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Guias e Dicas
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Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social, Notas de estudo de Ciências Biologicas

Alfabetização científica

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 24/10/2010

adriana-vieira-12
adriana-vieira-12 🇧🇷

4.7

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Baixe Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social e outras Notas de estudo em PDF para Ciências Biologicas, somente na Docsity! Alfabetização científica Revista Brasileira de Educação 89 Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social* Attico Chassot Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Educação Há um continuado desafio: fazermos a migração do esoterismo ao exoterismo. A procura de um cenário: a escola Antes de apresentar o central deste texto – a al- fabetização científica –, parece oportuno, ainda que de uma maneira panorâmica, olhar a escola – na acepção de instituição que faz ensino formal, em qual- quer nível de escolarização – nesses tempos de glo- balização. Não vou tecer, aqui e agora, comentários sobre os apossamentos da Organização Mundial do Comércio na fatia educação para dirigir sua voraci- dade por lucros,1 favorecendo a comercialização in- ternacional dos serviços da educação como uma mer- cadoria qualquer. Parece não existir outro bem comerciável que segure um consumidor cativo por quatro ou mais anos, como o estudante que compra ensino de uma escola. Também, não preciso destacar as fantásticas modificações no mundo de hoje e o quanto elas atingem – e uso esse verbo na sua pleni- tude de significados – a educação, ou, mais especifi- camente, as salas de aula. Não temos dúvidas do quan- to a globalização confere novas realidades à educação. Talvez, para uma facilitação, pudéssemos dirigir nos- so olhar para duas direções. Primeira, o quanto são diferentes as múltiplas entradas do mundo exterior na sala de aula; e a outra direção, o quanto essa sala de aula se exterioriza, atualmente, de uma maneira diferenciada. Sobre a primeira das situações não precisamos fazer muitas ilustrações. Comparem, por exemplo, o * Sou muito grato aos árbitros anônimos da Revista Brasi- leira de Educação pelos circunstanciados pareceres e pelas valio- sas sugestões. Procurei incorporar a maior parte delas a este texto. Evidentemente houve limitações de minha parte e o não atendi- mento de algumas das propostas deve ser atribuído a elas. 1 Ver a Carta de Porto Alegre, “Llamamiento contra la trans- formación de la educación en mercancía”, produzida durante a III Cumbre Iberoamericana de Rectores de Universidades Públi- cas, 25 a 27 de abril de 2002. Publicado na Revista Brasileira de Educação nº 21, set./dez. 2002, seção Documentos, p. 157-158. Attico Chassot 90 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22 tos científicos. Não se escondia o quanto a transmis- são (massiva) de conteúdos era o que importava. Um dos índices de eficiência de um professor – ou de um transmissor de conteúdos – era a quantidade de pági- nas repassadas aos estudantes – os receptores. Era pre- ciso que os alunos se tornassem familiarizados (aqui, familiarizar poderia até significar simplesmente sa- ber de cor) com as teorias, com os conceitos e com os processos científicos. Um estudante competente era aquele que sabia, isto é, que era depositário de co- nhecimentos. Talvez mais de um dos leitores deste texto poderá recordar quantos conhecimentos inú- teis amealhou – especialmente quando foram feitas as primeiras iniciações na área das ciências – que há muito, afortunadamente, os deletou. Quantas classifi- cações botânicas, quantas famílias zoológicas cujos nomes ainda perambulam em nossas memórias como cadáveres insepultos, quantas configurações eletrô- nicas de elementos químicos, quantas fórmulas de fí- sica sabidas por um tempo – até o dia de uma prova – e depois desejadamente esquecidas. Antes de mostrar salutares modificações nessa tendência, permito-me chamar a atenção para o sujei- to da ação verbal antes descrita. Eram os professores (sujeitos) que faziam com que os estudantes (aqui vis- tos como passivos à ação do sujeito) adquirissem es- ses conhecimentos. Quando se faz essas considerações, não há como não evocar, mais uma vez, as concepções de uma edu- cação bancária, que Paulo Freire denunciava, com veemência, já em tempos anteriores aos referidos. Também a ele podemos creditar muitas das alterações nas tendências referidas. Hoje não se pode mais conceber propostas para um ensino de ciências sem incluir nos currículos com- ponentes que estejam orientados na busca de aspec- tos sociais e pessoais dos estudantes. Há ainda os que resistem a isso, especialmente quando se ascende aos diferentes níveis de ensino. Todavia, há uma adesão cada vez maior às novas perspectivas. Muito provavelmente, um dos temas mais polê- micos quando se discute formação de professores de ciências é o quanto se precisa procurar uma ciência quanto eram enclausuradas as escolas de nossos avós às invasões externas, em relação às nossas salas de aula hoje, expostas às interferências do mundo exter- no. A escola, então, era referência na comunidade pelo conhecimento que detinha. Quanto à segunda, consi- deremos apenas a parcela de informações que nossos alunos e alunas trazem hoje à escola. Aqui temos que reconhecer que eles, não raro, superam as professo- ras e os professores nas possibilidades de acesso às fontes de informações. Há situações nas quais temos docentes desplugados ou sem televisão, que ensinam a alunos que surfam na internet ou estão conectados a redes de TV a cabo, perdendo a escola (e o professor) o papel de centro de referência do saber. A proletari- zação dos profissionais da educação os faz excluídos dos meios que transformam o planeta, onde a quanti- dade e a velocidade de informações o fazem parecer cada vez menor. Esse é o lado trágico em não poucas das contemplações da escola hoje (Chassot, 1998b). Assim, parece que se pode afirmar que a globali- zação determinou, em tempos que nos são muito pró- ximos, uma inversão no fluxo do conhecimento. Se antes o sentido era da escola para a comunidade, hoje é o mundo exterior que invade a escola. Assim, a es- cola pode não ter mudado; entretanto, pode-se afir- mar que ela foi mudada. E talvez não diríamos isso há dez anos. Não há, evidentemente, a necessidade (nem a possibilidade) de fazermos uma reconversão. Toda- via, é permitido reivindicar para a escola um papel mais atuante na disseminação do conhecimento. So- nhadoramente, podemos pensar a escola sendo pólo de disseminação de informações privilegiadas. A ciência como um saber escolar Agora, posto esse preâmbulo, para não incorrer em generalizações indevidas restrinjamos as obser- vações ao ensino de ciências. No século passado, nos anos de 1980, e talvez sem exagero se poderia dizer até o começo dos anos de 1990, víamos um ensino centrado quase exclusivamente na necessidade de fa- zer com que os estudantes adquirissem conhecimen- Alfabetização científica Revista Brasileira de Educação 93 ganha uma outra dimensão: o quanto com ela se pode fazer inclusão social. Ciência como linguagem Inicio aceitando críticas ao quanto a descrição da ciência como uma linguagem, que antes apresen- tei, possa ser considerada simplista. A seguir trago algumas preocupações. Também por isso reapresento criticamente outros textos que escrevi. Não ignoro que há (in)consistências teóricas nas minhas buscas. Vejo- me privilegiado em poder socializá-las aqui. Lateral- mente, devo dizer que entendo que é para isso, tam- bém, que publicamos nossos textos em revistas. Assim, considerar a ciência como “uma lingua- gem para facilitar nossa leitura do mundo natural” (Chassot, 1993, p. 37) e sabê-la como descrição do mundo natural ajuda a entendermos a nós mesmos e o ambiente que nos cerca. Merece um comentário essa adjetivação de mun- do que foi feita. A ciência não tem preocupações com a descrição, e muito menos com a explicação do mun- do sobrenatural ou do mundo espiritual. O mundo natural é aqui usado na acepção de nosso mundo or- gânico e inorgânico, que forma o que chamamos de natureza. Japiassu e Marcondes a definem como um mundo visível ou físico (formado pelos reinos mineral, vegetal e animal) submetido às leis naturais, em oposição às idéias, sentimentos, emoções etc. governadas pelas leis morais e pelas leis políticas. (1990, p. 177) 2 Esses autores enfatizam que a natureza, num sen- tido teológico, deva ser considerada o mundo criado por Deus, em oposição à cultura no sentido daquilo que é criado pelas mulheres e pelos homens, assim, produto de uma obra humana. Quando nos referimos ao entendimento do mun- do natural, há uma restrição epistemológica e fica- mos limitados ao entendimento deste nosso mundo visível3 onde estamos inseridos, logo, do qual somos parte. Com isso não estamos excluindo ou desqualifi- cando as ciências humanas, que facilitam nosso en- tendimento social (e aqui incluo o político) ou emo- cional; elas podem estar incluídas no mundo dito natural. Estão excluídas, sim, as manifestações ditas sobrenaturais. A elaboração dessa explicação do mundo natu- ral – diria que isso é fazer ciência, como elaboração de um conjunto de conhecimentos metodicamente ad- quirido – é descrever a natureza numa linguagem dita científica. Propiciar o entendimento ou a leitura dessa linguagem é fazer alfabetização científica. Há, todavia, uma outra dimensão em termos de exigências: propiciar aos homens e mulheres uma al- fabetização científica na perspectiva da inclusão so- cial. Há uma continuada necessidade de fazermos com que a ciência possa ser não apenas medianamente en- tendida por todos, mas, e principalmente, facilitadora do estar fazendo parte do mundo. Sei o quanto estou laborando em (quase) utopias. Mas é por crer que essas mesmas utopias possam se transmutar na realidade de fazermos educação. Diria mais, é quase apenas por isso. Mas agora deixemos um pouco os sonhos. Há de se tentar convertê-los em realidades. Trago, assim, a proposta teórica para adensar uma discussão. Essas são as minhas expectativas para a frutificação do binômio escrita – leitura. Sei também que posso estar sendo acusado de dicotômico, ao ape- 2 A transcrição dessa definição não implica a aceitação da idéia de existência de três reinos na natureza, que há muito já está em desuso. 3 Restringi a descrição ao mundo visível em oposição ao mun- do sobrenatural e também àquilo que se poderia chamar de mundo intelectual (estudado pelas ciências humanas). A limitação de mun- do visível não é suficientemente adequada, pois os estudos das ciên- cias naturais incluem descrições no nível do mundo molecular, atô- mico, subatômico e mesmo das radiações que são invisíveis; logo, não estariam incluídos no assim chamado mundo visível. Talvez uma melhor caracterização seria referir ao mundo material, em opo- sição ao mundo sobrenatural e ao mundo intelectual. Attico Chassot 94 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22 lar para essa relação binomial. Aceito que não há uma separação nítida entre aquele que é o autor e aquele que é o leitor. Um e outro, nesse processo, interconver- tem papéis. O leitor também passa a ser autor, refazen- do com sua leitura um novo texto. Mesmo que refaça caminhadas, buscando outros embasamentos, tenho em outros livros dois capítulos4,5 acerca do tema, que (des)constroem essa discussão. Para fazer uma oposição ao presenteísmo (vincu- lação exclusiva ao presente, sem enraizamento com o passado e sem perspectivas para o futuro) e ao cientificismo (crença exagerada no poder da ciência e/ ou atribuição à mesma de fazeres apenas benéficos),6 ainda tão marcadamente presentes nos dias atuais, es- pecialmente em nossas salas de aula, inclusive nas uni- versidades, insisto na necessidade de considerar que essa linguagem é um constructo humano, portanto, mutável e falível (Chassot, 1995, p. 198). Sempre pa- rece oportuno ter presente as afirmações de Granger: A ciência é uma das mais extraordinárias criações do homem, que lhe confere, ao mesmo tempo, poderes e satis- fação intelectual, até pela estética que suas explicações lhe proporcionam. No entanto, ela não é lugar de certezas ab- solutas e [...] nossos conhecimentos científicos são neces- sariamente parciais e relativos. (1994, p. 113)7 É para essa concepção de ciência – um dos mais extraordinários feitos humanos, mas não-lugar de cer- tezas – que trago interrogações para ampliar a possi- bilidade de pensarmos a ciência como uma lingua- gem para entendermos o mundo natural. Por isso, quando discuto alfabetização científica, insisto na ne- cessidade de considerá-la como “o conjunto de co- nhecimentos que facilitariam aos homens e mulheres fazer uma leitura do mundo onde vivem” (Chassot, 2000, p. 19). Assim, concordo com Woolgar (1991), que, ao tentar abrir aquela caixa preta em que os cien- tistas – com sua linguagem hermética e esotérica - converteram a ciência, mostra que ela não descobre o mundo, mas o quanto é o mundo que a descobre. O mundo é (existe) independente da ciência. Esta o tor- na inteligível, e a tecnologia, como aplicação da ciên- cia, modifica esse mundo. Por exemplo, a produção de energia elétrica a partir de uma queda d’água ou do aproveitamento de ventos é o resultado de uma aplicação de conhecimento acerca da natureza do mundo natural. Isso transforma o mundo natural mas não altera a sua essencialidade, por exemplo, em ter- mos do princípio da conservação da energia. Amplio mais a importância ou as exigências de uma alfabetização científica. Assim como se exige que os alfabetizados em língua materna sejam cida- dãs e cidadãos críticos, em oposição, por exemplo, àqueles que Bertolt Brecht 8 classifica como analfa- betos políticos, seria desejável que os alfabetizados cientificamente não apenas tivessem facilitada a lei- tura do mundo em que vivem, mas entendessem as necessidades de transformá-lo – e, preferencialmen- te, transformá-lo em algo melhor. Tenho sido recor- rente na defesa da exigência de com a ciência melho- rarmos a vida no planeta, e não torná-la mais perigosa, como ocorre, às vezes, com maus usos de algumas tecnologias. Parece que merece ser questionado, liminarmen- te, se essa alfabetização científica é algo próprio, ou melhor, é de interesse apenas daqueles que estão dire- tamente ligados à ciência. Usualmente, conhecer a ciên- cia é assunto quase vedado àqueles que não pertencem a essa esotérica comunidade científica. Já discuti em 4 Chassot (1993, p. 71-89): o Capítulo 5 – Do esoterismo ao exoterismo, apresenta uma análise do hermetismo da linguagem corrente no ensino (de química), usando alguns pressupostos de um respeitado teórico da educação: Bernstein. 5 Chassot (2000, p. 111-131): Capítulo 5 – Linguagem (quí- mica) e poder na sala de aula, instrumentos para uma construção mais crítica no fazer Educação. 6 Acerca de presenteísmo e cientificismo, ver Chassot (1998a, 1998b, 2000). 7 A transcrição da primeira frase está ligeiramente modifi- cada, sem alteração do sentido, pois parece haver um erro grama- tical (provavelmente de tradução) na edição brasileira. 8 Site da International Brecht Society: http://polyglot.Iss.wisc.edu/ german/brecht/ Alfabetização científica Revista Brasileira de Educação 95 diversos textos o quanto há necessidade de nós, pro- fessoras e professores de disciplinas escolares, espe- cialmente aquelas da área de ciências, fazermos a mi- gração do esoterismo para o exoterismo 9 (Chassot, 1993, p. 71; 1995, p. 161). Assim, a primeira explica- ção para a exclusão que decretamos a muitos é fazer- mos do nosso instrumental de leitura da natureza algo hermético ou esotérico. Thuillier (1990, p. 87), ao exemplificar o quanto se consegue ser hermético na linguagem da ciência, apresenta esotéricas (e desne- cessárias) definições do número um quase incompreen- síveis para os mais expertos algebristas. Não desconheço, aqui, as razões históricas, mui- tas vezes até de segurança, que fizeram a ciência usar uma linguagem asséptica e hermética. Nunca desconsidero, como professor de química, minha ancestralidade nos alquimistas medievos. Discuto isso mais extensamente em diferentes capítulos de Edu- cação conSciência (Chassot, no prelo), quando falo de desafios curriculares para fazer possível um outro mundo e também quando discuto a alfabetização cien- tífica fazendo inclusão social. Relato, por exemplo, o trabalho com sementes que não são sementes10 em um curso de pedagogia. Retomo a problematizção da concepção da ciên- cia como uma linguagem. Proponho fazermos juntos al- guns adensamentos teóricos nessa dimensão. Tomo como referência a aula inaugural da cadeira de Semiologia11 Literária no Collège de France 12 pronunciada por Roland Barthes no dia 7 de janeiro de 1977. Sem en- veredar na área da semiótica, busco em Barthes (1996)13 uma ratificação, quando ele afirma, categó- rico: “O objeto em que se inscreve o poder, desde toda a história humana, é: a linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão obrigatória: a língua” 9 As referências às expressões exoterismo e esoterismo usa- das aqui não têm correspondência com aquelas usadas pelo epistemólogo Luwidg Fleck. 10 Um dos trabalhos que tenho realizado na disciplina de Metodologia de Ensino de Ciências está relacionado com semen- tes caipiras versus biopirataria. Material disponível no site: www.humanas.unisinos.br/pastanet 11 Ciência geral dos signos, segundo Ferdinand de Saussure, que estuda todos os fenômenos culturais como se fossem sistemas de signos, isto é, sistemas de significação. Em oposição à lingüís- tica, que se restringe ao estudo dos signos lingüísticos, ou seja, da linguagem, a semiologia tem por objeto qualquer sistema de sig- nos (imagens, gestos, vestuários, ritos etc.); semiótica. É Barthes (1996) que, na aula antes referida, diz que “a semiologia, que se pode definir canonicamente como a ciência dos signos, saiu da lingüística. [...] É esta desconstrução da lingüística que chamo, quanto a mim, de semiologia” (p. 30). 12 O Collège de France – CdF – é um estabelecimento de ensino criado em 1540 pelo rei Francisco I, fora da universida- de. Chamado sucessivamente de Colégio do Rei, Colégio das Três Línguas, Colégio Real, Colégio Nacional (durante a Revo- lução), Colégio Imperial (com Napoleão) e finalmente Colégio de França (com a Restauração). Aberto a todos, gratuitamente, os cursos são ministrados pelos mais eminentes professores e conta com cerca de 50 cadeiras relativas a todas as disciplinas. Os títulos das cadeiras são fontes de referência de domínios muito amplos do conhecimento: matemática, física, química, biologia, história, arqueologia, lingüística, orientalismo, filosofia, ciên- cias sociais. Duas cadeiras são reservadas a sábios estrangeiros que são convidados pelo Collège a oferecer cursos, em geral por um período de um a dois meses. As cadeiras não são permanen- tes. Assim, o CdF tem uma liberdade considerável nas suas ati- vidades de ensino e de pesquisa, podendo adaptar-se aos pro- gressos realizados nos diferentes domínios do conhecimento. Os cursos são abertos a todos, sem inscrições prévias. Cada ano, cerca de cinco mil ouvintes seguem os diferentes cursos. Dife- rentemente, os laboratórios e centros de pesquisa são reservados aos pesquisadores. Hoje o CdF é considerado referência interna- cional na construção do conhecimento. 13 A edição de A aula (Barthes, 1996) vem acompanhada de excelente posfácio (p. 49-89) de Leyla Perrone-Moisés, ex-aluna de Barthes, que foi quem traduziu o texto para a edição brasileira que uso neste texto. A tradutora, ao analisar o conteúdo e as impli- cações da obra, faz observações acuradas sobre ela. O “Caderno Mais” da Folha de São Paulo de 17 de novembro de 2002 traz como matéria de capa um dossiê sobre Barthes que inclui um alen- tado texto de Leyla Perrone-Moisés. Attico Chassot 98 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22 lização muito importante, exageradamente profetiza- va, como senador da República e presidente da Aca- demia de Ciências: A Ciência possui doravante a única força moral que pode fundamentar a dignidade da personalidade humana e constituir as sociedades futuras. A Ciência domina tudo: só ela presta serviços definitivos. [...] Na verdade, tudo tem origem no conhecimento da verdade e dos métodos cientí- ficos pelos quais ele é adquirido e propagado: a política, a arte, a vida moral dos homens, assim como sua indústria e sua vida prática. (apud Chrétien, 1994, p. 26) Vivia-se o auge de descobertas significativas, e que, então, pareciam definitivas. Mesmo que possa pa- recer não crível, é preciso acentuar que não devemos pensar a ciência como pronta, acabada, completamen- te despojada, como uma nova e dogmática religião, com o “deus saber” imperando no novo milênio. A marca da ciência de nossos dias é a incerteza. É importante recordar Ilya Prigogine (1917- ), Prêmio Nobel de Quí- mica de 1977, em uma afirmação categórica: “Só te- nho uma certeza: as de minhas muitas incertezas” (Le Monde, 1989, p. 59). Assim, é preciso que vejamos nessas incertezas a marca da pós-modernidade; uma realidade, e não um estigma. Antigamente a ciência nos falava de leis eternas. Hoje, nos fala da história do universo ou da matéria e nos propõe sempre novos de- safios que precisam ser investigados. Este é o universo das probabilidades, e não das certezas. Ao referir as nossas não-certezas, vale destacar o quanto o dogmatismo é uma marca muito presente em nossas salas de aula. Pode-se creditá-lo às origens da universidade e da escola. É preciso recordar que a uni- versidade (no mundo ocidental) e também as es- colas têm suas origens na Igreja e a ela permanece- ram simbioticamente ligadas durante séculos. Assim a escola – como sempre ocorreu com a Igreja – parecia ser o locus da verdade. Vale lembrar um exemplo his- tórico de contestação: Paracelso (1493-1541) sabia o segredo das minas, da medicina popular, da alquimia e da ciência dos clássicos, mas rejeitava o que era esta- belecido como verdade. Rebelou-se contra a autorida- de eclesiástica e contra o dogmatismo presente na uni- versidade. Como conseqüência, foi considerado um pária na academia. Nas aulas, em qualquer etapa da escolarização, poucas vezes falamos em modelos prováveis, mesmo que a maioria de nossas discussões nas ciências se desenvolvam através de modelos. Nunca é demais insistir que os modelos que usamos não são a realida- de. São aproximações facilitadoras para entendermos a realidade e que nos permitem algumas (limitadas) generalizações. Talvez a marca da incerteza, hoje tão mais presente na ciência, devesse estar mais forte- mente presente em nossas aulas. Retifiquemos as cer- tezas de Berthelot: a ciência não tem a verdade, mas tem algumas verdades transitórias. Aliás, na educação brasileira, principalmente aque- la do início do século XX, ao lado da influência do dogmatismo que herdamos pelas origens da escola e da universidade, temos que acrescentar o positivismo comtiano. O livro Cours de philosophie positive 17 foi certamente a obra mais lida pela elite intelectual brasi- 17 Comte, na sua primeira lição do Curso de filosofia positi- va (Comte, 1973, p. 9-11), ensina que cada uma de nossas concep- ções principais, cada ramo de nossos conhecimentos, passa suces- sivamente por três estados históricos diferentes: o estado teológi- co, onde o espírito investiga a natureza íntima dos seres; o estado metafísico, uma modificação geral do primeiro, onde os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, concebidas como capazes de engendrar elas próprias todos os fenômenos ob- servados, cuja explicação consiste em determinar para cada um uma entidade correspondente; e enfim, o estado positivo, onde o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se uni- camente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocí- nio e das observações, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e similitude. A explicação dos fatos, re- duzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante à ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir. Alfabetização científica Revista Brasileira de Educação 99 leira, e nesta se incluem os militares que fizeram a República. O positivismo comtiano, mesmo com ca- racterísticas de um sistema filosófico fechado e inspi- rado em resultados científicos, teve no Brasil uma sig- nificativa influência nas escolas militares e foi legado durante a República para as escolas de engenharia, e delas para os níveis anteriores à universidade. A ideo- logia positivista comtiana funcionou como um inibidor para a expansão do conhecimento, pois, entre outras afirmações, Comte dizia que “a ciência estava pronta, acabada, pois seus fundamentos estavam consolidados”. E ainda: “Ciência, logo previsão, logo ação.” O positi- vismo garante a justificação do poder técnico e, mais que isso, do poder dos tecnocratas. A força das idéias comtianas sobre a ciência pode ser vista nas suas idéias sobre a evolução. Tendo fale- cido dois anos antes da publicação, em 1857, da Ori- gem das espécies, de Darwin, Comte não aceitava a teoria da evolução por julgá-la contrária aos fatos que conhecia e, por isso assim escreveu, no Curso de filo- sofia positiva (1973, p. 301): “Mas a fixidez essen- cial das espécies garante-nos que essa série [a grande série biológica] será sempre composta de termos niti- damente distintos, separados por intervalos intrans- poníveis”. Acredito que essa frase serve como um bom exemplo do chamado positivismo comtiano. Superar essas marcas de um jeito muito conti- nuado de pensar é uma tarefa nem sempre fácil. A superação do dogmatismo parece ser uma das neces- sidades do ensino das ciências. À guisa de epílogo Como fazer uma alfabetização científica? Parece que se fará uma alfabetização científica quando o ensi- no da ciência, em qualquer nível – e, ousadamente, in- cluo o ensino superior, e ainda, não sem parecer auda- cioso, a pós-graduação –, contribuir para a compreensão de conhecimentos, procedimentos e valores que per- mitam aos estudantes tomar decisões e perceber tanto as muitas utilidades da ciência e suas aplicações na melhora da qualidade de vida, quanto as limitações e conseqüências negativas de seu desenvolvimento. Vale observamos que não podemos ver na ciên- cia apenas a fada benfazeja que nos proporciona con- forto no vestir e na habitação, nos enseja remédios mais baratos e mais eficazes, ou alimentos mais sa- borosos e mais nutritivos, ou ainda facilita nossas co- municações. Ela pode ser – ou é – também uma bruxa malvada que programa grãos ou animais que são fon- tes alimentares da humanidade para se tornarem esté- reis a uma segunda reprodução. Essas duas figuras (a fada e a bruxa) muito provavelmente aparecerão quan- do ensinamos ciências (Chassot, 2000). Acredito que tenha ampliado a possibilidade de respostas a questões como: O que é, por que e como fazer a alfabetização científica? Sei que cada uma das muitas respostas a essas interrogações poderão ser ain- da muito ampliadas. Agora fica, ainda, uma pergunta mais crucial: Para que(m) é útil a alfabetização cien- tífica que fazemos? ATTICO CHASSOT, licenciado em química e doutor em edu- cação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação na Univer- sidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), no Rio Grande do Sul. Trabalha na linha de pesquisa Currículo, cultura e sociedade, pesquisando a temática: Currículo, história da ciência e alfabetiza- ção científica. Entre suas publicações destacam-se: A ciência atra- vés dos tempos (Moderna, 2002) e Alfabetização científica: ques- tões e desafios para a educação (Editora Unijuí, 2001). E-mail: achassot@portoweb.com.br Referências bibliográficas ABREU, Rozana Gomes de, (2002). A integração curricular na área de ciências da natureza, matemática e suas tecnologias nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Edu- cação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. AGUILAR, T., (1999). Alfabetización científica para la ciudadanía. Madrid: Narcea. BARTHES, Roland, (1996). A aula. 7ª ed. São Paulo: Cultrix. CHALMERS, Alan, (1994). A fabricação da ciência. São Paulo: Editora da UNESP. Attico Chassot 100 Jan/Fev/Mar/Abr 2003 Nº 22 CHASSOT, Attico, (1993). Catalisando transformações na edu- cação. Ijuí: Editora Unijuí. , (1994). A ciência através dos tempos. São Paulo: Moderna. , (1995). Para que(m) é útil o ensino? 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