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Guias e Dicas
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Agroecologia e saber ambiental, Notas de estudo de Ecologia

Literatura Agroecologia

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 10/10/2010

socrates-vasconcelos-10
socrates-vasconcelos-10 🇧🇷

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Baixe Agroecologia e saber ambiental e outras Notas de estudo em PDF para Ecologia, somente na Docsity! 36 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 1. O Renascimento do Ser no Concerto do Saber A Agroecologia foi definida como um novo pa- radigma produtivo, como uma constelação de ci- ências, técnicas e práticas para uma produção ecologicamente sustentável, no campo. Neste Seminário, que congrega os mestres destas no- vas artes e ofícios, e eu não sendo o que conduz o arado, quem, com seu arado, remove a terra e planta a nova semente, que dirige um olhar ao caldeirão no qual se fundem e se amalgamam os Agroecologia e saber ambiental* * Texto apresentado ao II Seminário Internacional sobre Agroecologia, Porto Alegre, 26 a 28 de novembro de 2001. Traduzido ao português por Francisco Roberto Caporal, em janeiro de 2002. O original, em espanhol, está disponível em www.emater.tche.br. **O autor é Coordenador da Rede de Formação Ambiental para a América Latina e Caribe, do Progra- ma das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA. conhecimentos que promovem esta mudança de paradigma, sobre o pró- prio sentido do saber agroecológico. Por- que, mais que poder instrumental, no concerto destes saberes se joga o renascimento do ser: da natureza, da produção, do agrônomo, do cientista, do técnico, do camponês e do indíge- na; a reconstrução do ser que finda sobre novas bases o sentido da produ- ção e abre as vias a um futuro susten- tável. Hoje, esta confraria de mestres da Agroecologia, reunidos neste cená- rio, se congrega para a plantação de uma nova semente, mas também para avaliar os resultados de suas recentes colheitas. É um ritual que nos faz recordar aquele momento da maior glória das artes e ofícios no início do Renascimento, que ficou plasmado na história da arte da ópera pelos Mestres Cantores de Nuremberg, de Wagner. As práticas agroecológicas nos remetem à recuperação dos saberes tradicionais, a um passado no qual o hu- mano era dono do seu saber, a um tempo em que seu saber marcava um lugar no mundo e um sentido da existência... como sapateiros, al- faiates ou ferreiros; como músicos e poetas. À época dos saberes próprios. Hoje, neste lugar, neste conclave de artífices da agroecologia, apa- rece novamente na cena um Ignacy Sachs, in- terpretando o sapateiro-poeta Hans Sachs; o mestre que joga com as regras da formação eco- nômica e das formas musicais do pensamento para enriquecer a tradição econômica com a inovação do ecodesenvolvimento. Participam neste evento: Toledo, poeta da etnobiologia, e Altieri, mestre fundador das ciências e técnicas da Agroecologia; e o amalgamador Gliessman, o ferreiro Sevilla. Aqui estão os peleteiros e os al- faiates, que confeccionam o tecido do novo sa- A r t igo Leff, Enrique** Palavras-chave: Agroecologia, Desenvolvimento- Rural Sustentável - Saber Ambiental. 37 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 ber praticando suas artes e ofícios, todos escrito- res, aprendizes e mestres cantores, todos forjadores do novo paradigma1. Todos represen- tantes daquele Walter, cavaleiro de Franconia, que, deslindando-se e transcendendo seus títu- los de nobreza das ciências normais, postulam a magia das palavras e a alquimia da poesia para repensar o mundo e suas práticas; para fazer terra em um mundo em reconstrução. Talvez, neste certame, o prêmio ao poeta-cantor não seja a mão da bela donzela, senão o gosto de compor música com seus saberes e recompor o mundo no pentagrama de Agroecologia. Os saberes agroecológicos são uma conste- lação de conhecimentos, técnicas, saberes e prá- ticas dispersas que respondem às condições ecológicas, econômicas, técnicas e culturais de cada geografia e de cada população. Estes sabe- res e estas práticas não se unificam em torno de uma ciência: as condições históricas de sua produção estão articuladas em diferentes níveis de produção teórica e de ação política, que abrem o caminho para a aplicação de seus métodos e para a implementação de suas propostas. Os saberes agroecológicos se forjam na interface entre as cosmovisões, teorias e práticas. A Agro- ecologia, como reação aos modelos agrícolas depredadores, se configura através de um novo campo de saberes práticos para uma agricultu- ra mais sustentável, orientada ao bem comum e ao equilíbrio ecológico do planeta, e como uma ferramenta para a autosubsistência e a segu- rança alimentar das comunidades rurais. As múltiplas técnicas que integram o arse- nal de instrumentos e saberes da Agroecologia não só se fundem com as cosmologias dos po- vos de onde emergem e se aplicam seus princí- pios, senão que seus conhecimentos e práti- cas se aglutinam em torno de uma nova teoria da produção, em um paradigma ecotecnológico fundado na produtividade neguentrópica2 do pla- neta terra. Esta nova teoria da produção toma seus princípios da ciência ecológica, do territó- rio em que a intervenção sobre a terra se nu- tre de seus potenciais ecológicos e significa- ções culturais, e do princípio da fotossíntese que Ignacy Sachs propôs nos anos 70 como funda- mento para a construção de uma nova civiliza- ção nos trópicos (Sachs, 1976). A Agroecologia sugere alternativas sustentá- veis em substituição às práticas predadoras da agricultura capitalista e à violência com que a terra foi forçada a dar seus frutos. A Agroecologia vai forjando suas normas e regras para um novo canto da terra, da mesma maneira que Walter aprendeu dos mestres cantores não suas velhas regras de composição, senão a necessidade de se construir uns princípios para dar voz ao seu canto e expressão a sua poesia. Como Hans Sachs, que percebe a loucura, a ilusão e a futili- dade da existência no início da modernidade, e que a saída para o mundo cercado e esgotado do nosso tempo não está em aferrar-se às normas do dogma produtivista, de um crescimento sem limites, que já não se sustenta, senão em transcendê-las através de um novo saber. A Agroecologia é terra, instrumento e alma da produção, onde se plantam novas semen- tes do saber e do conhecimento, onde enraiza o saber no ser e na terra; é o caldeirão onde se amalgamam saberes e conhecimentos, ciên- cias, tecnologias e práticas, artes e ofícios no forjamento de um novo paradigma produtivo. Na terra onde se desterrou a natureza e a cultura; neste território colonizado pelo merca- do e pela tecnologia, a Agroecologia rememora os tempos em que o solo era suporte da vida e dos sentidos da existência, onde a terra era tor- rão e o cultivo era cultura; onde cada parcela tinha a singularidade que não só lhe outorgava uma localização geográfica e suas condições geofísicas e ecológicas, senão onde se assenta- vam identidades, onde os saberes se converti- am em habilidades e práticas para lavrar a ter- ra e colher seus frutos. Os saberes se confundi- am com os sabores: o vinho era um produto da carícia ardente do sol sobre a dourada e redonda uva; seu fruto era transformado em um elixir de amor, marcando seu corpo em danças rituais, abraçando-o com mãos artesanais, colocando A r t igo 40 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 Frente à transformação da geopolítica de uma economia ecologizada que hoje em dia revaloriza o sentido conservacionista da na- tureza - reabsorve e redesenha a economia natural dentro das estratégias de mercantili- zação da natureza -, reduzindo o valor da bio- diversidade em suas novas funções como pro- vedora de riqueza genética de valores cêni- cos e ecoturísticos e de sua capacidade de absorção de carbono, a Agroecologia se encrava no contexto de uma economia políti- ca do ambiente. Desta maneira, devolve o sentido à força de trabalho como labor produ- tivo que trabalha com forças da natureza, onde o trabalho, dentro de conjunto de práticas, não só é conduzido por saberes e conhecimentos práticos, mas por uma teoria que os envolve em uma estratégia política que os conduz e os faz valer, frente às valorizações "crematís- ticas"4 da produtividade econômica e tecnoló- gica de curto prazo. A nova economia, que acolhe e se constrói nas práticas agroeconômicas, se baseia em princípios ecológicos e termodinâmicos desco- nhecidos e negados pela ciência econômica como foram "descobertos" por Nicolás Georgescu Roegen (1971). Esta nova economia não só reconhece a Entropia como "Lei limite do crescimento econômico e da produção em geral". Além de sua negatividade crítica, esta nova racionalidade produtiva se funda no prin- cípio de uma produtividade neguentrópica. Este paradigma de produtividade ecotecno- lógica sustentável não só recupera e renova os princípios de uma fisiocracia sepultada – e seus saberes associados e subjugados – pela emergência e domínio da racionalidade eco- nômica. Hoje, ante a apropriação privada do núcleo genético das sementes e a injeção le- tal que impede sua reprodução como fonte de sustento do agricultor, são defendidos os di- reitos dos agricultores e se reconhece a pro- dutividade da natureza encapsulada nas se- mentes. A Agroecologia se nutre desta capacidade de produtividade natural, da transformação neguentrópica da energia solar através da fotossíntese, da produtividade e reprodução das sementes. Gera técnicas para lavrar a terra, recombinar os gens da vida, multiplicar a ca- pacidade de fotossíntese de diversos arranjos florísticos, das cadeias trópicas, de cultivos múltiplos e combinados, de pisos ecológicos e complementaridades espaciais, para incrementar a produtividade ecotecnológica sustentável de dado território. Mas esta racionalidade ecotecnológica não se produz nem se pratica como um conjunto de regras gerais que se instrumentam e in- duzem desde cima – de um laboratório, uma universidade, uma burocracia - sobre as prá- ticas cotidianas dos agricultores e produtores agrícolas. É um "paradigma" pela generalida- de de seus novos princípios, mas que se apli- ca através de saberes pessoais e coletivos, de habilidades individuais e direitos coletivos, de contextos ecológicos específicos e culturas particulares. É isso o que abre um amplo pro- A r t igo 41 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 cesso de mediações entre a teoria geral e os saberes específicos, uma hibridação de ciên- cias, tecnologias, saberes e práticas; um in- tercâmbio de experiências - agricultor a agri- cultor - das quais se enriquecem, se validam e se estendem as práticas da Agroecologia. A Agroecologia reconceptualiza a terra e a natureza como agroecossistema produtivo. Isso significa libertar o conceito de terra e de recur- so, das formas limitadas de significação do na- tural submetido à racionalidade econômica, que levaram a desnaturalizar a natureza de sua or- ganização ecossistêmica para convertê-la em recurso natural, em matéria-prima para a apro- priação produtiva (e destrutiva) da natureza; que levaram a desterritorializar a terra para poder estabelecer seu valor como uma renda, produto das fertilidades diferenciadas dos solos. Hoje, parece que desapareceram os condicionantes físicos que obrigam os homens a adaptar-se às condições locais dos solos, do clima e da água; como um novo Prometeu li- bertado pela magia e pela força da biotecnologia, o neoliberalismo econômico e tecnológico pre- tende libertar a produção de seus limitantes naturais. Deslocando estas abstrações simplificadoras e fictícias, o saber ambiental recupera o ser da natureza e da terra. O agroecossistema não só devolve à natu- reza a sua natureza ecossistêmica e recoloca a terra em suas bases territoriais (políticas e culturais). As práticas agroecológicas recupe- ram também o sentido do valor de uso (ecológi- co) da terra e seus recursos, e o devolvem a seu verdadeiro ser. Pois, se entendemos o verbo usar no sentido heideggeriano de "deixar uma coisa ser o que é e como é", o que "requer que a coisa usada seja tratada em sua natureza essencial" (Heidegger, 1954/1968), então o uso de recursos naturais implica que eles sejam tratados de acordo com suas formas de ser, com suas condições de existência, de renovação, de evolução. Visto desta forma, podemos reno- var o conceito de valor de uso natural ou valor de uso da natureza não só pelo valor intrínse- co de uma coisa (um recurso) que a faz ser útil, utilizável e necessária para uma pessoa; o valor de uso implicaria também o respeito ao objeto valorado e utilizado para um fim huma- no, quer dizer, o "valor em si" da natureza por suas condições de produção e reprodução, e como suporte das condições materiais e sim- bólicas da existência humana. As aproximações da Agroecologia constitu- em, assim, um exemplo prático da emergên- cia do potencial ecotecnológico de uma racionalidade ambiental. As práticas agroecológicas resultam culturalmente com- patíveis com a racionalidade produtiva cam- ponesa, pois se constroem sobre o conheci- mento agrícola tradicional, combinando este conhecimento com elementos da ciência agrí- cola moderna. As técnicas resultantes são ecologicamente apropriadas e culturalmente apropriáveis; permitem a otimização da uni- dade de produção através da incorporação de novos elementos às práticas tradicionais de manejo, elevando a produtividade e preser- vando a capacidade produtiva sustentável do ecossistema. Isso leva a um processo de re- construção das práticas e dos valores autóc- tones das etnias, conservando suas identida- des culturais. Os serviços ambientais que ofe- recem os sistemas agroecológicos contribu- em para a sua produtividade, ao mesmo tem- po em que os fazem mais adaptáveis e resis- tentes aos câmbios climáticos. A Agroecologia, fundada nos princípios da produtividade ecotecnológica, oferece novos potenciais para o desenvolvimento sustentá- vel alternativo. Mas estes princípios não po- A r t igo As práticas agroecológicas recu- peram o sentido do valor de uso (ecológico) da terra e seus recursos, e o devolvem a seu verdadeiro ser 42 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 dem ser implantados através da imposição de normas ecológicas gerais, desde as instânci- as do planejamento centralizado do Estado, nem devem sujeitar-se aos mecanismos de regulação do mercado. Seus princípios emer- gem das culturas que habitam os diferentes ecossistemas e são recuperáveis através de uma nova racionalidade produtiva, um amálgama do tradicional com o moderno, que passa por processos de transformação e assi- milação cultural em práticas produtivas lo- cais. Esses processos estão sendo mobiliza- dos pela emergência de novos atores sociais no campo, cujas letras traduzem os princípi- os do ambientalismo em novas práticas pro- dutivas apropriáveis pelas próprias comuni- dades para satisfazer suas necessidades bá- sicas e suas aspirações dentro de diversos estilos de vida e de desenvolvimento. 3. Paradigma agroecológi- co: interdisciplinaridade e diálogo de saberes A Agroecologia surge como um conjunto de conhecimentos, técnicas e saberes que incor- poram princípios ecológicos e valores culturais às práticas agrícolas que, com o tempo, foram desecologizadas e desculturalizadas pela capi- talização e tecnificação da agricultura. A Agroecologia convoca a um diálogo de sa- beres e intercâmbio de experiências; a uma hibridação de ciências e técnicas, para potencializar as capacidades dos agricultores; a uma interdisciplinaridade, para articular os conhecimentos ecológicos e antropológicos, eco- nômicos e tecnológicos, que confluem na dinâ- mica dos agroecossistemas. Estas ciências se amalgamam no caldeirão no qual se fundem saberes muito distintos para a construção de um novo paradigma produtivo. Esta hibridação de conhecimentos e diálogo de saberes orienta uma grande transformação da natureza, para regenerar seus potenciais ecológicos a partir da fotossíntese, o que implica a necessidade de uma tecnologia para o manejo eficiente dos ci- clos da matéria, dos nutrientes e da energia, em cadeias tróficas, dos processos de sucessão secundária, da diversificação de plantas de ter- ras baixas, de sistemas de cultivos múltiplos e intercalados e de novas arquiteturas dos recur- sos bióticos que integrem plantas de diferentes culturas, de cultivos de diferentes estações, do uso de diferentes pisos ecológicos, que permi- tam o manejo mais eficiente da luz, dos nutri- entes e da energia, que resultam no aumento da produtividade neguentrópica. Não é só a contraposição de uma lógica camponesa a uma lógica urbana, senão que de uma racionalidade econômica "contra natura" a uma racionalidade ambiental que recupera as condições ecológi- cas e os potenciais produtivos da natureza, para conduzir um processo de regeneração civilizatória, em direção à sustentabilidade. Mas, ao contrário da relação entre ciênci- as e saberes induzida pela especialização de conhecimentos na divisão do trabalho da agro- nomia capitalizada, para o aumento da pro- dutividade agronômica de cada unidade pro- dutiva orientada ao monocultivo para a expor- tação, na agroeconomia os saberes se inte- gram dentro de outras sinergias e põem em suas bases outros princípios. Desta maneira, o potencial ecotecnológico se funda em sabe- res e conhecimentos conservacionistas do tecido ecológico dos agroecossistemas e da produtividade que emana de seus ciclos eco- lógicos. Deste modo, na reapropriação de sa- beres tradicionais e sua hibridação com co- A r t igo A Agroecologia convoca a um diálogo de saberes e intercâmbio de experiências; a uma hibridação de ciências e técnicas; a uma interdisciplinaridade 45 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 das quais dependem as condições de existên- cia da maioria da população do Terceiro Mun- do e o equilíbrio ecológico do planeta. Os métodos da Agroecologia mostraram o potencial de suas estratégias para desenvolver uma agricultura sustentável e altamente pro- dutiva, baseada na capacidade fotossintetizado- ra dos recursos vegetais, na conservação dos solos, no manejo de processos ecológicos, nos cultivos múltiplos e em sua associação com espécies silvestres, no "metabolismo" entre pro- cesso de produção primária, transformação tecnológica e reciclagem ecológica de resíduos industriais. Estas experiências, uma vez siste- matizadas, oferecem princípios e técnicas ca- pazes de ser generalizados. Desta maneira, a Agroecologia gera novas potencialidades produ- tivas no agro, gerando novas alternativas eco- lógicas e afirmando suas estratégias nas comu- nidades rurais (Toledo, 1989). A importância dos métodos da Agroecologia para o manejo produtivo e sustentável dos re- cursos florestais e agrícolas radica na oferta potencial de recursos que pode gerar para me- lhorar as condições de subsistência dos milhões de camponeses e indígenas que se encontram em estado de desnutrição e pobreza extrema e excluídos das garantias da segurança e auto- suficiência alimentar, devido à implementação de modelos produtivos que não consideram as condições ecológicas, sociais e culturais própri- as dessas comunidades rurais. Neste sentido, os princípios da Agroecologia oferecem a possi- bilidade de estabelecer práticas produtivas so- bre bases ecológicas e democráticas. A necessidade desta transformação produ- tiva no campo surge, também, das limitações para gerar empregos para a população rural, que é expulsa para as cidades, para terras marginais e ecossistemas frágeis (pelos pro- cessos predominantes de desmatamento e de modernização do agro), empobrecendo ainda mais a população rural e acentuando a perda de fertilidade dos solos. A complexidade e a fragilidade dos ecossis- A r t igo temas tropicais, que definem a vocação dos so- los, assim como a heterogeneidade cultural da organização social dos países tropicais, obri- gam a pensar uma estratégia diferente para o manejo produtivo e sustentável de seus agro- ecossistemas, ao contrário de continuar sua artificialização e capitalização forçada, deter- minada pelas condições do mercado mundial. Reconhecendo que a conversão do uso do solo para o desenvolvimento da agricultura comer- cial e da pecuária extensiva foi a principal cau- sa do desmatamento - da destruição das flo- restas e selvas úmidas - e da erosão da fertili- dade dos diferentes ecossistemas da América Latina, surge a necessidade de reorientar as estratégias de recuperação e de uso sustentá- vel do solo, baseadas no manejo múltiplo e in- tegrado dos recursos naturais. A oferta natural de recursos procedentes da diversidade biológica dos ecossistemas tropicais oferece condições vantajosas para aplicar os prin- cípios de manejo agroflorestal em projetos de autogestão produtiva e de manejo múltiplo e in- tegrado dos recursos florestais, agrícolas e pecu- ários, assim como na transformação agroindustrial in situ de seus recursos, fomen- tando a integração regional de agroindústrias e mercados. Esta estratégia resulta mais adequa- da às condições ecológicas e sociais da produção sustentável no trópico do que a homogeneização forçada dos recursos orientada para as oportuni- dades conjunturais do mercado mundial. Isso im- plica a necessidade de desenvolver tecnologias eficientes e adequadas para serem administra- das pelas próprias comunidades para transfor- mar os recursos naturais a escalas que correspondam aos ritmos de oferta ecologica- mente sustentável e que permitam o aproveita- mento de espécies de uso não convencional. Os princípios da Agroecologia e o manejo integrado de recursos suscitam a possibilida- de de construir uma economia mais equilibra- da, justa e produtiva, fundada na diversidade biológica da natureza e na riqueza cultural dos povos da América Latina. Entretanto, para ge- 46 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 rar este novo potencial, é necessário legitimar os direitos e fortalecer politicamente as comu- nidades, dotando-as, ao mesmo tempo, de uma maior capacidade técnica, administrativa e financeira, para a autogestão de seus recur- sos produtivos. Abrem-se aqui diversas possi- bilidades que vão desde o manejo de reservas extrativistas e da floresta natural, até o desen- volvimento de práticas de manejo agro-silvo- ecológicas para o aproveitamento múltiplo da floresta tropical, a regeneração seletiva de seus recursos naturais e o manejo de cultivos di- versificados. Pesquisas recentes mostram o potencial de desenvolvimento, para o autoconsumo e para o mercado mundial, que oferece o manejo produtivo dos diversos e exu- berantes recursos da selva tropical, passando da agricultura itinerante tradicional ao esta- belecimento de parcelas fixas altamente pro- dutivas, baseadas no uso múltiplo e integrado de seus recursos (Boege, 1992). A construção deste potencial alternativo de desenvolvimento dependerá, sem dúvidas, da produção de tecnologias apropriadas para o manejo produtivo da biodiversidade dos ecossis- temas e para o aproveitamento múltiplo de seus recursos, revertendo as tendências dominan- tes que querem transformá-los em grandes plantações de cultivos especializados de alto rendimento no curto prazo. Abrem-se, assim, perspectivas promissoras para um desenvolvi- mento agroflorestal, gerando meios de produ- ção melhorados, assimiláveis pelas práticas produtivas das comunidades rurais. Entretan- to o controle das empresas de biotecnologia so- bre as cada vez mais sofisticadas técnicas de engenharia genética põe em desvantagem as populações indígenas e camponesas, frente aos grandes consórcios internacionais que contam com os meios científicos e econômicos para apropriar-se do material genético dos recursos naturais que foram e continuam sendo patri- mônio histórico das populações das regiões tro- picais. Isso requer a necessidade de desenvol- ver estratégias que permitam que as comuni- dades rurais possam assegurar e legitimar seus direitos sobre seu patrimônio de recursos e a propriedade da terra, de modo que se assegu- rem a transferência e apropriação real dos no- vos recursos tecnológicos para melhorar suas condições de autogestão produtiva. As possibilidades que abre a Agroecologia para converter os recursos agrícolas e flores- tais em bases para o desenvolvimento e bem- estar das comunidades rurais aparece, tam- bém, como um meio para a proteção efetiva da natureza, da biodiversidade e do equilíbrio ecológico do planeta. A consolidação destes processos dependerá do fortalecimento da ca- pacidade organizativa das próprias comunida- des, para desenvolver alternativas produtivas que permitam melhorar suas condições de vida e aproveitar seus recursos de forma sus- tentável. Desta maneira, os moradores das florestas e das áreas rurais do Terceiro Mun- do poderão aliviar sua pobreza e conservar sua base de recursos como um potencial produti- vo que lhes permita satisfazer suas necessi- dades atuais e construir seu futuro de forma sustentável. Para isso, é necessário recons- truir os potenciais ecológicos e culturais que dão as bases a um paradigma de produtivida- de ecotecnológica, ao mesmo tempo em que se legitimam os novos direitos coletivos dos povos indígenas e das sociedades rurais, para a reapropriação de seu patrimônio de recur- sos naturais e culturais (Leff, 1993). 5. O movimento agroecoló- gico e a reapropriação social da natureza A degradação sócio-ambiental está exigin- do a impostergável necessidade de transfor- mar os princípios da racionalidade econômi- ca, de seu caráter desigual e depredador, para construir uma racionalidade produtiva capaz de gerar um desenvolvimento eqüitativo, sus- tentável e duradouro. Este debate teórico e político gerou um amplo movimento social, A r t igo 47 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 A r t igo através do qual os princípios do desenvolvi- mento sustentável se vão arraigando nas lu- tas populares e nas organizações das comu- nidades rurais, em defesa da autogestão de suas terras e de seus recursos naturais. Neste sentido, surgiram diversas organi- zações, em diferentes regiões do mundo, en- tre as quais se destacam o Movimento Chipko, contra a privatização dos bosques do Himalaia (Guha, 1989), e o Movimento dos Seringuei- ros da Amazônia, em defesa das reservas extrativistas (Allegretti, 1987, e Gonçalves, 2001). Nos anos recentes, um vigoroso movi- mento indígena e camponês - no qual os si- nais mais visíveis são o MST e o EZLN - se incorporou a este processo de ambientaliza- ção, afirmando seus direitos de autonomia e autogestão, assim como sua capacidade de reapropriação de seus territórios, de suas ri- quezas florestais e da biodiversidade de suas matas, reconhecendo que sua sobrevivência e condições de vida dependem do manejo sus- tentável dos recursos agroecológicos. Os movimentos sociais associados ao de- senvolvimento do novo paradigma agroecoló- gico e a práticas produtivas no meio rural não são senão parte de um movimento mais am- plo e complexo orientado em defesa da trans- formação do Estado e da ordem econômica dominante. O movimento para um desenvol- vimento sustentável é parte de novas lutas pela democracia direta e participativa e pela autonomia dos povos indígenas e campone- ses, abrindo perspectivas para uma nova or- dem econômica e política mundial. Neste contexto, os princípios da Agroecolo- gia e o manejo agroflorestal não só sugerem a necessidade de reestruturar a produção nos ambientes rurais para ajustar esta produção a novas oportunidades de mercado e às con- dições de rentabilidade da produção agrícola, mas se propõem a estabelecer uma nova racionalidade produtiva sobre bases ecológi- cas e de eqüidade social. Os projetos de capi- talização do campo, associados primeiro com a Revolução Verde e agora com os cultivos transgênicos, foram incapazes de respeitar o valor dos recursos naturais, culturais e hu- manos do meio rural, levando a uma sobreprodução e a um subconsumo de produ- tos alimentícios, com efeitos devastadores em termos de perdas de fertilidade dos solos, O movimento para um desenvolvi- mento sustentável é parte de novas lutas pela democracia direta e participativa e pela autonomia dos povos indígenas e camponeses, abrindo perspectivas para uma nova ordem econômica e política mundial 50 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 economias de escala e de aglomeração se transformaram, superando patamares críticos de desequilíbrio ecológico e de tolerância soci- al, que se refletem no aumento da pobreza crí- tica e da degradação ambiental. A partir desta constatação, está surgindo uma demanda das comunidades para que o Es- tado reconheça seus direitos de uso, usufruto e manejo dos recursos florestais. Emerge, assim, uma nova consciência e um novo espírito de organização coletiva, que mobilizam um desen- volvimento alternativo ao projeto neoliberal e a um modelo homogeneizador, alheio à diversi- dade cultural e ao potencial produtivo dos ecos- sistemas do trópico. A consolidação desses pro- cessos dependerá do fortalecimento da capaci- dade organizativa das próprias comunidades. Também requererá uma clara vontade política para apoiar estas alternativas de desenvolvi- mento, oferecendo os apoios técnicos e finan- ceiros básicos para a inovação e aplicação de novas técnicas para o fortalecimento destas novas formas de organização produtiva. Este movimento levou ao aumento do nú- mero de organizações rurais e camponesas, assim como de projetos de pesquisa, desen- volvimento e extensão orientados pelos prin- cípios da Agroecologia, gerando uma colabo- ração em forma de redes para o intercâmbio de experiências e conhecimentos, assim como para fortalecer o consenso social a fa- vor dos novos projetos produtivos, buscando incidir nas políticas de produção rural e de- senvolvimento sustentável. Desta maneira, um movimento social, cada vez mais amplo, avança na construção de uma nova racionalidade produtiva, fun- dada em bases ecológicas para uma produ- ção sustentável, assim como em critérios de eqüidade social e de diversidade cultu- ral, capazes de reverter os processos de de- gradação ambiental e de gerar benefícios diretos para as comunidades responsáveis pela autogestão de seus recursos ambientais. Sem dúvidas, os moradores que habitam os bosques, as selvas tropicais e as áreas rurais onde se significa sua cultura, onde se forjam suas solidariedades coleti- vas e se configuram seus projetos de vida é que podem assumir o compromisso de man- ter a base de recursos como um legado de um patrimônio histórico e cultural e como fonte de um potencial econômico para as fu- turas gerações. 6. Epílogo O tempo está comprovando que a crise ambiental é, efetivamente, uma crise civilizatória e que o movimento agroecoló- gico se inscreve no que podemos qualificar como uma grande transformação, que tal- vez leve a reverter o processo e as inércias que desembocaram no holocausto ecológico através da idéia do progresso e do cresci- mento sem limites. Para isso, será neces- sário construir uma racionalidade ambien- tal que incorpore um novo modelo de produ- ção, fundado por princípios da produtividade neguentrópica. Isso haverá de conduzir a uma regularização da vida que reverta as inércias que estão levando a uma hiperur- banização. Para isso, a ciência e as técni- cas da Agroecologia devem articular-se a uma nova teoria da produção e a novas prá- ticas produtivas; à construção de um mun- do no qual predomine o Ser das coisas sobre sua utilidade mercantil, onde se revalorize a terra e o trabalho e onde o ser humano possa reconhecer-se em seus saberes e no sentido de suas ações. A Agroecologia poderia converter-se, assim, na ponta de lança para a cristalização de um paradigma de produtividade ecotecnológica. A Agroecologia será o arado para o cultivo de um futuro sustentável e haverá de articular-se a processos de transformação social que permi- tam passar da resistência à globalização à cons- trução de um novo mundo. A r t igo 51 Agroecol.e Desenv.Rur.Sustent.,Porto Alegre, v.3, n.1, jan./mar.2002 A r t igo ALLEGRETTI, M.H. 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Altieri, Stephen Gliessman e Eduardo Sevilla Guzmán. 2N.T.: A expressão produtividade neguentrópica deve ser entendida desde um ponto de vista de sistemas termodinamicamente abertos - como são os processos biológicos e naturais e o próprio planeta -, uma vez que, a rigor, o Segundo Princípio da Termodinâmica afirma que a entropia no universo é crescente. 3N.T.: A palavra crematística não tem tradução direta ao português. Trata-se da parte da ciência econômica que se ocupa dos preços, do estabelecimento de preços das mercadorias. Notas 7. Referências Bibliográficas
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