a conseguiu? - quis saber Eragon. Ele, relutantemente, voltou a colocar a espada na bainha e tentou entregar a arma, mas Brom não fez nenhum movimento para pegá-la. - Não importa - respondeu Brom. - Apenas direi que tive de passar por uma série de aventuras perigosas e desagradáveis para obtê-la. Considere-a sua. Você tem mais direito de reclamá-la do que eu e, antes de tudo, acho que precisará dela. A oferta pegou Eragon desprevenido. - É um presente magnífico. Obrigado. - Sem saber mais o que dizer, ele correu a mão pela bainha. - Que símbolo é este? - perguntou Eragon. - Essa era a insígnia do Cavaleiro. - Eragon tentou interromper, mas Brom olhou fixamente para ele até que ficasse em silêncio. - Bem, se você realmente quer saber, qualquer pessoa pode aprender a falar com um dragão se tiver o treinamento apropriado. E - ele ergueu um dedo para dar ênfase - aprender somente não significa nada. Eu sei mais sobre dragões e sobre suas habilidades do que quase qualquer outra pessoa viva. Sozinho, você poderia levar anos para aprender o que tenho para lhe ensinar. Ofereço o meu conhecimento como um atalho. E quanto a como eu sei tantas coisas, guardarei isso para mim. Saphira levantou-se quando Brom acabou de falar e foi zanzando até Eragon, que desembainhou a espada e mostrou-lhe a lâmina. A espada tem poder, - disse Saphira, tocando a ponta da arma com o nariz. A cor iridescente do metal ondulou como água ao encostar nas escamas. Saphira ergueu a cabeça, bufando satisfeita, e a espada voltou à sua aparência normal. Eragon, perplexo, colocou-a na bainha. Brom ergueu uma sobrancelha. - É sobre esse tipo de coisa que estou falando. Os dragões nos surpreendem constantemente. Coisas... Acontecem em volta deles, coisas misteriosas que seriam impossíveis de acontecer em qualquer outro lugar. Embora os Cavaleiros trabalhassem com os dragões durante séculos, eles nunca entenderam completamente todas as habilidades dessas criaturas. Alguns dizem que até mesmo os dragões não conhecem a completa magnitude de seus próprios poderes. Estão ligados com esta terra de tal forma que conseguem superar grandes obstáculos. O que Saphira acabou de fazer ilustrou o que falei antes: há muitas coisas que você não sabe. Houve uma longa pausa. - Pode ser. Mas posso aprender - argumentou Eragon. - E os estranhos são a coisa mais importante que preciso conhecer melhor agora. Você tem alguma idéia de quem eles sejam? Brom respirou fundo. - Eles são chamados de ra'zac. Ninguém sabe se esse é o nome da raça deles ou se é como escolheram chamar a si mesmos. Não importa, e se eles têm nomes individuais, os mantêm em segredo. Os ra'zac nunca foram vistos antes de Galbatorix tomar o poder. Ele deve tê-los achado em uma de suas viagens e alistou-os para servi-lo. Sabe-se pouco ou quase nada sobre eles. Entretanto, posso garantir isso: não são humanos. Quando vi de relance a cabeça de um deles, parecia ter algo que lembrava um bico e tinha olhos negros do tamanho do meu punho, e ainda é um mistério para mim como conseguem falar. Sem dúvida nenhuma, o resto do corpo deles não é menos estranho. É por isso que se cobrem com mantos o tempo todo, independentemente da temperatura. "Quanto ao poder deles, são mais fortes do que qualquer homem e podem saltar a alturas incríveis, mas não podem usar magia. Você deve agradecer por isso, pois, se pudessem, você estaria há muito tempo sob o domínio deles. Também sei que têm uma forte aversão à luz do sol, embora isso não possa detê-los se estiverem determinados. Nunca cometa o erro de subestimar um ra'zac, pois eles são espertos e cheios de golpes baixos”. - Quantos deles existem? - perguntou Eragon imaginando como Brom poderia saber tantas coisas. - Pelo que sei, somente os dois que você viu. Pode haver mais, porém nunca ouvi falar deles. Talvez sejam os últimos de uma raça em extinção. Sabe, eles são os caçadores de dragões pessoais do rei. Sempre que chegam a Galbatorix boatos de que há um dragão à solta, ele manda os ra'zac para investigar. Geralmente, um rastro de morte os segue. - Brom soprou uma série de anéis de fumaça e observou-os flutuar para cima, entre os arbustos. Eragon ignorou os anéis até notar que eles mudavam de cor e que corriam de um lado para o outro. Brom piscou o olho de modo maroto. Eragon estava certo de que ninguém havia visto Saphira, então como Galbatorix poderia saber da existência dela? Quando ele expressou as suas objeções, Brom disse: - Você está certo, parece pouco provável que alguém de Carvahall tenha informado o rei. Por que você não me conta onde achou o ovo e como criou Saphira? Isso pode ajudar a esclarecer a questão. Eragon hesitou, mas contou todos os eventos desde que havia encontrado o ovo na Espinha. Era maravilhoso poder, enfim, confidenciar aquilo tudo a alguém. Brom fez algumas perguntas, mas ouviu atentamente na maior parte do tempo. O sol estava para se pôr quando Eragon terminou de contar sua história. Os dois estavam em silêncio quando as nuvens começaram a ganhar uma coloração suave cor-de- rosa. Eragon, finalmente, quebrou o silêncio: - Eu só queria saber de onde ela veio. Mas Saphira não lembra. Brom ergueu a cabeça. - Não sei... Você esclareceu muitas coisas para mim. Tenho certeza de que ninguém além de nós dois viu Saphira. Os ra'zac devem ter um informante fora deste vale, alguém que, provavelmente, deve estar morto. Você passou por maus pedaços e conseguiu fazer muitas coisas sozinho. Estou impressionado. Eragon olhava perplexo para o horizonte e, depois, perguntou: - O que aconteceu com a sua cabeça? Parece que alguém bateu em você com uma pedra. - Não foi nada disso, mas é um bom palpite. - Ele deu uma forte tragada no cachimbo. - Eu estava espionando no acampamento dos ra'zac à noite, tentando aprender o máximo possível sobre eles, quando fui surpreendido nas sombras. Foi uma boa armadilha, mas eles me subestimaram e consegui despistá-los. Mas, entretanto - disse, se contorcendo -, não consegui sair de lá sem ganhar esta lembrança da minha estupidez. Atordoado, caí no chão e só recuperei a consciência no dia seguinte. Mas, já era tarde demais, pois eles já haviam chegado à sua fazenda. Eu não poderia detê-los, mas fui atrás deles assim mesmo. Foi quando nos encontramos na estrada. mais forte e que cada momento dará a você uma chance de se juntar aos inimigos dele. Você deve tomar muito cuidado, pois pode, rapidamente, deixar de ser o caçador para virar a caça. Eragon ficou perplexo com as palavras fortes. Pensativo, ele rolava um graveto entre os dedos. - Chega de conversa - cortou Brom. - Já está tarde e meus ossos estão doendo. Podemos conversar mais amanhã. - Eragon concordou com a cabeça e arrumou a fogueira para que ela queimasse por mais tem- po e de modo mais lento. THERINSFORD O amanhecer estava acinzentado, nublado e com um vento cortante. A floresta estava silenciosa. Depois de um café da manhã leve, Brom e Eragon jogaram água em cima da fogueira e colocaram suas sacas no ombro, preparando-se para partir. Eragon pendurou o seu arco e as suas flechas ao lado de sua saca, onde poderia pegá-los facilmente, Saphira usava a sela, teria de carregá-la até que eles arranjassem cavalos. Eragon amarrou Czar'roc cuidadosamente nas costas também, pois não queria carregar aquele peso extra. Além disso, em suas mãos, aquela espada não seria mais eficaz do que uma clava. Eragon sentia-se seguro na clareira, mas, fora dela, a cautela regia seus movimentos. Saphira levantou vôo e circulava acima deles. As árvores escasseavam conforme voltavam à fazenda. “Eu verei este lugar de novo”, insistia Eragon consigo mesmo, olhando as construções destruídas. “Isso não pode ser, não será um exílio definitivo. Um dia, quando for seguro, eu voltarei...” Jogando os ombros para trás, ele se virou para o sul, para as terras estranhas e selvagens que estavam à sua frente. Conforme caminhavam, Saphira mudou de direção, indo para o oeste, rumo às montanhas, saindo de vista. Eragon não ficou tranqüilo ao vê-la ir embora. Até mesmo agora, sem ninguém por perto, não podiam ficar juntos. Saphira tinha de ficar escondida caso encontrassem algum viajante. As pegadas dos ra'zac estavam quase apagadas na neve, mas Eragon não estava preocupado. Era improvável que tivessem seguido por outro caminho que não fosse pela estrada, que era o melhor para sair do vale, indo pela floresta. Uma vez fora de Palancar, contudo, a estrada se dividia em várias direções. Seria difícil determinar qual os ra'zac tomaram. Viajavam em silêncio, priorizando a velocidade. As pernas de Eragon continuavam a sangrar onde as cascas dos machucados eram arrancadas. Para afastar a mente desse desconforto, perguntou: - O que exatamente os dragões podem fazer? Você disse que sabia algumas coisas sobre as habilidades deles. Brom riu. Seu anel de safira brilhava no ar enquanto ele gesticulava. - Infelizmente, sei muito pouco comparado ao que eu gostaria de saber. As pessoas tentam responder a sua pergunta há séculos. Então, entenda que o que eu disser estará, por sua própria natureza, incompleto. Os dragões sempre foram misteriosos, embora não façam isso de propósito. "Antes que eu possa verdadeiramente responder à sua pergunta, você precisa aprender algumas coisas básicas sobre dragões. Seria extremamente confuso começar no meio de um tópico muito complexo sem entender primeiro a base de todo esse assunto. Começarei com o ciclo de vida dos dragões. E se isso não cansar você poderemos passar para outro tópico”. Brom explicou como os dragões acasalavam e quais eram as condições para os ovos deles eclodirem. - Sabe - prosseguiu -, quando um dragão fêmea põe um ovo, o filhote dentro dele está pronto para nascer. Mas ele espera, às vezes durante anos, pelas circunstâncias adequadas. Quando os dragões viviam nas florestas, tais circunstâncias eram ditadas pela disponibilidade de alimento. Porém, depois que eles fizeram uma aliança com os elfos, um certo número de ovos, não mais do que um ou dois, eram dados aos Cavaleiros todos os anos. Esses ovos, ou os filhotes dentro deles, não eclodiam até que a pessoa destinada a ser o Cavaleiro ficasse diante deles, embora não seja conhecido o modo como eles pressentiam isso. As pessoas faziam filas para tocar os ovos, esperando serem escolhidas. - Quer dizer então que Saphira poderia não ter nascido para mim? - É bem provável, se ela não tivesse gostado de você. Sentiu-se honrado, pois de todas as pessoas na Alagaésia, ela o escolheu. Ficou pensando em quanto tempo Saphira esperou e afligiu-se ao imaginar que ela permaneceu confinada dentro de um ovo, cercada pela escuridão. Brom continuou a sua aula. Explicou o que e quando os dragões comiam. Um dragão adulto, sedentário, poderia ficar meses sem comer, mas na temporada do acasalamento, tinham de se alimentar toda semana. Algumas plantas podiam curar suas doenças. Outras podiam causar enfermidades. Havia várias maneiras de cuidar de suas garras e de limpar suas escamas. Ele explicou as técnicas que se deviam usar ao se atacar montado em um dragão e o que fazer se estivesse lutando contra um deles a pé, a cavalo ou em outro dragão. A barriga deles era protegida, mas suas axilas não eram. Eragon interrompia freqüentemente para fazer perguntas, e Brom parecia satisfeito com as indagações. As horas passaram rápido enquanto conversavam. Quando a noite chegou, estavam perto de Therinsford. Enquanto o céu escurecia e eles procuravam um lugar para acampar, Eragon perguntou: - Qual Cavaleiro era dono da Czar'roc? - Era um poderoso guerreiro - informou Brom. - Era muito temido em sua época e tinha muito poder. - Qual era o nome dele? - Não direi. - Eragon protestou, mas Brom se manteve firme. - Não quero que você ignore os fatos, longe disso, mas saber de certos detalhes seria perigoso e iria distraí-lo agora. Não há nenhum motivo para eu perturbá-lo com tais coisas, até você ter o tempo e o poder para lidar com elas. Eu só desejo protegê-lo daqueles que poderiam usá-lo para o mal. Eragon olhou fixamente para ele. - Sabe de uma coisa? Acho que você adora falar por meio de enigmas. Já estou com vontade de abandoná-lo para não ter de me aborrecer mais com isso. Se for dizer alguma coisa, fale de uma vez e não fique dando voltas com frases vagas. - Paz. Tudo será dito ao seu tempo - disse Brom calmamente. Eragon resmungou, duvidoso. Encontraram um lugar confortável para passar a noite e armaram acampamento. Saphira juntou-se a eles quando o jantar estava sendo colocado no fogo. Você teve tempo para caçar alguma coisa para comer? - Indagou Eragon. Ela bufou fazendo graça. Se vocês dois andassem um pouco mais devagar, eu teria tempo para atravessar o oceano voando e voltar para cá sem ficar para trás. Você não precisa nos insultar. Além disso, viajaremos mais rápido quando tivermos cavalos. Ela soltou uma pequena nuvem de fumaça. Talvez, mas será o bastante para pegar os ra'zac? Eles têm uma vantagem de vários dias e muitos quilômetros. E temo que eles suspeitem que os estejamos seguindo. Por que eles destruíram a fazenda de uma maneira tão impressionante? Só podia ser para provocá-lo e para que fôssemos atrás deles. Sei lá, - disse Eragon perturbado. Saphira enroscou-se ao lado dele, e ele recostou-se na barriga dela, aproveitando seu calor. Brom sentou no outro lado da fogueira, cortando duas longas varas com um canivete. De repente, Brom jogou uma para Eragon, que a pegou por reflexo depois que ela passou voando por cima das chamas crepitantes. - Defenda-se! - gritou Brom, ficando em pé. Eragon olhou para a vara que segurava na mão e reparou que tinha a forma improvisada de uma espada. Será que Brom queria lutar? Que chance aquele velho teria? Se ele quer brincar, tudo bem, mas se ele acha que vai me vencer, terá uma surpresa. Eragon se levantou enquanto Brom rodeava a fogueira. Eles se encararam por um momento, até que Brom atacou, balançando sua vara. Eragon tentou bloquear o ataque, mas foi lento demais. Gritou quando Brom o atingiu nas costelas e tropeçou para trás. Sem pensar, jogou-se para a frente, mas Brom impediu o ataque sem a menor dificuldade. Eragon chicoteou com a vara em direção à cabeça de Brom, mas desviou no último minuto, tentando atingir o lado do corpo. A batida seca de madeira batendo em madeira ecoou pelo acampamento. - Improvisação... Bom! - exclamou Brom com um brilho nos olhos. O braço dele deslocou-se com uma velocidade incrível, produzindo um borrão, e Eragon sentiu uma explosão de dor no lado de sua cabeça. Eragon caiu como um saco vazio, atordoado. Um jato de água gelada despertou-o, e ele sentou, esbravejando. A cabeça latejava e havia sangue seco em seu rosto. Brom estava em pé, perto dele, segurando uma panela com água produzida com a neve derretida. - Você não precisava ter feito isso - disse Eragon zangado, colocando-se de pé. Sentia-se tonto e confuso. Brom arqueou uma de suas sobrancelhas. - É? Um inimigo de verdade jamais bateria com menos força, então eu também tenho de fazer isso. Será que devo levar em conta a sua... incompetência, para você se sentir melhor? Acho que não. - Pegou a vara que Eragon havia deixado cair e a ofereceu a ele. - Agora, defenda-se. Eragon olhou perplexo para o pedaço de madeira e balançou a cabeça. - Esqueça. Já chega. - Ele se virou e tropeçou quando foi atingido com força nas costas. Voltou-se rosnando. - Nunca vire as costas para o inimigo! - berrou Brom, depois jogou a vara para ele e atacou. Eragon recuou para trás da fogueira, tentando se livrar do ataque. - Braços para a frente. Joelhos flexionados - gritava Brom. Continuou a dar instruções, depois parou para ensinar a Eragon como aplicar um certo golpe com perfeição. - Faça novamente, mas, desta vez, mais devagar - Eles ensaiaram os movimentos antes de recomeçarem uma calorosa luta. Eragon aprendia rapidamente, mas não importava quanto tentasse, ele não conseguia deter mais do que alguns golpes de Brom. Quando terminaram, Eragon caiu pesadamente em seus cobertores e gemeu. Sentia dores em todas as partes do corpo. Brom não foi nem um pouco clemente com sua vara. Saphira soltou um rosnado longo e tossido e ergueu o lábio até que um conjunto formidável de dentes aparecesse. O que há de errado com você? - Perguntou irritado. Nada, - respondeu ela. - É engraçado ver um filhote como você ser derrotado por um ancião. - Ela produziu aquele som de novo, e Eragon ficou vermelho quando notou que ela estava rindo. Tentando preservar um pouco de dignidade, virou-se para o lado e dormiu. Sentia-se ainda pior no dia seguinte. Hematomas cobriam seus braços e o corpo doía demais, dando aquela vontade de não se mexer. Brom olhou por cima do mingau que servia e sorriu. - Como está se sentindo? Eragon resmungou e engoliu apressadamente seu desjejum. Na estrada, viajaram rápido para chegar a Therinsford antes do meio dia. Depois de cinco quilômetros, o caminho se alargou, e eles viram fumaça ao longe. - É melhor você dizer a Saphira para voar distante e nos esperar do outro lado de Therinsford - orientou Brom. - Ela deve tomar muito cuidado por aqui, pois as pessoas poderão notar sua presença. - Por que você não lhe diz isso? - desafiou Eragon. - É considerado falta de educação interferir com o dragão de outra pessoa. - Você não teve nenhum problema para fazer isso no Carvahall. Os lábios de Brom se agitaram em um sorriso. - Fiz o que tinha de fazer. Eragon olhou para ele de modo ameaçador, mas acabou passando as instruções. Saphira alertou: Cuidado. Os servos do Império podem estar escondidos em qualquer lugar. Conforme os sulcos na estrada ficavam mais fundos, Eragon notava mais pegadas. Fazendas indicavam que eles se aproximavam de Therinsford. O povoado era maior do que Carvahall, mas havia sido construído desordenadamente. As casas não seguiam nenhum padrão de alinhamento. - Mas que bagunça! - observou Eragon. Ele não podia ver o moinho de Dempton. Baldor e Albriech já devem ter falado com Roran agora. Mas isso não importava, pois Eragon não queria falar com o primo naquele momento. - No mínimo, é feio - concordou Brom. O rio Anora corria entre eles e a cidade e era cruzado por uma ponte resistente. Ao se aproximarem dela, um homem sujo saiu de trás de um arbusto e impediu a passagem. A camisa dele era curta, e sua barriga imunda transbordava por cima do cinto de corda. Atrás de seus lábios rachados, os dentes pareciam lápides deterioradas. - Vocês não podem ficar parados aí. Esta ponte é minha. Quem quiser passar tem que pagar. - Quanto? - indagou Brom com um tom de voz resignado. Ele pegou uma bolsa, e os olhos do dono da ponte brilharam. - Cinco coroas - declarou, abrindo um largo sorriso. Eragon ficou irritado por causa do preço exorbitante e começou a reclamar calorosamente, mas Brom silenciou-o com um rápido olhar. As moedas Acima, crescente a cada passo, Utgard aparecia indistintamente, seus precipícios íngremes eram sulcados por cânions nevados. A rocha negra da montanha absorvia a luz como uma esponja e escurecia as áreas vizinhas. Havia uma fenda profunda entre Utgard e a fileira de montanhas que se formava no lado leste do vale Palancar. Era a única saída prática. A estrada levava até ela. Os cascos dos cavalos batiam fortemente no cascalho. A estrada diminuiu, virando uma pequena trilha que rodeava a base de Utgard. Eragon olhou para cima, para o pico que se elevava sobre eles, e ficou surpreso ao ver uma torre lá no alto. A construção estava em mau estado de conservação, mas não deixava de ser uma solene sentinela de todo o vale. - O que é aquilo? - apontou Eragon. Brom não olhou para cima, mas respondeu com tristeza e amargura: - Era um posto avançado dos Cavaleiros. Ele data dos tempos da fundação da ordem. Foi onde Vrael se refugiou e onde, por traição, ele foi encontrado e derrotado por Galbatorix. Quando Vrael caiu, esta área ficou maculada. Edoc'sil, "Inconquistável", era o nome desse bastião, pois a montanha é tão íngreme que quase ninguém consegue chegar ao topo, a não ser que possa voar. Depois da morte de Vrael, os cidadãos começaram a chamar o lugar de Utgard, mas ele tem outro nome, Ristvak'baen, o Lugar da Dor. Era conhecido assim pelos últimos Cavaleiros, antes de serem mortos pelo rei. Eragon admirava com veneração. Aqui estava algo remanescente e tangível da glória dos Cavaleiros, embora estivesse escurecido pela inclemente ação do tempo. De repente, percebeu como os Cavaleiros eram antigos. Um legado de tradição e heroísmo, que datava da Antiguidade, pairava sobre ele. Viajaram durante longas horas contornando Utgard. A montanha formava uma parede sólida, à direita deles, quando entraram na ruptura que dividia a cordilheira. Eragon ficou em pé em seus estribos, pois estava impaciente para ver o que havia fora do vale Palancar, mas tudo ainda estava longe demais. Durante um tempo, andaram por uma passagem inclinada, contornando a colina e um fosso, acompanhando o rio Anora. Depois, com o sol baixo atrás deles, chegaram a uma parte elevada onde podiam ver por cima das árvores. Eragon ficou surpreso. Havia montanhas em ambos os lados, mas, abaixo deles, se estendia uma enorme planície que alcançava o horizonte distante, fundindo-se com o céu. O campo tinha uma cor uniforme, como a de grama seca. Nuvens grandes e nebulosas passavam por cima, moldadas pelos fortes ventos. Agora, ele entendeu por que Brom insistiu nos cavalos. Eles levariam semanas, ou meses, para vencer tamanha distância a pé. Bem lá em cima, viu Saphira voando em círculos. Ela estava alto o suficiente para ser confundida com um pássaro. - Esperaremos até amanhã para começarmos a descida - informou Brom. - Vamos levar quase o dia todo. Então, devemos acampar agora. - Quanto tempo leva para atravessar a planície? - quis saber Eragon, ainda impressionado. - De dois a três dias até mais de duas semanas, dependendo da direção que tomemos. Além das tribos nômades que vagam por esta parte da planície, ela é quase tão desabitada quanto o deserto Hadarac ao leste. Então, não encontraremos muitos vilarejos. Contudo, ao sul, as planícies são menos áridas e mais habitadas. Saíram da trilha e desmontaram perto do rio Anora. Ao desselarem os animais, Brom apontou para o cavalo baio. - Você deve dar um nome a ele. Eragon pensou por um instante enquanto prendia a rédea do animal em um pedaço de madeira. - Bem, não pensei em nada tão nobre quanto Fogo na Neve, mas talvez este sirva. - Ele pôs a mão em cima do cavalo baio e disse: - Eu o nomeio Cadoc. Era o nome do meu avô, portanto use-o bem. Brom assentiu com a cabeça em sinal de aprovação, mas Eragon sentiu-se um pouco tolo. Quando Saphira pousou, ele perguntou: Como são as planícies? Entediantes. Não há nada lá, a não ser coelhos e arbustos raquíticos em todas as direções. Depois do jantar, Brom ficou em pé e gritou: - Pegue! Eragon mal teve tempo para erguer o braço e pegar o pedaço de madeira antes que atingisse a sua cabeça. Ele resmungou ao ver outra espada improvisada. - De novo, não - reclamou. Brom apenas sorriu e acenou com uma das mãos. Eragon, relutante, ficou em pé. Giraram rapidamente em meio à agitação das madeiras, e Eragon recuou com um braço dolorido. O treinamento foi mais curto do que o primeiro, mas foi longo o bastante para que Eragon juntasse uma nova coleção de hematomas. Quando terminaram o treino, Eragon jogou, desgostoso, a vara no chão e afastou-se da fogueira para cuidar dos seus ferimentos. Trovoadas e Relâmpagos Na manhã seguinte, Eragon evitou relembrar qualquer um dos eventos mais recentes, eram dolorosos demais. Em vez disso, concentrou suas energias em descobrir um meio de achar e matar os ra'zac. “Vou matá-los com o meu arco”, decidiu, imaginando como aquelas figuras que usavam mantos ficariam com flechas atravessadas em suas silhuetas. Ele tinha dificuldade até para ficar em pé. Seus músculos doíam com o menor movimento. E um dos seus dedos estava quente e inchado. Quando estavam prontos para partir, montou em Cadoc e disse amargamente: - Se isso continuar, você vai me fazer em pedacinhos. - Eu não exigiria tanto se achasse que você não é suficientemente forte. - Pelo menos uma vez, eu não me importaria em ser menosprezado - resmungou Eragon. Cadoc empinou nervosamente quando Saphira se aproximou. Ela olhou para ele com uma expressão muito próxima da repugnância e disse: Não há onde se esconder nas planícies. Então, não vou me preocupar em tentar ficar fora de vista. Voarei acima de vocês a partir de agora. Ela decolou, e eles começaram a descer a vereda íngreme. Em alguns locais, a trilha desaparecia por completo, deixando por conta deles acharem o caminho. Às vezes, tinham de desmontar e guiar os cavalos a pé, segurando-se em árvores para que não caíssem lá embaixo. O chão estava salpicado de pedras soltas, o que tornava a caminhada traiçoeira. A provação os deixou com calor, apesar do frio, e irritados. Pararam para descansar quando chegaram lá embaixo, por volta do meio-dia. O rio Anora virava para a esquerda e corria rumo ao norte. Um vento cortante varria a terra, açoitando-os sem piedade. O solo estava ressecado, e a poeira voava, caindo nos olhos. Eragon sentiu-se intimidado por tudo ser tão plano. Não havia outeiros ou montículos. Viveu a vida inteira cercado por montanhas e colinas. Sem elas, sentia-se exposto e vulnerável, como um rato sob o olhar aguçado de uma águia. A trilha dividiu-se em três assim que eles chegaram à planície. A primeira ramificação voltava-se para o norte, na direção de Ceunon, uma das maiores cidades daquela área. A segunda atravessava a planície. E a última se dirigia para o sul. Examinaram as três em busca dos rastros dos ra'zac e, finalmente, acharam as pegadas deles, que seguiam diretamente para a savana. - Parece que eles foram para Yazuac - deduziu Brom com um ar de perplexidade. - Onde fica isso? - Para o leste, a quatro dias de distância, se tudo der certo. É um pequeno vilarejo situado perto do rio Ninor. - Ele apontou para o Anora, que corria para longe, em direção ao norte. - Essa é a nossa última fonte de água. Devemos reabastecer os nossos odres antes de tentar atravessar a planície. Não há outro lago ou riacho entre onde estamos e Yazuac. A emoção da caçada começou a aumentar dentro de Eragon. Em poucos dias, talvez em menos de uma semana, usaria suas flechas para vingar a morte de Garrovv. E depois... Ele se recusou a pensar no que poderia acontecer depois. Encheram os odres, deram água aos cavalos e beberam o máximo que podiam no rio. Saphira juntou-se a eles e tomou vários goles de água. Refeitos, seguiram para leste e começaram a travessia da planície. Eragon concluiu que seria o vento que o enlouqueceria primeiro. Tudo que dificultava sua vida - seus lábios rachados, sua língua seca, seus olhos ardidos - era causado pelo vento. As rajadas incessantes acompanhavam-nos durante o dia. A noite fortalecia o vento ainda mais, ao invés de enfraquecê-lo. Como não havia abrigo, eram forçados a acampar sob o céu aberto. Eragon achou uns arbustos, plantas pequenas e resistentes que sobreviviam naquele ambiente inóspito, e os arrancou da terra. Cuidadosamente fez urna pilha e tentou tocar fogo nela, mas os galhos só produziam fumaça e exalavam um odor horrível. Frustrado, jogou a pederneira para Brom. - Não consigo fazer isso pegar fogo, ainda mais com este vento insuportável. Veja se você consegue. Se não conseguir, comeremos nosso jantar frio. Brom se ajoelhou perto da pilha de arbustos e olhou para ela de modo crítico. Mudou alguns galhos de lugar e tentou acender o fogo, jogando urna cascata de fagulhas em cima das plantas. Surgiu uma fuma- ça, mas nada além disso. Brom fez uma cara feia e tentou novamente, mas ele não teve mais sorte do que Eragon. - Brisingr! - gritou com raiva, batendo a pederneira de novo. De repente, chamas apareceram, e ele recuou com uma expressão satisfeita no rosto. - Pronto. Já devia estar queimando no meio. Eles treinaram com espadas improvisadas enquanto a comida cozinhava. O cansaço falou mais alto para os dois, e então fizeram este treino mais curto do que os outros. Depois de comerem, deitaram perto de Saphira e dormiram, gratos por sua proteção. O mesmo vento frio os saudou pela manhã, varrendo aquela planície ameaçadora. Os lábios de Eragon racharam durante a noite. Sempre que sorria ou falava, gotas de sangue cobriam-nos. Lamber o sangue só piorava as coisas. O mesmo valia para Brom. Antes de montar, deixaram os cavalos beber um pouco da água que tinham. O dia resumiu-se a uma jornada monótona e cansativa. No terceiro dia, Eragon acordou descansado. Isto, somado ao fato de que o vento havia parado, deixou-o de bom humor. Mas a alegria dele ficou um pouco ofuscada quando viu que o céu à frente estava escuro e carregado de pesadas nuvens. Brom olhou para as nuvens e fez uma cara feia. - Normalmente, eu não entraria em uma tempestade como aquela, mas nosso destino é enfrentar tudo o que vier pela frente, não importa o que façamos. Então, vamos tentar vencer mais um pouco da distância que nos separa deles. Tudo ainda estava calmo quando chegaram perto da tempestade. Ao entrarem em sua sombra, Eragon olhou para cima. A nuvem tinha uma estrutura exótica, parecia formar uma enorme catedral natural com um gigantesco teto arqueado. Com um pouco de imaginação, ele conseguia ver as pilastras, as janelas, as galerias que subiam e as gárgulas zangadas. Tinha uma beleza selvagem. Conforme Eragon baixava o olhar, ele viu urna onda gigante na relva vindo em direção a eles, achatando-a. Levou um segundo para perceber que aquela onda era provocada por uma fortíssima rajada de vento. Brom também viu aquilo, e eles encolheram os ombros, preparando-se para o vendaval. A ventania estava, quase em cima deles quando Eragon pensou em algo horrível e se virou em cima da sela, gritando com a voz e com a mente: Saphira! Pouse! - O rosto de Brom ficou branco. Lá em cima, eles a viram mergulhando rumo ao solo. “Ela não vai conseguir!” Saphira virou-se para a direção de onde eles tinham vindo para ganhar tempo. Enquanto viam aquilo, a fúria do vendaval os atingiu como um golpe de um martelo. Eragon respirou fundo e agarrou-se à sela enquanto um uivo incessante enchia seus ouvidos. Cadoc balançou e firmou seus cascos no chão, a crina dele chicoteava no ar. O vento rasgava suas roupas com dedos invisíveis, enquanto o ar se escurecia, repleto de nuvens de poeira. Eragon comprimiu os olhos, procurando por Saphira. Ele a viu pousar bruscamente e se encolher, cravando suas garras no chão. O vento a alcançou no momento em que ela começava a dobrar as asas. Com um puxão violento, o vento as abriu e arrastou-a para o alto. Por um momento, ela ficou no ar, suspensa pela força do vendaval. Depois, caiu de costas no chão. Por meio de uma forte puxada, Eragon fez Cadoc virar e galopar para trás na trilha, estimulando o cavalo tanto com os calcanhares quanto com a mente. Saphira! - Gritou ele. - Tente ficar no chão! Estou chegando! - Sentiu um agradecimento amargo da parte dela. Ao chegarem perto de Saphira, Cadoc empacou, e Eragon desmontou e correu em direção a ela. O arco bateu na cabeça dele. Uma forte rajada de vento desequilibrou-o, e ele voou para a frente, caindo de peito. Escorregou e voltou a se pôr de pé rangendo os dentes, ignorando os profundos arranhões em sua pele. Muitas portas pendiam nas dobradiças danificadas. Os cavalos moviam os olhos de uma maneira tensa. As palmas das mãos de Eragon formigavam, mas resistiu ao ímpeto de coçá-las. Quando entravam no centro da cidade, agarrou seu arco com mais força e ficou pálido. - Meu Deus do céu - sussurrou. Uma montanha de corpos erguia-se acima deles, os cadáveres estavam duros e tinham expressões horríveis no rosto. As roupas estavam ensopadas de sangue, que também manchava o solo pisoteado. Havia homens mortos deitados em cima das mulheres que tentaram proteger, mães ainda agarradas a seus filhos, e namorados que tentaram salvar um ao outro jaziam mortos em um frio abraço. Havia flechas negras espetadas em todos eles. Nem as crianças nem os idosos foram poupados. Mas o pior daquilo tudo era uma lança bem pontuda que sobressaía no topo da pilha, nela estava espetado o corpo branco de um bebê. As lágrimas embaçaram a visão de Eragon, ele tentou desviar o olhar, mas os rostos mortos prendiam sua atenção. Fitava os olhos abertos e pensava em como a vida se esvaiu tão facilmente. Qual é o sentido da nossa existência quando acabamos dessa maneira? Uma onda de desânimo tomou conta dele. Um corvo desceu, vindo do céu, como uma sombra preta e se empoleirou na lança. Ele jogou a cabeça para o lado e começou a examinar o corpo da criança. - Ah, não! Nada disso! - proferiu Eragon irritado enquanto esticava seu arco e liberava a corda, produzindo um estalo. Soltando um monte de penas, o corvo caiu para trás, uma flecha saía do seu peito. Eragon preparou outra flecha no arco, mas um enjôo subiu de seu estômago e vomitou ao lado de Cadoc. Brom deu-lhe alguns tapinhas nas costas. Quando Eragon terminou, Brom perguntou delicadamente: - Quer esperar por mim fora de Yazuac? - Não... Eu ficarei - respondeu Eragon, trêmulo, limpando a boca. Evitou olhar novamente a cena terrível que estava diante deles. - Quem poderia ter feito... - Ele não conseguia pronunciar as palavras. Brom inclinou a cabeça. - Aqueles que sentem prazer na dor e no sofrimento dos outros. Têm muitos rostos e usam muitos disfarces, mas há apenas um nome para eles: maldade. Não há explicação para isso. Tudo o que podemos fazer é lamentar e honrar as vítimas. Ele desmontou de Fogo na Neve e andou pelo local, examinando cuidadosamente os rastros no solo. - Os ra'zac passaram por aqui - disse lentamente. - Mas isso não foi obra deles. Isso foi trabalho dos urgals, a lança foi feita por eles. Uma guarnição passou por aqui, talvez uns cem. É estranho. Sei apenas de algumas raras ocasiões em que eles se reuniram em tamanha... Ele se ajoelhou e examinou uma das pegadas cautelosamente. Xingando, voltou correndo para Fogo na Neve e pulou para cima dele. - Corra! - ordenou com um sussurro, dando esporadas no cavalo para andar para a frente. - Ainda há urgals aqui! Eragon cravou seus calcanhares em Cadoc. O cavalo deu um pulo para a frente e correu atrás de Fogo na Neve. Passaram pelas casas em disparada e estavam quase na saída da cidade quando a palma da mão de Eragon formigou de novo. Ele viu, de relance, um movimento à sua direita, e depois um punho gigantesco atingiu-o, derrubando-o da sela. Ele voou para trás, por cima de Cadoc e caiu batendo em uma parede, mas sem soltar seu arco por puro instinto. Ofegante e abalado, cambaleante, ficou em pé, apertando o lado do corpo. Um urgal estava em sua frente, com um olhar malicioso no rosto. O monstro era alto, forte e mais largo do que os umbrais de uma porta. Tinha pele cinzenta e olhos suínos e amarelados. Os músculos se destacavam nos braços e no peito, que estava protegido por uma pequena placa de metal. Um capacete de metal estava sobre o par de chifres de carneiro que se enroscavam a começar de suas têmporas. E um escudo redondo estava preso em um de seus braços. Sua mão forte segurava uma espada curta e de aspecto malévolo. Atrás dele, Eragon viu Brom puxar as rédeas de Fogo na Neve e fazer a volta, mas foi interrompido pela aparição de um segundo urgal, este empunhava um machado. - Corra, seu tolo! - gritou Brom para Eragon, afastando-se de seu inimigo. O urgal na frente de Eragon rosnou e brandiu sua espada majestosamente. Eragon jogou-se para trás, gritando, quando a arma passou assoviando perto de sua bochecha. Ele virou-se e correu para o centro de Yazuac, seu coração batia freneticamente. O urgal o perseguiu, pesadas botas retumbavam. Eragon enviou um pedido de socorro desesperado à Saphira e tentou correr ainda mais rápido, O urgal ganhou terreno rapidamente apesar dos esforços de Eragon, suas grandes presas eram separadas por um bramido insondável. Com o urgal quase em cima, Eragon preparou uma flecha, virou, parou, mirou e disparou. O urgal levantou o braço rapidamente e aparou o projétil com o seu escudo. O monstro se chocou com Eragon antes que ele pudesse atirar de novo, os dois caíram, engalfinhando-se no chão. Eragon ficou de pé rapidamente e correu em direção a Brom, que trocava golpes com seu oponente enquanto estava montado em Fogo na Neve. Onde está o resto dos urgals? Pensou freneticamente Eragon. Será que só há estes dois em Yazuac? Ouviu-se um estalo alto, e Fogo na Neve recuou, relinchando. Brom se curvou inconsciente sobre sua sela, o sangue corria em seu braço. O urgal ao lado dele uivou triunfante e ergueu seu machado para dar o golpe final. Um grito ensurdecedor saiu de Eragon quando ele mergulhou para cima do urgal. O monstro parou perplexo e começou a encará-lo com um ar de desdém, balançando seu machado. Eragon conseguiu esquivar-se do golpe dado com as duas mãos e feriu o lado do corpo do urgal, produzindo sulcos ensangüentados. O rosto do monstro contorceu-se de raiva. Ele deu outro golpe, mas errou de novo, pois Eragon se atirou para o lado e correu para um beco. Eragon concentrou-se em atrair os urgals para longe de Brom. Esgueirou-se por uma passagem estreita entre duas casas, percebeu que era um beco sem saída e parou derrapando. Tentou voltar, mas os urgals já haviam bloqueado a entrada. Eles avançaram, xingando-o com suas vozes roucas. Eragon virou a cabeça de um lado para o outro, procurando uma saída, mas não havia nenhuma. Quando encarava os urgals, imagens passavam por sua mente: aldeões mortos empilhados em volta de uma lança e um bebê inocente que nunca chegaria à idade adulta. Ao pensar no destino deles, uma força ardente, que queimava, emanou de todas as partes de seu corpo. Era mais do que o desejo por justiça. Era seu corpo inteiro rebelando-se contra a realidade da morte: ele deixaria de existir. A força aumentava cada vez mais, até que se sentiu preparado para liberar toda aquela energia contida. Ele se pôs ereto, esticando o tronco, e todo o medo havia desaparecido. Ergueu seu arco suavemente. Os urgals riram e levantaram seus escudos. Eragon alinhou o olho à flecha, como já havia feito centenas de vezes, e apontou-a para o alvo. A energia dentro dele ardia em um nível quase insuportável. Tinha de liberá-la ou ela iria consumi-lo. De repente, uma palavra escapou de seus lábios. Ele disparou, gritando: - Brisingr! A flecha sibilava no ar, brilhando com uma luz azul crepitante. Ela atingiu o primeiro urgal na testa, e uma explosão ressoou no ar. Uma onda de choque azul emanou da cabeça do monstro, matando o outro urgal instantaneamente. Ela chegou a Eragon antes que ele tivesse tempo para reagir, mas passou por ele sem produzir nenhum mal, dissipando-se contra as casas. Eragon estava em pé, ofegante, e olhou para a palma da sua mão gelada. A gedwéy ignasia brilhava como um metal branco derretido, e, enquanto olhava, ela voltou ao normal. Fechou o punho, e uma onda de cansaço tomou conta dele. Sentiu-se estranho e fraco, como se não comesse há dias. Seus joelhos bambearam, e ele sucumbiu, recostando-se em uma parede. REPREENSÕES Assim que um pouco de força voltou, Eragon saiu cambaleante do beco, contornando os monstros mortos. Não precisou andar muito, Cadoc logo trotava a seu lado. - Ótimo, você não se feriu - balbuciou Eragon. Notou, sem dar muita importância, que suas mãos tremiam violentamente e que seus movimentos estavam instáveis. Ele se sentia alheio, como se tudo o que viu tivesse acontecido com outra pessoa. Eragon viu Fogo na Neve empinando perto de uma casa, com as narinas dilatadas e com as orelhas abaixadas, encostadas na cabeça, pronto para sair correndo. Brom ainda estava caído e imóvel na sela. Eragon fez contato mental e acalmou o cavalo. Assim que Fogo na Neve ficou calmo, Eragon aproximou-se de Brom. Havia um corte grande, ensopado de sangue, no braço direito do velho sábio. A ferida sangrava muito, mas não era profunda nem era larga. Ainda assim, Eragon sabia que tinha de estancar o sangramento antes que Brom perdesse muito sangue. Acariciou Fogo na Neve por alguns instantes e tirou Brom da sela. O peso era grande demais para ele, e Brom caiu pesadamente no chão. Eragon ficou chocado com sua própria fraqueza. Um grito de raiva encheu sua cabeça. Saphira apareceu mergulhando no céu e pousou violentamente à sua frente, mantendo as asas meio erguidas. Ela sibilava furiosa, seus olhos queimavam. Saphira chicoteou a cauda, e Eragon recuou quando ela estalou em cima da cabeça dele. Você está ferido? - Perguntou, a raiva fervia em sua voz. - Não - respondeu enquanto colocava Brom deitado de costas. Ela rosnou e exclamou: Onde estão os monstros que fizeram isso? Vou fazê-los em pedaços! Ele, de um modo que demonstrava sua exaustão, apontou para a direção do beco. - Não vai adiantar nada, eles já estão mortos. Você os matou? - Saphira parecia surpresa. Ele respondeu que sim com a cabeça. - Ainda não sei como. - Com palavras sucintas, contou a ela o que aconteceu enquanto mexia em seu alforje, procurando os panos em que a Czar'roc estava embrulhada. Saphira disse com um tom soberbo: - Você cresceu. Eragon resmungou. Ele achou um pedaço de pano comprido e, cuidadosamente, arregaçou a manga de Brom. Com alguns golpes hábeis, limpou o corte e apertou-o com o pano. Eu queria que nós ainda estivéssemos no vale Palancar, - disse a Saphira. - Lá, pelo menos, eu saberia que plantas usar para tratá-lo. Aqui, não tenho a menor idéia do que posso jazer para ajudá-lo. - Ele pegou a espada do chão, limpou-a e colocou-a de volta na bainha, que estava na cintura de Brom. Devemos partir, - aconselhou Saphira. - Pode haver mais urgals à espreita. Você consegue carregar Brom? A sela não vai deixá-lo cair, e você poderá protegê-lo. Consigo, mas não vou deixá-lo sozinho. Tudo bem, voe perto de mim, mas vamos sair daqui. - Colocou a sela em Saphira e pôs os braços em volta de Brom para tentar levantá-lo, mas, novamente, suas poucas forças não permitiram que isso acontecesse. Saphira... Ajude-me. Ela passou a cabeça por cima dele e prendeu a parte de trás do manto de Brom entre seus dentes. Arqueando o pescoço, ela levantou o velho do chão, como uma gata levanta seu filhote, e colocou-o em suas costas. Depois, Eragon prendeu as pernas de Brom nas correias da sela e ajustou-as. Levantou o olhar quando o ancião gemeu e se virou. Brom piscou por causa da vista ofuscada, colocando a mão na cabeça. Ele baixou o olhar em direção a Eragon, preocupado. - Saphira chegou aqui a tempo? Eragon sacudiu a cabeça. - Explicarei tudo mais tarde. Seu braço está ferido. Fiz o melhor curativo que pude, mas você precisa de um lugar seguro para descansar. - Isso - disse Brom, tocando seu braço com cuidado. - Você sabe onde a minha espada... Ah, já vi que você a encontrou. Eragon terminou de ajeitar as correias. - Saphira levará você e me seguirá pelo ar. - Tem certeza que quer que eu monte nela? - perguntou Brom. - Posso ir montado no Fogo na Neve. - Não com o braço ferido. Em Saphira, mesmo se você desmaiar, não cairá. Brom concordou com a cabeça. - Sinto-me honrado. - Ele segurou o pescoço dela com seu braço bom, e ela decolou de modo agitado, subindo alto no céu. Eragon afastou-se, depois de ser atingido pelos golpes de vento produzidos pelas asas, e voltou aos cavalos. Amarrou Fogo na Neve atrás de Cadoc e saiu de Yazuac, voltando para a trilha e seguindo-a em direção ao sul. O caminho levava a uma área rochosa, desviando-se para a esquerda, e continuava ao longo das margens do rio Ninor. Samambaias, musgos e arbustos pontilhavam os lados da trilha. O clima embaixo das árvores era refrescante, mas Eragon não deixou que o ar reconfortante o iludisse, passando uma falsa sensação de segurança. Ele parou rapidamente para encher os odres e deixar os cavalos beberem água. Ao Brom inclinou a sua cabeça levemente. - Sou perito até certo nível. - Então, por que não a usou para lutar com os urgals? De fato, posso citar várias ocasiões em que ela teria sido útil. Você poderia ter nos protegido na tempestade e evitado que a poeira caísse em nossos olhos. Depois de reabastecer seu cachimbo, Brom disse: - Por alguns motivos simples, na verdade. Eu não sou um Cavaleiro, o que significa que, até quando você está mais fraco, é mais forte do que eu. E já não sou mais jovem, não sou tão forte quanto costumava ser. Está ficando cada vez mais difícil usar magia. Eragon baixou o olhar, envergonhado. - Sinto muito. - Não sinta - disse Brom enquanto movia o braço. - Isso acontece com todo mundo. - Onde você aprendeu a usar magia? - Este fato eu guardarei para mim mesmo... É suficiente dizer que foi em uma área isolada e com um professor muito bom. Posso, no mínimo, repassar o que ele me ensinou. - Brom apagou o cachimbo com uma pedrinha. - Sei que você tem mais perguntas, e vou responder a elas, mas precisa esperar pelo amanhecer. Ele se inclinou para a frente, seus olhos brilhavam. - Até lá, falarei algo para desencorajar quaisquer experiências: a magia consome tanta energia quanto usar seus braços e costas. Foi por isso que você se sentiu exausto depois de destruir os urgals. E foi por isso que fiquei zangado. Você correu um risco enorme. Se a magia tivesse usado mais energia do que havia em seu corpo, ela o teria matado. Só devemos usar magia para as tarefas que não podem ser realizadas de um modo mundano. - Como saber se um feitiço usará toda a sua energia? - perguntou Eragon assustado. Brom ergueu as mãos. - Na maioria das vezes, não sabemos. É por isso que os mágicos precisam conhecer bem seus limites e, mesmo assim, devem ter muito cuidado. Uma vez que você se comprometa a fazer uma magia, não é possível revertê-la, mesmo que possa matá-lo. Isto é um aviso: não tente fazer nada até ter aprendido mais. Agora, basta por esta noite. Enquanto eles esticavam seus cobertores, Saphira comentou com satisfação: Estamos ficando mais fortes, Eragon, nós dois. Logo, ninguém poderá ficar em nosso caminho. É, mas qual caminho vamos escolher? O caminho que quisermos, - respondeu ela presunçosamente, preparando-se para dormir. A MAGIA É UMA COISA MUITO SIMPLES - Por que você acha que aqueles dois urgals ainda estavam em Yazuac? - perguntou Eragon depois que eles estavam na trilha já há algum tempo. - Não parece que havia nenhum motivo para que tivessem ficado para trás. - Suspeito que tenham abandonado o grupo principal para saquearem a cidade. O que acho mais estranho em tudo isso, pelo que sei, é que os urgals se uniram para atacar em conjunto apenas duas ou três vezes na história. É perturbador estarem fazendo isso agora. - Você acha que os ra'zac provocaram o ataque? - Não sei. O melhor que podemos fazer é afastar-nos de Yazuac o mais depressa que pudermos. Além disso, estamos na direção que os ra'zac tomaram: sul. Eragon concordou. - Mas ainda precisamos de provisões. Há outra cidade por perto? Brom balançou a cabeça. - Não, mas Saphira pode caçar para nós se precisarmos comer apenas carne para sobreviver. Este bosque pode parecer pequeno para você, mas há muitos animais nele. O rio é a única fonte de água em um raio de vários quilômetros, então a maioria dos animais da planície vem aqui para beber. Não passaremos fome. Eragon permaneceu em silêncio, satisfeito com a resposta de Brom. Conforme eles cavalgavam, pássaros barulhentos passavam voando rapidamente em volta deles, e o rio corria pacificamente. Era um lugar ruidoso, cheio de vida e energia. Eragon perguntou: - Como aquele urgal pegou você? As coisas aconteceram tão rápido e eu não vi nada. - Foi falta de sorte - resmungou Brom. - Ele não era páreo para mim, então deu um chute no Fogo na Neve. O imbecil do cavalo recuou e me desequilibrou. Era tudo que aquele urgal precisava para me dar este corte. - Ele coçou o queixo. - Suponho que ainda esteja pensando sobre a magia. O fato de tê-la descoberto lhe apresentou um problema delicado. Poucos sabem, mas todos os Cavaleiros podiam usar magia, embora cada um tivesse um poder diferente. Eles mantinham essa habilidade em segredo, mesmo no auge de seu poder, pois lhes dava uma vantagem sobre o inimigo. Se todos tivessem sabido, teria sido difícil lidar com as pessoas comuns. Muitos acham que os poderes mágicos do rei vêm do fato de ele ser um bruxo ou feiticeiro. Não é verdade. Ele faz magia porque é um Cavaleiro. - Qual é a diferença? O fato de eu ter feito magia não faz de mim um feiticeiro? - É claro que não! Um feiticeiro, como um Espectro, usa espíritos para realizar os seus desejos. É algo completamente diferente do seu poder. E também não faz de você um mágico, cujos poderes surgem sem a ajuda de espíritos ou de dragões. E você, com certeza, também não é um bruxo ou um mago, que consegue poder ao fazer poções e encantos. E isso me leva ao ponto de partida: o problema que você arranjou. Jovens Cavaleiros, como você, passavam por um treinamento rigoroso para fortalecer o corpo e aprimorar o controle mental. Isso se estendia durante vários meses, ocasionalmente anos, até que os Cavaleiros tivessem responsabilidade bastante para lidar com a magia. Até lá, não se revelava aos alunos o potencial de seus poderes. Se um deles descobrisse a magia por acidente, ele ou ela era separado do grupo para receber um treinamento particular. Era raro alguém descobrir a magia sozinho. - Ele inclinou a cabeça em direção a Eragon. - Contudo, eles nunca sofreram a mesma pressão que você sofreu. - Então, quando eles, finalmente, eram treinados para usar a magia? perguntou Eragon. - Não vejo como você poderia ensinar isso a alguém. Se tentasse me explicar isso há dois dias, nada faria o menor sentido. - Os alunos deveriam fazer vários exercícios tolos que visavam apenas frustrá-los. Por exemplo: recebiam a ordem de deslocar pilhas de pedras usando apenas os pés, como também encher barris de drenagem com água e outras coisas impossíveis. Depois de um tempo, eles ficavam com raiva o bastante para usar a magia. Na maior parte das vezes, isso dava certo. "O que isso significa é que você estará em desvantagem se, um dia, encontrar um inimigo que tenha recebido esse treinamento. Ainda há alguns inimigos velhos que estão bem vivos; o rei é um deles, sem falar nos elfos. Qualquer um deles poderia acabar com você facilmente.” - Então, o que posso fazer? - Não temos tempo para uma instrução formal, mas podemos fazer muita coisa enquanto viajamos - informou Brom. - Conheço muitas técnicas que você pode praticar e que lhe darão força e controle, mas você não pode obter a disciplina que os Cavaleiros tinham da noite para o dia. Você - ele olhou para Eragon jocosamente - terá de acumular todo esse conhecimento durante a nossa viagem. Será difícil no começo, mas as recompensas serão grandes. Acho que vai deixá-lo satisfeito saber que nenhum Cavaleiro na sua idade conseguiu usar magia do modo como você usou ontem contra aqueles dois urgals. Eragon sorriu com o elogio. - Obrigado. Esta língua tem um nome? Brom riu. - Tem, mas ninguém sabe. Seria uma palavra de um poder incrível, algo com o qual você poderia controlar a língua inteira e todos as que a usassem. As pessoas procuram por ela há muito tempo, mas ninguém a encontrou. - Ainda não entendo como esta magia funciona - disse Eragon. - Como vou usá-la, exatamente? Brom ficou surpreso. - Já não deixei isso claro? - Não. Brom respirou fundo e disse: - Para usar a magia, a pessoa precisa ter um poder inato, o que está cada vez mais raro nos dias de hoje. Você também tem a capacidade de convocar este poder à vontade. Uma vez que o tenha convocado, você deve usá-lo ou liberá-lo. Entendeu? Bem, se quiser utilizar esse poder, deve pronunciar a palavra ou frase da linguagem antiga que descreva a sua intenção. Por exemplo: se você não tivesse dito brisingr ontem, nada teria acontecido. - Então, sou limitado pelo meu conhecimento dessa linguagem? - Exatamente - exclamou Brom. - E também, enquanto a estiver falando, é impossível mentir. Eragon balançou a cabeça. - Impossível. As pessoas sempre mentem. Os sons das palavras antigas não podem evitar que uma pessoa minta. Brom ergueu uma sobrancelha e disse: - Fethrblaka, eka weohnata néiat haina ono. Blaka eom iet lam. De repente, um pássaro voou rapidamente de um galho e pousou na mão dele. Ele cantou alegremente e olhou para eles com seus olhos grandes. Depois de um instante, Brom disse: - Eitha. - E o passarinho saiu voando. - Como você fez isso? - perguntou Eragon espantado. - Prometi não lhe fazer mal. Ele pode não saber exatamente o que falei, mas na linguagem do poder, o significado das minhas palavras estavam evidentes. O pássaro acreditou em mim porque sabe o que todos os animais sabem: aqueles que falam nessa língua estão presos à sua palavra. - E os elfos falam essa língua? - Falam. - Então, eles nunca mentem? - Não é bem assim - admitiu Brom. - Eles afirmam que não mentem, e de certa forma isso é verdade, mas eles aperfeiçoaram a arte de dizer uma coisa que significa outra. Nunca sabemos exatamente qual é a intenção deles ou se compreendemos o que falaram. Muitas vezes, revelam apenas parte da verdade e ocultam o resto. Só uma mente refinada e sutil pode lidar bem com a cultura deles. Eragon ponderou sobre isso. - O que os nomes próprios significam nessa língua? Eles dão poder sobre as pessoas? Os olhos de Brom brilharam em sinal de aprovação. - É claro. Aqueles que falam essa língua têm dois nomes. O primeiro é para ser usado no dia-a-dia e tem pouca autoridade. Mas o segundo é o nome verdadeiro e só é compartilhado com algumas pessoas de confiança. Houve uma época em que ninguém escondia seu nome verdadeiro, mas não vivemos em tempos melhores do que aqueles. Quem conhecer o seu nome verdadeiro terá um poder enorme sobre você. É como pôr a sua vida nas mãos de outra pessoa. Todo mundo tem um nome oculto, mas poucos o conhecem. - Como descobrimos nosso nome verdadeiro? . - Os elfos sabem os deles instintivamente. Ninguém mais tem esse dom. Os Cavaleiros humanos, geralmente, faziam expedições para descobri-lo, ou achavam um elfo que lhes pudesse dizer, o que era raro, pois os elfos não repassam esse dom gratuitamente - respondeu Brom. - Eu gostaria de saber o meu - disse Eragon desejosamente. A expressão do rosto de Brom se fechou. - Tenha cuidado. Pode ser um conhecimento terrível. Saber quem você é, sem qualquer ilusão ou piedade, é um momento de revelação do qual ninguém sai ileso. Algumas pessoas ficaram loucas por causa dessa realidade absoluta. A maioria tenta esquecer. Assim como o nome pode dar poder aos outros, você também poderá ganhar poder sobre si mesmo, se a verdade não acabar com você. E tenho certeza de que isso não aconteceria, - afirmou Saphira. - Ainda assim, quero saber - insistiu Eragon, determinado. - Você não é dissuadido facilmente. Isso é bom, pois só os determinados descobrem sua identidade, mas não posso ajudá-lo. É uma busca que você terá de realizar sozinho. - Brom mexeu seu braço ferido e fez uma cara feia por causa do desconforto. - Por que você, ou eu, não se cura usando a magia? - interrogou Eragon. Brom piscou o olho. - Por nenhum motivo. Eu nunca pensei nisso, pois está além das minhas forças. Você, talvez, seria capaz de fazer isso com a palavra certa, mas não quero que se canse. - Eu poderia livrá-lo de muitos problemas e de muita dor - protestou Eragon. - Vou superar isso - disse Brom categoricamente. - Usar magia para curar uma ferida gasta tanta energia quanto gastaria se ela fosse cicatrizar sozinha. Não quero que fique cansado nos próximos dias. Você não deveria tentar realizar uma tarefa tão difícil assim ainda. DARET Daret ficava às margens do rio Ninor, e tinha de ser assim para que o lugar sobrevivesse. O vilarejo era pequeno e de aspecto selvagem, sem revelar nenhum sinal de seus habitantes. Eragon e Brom aproximaram-se com extremo cuidado. Saphira escondeu-se perto da cidade desta vez: se surgisse algum problema, ela estaria ao lado deles em poucos segundos. Entraram em Daret montados em seus cavalos, esforçando-se para fazer silêncio. Brom segurou a espada com sua mão saudável, seus olhos examinavam todos os lugares. Eragon manteve seu arco parcialmente puxado quando eles passavam pelas casas silenciosas, olhando apreensivo para cada uma delas. Isto não está me cheirando bem, - disse Eragon para Saphira. Ela não respondeu, mas ele sentiu que se preparava para ir correndo até eles. Ele olhou para o chão e ficou mais tranqüilo quando viu pegadas de crianças. Mas onde elas estavam? Brom ficou tenso quando chegaram ao centro de Daret e viram o local vazio. O vento soprava na cidade erma, e pequenos redemoinhos de poeira passavam esporadicamente. Brom fez Fogo na Neve mudar de direção. - Vamos sair daqui. Não estou gostando deste clima. - Usando as esporas, fez Fogo na Neve iniciar um galope. Eragon o seguiu, fazendo Cadoc ir avante. Deram apenas alguns passos até que várias carroças saíram de trás das casas bloqueando o caminho. Cadoc bufou e fincou seus cascos no chão, indo parar ao lado de Fogo na Neve. Um homem moreno pulou por cima da carroça ficando em pé na frente deles. Havia uma grande espada pendurada em sua cintura e um arco retesado em suas mãos. Eragon ergueu seu próprio arco e apontou para o estranho, que ordenou: - Alto! Abaixem as armas! Vocês estão cercados por sessenta arqueiros. Eles atirarão se vocês se mexerem. Como se aquilo fosse uma ordem, uma coluna de homens se formou nos telhados das casas que os rodeavam. Fique longe, Saphira! - Gritou Eragon. - Há muitos deles. Se aparecer, vão atirar em você ainda no céu. Fique longe! Ela ouviu, mas ele não tinha certeza se ela iria obedecer. Preparou-se para usar magia. “Eu terei de deter as flechas antes que elas atinjam a mim ou a Brom”. - O que vocês querem? - perguntou Brom calmamente. - Por que vieram aqui? - inquiriu o homem. - Para comprar suprimentos e saber das notícias. Nada mais. Estamos a caminho da casa do meu primo em Dras-Leona. - Vocês estão fortemente armados. - Vocês também - disse Brom. - Estamos vivendo tempos perigosos. - De fato. - O homem olhou para eles cuidadosamente. - Não acho que queiram nos fazer mal, mas tivemos encontros demais com os urgals e com vários bandidos para eu poder confiar apenas na sua palavra. - Se o que falamos não vale nada, o que acontecerá agora? - contestou Brom. Os homens em cima das casas não se mexeram. Devido à imobilidade deles, Eragon estava certo de que eram extremamente disciplinados ou que estavam mortos de medo. Ele esperava que a última alternativa fosse a correta. - Vocês dizem que querem apenas comprar suprimentos. Então, concordam em ficar aqui enquanto pegamos o que precisam, em pagar e partir imediatamente? - Concordamos. - Tudo bem - disse o homem, abaixando o arco, embora o mantivesse esticado. Ele fez um sinal para um dos arqueiros, que desceu até o chão e correu. - Digam a ele o que precisam. Brom ditou uma pequena lista e acrescentou: - E se você tiver um par de luvas que caibam no meu sobrinho, eu também gostaria de comprá-las. - O arqueiro consentiu com a cabeça e correu. - Meu nome é Trevor - disse o homem que estava na frente deles. - Normalmente, eu apertaria a mão de vocês, mas sob essas circunstâncias, não me aproximarei. Diga, de onde você vem? - Do norte - respondeu Brom. - Mas não vivi em lugar nenhum tempo o bastante para chamá-lo de lar. Os urgals são os responsáveis por vocês tomarem essa medida? - São - respondeu Trevor. - E outros inimigos piores. Vocês têm alguma notícia sobre as outras cidades? Raramente, sabemos das novidades sobre elas, mas ouvimos rumores de que também estão cercadas por suas tropas. Brom ficou com uma expressão pesarosa no rosto. - Eu não queria ser o arauto dessas notícias. Há quase duas semanas, passamos por Yazuac e a encontramos saqueada. Os aldeões foram mortos e empilhados. Nós tentaríamos dar a eles um enterro decente, mas fomos atacados por dois urgals. Chocado, Trevor deu um passo atrás e olhou para baixo, com lágrimas nos olhos. - Infelizmente, este é de fato um dia triste. Ainda assim, não sei como dois urgals poderiam dizimar toda a população de Yazuac. O povo de lá lutava bem, alguns eram meus amigos. - Havia sinais de que um bando de urgals atacou a cidade - explicou Brom. - Acho que os que encontramos eram desertores. - Qual era o tamanho do grupo? Brom mexeu em seu alforje durante um instante. - Grande o bastante para aniquilar a cidade, mas pequeno o suficiente para não ser notado ao se deslocar pelo campo. Não deviam ser mais de cem ou menos do que cinqüenta. Se não estou enganado, tal número seria fatal para vocês. - Trevor concordou, preocupado. - Vocês deviam considerar a possibilidade de deixar a cidade - continuou Brom. - Esta área tornou-se perigosa demais para qualquer pessoa viver em paz. - Eu sei, mas o povo daqui se recusa a mudar. Aqui é o lar deles; é meu lar também, embora eu viva aqui há apenas alguns anos e eles põem o valor do local acima da vida. - Trevor olhou para Brom com seriedade. - Já expulsamos urgals que vieram sozinhos, e isso deu ao povo uma confiança maior do que as habilidades deles. Temo que acordaremos um dia com a garganta cortada. O arqueiro saiu correndo de uma casa com uma pilha de suprimentos nos braços. Ele pôs tudo perto dos cavalos, e Brom pagou a ele. Conforme o homem se afastava, Brom perguntou: - Por que escolheram você para defender Daret? Trevor deu de ombros. - Eu servi no exército do rei durante alguns anos. Brom examinou os itens, deu o par de luvas a Eragon e pôs o resto dos suprimentos em seus alforjes. Eragon calçou as luvas, tendo o cuidado de deixar a palma virada para baixo, e flexionou as mãos. O couro era confortável e forte, embora estivesse gasto devido ao uso. - Bem - disse Brom -, conforme prometemos, partiremos agora. Trevor concordou com a cabeça. - Quando chegarem a Dras-Leona, podem nos fazer um favor? Alertem o Império quanto ao nosso problema e das outras cidades. Se os relatos sobre esses fatos não chegaram ao rei até agora, este será mais um motivo para nos preocuparmos. Se chegaram, porém ele escolheu não fazer nada, isto também é causa de preocupação. - Passaremos o seu recado. Que as suas espadas permaneçam afiadas - desejou Brom. - E as suas. As carroças foram tiradas do caminho, e eles saíram de Daret, indo acompanhar as árvores que margeavam o rio Ninor. Eragon enviou seus pensamentos para Saphira: Estamos voltando. Tudo acabou bem. A única resposta dela foi passar seus sentimentos de raiva contida. Brom puxou a sua barba. - O Império está em piores condições do que imaginei. Quando os mercadores visitaram o Carvahall, passaram relatos de intranqüilidade, mas nunca pensei que tal sentimento houvesse se espalhado tanto. Com todos esses urgals por perto, parece que o próprio Império está sendo atacado, embora nenhuma tropa ou soldados tenham sido enviados. É como se o rei não quisesse defender seus domínios. - Isso é estranho - concordou Eragon. Brom se abaixou ao passar por um galho baixo. - Você usou algum de seus poderes enquanto estávamos em Daret? - Não havia motivo para isso. - Errado - corrigiu-o Brom. - Você poderia ter pressentido as intenções de Trevor. Mesmo com as minhas habilidades limitadas, fui capaz de fazer isso. Se os aldeões tivessem a intenção de nos matar, eu não ficaria parado daquele jeito. Contudo, senti que havia uma grande chance de sairmos de lá argumentando com eles, e foi o que fiz. - Como eu poderia saber o que Trevor estava pensando? - perguntou Ergon. - Devo ser capaz de ver dentro da mente das pessoas? - Ora, ora - repreendeu Brom. - A esta altura, você já devia saber a resposta para esta pergunta. Poderia ter descoberto a intenção de Trevor da mesma maneira como se comunica com Cadoc ou Saphira. A mente dos homens não é muito diferente da mente de um dragão ou de um cavalo. É algo simples de se fazer, mas é um poder que deve ser usado raramente e com grande cautela. A mente de uma pessoa é o seu último santuário. Você nunca deve violá-la a não ser que as circunstâncias forcem-no a fazer tal coisa. Os Cavaleiros tinham regras muito rígidas quanto a isso. Se elas fossem desrespeitadas sem uma causa justa, a punição era severa. - E você é capaz de fazer isso mesmo não sendo um Cavaleiro? - perguntou Eragon. - Como já disse antes, com a instrução adequada, qualquer pessoa pode se comunicar mentalmente, mas com diferentes níveis de aproveitamento. Se isso é magia, é difícil dizer. Habilidades mágicas, certamente, despertarão este talento, ou estabelecer alguma ligação com um dragão, mas conheci muitas pessoas que aprenderam a fazer isso sozinhas. Pense bem: você pode se comunicar com qualquer ser sensitivo, embora o contato nem sempre seja bem claro. Você poderia passar o dia inteiro ouvindo os pensamentos de um pássaro ou analisando como uma minhoca se sente durante uma tempestade. Mas eu nunca achei os pássaros muito interessantes. Sugiro que comece com um gato. Eles têm personalidades incomuns. Eragon apertou as rédeas de Cadoc nas mãos, considerando as implicações do que Brom havia dito. - Mas se posso entrar na mente de uma pessoa, isso não significa que podem fazer o mesmo comigo? Como posso saber se há alguém invadindo a minha mente? Há uma maneira de evitar isso? - “Como posso saber se Brom pode dizer em que estou pensando neste momento?” - Há, sim: Saphira já bloqueou o acesso à mente dela? - Ocasionalmente - admitiu Eragon. - Quando Saphira me levou para a Espinha, eu não conseguia falar com ela. Não é que estivesse me Ignorando, acho que ela não podia me ouvir. Havia muralhas em volta da mente dela impedindo o meu acesso. Brom mexeu em sua atadura durante alguns instantes, posicionando-a mais alto no braço. - Poucas pessoas podem notar que há alguém invadindo suas mentes, e destas só algumas podem evitar que tal invasão aconteça. É uma questão de treino e de como pensar do modo correto. Devido aos seus poderes mágicos, você sempre saberá se alguém estiver entrando em sua mente. Ao conseguir fazer isso, bloquear o acesso a ela será uma simples questão de se concentrar em um pensamento e excluir o resto. Por exemplo, se você pensar apenas em uma parede de tijolos, o inimigo verá só isso na sua mente. Entretanto, é preciso uma grande quantidade de energia e disciplina para bloquear por um tempo o acesso de uma pessoa. Se você for distraído pela menor coisa, a sua parede irá desmoronar, e o seu oponente se aproveitará da sua fraqueza. - Como posso aprender a fazer isso? - quis saber Eragon. - Só há um meio: treinando, treinando e treinando ainda mais. Imagine algo em sua mente e mantenha aquilo lá, excluindo todo o resto, pelo maior período de tempo que você puder. Essa é uma habilidade muito avançada, poucos conseguem dominá-la satisfatoriamente - respondeu Brom. - Não preciso de perfeição, só de segurança. - Se eu puder entrar na mente de uma pessoa, poderei mudar a maneira dela pensar? Sempre que aprendo algo novo sobre magia, fico mais desconfiado com relação a ela. Quando chegaram onde estava Saphira, ela os assustou ao jogar a cabeça na direção deles. Os cavalos recuaram nervosos. Saphira olhou para Eragon cuidadosamente e soltou um sibilo baixo. Seus olhos tinham um aspecto cruel. Eragon olhou preocupado para Brom. Ele nunca havia visto Saphira tão zangada daquele jeito. Então, perguntou: Qual é o problema? Você, -rosnou ela. - Você é o problema. Eragon franziu o rosto e desceu de Cadoc. Assim que seus pés tocaram o chão, Saphira bateu em suas pernas com a cauda e segurou-o com as garras. - O que você está fazendo? - gritou, lutando para se pôr em pé, mas ela era muito mais forte do que ele. Brom observava atentamente montado em Fogo na Neve. A mente dela puxou a dele, extraindo-o de seu corpo. Eragon resistiu por um momento, mas depois se rendeu ao controle dela. Sua visão ficou embaçada, e começou a ver pelos olhos de Saphira. Tudo estava distorcido: as cores tinham tonalidades estranhas, exóticas; os tons de azul eram mais proeminentes agora, enquanto os tons de verde e vermelho ficaram suavizados. Eragon tentou virar sua cabeça e seu corpo, mas não conseguiu. Ele sentia-se como um fantasma que havia descido de um plano etéreo. Pura alegria emanava de Saphira quando ela subia mais alto no céu. Ela adorava aquela liberdade de poder ir a qualquer lugar. Quando estavam bem acima do chão, olhou para trás, em direção a Eragon. Ele viu a si mesmo como Saphira o via, agarrado em seu dorso com um olhar vazio. Podia sentir o corpo dela fazendo resistência contra o ar, usando as correntes ascendentes para subir. Todos os músculos dela eram como se fossem seus. Ele sentiu a cauda movendo-se no ar como um leme gigante corrigindo o curso. Eragon ficou surpreso ao ver como ela dependia daquilo. A ligação entre eles foi ficando mais forte até não haver mais distinção entre a identidade de ambos. Eles fecharam as asas juntos e mergulharam, como uma flecha que tivesse sido atirada lá do alto. Eragon não sentiu o menor medo de cair, pois estava completamente absorto na euforia de Saphira. O ar passava veloz no rosto deles. A cauda de ambos chicoteava no ar, e suas mentes, fundidas, alegravam-se com aquela experiência. Até mesmo quando eles deram um mergulho vertical em direção ao solo, ele não sentiu medo de colidir. Abriram suas asas no momento certo, saindo do mergulho ao combinarem suas forças. Tomando a direção do céu, subiram depressa e continuaram a voar, dando no ar um giro gigante de trezentos e sessenta graus. Quando iniciaram o nivelamento do vôo, suas mentes começaram a separar-se, tornando-se personalidades distintas novamente. Por uma fração de segundo, Eragon sentiu o corpo dele e o de Saphira. Depois, sua visão ficou embaçada, e ele, de novo, viu-se sentado em seu dorso. Suspirou e desmoronou na sela. Levou alguns minutos para que o ritmo do coração voltasse ao normal e para que a sua respiração ficasse estável. Assim que se recuperou, exclamou: Isso foi incrível! Como você suporta aterrissar se gosta tanto de voar? Eu preciso comer, - disse surpresa. - Mas estou feliz por você ter sentido prazer ao voar comigo. Essas palavras não podem descrever uma experiência como essa. Sinto muito por não ter voado com você mais vezes. Nunca achei que poderia ser assim. Você sempre vê tanto azul? Eu sou assim. Nós voaremos juntos com mais freqüência agora? Claro! Em todas as chances que tivermos. Ótimo, - ela retrucou com um tom de satisfação. Eles trocaram vários pensamentos enquanto ela voava, conversavam como se não tivessem feito isso há semanas. Saphira mostrou a Eragon como ela usava colinas e árvores para se esconder e como podia se ocultar na sombra de uma nuvem. Eles examinaram a trilha para Brom, que provou ser mais árdua do que Eragon achava. Só conseguiam ver o caminho se Saphira voasse bem próximo dele, arriscando ser vista. Perto do meio-dia, um zumbido irritante encheu os ouvidos de Eragon, e ele notou uma pressão estranha em sua mente. Balançou a cabeça, tentando livrar-se daquilo, mas a tensão aumentava cada vez mais. As palavras de Brom sobre as pessoas que tentavam invadir a mente de outras passaram de relance pela cabeça de Eragon, e ele tentou, freneticamente, limpar seus pensamentos. Ele se concentrou em uma das escamas de Saphira e se esforçou para ignorar todo o resto. A pressão cedeu por um momento, mas depois voltou mais forte do que nunca. Um golpe de vento repentino balançou Saphira, e a concentração de Eragon se desfez. Antes que pudesse aprontar qualquer defesa, a força invadiu sua mente. Mas em vez de sentir a presença invasiva de outra mente, só havia palavras: O que você pensa que está fazendo? Desça aqui. Achei algo importante. Brom? - Perguntou Eragon. Isso, - respondeu o ancião irritado. Faça essa sua lagarta super-desenvolvida pousar. Estou aqui... - Enviou a Eragon uma imagem do local onde estava. Eragon disse rapidamente a Saphira aonde ir, e ela tomou a direção do rio que estava lá embaixo. Nesse meio-tempo, Eragon preparou seu arco e pegou várias flechas. Se houver problema, estarei pronto. Eu também, - disse Saphira. Quando chegaram perto de Brom, Eragon viu-o em pé em uma clareira, agitando os braços. Saphira pousou, e Eragon pulou de seu dorso, procurando o perigo. Os cavalos estavam presos em uma árvore à margem da clareira e Brom estava sozinho. Eragon foi correndo até ele e perguntou: - O que há de errado? Brom coçou o queixo e balbuciou várias palavras de xingamento. - Nunca mais me bloqueie daquela maneira. Já é muito difícil eu fazer contato com você sem precisar lutar para me fazer ouvido. - Desculpe. Ele bufou. - Eu já havia percorrido um bom pedaço na margem do rio quando notei que as pegadas dos ra'zac haviam desaparecido. Voltei na trilha até o ponto em que elas sumiram. Olhe para o chão e diga-me o que vê. Eragon se ajoelhou, examinou a terra e viu uma mistura de pegadas que era difícil de decifrar. Havia várias pegadas de ra'zac, uma em cima da outra. Eragon viu que as pegadas tinham poucos dias. Sobrepostos em cima delas, havia sulcos compridos e profundos abertos no chão. Aquilo parecia familiar, mas Eragon não sabia como. Ele ficou ali em pé, balançando a cabeça. - Não tenho a menor idéia do que seja... O olhar dele foi parar em Saphira, e ele percebeu o que havia feito aqueles sulcos. Sempre que ela decolava, as garras traseiras eram cravadas no chão, produzindo sulcos daquela mesma maneira. - Isso não faz o menor sentido, mas não posso deixar de pensar que os ra'zac voam usando dragões. Ou eles montaram pássaros gigantes e desapareceram nos céus. Você tem uma explicação melhor para isso? Brom deu de ombros. - Ouvi relatos sobre os ra'zac indo de um lugar para outro com uma velocidade incrível, mas esta é a primeira prova que tenho. Será quase impossível achá-los se tiverem cavalos voadores. Não são dragões, sei disso. Um dragão nunca consentiria que um ra'zac montasse em seu dorso. - O que faremos? Saphira não pode persegui-los no céu. E mesmo se pudesse, você ficaria muito para trás. - Não existe uma solução fácil para esta charada - disse Brom. - Vamos almoçar enquanto pensamos nisso. Talvez, fiquemos inspirados enquanto comemos. - Eragon, triste, foi pegar comida em sua saca. Eles comeram em silêncio, olhando para o céu azul. Novamente, Eragon pensou em sua casa e imaginou o que Roran estaria fazendo. Uma visão da fazenda incendiada surgiu na mente dele e a tristeza ameaçou dominá-lo. O que farei se não encontrarmos os ra'zac? Qual será o meu propósito? Eu poderia voltar para o Carvahall... Ele apanhou um galho do chão e o quebrou entre dois dedos. Ou poderia viajar com Brom e continuar o meu treinamento. Eragon ficou contemplando a planície, tentando acalmar seus pensamentos. Quando Brom acabou de comer, ficou em pé e tirou seu capuz. - Pensei em todos os truques que sei, em todas as palavras de poder que conheço, em todas as habilidades que temos, mas ainda não descobri como podemos achar os ra'zac. - Eragon tombou em cima de Saphira, desesperado. - Saphira poderia se mostrar em alguma cidade. Isso atrairia os ra'zac como moscas até o mel. Mas seria uma coisa extremamente arriscada. Os ra'zac poderiam trazer soldados com eles, e o próprio rei poderia ficar interessado demais a ponto de aparecer pessoalmente, o que seria sinônimo de morte certa para você e para mim. - E agora? - perguntou Eragon, jogando as mãos para o alto. Você tem alguma idéia, Saphira? Não. - Depende de você - disse Brom. - Esta é a sua cruzada. Eragon rangeu os dentes raivosamente e afastou-se de Brom e de Saphira. Quando estava para entrar no meio das árvores, seu pé bateu em algo duro. Um frasco de metal, com uma tira de couro comprida o bastante para deixá-lo pendurado no ombro de alguém, estava caído no chão. Uma insígnia prateada, que Eragon reconheceu como sendo dos ra'zac, estava forjada nele. Animado, ele pegou o frasco e desatarraxou a tampa. Um cheiro enjoativo encheu o ar, era o mesmo cheiro que sentiu quando achou Garrow em meio aos destroços da casa. Virou o frasco, e uma gota de um líquido claro e brilhante caiu no dedo dele. Imediatamente, o dedo de Eragon queimava como se estivesse pegando fogo. Ele gritou e esfregou o dedo no chão. Depois de um momento a dor cedeu, virando um latejar moderado. Um pedaço da pele foi arrancado. Fazendo caretas, voltou correndo até Brom. - Vejam o que achei! Brom pegou o frasco, examinou-o e jogou um pouco do líquido na tampa. Eragon começou a alertá- lo: - Cuidado, isso queima... - A pele. Eu sei - disse Brom. - E suponho que você tenha se adiantado e derramado um pouco na sua mão. No seu dedo? Bem, pelo menos demonstrou um pouco de bom senso ao não tentar beber isto. Tudo o que restaria de você seria uma poça. - O que é isso? - perguntou Eragon. - Óleo das pétalas da planta Seithr, que cresce em uma ilhota nos mares gelados do norte. Em seu estado natural, o óleo é usado para preservar pérolas, ele as deixa brilhosas e resistentes. Mas quando certas palavras são pronunciadas em cima do óleo, juntamente com um sacrifício de sangue, ele ganha a propriedade de dissolver qualquer tipo de carne. Somente isso não o tornaria especial, já que existem vários ácidos que são capazes de dissolver músculos e ossos, mas sim a capacidade de deixar todo o resto intocado. Você pode jogar qualquer coisa dentro deste óleo e tirá-la sem que ela sofra nenhum dano, a não ser que seja parte de um humano ou de um animal. Essa capacidade tornou este óleo uma arma predileta de muitos para cometerem assassinatos e torturas. Ele pode ser armazenado em madeira, pode ser posto na ponta de uma lança ou derramado em lençóis, para que a próxima pessoa que os toque seja queimada. Há inúmeros usos para este óleo, são limitados apenas pela sua inventividade. Qualquer ferimento demora a sarar. Ele é raro e muito caro, especialmente em sua forma convertida. Eragon lembrou-se das terríveis queimaduras que cobriam Garrow. Foi o que usaram nele, percebeu Eragon horrorizado. - Por que será que os ra'zac deixaram para trás algo tão valioso? - Deve ter caído por acidente quando saíram voando. - Mas por que não voltaram para pegá-lo? Duvido que o rei ficará satisfeito ao saber que o perderam. - Não, ele não ficará - assentiu Brom. - Mas ele ficaria mais zangado ainda se eles demorassem muito para levar notícias sobre você. De fato, se os ra'zac já chegaram até ele agora, pode ter certeza de que o rei já sabe seu nome. Isso significa que precisaremos ter muito mais cuidado ao entrarmos nas cidades. Haverá avisos e cartazes falando de você espalhados por todo o Império. Eragon parou para pensar. - Este óleo, ele é muito raro mesmo? - Como diamantes na gamela dos porcos - comparou Brom. Ele se corrigiu depois de alguns segundos. - Na verdade, o óleo normal é usado por joalheiros, mas só por aqueles que têm condição de comprá-lo. - Então, há pessoas que o comercializam? - Talvez, uma ou duas. - Bom - disse Eragon. - As cidades ao longo da costa mantêm registros dos embarques que fazem? Os olhos de Brom faiscaram. - É claro que mantêm. Se tivéssemos acesso a esses registros, saberíamos quem trouxe o óleo para o sul e para onde foi enviado depois. - E o registro da compra do Império nos diria onde os ra'zac moram! - concluiu Eragon. - Não sei quantas pessoas podem comprar este óleo, mas não deve ser difícil descobrir quem não trabalha para o Império. - Genial! - exclamou Brom sorrindo. - Eu queria ter tido esse pensamento há alguns anos. Isso teria me poupado muita dor de cabeça. A costa está repleta de vários vilarejos e cidades onde os navios podem atracar. Suponho que devíamos começar por Teirm, que controla grande parte do comércio. - Brom fez uma pausa. - Pelo que soube, meu velho amigo Jeod mora lá. Não nos vemos há muitos anos, mas ele pode estar disposto a nos ajudar. E por ser comerciante, talvez tenha acesso àqueles registros. - E como chegamos a Teirm? - Devemos seguir rumo a sudoeste até chegarmos a uma passagem em um desfiladeiro na Espinha. Assim que estivermos do outro lado, podemos ir em direção à costa, até Teirm - disse Brom. Um vento suave agitou seus cabelos. UM GOSTINHO DE TEIRM Depois de dois dias viajando em direção ao oceano, Saphira avistou Teirm. Uma névoa densa agarrava-se ao chão, prejudicando a visão de Brom e de Eragon, até que uma brisa vinda do oeste soprou a neblina para longe. Eragon ficou boquiaberto quando Teirm revelou-se em frente a eles de repente, aninhada à beira do mar cintilante, onde imponentes navios estavam atracados com suas velas recolhidas. O barulho contínuo das ondas estourando podia ser ouvido ao longe. A cidade ficava protegida atrás de uma muralha branca - que tinha trinta metros de altura e nove metros de largura -, com carreiras de fendas retangulares para os arqueiros lançarem as flechas em toda a sua extensão e uma passarela no topo para os soldados e sentinelas. A superfície lisa da muralha era quebrada por duas grandes portas metálicas levadiças em forma de grade, uma voltada para o mar ocidental, e a outra, para o sul, na direção da estrada. Acima da muralha - e assentada sobre sua porção nordeste - erguia-se uma enorme fortaleza, construída com pedras gigantescas e munida de várias torres. No torreão mais alto, a luz de um farol brilhava cintilante. O castelo era a única coisa visível acima das fortificações. Soldados guardavam o portão sul, mas seguravam suas lanças negligentemente. - Este será o nosso primeiro teste - disse Brom. - Vamos torcer para que não tenham recebido um alerta do Império contra nós e que não nos detenham. Não importa o que aconteça, não entre em pânico e não se comporte de modo misterioso. Eragon disse a Saphira: Agora, você devia pousar em algum lugar e se esconder. Nós vamos entrar. Metendo o nariz onde não deve. De novo, - disse ela de mau humor. Eu sei. Mas Brom e eu temos alguns trunfos que a maioria das pessoas não tem. Nós ficaremos bem. Se acontecer alguma coisa, vou prendê-lo nas minhas costas e nunca mais vou soltá-lo. Eu também amo você. Então, vou prendê-lo ainda mais forte. Eragon e Brom cavalgaram em direção ao portão, tentando agir de modo casual. Uma flâmula amarela, que ostentava o contorno de um leão rugindo e um braço segurando um lírio, tremulava acima da entrada. Ao se aproximarem da muralha, Eragon perguntou admirado: - Qual é o tamanho deste lugar? - É maior do que qualquer cidade que você já viu - respondeu Brom. Na entrada para Teirm, a postura dos guardas era mais ereta e bloqueavam o portão com suas lanças. - Qual é o nome de vocês? - perguntou um deles, com um tom de voz desinteressado. - Eu me chamo Neal - respondeu Brom com uma voz asmática, caminhando sem aprumo e com uma feliz expressão de tolice no rosto. - E quem é o outro? - perguntou o guarda. - Ora, eu já ia falar. Este é o meu sobrinho Evan. Ele é filho de minha irmã, não é... O guarda sacudiu a cabeça impacientemente. - Sei, sei. E o que veio fazer aqui? - Ele veio visitar um velho amigo - respondeu Eragon, forçando um sotaque. - Só vim junto para ele não se perder, se é que você me entende. Ele já não é jovem... e pegou muito sol na cabeça quando era garoto. Parece que fritou os miolos, sabe? Brom sacudiu a cabeça prazerosamente. - Certo. Podem passar - disse o guarda, acenando e abaixando a lança. - Só tome cuidado para que ele não cause nenhum problema. - Oh, ele não fará nada disso - prometeu Eragon. Ele tocou Cadoc para a frente, e entraram em Teirm. A rua calçada com pedras estalava embaixo dos cascos dos cavalos. Assim que ficaram longe dos guardas, Brom sentou-se e reclamou: - Parece que fritou os miolos, sabe? - Eu não podia deixar você se divertir sozinho - provocou Eragon. Brom limpou a garganta como um sinal de reprovação e olhou para o lado. As casas eram austeras e sinistras. Janelas pequenas e profundas deixavam entrar apenas poucos raios de luz. Portas estreitas ficavam recuadas dentro das edificações. Os telhados eram planos, exceto por algumas armações de metal, e cobertos por telhas de pedra. Eragon notou que as casas mais próximas à muralha de Teirm não tinham mais de um andar de altura e que as edificações iam ficando, gradativamente, mais altas conforme se afastavam. As mais perto da cidadela eram as mais altas de todas, embora fossem insignificantes comparadas à fortaleza. - Este lugar parece estar pronto para a guerra - comentou Eragon. Brom anuiu com a cabeça. - A história de Teirm está repleta de ataques de piratas, urgals e outros inimigos. Há muito tempo é um centro de comércio. Sempre haverá conflito onde os ricos ganham em abundância. As pessoas daqui foram forçadas a tomar medidas extraordinárias para evitar que fossem pilhadas. E o fato de Galbatorix dar- lhes soldados para protegerem a cidade também ajuda muito. - Por que há casas mais altas do que outras? - Olhe para a fortaleza - disse Brom apontando. - Tem uma vista sem obstruções de toda Teirm. Se a muralha for invadida, os arqueiros podem se posicionar em todos os telhados. E porque as casas da frente, perto da muralha, são mais baixas, os arqueiros das casas mais atrás podem atirar sem medo de atingir os seus colegas. Além disso, se os inimigos tomassem aquelas casas e colocassem seus arqueiros em cima delas, seria muito fácil atingi-los. - Nunca vi uma cidade planejada dessa maneira - disse Eragon maravilhado. - De fato, mas isso só foi feito depois que Teirm quase foi completamente incendiada por um ataque pirata - comentou Brom. Enquanto continuavam a subir a rua, as pessoas olhavam para eles desconfiadas, mas também não demonstravam um interesse maior. “Comparada à nossa recepção em Daret, desta vez fomos recebidos de braços abertos. Talvez Teirm ainda não saiba nada sobre os urgals”, pensou Eragon. Mas mudou de opinião quando um homem grande, de ombros largos, passou com uma espada na cintura. Havia outros sinais sutis de tempos conturbados: não havia crianças nas ruas, as pessoas ficavam de rosto fechado e muitas casas estavam vazias, com ervas daninhas crescendo entre as pedras que cobriam seus jardins. - Parece que eles tiveram algum problema - observou Eragon. - Igual a todos os outros lugares - disse Brom fechando a carranca. - Precisamos achar Jeod. - Dirigiram seus cavalos para o outro lado da rua, até uma taverna, e os amarraram em um pequeno poste. - A Castanha Verde... Excelente - resmungou Brom, olhando para o letreiro desgastado enquanto ele e Eragon entravam no local. O salão sombrio parecia ser inseguro. O fogo ardia lentamente na lareira, mas ninguém parecia se incomodar ao ponto de querer alimentá-lo com mais um pedaço de lenha. Poucas pessoas solitárias nos cantos bebericavam seus drinques com expressões mal-humoradas no rosto. Um homem que não tinha dois dedos, sentado em uma mesa mais distante, observava sua mão mutilada. O homem atrás do balcão do bar tinha um toque de cinismo nos lábios e segurava com as duas mãos um copo que não parava de limpar, embora estivesse quebrado. Brom se encostou no balcão e perguntou: - O senhor sabe onde posso encontrar um homem chamado Jeod? Eragon ficou ao lado dele, mexendo na ponta do seu arco, que estava na altura de sua cintura. Embora a arma estivesse pendurada nas suas costas, Eragon queria que, naquele momento, ela estivesse em suas mãos. O homem no bar disse em um tom de voz mais alto do que o nor mal: - Ora, por que eu deveria saber? Acha que fico tomando conta de todos os grosseirões que vivem neste lugar no meio do nada? - Eragon recuou quando todos os olhos do lugar se voltaram para eles. Brom continuou a falar suavemente: - Será que isto poderia melhorar a sua memória? - Ele deslizou três moedas em cima do balcão do bar. O homem ficou mais alegre e deixou o copo de lado. - Pode ser - respondeu, abaixando seu tom de voz. - Mas a minha memória precisa de muito incentivo. A expressão no rosto de Brom ficou mais séria, contudo ele deslizou mais moedas sobre o balcão. O homem atrás do bar chupava um dos lados das suas bochechas, demonstrando indecisão. - Tudo bem - disse finalmente e fez o gesto de que ia pegar as moedas. Mas, antes que ele as tocasse, o homem que não tinha dois dedos disse lá da mesa dele: - Gareth, o que você acha que está fazendo? Qualquer um na rua pode dizer a eles onde Jeod mora. Por que você está cobrando dinheiro deles? Brom passou a mão nas moedas, jogando-as de volta na sua bolsa. Gareth lançou um olhar fulminante para o homem na mesa e, depois, se virou para eles e pegou o copo de novo. Brom foi até o estranho e disse: - Obrigado. Meu nome é Neal. Este é Evan. O homem ergueu sua caneca para eles. - Martin. E, claro, já conheceram Gareth. - A voz dele era grave e áspera. Martin apontou para algumas cadeiras vazias. - Vamos, sentem-se. Não me incomodo. - Eragon pegou uma cadeira e ajeitou-a de modo que ficasse de costas para a parede e de frente para a porta. Martin ergueu uma sobrancelha, mas não fez nenhum comentário. - Você acabou de me fazer economizar algumas coroas - disse Brom. - O prazer foi todo meu. Mas não posso culpar Gareth, pois os negócios não têm sido muito bons ultimamente. - Martin coçou o queixo. - Jeod mora no lado oeste da cidade, bem ao lado de Ângela, a herbolária. Vai fazer algum negócio com ele? - Mais ou menos - respondeu Brom. - Bem, ele não estará interessado em comprar nada, pois perdeu outro navio há poucos dias. Brom aproveitou a divulgação desta notícia e perguntou com interesse: - O que aconteceu? Não foram os urgals, não é? - Não - respondeu Martin. - Eles saíram da área. Ninguém os vê há quase um ano. Parece que foram para o sul e para o leste. Mas eles não são nosso maior problema. A maioria dos nossos negócios é feita com o comércio marítimo, como você deve saber muito bem. Então... - Ele parou para dar um gole em sua caneca. - Já faz alguns meses que alguém vem atacando nossos navios. Não são atos de pirataria comuns, pois só os navios que levam as mercadorias de certos comerciantes é que são atacados. Jeod é um deles. A coisa está tão feia que nenhum comandante aceita mercadorias daqueles comerciantes, o que dificulta a nossa vida aqui. Especialmente porque alguns deles dirigem as maiores empresas de comércio marítimo do Império. Estão sendo forçados a despachar suas mercadorias por terra, o que elevou os custos de modo absurdo, e suas caravanas nem sempre chegam aos seus destinos. - Vocês têm alguma idéia de quem seja o responsável? Deve haver alguma testemunha - disse Brom. Martin balançou a cabeça. - Ninguém sobrevive aos ataques. Os navios saem e desaparecem, nunca mais voltam a ser vistos. Martin se inclinou em direção a eles e disse baixinho: - Os marinheiros dizem que é magia. - Ele concordou com a cabeça, piscou o olho e recostou-se na cadeira. Brom pareceu ficar preocupado com as palavras dele. - O que você acha? Martin deu de ombros. - Não sei. E acho que nunca saberei, a não ser que me aconteça a infelicidade de estar em um daqueles navios capturados. - O senhor é marinheiro? - indagou Eragon. - Não - resmungou Martin. - Pareço com um? Os comandantes me contratam para defender os navios contra os piratas. E aqueles ordinários não têm demonstrado muita atividade recentemente. Ainda assim, é um bom trabalho. - Mas é perigoso - afirmou Brom. Martin deu de ombros de novo e bebeu o que restava de sua cerveja. Brom e Eragon saíram do bar e dirigiram-se para o lado oeste da cidade, que era a região mais bonita em Teirm. As casas eram limpas, enfeitadas e grandes. As pessoas nas ruas usavam roupas caras e andavam com um ar de autoridade. Eragon sentiu-se deslocado, fora do seu ambiente. Brom relaxou, sentando em uma cadeira, e pegou seu cachimbo. Lentamente soprou um anel de fumaça que ficou verde, entrou como uma flecha pela lareira e voou pela chaminé. - Você se lembra do que estávamos fazendo em Gil'ead? - Lembro, claro - respondeu Jeod. - Aquele tipo de coisa é difícil de esquecer. - Uma narração incompleta, mas não deixa de ser correta - disse Brom secamente. - Quando nós fomos... Separados, não consegui achá-lo. No meio da confusão, deparei com um pequeno quarto. Não havia nada de extraordinário nele, só caixotes e caixas, mas, por pura curiosidade, fui investigar. A sorte sorriu para mim naquele momento, pois achei o que estávamos procurando. - Uma expressão de espanto passou pelo rosto de Jeod. - Assim que aquilo estava em minhas mãos, eu não podia esperar por você. Eu poderia ser descoberto a qualquer segundo, e tudo estaria perdido. Eu me disfarcei o melhor que pude, fugi da cidade e corri para os... - Brom hesitou, olhou para Eragon e continuou: - Corri para os nossos amigos. Eles guardaram aquilo em um cofre, para que ficasse bem seguro, e fizeram-me prometer cuidar de quem o recebesse. Até o dia em que as minhas habilidades fossem requeridas, eu tinha de desaparecer. Ninguém podia saber que eu estava vivo, nem mesmo você, embora tenha me doído ter-lhe causado sofrimento sem necessidade. Aí, fui para o norte e me escondi no Carvahall. Eragon apertou suas mandíbulas, furioso porque Brom continuava a deixá-lo sem saber de sua história de propósito. Jeod franziu o rosto e perguntou: - Então, nossos... Amigos sabiam que você estava vivo esse tempo todo? - Sabiam. Ele suspirou. - Suponho que o estratagema tenha sido inevitável, embora eu preferisse que eles tivessem me contado. O Carvahall não fica bem ao norte, do outro lado da Espinha? - Brom inclinou a cabeça. Pela primeira vez, Jeod examinou Eragon. Seus olhos cinzentos repararam em todos os detalhes. Ele ergueu as sobrancelhas e disse: - Presumo, então, que você esteja cumprindo a sua missão. Brom balançou a cabeça. - Não, não é tão simples assim. Aquilo foi roubado há algum tempo, pelo menos é o que presumo, pois não recebi nenhum alerta dos nossos amigos e suspeito que os mensageiros deles foram pegos em ciladas, Então decidi descobrir o que pudesse. Por acaso, Eragon viajava na mesma direção. Agora, estamos viajando juntos. Jeod parecia confuso. - Mas se eles não mandaram nenhum mensageiro, como você poderia saber que era a sua... Brom interrompeu-o rapidamente dizendo: - O tio de Eragon foi brutalmente assassinado pelos ra'zac. Incendiaram a casa dele e quase o mataram também. Ele merece vingança, mas estamos sem nenhuma pista para seguir, e precisamos de ajuda para achá-los. A expressão do rosto de Jeod ficou mais tranqüila. - Entendo... Mas por que você veio até aqui? Não sei onde os ra'zac podem estar escondidos e quem souber não vai dizer a você. Em pé, Brom enfiou a mão no bolso do seu manto e pegou o frasco dos ra'zac. Ele o jogou para Jeod. - Havia óleo de Seithr aí dentro, do tipo perigoso. Os ra'zac estavam com isso. Eles o perderam na trilha, e nós o achamos. Precisamos ver os registros de despachos marítimos de Teirm para acompanharmos as compras do Império desse óleo. Isso nos mostrará onde fica o esconderijo dos ra'zac. Linhas de expressão apareceram no rosto de Jeod enquanto pensava. Ele apontou para as estantes de livros. - Estão vendo aquilo? São os registros dos meus negócios. De um comerciante. Vocês querem iniciar um projeto que pode levar meses. E há outro problema, maior do que esse. Os registros que vocês procuram ficam guardados neste castelo, mas apenas Brand, o gerente de comércio de Risthart, pode consultá-los regularmente. Comerciantes como eu não têm a permissão de examiná-los. Eles temem que possamos falsificar os números, enganando o Império quanto aos seus preciosos impostos. - Poderei lidar com isso quando chegar o momento - asseverou Brom. - Mas precisamos de alguns dias de descanso antes de podermos pensar em pôr o plano em prática. Jeod sorriu. - Parece que chegou a minha vez de ajudá-lo. Minha casa é sua, claro. Estão usando outro nome enquanto estão aqui? - Estamos - retorquiu Brom. - Sou Neal, e o rapaz é Evan. - Eragon - avaliou Jeod. - Você tem um nome singular. Poucas pessoas receberam o nome do primeiro Cavaleiro. Na minha vida toda, li somente sobre três pessoas que eram chamadas dessa maneira. - Eragon ficou surpreso com o fato de Jeod saber a origem de seu nome. Brom olhou para Eragon. - Você poderia ir ver se os cavalos estão bem? Acho que não amarrei direito o arreio de Fogo na Neve. Eles estão tentando esconder algo de mim. Assim que eu sair, eles vão falar sobre isso. Eragon levantou abruptamente da cadeira e saiu da sala, batendo a porta. Fogo na Neve não havia se mexido, o nó que o segurava estava bem firme. Coçando os pescoços dos cavalos, Eragon recostou-se, emburrado, na parede do castelo. “Isso não é justo”, reclamava consigo mesmo. “Eu queria poder ouvir o que eles estão falando”. Ficou ereto de repente, animado. Brom ensinou algumas palavras a ele que poderiam melhorar sua audição. “Ouvidos aguçados não é exatamente o que quero, mas talvez consiga fazer aquelas palavras trabalharem a meu favor. Afinal, veja o que consegui fazer com brisingr”! Ele se concentrou intensamente, buscando seu poder. Assim que ele o atingiu, disse: "Thverr stenr un atra eka hórna”! E imbuiu essas palavras de seu desejo. Quando o poder emanou dele, ouviu um fraco sussurro em seus ouvidos, mas nada mais. Desapontado, voltou a sentar e deu um pulo quando Jeod disse: - ... E estou fazendo isso há quase oito anos. Eragon olhou em volta. Não havia ninguém por perto, exceto alguns guardas que tomavam conta do portão que dava acesso ao pátio. Sorrindo, sentou no pátio e fechou os olhos. - Eu nunca podia imaginar que você viraria um comerciante - disse Brom. - Depois de todo o tempo que você passou com os livros. E achar a passagem daquela maneira! O que fez você abraçar o comércio em vez de continuar sendo um estudioso? - Depois de Gil'ead, perdi o gosto de ficar sentado em salas úmidas, lendo pergaminhos. Decidi ajudar Ajihad da melhor maneira possível, mas não sou um guerreiro. Meu pai também era mercador, você deve se lembrar disso. Ele me ajudou no começo. Entretanto, o objetivo de meu negócio não é nada mais do que ser apenas uma fachada para levar mercadorias até Surda. - Mas soube que as coisas não andam bem. - É, nenhum dos carregamentos tem conseguido chegar ao destino, e Tronjheim está ficando com os estoques baixos. De alguma forma, o Império, pelo menos eu acho que seja ele, descobriu aqueles de nós que vêm ajudando Tronjheim. Mas ainda não estou convencido de que seja o Império. Ninguém vê soldados. Não entendo. Talvez Galbatorix tenha contratado mercenários para nos atacar. - Soube que você perdeu um navio recentemente. - Era o último que eu possuía - respondeu Jeod amargamente. - Toda a tripulação era leal e corajosa. Duvido que os veremos novamente... A única opção que me resta é mandar caravanas até Surda ou Gil'ead, que sei que nunca chegarão lá, não importa quantos guardas eu contrate, ou alugar o navio de outra pessoa para levar as mercadorias. Mas ninguém aceitará fazer isso agora. - Quantos comerciantes têm ajudado você? - interrogou Brom. - Oh, um bom número por todo o litoral. Todos eles têm sido vítimas desse mesmo problema. Sei o que você está pensando, outro dia também pensei nisso, mas não posso aceitar a idéia de um traidor com tanto conhecimento e poder. Se houver um, todos corremos perigo. Você devia voltar ao Tronjheim. - E levar Eragon até lá? - interrompeu Brom. - Eles acabariam com ele. É o pior lugar onde ele poderia estar agora. Talvez, em alguns meses, ou melhor, daqui a um ano. Você pode imaginar como os anões reagiriam? Todos tentariam influenciá-lo, especialmente Islanzadi. Ele e Saphira não ficarão seguros em Tronjheim até que eu, pelo menos, os faça passar pela tuatha du orothrim. Anões! Pensou Eragon animado. Onde fica o Tronjheim? E por que Brom falou sobre Saphira a Jeod? Ele não devia contar isso a ninguém sem falar comigo primeiro! - Ainda assim, sinto que eles precisam de seu poder e de sua sabedoria. - Sabedoria - murmurou Brom. - Sou apenas o que você disse antes, um velhote excêntrico. - Muitos não concordariam com isso. - Deixe estar. Não preciso ficar me explicando. Não, Ajihad terá de se virar sem mim. O que estou fazendo agora é muito mais importante. Mas a possibilidade de um traidor levanta questões perturbadoras. Imagino como o Império soube onde seria... - A voz dele sumiu. - E fico pensando por que ainda não falaram comigo sobre isso. - Talvez eles tenham tentado, mas se houver um traidor... - Brom fez uma pausa. - Preciso mandar uma mensagem para Ajihad. Você tem um mensageiro de confiança? - Acho que tenho. Vai depender de onde ele terá de ir. - Não sei - disse Brom. - Fiquei isolado durante tanto tempo que a maioria dos meus contatos deve ter morrido ou esquecido de mim. Você poderia mandá-lo até quem recebe seus carregamentos? - Poderia, mas será arriscado. - E o que não é hoje em dia? Quando ele pode partir? - Pela manhã. Vou mandá-lo até Gil'ead. Será mais rápido - disse Jeod. - O que ele pode levar para convencer Ajihad de que a mensagem é sua mesmo? - Tome, dê o meu anel ao seu mensageiro. E diga a ele que, se o perder, eu, pessoalmente, arrancarei seu fígado. Quem me deu este anel foi a rainha. - Você não está animado - comentou Jeod. Brom resmungou. Depois de um longo silêncio, ele disse: - É melhor sairmos logo e irmos ter com Eragon. Fico preocupado quando ele fica sozinho. Aquele garoto tem uma propensão natural para sempre ficar perto de onde existe problema. - Está surpreso com isso? - Nem um pouco. Eragon ouviu cadeiras sendo puxadas para trás. Ele, rapidamente, desviou seu pensamento e abriu os olhos. “O que será que está acontecendo?” Falou para si mesmo. “Jeod e outros comerciantes estão encrencados porque estão ajudando pessoas de quem o Império não gosta. Brom achou algo em Gil'ead e foi se esconder no Carvahall. O que poderia ser tão importante para ele deixar seu amigo pensar que estava morto durante quase vinte anos? Ele falou em uma rainha, mas não há rainha nenhuma nos reinos que conhecemos. E em anões, que, segundo o que ele mesmo me disse, desapareceram no subsolo há muito tempo”. Ele queria respostas! Mas não podia confrontar Brom agora e pôr em risco a missão deles. Não, teria de esperar até que saíssem de Teirm para pressionar o velho até que ele explicasse seus segredos. Os pensamentos de Eragon ainda estavam em ebulição quando a porta abriu. - Os cavalos estavam bem? - quis saber Brom. - Ótimos - retorquiu Eragon. Eles soltaram os cavalos e saíram do castelo. Quando voltaram à parte principal de Teirm, Brom disse: - Então, Jeod, você finalmente se casou e... - ele piscou de modo maroto - com uma bela jovem. Parabéns. Jeod não parecia feliz com o cumprimento. Ele curvou os ombros e ficou olhando para baixo, para a rua. - Não sei se suas congratulações fazem muito sentido agora. Helen está muito triste. - Por quê? O que ela quer? - perguntou Brom. - O de sempre - respondeu Jeod, dando de ombros resignado. - Uma boa casa, filhos felizes, comida na mesa e companhia agradável. O problema é que ela vem de uma família rica, o pai dela investiu muito no meu negócio. Se eu continuar sofrendo tantas perdas, não haverá condições para que ela viva do modo com o qual está acostumada - continuou Jeod. - Mas, por favor, você não tem nada a ver com os meus problemas. Um anfitrião nunca deve perturbar os hóspedes com suas preocupações pessoais. Enquanto estiver na minha casa, não deixarei que nada mais do que uma barriga cheia demais o perturbe. - Obrigado - disse Brom. - Agradecemos a sua hospitalidade. Nossas viagens têm sido muito longas e sem qualquer tipo de conforto. Você sabe onde podemos encontrar uma loja barata? De tanto cavalgar, nossas roupas ficaram muito surradas. - Claro. Esse é o meu trabalho - disse Jeod, ficando mais animado. Ele falou de modo entusiasmado sobre preços e lojas até a casa dele ficar ao alcance da vista. Depois, perguntou: - Vocês se incomodariam se fôssemos comer em outro lugar? Talvez seja constrangedor se vocês entrarem agora. - Faça o que for melhor para você - concordou Brom. - É difícil dizer. Vai depender de quando teremos acesso aos registros e de quanto tempo levaremos para achar o que precisamos. Nós todos teremos de ajudar, será um trabalho enorme. Falarei com Brand amanhã para ver se ele nos deixará ver os registros. - Acho que não poderei ajudar - Eragon disse, virando-se constrangido. - Por quê? - indagou Brom. - Haverá muito trabalho para você. Eragon baixou a cabeça. - Eu não sei ler. Brom esticou-se na cadeira, descrente. - Quer dizer que Garrow nunca o ensinou a ler? - E ele sabia ler? - perguntou Eragon, intrigado. Jeod os observava com interesse. - É claro que sabia - resmungou Brom. - Aquele tolo orgulhoso, o que achava? Eu devia ter percebido que ele nunca o ensinaria a ler. Provavelmente, considerava um luxo desnecessário. - Brom franziu a testa e puxou sua barba com raiva. - Isso atrapalha os meus planos, mas não de modo irreparável. Terei de ensinar você a ler. Não vai demorar muito se você se dedicar. Eragon apertou os olhos. Qualquer aula de Brom, geralmente, era muito intensa e brutalmente direta. “Quanta coisa posso aprender de uma vez só?” - Suponho que isso seja necessário - disse Eragon com melancolia. - Você vai gostar. Podemos aprender muitas coisas com os livros e pergaminhos - declarou Jeod. Ele apontou para as paredes. - Estes livros são meus amigos e companheiros. Eles me fazem rir e chorar, dão sentido à vida. - Isso parece ser fascinante - admitiu Eragon. - Sempre o estudioso, não é? - perguntou Brom. Jeod deu de ombros. - Não sou mais. Acho que regredi e virei um bibliófilo. - Um o quê? - quis saber Eragon. - Uma pessoa que ama os livros - explicou Jeod e voltou a conversar com Brom. Entediado, Eragon olhou para as prateleiras. Um livro elegante, com pinos dourados, chamou sua atenção. Ele o tirou da estante e o observou curiosamente. Era encapado com couro preto e havia misteriosas runas entalhadas. Eragon passou os dedos por cima da capa e apreciou sua suavidade gelada. As letras dentro dele foram impressas com uma tinta avermelhada e brilhante. Deixou as páginas correrem por seus dedos. Uma coluna de escritos, destacada do texto normal, chamou sua atenção. As palavras eram longas e fluentes, havia muitas linhas elegantes e pontos nítidos. Eragon levou o livro até Brom. - O que é isto? - perguntou, apontando para o texto estranho. Brom examinou a página atentamente e ergueu suas sobrancelhas em surpresa. - Jeod, você aumentou a sua coleção. Onde conseguiu isto? Não vejo um destes há muito tempo. Jeod esticou o pescoço para ver o livro. - Ah, sim, o Domia abr Wyrda. Um homem passou por aqui há alguns anos e tentou vendê-lo a um comerciante no cais. Felizmente, eu estava lá por acaso e pude salvar o livro, como também o pescoço dele. Ele nem imaginava de qual assunto o livro tratava. - É estranho, Eragon, você ter escolhido este livro, o Domínio do destino - disse Brom. - De todos os livros nesta casa, este deve ser o que tem mais valor. Descreve em detalhes a história completa da Alagaésia, começando muito antes dos elfos chegarem aqui e terminando poucas décadas atrás. O livro é muito raro e é um dos melhores do seu gênero. Quando foi escrito, o Império o condenou como uma blasfêmia e queimou seu autor vivo, Heslant, o monge. Eu achava que não existia mais nenhuma cópia. As letras sobre as quais você pergunta são da língua antiga. - E o que diz aí? - perguntou Eragon. Brom levou alguns instantes para ler o texto. - É parte de um poema élfico que fala sobre os anos em que eles lutaram com os dragões. Este trecho descreve um dos reis deles, Ceranthor, que foi marchando para a batalha. Os elfos adoram este poema e o recitam freqüentemente, embora sejam precisos três dias para fazer isso de modo apropriado. Isso é feito para que eles não repitam os erros do passado. Às vezes, eles o recitam de uma maneira tão bela que parece que até as pedras vão chorar. Eragon voltou à sua cadeira, segurando o livro delicadamente. É impressionante que um homem que já esteja morto possa falar com essas pessoas através destas páginas. Enquanto este livro sobreviver, as idéias dele terão vida. - Será que ele contém alguma informação sobre os ra'zac? Folheava o livro enquanto Brom e Jeod conversavam. Horas se passaram, e Eragon começou a ficar com sono. Condoído com o cansaço dele, Jeod deu boa-noite: - O mordomo os levará aos seus quartos. No caminho para o andar superior, o criado disse: - Se precisarem de ajuda, toquem a sineta que fica ao lado da cama. - Ele parou perto do grupo de três portas e, depois, retrocedeu. Quando Brom ia entrando no quarto à direita, Eragon perguntou: - Posso falar com você? - Você já falou, mas pode entrar assim mesmo. Eragon fechou a porta assim que entrou. - Saphira e eu tivemos uma idéia. Será que há... Brom ergueu a mão, fazendo sinal para ele parar e puxou a cortina o máximo possível para cobrir a janela. - Quando falar essas coisas, certifique-se de que não haja nenhum ouvido inconveniente presente. - Desculpe - disse Eragon, repreendendo-se por causa do deslize. - Bem, mas é possível evocar uma imagem de algo que você não pode ver? Brom sentou na beira de sua cama. - Você está falando de adivinhação usando-se uma bola de cristal. Isso é possível e extremamente útil em certas situações, mas tem uma grande desvantagem. Só podemos observar pessoas, lugares e coisas que já tenhamos visto. Se quiséssemos ver os ra'zac, nós os veríamos, sim, mas não o lugar que os cercava. E também há outros problemas. Digamos que você quisesse ver certa página de um livro, uma que já tivesse visto. Você só conseguiria ver a página se o livro estivesse aberto. Se o livro estivesse fechado quando você tentasse vê-Ia, a página apareceria toda preta. - Por que não podemos ver objetos que nunca vimos? - perguntou Eragon. Mesmo com essas limitações, ele achava que usar uma bola de cristal poderia ser muito útil. “Será que posso ver alguma coisa quilômetros à frente e usar a magia para mudar o que estiver acontecendo lá?” - Porque - respondeu Brom pacientemente - para usar uma bola de cristal você precisa conhecer o que está procurando e deve saber para onde dirigir o seu poder. Mesmo se descrevessem um estranho para você, seria praticamente impossível vê-lo, sem falar no lugar e nas coisas que estivessem em volta dele. Você precisa conhecer o que quer ver na bola de cristal antes de poder vê-lo ali de fato. Isso responde à sua pergunta? Eragon pensou por um instante. - Mas como se faz isso? Você evoca a imagem em pleno ar? - Nem sempre - respondeu Brom, sacudindo sua cabeça branca. - Fazer isso requer mais energia do que projetar uma imagem em uma superfície como um lago ou um espelho. Alguns Cavaleiros viajavam o máximo que podiam, tentavam conhecer o máximo de coisas possíveis. Então, quando havia uma guerra ou algum tipo de calamidade, eles podiam ver o que acontecia por toda a Alagaésia. - Posso tentar fazer isso? - inquiriu Eragon. Brom olhou para ele cuidadosamente. - Não, agora, não. Você está cansado e usar uma bola de cristal exige muita força. Vou dizer as palavras a você, mas prometa que não tentará fazer isso hoje. E prefiro que espere até sairmos de Teirm, tenho muito mais a lhe ensinar. Eragon sorriu. - Prometo. - Muito bem. - Brom se curvou e sussurrou bem baixinho "Draurnr kópa", no ouvido de Eragon. Eragon parou um instante para memorizar as palavras. - Talvez, depois que sairmos de Teirm, eu tente ver Roran. Gostaria de saber como ele está passando. Temo que os ra'zac possam ir atrás dele. - Não quero assustá-lo, mas essa é uma possibilidade - ponderou Brom. - Embora Roran já tivesse deixado o Carvahall quando os ra'zac chegaram, tenho certeza de que fizeram perguntas sobre ele. Quem sabe, eles devem até tê-lo encontrado quando passaram por Therinsford. De qualquer modo, duvido que a curiosidade deles tenha sido saciada. Você está à solta, afinal, e o rei deve estar ameaçando-os com um castigo terrível se você não for encontrado. Se não tiverem sucesso, deverão voltar e interrogar Roran. É só uma questão de tempo. - Se isso for verdade, então o único modo de manter Roran em segurança é deixar os ra'zac saberem onde estou, para que venham atrás de mim e não persigam Roran. - Não, isso não adiantaria. Você não está raciocinando - advertiu Brom. - Se você não entender seus inimigos, como espera poder antecipar o que eles farão? Mesmo se você expuser seu esconderijo, os ra'zac ainda iriam atrás de Roran. Sabe por quê? Eragon esticou-se e ponderou todas as possibilidades. - Bem, se eu ficar escondido durante muito tempo, eles podem ficar frustrados e capturar Roran para me forçar a revelar onde estou. Se isso não der certo, eles vão matá-lo só para me magoar. Além disso, se eu virar um inimigo do Império, eles podem usá-lo como isca para me capturar. E se eu me encontrar com Roran e eles souberem disso, vão torturá-lo para descobrir onde eu estava. - Muito bem. Você previu tudo muito bem - parabenizou-o Brom. - Mas qual é a solução? Não posso permitir que ele seja morto! Brom fechou as mãos sem apertá-las. - A solução é óbvia. Roran terá de aprender a se defender. Isso pode parecer algo frio, mas como você mesmo destacou, não pode arriscar encontrá-lo. Talvez você não se lembre disso, pois estava delirando na ocasião, mas quando saímos do Carvahall, eu disse que tinha deixado uma carta alertando Roran para que ele não ficasse completamente ignorante quanto ao perigo. Se ele tiver algum senso de auto- preservação, quando os ra'zac aparecerem no Carvahall novamente, ouvirá o meu conselho e fugirá. - Não gosto disso - disse Eragon insatisfeito. - Ah, mas você esqueceu uma coisa. - O quê? - inquiriu. - Há algo bom nisso tudo. O rei não pode se dar ao luxo de ter um Cavaleiro sobre o qual ele não tenha controle andando por aí. Galbatorix é o único Cavaleiro vivo conhecido, além de você, mas ele gostaria de ter mais um Cavaleiro sob seu comando. Antes que tente matar você ou Roran, ele lhe oferecerá a chance de servi-lo. Infelizmente, se conseguir se aproximar o bastante para lhe fazer essa proposta, será tarde demais para você recusá-la e sair vivo de lá. - E você diz que isso é bom? - Isso é tudo que está protegendo Roran agora. Enquanto o rei não souber o lado que você escolheu, não arriscará perdê-lo ao ferir seu primo. Mantenha sempre isso em mente. Os ra'zac mataram Garrow, mas acho que não foi uma decisão acertada da parte deles. Pelo que conheço de Galbatorix, ele não deve ter aprovado isso, a não ser que tenha tido alguma vantagem. - E como poderei negar um desejo do rei se ele estiver me ameaçando de morte? - perguntou Eragon severamente. Brom suspirou. Ele foi até a sua penteadeira e molhou os dedos em uma bacia com água de rosas. - Galbatorix quer que você coopere com ele de bom grado. Sem isso, você será pior do que algo inútil para ele. Então, a pergunta é: se um dia se deparar com essa escolha, você estará preparado para morrer pelo que acredita? Essa é a única maneira com a qual você poderá dizer "não” a ele. A pergunta pairou no ar. Brom, finalmente, disse: - É uma pergunta difícil e só podemos responder a ela verdadeiramente quando nos depararmos com ela. Tenha em mente que muitas pessoas morreram por aquilo em que acreditavam. De fato, isso é bem comum. A verdadeira coragem é viver e sofrer por aquilo em que você acredita. A BRUXA E O MENINO-GATO A manhã já ia alta quando Eragon acordou. Ele vestiu-se, lavou o rosto na bacia e levantou o espelho para ajeitar os cabelos. Algo em seu reflexo o fez parar e olhar com mais atenção. Seu rosto havia se modificado desde que saíra do Carvahall pouco tempo atrás. As feições rechonchudas de menino haviam desaparecido agora, eliminadas pelas viagens, lutas e treinamentos. As maçãs do seu rosto estavam mais proeminentes, a linha do seu maxilar estava mais definida. Seus olhos ganharam um visual que, quando
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