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Guias e Dicas
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O Batizado da Vaca - Chico Anisio , Notas de estudo de Literatura

São vinte contos que Chico Anisio oferece ao público, neste seu primeiro livro: vinte histórias que refletem de maneira descontraída e gostosa, a tragédia e a compedia cotidianas do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Tipologia: Notas de estudo

2010
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Compartilhado em 14/11/2010

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Baixe O Batizado da Vaca - Chico Anisio e outras Notas de estudo em PDF para Literatura, somente na Docsity! Chico Anísio O batizado da vaca DIGITAL >. 0 a http://groups-beta. google.com/group/digitalsource NÃO SE PÕE AMENDOIM NOS OUVIDOS Com tantos lugares maiores e mais práticos, o menino achou de enfiar o amendoim exatamente no ouvido. Ouvido esquerdo, que foi o escolhido por comodidade, visto tratar-se de um menino canhoto. A família, na Tijuca, em meio ao ajantarado do domingo, mesmo na hora em que o pai procurava uma sintonia melhor para escutar as corridas, ficou em pânico por causa de uma frase. — Mãe — disse o menino que enfiara o amendoim no ouvido —, não estou ouvindo direito. — Não está ouvindo direito, como? — indagou a mãe. — Como? — inquiriu o menino dando uma inflexão diferente ao advérbio. — Tua mãe está perguntando — intrometeu-se o pai abandonando, durante o que dizia, a sintonia no rádio — como é que você não está ouvindo direito. Entendeu? — O senhor está perguntando se eu entendi? — voltou o menino, sentado no lugar ao lado da cabeceira. — É, entendeu? — tornou o pai, levando à boca, com um ligeiro auxílio indicador-polegar, um pedaço de rabada. — Entendeu o quê? — desentendeu o menino. — Você está surdo? — gritou a irmã da outra cabeceira que ficava sob a Ceia do Senhor. — Será que ninguém compreende o que eu falo? — vociferou o menino, já se pondo de pé. — Eu estou dizendo que não estou ouvindo direito. — Você não está ouvindo direito? — insistiu a mãe, já tão aflita, que nem ligava mais para a rabada que esfriava no prato. — O que foi que a senhora disse? — questionou o menino, retornando mais calmo ao seu assento. — Esse menino está doido — admitiu o pai, voltando a tentar captar a narrativa dos páreos. — Doido, não — contestou a mãe —, que ele não é maluco. Você é louco? — Um pouco, mãe — respondeu o menino, pensando que a mãe lhe perguntara ser mouco. — Não estou entendendo coisa nenhuma — reagiu a irmã numa irritação que mostrava que ela não entendia coisa nenhuma. — Fala comigo, Geraldinho. O que é que há? — Falou comigo? — quis saber o menino que enfiara um amendoim no ouvido. — Ele está crecré — resolveu a irmã, voltando ao caqui, que era muito mais interessante do que aquele diálogo absurdo. Por alguns momentos, sem falar, todos comeram. Rabada ou caqui, feijão ou melancia. O silêncio era tão absoluto que o pai quase conseguiu achar a estação que procurava. Aí, o menino falou. — Mãe, não estou ouvindo quase nada. — Você já disse isso. — O que foi que a senhora disse? — perguntou o menino que não estava ouvindo quase nada. — Eu disse que você já disse que não está escutando direito! — irritou-se a mãe com a boca cheia de rabada. — Como? — argiiiu o menino com o ouvido cheio de amendoim. — Eu acho melhor botar esse garoto de castigo — sugeriu o pai, com um dedo no dial, outro na polenta. — Foi você quem falou, Terezinha? — perguntou o menino quase surdo ao ouvir a voz do pai. — Foi o pai — volveu a irmã de cabelos longos e paciência cortada rente. — O quê? — era o menino quem perguntava. — Geraldinho! — bradou o pai, deixando o rádio de lado numa atitude tão absurda quanto esta estória. — Presta atenção. Olha para mim. Está escutando o que eu estou falando? — O senhor está falando? — sussurrou o menino, preso entre as mãos do pai que lhe deixavam resquícios de rabada e polenta nos ombros. — Estou! — gritou o pai, com um soco tão forte na mesa que fez a concha mergulhar no feijão. — Não adianta. Eu não estou escutando quase nada — monocordiou o menino Geraldinho. — Sabe o que é que eu acho? — ponderou a irmã. — Eu acho que o Geraldinho não está escutando direito. — Se ele não está escutando direito — ponderou de novo a mãe — por que não avisa? Está escutando agora, Geraldinho? — O quê? — Está escutando agora? — repetiu mais alto o pai. — Ah? — Está escutando? — esganiçou-se a irmã da cabeceira. — Olhem. Eu já disse, e vocês não entendem. Eu não estou escutando direito — falou Geraldinho, já irritado. Ele não está escutando direito — traduziu a mãe, tomando uma visível atitude de defesa do filho que tinha colocado amendoim no ouvido. — Mas por quê? — indagou o pai apoplético. Como? — murmurou o menino, numa pergunta a medo, pela notória apoplexia paterna que geralmente dava motivo a surras homéricas. O pai esqueceu as corridas de Pernambuco, que tentava escutar, e pediu um lápis que lhe foi entregue pela filha, em meio às folhas de um caderno escolar. O pai escreveu, com letras de imprensa, a pergunta: — DESDE QUANDO VOCÊ NÃO ESTÁ ESCUTANDO DIREITO? Empurrou, com má vontade, o caderno para o lado do menino. — Quer saber desde quando eu não estou escutando direito? — quis assegurar-se o menino de ter lido certo. — É, Geraldinho — disse a mãe muito maternal —, desde quando? — Como? — perguntou Geraldinho muito trêmulo. O pai respondeu passando o dedo sob a frase que esfregava na cara do menino. — Desde que eu enfiei um amendoim no ouvido. Tiraram o amendoim, deram-lhe uma surra e o mandaram para fora da sala, em sinal de protesto. O menino foi e voltou chorando, para se sentar na cadeira em frente à tevê. — Fazendo a gente ficar doida, esse moleque! — comentou a mãe, tirando a mesa do ajantarado. um castiçal!"), enfermeiras ("eu vi o jeitinho com que ela passou o algodão no seu braço, pra aplicar a injeção"), leiteiros ("e na hora de entregar o leite ele precisava dizer aquele bom-dia meloso' ("virava os olhos, na hora de tirar a mesa, a cadelinha ("quando perguntou o seu nome, pensei que ia perguntar seu telefone, também"), professoras ("deu um beijo no menino de olho em você, como quem diz: não posso beijar o pai, beijo o filho"), dentistas ("a delicadeza com que extraiu o dente foi de dar na vista; comigo é vapt-vupt, com você foi cheio de coisinhas, tá doendinho, tá machucandinho?"), vizinhas ("deixe ela vir de novo pedir ovo emprestado!) e por setenta e cinco anos Horácio e Nazinha fizeram da vida uma guerra quase crescente de mútua desconfiança. Mas ali estava o usado e cansado par de amantes em torno da mesa, filhos à volta, netos ao lustre, vizinhos ao redor, amigos à espreita, comemorando setenta e cinco anos de brigas em comum. Horácio no ex-terno do casamento e Nazinha curtindo um vestido lindo, de celeste azul, com chiado gostoso de tafetá a cada passo lento que dava de um lado para o outro atendendo aos convivas. A idade dos dois, somada, ganhava longe da soma total do que tinham, em anos, os filhos e os netos. Cento e oitenta e um anos de amor preparavam-se para cortar o bolo que era representado por uma trincheira (brincadeira que os filhos prepararam, modo encontrado de gozar as desavenças amorosas que havia entre os dois). O verbo vai no passado porque, com as bodas, festejava-se o oitavo ano de trégua. Não se dera ordem de cessar-fogo nem houve um que levantasse a branca bandeira da paz. Simplesmente, com a idade, resolveram, de um dia para o outro, que não havia mais motivos para dúvidas ou contendas. Na hora de partir o bolo comemorativo a faca foi posta na mão do simpático Horácio que, com o mesmo antigo cavanhaque que já voltava a ser moda, preparou-se para iniciar a partilha. — Não — gritou um filho —, sozinho, não. Mamãe, pega na faca junto com papai. Tem que ser as duas mãos juntas. Como no dia do casamento, igual que no bolo dos dez anos, nas bodas de prata, nas de ouro, etc. Não era a primeira vez que as mãos se uniam num repartir de bolo. Assim fizeram e, antes de entregar o primeiro pedaço a quem julgava merecer, o velho Horácio puxou um pigarro da ex-garganta e, de voz calma e o mais alto que lhe permitia a idade, declarou aos presentes: — Quero comunicar que esta festa de comemoração dos setenta e cinco anos de casados merece, como fundo musical, a Valsa da despedida. Hoje, após a saída do último de vocês, mudo-me para um hotel. Vou-me separar de Nazinha. A sala assumiu o aspecto de um velório. Era tão grande a quietude gerada pelo pasmo que se conseguiu ouvir a fina e quase ausente voz de Dona Nazinha: — Por quê, Horácio? O que foi que eu fiz? — perguntou ela. — O que foi que eu fiz? — insistiu, dizendo a frase que mais dissera no correr da vida. Horácio Vivacqua, de olho rútilo e nervos tensos, não olhava a mulher nos olhos, mas destruía (ou tentava isso) o vestido de tafetá. — Não queira bancar a santinha. Você botou esse vestido para me humilhar. Era com ele que você estava naquela tarde. — Que tarde? Aquela do ajudante-de-ordens do Marechal Floriano? — Está vendo como você lembra? — disse Horácio, jogando o bolo ao chão e retirando-se à procura do Hotel Central (que ele nem sabia já ter sido posto abaixo), enquanto Dona Nazinha, com princípio de enxaqueca, dirigia-se ao seu quarto para escrever mais uma página do décimo terceiro tomo do seu diário. Enquanto subia as escadas, o tafetá fazia um ruído que parecia um chlec-chlec. . . chlec-chlec. . . Como sempre. VIÚVA, PORÉM DIFÍCIL Desde que o marido morreu, Cleonice permanecia invicta. Não foi por falta de oportunidades e, muito menos, por ausência de propostas, que as oportunidades se fartaram de surgir e as propostas eram praticamente diárias. Amigos (?) do falecido Pedrosa viviam num assédio crescente, a convid: para boates e passeios, acenando com viagens à Europa, América, Ásia, África e Oceania. A tudo e a todos ela recusava, sempre com aquele sorriso que não trazia apenas agradecimento pela lembrança, mas, muito mais, resignação: — Obrigada, Dr. Heitor, mas. abe? Acho que não fica bem. Faz tão pouco tempo que o Pedrosa morreu. Não sei. Parece que ainda é adultério. Se, em vida, nunca lhe passara pela cabeça a menor possibilidade de enganar o marido, muito menos o faria agora. Era como apunhalar um morto. Em vida, o Pedrosa podia revidar; depois de morto, não. A traição ao defunto era indefensável, e a um homem bom como o Pedrosa foi, toda a sua vida, não se faz uma co! assim. Os que recebiam as negativas respostas de Cleonice acabavam por se pôr de acordo. — Tem razão, Cleonice. Você está certa. Futuramente, quem sabe, não é? — perguntavam, na esperança de ouvir uma concordância com esta segunda possibilidade levantada; mas o que escutavam não era do seu agrado. — Nem agora, nem futuramente, nem nunca, Dr. Plácido. Mulher, eu só fui do Pedrosa. O Pedrosa morreu para o mundo, eu morri para o sexo. — Mas quem está falando em sexo? — mentia o Dr. Plácido. — Para mim, pegar na mão é sexo. Mais de cinco frases eu já acho pecado. Com licença. E se retirava, acabando o assunto. Cleonice até se punha ruborizada quando se tocava nisso. O retrato a óleo do Pedrosa, encimando o sofá maior, era o retrato de um santo — que um santo marido ele fora — merecedor de todas as E ficava olhando o retrato do marido sobre o sofá, onde o finado tinha o queixo pousado na mão fechada, como se a fotografia tivesse sido tirada especialmente para uma atitude de ou te observando". Uma vigia eterna e sem utilidade, porque Cleonice já tinha falado: "Homem, nunca mai Uma vez por mês o banco mandava o dinheiro da mesada. Pedrosa, quando vivo, não dera importância apenas ao físico. Tinha deixado tudo entregue a um dos bancos mineiros de tantas agências espalhadas pela cidade. O gerente, homem de confiança, era o tutor da herança. As ações, letras de câmbio, dinheiro guardado, tudo estava sob o controle do banco e permitia à viúva o recebimento sagrado e tranquilo de uma farta mesada que lhe dava direito a viver sem i necessidades. E, quanto à mesada, ela nem gastava tudo. O que sobrava era recolocado no banco. Dona Cleonice, cada vez que devolvia o que restava ao fim de cada mês, pensava numa bola de neve; era um aumento da certeza de que nunca lhe faltaria o pão, porque o teto estava garantido pela casa da Rua Dr. Satamini, casa que já bem precisava de uma pintura, quando pouco. Aqui entra o ladrão na estória. Tanto se falou do dinheiro de Cleonice (diziam ser fortunas!) que isto chegou ao ouvido do ladrão. O vento lhe contou que numa certa casa da Rua Dr. Satamini morava uma viúva rica que tinha dinheiro nas gavetas e jóias no cofre. O roubo foi às três da manhã. O negrão forçou as janelas da sala e da cozinha, e acabou entrando pela porta dos fundos, que não se negou ao seu pé-de-cabra ensinado e diplomado. Esperou uns momentos até que a vista se acostumasse ao escuro. Viu a cadeira de palha onde um tricô em meio de caminho descansava com as agulhas mal enfiadas; o sofá, o retrato do falecido — com a mão no queixo e o olhar de advertência. Aquele olhar não era para ele. Na sala, nada que interessasse. Voltou à cozinha, por onde entrara, e comeu um farto pedaço de gelatina de limão; esteve na copa, na sala de almoço, e subiu pela escada de madeira cuja passadeira mostrava rasgões num ou noutro degrau. No que rangeu, por exemplo. Foi esse rangido que acordou Cleonice, pondo-a a par de que havia alguém dentro de casa, certamente um ladrão. Sentou na cama e ficou esperando que ele entrasse. Jóias, não tinha, que as guardava no banco. Dinheiro, apenas o resto da mesada que amanhã iria devolver ao gerente. Que Deus fizesse o que melhor lhe parecesse. O ladrão poderia matá-la, por ficar irritado ao comprovar a inutilidade de assaltar aquela casa. E se assim fosse? Mais cedo iria juntar-se ao Pedrosa que, seguramente, tudo observava lá do lugar onde Deus o pusera. Ea porta se abriu para o ladrão entrar. — Boa noite — disse a voz de Cleonice, num tom manso que parecia dar boas-vindas. Tomado pelo susto e não por medo, o ladrão recuou um passo, estendendo a arma em ameaça. — Se levantar, eu passo fogo. Era um negro de um metro e oitenta. Usava um shorte, e o corpo, provavelmente ensebado, recebia a luz de um anúncio em néon, que entrava pela bandeira da janela, e o tornava brilhante. Seus músculos fortes refletiam o amarelo que fluía do anúncio da rua. — E por que me matar, moço? Eu sou uma velha. Uma velha pobre que mora sozinha. O senhor pensa encontrar aqui jóias e dinheiro, não é? Perde seu tempo. E contou que vivia de uma mesada e que deixava que os vizinhos julgassem que ela nadava em dinheiro porque lhe agradava que a imaginassem milionária. — ... mas eu sou pobre, moço. Minha pobreza é do tamanho da minha velhice. Só é menor do que a minha solidão. O senhor me parece ser um homem bom. O negro abaixou o revólver. Mas Cleonice ainda não acabara de falar. — O senhor jantou hoje? — Mais ou menos — demorou o negro a responder. — Ninguém janta mais ou menos. A gente janta ou não janta. O que comeu hoje? — Um sanduíche de mortandela, no almoço. E, no jantar... — Não jantou. — Comi um pedaço de gelatina, lá embaixo. — Só? Mas lá embaixo há mais o que comer. Ela cobriu a camisola com um robe e desceu, levando, pelo braço, o negro ladrão. Era sebo, de fato, que tinha no corpo. Enquanto fritava dois ovos, os dois conversavam. Era um pouco ridículo o que acontecia naquela cozinha. Cleonice, com creme no rosto e um lenço protegendo o penteado que fizera anteontem, junto ao fogão preparava a ceia do negro ensebado que, de shorte e pernas cruzadas, folheava uma revista antiga como a dos consultórios médicos. A conversa era mais um conselho. — O senhor é um homem moço, por que não arranja um emprego decente? Ganho honesto, o dinheiro rende mais. Quanto. .. — demorou a dizer a palavra — .. .rouba por mês? — Não tem nada certo. — Em média — insistiu Cleonice. — Um dia pelo outro. Trezentos? — Tendo sorte, um pouco mais — confessou o negro. — Digamos. .. quatrocentos. —É, digamos. O negro não mentia. Havia casas de bom faturamento e também havia casas como aquela em que nada levaria, pois já não mais admitia tirar um centavo da madame que acabava de fritar os ovos que lhe matariam a fome. — Coma. — Não tem uma cervejinha? Desculpe abusar, mas... Não tinha cerveja, que Cleonice não bebia, mas lhe foi servido um Grapette que tingiu o copo de roxo. Ele comeu com avidez, passando o pão-meio-borracha no amarelo de ovo que sujava o prato. — Agora vamos conversar — propôs Cleonice. — Madame — disse o ladrão —, a senhora foi muito legal comigo, mas vamos deixar a conversa pra outro dia. Já são quase quatro horas e. — Mas o senhor não vai mais roubar — atalhou a velha. E, sem dar ao ladrão uma fração de segundo para responder, propôs um acordo que não deixava de ser interessante. — ... e você fica trabalhando aqui. Numa casa tem que ter um homem. O senhor cuida do jardim, conserta uma coisa ou outra que se quebre, faz as compras da casa. Pode dormir na garagem. No tempo do Dona Cleonice é que entrava. APETITE DE CÃO Começo a contar, nestas bem impressas linhas, a estória do homem que jogava pôquer. É uma estória tão estranha que o pôquer, nela, não tem a menor influência ou importância, e nem ao menos seria citado, se o homem da estória, ao chegar em casa, não estivesse voltando de uma rodinha de pôquer à qual comparecia com assiduidade não escolar, cada quinta-feira. Utilizava um dia fixo na semana para dividir, com quatro amigos larápios, cingiienta por cento do salário que percebia na filial de Copacabana da Barbosa Freitas, onde dava expediente no escritório. Então, voltando ao pôquer que jamais será citado, o homem entrou em casa às duas da manhã, horário mais avançado do que o habitual, por ter a rodada de fogo, onde, aliás, o seu dinheiro foi queimado, demorado um pouco mais do que o previsto. O homem, que se chamava Barbosa e assim o chamavam, estava com fome e foi ao fogão sobre o qual nada mais achou que duas panelas vazias; no forno, mais vazio ainda, nem saudades de panelas ou pirex. Ele revistou os armários de fórmica da cozinha americana de modo desajeitado, por não saber se as portas abriam no sentido da Mata Machado, ou do Ginásio Gilberto Cardoso. Os armários lembravam um estômago de retirante, de tão sem nada. Nem aquele pão dormido, os míseros farelos de bis- coitos, a hoje simpática banana sardenta que costumava repudiar quando encontrava em meio às apetitos bananas-prata recém-chegadas da feira. Nem a maçã com uma mordida de arrependimento e subsegiente abandono! Foi à geladeira na esperança do pudim pelo meio ou do final de um leitinho na embalagem plástica. A geladeira não exibia mais do que meio pacote de margarina, uma garrafa de água poluída, o papel plastificado que envolvera as fatias de bacon que se comeu no almoço (por que o papel ainda está ali?), uma caixinha de ovos sem os ditos, frascos de conteúdo indesejável que deveriam ser remetidos ao la- boratório na manhã seguinte, e mais nada. A despensa não era das mais fornidas, convenhamos. Mas a fome, temos que reconhecer, era canina. Canina! O homem lembrou do cachorro. Pé ante pé, para não acordar o Príncipe Valente, que dormia com um vermelho olho entreaberto, aproximou-se do prato do boxer. Limpo, como a consciência de um santo. Correu a área de serviço em busca de uma folha de alface caída na chegada da feira ou de uma laranja ou pêra. Até pêra ele comeria, como se estivesse doente. Mas como podia ter esta esperança, se a feira só seria feita no dia seguinte? O que encontrou foi a ausência total de qualquer coisa mastigável ou ingerível. Mas ainda havia uma esperançazinha muito remota: podia tentar o armário onde as vassouras eram guardadas. Podem todos achar que o homem exagerava, mas o que ele fazia era, apenas, pôr-se do tamanho da fome que o martirizava. Abriu o armário das vassouras e lá estava a salvação: os biscoitos do cachorro. Não desejo discutir se é salutar ou não um ser humano comer biscoitos de cachorro, mas sou obrigado a admitir que, para quem está a perigo, Maranguape é Nova Iorque. Com a avidez dos famintos — grupo em que estava incluído e, por isso mesmo, tinha direito à avidez supracitada — o homem abriu, com a maior prudência possível, para não acordar o boxer que estava sendo roubado, o plástico que abrigava o biscoito, evitando com as mãos postas em concha o sclásct, sclásct do plástico. Pôs um biscoito na boca e esperou que o paladar desse o seu parecer. Não houve recusa. Ele comeu outro, mais outro, comeu todos. Com sofreguidão e agrado, gostando até mesmo do último, comido quando a fome já não era tanta. Daí, ficou viciado. Exigiu que a mulher, a começar do dia seguinte, comprasse carne para o cachorro e biscoitos de cachorro para ele. A DECEPCIONANTE ESTÓRIA DE DOIS HOMENS Era uma vez uma porção de coisas que acho muito bom que cuidem de não esquecer e que, para isto, as enumero: um bar, um espelho, um gordo homem alto, um copo, um cálice, um magro homem baixo, um garçom, um soco, uma briga, uma cerveja, um conhaque, uma rua, uma mulher, uma bronca, uma paquera, uma agressão, uma pausa, um revide. Era uma vez uma porção de coisas que, após enumeradas como o foram, devem imediatamente ser colocadas na ordem justa e devida, para evitar maiores danos à cabeça de quem lê e que, se for desequilibrado como imagino, deve estar roxo para saber o significado do bar, do espelho, do gordo homem alto, do -copo, do cálice, do baixo homem magro, etc. Primeiro, tomemos para cenário o bar com o espelho ao fundo e um garçom de intermeio, eliminando, desta forma, três das várias coisas citadas no era-uma-vez da estória. Neste cenário entrou o homem alto e gordo que se sentou na cadeirinha do bar, pedindo um conhaque num cálice pequeno, e se escondendo atrás de um jornal que exibia as manchetes habitualmente enganadoras. Seguiu-se, então, a entrada do homem baixo e magro que, seguindo o contraste, comandou uma cerveja num copo longo. Por minutos nada mais aconteceu naquele bar, a não ser uma imagem que lembrava a pontuação exclamativa espanhola. De um lado, um ponto de exclamação ao inverso: um homem alto tendo, em cima, um pequeno cálice; do outro lado, a pontuação admirativa normalmente posta: um copo longo e, sob ele, o homem curto. Então, de repente, surgem na estória vários dos pontos de venda citados no início e que me permito repetir para que não se percam hora alguma: uma rua, uma mulher, uma paquera, uma agressão, uma briga. Da briga, cuidamos em seguida. Através do espelho o homem viu, detrás do jornal, o homem enorme. Num pulo de gato arrancou-lhe o jornal da mão, colocando, no nariz do homem enorme, seu pequenino dedo de homem curto. — Pensou que nunca ia me encontrar, não é, seu cavalão cretino? — esbravejou o pequenino, sem obter nada em resposta, a não ser uma atenção mais cuidada por parte do garçom que, boquiaberto, não esqueceu de abrir a boca para ficar realmente boquiaberto (uma vez que é muito comum chamarmos de boquiaberto os que estão unicamente estupefatos). — Sabe quem eu sou? Não diga que não sabe, que você sabe muito bem quem eu sou — perguntou e respondeu o homem pequenino demonstrando uma auto-suficiência para o diálogo simplesmente alarmante. — Eu sou o Jurinha. Como ainda desta vez não tivesse motivado o homem enorme para a briga, o pequenino levantou da alta cadeira em que estava, ficando, assim, menor do que já era, porque, de tão pequeno, ele, sentado, era maior do que em pé. — Eu sou o marido da Helena, seu safado — apresentou-se o pequenino na ponta dos pés, posição que não era cômoda, porém facilitava a aproximação do seu dedo em riste se não do nariz do homem enorme, pelo menos do seu umbigo — parte do corpo de aparente inutilidade, mas de periculosidade desmedida. — Pensa que eu não sei o que você anda fazendo, seu palhaço? O homem enorme mantinha-se calado como o cálice de conhaque que já nem tocava. E o homem pequenino (incríveis, esses dois homens!) não fazia por onde amortecer sua ira. "Como era possível caber uma cólera tão grande num homem tão pequenino?" devia estar pensando o garçom durante o tempo em que, assistindo à pendenga, limpava o salão porque de noite tinha festa. — Minha mulher não pode passar na rua, que você vai atrás dela dizendo gracinhas e fazendo propostas indecentes. Com mulher de homem não se facilita, está ouvindo? Está sabendo, bicho? — per- guntou o pequenino, numa inflexão absolutamente Ipanema, que contrastava sobremodo com seu porte Lilliput. A cerveja dormia no copo alto, o conhaque esfriava no cálice miúdo, o garçom colocava sob o balcão o produto colhido entre a boca e os olhos, e o homem pequenino, crescente de fúria, cresceu de estatura, subindo no travessão que serve de apoio para os pés. Com isto, conseguia atingir a altura do peito do homem enorme, com seu dedo que nem se via de tanto que se agitava num incitamento exasperado. — Vou lhe dar uma surra que você nunca mais vai esquecer. Pensa que só porque você é grande e eu sou pequenininho, você pode fazer e acontecer aqui na rua? Pensa que eu vou botar o galho dentro? Pensa que eu tenho medo de você, seu babaquinha? Pra mim, maior o pau, maior a queda. Dou-lhe um soco só e você, cada vez que lembrar do soco, vai cair de novo! — berrava o homenzinho pequeno de ódio tão comprido. — Fala um troço aí. Diz uma sílaba. Fuma! Pega nesse cálice. Cale-se! — ordenou ao homem enorme que permanecia calado. Não era uma cena que se possa ver frequentemente e, por esta razão, o homem pequenino fez a pausa enumerada no início da estória para conseguir um efeito dramático mais de acordo. Feita a pausa, vamos nó — Mulher do Jurinha ninguém paquera, porque o Jurinha é fogo no jirau. O Jurinha bate por baixo, pra ver você cair de cima. O Jurinha é bom de pernada e de bolacha, ouviu, seu bobo alegre, paspalho, vagabundo, cafajeste, cachorro vira-lata, vaca de presépio, bode expiatório, cavalo de corrida, gato de hotel, mosca morta, galinha comeu, rato de gaveta, rabo de arraia, cabra da peste, leão-de-chácara, vaca foi pro brejo, galo de briga, peru de pôquer, rã à doré, pé de pato, mão de onça, serra das araras. Depois das zoológicas ofensas que conseguiu recordar para desfeitear seu êmulo, o homem pequenino calou-se. Das coisas enunciadas, ficou faltando o soco para que a estória se finde. Foi o que o homem enorme deu na cabeça do pequenino. Um só, de cima para baixo, que lhe provocou a morte instantânea, por hemorragia interna e fratura do occipital. Que estória decepcionante! pra contar. Seu Antônio Português: o táxi dele batia todo santo mês, o dinheiro não parava na mão dele, lembra? Hoje, depois que a vovó deu uns passes, tá com três chevrolés rodando e já faz casa própria em Deodoro; tem mais: o Tatá, aquele rapaz que namorou a Cecilinha, lembra? . E Dona Lurdinha desfilava um rosário de exemplos, tentando convencer Dona Verônica a levar, no peito e na raça, o Mendonça ao centro. Ela, com o filho, nem tocava nesse assunto. Pode-se falar de espiritismo a um homem que diariamente vai à igreja e que usa, como livro de cabeceira, a Vida de São João Batista? Para que ele concordasse ou procurasse resolver sua vida por esse lado tinha que ser por conta própria. — Uma hora boa — lembrava a vizinha espírita — é quando ele estiver de porre. De porre, não é ele quem fala, é um obsessor que fica falando pela boca dele. — Mas porre, como, se Mendonça não bebe? Com o tempo muda, vocês vão ver. Dá tempo ao tempo. De repente dá um. estalo, e Mendonça se dana a atacar as moças por aí. Vamos com calma ao pote. O mundo não acaba hoje. Vocês confundem educação com outras coisas. Quem fala que o Mendonça é fresco tem é inveja de não ter o trato e o preparo que ele tem. Podia ser que fosse isto. Mendonça era mesmo de uma cultura exuberante, se levada em comparação à cultura zero dos que moravam na rua. Sabia até fração! Mas seus conhecimentos aritméticos não o livraram do apelido. — Olha lá o Bichola! Mendonça achou ruim, e a reclamação solidificou o apelido. Só tem a alcunha cimentada quem a ela reage. Seu protesto garantiu para todo o sempre o chamamento grotesco e injusto: "Bichola”. Bem, até que nem era lá muito injusto. Diná era linda, além de loura. Quando o sol lhe batia nos cabelos até os ombros, parecia estar vindo buscar dourado neles. Lourice autêntica, não como a das moças que, na televisão, fazem reclame de novos xampus. Quando Diná passava, a rapaziada não sabia se era preferível acompanhar os "ir e vir" dos democráticos quadris, ou o macio deslizar dos cabelos de um ombro a outro, como que espanando suas costas descobertas pela caridosa blusa de frente única, que servia, mais que tudo, para realçar o colo tentador. Os galãs da Rua Calmon Cabral davam em cima de Diná as vinte e quatro horas do dia. Não havia imaginação no que diziam, mas o que levava de desejo! — Sabe que você é o número que eu calço? Taí, você é o remédio que o doutor me receitou. Tua mãe não quer um netinho? É verdade que você é apaixonada por mim? Com você eu começava pelo pé da cama. Vai ser gostosa assim lá em casa. E Diná sacudia os cabelos num gesto impregnado de sexo e caminhava, malvada, mais provocante ainda, quadris indo e vindo, indo e vindo. Isso, todas vezes, todos os dias. Mas não tinha bola* pra ninguém. Os homens faziam apostas. — Bota dez mangos que eu levo ela ao cinema domingo? — Tá casado. Dez pratas. O Rubens é testemunha. Mais uma aposta perdida. E eles, também, se faziam promessas. — Quem comer conta pro outro. — Combinado. E ninguém tinha o que contar. Diná era um envelope com lacre, caixa-forte de um banco inexpugnável. Indevassável e intocável como os documentos de guerra. Por isso, não apenas a Calmon Cabral, mas todo o subúrbio do Irajá caiu pra trás quando soube que o Mendonça tinha amarrado a Diná. —É gozação. — Te juro. Viram os dois na Quinta; no trem fantasma e no bicho-da-seda. — Amizade, rapaz. Vocês logo maldam. Amizade. — Com chupão é amizade? Foi o Piloto quem viu. E gritavam pelo Piloto — que assim era chamado porque dirigia o ônibus Nova Iguaçu—Mauá — para que ele, de viva voz, repetisse o que já contara dezenas de vezes. Cansado de tanto descrever o flagrante, ele o narrava num monocórdio automatismo que até tirava um pouco a importância do acontecimento: — Poxa, vi, sim. Diná e Mendonça, é. É, na Quinta, trem fantasma, sim. Também. Bicho-da-seda também. E roda gigante. — Ah! Até na roda gigante? — Tudo. Andaram em tudo. É. Agarrões e chamegos. Estão namorando, poxa. Quem namora não se agarra? Ela não é mulher? E então? Ele não é homem? Aí é que estava o galho. Que ele fosse homem, homem mesmo, agora é que se estava sabendo. Ou o Piloto desconhecia o apelido do Mendonça? — Sabe o que o Mendonça é? Um enrustido. Tirava onda de boboca mas vai ver, naquela sonsice, bem que ele já andou passando na cara umas e outras. Até minha pequena. Vou falar com a Isolda. Ninguém mais podia chamar o Mendonça de Bichola. Quem se atreveria a chamar assim um cara que tinha botado a Diná na rede? Os quadris, agora, iam e vinham exclusivamente para o Mendonça ou, como passaram a chamar, para o Bicheis — modo descoberto de qualificar um ex-bicha. Casaram na igreja da Penha e foram morar na casa da mãe do Mendonça, na Calmon Cabral, porque a mãe, ficando sozinha, preferiu ir para Caxias, dividir uma meia-água com a irmã solteirona. Mesmo após o casamento, dois ou três meses depois, ainda aparecia um que não entendia o sucedido. — Até hoje eu estou besta. A Diná desprezou o Jadir, que já tirou até retrato para anúncio de camiseta. — O Jadir só? E o Pião, que é bacana — apesar de eu não achar homem bonito — e tem situação: é detetive do 15.º. — Jadir, Pião, Helço, Boaventura — aquele subtenente que serve na Vila Militar —, Geraldino. . . Mandar andar todo mundo e casar com o Bicheis. Pode? — Posso falar? Pra mim, debaixo desse angu tem lingiiiça. A lingiiiça que estava por baixo do angu chamava-se Luís Paulo. Olhos verdes, como o mar do nordeste, pele queimada pelo sol do Leme, físico modelado por um ginásio de halterofilismo e emoldurado pela camiseta Hering de gola olímpica, que se colava aos músculos, propositadamente, para os realçar. — Sou casado e separado. Não deu para ficar junto, morou? Minha senhora era muito devagar. Casei porque meu velho queria e não deu para tirar o corpo fora. Durou seis meses. Ela mora, hoje, em Marquês de Valença. A gente nunca se combinou legal. Eu estava numa, ela estava noutra. E ela se chamava Ofélia, vê se pode. Respirou fundo antes de explicar a razão real do desquite: — EN-compatibilidade de gênio. Diná olhava as ondas. Nem quis saber se daquele casamento existia um filho, nem se ele tinha falado à esposa as coisas tão lindas e poéticas que lhe dissera. Não perguntou mais nada e nem nada falou. Fez sinal para o táxi e se foi, de volta ao Irajá. Luís Paulo ficou olhando a praia, parabenizando-se pelo feito, enxugando a testa com a manga da camisa. — Se eu não saco essa de ser casado, já era. Uma senhora de Botafogo, indicada pelo Toninho, fez mais um. Doeu na hora, mas depois não. Era uma dorzinha diferente. Não no local, mas na alma. Antes que alguém na Calmon Cabral soubesse da desgraça, a solução seria casar com o primeiro que aparecesse. Mas não podia ser com um dos da rua, os sabidos e malandros que lhe diziam gracinhas. Um bobão. Só servia um bobão a quem fingisse virgindade. De preferência um virgem. im que foi dado ao Mendonça o direito de subir os degra Penha solteiro e descer "ligado pelos sagrados laços do matrimônio". A mãe deixar a casa foi ótimo. Era uma chance que ela dava ao filho de esfregar na cara daquela molecada a sua macheza. — Falaram, que cansaram, do meu filho, mas taí. Ele tá casado com a moça mais linda do Irajá, e esses bobocas todos no ora veja. Bichas são eles que não arranjam ninguém. O casamento não mudou os hábitos do Mendonça. Continuava fervoroso. Já era congregado mariano e até ajudava na missa, quando o sacristão, que era muito dado a ter enxaqueca, não podia auxiliar o padre no ofício religioso. Os pais de Diná aceitaram o casamento com alguma surpresa, pouca alegria e acentuada dúvida. — Não é o homem que eu sonhava para minha filha, mas deve dar um bom marido. Religioso, prudente, calmo. E o gosto é dela, né? — É — dizia o pai —, mas bem que ela podia arranjar coisinha melhor. Aquele cara é muito esquisitinho. O pai usava muito o diminutivo, achando que esta era a melhor maneira de frisar os comentários. — Quando anda, é de um jeitinho desagradavelzinho. Deus queira que eu me engane, Rosali, mas, pra mim, é afeminadinho. — Não fala assim do teu genro, Jeremias! — É só um comentariozinho. Triste mundo em que a religião e a educação não são entendidas. Pobre mundo em que se confundem as qualidades e os defeitos. Para um sujeito ser bom, quanto pior, melhor. E Mendonça, se não era MELHOR, temos que ser justos: PIOR, também não era. Era meio-termo. Era temperado. Nem quente, nem frio. Mendonça era frapê. Isto. Frapê define bem o frescor do seu temperamento. — Eu posso ir mais cedo para casa, Seu Evandro? Não estou me sentindo bem — pediu Mendonça ao chefe. Era tão raro isto acontecer que Seu Evandro deixou. E ele realmente não se sentia bem. Não. sabia se tinha sido o camarão da véspera, a vitamina de abacate, o calor excessivo. O motivo, não sabia, mas o mal-estar era crescente. Suava frio, no último banco do ônibus que o levava de volta ao lar, três horas e meia antes da hora de chegar a que habituara a mulher. Em casa, não bateu na porta. Nem na de baixo, nem na do quarto. Por isso pegou a mulher deitada, e, sentado na cama, de cueca e meias, um rapaz que morava no Leme e que se chamava Luís Paulo, nosso conhecido. — O que é isso? Ele perguntava uma coisa inútil. Isso, qualquer marido saberia o que era, sem precisar gastar a pergunta, como Mendonça fizera. Mas, no caso em apreço, foi bom, porque deu tempo a que uma resposta fosse maquinada: — É um anjo, Mendonça. Ele é um anjo. — Anjo? — balbuciou Mendonça. Luís Paulo falou manso e quase em falsete, modo de comprovar o que Diná asseverara. — Sim, irmão, eu sou um anjo. Eu se materializei para te ajudar, porque és bom, puro e fervoroso. Tá falado? Faladíssimo. Precisava ser acreditado. Houve dez segundos de suspense. O anjo falou e olhou Diná sob os lençóis, aflita. Mendonça era, mesmo, bom, puro e compreensivo. Ajoelhou-se, fez o pelo-sinal e deixou todos tranquilos, ao rezar o Credo de olhos fechados — tempo que Diná aproveitou para, num pulo, vestir qualquer coisa sobre o corpo nu. Era um vestido, por casualidade, como poderia ser uma camiseta de gola olímpica. Daí, o anjo passou a fregiientar com assiduidade a casa do Mendonça. Já que lhe tinha sido dado o crédito, deram-lhe a liberdade. De noite, quando voltava dos Correios, não era raro o Mendonça encontrar o anjo, de bermudas, com um copinho de cerveja na mão, vendo televisão, com as pernas repousadas na mesinha de centro, de pé palito. O anjo acompanhava a novela das sete com regularidade, e era ele quem punha o Mendonça a par do que acontecia com os personagens. Além disso, conselheiro eficiente. Não fora ele um anjo. "Faça isso, não faça aquilo, aja assim, aja assado." Mendonça seguia os conselhos do anjo, e sua vida até que melhorara. Aquele lugar de chefe de seção — ninguém lhe tirava da cabeça — era obra de algum trabalho secreto, alguma manobra angelical. A vizinhança comentava, mas era inveja. Quem tinha anjo particular? Só ele, Mendonça. Os pais de Diná é que duvidaram um pouco. — Anjo? Nem no céu isso existe. É algum cara que está comendinho a Diná. E o marido acredita, aquele bobalhãozinho. — Não fala assim, Jeremias. — Virou vagabundinha. Você é mãezinha de uma vagabundinha. Era preciso que eu fosse um idiota maior do que o Mendonça para acreditar nesse anjo. Anjo? Aqui, ó! Aquizinho. O BATIZADO DA VACA O lugar era tão bonito, o clima tão bom, as flores tão rosas e as vacas tão bovinas, que o chefe da família achou que valeria a pena comprar ali uma fazenda. Consultou a família que, de pronto, foi contra. Isto colaborou demais para que o chefe da família entrasse, imediatamente, em conversações com o proprietário de uma, que se queria desfazer da fa- zenda, por achar que ela estava num lugar que não era lá essas coisas, o clima era idiota, as flores não fugiam daquela variedade: rosas, rosas, rosas, e as vacas, coitadas, eram simplesmente bovinas — numa total falta de imaginação. Vá-se querer que as vacas tenham isso! O negócio foi fechado por um dinheiro grande, e a família tomou posse da propriedade dois dias depois, data que coincidia com a véspera do fim das férias. A fazenda ficava num vale e era separada em duas partes por um córrego como o que só corre na infância dos escritores. Tinha matas e vacas, rosas e charcos, galinhas e caseiros. — Uma idiotice, comprar essa fazenda — vaticinou a esposa, numa contrariedade de quem faz doze pontos. — Comprar terra sempre é bom negócio — vibrou o chefe da família, puxando o ar, a encher o peito com um cheiro de estrume que vinha do estábulo. — Olhe em volta. Até onde a vista alcança, tudo é nosso. Está vendo o abacateiro? É nosso; Aquele caqui-chocolate? É nosso. A carreira de jabuticabeiras? Nossa. O mato, a a, a cocheira, o estábulo, o caminho, tudo é nosso. Esse céu, que cobre a fazenda, é o único pedaço de céu que é nosso, porque o da cidade é do governo. Aqui, mandamos nós, porque aqui tudo é nosso! — Pra quê? — sintetizou a mulher, numa pergunta de esposa. — Ora — explicou admiravelmente o chefe da família —, para ser nosso. Nossa terra, nosso chão, nosso cantinho, nossas rosas! — e pegou numa, furando o dedo. Durante o curativo no dedo magoado um dos trabalhadores da fazenda aproximou-se com uma notícia muito importante: a fazenda acabava de crescer de valor pelo nascimento de uma bezerrinha. — Viu? — comentou, vitorioso, o chefe da família, batendo nas cos da esposa, de modo a fazê-la cuspir a primeira jabuticaba que tentava comer. — Nasceu uma vaquinha! A notícia correu para os demais da família ao mesmo tempo em que, para os pais, corriam os filhos, estes, sim, felizes, ao saber do nascimento da novilha. — É menino ou menina? — perguntou um menino que, de tão longos cabelos, nem se sabia se era menino ou menina. — Não é assim que se fala, menino — esclareceu o pai. — A pergunta é: bezerra ou bezerro? É uma bezerrinha. — Vamos ver? Vamos ver? — gritavam os filhos a sugestão lógica das crianças que nunca viram vaca a não ser nos desenhos das latas de leite em pó. Foram. A vaca não deixou que se aproximassem da cria, que ficou sendo observada a distância pela família encantada e pelo caseiro indiferente e até um pouco irritado por haver uma vaca a mais no seu mundo. — Quem é o pai? — perguntou a moça mais taluda. — Um boi desses — errou o pai. — Um touro! — corrigiu o caseiro, sabedor ele de que o boi é um touro que já era; boi é um touro que perdeu os documentos. — Pois é — emendou o pai na mesma veemência —, um tourão danado desses. Olha a carinha dela. Os olhinhos ainda estão fechados. — Vamos batizar! — gritou um menino. — Boa idéia — concordou o chefe da família. — Quem vai escolher o nome? — Eu. Eu. Eu. Eu — di: casal. E começou a discussão sobre o nome a ser posto na recém-nascida que, indiferente a tudo, mamava na mãe, provando, assim, que ela (a mãe) não era tão vaca quanto julgavam. — Aretha Franklin! — Janis Joplin. seram, um a cada vez, os quatro filhos do — Jimi Hendrix — sugeriu o mais velho —, porque, até que me provem o contrário, essa vaquinha é touro; deixa levantar que vocês vão ver. — É fêmea, que o caseiro viu — afirmou o pai, voltando-se para o caseiro, na indagação do que já afirmara: — O senhor não viu? — Vi. É fêmea. E tome de gritar nome: Califórnia, Disneylândia, Erva Maldita, Otorrinolaringologia. . . Havia os nomes sugeridos a sério e os de gozação. Todos os que citei eram os a sério. Finalmente, o bom senso ajudou a solucionar o impasse. Foi a esposa quem sugeriu o nome que lhe pareceu o mais indicado para a novilhazinha que mamava no seio vaquerno: Long Island. — Desculpe — desculpou-se o caseiro por não entender. — Long Island — repetiu a mulher com uma naturalidade de quem fala "mococa". — A senhora podia escrever? — pediu o caseiro, confessando-se incapaz de decorar aquilo. Arranjaram uma pequena tábua onde, com um prego, o chefe da família escreveu: LONG ISLAND, tabuazinha que, com o auxílio de um arame, ficou presa no pescoço da novilha para que ninguém, na fazenda, esquecesse que aquela jovem bovina atendia pelo nome de Long Island, nome que fica muito bem para parque de diversões, mas que não é dos mais adequados para quem tem cara de Mimosa, Formosa, Maravilha ou Vaquinha — modo, inclusive, que melhor ajuda o reconhecimento da peça. Acabadas as férias, a família voltou à sua poluição metropolitana e só pôde retornar à fazenda dois anos depois. Tudo continuava como dantes, com exceção de uma ou outra coisinha em pior estado, uma das quais o geral. — Caseiro! — chamou o chefe da família, que não sabia que o caseiro tinha nome: José Caseiro da Silva. — Pronto, doutor — obedeceu o caseiro meia hora depois, com a presteza de um favor bancário. — Como vai a novilha? — Eu sonhei — narrou o homem — que na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras, no número 157, tem uma casa. O sonho era claro como se eu tivesse vivido tudo. Nítido. Parecia um filme. Af, eu entrava na casa. O portão da frente estava quebrado. Não era bem quebrado. O portão tinha duas partes. Uma estava em pé, a outra caída, no jardim, feito esses portões de casas abandonadas, que caem e ninguém dá conta. E nem era jardim. Diz que era uma espécie de matagal, capinzal. Aí, eu entrava. Tinha uma torneira pingando sem parar. A porta da casa, a porta mesmo, não o portão, estava só encostada. Aí, eu empurrava a porta que abria rangendo. E eu entrava, o senhor está ouvindo? Está prestando atenção? Eu entrava pela porta da frente e que estava só encostada. Era uma casa abandonada, moço. Mas tinha, num canto, um sofá todo rasgado. Diz que esse sofá era cinzento. Tinha até palha saindo das almofadas. Aí, eu passava pela sala, tinha um corredor com a tinta da parede toda manchada. Sabe, parede que tem infiltração? Era mesmo assim. Aí, eu ia até a cozinha. Na cozinha ainda tinha um fogão. A porta do forno aberta. Em cima do fogão, na parede, não tinha um pedaço assim dos azulejos e ali, moço, bem ali, justamente no lugar onde faltava azulejo, um milhar. Moço, eu lembro de tudo. Só não consigo me lembrar do milhar. Que milhar era, é que eu não me lembro. — Tá certo, mas o que é que eu tenho com isso? — Eu queria ir lá, moço. Mas não tenho dinheiro, sabe? O senhor podia me levar lá e... — Ora. E você fez eu parar pra me dizer isso? Eu manjo esse golpe. Você quer ir pra Laranjeiras e não tem grana. Vê se pega outro, meu chapinha. E o DKv arrancou, na direção do Túnel Rebouças. Tudo isso aconteceu no Rio Comprido, ali perto da Paulo de Frontin. O chofer reclamava, sozinho, os minutos perdidos ouvindo aquela estória idiota, na qual só mesmo um idiota igual à estória poderia acreditar. — Tá cheio de maluco por aí — pensava o chofer enquanto botava cento e dez numa rua onde o máximo permitido era sessenta. Quase na boca do túnel a moça fez sinal. — Pra onde vai? — Laranjeiras, por favor — informou a passageira tomando lugar no banco de trás. O DKY atravessou o túnel até a lagoa e, de lá, voltou. Na descida do Cosme Velho o chofer começou a ficar intrigado. E isso aumentou quando a moça respondeu à pergunta do chofer que procurava saber o lugar exato de Laranjeiras para onde ela queria ir. — Rua Pereira da Silva, por favor. Devia ser coincidência. Mas podia não ser. O chofer era um sujeito como nós, que não cremos em bruxas apesar da certeza que temos de que elas existem. Na entrada da rua a moça deu o número. — 155. Número 155, por gentileza. A moça ia exatamente para a casa vizinha à do sonho. O chofer hesitou. Devia ter pena de não ter trazido o homem do chapéu desbotado ou foi melhor não ter trazido? Era uma briga surda entre a compaixão e a ganância. "Sei lá. E se aquele negócio do sonho fosse mesmo verdade?" O milhar estaria lá, e ele não dividiria nada com ninguém. "Mas os dois podiam ganhar." O bicheiro pagaria aos dois e o cara, afinal de contas, era o dono do sonho. "Mas quem mandou ser teso?" Mas Deus pode castigar e o milhar não dar... — O senhor já passou, moço. O 155 é ali atrás. Ele já estava no 161. Recuou os trinta metros que os separavam do 155, como quem chora um ás no pôquer. Tentou evitar uma olhada para o 157, mas não deu. A curiosidade sempre vence a sensatez. Lá estava. O portão com uma parte em pé e a outra caída num matagal que certamente um dia fora jardim. Recebeu o dinheiro da passageira, e desligou o motor. Suas pernas tremiam e o seu coração começava uma disritmia muito compreensível. A casa estava abandonada. Tinha que estar, para ficar naquele estado. Já que estava ali, não custava intro- meter-se no sonho do homem do chapéu desbotado. O chofer passou o portão tombado e sentiu o primeiro arrepio. A torneira do jardim pingava, e cada pingo que caía parecia-lhe sussurrar um “entra. .. entra. .. entra. . ." que nunca mais acabava. A porta (a porta mesmo, não o portão) já estava ao alcance do seu olhar. Ele a fez abrir-se com o empurrar de um dedo. Ela cedeu com um rangido que lhe provocou o segundo arrepio. O homem do chapéu desbotado, naquela hora, deveria estar contando sua estória a alguém, no Rio Comprido. E havia um perigo: quem escutou pode ter acreditado e, mesmo que não traga o homem do chapéu desbotado, ele, que escutou a estória, pode estar vindo para ver se era verdade. Era preciso andar depressa. Mesmo assim, viu o sofá cinzento que cuspia palha por um buraco; seguiu pelo corredor que minava água pela parede e chegou à cozinha. De cabelos em pé, olhou o fogão. A porta do forno aberta, tal qual no sonho do homem, os azulejos faltando, mas, sobre o fogão, no lugar onde já não havia azulejos, nada escrito. Nem milhar, nem dezena. — Eu sou um idiota — pensou o motorista encabulado pelo logro. Aquele cara deve ter sido guardador desta casa, por isso sabia tudo. — Claro. Ele trabalhou aqui. E eu pensando que era verdade o sonho. É muito boa. O cara me tomou cinco minutos no Rio Comprido e me fez perder mais cinco aqui. Se eu boto a mão naquele cara um dia, nem sei. O homem do chapéu desbotado não era guardador de casa nenhuma e nunca trabalhara naquela. A verdade era a do chofer, no momento em que o homem lhe contou o sonho: ele, realmente, queria ir para Laranjeiras e inventara aquilo para conseguir uma carona. Era sempre assim que ele fazia. Cada dia inventava uma estória. De vez em quando, dava certo, outras vezes ele tinha que pagar o táxi. Mas esta estória do sonho fora a melhor que o homem do chapéu desbotado inventara. Isto, ele próprio reconhecia. Tanto que das outras estórias inventadas ele esqueceu. Dessa, do casarão abandonado, ele nunca olvidaria. A prova é que cinco anos depois de a ter contado ao chofer do táxi, quando já não estava mais desempregado — pelo contrário, estava até muito bem colocado no Banco Andrade Arnaud —, quando já não usava mais o chapéu desbotado e tinha os pés calçados por sapatos finos, o homem lembrava de tudo com a nitidez de uma verdade. Como se de fato tivesse sonhado aquilo com a clareza que afirmara ao chofer do táxi. Por coincidência pensava nisto quando o gerente do banco lhe fez um pedido para entregar um documento em Laranjeiras. Eram comuns essas solicitações. — É na Rua Pereira da Silva. Você não mora ali perto? — Moro na Tijuca. — Então deixa, que eu peço ao Maurício. da data, porque sou filho do Guerreiro — não sei se o senhor acredita. . — 0443. — Como o senhor sabe? — espantou-se muito o chofer. — Eu não sei de nada — finalizou o homem. — Estou dizendo por palpite. Mas isso tudo é bobagem. Eu não acredito em sonho, moço. — E em Ogum? — Em Ogum — hesitou o homem —, em Ogum eu acho que acredito um pouquinho. Ogum, dizem que é forte. Mas sente. Vamos conversar sobre o seu caso. E o motorista sentou, colocando sobre o colo um chapéu desbotado enquanto seu futuro patrão, com a mão no bolso, apertava uma pequena imagem onde um santo montado a cavalo levantava uma lança. A MULHER ATACANTE Eram marido e mulher, mas viviam tão brigando, tão discutindo, tão se desentendendo, tão sem chegarem a acordo, que mais pareciam mulher e marido. O casamento não fora na igreja, porque sendo a mulher católica e o marido protestante, mesmo antes de discutiram sem chegar a nenhuma solução. — Caso na igreja! — gritou o noivo protestante. — Caso na igreja! — protestou a noiva católica. Como cada um se referia à sua igreja particular, acharam por bem não casar em nenhuma. Como também não se tinham casado no civil, o casamento não existia: era uma adorável amigação. Ora, se fossem casados, poderiam tentar um desquite — amigável ou litigioso, que era mais o caso —, mas, sendo apenas amigados, de que modo poderiam separar-se? Havia coisas a discutir: com quem fica o filho, com quem a tevê, quem tem direito aos móveis, quem ganha a cama, quem perde a roupa de cama, quem leva o cachorro, etc. Essas coisas, nós sabemos, quem decide é a Justiça. Mas decide, quando o casal é casado. Amigado, tem que resolver particularmente e aquele casal jamais poderia resolver nada, de tanto que brigavam. Mas isto não ficou nisto. Um dia, o marido acordou, escovou o que lhe restava dos dentes, penteou o fim dos cabelos, olhou a mulher muito profundamente e, num apontar de dedos que era quase acusação, disse seco e frio: — Você é um jogador de futebol. Ao ouvir esta frase, a mulher olhou para trás, certa de que, às suas costas, estava um desses peles que defendem a seleção canarinho com ponta de bota ou metendo a chanca na bola, segundo uns e outros. Atrás dela, apenas a parede. — Não queira discutir nem tirar o corpo fora — insistiu o marido, já num tom veemente. — Você é um jogador de futebol. — Eu? — sussurrou a mulher, trêmula como as bandeiras em desfile. — É, você! — acusou o marido, brandindo os dedos nas ventas da mulher perplexa. — Aliás — continuou —, não é de hoje que eu olho pra você e sinto que a sua cara não me é estranha. — Nem pode ser — lembrou a mulher chorosa. — Nós somos casados. Casados! — exclamou a amigada. — Não mude de assunto — grunhiu o marido, numa irritação de quem frequenta repartições públicas. — Eu estou falando de você, não estou me referindo ao nosso caso particular. O que NÓS somos, não está em discussão. Eu estou falando de você, e você é um jogador de futebol. — Dudu, você enlouqueceu — murmurou a mulher, um pouco a medo, porque já meio incrédula no que murmurava. — Esta é de cabo-de-esquadra! — monologou o marido. — Você pa: anos enrustida, sem me confessar, e, de repente, só porque eu descubro (porque meu olho clínico não falha), você vem me dizer que eu enlouqueci. E sabe do que mais? Seu passe está preso. Seu passe é meu. Com essa você não contava! E ele se riu da mulher que, chorando, já saía em busca de uma amiga, a quem telefonou aflita. — Margô, o Dudu está dizendo que eu sou jogador de futebol — contou à confidente. — De que time? — inquiriu Margô, rubro-negra, temendo que fosse do Flamengo. — De que time, o quê? Você não escutou? O Dudu, meu marido, está dizendo que eu sou um jogador de futebol. — Escutei. Tanto escutei que perguntei de que time. Entendeu? Entender era mais fácil do que explicar; mas nem uma nem outra conseguiu realizar o que se propunha. Foi um conselho de seu cabeleireiro o que de mais aproveitável apareceu. — Leva seu marido a um médico de cuca. Seu marido está doidão, queridinha. Se não fosse uma solução, poderia ser o começo de uma. Margô prometeu ajudá-la a convencer o marido a ir ao médico. — Sabe, Dudu — disse Margô tocando no assunto —, eu, se fosse você, ia a um psicanalista. os acidentados em desastres na via pública vão ao nosocômio, pois, em caso contrário, a coisa perde o seu tom policial. O motorista do ônibus fugiu para evitar o flagrante e o flagrante ficou eternizado nas fotografias tanto de populares quanto de dois repórteres que chegaram de carona, pois o carro do jornal parou na altura da Praça da Bandeira por entupimento do carburador. O proprietário da farmácia, um brasileiro de barriga portuguesa, com sobrancelhas em circunflexo e se pondo a esticar e soltar o suspensório antigo, limitava-se a dizer: — Com o prejuízo eu não fico. Alguém vai ter que pagar — repetindo este aviso num tom que fazia lembrar o dos meninos que, vendo isolada a bola da pelada, ameaçam ao chutador: "Vai pagar outra, vai pagar outra”. Uma senhora, com o filho ao colo, fazia, com o menino, um dueto de pranto, como se um tivesse perdido o outro, duplo falecimento que não se dera, caso em que nenhum dos dois estaria ali, a incomodar os demais. Veio um reboque da empresa e os homens do carro-reboque guincharam o ônibus com tanta naturalidade que até parecia estarem realizando uma manobra comum. Não era comum, porque em farmácia era a primeira vez que um Ônibus entrava; mas era habitual porque vários outros da mesma empresa tinham tentado penetrar em fachadas de edifícios, supermercados, escolas estaduais e maternidades. Após a evasão do motorista do local do acidente, as fotografias dos amadores bisbilhoteiros e profissionai incompetentes, os disse-me-disse dos que se metiam onde nunca foram chamados, do re- boque do ônibus e dos avisos do farmacêutico de que o prejuízo não seria dele, o fato morreu. Tudo pareceu ter caído no esquecimento. A companhia a que o ônibus pertencia mandou dois competentes pedreiros restaurarem a fachada destruída da Farmácia Santa Joaquina, inclusive ordenando a colocação de uma nova porta de aço, daquelas de descer — providência tomada no dia seguinte ao "pavoroso desastre que, por pouco, não ceifou a vida de inocentes crianças que, à hora em que se deu o fato, transitavam pela calçada no velocípede ganho no Natal passado". Tudo pareceu ter caído no esquecimento. Mas não foi isso que aconteceu. O homem magro de bigode gordo — que se ficou sabendo tratar-se de Emanuel Pereira — moveu uma queixa-crime contra a empresa, alegando que o acidente o invalidara para a vida normal, obrigando-o, inclusive, a se mover unicamente com a ajuda de uma cadeira de rodas ganha com o auxílio de Sílvio Santos quando sua mulher, obrigada que fora a ficar com a responsabilidade de manter a casa, compareceu para pedir auxílio "àquele homem tão' bom e que tanto ajudava aos necessitados". Daí, quando a coisa chegou ao conhecimento dos donos da empresa, duas coisas aconteceram: a surpresa e a dificuldade de descobrir que acidente era aquele ao qual o processo se referia, pois eram tantos os acidentes que isto praticamente os proibia de matar a charada ao primeiro olhar. Fizeram uma reunião os donos e os quase tão importantes quanto eles, na sala do presidente. — Que acidente é esse? — vociferava o proprietário, sacudindo a notificação do processo na cara dos circunstantes. — Só se for o da bicicleta — aventou o vice-gerente com um olhar que deveria ser igual ao do homem que descobriu a pólvora. — Mas no da bicicleta não houve vítimas — lembrou o chefe do almoxarifado, com uma convicção tão grande que merecia promoção a vice-chefe. E insistiu, na defesa de sua memória: "Lembra? Só a bicicleta, que ficou inutilizada, mas bicicleta não é vítima”. — Não, não é — confirmou o advogado da empresa, dando, ao que dizia, um parecer jurídico. — Bicicleta quebrada é perdas e danos. — Mas nós demos uma bicicleta nova ao rapaz — alegou o chefe da manutenção levantando não apenas um fato mas também as calças que teimavam em descer em virtude do regime a que se entregava desde o dia em que conheceu uma vedete de teatro a quem mandava flores diariamente — exceto às segundas, folga da companhia. — Demos uma nova, sim. É Caloi, não foi, Rebelo, não foi? — pediu a confirmação do vice-diretor de manutenção. — Monark — contrariou Rebelo, querendo destruir um pouco o diretor de manutenção, visivelmente de olho no lugar do homem. — Caloi ou Monark não está interessando — esbravejou o presidente, mordendo a ponta do charuto quando o que desejava era morder quem o processara. — Quero saber desse — batia no do- cumento com ódio —, desse, é que eu quero saber. — Sabe um negócio? — inquiriu o gerente-geral, preparando-se para dizer uma besteira. — Não sei que acidente é esse. — Não terá sido o de novembro? — sussurrou o almoxarife num tom de ator desempregado. — De novembro, como? — indagou o vice-presidente. — Qual de novembro? — O da farmácia — solidificou o almoxarife. — É verdade — admitiu o presidente. — Pode ter sido o da farmácia. É preciso dar uma olhada nos arquivos. Onde está o arquivista? — Nos arquivos — informou o vice-gerente. — Então, vamos aos arquivos — determinou o presidente, descendo o charuto ao cinzeiro e levantando da cadeira o que com que se sentava. Para a empresa, a localização daquele acidente era tão impossível como responder o que estávamos fazendo às dezesseis horas do dia 15 de março de 1957. Mas agora, não. Já havia a farmácia como referência e os arquivos comprovaram, em novembro, com a possibilidade de alguém ter-se acidentado, apenas a batida na farmácia. Os outros desastres eram bobos: destruição de três carros estacionados sem passageiros no interior da viatura, quatro postes derrubados com apenas o motorista e o trocador no ônibus, parcial demolição de um muro em Anchieta, tudo coisa menos do que comum: idiota. Mas no da farmácia tinha sido diferente. — Até saiu retrato no jornal — recordou o almoxarife, vitorioso na sua descoberta, o que irritava sobremaneira o vice-almoxarife. Foram chamados à sala da diretoria o motorista e o trocador do ônibus que, por incrível que lhe pareça, ainda trabalhavam para a empresa. O motorista entrou parecendo ter quatro mãos, tanta era a dificuldade de achar um bom sítio onde colocar as duas que possuía. obsequiado com a queimadura de charuto que o presidente agora de- dicava ao almoxarife com o carinho costumeiro. — Era caso de invalidez, Tião? — Não me lembro, doutor — explicou o motorista que, de fato, não podia lembrar de nada, uma vez que ao entrar na farmácia dera no pé, para evitar o flagrante. — O Zeca é quem pode saber. Todos olharam o Zeca. que, tentando fazer a mão atravessar aquele cabelo de bombril para cocar o crânio, deu seu parecer: — Não sei, doutor. Só lembro que o homem era magro e tinha um bigode gordo. Quanto é que ele está pedindo? — Quinhentos milhões — ululou o presidente dando um murro na clavícula do almoxarife que se interpunha à mesa. — Dos antigos — apressou-se a explicar o almoxarife com a mão na espádua provavelmente fissurada. — Quinhentos milhões — repetiram juntos os da cúpula da empresa, esvaindo-se num suor que deixava em dúvida a competência daquele Westinghouse de dois cavalos que deveria, pelas informações e garantias do vendedor da Casa Garson, estar congelando o ambiente. Mas o congelamento era da alma. — Quinhentas milhas? Uma nota sentida! — observou o motorista já imaginando que, para conseguir isso, só com treze pontos e poucos acerta-dores. — Só se depois o homem teve alguma complicação — alertou o chefe da manutenção, com as mãos nos bolsos a segurar as calças. — Você não soube de mais nada, Tião? — Nada, Seu Célio. — Nem você, Zeca? Zeca negou com um balanço do que ele chamava de cabeça. Ninguém sabia de nada. — Incrível — comentou o loquaz advogado. Tudo o que se sabia era que, naquela curva da farmácia, quebraram-se: a barra de direção, uma parte não muito grande da fachada e a porta de aço; e que um homem fora conduzido ao nosocômio mais próximo, de onde, depois de devidamente medicado, voltara à sua residência, no Conjunto Residencial de Parada de Lucas, Rua 7, quadra 15, número 34, apartamento 103. — Apartamento 103 — pensou alto o gerente-geral. — Mora nos fundos — lembrou o advogado, brilhante causídico de maravilhosos apartes. Era um caso para Sherlock Holmes e não para Perry Mason, porque o fato estava muito mais envolvido por mistério do que mesmo por problemas jurídicos. — É caso para um advogado — definiu o presidente enquanto pisava o pé do almoxarife. — Telefone para um advogado, Célio, e entregue o caso a ele — finalizou. — Mas... — tentou o advogado presente, calando-se em seguida com o fulminante olhar do presidente que esmagava o charuto na mesa, visto que o almoxarife já se tinha retirado para cuidados médicos. Ao advogado contratado nada se escondeu. Tudo lhe foi explicado com minúcias. O ônibus tinha quebrado. Barra de direção. Acidente, como a perícia policial comprovara logo após o fato. — Logo após? — perguntou o advogado num tom solene. — Logo após. O ônibus bateu às nove horas da manhã e já às quatro da tarde estava liberado. Logo após, então — admitiu o advogado, sabedor de que, para a perícia policial, sete horas são um átimo. Contaram da parede e da porta de aço (o homem da farmácia era testemunha), da remoção para o nosocômio, da inércia em que o caso ficou — por óbvios motivos. Depois o advogado pediu um pouco de tempo para se colocar mais a par de tudo e, então, emitir seu parecer. Esse pouco tempo foram quatro dias, data em que o advogado trangiúilizou os homens da empresa. — É um caso bobo — asseverou. — Não vai dar em nada. Se quiserem, podemos, até, processá-lo por extorsão, porque é um caso típico de extorsão. E, se não for, damos um jeitinho de passar a ser, ou eu não sou um bom advogado? — Claro que é! — exaltou o presidente abrindo os braços num gesto suficiente para atingir o malar do vice-almoxarife que, por duas semanas, ocupava interinamente o posto do almoxarife: o tempo em que ele, hospitalizado, cuidava de uma fratura no úmero provocada pelo presidente na penúltima reunião de cúpula. O caso foi a julgamento. O suplicante — um homem magro de bigode gordo — deu entrada na sala numa cadeira de rodas onde, no espaldar, discretamente estava colocada uma plaquinha esmaltada onde se lia: "Compre os carnes do Baú da Felicidade". Era empurrado por uma septuagenária senhora que se acreditava ser a mãe do suplicante. Isto pode ter comovido o juiz. Ou talvez o novo advogado tenha-se complicado na defesa. É de se crer, mesmo, que o homem piorara depois de deixar o nosocômio. Falou-se em hemorragia, em derrame, em inutilidade para o trabalho. A acusação foi dramática em muitos momentos. — Pode trabalhar um pobre homem entrevado, acorrentado a uma cadeira de rodas, impedido de qualquer movimento? Pensem, senhores, por um momento que seja, na cruciante hora das necessidades fisiológicas! — discursou o advogado de acusação numa comovedora defesa escatológica. A bola de neve desceu da montanha da mentira para soterrar a empresa. — . . declara a Empresa de Auto-Ônibus Estrela D'Alva culpada... O advogado não entendia. Os homens da empresa entendiam ainda menos. O homem magro de bigode gordo, sem mover um músculo, impossibilitado pela paralisia, parecia não estar presente. — .. pagar ao suplicante a quantia de quinhentos mil cruzeiros como indenização... A causa perdida tem para o advogado o efeito de uma bala no baço. E se ele sofria o torpor da derrota, os homens da empresa padeciam o tremor do prejuízo. Quinhentos mil cruzeirinhos que iam voar de seus cofres. Já admitiam a exclusão do Tião do quadro de motoristas. — E aquele trocador idiota também vai rodar — determinou o presidente a meia voz. — Como é o nome dele? — Zeca — elucidou o almoxarife de braço engessado. — Pois é. Zeca também roda — concluiu o presidente tentando destruir o perônio do almoxarife na violenta cruzada de pernas. ser pagos em moeda corrente ou em cheque, cujo número deverá ficar anotado... R AO MOTORNEIRO Era muito grande a surpresa do velhote que, ao receber alta após vinte e dois anos acamado (reumatismo infeccioso), pela primeira vez saía à rua. Andava pelo Rio como se estivesse fazendo turismo numa cidade a que nunca fora. Tudo mudado, tudo tão lindo e tão diferente. O aterro, os gramados em volta de postes que mais pareciam perna de ema (quando queimar uma luz como é que mudam?), o monumento ao soldado desconhecido, tudo era novidade. Trocaram a roupa da cidade durante sua enfermidade. Quis ir à Galeria Cruzeiro tomar um chope no Bar Nacional e lá encontrou uma cidade em pé, de mil andares, e se contentou com uma laranjada no Bob's. O Tabuleiro da Baiana, os bondes, por onde andavam? Estaria perdido? Poderia perder-se numa cidade que era sua apenas por ter ficado tão pouco tempo (vinte e dois anos) com aquele reumatismo idiota? A Rua das Marrecas tinha o nome de um político e havia um prédio encimando o Cine Metro onde ele assistira, quinze vezes seguidas, a Greer Garson em Rosa de esperança. E a Lapa, meu Deus! O que fizeram com a minha Lapa? Pelo menos a igreja está de pé, mas aquilo é novo, aquilo lá não existia, no meu tempo não tinha aquilo, roubaram os trilhos? O que fizeram dos trilhos? O homem andava, na sua caminhada de reconhecimento, sem saber se devia aplaudir ou vaiar o progresso, já que em nome do progresso tudo tinha sido feito e modificado. Saía de casa a caminho da casa do amigo Vergara, com quem jogava xadrez nos tempos idos. De sua casa, na Rua Taylor, até a casa do Vergara, na Santo Amaro, costumava ir de bonde (qualquer um servia, porque todos passavam pelo Largo do Machado), mas hoje estava disposto a ir a pé. Sabe lá se não acabaram também com a Praça Paris! E o homem ia andando, sempre com o olhar a circular pelos cantos da cidade. O Passeio Público cercado. Se está cercado deixa de ser público! Sem menos esperar, quase caiu num buraco. Dentro do buraco um homem, com um capacete prateado na cabeça, usava uma pá com a qual aumentava o buraco, jogando no asfalto a terra que dele tirava. — Alô — disse o convalescente. — Alô — resmungou, sem muita vontade, o trabalhador. — O que é que o senhor está fazendo aí? — perguntou o reumático ao homem que cavava. — Cavando — disse o homem ao velho. Vejam só. Além dos muitos buracos que há na cidade, em vez de fechá-los, o governo trata de abrir outros. Então era isso. Os buracos eram feitos com a concordância do governo. Ou talvez por determinação governamental. — Fazendo um buraco, não é? — quis certificar-se o reumático. — É, um buraco — precisou o cara de capacete metálico. Exatamente o que ele pensara. Uma barbaridade. Onde estão as Forças Armadas, que permitem este descalabro? Tiram-se os bondes e dão-se buracos. Bela política, essa! — E pra que fazer um buraco, moço? — Progresso, né? — rezingou o homem que cavava e cavava, jogando terra, algumas vezes, sobre os sapatos do velho que o aborrecia, olhando-o do alto do buraco. Que progresso mais idiota. Depois, aposto que nem põem placas avisando que ali há um buraco, vem uma criança... — Feche este buraco — ordenou valendo-se do seu título de cidadão. — Não chateia! — repeliu o operário. — Este buraco é um perigo. É um atentado à segurança pública. Como cidadão, eu ordeno: jogue no buraco esta terra — completou, enquanto empurrava com o pé número 35 um punhado de terra que se espalhou pelo metálico capacete do trabalhador. — Pára de jogar terra aqui, cara. Este buraco é para as obras do metrô. Foi como se falasse latim ao Lampião. Metrô? Não teria ele querido dizer Metro? Não seria a instalação de mais um cinema? — Metrô — interrogou o velho que saía à rua após vinte e dois anos de leito. — Não será Metro? — Metrô, cara. Um trem. Era o que faltava. Botar um trem ali, em pleno Jardim da Glória. Bolas ao progresso, que tira os bondes, tão fresquinhos e baratos, e, no seu lugar, coloca vastíssimos trens, de ruído insuportável. Agora é que ninguém dorme, da Conde Lage até nem se sabe onde. — Que trem é esse? — questionou o homem contra o progresso. — Será possível!? — sofreu o operário que cavava às duas da tarde, sob um sol de meio-dia (era janeiro). — Diga. Que trem é esse? Na qualidade de cidadão, eu exijo uma explicação — insistiu, zangado, o homem. — Olhe, meu amigo. Metrô é um trem que anda por baixo da terra. Faz-se um túnel debaixo do chão, botam-se os trilhos e o trem vai pelos trilhos — explanou o empregado das obras do metrô o melhor que pôde, para encerrar, de uma vez, o assunto. — Por baixo da terra? E ninguém respira? — Há ventiladores. — E a gente entra no trem de que modo? — Há entradas. Vai haver uma entrada ali (apontou longe), o senhor compra a passagem, desce as escadas, o trem vem, o senhor entra e vai. — Muito bem. É o progresso, não é? —É. — E, sendo debaixo da terra, não suja a roupa, nem...? — É um túnel! — irritou-se o operário. — O trem corre dentro do túnel. — Maravilhoso — admitiu. — Maravilhoso! — Agora dê licença — pediu o funcionário, voltando a jogar terra sobre o asfalto lá em cima. dono apenas esperava acabar o estoque comprado anos antes para cerrar a porta e encerrar o negócio. E mais nada. O povo de Hortênsia — quase me atrevo a chamar de população — morava num monótono amontoado de casas geminadas, construídas ainda pelo dono da Fábrica Bom Jesus, nos tempos faustosos em que a produção servia inclusive às Casas Pernambucanas. Com a falência da indústria, o dono da fábrica trocou a indenização que cabia a cada funcionário pela cessão definitiva do que o advogado chamou de imóveis. Acordo amigável onde não se fez necessária a intervenção do ministério. Não recebiam dinheiro, mas o teto, tinham garantido. Não era uma solução, visto que, sem emprego, nada podiam comprar para colocar no interior do teto que, dia após dia, menos teto ficava, por vazio de roupas e móveis e alimentos. O infalível sol forte da manhã e a indefectível chuva à tardinha ajudavam a destruir a madeira dos caibros, e as telhas quebradas não podiam ser trocadas — por falta de dinheiro e, bem mais, de disposição, porque se a cidade era devagar, o povo era parado. Nem crianças nasciam, coisa louvável, porque os pais, reconhecendo a improbabilidade de uma melhoria de vida, não achavam justo botar no mundo um menino que viesse a ter os problemas que eles não enfrentavam por falta de empenho e de coragem, mas que procuravam suportar, como Deus era servido. Hortênsia vivia da caridade de Painho, homem pequeno, de coração maior do que o mundo. Painho tinha emprego fixo em Petrópolis, para onde ia diariamente, levado pelo velho e "único ônibus da linha, de pneus com manchões e pintura mesclada de amarelo e zarcão. Painho ganhava oitocentos cruzeiros por mês e, como vivia bem e fartamente com cento e vinte, distribuía o restante com os moradores de Hortênsia. Além desta esmola, cada um, vez por outra, arranjava um biscate no Bingen ou no Meio da Serra e, assim, pra comer, sempre dava para conseguir qualquer coisinha. O teto, a fábrica lhes tinha deixado garantido, com a graça de Deus e a compreensão do Dr. Tibério, morador numa cobertura da Vieira Souto e que, duas vezes por ano, dava uma chegada à cidade com um pouco de dinheiro — que presenteava — e um muito de esperança — que iludia. — Acho que dentro de seis meses a fábrica reabre. Estou trabalhando para isso. Tenho falado com gente importante do governo e, até o Natal, se Deus quiser, vamos voltar a funcionar a pleno vapor. Dez cruzeiros para um, cinco para outro, vinte para o pai de um afilhado, um pulôver aqui, uma calça usada ali, e Dr. Tibério voltava ao mar de Ipanema deixando Hortênsia sonhando, por seis meses, a reabertura da Fábrica Bom Jesus, quando então, a cidade retornaria à alegria do passado. Falavam em passado sem se dar conta de que tudo o que lhes sobrava era isso. Hortênsia era um passado no presente. E o carro do Dr. Tibério, agora mais rico com a falência provocada em seu próprio favor, desaparecia na estrada ladeada de hortênsias. Essas, vivas, porque opostas à verdade da cidade que enfeitavam. Fazia oito anos que isso se repetia, e ninguém desconfiava que a fábrica não apenas tinha morrido, mas estava enterrada. A Fábrica Bom Jesus, com suas janelas empenadas e seus vidros quebrados, sua superada maquinaria de emperrados teares, jamais voltaria a fazer aquele gostoso e estimulante barulho de vida, de apresentar sintomas de progresso como antigamente. Mesmo o nome mal dava para ser lido sobre o portão antigo que um homem do Rio um dia quis comprar para colocar na sua casa, de tão imponente que era. O silêncio da fábrica era do tamanho da impotência do povo. Voltar como, se havia processo no negócio, se havia quem falasse em falência fraudulenta, em enriquecimento ilícito? A Fábrica Bom Jesus já tinha cumprido com o seu dever. Painho sabia di e, por ter mais cultura que todos, mais se penalizava quando ouvia os comentários otimistas após cada vinda do Dr. Tibério. Por isso, dos oitocentos que ganhava, seiscentos e oitenta distribuía, num gesto de caridade e compaixão. Entretanto, era pela saúde do Dr. Tibério que as mulheres de Hortênsia rezavam, todas as noites, todas as noites, todas as noites. Não nascia uma criança havia sete anos, mas as que pouco antes disto tinham nascido agora eram rapazes e moças de quinze a dezoito anos e precisavam de distração, que jovem não se contenta com pouco, mesmo tendo nascido e sido criado em Hortênsia. — É melhor arranjar distração pra eles, antes que eles se distraiam uns com os outros, não é? — perguntava Osíris, pai da idéia e — mais importante! — pai de duas raparigas de idade perigosa e corpos tentadores, possível distração dos rapazes. — É, você tem razão, Osíris — concordou o negro Jesuíno. — Mas distração como? onde? de que jeito? Não era um problema de solução imediata. No entanto, no dia seguinte estava achado o remédio para a doença. Foi resolvido que fundariam um clube, que se chamou Primavera, nome de uma estação do ano que parecia ser eterna em Hortêns — Primavera é um nome muito bonito! — apoiou Painho. — E a sede? — A gente fala com o Dr. Tibério e faz a sede num pedaço da fábrica — solucionou Painho. — E quando a fábrica reabrir? — Isso é problema pra depois — encerrou Painho, sabedor, como o Dr. Tibério, de que isso nunca iria acontecer. Com a devida licença do dono, a sede social do Primavera ficou sendo o almoxarifado da fábrica, que, varrido e caiado, ficou mesmo uma coisa linda! Media seis por oito e era nesses quarenta e oito metros quadrados de telha vã e chão de vermelhão francês que, nas noites de sábado (soirée) e nas tardes de domingo (vesperal), os vinte e um jovens e a totalidade dos velhos dançavam ao som do conjunto Los Musicais, composto por Bacurau, num semi tonado trombone de pistões, Normandes, num atabaque — o mesmo usado no Centro Espírita Cabocla Jurema —, e Painho, no pandeiro. O trio Los Musicais, para a gente humilde de Hortênsia, tinha som de Ray Conniff. Tentaram impor, após a terceira soirée, o pagamento de recibo, coisa muita certa, em se tratando de um clube, mas a idéia foi imediatamente posta de lado. — Se é pra pagar, eu saio — ameaçou o Coringa, antigo gerente da fábrica. — Se eu tivesse dinheiro pra pagar cinco mil réis por mês, comprava uma Conga nova, que a minha já deu o que tinha que dar. E tem mais uma coisa: se quer fechar o Primavera, pode fechar. O meu filho é homem, não corre perigo nenhum. — Não, Coringa, seu ponto de vista merece consideração. treinamentos, contando conjunto e individual, parecia jogar junta há milênios. Quando se poderia esperar que Hortênsia tivesse tantos craques? Ganharam de 4 x 0 e, na revanche, no campo do Primavera, fizeram 8 x 1. E o gol sofreram num pênalti, motivo de desespero para Waldemar que, por sua vontade e desejo, jamais seria batido. Em Hortênsia a renda foi menor, é claro. O povo da cidade não foi ao jogo por falta de numerário para comprar a entrada, e a assistência resumia-se aos poucos que tinham vindo de Fragoso, enganados pela esperança de que as coisas "desta vez seriam diferentes". Aliás, foram. Para pior. Acertaram, então, que só valia a pena jogar nos campos adversários. Pelo menos até que as finanças dos de Hortênsia melhorassem. A cada semana seguiam ofícios para as cidades que ficou resolvido serem chamadas de circunvizinhas. E a cada jogo crescia a fama do Primavera — invicta equipe de Hortênsia, cidade com nome de flor e habitantes de classe. Atingindo o décimo jogo sem derrota e construindo suas vitórias com sonoras e inquestionáveis goleadas — na maioria das vezes a zero, para orgulho e glória de Waldemar — o Primavera fez com que as ficassem exatamente invertidas: no lugar de mandarem, passaram a receber os ofícios. O imbatível Primavera já se dera o direito de pequenas exigência — Além da renda dividida, o caminhão fica por conta de vocês — o que era imediatamente aceito porque o jogo era mais uma exibição e quem quer ver exibição tem que pagar. Até um clube de Pati do Alferes quis jogar contra o Primavera. E perdeu, como também perderam os desafiantes de Pedro do Rio, Cascatinha, Santo Aleixo e Falcão. Tinha jogo que dava trinta e cinco contos de renda! Isso, com o caminhão pago pelo adversário, rendeu, na ocasião, o dinheiro bastante para que e a caiação do salão de baile por duas demãos de Paredex. Verde, como a esperança. Como o Primavera. Admitiu-se a hipótese de o Primavera participar do campeonato do Estado do Rio, mas ainda era cedo. Mesmo o empate com o Petropolitano, no campo deles, que poderia servir de teste decisivo para avaliação do poderio do Primavera, foi recebido em Hortênsia com moderadas comemorações. — Bom mesmo a gente só está quando jogar pau a pau com o Barbará ou o Central e o Royal, de Barra do Piraí — lembrou Painho que agora, mais técnico do que fiscal de bilheteria, levava a campanha do time tão a sério que passara a ficar no vestiário, deixando Coringa fiscalizando o borderaux. Não eram as instruções de Painho que garantiam as vitórias, porque ele, na preleção antes de cada prélio, repetia, sempre, as mesmas recomendações: só trac, trac, trace — e acompanhava cada "trac" — Já sabe: a defes com um truculento gesto de pontapé — e o ataque só tics, tics, tics — juntando aos "ties", macios e horizontais deslizar de suas mãos estranhamente sedosas. Realmente o Central e o Royal seriam a prova maior da força do Primavera, progressista agremiação social-esportiva, de uniforme, eu já disse, verde, cortado na diagonal por uma faixa branca onde se destacava a verde estrela que, no seu interior, levava, em branco, as letras PSC. Uma estrela era o escudo de um time de estrelas incontáveis e incontív Um dia chegou o dia de não ser mais possível conter a fama do Primavera. O Botafogo, do Rio, com um time mesclado de juvenis e reservas conseguiu, com dificuldade, um empate com o Primavera, o que foi considerado um resultado altamente satisfatório. Ainda mais que até o Quarentinha tinha jogado e, no gol, estava o Oswaldo Baliza. A atuação do time de Hortênsia foi quase perfeita, tanto que foram feitos convites a três ou quatro jogadores do "grêmio esmeraldino" para que realizassem experiência em General Severiano. Convites recusados porque "ou iam todos ou não ia nenhum”. Não era mais possível evitar que a fama do Primavera chegasse à federação de futebol do Estado do Rio, pois se até no Jornal dos Sports saíra uma fotografia do time, em duas colunas. Era hora da federação mandar alguém observar aquela equipe que, invicta fazia quatro anos, talvez já pudesse ser incluída no campeonato fluminense. Tinha aqueles probleminhas de rotina: saber se o estádio possuía capacidade mínima para tantos torcedores, se existia alambrado, se as acomodações para os atletas eram higiênicas dentro do padrão exigido, o comportamento do povo da cidade — porque essas coisas contam. E o emissário da federação decidiu que tiria à partida do próximo domingo. Era um jogo fácil, para o Primavera, que iria enfrentar um time da cidade de Pau Grande, equipe de poucos valores individuais onde jogava um rapaz modesto, de pernas incrivelmente tortas e a quem chamavam Mane. Foi neste domingo que Napoleão conheceu Waterloo. O juiz do encontro deveria ser da federação, mas o carro em que viajava capotou na Raiz da Serra e o time de Pau Grande, numa atitude altamente lou- vável, sugeriu que arbitrasse a partida o presidente do Primavera. Assim, foi entregue ao Painho o comando da peleja. — Painho, se puder, ajuda a gente. — Tá certo, mas se precisar... — Já disse que vou apitar nas regras. — Oh, Painho, mas uma ajudazinha, no caso de necessidade, não faz mal a ninguém. — Eu sou juiz ou sou cachorro? É pra apitar, eu apito nas regras. Ou então bota outro. — Não é isso, Painho, é que o homem da federação tá aí. Se a gente perder, se nós fizer feio, ele não bota o Primavera na liga, homem de Deus. — E por que a gente vai perder? — revoltava-se Painho. — A gente não perdeu nunca, vai perder hoje? Logo hoje, que o time vai jogar contra um time que tem até aleijado jogando? O aleijado a quem Painho se referira provocando risadaria geral era o tal rapaz de pernas absurdamente tortas a quem chamavam Mane. Estádio lotado. Com as rendas conseguidas pelo Primavera, o dinheiro, se não era farto, pelo menos não era falto, em Hortênsia. Para o tamanho da cidade a platéia era de regular para boa e o tempo apresentava-se propício para a prática do esporte bretão (desculpem eu não ter podido me conter). Havia mais de quinhentos espectadores. A Até outro dia, João; até logo, João; desculpe, João; obrigado, João; parabéns, João; até mais, João; disponha sempre, João; adeus, João. Cara engraçado, esse Mane de pernas tortas! Gente boa. E nunca mais se ouvir falar nele. É Este livro foi digitalizado e distribuído GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a intenção de facilitar o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a oportunidade de conhecerem novas obras. Se quiser outros títulos nos procure http://groups.google.com/groupjViciados. em. Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo. MORRO ACIMA, MORRO ABAIXO O rapaz, com uma pasta James Bond, desceu do táxi e levantou a cabeça para olhar o morro que teria de subir. Levantou, levantou, levantou, levan. .. viu o fim do morro. O caminho, de terra e capim, espremia-se entre os barracos que, sendo tantos, já tentavam ocupar seu lugar, outrora mais amplo, quase um beco. Quanto aos barracos, pouca novidade: iguais e diferentes, dependurados pela encosta, espetados pelo que pareciam ser palitos de fósforo em tentativas de escora, ou escorados na montanha, os mais preguiçosos, quando não ancorados em outros barracos espetados ou escorados, os aproveitadores. Fazia calor e tinha um sol muito azul, porque era uma hora ainda ultravioleta. O rapaz, com a pasta nu'a mão e um lenço na outra, começou a ascender a montanha carregando uma e se enxugando com o outro. Passou por moleques e mulatas, em passes de bola e de samba, bebeu um refrigerante no que apelidavam de bar e, afinal, atingiu o topo do morro que vira lá de baixo, no momento em que, ao descer do carro, levantara a cabeça, levantara, levantara, levan.. . Descansou a pasta James Bond num monte de terra e o corpo num tijolo esquecido e muito estranho, já que todos os barracos eram de zinco e madeira. Respirou o ar possível para um pulmão cansado, refez-se o que julgou suficiente e, então, propôs-se a dar início à tarefa que o fizera ir ao morro. — Por favor — chamou um negro que fumava —, o senhor pode me dar uma ajuda? — Depende — admitiu o negro após uma tragada e uma espiada de alto a baixo no rapaz da pasta. — Eu sou do instituto — narrou o rapaz ainda sentado no tijolo paradoxal — e estou aqui procurando um homem. — Homem aqui tem muitos — disse o negro antes de cuspir. — De que tipo o senhor procura? alto? magro? forte? gordo? — Não procuro um homem com tipo que eu possa escolher — elucidou o rapaz acendendo seu cigarro no cigarro do negro. — O homem que eu busco tem nome. — E que nome prefere? — desarmou o negro. — Temos aqui homens com vários nomes. — Não tenho nenhuma preferência especial — repetiu o rapaz da pasta, já se pondo de pé. — Eu sou do instituto. — Isso, o senhor já disse — concluiu o negro, sentando para melhor fumar seu cigarro (única coisa que tinha a fazer naquele resto de dia). — Puxa — falou o rapaz —, esta subida é muito grande, eu fiquei meio tonto, não estou conseguindo ser claro. — Claro! — admitiu o escuro. — Temos tempo. Tente explicar sem se afobar. Pelo jeito, só vai chover amanhã. — E que tem a chuva? — É que cada vez que chove, tudo isto cai — disse o negro, apontando todos os barracos do morro. — Então, vamos começar antes que aquela nuvem fique mais encorpada. O senhor é daqui do morro? — Sou. Moro naquele barraco — indicou o negro, voltando a apontar todos os barracos, para que o rapaz escolhesse um. — Já vamos bem — felicitou-se o rapaz. — O instituto me mandou aqui à procura de um homem que se chama. . . que se chama... (abriu a pasta de onde sacou vários papéis que consultou apressadamente de início e mais lentamente depois, momento em que se lembrou que só choveria amanhã; provavelmente). O homem se chama Ernesto Pantalão da Silva. — Ermesto Pantalão da Silva? — repetiu o negro para mostrar que ouvira muito bem. — Pois é. O senhor o conhece? — Não, mas isto não tem importância. Ou é necessário que eu conheça algum Ernesto Pantalão da Silva? — temeu o negro, levantando do tijolo. perigo. Um cara comum, um José da Silva, funcionário de banco, dono de um Gordini 63, entra num desses kings hotéis, pega um apartamentozinho, cuida dos papéis, toma seu banhozinho, sai e não dá assunto a comentários nem a crônicas. Vai, belisca e volta, na maior trangiilidade. Seu Gordini pode não subir a Niemeyer com a rapidez de um Mustang, mas a verdade é que essa dificuldade motora é regiamente recompensada pela trangiilidade de espírito. Daquela dormidinha, ninguém vai ficar sabendo — a não ser os que dela participaram, porque o Gordini não fala. Quase nem anda, como queríamos nós que ele fosse falar? José da Silva, dono de um Gordini, funcionário de um banco, pode lanchar fora de casa as vezes que quiser e manter, com o maior tom de verdadeira, a aparência de fidelidade que jamais será possível ao — apenas por exemplo — Roberto Carlos. Começa que, em vez de Gordini, é um Jaguar desses que parecem casa provisória de terreno de praia em Cabo' Frio: muita área na frente (o possantíssimo motor) e a construçãozinha lá no fim (os bancos), onde confortavelmente cabe um, já que o outro a caber é o que dirige e, para este, não há conforto. O banco de trás não se deve levar em conta porque este, sabemos todos, serve apenas para as sogras. Vá o Roberto tentar isso que, pacata, pacífica e molemente faz o José do Gordini! Em meio ao seu trabalho (dele, Roberto), já o porteiro contou ao gerente, que ligou pra casa, que passou à mulher, que fofocou com a vizinha, e não duvido que o Roberto, ao sair do quarto, já corra o perigo de enfrentar aquela multidão de papelzinho numa mão e Bic (escrita fina) na outra. — Roberto! — Dá um autógrafo? — Assina aqui pro meu filho? — Roberto! Homem famoso, mulher conhecida, gente que todo mundo manja, pode mandar ver, mas nunca o fará às escondidas. Isso acontece, também, com qualquer sujeito de nome estranho. Nome raro é fogo! Começo a falar agora de São Paulo e de um cara que se chama Carlos, como qualquer Lacerda, Góis, Drummond etc. Carlos, para adultério, é um nome muito legal. Carlos, há aos montões. Até no futebol onde há times que têm três. Mas o Carlos de quem trato tem um sobrenome que lembra piano: Schwartzminn. Além do milagre que os latinos jamais conseguirão, apesar de o Vaticano ficar em Roma e não em Bucareste ou Belgrado, o milagre de possuir um nome de doze letras onde só há lugar para duas vogais, o sobrenome do Carlos passava de invulgar: era único. É certo que os amigos o chamavam apenas de Carlos. Mas é certo, igualmente, que todos optavam por Carlos por reconhecer que, para pronunciar corretamente aquele Schwartzminn, não é possível a quem tivesse apenas o artigo 99. Tente, meu nego. Para falar Schwartzminn como Schwartzminn tem que ser falado, necessário é que, no mínimo, tenha-se trabalhado quatro meses na embaixada da Alemanha, além de um ano de aperfeiçoamento de pronúncia em Munique. E sem conviver com brasileiros, porque brasileiro, no exterior, só capricha na pronúncia quando fala com os da terra. Carlos sofria este sobrenome há trinta e oito anos e, apesar dele, tinha conseguido casar. Com dificuldade, porque a incultura do homem da Rua Dom Manoel quase casa a mulher do Carlos com um Schwirtzminn, com um Schwurtzmunn, com um Chivartzmann, e se não fosse a presença do Fernando Sabino no momento, ele nunca teria escrito de maneira correta. — Vamos lá — disse Fernando —, letra por letra. S, de Southampton; C, de Churchill; H, de Hampshire; W, de Westminster; A, de Abbie; R, de Rost-beef; T, de Thamez; Z, de Zeeland; M, de Manchester; I, de Ireland; N, de New England e outro N, de Niterói. Afinal, se o próprio escritor e cronista e diplomata e mineiro tinha suas pequenas dificuldades, imagine-se o padecimento de José da Silva, funcionário da pretoria e proprietário de um Gordini. Meia dois. Carlos Schwartzminn, moreno para contrariar o sobrenome, era casado com Dona Mariana — que tinha nome de rua, mas que era mulher do lar. E era para o lar que os dois viviam, haja vista que, em três anos de casados, tinham três filhos. Um par de gêmeos, não vá alguém pensar que, ao casar, já levavam um no enxoval. Os filhos não tinham o sobrenome do pai. Bem que ele tentara mas, nas duas vezes em que fora fazer os registros, à falta de Fernando Sabino achou melhor desistir. Carlos, como eu disse, vivia para o lar. E não importava de quem. Isto eu digo porque o Carlos, sempre que era possível — e era possível muitas vezes, graças à sua aparência de galã —, "almoçava de pensão", modo pouco poético que ele descobrira para definir as constantes prevaricadas. Sabe como é. Às vezes, aparece alguém que quer dar... E quando aparecia esta chance, Carlos não dispensava. Só é lamentável que ele tenha esquecido que seu sobrenome era Schwartzminn quando resolveu ir para o Guarujá com a secretária. Claro que ele imaginou um crime perfeito. — Tenho que fazer tudo sem erro. Convidou seu colega de escritório — era advogado, com escritório na Rua Sete de Abril — para co-autor do crime. Tinha que ser um crime que o próprio Maigret não descobrisse. Trancaram-se na sala refrigerada e deram ordem de que ninguém os perturbasse. Aí, então, puseram as cartas na mesa: estudar um modo sem perigo de pôr a secretária na cama. — O que é que você sugere, Kleber — começou o Carlos visivelmente emocionado. — Sei lá. Leva num HO desses da Rua Paim. — E se alguém me vê? — Vai na a dela — sugeriu o amigo desinteressado, principalmente porque fora o Carlos e não ele quem conseguira amarrar a moça. — E a mãe dela? — lembrou Carlos num pânico que parecia estar de frente para a mãe da moça e não para o amigo. — Que idade tem a mãe dela? — indagou Kleber não escondendo que sua pergunta demonstrava estar pensando em já se enturmar no pecado do outro. — Idade, eu não sei. Sei que é uma coroa que pensa que a filha é virgem — desencantou o Carlos numa informação que em nada ajudava, porque todas as mães pensam que as filhas são virgens. E não são. Há muitas de Capricórnio, Sagitário, Áries, Leão, etc. — Que é que se há de fazer? Carlos é que não se conformava. Esbravejou, praguejou, xingou. Chatice de profissão. Eu devia ser dentista. Vou largar tudo isso. Não agiento mais. E o Kleber não vai nunca. Foi falando as frases que lhe vinham à cabeça numa irritação de Nero. — Liga pro Kleber — ordenou num tom grave e metálico. — Liga e diz que eu não vou. Dona Mariana ponderou "que não devia fazer isso, que não era aconselhável, que sócio é sócio, que essas coisas acontecem", mas ele foi definitivo. — Tou mandando ligar, liga, pô! Aí, a mulher telefonou. Não estava ocupado. E nem poderia estar, porque, de acordo com o tratado, o telefonema era parte importante do plano. — Kleber? Aqui é Mariana. Como vai a Nair? E as crianças? Não mando nada. Eu estou ligando pra saber se não dá pra você ir ao Rio no lugar do Car... sei, sei, entendo. Eu perguntei, Kleber, porque. .. sei, sei, claro. É que sexta-feira é feriado, a gente podia. . . sei, sei, há coisas que não podem ser transferidas, entendo. Você tem razão. É, n caso, só ele. Olha, Kleber, não leve a mal eu ter ligado para... sei, sei. De qualquer modo desculpe. Dá um beijinho na Nair e nas crianças. Tchau. Desligou, desanimada. Tinha que ser o Carlos, mesmo. Esses assuntos muito importantes, só o Carlos. E, de fato, o assunto do Carlos era importantíssimo. A secretária tinha tirado segundo lugar no con- curso de rainha do carnaval e era daquelas que quando usam minissaia a gente vê a etiqueta. Chamava-se Monalisa, e não é todo dia que se tem a chance de mastigar o que inspirou Leonardo. Crime perfeito. Perfeito porque minuciosa, técnica e prudentemente elaborado. Ah, Hitchcock, quem és tu? Enquanto se dirigia, com a mulher ao lado, para o aeroporto de Congonhas, Carlos sentia-se um personagem de Georges Simenon (uso Simenon porque ele próprio pensou em Maigret). Tinha imaginado os últimos detalhes durante a noite, incluindo horários. Exatamente como os criminosos que só são apanhados no fim do livro. — Acordo, às 7 e 28, tomo banho; desço para o café às 7 e 42. Saio de casa às 7 e 58, estou no aeroporto às 8 e 23; 0 avião sai às 9 e 12 — que é a hora em que sai o avião das 8 e 45... Tudo cronometrado, milimetrado, ciberneticado. Crime perfeito, se não for perfeito, não passa de um crimezinho idiota. E como pode ser idiota um cara que se chama Carlos Schwartzminn, que vai, estudadamente, morder, em Guarujá (era no Hotel Delfim, já reservado), uma secretária de um metro e setenta e três de altura, com cinturinha cinqienta e sete e dezenove anos incompletos? — Passageiros da VARIG, vÔo 7-0-3, com destino a Recife e escalas no Rio de Janeiro e Salvador... Aquele beijinho, os avisos de tomar conta das crianças, a lembrança da possibilidade de não ter tempo para telefonar (claro que jamais telefonaria) despedidinhas, abracinhos, até-loguinhos. E o avião subiu. — 9 horas e 13 minutos — conferiu Carlos, já no avião em vôo. — Por enquanto, só errei por um minuto, e este vai ser o único erro. Bateu na própria testa com orgulho: "Cabecinha de Santo Onofre" Não quis lanche a bordo. Pra que comer no avião, se coisa melhor o esperava no Guarujá? Às dez e pouco o avião tocou o chão, no Rio. Carlos saltou no Galeão, pegou para a cidade um daqueles táxis que, por este trajeto, cobram quarenta e cinco por cento a mais do que a VARIG por um trecho Rio—São Paulo, foi ao Santos Dumont a tempo de pegar a Ponte Aérea das onze para São Paulo. Tudo como estava planejado. O Viscount da VASP, procedente do Rio, aterrissou em Congonhas às 11 e 58, trazendo a bordo artistas, bancários, banqueiros, políticos, militares, executivos, executantes, turistas e um certo Carlos Schwartzminn, profissão: criminoso. Criminoso, repito, porém perfeito. Às 12 e 20, ele estava na Vila Mariana, onde a secretária morava. Não à porta da casa, mas na esquina, como o combinado. E, como igualmente fora combinado, às 12 e 25 ela apareceu. Linda, linda, linda! De cabelos presos e coxas à mostra, graças à microssaia que Carlos lhe comprara na véspera, numa butique na Rua Augusta. Saiu do carro para abrir a porta à secretária — coisa que não fazia para a mulher desde alguns meses antes do nascimento do primeiro filho. E o carro, que lhe tinha sido emprestado por um primo do Kleber (se não fosse o Kleber, o que seria dele?), se mandou para o Guarujá. Já a viagem foi uma delícia. Uma mão no volante e a outra nas pernas de Monalisa que sorria de lado, como Gioconda. Quanto a ela tinha uma mão no quebra-vento e a outra onde queiram imaginar que a colocaria uma secretária inteligente e precisando de aumento. As janelas abertas deixavam entrar o ar puro e fresco, tão comum na estrada de Santos. Os perigos das curvas não existiam. Curvas perigosas eram as que estavam ao seu lado. — Essa mulher, não sei, não. Posso ficar parado na dela fácil, fácil — pensava e temia; temia e desejava. Os pneus cantavam nas viradas do caminho, o que lhe acrescentava uma sensação de Fittipaldi. — Ah, meu bom Jesus — pensou modesto —, obrigado pela soberba inteligência que me foi dada. É preciso ser um crânio para bolar um troço tão certo, tão direito, tão divino! E nem se fale do arrepio de corpo inteiro que sentiu quando, pela primeira vez, a secretária, em lugar daquele solene "Dr. Carlos”, o chamou com o carinho que ele nem esperava: — Está feliz, Carlinhos”? Há quanto tempo não era Carlinhos. Mas agora era. Podia ser até Caca, se ela quisesse. E ela ia ver quem era o Carlinhos, ia conhecer a força varonil do Caca. Força que só aumentara do Mackenzie para cá. No Mackenzie não era Caca? Pois ali estava o velho Caca do Mackenzie, inteiramente novo, a caminho do pecado. Que pecado? Quem chama isso de pecado nunca tirou um sarro. Não houve problemas no hotel. Registrou-se como casado, é lógico. E o recepcionista, é lógico, fingiu que acreditou. Aí, aquilo de sempre em casos semelhantes: uisquinho antes, cigarrinho depois, um Dona Mariana deixou as crianças com a babá e subiu para fazer uma surpresinha ao irmão. Você dirá que não era irmão, mas ninguém duvidará de que seria uma surpresa. Elevador, corredor, knock-knock-knock, porta abre. A cena era a seguinte: Carlos, de shorte estampado — que o Kleber comprara um número maior e deixara, de véspera, no porta-luvas do carro emprestado —, com um copinho de Campari na mão, chacoalhando artisticamente o gelo e, em segundo plano, Monali deitadinha, sem calcinha, sem bloquinho de tomar anotações e toda preparadinha para fazer mais coisinhas com o patrãozinho. Eu não sei o que você faria e, muito menos, o que eu faria, numa situação dessas. Mas, ao ver a mulher na porta, o Carlos só disse uma frase: — Estou no Rio, pô! Dizem que Dona Mariana acreditou, mi quanto a isto. s não há nada provado MEU FILHO, MEU FILHO! Quando Graham Bell inventou o telefone, creio que tenha acreditado que estivesse fazendo um bem à humanidade. Imagino a sua alegria ao comunicar à mulher — certamente a primeira a saber — que descobrira um meio de um homem se comunicar com o outro a distância, sem saber, coitado, que naquele momento criava apenas um tormento a mais a se juntar aos outros tantos que seus colegas benfeitores da humanidade criaram: trem, navio, avião, luz, eletri- cidade, por exemplo, porque o trem descarrila, o navio encalha, o avião cai, a luz ofusca e a eletricidade dá choque. Parabenizo, porém, Pasteur pela vacina anti-rábica — coisa que penso devia ser obrigatória aos jurados de televisão. A vacina, não o conhecimento de que foi Pasteur quem a descobriu. Ah, os jurados! Esses, sim, descobriram coisa divina: um meio de ganhar dinheiro sem fazer nada. O telefone é aquela coisa que era preta e que agora, como a tevê, é a cores, e que, colocado do lado da cama, serve para liquidar, pouco a pouco, uma das mais lindas especialidades da medicina: pediatria. — Trimmm — fez o telefone à cabeceira do pediatra que se deitara às onze, vindo de um hospital onde atendera o filho de um colega, e após um dia inteiro examinando costinhas e perguntando de cocozinhos. — Trimmm — insistiu o telefone ao pé do ouvido do homem que precisava acordar às cinco, por necessidade de estar às seis na maternidade. — Trimmm — aporrinhou o telefone, acordando a mulher do pediatra que não tinha culpa nenhuma de o marido ter escolhido a pediatria. — Trimmm — metalizou o telefone na sua única idéia. — Trimm. . «trimmm...trimmm... O pediatra abriu o olho possível e consultou o relógio antes de calar o maquiavélico invento de um físico inglês chamado Graham Bell nascido em Edimburgo (1847) e falecido na Nova Escócia (1922). Aberto um olho não era problema dos maiores abrir o outro, ainda mais porque o polegar da mão direita tinha, a auxiliá-lo, o da mão esquerda. O relógio marcava onze e quarenta e cinco. O pediatra dormira, portanto, quarenta e cinco minutos — tempo um pouco menor do que o que viveu Graham Bell, que Deus o tenha. — Alô — foi obrigado a dizer, já que pegara o telefone e o colocara na posição habitual, ou seja: o "com que se houve" ao ouvido e o "com que se fala” à boca — posição correta, visto não se tratar de um psiquiatra, mas de um pediatra, como já foi amplamente divulgado nesta estória. Convém esclarecer que pediatra é médico de criança; isto que você está pensando é pedestre. — Dr. Castro? — indagou a voz da mulher do outro lado da linha e da cidade: — Meu filho está acordado. O pediatra ficou alguns segundos em silêncio e depois falou, mais acordado: — Vamos ver se eu percebo. A senhora está me acordando para me informar que seu filho está acordado. É isso? — Exatamente! — exultou a mulher. — O que é que o senhor me sugere? — Bem — racionalizou o pediatra meio dormitando porém lúcido o bastante para ter uma idéia fantástica —, eu sugiro que ele durma, coisa que, aliás, eu estava fazendo até a senhora me acordar a fim de me informar que seu filho não estava dormindo. Que lhe parece a idéia? — Divina, doutor, o senhor é um gênio. — Ora, o que é isso? Eu sou apenas um pediatra acordado. Gênio é Graham Bell, que inventou o telefone. — Mas... e o meu filho? O que faço com ele? — Isso depende muito da senhora. Em princípio, a senhora pode fazer o que melhor lhe parecer: entregar a uma tia para criar, rifar, obrigá-lo a ser pediatra (se ele não se comportar bem) — sugeriu o médico. — Eu falo pra dormir. Ele tem que dormir, não tem? — reatou a desesperada mãe de um primeiro filho. — Tem. Dormir é uma obrigação. Não só das crianças, como também dos pediatras. Desculpe eu me incluir neste grupo. — Não, não, o senhor tem razão. Só que o meu filho, pra dormir, precisa de chupeta. — Ótimo. A senhora é mãe de uma criança normal. Vamos combinar uma coisa: quando ele, para dormir, precisar de um tanque do exército, a senhora me telefone porque eu tenho um tio major...
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