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Guias e Dicas
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A eficácia dos direitos sociais Professora Flávia Piovesan, Notas de estudo de Direito

A eficácia dos direitos sociais Professora Flávia Piovesan

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 04/01/2011

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Baixe A eficácia dos direitos sociais Professora Flávia Piovesan e outras Notas de estudo em PDF para Direito, somente na Docsity! Araucaria Revista beroamericana de Filosofía, Política y Humanidades. Año 8, Nº 15: Primer semestre de 2007. ISSN 1575-6823 http://www.institucional.us.es/araucaria JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS SOCIAIS E ECONÔMICOS NO BRASIL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS Flavia Piovesan [1] e Renato Stanziola Vieira [2] Resumo O estudo dos direitos fundamentais deve ser orientado por uma visão integral, marcada pela indivisibilidade e interdependência dos direitos clássicos de liberdade e dos direitos sociais, econômicos e culturais. Sob essa perspectiva, e a partir das previsões da Constituição de 1988, que incorporou tratados internacionais sobre os direitos sociais ratificados pelo Brasil, escolheu-se o estudo de um caso específico para servir como análise da justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais e econômicos no Brasil. O artigo estudará aspectos como a proteção brasileira e internacional dos direitos sociais e econômicos, como o Supremo Tribunal Federal tem analisado a matéria, e os atuais debates sobre o perfil da jurisdição constitucional brasileira na busca de proteção e implementação desses direitos. Palavras-chave: direitos fundamentais – direitos sociais – políticas públicas – jurisdição constitucional – tratados internacionais – acesso à Justiça – preceito fundamental – justiciabilidade. Abstract The study of the fundamental rights must be oriented by an integral vision characterized by the indivisibility and interdependence of the classic freedom’s rights and the social, economic and cultural rights. From this perspective, and in the light of the Constitution previsions of 1988, that incorporated several international treaties concerning the social rights ratified by Brazil, the study of a specific case was chosen to serve as analysis of the justiciability of the fundamental social and economic rights in Brazil. The article will study aspects like the Brazilian and international protection of the social and economic fundamental rights, how the Brazilian Supreme Court has addressed the question, and the debates, nowadays, about the outlines of Brazilian constitutional jurisdiction in search of protecting and implementation of those rights. Key-words: fundamental rights – social rights – public policies – constitutional jurisdiction – international treatments – access to Justice – constitutional precept – justiciability. 1. Introdução O objetivo deste artigo é, a partir de estudo de caso específico, enfocar a experiência brasileira no que se refere à justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos, seus desafios e perspectivas. Inicialmente, será examinada a proteção dos direitos sociais e econômicos à luz da Constituição Brasileira de 1988, com destaque às inovações e aos avanços dela decorrentes, ao ineditamente contemplar estes direitos no universo dos direitos fundamentais. A partir de uma primeira análise constitucional, passará a se comentar caso paradigmático julgado pelo Supremo Tribunal Federal no papel de “guardião da Constituição", referente ao direito à saúde, com vistas à abordagem de questões que a temática dos direitos sociais e econômicos suscita, sob os prismas jurisdicional e doutrinário. Sob a óptica do caso escolhido, será tratada a recepção no Brasil da cláusula da chamada “reserva do possível" e suas implicações, sob o ponto de vista jurisdicional e doutrinário, na proteção dos direitos constitucionais sociais e econômicos. Por fim, serão lançadas conclusões a respeito da justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos no Brasil, com ênfase em seus desafios e perspectivas. Como se demonstrará, a Jurisdição Constitucional brasileira, no vigente Estado Democrático de Direito, tem importante papel na efetivação desses direitos. 2. Proteção dos Direitos Sociais e Econômicos na Constituição Brasileira de 1988 A Constituição Brasileira de 1988 simboliza o marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no país. O texto constitucional demarca a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964, refletindo o consenso democrático “pós ditadura". Após vinte e um anos de regime autoritário, objetivou a Constituição resgatar o Estado de Direito, a separação dos poderes, a Federação, a Democracia e os direitos fundamentais, à luz do princípio da dignidade humana. O valor da dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito (artigo 1o, III da Constituição), impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação do sistema constitucional [3] . Introduz a Carta de 1988 um avanço extraordinário na consolidação dos direitos e garantias fundamentais, situando-se como o documento mais avançado, abrangente e pormenorizado sobre a matéria da história constitucional do país. É a primeira Constituição brasileira a iniciar com capítulos dedicados aos direitos e garantias, para, então, tratar do Estado, de sua organização e do exercício dos poderes. Ineditamente, os direitos e garantias individuais são elevados a cláusulas pétreas, passando a compor o núcleo material intangível da Constituição (artigo 60, parágrafo 4o). Há a previsão de novos direitos e garantias constitucionais, bem como o reconhecimento da titularidade coletiva de direitos, com alusão à legitimidade de sindicatos, associações e entidades de classe para a defesa de direitos. De todas as Constituições brasileiras, foi a Carta de 1988 a que mais assegurou a participação popular em seu processo de elaboração, a partir do recebimento de elevado número de emendas populares. É, assim, a Constituição que apresenta o maior grau de legitimidade popular. A Constituição de 1988 acolhe a idéia da universalidade dos direitos humanos, na medida em que consagra o valor da dignidade humana, como princípio fundamental do constitucionalismo brasileiro inaugurado em 1988. O texto constitucional ainda realça que os direitos humanos são tema de legítimo interesse da comunidade internacional, ao ineditamente prever, dentre os princípios a reger o Brasil nas relações internacionais, o princípio da prevalência dos direitos humanos. Trata-se, ademais, da primeira Constituição Brasileira a incluir os direitos internacionais no elenco projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2004, que impugnava previsão legal que distinguia dotação orçamentária federal para os serviços públicos de saúde. [17] Conforme narrou a decisão judicial, durante o regular processo legislativo, a matéria então vetada e motivadora da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, voltou a integrar a lei, o que tornou prejudicado o pedido deduzido. Ainda assim, é fundamental ao presente estudo a ementa e os fundamentos da decisão: “Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão Política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial". Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração." A decisão comentada, malgrado tenha concluído pela prejudicialidade do pedido, serve de importante paradigma ao exercício que se entende possível e desejável da jurisdição constitucional brasileira, com vistas à proteção dos direitos sociais e econômicos. Isso porque, como consta do voto do Eminente Ministro, ao se reportar a precedentes da Suprema Corte brasileira, “O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo- lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. (...) - A omissão do Estado - que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político- jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental."(RTJ 185/794-796, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Possível, pois, a apreciação jurisdicional, com vistas à garantia da proteção dos direitos sociais e econômicos, mesmo nos casos em que a aplicabilidade da norma constitucional, que no caso prevê destino orçamentário à saúde pública, demande atuação dos órgãos administrativos nas diversas esferas do país. A não-implementação da norma constitucional, como reconhece o Supremo Tribunal Federal, dá causa ao vício de omissão inconstitucional, para o qual o cenário jurídico brasileiro prevê os remédios de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Ação, Mandado de Injunção e, como reconhecido na decisão ora analisada, a própria Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Diante, pois, do cenário escolhido, passa-se a tecer breves considerações quanto ao controle jurisdicional das chamadas “políticas públicas" no Brasil, à abrangência que se entende possa ser dada à cláusula da “reserva do possível", bem como ao mecanismo escolhido para a tutela do direito comentado. 3.2. Do controle jurisdicional das políticas públicas no Brasil É premissa, no cenário jurídico brasileiro inaugurado em 05 de outubro de 1988, que “a atribuição prioritária dos Poderes Públicos torna-se, nesse Estado, a progressiva constituição de condições básicas para o alcance da igualdade social entre todos os grupos, classes e regiões do país." [18] . Observe-se que esta doutrina define, com exatidão, os preceitos constantes dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil [19] , conforme artigo 3º., da Constituição Federal. Em outras palavras, torna-se inegável que, na consecução dos citados objetivos, a análise jurídica não se prende, tão-somente, a atos circunstanciados a momentos temporais e políticos determinados, como ocorre com a produção legislativa, datada no tempo e no espaço. Diversamente, o que se verifica em diversos estados nacionais, atualmente, é a fiscalização, com vistas aos fins constitucionalmente determinados, de atuações continuadas, por parte, principalmente, dos órgãos administrativos, no exercício do poder de governo. Esse, pois, o chamado campo das “políticas públicas", que em apertada síntese pode ser tratada adiante como “conjunto ou medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático de Direito" [20] . E, no atual panorama jurídico brasileiro, defende-se que “o juízo de constitucionalidade, nessa matéria, tem por objeto o confronto de tais políticas, não só com os objetivos constitucionalmente vinculantes da atividade de governo, mas também com as regras que estruturam o desenvolvimento dessa atividade." [21] A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal tem sido atento à sabida advertência que traz consigo a seguinte obviedade a respeito da chamada norma constitucional programática, entendida como a que define programas estatais, com vistas ao atingimento dos fins constitucionalmente traçados [22] : “Não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado" [23] Em outro precedente, a Suprema Corte decidiu que: “Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (artigo 5o, caput), ou fazer prevalecer, contra essa expressa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entende-se que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só possível opção: o respeito indeclinável à vida" [24] . De toda maneira, a obediência aos parâmetros constitucionais, quer quanto aos fins, quer quanto aos meios, do atingimento da plena eficácia dos direitos fundamentais – destacadamente os direitos sociais e econômicos, que demandam atividade contínua dos Poderes Públicos com vistas aos objetivos constitucionais, deve ser fiscalizada pelo Poder Judiciário, principalmente por força do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que prevê a impossibilidade de o Judiciário deixar de apreciar lesão ou ameaça de lesão a qualquer direito. 3.3. Da cláusula da “reserva do possível" Não se permite desatenção, no implemento dos direitos constitucionais fundamentais, a questão de seus custos financeiros, pois ao intérprete da Constituição não é permitido interpretá-la em abstração à problemática sociológica, cultural e política que a contorna. Assim, abre-se a problemática quanto aos limites possíveis de concretização das normas constitucionais. No caso comentado, em particular para o repasse de parcela de verba orçamentária para os serviços públicos de saúde. É que, como frisou o Ministro Relator, “Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível" (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The Cost of Rights", 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivas concretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas. É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível" – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade." Ao se ter em vista a preocupação econômica com a efetivação dos direitos sociais e econômicos, no extremo tem-se afirmado que “a limitação dos recursos públicos passa a ser considerada verdadeiro limite fático à efetivação dos direitos sociais prestacionais." [25] . Note-se que o tratamento do assunto, no Brasil, não decorreu de estudos orientados à realidade nacional e sim, de transposição de ideário gestado em países nos quais o “Estado-providência" consolidou-se a ponto de ser superado, principalmente a Alemanha [26] . Por isso, é importante advertir que “a reserva do possível funcionou muitas vezes como o mote mágico, porque assustador e desconhecido, que impedia qualquer avanço na sindicabilidade dos direitos sociais. A iminência do terror econômico, anunciada tantas vezes pelo Executivo, cuidava de reservar ao Judiciário o papel de vilão nacional, caso determinadas decisões fossem tomadas." [27] Dessa forma, poderia se cogitar, por absurdo que possa parecer, da presença de “cláusula supralegal de descumprimento da Constituição" [28] , ou ainda, conforme expressiva lembrança de Canotilho, de uma “ditadura dos cofres vazios" [29] Defende-se, no presente texto, que a distinção entre os direitos sociais e econômicos e os direitos civis e políticos, para os quais a implementação não leva em conta a argumentação da “reserva do possível" (das Vorbehalt des Möglichen), pode ser de grau, haja vista o tipo de proteção jurídica demandada e a qualificação do direito, mas jamais de natureza, haja vista a fundametalidade e interlação que os anima e conjuga. Mesmo porque seria ingenuidade se supôr que a garantia a direitos civis e politicos fosse isenta de custos, como se sabe, por exemplo, no exercício periódico de direito ao sufrágio, direito político por excelência. Tem-se, portanto, inovadora decisão judicial, que abre caminho à utilização ampla e irrestrita de novo mecanismo, que é apto não só a cobrir lacunas no sistema jurídico brasileiro de proteção aos direitos sociais e econômicos, como mescla aspectos da sistemática concreta, sob a forma de controle concentrado de constitucionalidade, no Supremo Tribunal Federal. 4. Justiciabilidade dos Direitos Sociais e Econômicos no Brasil: Desafios e Perspectivas Considerando o caso escolhido, para a análise da justiciabilidade dos direito à saúde, conclui-se ainda ser reduzido o grau de provocação do Poder Judiciário para demandas relacionadas à implementação dos direitos sociais e econômicos. Observa-se também que as demandas judiciais são em sua vasta maioria de cunho individual e não coletivo. Quanto ao direito à saúde, o que se diagnosgtica é que se visa, na decisão judicial, assegurar o direito à saúde como uma prerrogativa constitucional inalienável e indisponível, decorrente do direito à vida. A este direito se correlaciona o dever do Estado de formular e implementar políticas que visem a garantir a todos o acesso universal e igualitário ao direito à saúde. Ao efetuar a ponderação de bens envolvidos, deve-se optar pelo respeito à vida, como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição, em detrimento de interesse financeiro e secundário do Estado que, como visto, não pode ser obstáculo à implementação do direito. Neste sentido, observa-se pelo caso comentado uma tentativa de se romper com visão formalista e procedimental do direito, em prol da relevância do direito a vida, como direito fundamental constitucional. No particular, o direito social à saúde é decorrência lógica da garantia constitucional tratada com fundamentalidade. Embora a tendência da decisão comentada seja no sentido de efetivar a proteção constitucional do direito à saúde, há uma tendência minoritária que, com fundamento em uma ótica liberal clássica e na cláusula da separação dos poderes, afasta a justiciabilidade do direito à saúde. O argumento central é que não cabe ao Poder Judiciário controlar critérios de conveniência e oportunidade da Administração para atender demanda da população na área da saúde, sob justificativa da ofensa ao princípio da separação de poderes. Particularmente exemplificativo no caso comentado, há também a consideração de caráter técnico-orçamentário, com base na abrangência que se entende deva ser dada à “reserva do possível". O incipiente grau de provocação do Poder Judiciário para demandas envolvendo a tutela dos direitos sociais e econômicos, revela a apropriação ainda tímida pela sociedade civil dos direitos econômicos, sociais e culturais como verdadeiros direitos legais, acionáveis e justiciáveis. Como aludem Asbjorn Eide e Allan Rosas: “Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central a proteção aos grupos vulneráveis. (…) As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas devem ser definidas como direitos". [38] No Brasil apenas 30% dos indivíduos envolvidos em disputas procuram a Justiça estatal [39] , existindo uma clara relação entre índice de desenvolvimento humano e litigância, ou seja, é acentuadamente maior a utilização do Judiciário nas regiões que apresentam índices mais altos de desenvolvimento humano [40] . Esse mesmo incipiente grau de provocação do Poder Judiciário para demandas envolvendo a tutela dos sociais e econômicos no Brasil reflete ainda um “estranhamento recíproco" entre a população e o Poder Judiciário, tendo em vista que ambos apontam o distanciamento como um dos maiores obstáculos para a prestação jurisdicional. De acordo com pesquisa realizada pela IUPERJ/ABM, 79,5% dos juízes entendem que uma dificuldade do Judiciário considerada essencial está radicada no fato dele se encontrar distante da maioria da população. No mesmo sentido, pesquisas conduzidas não apenas no Brasil, mas na Argentina, Peru e Equador, evidenciam que 55% a 75% da população apontam para o problema da inacessibilidade do Judiciário [41] . Por sua vez, esse “estranhamento recíproco" tem implicado um reduzido universo de demandas submetidas ao Poder Judiciário a respeito dos direitos humanos. Para a formação de uma jurisprudência protetora dos direitos humanos, bem como para a consolidação do Poder Judiciário como um “locus" de afirmação de direitos, é fundamental que a sociedade civil, mediante suas múltiplas organizações e movimentos, acione de forma crescente o Poder Judiciário, otimizando o potencial emancipatório e transformador que o direito pode ter. Só assim haverá um Judiciário mais aberto, próximo e com maior responsabilidade social e política. Só assim haverá maior transparência e “accountability" dos deveres do Estado no tocante à implementação dos direitos à saúde [42] . Ainda que incipiente, a justiciabilidade dos direitos sociais e econômicos na experiência brasileira é capaz de invocar um legado transformador e emancipatório, com a ruptura gradativa de uma visão conservadora e formalista do Poder Judiciário. É necessário, contudo, avançar em estratégias de litigância no âmbito nacional, que otimizem a justiciabilidade e a exigibilidade dos direitos econômicos e sociais, como verdadeiros direitos públicos subjetivos [43] , por meio do “empowerment" da sociedade civil e de seu ativo e criativo protagonismo. Há que se reinventar a relação com o Poder Judiciário, ampliando seus interlocutores e alargando o universo de demandas, para converter este Poder em um “locus" de afirmação de direitos, que dignifique a racionalidade emancipatória dos direitos sociais e econômicos como direitos humanos, nacional e internacionalmente garantidos. -------------------------------------------------------------------------------- [1] Professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000), visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005), procuradora do Estado de São Paulo, membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e membro da SUR – Human Rights University Network. Um especial agradecimento é feito à Akemi Kamimura, pelo auxílio na realização de pesquisa para este artigo. [2] Advogado militante em São Paulo. Mestrando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor Assistente-Voluntário de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor-Convidado da Escola Superior da Advocacia de São Paulo. [3] Nesse particular, a Constituição Brasileira seguiu sistemática largamente adotada no cenário internacional, como dão destaques a Constituição Alemã,de 23 de maio de 1949 (artigo 1º., item 1), Constituição Portuguesa, de 02 de abril de 1976, sem mencionar o artigo 1º., da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948. A respeito, ver: Flávia Piovesan e Renato Stanziola Vieira. A Força Normativa dos Princípios Constitucionais Fundamentais: A Dignidade da Pessoa Humana. In Temas de Direitos Humanos (PIOVESAN, Flávia, coord.), Editora Max Limonad, São Paulo, 2003. [4] Trata-se da Emenda Constitucional n. 45, de 08 de dezembro de 2004, que foi publicada no Diário Oficial aos 31 de dezembro de 2004, que acrescentou parágrafos ao artigo 5º., da Constituição Brasileira. [5] Em nossa recente história constitucional, de 1934 em diante, seguiram-se a Constituição de 10 de novembro de 1937, a de 18 de setembro de 1946, a de 24 de janeiro de 1967, a de 1969 (Emenda Constitucional n. 1., de 17 de outubro de 1969), e, finalmente, a de 05 de outubro de 1988. [6] Artigo 5o., parágrafo primeiro: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata." [7] A respeito, observa Varun Gauri: “A review conducted for this paper assessed constitutional rights to education and health care in 187 countries. Of the 165 countries with available written constitutions, 116 made reference to a right to education and 73 to a right to health care. Ninety- five, moreover, stipulated free education and 29 free health care for at least some population subgroups and services. Brazil offers a compelling example of the force of human rights language. The Brazilian Constitution of 1988 guarantees each citizen the right to free health care. Although the constitutional guarantee has not eliminated shortages and inequalities in the sector, that provision had real “bite" in 1996, when a national law initiated a program of universal access to highly active anti-retroviral therapy (HAART) for Aids patients, free of charge." (Varun Gauri, Social Rights and Economics: Claims to Health Care and Education in Developing Countries, World Development, vol.32, n.3, 2004, p.465). [8] Quanto ao direito à educação, dispõe o artigo 212 da Constituição: “A União aplicará, anualmente, nunca menos de 18, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e no desenvolvimento do ensino". Quanto ao direito à saúde, os recursos orçamentários serão dispostos em conformidade com os critérios estabelecidos no artigo 198 da Constituição. [9] José Joaquim Gomes Canotilho, Tomemos a sério os direitos econômicos, sociais e culturais. In Temas de Direitos Fundamentais, Livraria Almedina, Coimbra, 2004. A respeito do tema, ver também: José Carlos Vieira de Andrade. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ª edição. Livraria Almedina. Coimbra.2001. p. 35. [10] Robert A. Dahl. On Democracy. Yale University Press, New Haven & London. Yale Nova Bene, 1998.p. 58. [11] Cláudio Pereira de Souza Neto. Teoria da Constituição, Democracia e Igualdade. In Teoria da Constituição – Estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2003. p. 58. [12] A respeito da necessária aplicação progressiva dos direitos sociais e econômicos e da consequente cláusula da proibição do retrocesso social, ver artigo 2o , parágrafo 1o do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, bem como o General Comment n.03 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (General Comment n.3, UN doc. E/ 1991/23). [13] Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, Ed. Malheiros, São Paulo, 2000. [14] Dentre eles, destacam-se: a) a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em 20 de julho de 1989; b) a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, em 28 de setembro de 1989; c) a Convenção sobre os Direitos da Criança, em 24 de 0 0 1 Fsetembro de 1990; d) o Pacto Internacional dos Direitos Ci vis e Políticos, em 24 de janeiro de 1992; e) o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em 24 de janeiro de 1992; f) a Convenção Americana de Direitos Humanos, em 25 de setembro de 1992; g) a 0 0 1 FConvenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradi car a Violência contra a Mulher, em 27 de
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