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Guias e Dicas
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Vol 15 Conferencias introdutorias sobre psicanalise (parte 1 e 2), Notas de estudo de Psicologia

conceitos de psicanálise

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 28/02/2011

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royson-dos-santos-roth-2 🇧🇷

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Baixe Vol 15 Conferencias introdutorias sobre psicanalise (parte 1 e 2) e outras Notas de estudo em PDF para Psicologia, somente na Docsity! Conferências introdutórias sobre psicanálise (Partes I e II) VOLUME XV (1915-1916) Dr. Sigmund Freud CONFERÊNCIAS INTRODUTÓRIAS SOBRE PSICANÁLISE (1916-17 [1915-17]) INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS VORLESUNGEN ZUR EINFÜHRUNG IN DIEPSYCHOANALYSE (a) EDIÇÕES ALEMÃS: 1916 Parte I (em separado), Die Fehlleistungen. Leipzig e Viena: Heller. 1916 Parte II (em separado), Der Traum. Mesmos editores. 1917 Parte III (em separado), Allgemeine Neurosenlehre. Mesmos editores. 1917 Os títulos acima, as três partes em um só volume. Mesmos editores. viii + 545 págs. 1918 2ª ed. (Com índice e inserção de lista de 40 corrigendas.) Mesmos editores. viii + 553 págs. 1920 3ª ed. (Reimpressão corrigida da edição anterior.) Leipzig, Viena e Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag. viii + 553 págs. evidente, mais uma vez as colocou na forma de conferências e publicou suas New Introductory Lectures (1933a), embora jamais houvesse qualquer possibilidade de serem dadas à luz como tais. Assim, Freud se socorreu evidentemente das conferências como método de expor suas opiniões, mas apenas sob uma condição particular: ele devia estar em vívido contato com seu auditório real ou suposto. Os leitores do presente volume descobrirão como é constante Freud manter esse contato - quão regularmente ele coloca objeções na boca de seus ouvintes, e quão freqüentemente existem debates imaginários entre ele e seus ouvintes. Na verdade, ele estendia esse método de formular suas exposições a alguns de seus trabalhos que absolutamente não são conferências: a totalidade de The Question of Lay Analysis (1926e) e a maior parte de O Futuro de uma Ilusão (1927c) tomaram a forma de diálogos entre o autor e um ouvinte que faz críticas. Contrariamente, talvez, a certas noções errôneas, Freud era inteiramente avesso à exposição de suas opiniões em forma autoritária e dogmática: ‘Não o direi aos senhores’, ele diz à sua audiência, em uma passagem adiante (pág. 433), ‘mas insistirei em que o descubram por si mesmos’. As objeções não eram para ser abafadas, mas esclarecidas e examinadas. E isso, afinal, não era mais que um prolongamento de um aspecto essencial da técnica da própria psicanálise. As Conferências Introdutórias podem ser verdadeiramente consideradas como um inventário das conceituações de Freud e da posição da psicanálise na época da Primeira Guerra Mundial. As dissidências de Adler e Jung já eram história passada, o conceito de narcisismo já tinha alguns anos de vida, o caso clínico do ‘Wolf Man’, que marcou época, tinha sido escrito (com exceção de duas passagens) um ano antes do começo das conferências, embora não fosse publicado senão mais tarde. E, também, a grande série de artigos ‘metapsicológicos’ sobre a teoria fundamental tinha sido ultimada alguns meses antes, ainda que apenas três deles tivessem sido publicados. (Mais dois deles surgiram logo após as conferências, porém os sete restantes desapareceram sem deixar vestígio.) Essas últimas atividades e, sem dúvida, também a realização das conferências tinham sido facilitadas pela diminuição do trabalho clínico de Freud, imposta pelas condições da guerra. Parecia haver-se chegado a um divisor de águas, e era como se houvesse chegado a época para uma pausa. De fato, porém, estavam em preparação idéias novas que deviam vir à luz em Além do Princípio de Prazer (1920g), Psicologia de Grupo (1921c) e O Ego e o Id (1923b). Em verdade, a linha não deve ser traçada com tanta exatidão. Por exemplo, já podem ser detectados indícios da noção da ‘compulsão à repetição’ (págs. 292-3), e os começos da análise do ego estão bastante evidentes (págs. 423 e 428-9), ao passo que as dificuldades referentes aos múltiplos sentidos da palavra ‘inconsciente’ (ver em [1]) preparam o caminho para uma nova descrição estrutural da mente. Em seu prefácio a estas conferências, Freud fala um pouco depreciativamente da falta de novidade em seu conteúdo. No entanto, ninguém, embora muito tenha lido de literatura psicanalítica, precisa sentir receio de se entediar com estas conferências, e ainda poderá achar nelas muitas coisas que não se encontrarão em outro lugar. As discussões sobre ansiedade (Conferência XV) e sobre fantasias primitivas (Conferência XXIV), que Freud mesmo, no prefácio, aponta como material recente, não são as únicas que ele podia ter mencionado. A revisão do simbolismo na Conferência X, é, provavelmente, a mais completa que fez. Em nenhuma outra parte fornece tão claro resumo da formação dos sonhos como nas últimas páginas da Conferência XIV. Sobre as perversões, não há comentários mais inteligíveis do que aqueles encontrados nas Conferências XX e XXI. Finalmente, não existe absolutamente qualquer tópico que se iguale à análise dos processos de terapia psicanalítica, feita na última conferência. E mesmo onde os assuntos pareceriam estar surrados, como o mecanismo das parapraxias e dos sonhos, a abordagem é feita a partir de direções inesperadas, lançando nova luz sobre o que poderia ter parecido terreno por demais conhecido. As Conferências Introdutórias seguramente merecem sua popularidade. PREFÁCIO [1917] O que ao público agora ofereço como uma ‘Introdução à Psicanálise’ não se destina a competir, de forma alguma, com determinadas descrições gerais desse campo de conhecimento, como aquelas já existentes, e dentre as quais citam-se, por exemplo: as de Hitschmann (1913), Pfister (1913), Kaplan (1914), Régis e Hesnard (1914) e Meijer (1915). Este volume é uma reprodução fiel das conferências que proferi [na Universidade], durante as duas temporadas de inverno de 1915/16 e 1916/17, perante um auditório de médicos e leigos de ambos os sexos. Quaisquer peculiaridades deste livro que possam surpreender os leitores são devidas às condições em que ele se originou. Em minha apresentação não foi possível preservar a tranqüila serenidade de um tratado científico. Pelo contrário, o conferencista tinha de se empenhar em evitar que a atenção de seu auditório declinasse durante uma sessão de quase duas horas de duração. As necessidades do momento muitas vezes tornaram impossível evitar repetições ao tratar de um determinado assunto - poderiam emergir uma vez, por exemplo, em relação à interpretação de sonhos e, mais tarde, de novo, em relação aos problemas das neuroses. Também em conseqüência da maneira como o material foi ordenado, alguns tópicos importantes (o inconsciente, por exemplo) não puderam ser exaustivamente debatidos em um só ponto, mas tiveram de ser retomados repetidamente e outra vez abandonados, até que surgisse nova oportunidade para acrescentar alguma informação adicional a respeito. Aqueles que estão familiarizados com a literatura psicanalítica encontrarão nesta ‘Introdução’ pouca coisa que não lhes seja conhecida já a partir de outras publicações muito mais detalhadas. Não obstante, a necessidade de completar e resumir algum tema compeliu o autor, em certos pontos (a etiologia da ansiedade e as fantasias histéricas), a apresentar material que até então havia retido. FREUD. VIENA, primavera de 1917. psicanalítica ou como realizar um tratamento. No entanto, na hipótese de que um dos senhores não se sentisse satisfeito com um ligeiro conhecimento da psicanálise, mas estivesse inclinado a entrar em relação permanente com ela, não apenas eu o dissuadiria de agir assim, como ativamente também o admoestaria para não fazê-lo. Da maneira como estão as coisas, no momento, tal escolha de profissão arruinaria qualquer possibilidade de obter sucesso em uma universidade, e, se começou na vida como médico clínico, iria encontrar-se numa sociedade que não compreenderia seus esforços, que o veria com desconfiança e hostilidade e que despejaria sobre ele todos os maus espíritos que estão à espreita dentro dessa mesma sociedade. E os acontecimentos que acompanham a guerra, que agora assola a Europa, lhes darão talvez alguma noção de que legiões desses maus espíritos podem existir. Não obstante, há bom número de pessoas para as quais, a despeito desses inconvenientes, algo que promete trazer-lhes uma nova parcela de conhecimento tem ainda seu atrativo. Se alguns dos senhores pertencerem a essa espécie de pessoas, e, malgrado minhas advertências, novamente aqui comparecerem para minha próxima conferência, serão bem- vindos. Todos, porém, têm o direito de saber da natureza das dificuldades da psicanálise, às quais aludi. Iniciarei por aquelas dificuldades vinculadas ao ensino, à formação em psicanálise. Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as conseqüências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. Nos departamentos cirúrgicos, são testemunhas das medidas ativas tomadas para proporcionar socorro aos pacientes, e os senhores mesmos podem tentar pô-las em execução. Na própria psiquiatria, a demonstração de pacientes, com suas expressões faciais alteradas, com seu modo de falar e seu comportamento, propicia aos senhores numerosas observações que lhes deixam profunda impressão. Assim, um professor de curso médico desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos mediante a própria percepção de cada um. Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe explicações e observa as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista, suscita no paciente. Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema -, jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente. Contudo, nem isso podemos fazer. A conversação em que consiste o tratamento psicanalítico não admite ouvinte algum; não pode ser demonstrada. Um paciente neurastênico ou histérico pode, naturalmente, como qualquer outro, ser apresentado a estudantes em uma conferência psiquiátrica. Ele fará uma descrição de suas queixas e de seus sintomas, porém apenas isso. As informações que uma análise requer serão dadas pelo paciente somente com a condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que ele percebesse estar alheia a essa relação. Isso porque essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como pessoa socialmente independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como personalidade homogênea, não admite para si próprio. Portanto, os senhores não podem estar presentes, como ouvintes, a um tratamento psicanalítico. Este pode, apenas, ser-lhes relatado; e, no mais estrito sentido da palavra, é somente de ouvir dizer que chegarão a conhecer a psicanálise. Como conseqüência do fato de receberem seus conhecimentos em segunda mão, por assim dizer, os senhores estarão em condições bem incomuns para formar um julgamento. Isto obviamente dependerá, em grande parte, do quanto de crédito podem dar a seu informante. Suponhamos, por um momento, que os senhores estivessem ouvindo uma conferência não sobre psiquiatria, mas sobre história, e que o conferencista lhes estivesse expondo a vida e os feitos militares de Alexandre Magno. Que fundamentos teriam para acreditar na verdade do que ele referisse? Num primeiro relance, a situação pareceria ser ainda mais desfavorável do que no caso da psicanálise, pois o professor de história teve tanta participação nas campanhas de Alexandre quanto os senhores. O psicanalista pelo menos reporta coisas nas quais ele próprio tomou parte. Porém, na devida oportunidade, chegamos aos elementos que confirmam aquilo que o historiador lhes disse. Ele poderia remetê-los aos relatos dos escritores da Antigüidade que, ou foram eles próprios contemporâneos dos eventos em questão, ou, de qualquer forma, estavam mais próximos dos mesmos - ele poderia remetê-los, digamos, às obras de Diodoro, Plutarco, Arriano e outros. Poderia colocar à frente dos senhores reproduções de moedas e estátuas do rei, que sobreviveram, e poderia passar às suas mãos uma fotografia do mosaico de Pompéia representando a batalha de Isso. Estritamente falando, contudo, todos esses documentos apenas provam que as gerações anteriores já acreditavam na existência de Alexandre e na realidade de seus feitos, e as críticas dos senhores poderiam começar novamente nesse ponto. Os senhores descobririam então que nem tudo aquilo que foi relatado sobre Alexandre merece crédito ou pode ser confirmado em seus detalhes; não obstante, não posso supor que os senhores viessem a deixar a sala de conferência com dúvidas sobre a realidade de Alexandre Magno. A decisão dos senhores seria determinada, essencialmente, por duas considerações: primeiro, que o conferencista não tem qualquer motivo imaginável para garantir-lhes a realidade de algo que ele próprio não julga ser real, e, em segundo lugar, que todos os livros de história disponíveis descrevem os acontecimentos em termos aproximadamente semelhantes. Se continuassem a examinar as fontes antigas, teriam em conta os mesmos fatores - os possíveis motivos dos informantes e a conformidade das testemunhas entre si. O resultado da pesquisa sem dúvida lhes traria uma confirmação, no caso de Alexandre; no entanto, provavelmente seria diferente quando se tratasse de personagens como Moisés ou Nemrod. Outras oportunidades revelarão muito claramente que dúvidas os senhores podem ter a respeito da credibilidade do seu informante psicanalítico. Mas os senhores têm o direito de fazer outra pergunta. Se não há verificação objetiva da psicanálise nem possibilidade de demonstrá-la, como pode absolutamente alguém aprender psicanálise e convencer-se da veracidade de suas afirmações? É verdade que a psicanálise não pode ser aprendida facilmente, e que não são muitas as pessoas que a tenham aprendido corretamente. Naturalmente, porém, existe um método que se pode seguir, apesar de tudo. Aprende-se psicanálise em si mesmo, estudando-se a própria personalidade. Isso não é exatamente a mesma coisa que a chamada auto-observação, porém pode, se necessário, estar nela subentendido. Existe grande quantidade de fenômenos mentais, muito comuns e amplamente conhecidos, que, após conseguido um pouco de conhecimento da técnica, podem se tornar objeto de análise na própria pessoa. Dessa forma, adquire-se o desejado sentimento de convicção da realidade dos processos descritos pela análise e da correção dos pontos de vista da mesma. Não obstante, há limites definidos ao progresso por meio desse método. A pessoa progride muito mais se ela própria é analisada por um analista experiente e vivencia os efeitos da análise em seu próprio eu (self), fazendo uso da oportunidade de assimilar de seu analista a técnica mais sutil do processo. Esse excelente método é, naturalmente, aplicável apenas a uma única pessoa e jamais a todo um auditório de estudantes reunidos. A psicanálise não deve ser acusada de uma segunda dificuldade na relação dos senhores com ela; devo fazê-los, aos senhores mesmos, responsáveis por isso, senhoras e senhores, pelo menos na medida em que foram estudantes de medicina. A educação que receberam previamente deu uma direção particular ao pensar dos senhores que conduz para longe da psicanálise. Foram formados para encontrar uma base anatômica para as funções do desviados de suas finalidades sexuais e dirigidos a outras, socialmente mais elevadas e não mais sexuais. Esse arranjo, contudo, é instável; os instintos sexuais são imperfeitamente subjugados e, no caso de cada indivíduo que se supõe juntar-se ao trabalho da civilização, há um risco de seus instintos sexuais se rebelarem contra essa destinação. A sociedade acredita não existir maior ameaça que se possa levantar contra sua civilização do que a possibilidade de os instintos sexuais serem liberados e retornarem às suas finalidades originais. Por esse motivo, a sociedade não quer ser lembrada dessa parte precária de seus alicerces. Não tem interesse em reconhecer a força dos instintos sexuais, nem interesse pela demonstração da importância da vida sexual para o indivíduo. Ao contrário, tendo em vista um fim educativo, tem-se empenhado em desviar a atenção de todo esse campo de idéias. É por isso que não tolerará esse resultado da pesquisa psicanalítica, e nitidamente prefere qualificá-lo como algo esteticamente repulsivo e moralmente repreensível, ou como algo perigoso. Entretanto, as objeções dessa espécie são ineficazes contra aquilo que se ergueu como produto objetivo de um exemplo de trabalho científico; se a contestação se fizer em público, então deve ser expressa novamente, em termos intelectuais. Ora, é inerente à natureza humana ter uma tendência a considerar como falsa uma coisa de que não gosta e, ademais, é fácil encontrar argumentos contra ela. Assim, a sociedade transforma o desagradável em falso. Rebate as verdades da psicanálise com argumentos lógicos e concretos; estes, porém, surgem de fontes emocionais, e ela mantém essas objeções na forma de preconceitos, opondo-se a toda tentativa de as contestar. Nós, porém, senhoras e senhores, podemos afirmar que, ao expor esta controvertida tese, não temos em vista qualquer objetivo tendencioso. Desejamos simplesmente dar expressão a um assunto que acreditamos ter demonstrado mediante nossos conscienciosos trabalhos. Afirmamos também o direito de rejeitar sem restrição qualquer interferência motivada em considerações práticas, no trabalho científico, mesmo antes de nos termos perguntado se o medo, que procura impor-nos essas considerações, é justificado ou não. Essas, pois, são algumas das dificuldades que se erguem contra o interesse dos senhores pela psicanálise. São, talvez, mais que suficientes para um começo. Porém, se puderem vencer a impressão que lhes causam, prosseguiremos. CONFERÊNCIA II - PARAPRAXIAS SENHORAS E SENHORES: Não começaremos com postulados, e sim com uma investigação. Escolhamos como tema determinados fenômenos muito comuns e muito conhecidos, os quais, porém, têm sido muito pouco examinados e, de vez que podem ser observados em qualquer pessoa sadia, nada têm a ver com doenças. São o que se conhece como ‘parapraxias’, às quais todos estão sujeitos. Pode acontecer, por exemplo, que uma pessoa que tenciona dizer algo venha a usar, em vez de uma palavra, outra palavra (um lapso de língua [Versprechen]), ou possa fazer a mesma coisa escrevendo, podendo, ou não, perceber o que fez. Ou uma pessoa pode ler algo, seja impresso ou manuscrito, diferentemente do que na realidade está diante de seus olhos (um lapso de leitura [Verlesen]), ou ouvir errado algo que lhe foi dito (um lapso de audição [Verhören] ) - na hipótese, naturalmente, de não haver qualquer perturbação orgânica de sua capacidade auditiva. Outro grupo desses fenômenos tem como sua base o esquecimento [Vergessen] - não, no entanto, um esquecimento permanente, mas apenas um esquecimento temporário. Assim, uma pessoa pode ser incapaz de se lembrar de uma palavra que conhece, apesar de tudo, e que reconhece de imediato, ou pode esquecer de executar uma intenção, embora dela se lembre mais tarde, tendo-a esquecido apenas naquele determinado momento. Em um terceiro grupo o caráter temporário está ausente - por exemplo, no caso de extravio [Verlegen], quando a pessoa colocou uma coisa em algum lugar e não consegue encontrá-la novamente, ou no caso precisamente igual de perda [Verlieren]. Aqui temos um esquecimento que tratamos diferentemente de outras formas de esquecimento, um caso em que ficamos surpresos ou aborrecidos em vez de considerá-lo compreensível. Além de tudo isso, há determinadas espécies de erros [Irrtümer], nos quais o caráter temporário está presente mais uma vez: pois, no caso destes, por um certo espaço de tempo acreditamos saber algo que, antes ou depois desse período, na realidade não sabemos. E existem numerosos outros fenômenos semelhantes, conhecidos por diversos nomes. Todas essas são ocorrências cuja afinidade interna recíproca é expressa pelo fato de [em alemão] sua designação começar com a sílaba ‘ver‘. Quase todas carecem de importância, na maioria são muito transitórias e são destituídas de muita importância na vida humana. Apenas raramente, como no caso da perda de um objeto, um fenômeno desses assume certo grau de importância prática. Também por esse motivo chamam pouco a atenção, fazem surgir nada mais que tênues emoções, e assim por diante. É para esses fenômenos, também, que agora proponho chamar a atenção dos senhores. Porém, irão protestar com certo enfado: ‘Há tantos problemas ingentes no amplo universo, assim como dentro dos estreitos limites de nossas mentes, tantas maravilhas no campo dos distúrbios mentais, que exigem e merecem elucidação, que parece realmente injustificado investir trabalho e interesse em tais trivialidades. Se o senhor puder fazer-nos compreender por que uma pessoa com olhos e ouvidos sãos pode ver e ouvir, em plena luz do dia, coisas que não se encontram ali; por que outra pessoa subitamente pensa estar sendo perseguida pelas pessoas das quais foi, até então, muito amiga, ou apresenta os mais engenhosos argumentos em apoio de suas crenças delirantes, que qualquer criança poderia ver que são disparatadas, então deveríamos ter algum apreço pela psicanálise. Entretanto, se ela não pode fazer mais que nos pedir para considerarmos por que um orador, num banquete, emprega uma palavra em vez de outra, ou por que uma dona de casa extraviou suas chaves, e futilidades semelhantes, então saberemos como empregar melhor nosso tempo e interesse.’ Eu responderia: Paciência, senhoras e senhores! Penso que suas críticas perderam o rumo. É verdade que a psicanálise não pode vangloriar-se de jamais haver-se ocupado de trivialidades. Pelo contrário, o material para sua observação é geralmente proporcionado pelos acontecimentos banais, postos de lado pelas demais ciências como sendo bastante insignificantes - o refugo, poderíamos dizer, do mundo dos fenômenos. Porém, não estão os senhores fazendo confusão, em suas críticas, entre a vastidão dos problemas e a evidência que aponta para eles? Não existem coisas muito importantes que, sob determinadas condições e em determinadas épocas, só se podem revelar por indicações bastante débeis? Eu não encontraria dificuldade para fornecer-lhes diversos exemplos de tais situações. Se o senhor, por exemplo, é um homem jovem, não será a partir de pequenos indícios que concluirá haver conquistado os favores de uma jovem? Esperaria uma expressa declaração de amor, ou um abraço apaixonado? Ou não seria suficiente um olhar, que outras pessoas mal perceberiam, um ligeiro movimento, o prolongamento, por um segundo, da pressão de sua mão? E se fosse um detetive empenhado em localizar um assassino, esperaria achar que o assassino deixou para trás sua fotografia, no local do crime, com seu endereço assinalado? Ou não teria necessariamente de ficar satisfeito com vestígios fracos e obscuros da pessoa que estivesse procurando? Assim sendo, não subestimemos os pequenos indícios; com sua ajuda podemos obter êxito ao seguirmos a pista de algo maior. Ademais, penso, como os senhores, que os grandes problemas do universo e da ciência são aqueles que mais exigem nosso interesse. É, porém, muito raro alguém manter a expressa intenção de se devotar à pesquisa deste ou daquele grande problema. Fica-se então sem poder saber qual o primeiro passo a dar. É mais promissor, no trabalho científico, atacar o que quer que esteja imediatamente à nossa frente e ofereça uma oportunidade à pesquisa. Agindo dessa forma, realmente com afinco e sem preconceito ou sem prevenções, e tendo-se sorte, então, desde que tudo se relaciona com tudo, inclusive as pequenas coisas com as grandes, pode-se, mesmo partindo de um trabalho despretensioso, ter acesso ao estudo dos grandes problemas. É isso que eu devia dizer, a fim de manter o interesse dos senhores quando tratamos dessas trivialidades tão evidentes como o são as parapraxias de pessoas sãs. Peçamos, agora, auxílio a alguém que nada saiba de psicanálise, e perguntemos-lhe como explica essas ocorrências. Sua primeira resposta certamente será: ‘Ora, não há o que explicar: não passam de pequenos acontecimentos ao acaso.’ O que o amigo quer dizer com isso? Estará afirmando existirem ocorrências, embora pequenas, que escapam à concatenação universal dos fatos - ocorrências que tanto poderia haver como não haver? Se alguém comete uma infração desse tipo no determinismo dos eventos naturais em um só ponto, significa que atirou fora toda a Weltanschauung da ciência. A própria Weltanschauung da religião, podemos lembrar-lhe, se comporta de maneira mais coerente, porque dá explícita garantia de que nenhum pardal cai do telhado sem a vontade de Deus. Penso que nosso amigo hesitará em tirar a conclusão lógica dessa primeira resposta; mudará de opinião e dirá que, afinal, quando vir a expressões que, pelo menos, vão além de qualquer teoria psicofisiológica dos erros de impressão. Talvez lhes seja também conhecido o fato de ser possível provocar lapsos de língua, produzi-los, digamos assim, por sugestão. Uma anedota ilustra esse fato. Tinha sido confiado a um estreante dos palcos o importante papel, em Die Jungfrau von Orleans [de Schiller], do mensageiro que anuncia ao rei de ‘der Connétable schickt sein Schwert zurück [o Condestável devolve sua espada]’. Um primeiro ator divertia-se, durante os ensaios, com induzir repetidamente o nervoso jovem a dizer, em vez das palavras do texto: ‘der Komfortabel schickt sein Pferd zurück [o cocheiro devolve seu cavalo]’. Conseguiu seu intento: o desventurado principiante realmente fez sua estréia na representação com a versão corrompida, apesar de haver sido admoestado de não fazê-lo, ou, talvez, porque tenha sido admoestado. Nenhuma luz é lançada sobre esses pequenos aspectos das parapraxias com a teoria da falta de atenção. Porém, não significa necessariamente que a teoria seja errônea, em face dessa explicação; ela simplesmente pode estar carecendo de algo, de algum acréscimo, para que venha a ser completamente satisfatória. Contudo, algumas das parapraxias também podem ser consideradas por outro prisma. Tomemos os lapsos de língua como o tipo de parapraxia mais adequado a nossos propósitos - embora pudéssemos igualmente ter escolhido lapsos de escrita ou lapsos de leitura. Devemos ter em mente que, até aqui, apenas perguntamos quando - sob que condições - as pessoas cometem lapsos de língua, e apenas para essa pergunta tivemos uma resposta. Poderíamos, porém, dirigir nosso interesse para outro aspecto e indagar por que razão o erro ocorreu dessa determinada forma e não de outra; e poderíamos considerar o que é que emerge no lapso propriamente dito. Os senhores observarão que, enquanto essa pergunta não for respondida e nada for respondido e nada for elucidado sobre o lapso, o fenômeno permanece como evento casual, do ponto de vista psicológico, embora dele se tenha dado uma explicação fisiológica. Se eu cometesse um lapso de língua, poderia obviamente fazê-lo em número infinito de formas, a palavra certa poderia ser substituída por alguma palavra entre milhares de outras, ser distorcida em incontáveis direções diferentes. Existe, pois, algo que, no caso particular, me compele a cometer o lapso de uma determinada forma; ou isso continua sendo uma questão de acaso, de escolha arbitrária, e se trata, talvez, de uma pergunta a que não se pode dar qualquer resposta sensata? Dois escritores, Meringer e Mayer (um, filólogo, o outro, psiquiatra), de fato tentaram, em 1895, atacar o problema das parapraxias por esse ângulo. Coligiram exemplos e começaram por abordá-los de maneira puramente descritiva. Isso, naturalmente, até aqui não oferece nenhuma explicação, embora possa preparar o caminho para alguma. Distinguem os diversos tipos de distorções que o lapso impõe ao discurso pretendido, como ‘transposições’, ‘pré-sonâncias [antecipações]’, ‘pós-sonâncias [perseverações]’, ‘fusões (contaminações)’ e ‘substituições’. Eu lhes darei alguns exemplos desses principais grupos propostos pelos autores. Um exemplo de transposição seria dizer ‘a Milo de Vênus‘ em vez de ‘a Vênus de Milo’ (transposição da ordem das palavras); um exemplo de pré-sonância [antecipação] seria: ‘es war mir auf der Schwest… auf der Brust so schwer’; e uma pós-sonância [perseveração] seria exemplificada pelo conhecido brinde que saiu errado: ‘Ich fordere Sie auf, auf das Wohl unseres Chefs aufzustossen’ [em vez de ‘anzustossen’]. Essas três formas de lapso de língua não são propriamente comuns. Os senhores encontrarão exemplos muito mais numerosos, nos quais o lapso resulta de contração ou fusão. Assim, por exemplo, um cavalheiro dirige-se a uma senhora na rua com as seguintes palavras: ‘Se me permite, senhora, gostaria de a begleit-digen.‘ A palavra composta que se juntou a ‘begleiten [acompanhar]’ evidentemente escondeu em si ‘beleidigen [insultar]’. (Diga-se de passagem, o jovem provavelmente não teve muito êxito com a senhora.) Como exemplo de substituição, Meringer e Mayer citam o caso de alguém que diz: ‘Ich gebe die Präparate in den Briefkasten’ em vez de ‘Brütkasten’. A explicação em que esses autores tentaram basear sua coleção de exemplos, é especialmente inadequada. Acreditam que os sons e as sílabas de uma palavra têm uma ‘valência’ determinada, e que a inervação de um elemento de alta valência pode exercer uma influência perturbadora em outro de menor valência. Com isso, estão evidentemente se baseando nos raros casos de pré-sonância e pós-sonância; essas preferências de uns sons a outros (se é que de fato existem) podem não ter absolutamente qualquer relação com outros casos de lapsos de língua. Afinal, os lapsos de língua mais comuns ocorrem quando, em vez de dizermos uma palavra, dizemos uma outra muito semelhante; e essa semelhança é, para muitos, explicação suficiente de tais lapsos. Por exemplo, um professor declarou em sua aula inaugural: ‘Não estou ‘geneigt [inclinado]’ (em vez de ‘geeignet [qualificado]’) a valorizar os serviços de meu mui estimado predecessor.’ Ou então, outro professor observava: ‘No caso dos órgãos genitais femininos, apesar de muitas Versuchungen [tentações] - me desculpem, Versuche [tentativas] ….’ O tipo mais comum e, ao mesmo tempo, mais notável de lapsos de língua, no entanto, são aqueles em que se diz justamente o oposto do que se pretendia dizer. Aqui, naturalmente, estamos muito longe de relações entre sons e os efeitos de semelhança; e, em vez disso, podemos apelar para o fato de que os contrários têm um forte parentesco conceitual uns com os outros e mantêm entre si uma associação psicológica especialmente próxima. Há exemplos históricos de tais ocorrências. Um presidente da câmara dos deputados de nosso parlamento certa vez abriu a sessão com as palavras: ‘Senhores, observo que está presente a totalidade dos membros, e por isso declaro a sessão encerrada.’ Qualquer outra associação conhecida pode atuar da mesma forma insidiosa, como um contrário, e emergir em circunstâncias bastante inadequadas. Assim, conta-se que, por ocasião de uma celebração em honra do casamento de um filho de Hermann von Helmholtz com uma filha de Werner von Siemens, o conhecido inventor e industrial, a incumbência de saudar à felicidade do jovem par coube ao famoso fisiologista Du Bois-Reymond. Sem dúvida, este fez um discurso brilhante, porém encerrou com as palavras: ‘Portanto, longa vida à nova firma Siemens e Haeske!’ Essa era, naturalmente, a denominação da antiga firma. A justaposição dos dois nomes deve ter sido tão familiar a um berlinense como Fortnum e Mason o seria a um londrino. Devemos, portanto, incluir entre as causas das parapraxias não apenas relações entre sons e semelhança verbal, como também a influência das associações de palavras. Isso, porém, não é tudo. Em numerosos casos, parece impossível explicar um lapso de língua, a não ser que levemos em conta algo que tinha sido dito, ou mesmo simplesmente pensado, em uma frase anterior. De novo temos aqui um caso de perseveração, como aqueles em que insistia Meringer, porém de origem mais remota. Devo confessar que sinto, na totalidade, como se estivéssemos mais longe do que nunca de compreender os lapsos de língua. Não obstante, espero não estar equivocado ao dizer que, durante essa última pesquisa, todos nós tivemos uma nova impressão desses exemplos de lapsos de língua, e que pode valer a pena considerar um pouco mais detidamente essa impressão. Examinamos as condições sob as quais em geral os lapsos de língua ocorrem, e, depois, as influências que determinam o tipo de distorção produzida pelo lapso. Até agora, no entanto, não dedicamos nada de nossa atenção ao produto do lapso considerado em si mesmo, sem referência à sua origem. Se decidimos fazê- lo, não podemos deixar de encontrar, no final, coragem para dizer que, em alguns exemplos, aquilo que resulta do lapso de língua tem um sentido próprio. O que queremos dizer com ‘tem um sentido’? Que o produto do lapso de língua pode, talvez, ele próprio ter o direito de ser considerado como ato psíquico inteiramente válido, que persegue um objetivo próprio, como uma afirmação que tem seu conteúdo e seu significado. Até aqui temos sempre falado em ‘parapraxias [atos falhos]’, porém agora é como se às vezes o ato falho fosse, ele mesmo, um ato bastante normal, que simplesmente tomou o lugar de outro, que era o ato que se esperava ou desejava. O fato de a parapraxia ter um sentido próprio parece, em determinados casos, evidente e inequívoco. Quando o presidente da câmara dos deputados, com suas primeiras palavras, encerrou a sessão em vez de abri-la, sentimo-nos inclinados, em vista de nosso conhecimento das circunstâncias em que o lapso de língua ocorreu, a reconhecer que a parapraxia tem um sentido. O presidente não esperava nada de bom da sessão e ficaria satisfeito se pudesse dar- lhe um fim imediato. Não temos qualquer dificuldade em chamar a atenção para o sentido desse lapso de língua, ou, por outras palavras, de interpretá-lo. Ou, então suponhamos que uma mulher diga a outra, em tom de aparente admiração: ‘Esse lindo chapéu novo, suponho que você mesma o aufgepatzt [palavra não existente, em lugar de aufgeputzt (enfeitou)], não?’ Ora, não existe decoro científico que possa impedir-nos de ver por trás desse lapso de língua as palavras: ‘Esse chapéu é uma Patzerei [droga].’ Ou, noutro caso, contam-nos que uma senhora, conhecida por seus modos enérgicos, certa ocasião observava: ‘Meu marido perguntou a seu médico qual dieta devia seguir; mas o médico lhe disse que não precisava de dieta: ele podia sensibilidade psicológica, faz irromper abertamente em seu lapso de língua; e, com essa solução artística, logra aliviar tanto a incerteza intolerável do amante como o suspense do compreensivo auditório diante do resultado de sua escolha.’ Observem também com que habilidade Pórcia, no fim, reconcilia as duas afirmações contidas em seu lapso de língua, como resolve a contradição entre elas e como, finalmente, mostra ser o lapso o que estava correto: ‘Mas, sendo minha, é vossae desse modo, sou toda vossa.’ Ocasionalmente tem acontecido que um pensador, cuja atividade se situa fora da medicina, haja revelado, por algo que falou, o sentido de uma parapraxia, e se tenha antecipado a nossos esforços de explicá-la. Os senhores, todos, ouviram falar no espirituoso satirista Lichtenberg (1742-99), de quem Goethe disse: ‘Onde ele faz uma pilhéria, se esconde um problema.’ Às vezes, a pilhéria também traz à luz a solução do problema. Nos Witzige und Satirische Einfälle [Witty and Satirical Thoughts, 1853], de Lichtenberg, encontramos o seguinte: ‘Ele tanto leu Homero, que sempre lia “Agamemnon” em vez de “angenommen [suposto]”.’ Aqui temos toda a teoria dos lapsos de leitura. Na próxima vez precisamos ver se podemos concordar com esses escritores em suas opiniões. CONFERÊNCIA III - PARAPRAXIAS (continuação) SENHORAS E SENHORES: Chegamos, na última vez, à idéia de considerar as parapraxias não em relação à desejada função que elas perturbavam, mas à sua própria descrição; e tivemos a impressão de que, em casos especiais, pareciam revelar um sentido próprio. Refletimos então que, se pudesse ser obtida a confirmação, em uma escala mais ampla, de que as parapraxias têm um sentido, seu sentido logo ficaria mais interessante que a investigação das circunstâncias em que ocorrem. Vamos, mais uma vez, chegar a um acordo sobre o que se deve entender por ‘sentido’ de processo psíquico. Queremos dizer com isso tão-somente a intenção à qual serve e sua posição em uma continuidade psíquica. Na maioria de nossas investigações podemos substituir ‘sentido’ por ‘intenção’ ou ‘propósito’. Tratava-se, então, simplesmente de uma ilusão enganadora ou de uma exaltação poética das parapraxias quando pensamos reconhecer nelas uma intenção? Continuaremos a tomar lapsos de língua como nossos exemplos. Se agora examinarmos atentamente numerosas observações desse tipo, encontraremos categorias completas de casos em que a intenção, o sentido, do lapso é inteiramente visível. Antes de tudo existem aqueles nos quais o que se pretendia é substituído por seu contrário. O presidente da câmara dos deputados [ver em [1]] disse, em seu discurso de abertura: ‘Declaro a sessão encerrada.’ Isso não é nada ambíguo. O sentido e intenção de seu lapso era encerrar a sessão. ‘Er sagt es ja selbst” é o que estamos tentados a citar: é apenas uma questão de aceitar suas palavras. Não me interrompam neste ponto, objetando que isso é impossível, que sabemos que ele não queria encerrar a sessão e sim abri-la, e que ele mesmo, a quem nós reconhecemos como a única suprema corte de apelação, poderia confirmar o fato de que queria abri-la. Os senhores estão se esquecendo de que fizemos o acordo de começarmos considerando as parapraxias no que concerne à sua própria descrição; sua relação com a intenção, que elas perturbaram, não será discutida senão mais adiante. De outro modo, os senhores serão culpados de um erro de lógica, simplesmente por fugirem do problema ora em exame - por algo que é chamado em inglês ‘begging the question’. Em outros casos, nos quais o lapso não expressa o exato contrário, não obstante um sentido oposto pode ser expresso por ele. ‘Não estou geneigt [inclinado] a valorizar os serviços de meu predecessor [ver em [1]]. Geneigt não é o contrário de geeignet [qualificado], mas exprime claramente algo que contrasta nitidamente com a situação na qual o discurso devia ser feito. Já em outros casos o lapso de língua apenas acrescenta um segundo sentido àquele que se pretendia. A frase então soa como uma contração, uma abreviação ou condensação de diversas frases. Assim, quando a enérgica senhora dizia: ‘Ele pode comer e beber o que eu quero’ [ver em [1]], é bem como se ela tivesse dito: ‘Ele pode comer e beber o que ele quer; mas o que ele tem a ver com querer? Eu é que quero em vez dele.’ Um lapso de língua muitas vezes dá a impressão de ser uma abreviação desse tipo. Por exemplo, um professor de anatomia, ao fim de uma conferência sobre as cavidades nasais, perguntou se seu auditório havia compreendido o que ele disse, e após geral assentimento prosseguiu: ‘Dificilmente posso acreditar nisso, pois, mesmo em uma cidade com milhões de habitantes, aqueles que entendem das cavidades nasais podem ser contados em um dedo… desculpem-me, nos dedos de uma mão.’ A frase abreviada também possui um sentido - a saber, que existe apenas uma pessoa que delas entende. Contrastando com esses grupos de casos, nos quais a parapraxia por si mesma revela seu sentido, existem outros em que a parapraxia não produz nada que tenha algum sentido próprio, e que, por conseguinte, contrariam nitidamente nossas expectativas. Se alguém deturpa um nome próprio através de um lapso de língua ou agrupa uma série anormal de sons, esses eventos muito comuns, isoladamente considerados, parecem dar uma resposta negativa à nossa pergunta sobre se todas as parapraxias têm alguma espécie de sentido. Um exame mais detido desses exemplos, porém, mostra que essas distorções são facilmente compreendidas e que absolutamente não existe diferença tão grande entre esses casos mais obscuros e os anteriores, mais claros. Um homem, a quem se perguntou a respeito da saúde de seu cavalo, respondeu: ‘Bem, ele draut [uma palavra sem sentido] … ele dauert [vai durar] mais um mês, talvez.’ Quando lhe foi perguntando o que realmente quis dizer, explicou haver pensado que isso era uma ‘traurige [triste] história’. A combinação de ‘dauert‘ e ‘traurig‘ produziu ‘draut‘. Outro homem, falando de uns acontecimentos que condenava, prosseguiu: ‘Mas então, os fatos vieram a Vorschwein [palavra não existente, em vez de Vorschein (luz)]….’ Respondendo a indagações, confirmou o fato de que havia considerado essas ocorrências ‘Schweinereien‘ [‘repugnantes’, literalmente ‘porcarias’]. ‘Vorschein‘ e ‘Schweinereien‘ combinaram-se para produzir a estranha palavra ‘Vorschwein‘. Por certo recordam-se do caso do jovem senhor que perguntou à senhora desconhecida se ele a podia ‘begleitdigen‘ [ver em [1]]. Aventuramo-nos a dividir esta forma verbal em ‘begleiten [acompanhar]’ e ‘beleidigen [insultar]’ e nos sentimos muito certos dessa interpretação, sem precisarmos de qualquer confirmação. Os senhores verão, a partir desses exemplos, que mesmo esses casos mais obscuros de lapsos de língua podem ser explicados por uma convergência, uma ‘interferência‘ recíproca entre duas elocuções desejadas; as diferenças entre esses casos de lapsos surgem meramente do fato de, em algumas ocasiões, uma intenção tomar completamente o lugar da outra (uma substitui a outra), como nos lapsos de língua que exprimem o contrário; ao passo que, em outras ocasiões, uma intenção se satisfaz distorcendo ou modificando a outra, de modo que se produzem estruturas compostas, que fazem sentido, em maior ou menor grau, por sua própria conta. Parecemos agora haver desvendado o segredo de grande número de lapsos de língua. Se retivermos na memória essa descoberta, seremos capazes de compreender também outros grupos que até agora se constituíram em enigma para nós. Nos casos de distorção de nomes, por exemplo, não podemos supor que se trate sempre de uma questão de competição entre dois nomes semelhantes, mas diferentes. Não é difícil, no entanto, entrever a segunda intenção. A distorção de um nome ocorre, muito freqüentemente, sem haver lapsos de língua; procura dar ao nome um tom ofensivo ou fazê-lo soar como algo inferior, e é um costume conhecido (ou mau costume) destinado a insultar, que as pessoas civilizadas cedo aprendem a abandonar, porém relutam em abandonar. Muitas vezes ainda é permitida como brincadeira, embora brincadeira pouco digna. Como exemplo notório e deselegante dessa forma de distorcer nomes, posso mencionar que, nos dias atuais [da Primeira Guerra Mundial], o nome do presidente da República Francesa, Poincaré, foi transformado em ‘Schweinskarré‘. Portanto, é plausível supor que a mesma intenção insultuosa esteja presente nesses lapsos de língua e procure encontrar expressão na distorção de um nome. Explicações semelhantes acodem ao espírito, na mesma ordem de coisas, quando se trata de certos exemplos de lapsos de língua com efeitos cômicos ou absurdos. ‘Eu os convido a arrotar [aufzustossen] à saúde de nosso Chefe [ver em [1]].’ Aqui, uma atmosfera de cerimônia é inesperadamente perturbada pela intromissão de uma palavra que evoca uma idéia condenável, e, à maneira de certas frases insultuosas e ofensivas, mal podemos evitar a suspeita de que uma intenção procurava encontrar expressão e estava em violenta contradição com as palavras ostensivamente respeitosas. O que o lapso de língua mais, antes de me resolver por ele e, além disso, de uma força que me impulsione pelo caminho. Assim, essas relações de sons e palavras constituem também, do mesmo modo como as condições somáticas, exclusivamente coisas que favorecem os lapsos de língua e não podem proporcionar a verdadeira explicação para eles. Considerem apenas isso: em uma imensa quantidade de casos meu falar não é perturbado pela circunstância de as palavras, que estou usando, lembrarem outras com som semelhante, de serem intimamente vinculadas a seus contrários, ou de associações correntes delas derivarem. E talvez pudéssemos encontrar uma saída acompanhando o filósofo Wundt, quando diz que os lapsos de língua surgem se, em conseqüência de exaustão física, a tendência a associar prevalece sobre aquilo que a pessoa tenciona dizer. Seria muito convincente se não fosse contrariado pela experiência, que mostra que numa série de casos os fatores somáticos facilitadores dos lapsos de língua estão ausentes, e que em outra série de casos os fatores associativos, que os facilitam, estão igualmente ausentes. Entretanto, estou particularmente interessado em sua pergunta seguinte: Como se descobrem as duas intenções que se interferem mutuamente? Os senhores provavelmente não percebem como é importante a pergunta. Uma das duas intenções, aquela que é perturbada, naturalmente é inequívoca: a pessoa que comete o lapso de língua conhece-a e a admite. É somente a outra, a intenção que perturba, que pode dar origem à dúvida e à hesitação. Ora, já temos visto, e sem dúvida os senhores não o esqueceram, que em numerosos casos essa outra intenção é igualmente evidente. É indicada pelo efeito do lapso, bastando que tenhamos a coragem de reconhecer nesse efeito uma validade própria. Seja o caso do presidente da câmara dos deputados, cujo lapso de língua disse o contrário do tencionado. E claro que desejava abrir a sessão, porém é igualmente claro que também desejava encerrá-la. Isso é tão óbvio que não nos deixa nada por interpretar. Nos outros casos, contudo, nos quais a intenção perturbadora apenas distorce a intenção original sem que ela mesma consiga completa expressão, como é que, partindo da distorção, chegamos à intenção perturbadora? Em um primeiro grupo de casos, isso se faz de maneira bastante simples e segura - com efeito, da mesma maneira como se tem a intenção perturbada. Fazemos o interlocutor dar-nos a informação diretamente. Depois do lapso de língua, ele prontamente diz as palavras que originalmente pretendia: ‘Draut… não, dauert [vai durar] mais um mês, talvez.’ [ver em [1]]. Pois bem, exatamente da mesma forma o fazemos dizer qual a intenção que perturba. ‘Por que’, lhe perguntamos, ‘o senhor disse “draut”?’ Ele responde: ‘Eu queria dizer “É uma traurige [triste] história”.’ De maneira semelhante, em outro caso, em que o lapso de língua era ‘Vorschwein‘ [ver em [1]], a pessoa confirma o fato de que desejava inicialmente dizer ‘É uma Schweinerei [porcaria]’, porém se controlou e saiu-se com outro comentário. Aqui, pois, a intenção que distorce fica estabelecida tão seguramente como aquela que foi distorcida. Minha escolha desses exemplos não foi sem propósito, de vez que sua origem e sua solução não procedem nem de mim nem de meus seguidores. E em ambos esses casos medidas ativas de alguma espécie foram necessárias para se chegar à solução. Foi preciso perguntar ao orador por que cometera o lapso e o que poderia dizer sobre o mesmo. De outro modo, seu lapso poderia ter- lhe passado despercebido, sem desejar explicá-lo. Quando, porém, foi indagado a respeito, deu a explicação com a primeira coisa que lhe ocorreu. E agora, por favor, observem que esse pequeno passo positivo e seu resultado bem-sucedido já são uma psicanálise, e constituem um modelo para todas as investigações psicanalíticas que empreenderemos daqui por diante. Serei demais desconfiado, porém, se suspeito que, exatamente no momento em que a psicanálise faz seu aparecimento perante os senhores, a resistência a ela desperta, simultaneamente? Não se sentem os senhores inclinados a objetar que a informação dada pela pessoa a quem foi feita a pergunta - a pessoa que cometeu o lapso de língua - não é totalmente conclusiva? Ela estava naturalmente desejosa, pensam os senhores, de atender à solicitação de explicar o lapso, e assim disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça e que parecia capaz de fornecer tal explicação. Isso, porém, não é nenhuma prova de que o lapso realmente ocorreu dessa maneira. Pode ter sido assim; contudo, também pode ter sucedido de outra forma. E poderia ter-lhe ocorrido mais alguma coisa, que seria também apropriada, ou talvez até mesmo mais bem ajustada. É estranho quão pouco respeito os senhores, no fundo, têm por um ato psíquico. Imaginem que alguém tivesse empreendido a análise química de determinada substância e encontrado determinado peso para um de seus componentes: tantos e tantos miligramas. Determinadas inferências seriam deduzidas desse peso. Ora, supõem os senhores que alguma vez ocorreria a um químico criticar essas inferências com base no fato de que a substância isolada poderia igualmente ter tido algum outro peso? Todos se curvarão ante o fato de que o peso era esse e nenhum outro, e confiantemente tirarão daí suas ulteriores conclusões. No entanto, quando os senhores se defrontam com o fato psíquico de que determinada coisa ocorreu à mente da pessoa interrogada, não querem admitir a validade do fato: alguma outra coisa poderia ter-lhe ocorrido! Os senhores acalentam a ilusão de haver uma coisa como liberdade psíquica e não querem desistir dela. Lamento dizer que discordo categoricamente dos senhores a este respeito. Perante isso irão interromper-se, porém apenas para retomar sua resistência em outro ponto. E prosseguirão: ‘Constitui técnica especial da psicanálise, segundo entendemos, tomarem análise as próprias pessoas a fim de obter a solução de seus problemas. [ver em [1], adiante.] Agora tomemos um novo exemplo: aquele em que um orador, convocando a um brinde de homenagem numa ocasião de cerimônia, convidou seus ouvintes a arrotar [aufzustossen] à saúde do chefe [ver em [1]].O senhor diz [ver em [1] e [2]] que a intenção perturbadora, nesse caso, era uma intenção de insultar: era essa que estava opondo-se à expressão de respeito do orador. É, contudo, mera interpretação da parte do senhor, baseada em observações não relacionadas com o lapso de língua. Se, nesse exemplo, o senhor interrogasse a pessoa responsável pelo lapso, ela não confirmaria a idéia do senhor, de que ela tencionava um insulto; ao contrário, ela repudiaria isso energicamente. Por que, em face desse claro desmentido, não abandona sua improvável interpretação?’ Sim. Os senhores encontraram um argumento poderoso desta vez. Posso imaginar o desconhecido proponente do brinde. Provavelmente é subordinado do chefe do departamento, a quem está sendo feita a homenagem - talvez ele mesmo já seja professor-assistente, um homem jovem, com excelentes projetos de vida. Procuro forçá-lo a admitir que ele pode, não obstante, ter tido uma sensação de que nele havia algo se opondo ao brinde em honra do chefe. Entretanto, isso me põe em maus lençóis. Ele fica impaciente e, de repente, irrompe: ‘Pare de querer me interrogar, se não, vou ficar grosseiro. O senhor vai arruinar toda a minha carreira com suas suspeitas. Apenas falei “aufstossen [arrotar]” em vez de “anstossen [brindar]”, porque antes disse “auf” duas vezes na mesma frase. É o que Meringer chama de perseveração e não há nada mais para ser interpretado nisso. Está entendendo? Basta!‘ - Hum! Que reação surpreendente - uma negação realmente enérgica. Vejo que não há nada mais a tratar com o homem. Porém, também constato que ele mostra intenso interesse pessoal em insistir em que sua parapraxia não tem um sentido. Os senhores também podem sentir que existe algo de errado em ele ser assim tão rude com uma indagação puramente teórica. Entretanto pensarão, depois de tudo dito e feito: ele deve saber o que quis e o que não quis dizer. Mas, será que sabe mesmo? Talvez seja essa ainda a questão. Agora, porém, julgam que me têm à mercê dos senhores. ‘Então essa é sua técnica’, ouço-os dizer. ‘Quando alguém que cometeu um lapso de língua diz alguma coisa a respeito, que satisfaz ao senhor, o senhor o declara autoridade decisiva e final no assunto. “É ele mesmo quem diz! [ver em [1]]”. Quando o que ele diz não se ajusta ao livro do senhor, então tudo quanto o senhor diz é que ele não tem importância - não há necessidade de acreditar nele. Isso é bastante verdadeiro. Mas posso trazer-lhes um exemplo semelhante, no qual ocorre o mesmo espantoso evento. Quando alguém, acusado de um delito, confessa ao juiz sua ação, o juiz acredita em sua confissão; porém, se nega, o juiz não acredita nele. Se fosse de outra forma, não haveria aplicação de justiça, e apesar de erros ocasionais devemos convir em que o sistema funciona. ‘O senhor é um juiz, então? E uma pessoa que cometeu um lapso de língua é trazida à sua presença sob acusação? Quer dizer que cometer um lapso de língua é um delito, não é?’ Talvez não precisemos rejeitar a comparação. Eu, contudo, pedir-lhes-ia observarem que profundas diferenças de opinião atingimos após uma pequena investigação do que pareciam ser esses inocentes problemas concernentes às parapraxias - diferenças que, no momento, não vemos como atenuar. Proponho uma conciliação provisória, com base na analogia entre juiz e réu. Penso que os senhores convirão comigo em que não pode haver dúvida de que a parapraxia tenha um sentido, se a própria pessoa o admite. Em troca, eu vou convir em que não podemos chegar a uma prova direta do suspeito sentido, se a pessoa nos recusa informações, e também, naturalmente, se não está em condições de nos fornecer as informações. Portanto, Visto como os leigos têm tão poucas dúvidas sobre o sentido do esquecimento de intenções, os senhores não ficarão nada surpresos ao encontrarem escritores empregando essa espécie de parapraxia no mesmo sentido. Qualquer um dos senhores que tenha visto ou lido Caesar and Cleopatra, de Bernard Shaw, se lembrará de que, na última cena, César, ao deixar o Egito, é perseguido pela idéia de que há alguma coisa mais que tencionara fazer, porém esqueceu. No fim, vem-se a saber o que era: esquecera-se de dizer adeus a Cleópatra. O dramaturgo, mediante esse pequeno expediente engenhoso, procura atribuir ao grande César a superioridade que, na realidade, ele não possui e que jamais desejou. Fontes históricas lhes contarão que César fez Cleópatra acompanhá-lo a Roma, que ela vivia lá com seu pequeno Caesarion quando César foi assassinado, e que ela logo depois fugiu da cidade. Casos de esquecimento de uma intenção em geral são tão claros que não servem muito a nosso objetivo obter a partir da situação psíquica uma prova circunstancial do sentido de uma parapraxia. Voltemo-nos, portanto, para um tipo de parapraxia especialmente ambíguo e obscuro: a perda e o extravio. Os senhores não terão dúvida em achar inacreditável que nós próprios podemos desempenhar um papel intencional em coisa tão freqüente como o é o doloroso acidente de perder algo. Existem, contudo, numerosas observações semelhantes à que se segue. Um jovem senhor perdeu um lápis de grande valor estimativo para ele. No dia anterior recebera uma carta de seu cunhado, a qual terminava com estas palavras: ‘Não tenho atualmente nem disposição nem tempo para encorajá-lo em sua futilidade e preguiça.’ O lápis, de fato, lhe fora dado pelo mesmo cunhado. Sem essa coincidência não poderíamos, naturalmente, ter afirmado que, nessa perda, um papel foi desempenhado pela intenção de se desfazer do objeto. Casos semelhantes são muito comuns. Perdemos um objeto se nos desentendemos com a pessoa de quem o ganhamos e não queremos nos lembrar dela; ou, então, se não gostamos mais do objeto em si mesmo e queremos uma desculpa para conseguir um outro melhor em seu lugar. A mesma intenção dirigida contra um objeto também, naturalmente, pode ter um desempenho nos casos de deixar cair, de quebrar e de destruir coisas. Podemos considerar obra do acaso quando uma criança em idade escolar, imediatamente antes do aniversário, estraga ou despedaça algum de seus pertences pessoais como sua mochila ou seu relógio? Sequer qualquer um que já tenha sofrido suficientes vezes o tormento de não poder encontrar algo guardado por ele mesmo, se sentirá inclinado a acreditar que existe um objetivo em extraviar coisas. Não são nada raros os casos em que as circunstâncias concomitantes do extravio indicam uma intenção de se desfazer, temporária ou permanentemente, do objeto. O que se segue talvez seja o melhor exemplo de tal situação. Um homem ainda bem jovem contou-me o seguinte caso: ‘Há alguns anos havia desentendimentos entre mim e minha esposa. Achava-a muito fria, e embora de bom grado reconhecesse suas excelentes qualidades, convivíamos sem quaisquer sentimentos ternos. Um dia. voltando de uma caminhada, deu-me um livro que havia comprado porque pensou que me interessaria. Agradeci-lhe esse gesto de “atenção”, prometi ler o livro e o pus de parte. Depois disso jamais consegui encontrá-lo. Passaram-se meses, durante os quais casualmente eu me lembrava do livro perdido e fazia vãs tentativas de encontrá-lo. Uns seis meses mais tarde minha querida mãe, que não morava conosco, caiu doente. Minha esposa deixou a casa para ir cuidar de sua sogra. A condição da paciente agravou-se e deu à minha mulher uma oportunidade de revelar o melhor lado de si mesma. Uma noite, eu regressava a casa cheio de entusiasmo e gratidão pelo que minha esposa tinha realizado. Aproximei-me de minha escrivaninha, e, sem qualquer intenção definida, embora com uma espécie de certeza de sonâmbulo, abri uma das gavetas. Ali, bem à vista, encontrei o livro que há muito eu extraviara. Com a extinção do motivo o extravio do objeto também cessou. Senhoras e senhores, poderia multiplicar indefinidamente essa coleção de exemplos; mas não o farei, aqui. De qualquer forma os senhores encontrarão uma profusão de material para estudo das parapraxias em Psychopathology of Everyday Life (publicado pela primeira vez em 1901). Todos esses exemplos conduzem ao mesmo resultado: indicam a probabilidade de as parapraxias terem um sentido, e mostram aos senhores como esse sentido é descoberto ou confirmado pelas circunstâncias concomitantes. Hoje serei mais breve, pois adotamos o objetivo limitado de usar o estudo desses fenômenos como auxílio para uma preparação à psicanálise. Há apenas dois grupos de observações nos quais preciso adentrar-me mais completamente neste ponto: as parapraxias acumuladas e combinadas e a confirmação de nossas interpretações por acontecimentos subseqüentes. As parapraxias acumuladas e combinadas são, sem dúvida, a fina flor de sua espécie. Se estivéssemos apenas interessados em provar que as parapraxias têm um sentido, nos teríamos limitado a elas logo de saída, de vez que em seu caso o sentido é inconfundível até mesmo para um pobre de espírito e se impõe ao julgamento mais crítico. Um acúmulo desses fenômenos revela uma persistência que quase nunca constitui característica de eventos casuais, a qual, porém, se ajusta muito bem a algo intencional. Finalmente, a permutabilidade recíproca entre diferentes espécies de parapraxias demonstra que coisa na parapraxia é importante e característica: não é sua forma nem o método que empregam, mas sim o propósito a que servem, possível de se atingir das mais variadas formas. Por essa razão, fornecer-lhes-ei um exemplo de esquecimento repetido. Ernest Jones [1911, 483] conta-nos que, por motivo que ele desconhece, certa vez deixou por vários dias uma carta sobre sua escrivaninha. Por fim decidiu expedi-la; a carta, porém, retornou a ele pelo Dead Letter Office pois havia se esquecido de sobrescritá-la. Depois de colocado o endereço levou-a ao correio, mas desta vez ela não tinha selo. Então, por fim, foi obrigado a admitir sua completa relutância em enviar a carta. Em outro caso um ato descuidado aparece combinado com um exemplo de extravio. Uma senhora viajou para Roma com seu cunhado, que era um artista famoso. O visitante foi recebido com grandes honras pela comunidade alemã de Roma e, entre outros presentes, deram-lhe uma antiga medalha de ouro. A senhora ficou agastada porque seu cunhado não apreciou suficientemente o valioso objeto. Quando regressava a sua casa (o lugar onde estava, em Roma, ficou ocupado por sua irmã), ao desfazer as malas ela descobriu que havia trazido a medalha consigo; como, ela não sabia. Imediatamente enviou a seu cunhado uma carta com a notícia informando que no dia seguinte devolveria para Roma o objeto que levara consigo. Porém no dia imediato a medalha foi extraviada de forma tão astuta que não pôde ser encontrada e remetida; e foi nesse ponto que a senhora começou a compreender o significado de sua distração: ela queria guardar o objeto para si mesma. Já lhes dei um exemplo de combinação de um esquecimento com um erro, o caso de alguém que se esquece de um compromisso e, numa segunda ocasião, aparece na hora errada, tendo antes decidido firmemente não esquecê-lo desta vez [ver em [1]]. Um caso exatamente semelhante foi-me referido, de sua própria experiência, por um amigo que possui interesses literários e científicos. ‘Há alguns anos’, contou-me, ‘permiti que me elegessem para a diretoria de certa sociedade literária, pois pensava que a organização algum dia pudesse ser capaz de me ajudar a ter minha peça produzida; e embora sem muito interesse, participei regularmente das reuniões que se realizavam todas as sextas-feiras. Há poucos meses deram-me a promessa de uma produção no teatro de F.; e, desde então, tenho me esquecido regularmente das reuniões da sociedade. Ao ler seu livro sobre o assunto senti-me envergonhado de minha negligência. Reprovei-me com a idéia de que distanciar-me era uma conduta indigna de minha parte, de vez que agora eu não estava precisando mais dessas pessoas, e resolvi a qualquer custo não me esquecer da próxima sexta-feira. Persisti em lembrar-me dessa resolução até quando a pus em execução e parei diante da porta da sala onde as reuniões se realizavam. Para minha surpresa, estava fechada; a reunião havia terminado. Eu havia realmente cometido um engano quanto ao dia; era sábado!’ Seria adequado acrescentar outros exemplos semelhantes. Devo prosseguir, contudo, e mostrar-lhes num relance os casos em que nossa interpretação tem de esperar pelo futuro para ser confirmada. A condição dominante nesses casos, como se verificará, é que a situação psíquica presente nos é desconhecida ou inacessível a nossas pesquisas. Nossa interpretação, por conseguinte, não é mais que uma suspeita à qual nós próprios não atribuímos muita importância. Mais tarde, no entanto, sucede algo que nos revela quão acertada fora nossa interpretação. Certa vez fui hóspede de um jovem casal recém-casado e ouvi a jovem senhora descrever, com risos, sua última experiência. No dia após o regresso da lua-de-mel, convidara sua irmã solteira para acompanhá-la às compras, como costumava fazer, enquanto seu marido ia para o trabalho. De repente, reparou em um cavalheiro no outro lado da rua, e, cutucando sua irmã, exclamou: ‘Olha, aí vai Herr L.’ Ela se havia esquecido de que esse cavalheiro era seu marido há algumas semanas. Estremeci quando ouvi a história, contudo não ousei tirar uma conclusão. O pequeno incidente só acudiu à minha memória alguns anos depois, quando o casamento havia chegado a um triste fim. às parapraxias, em relação às quais importantes problemas para a psicanálise podem ser equacionados com muito maior clareza. Talvez sejam essas as questões mais interessantes que levantamos a respeito das parapraxias e que ainda não foram respondidas. Dissemos serem as parapraxias o produto de mútua interferência entre duas intenções diferentes, das quais uma pode ser chamada de intenção perturbada e a outra, intenção perturbadora. As intenções perturbadas não ensejam outras questões, porém no que se refere às intenções perturbadoras gostaríamos de saber: em primeiro lugar, que espécie de intenções são essas capazes de perturbar outras, e, em segundo lugar, qual é a relação das intenções perturbadoras com as perturbadas? Se me permitem, mais uma vez tomarei lapsos de língua como representantes da classe inteira, e responderei à segunda questão antes de responder à primeira. Em um lapso de língua a intenção perturbadora pode, em seu conteúdo, custar relacionada à intenção perturbada, caso em que ela a contradiz, corrige ou suplementa. Ou então - caso esse mais obscuro e mais interessante - o conteúdo da intenção perturbadora pode não ter nada a ver com o conteúdo da intenção perturbada. Não teremos qualquer dificuldade em encontrar provas da relação citada em primeiro lugar, em exemplos que já conhecemos e em outros parecidos. Em quase todos os casos nos quais um lapso de língua inverte o sentido, a intenção perturbadora expressa o contrário da intenção perturbada, e a parapraxia representa um conflito entre duas tendências incompatíveis. ‘Declaro aberta a sessão, porém preferiria que já estivesse encerrada’ é o sentido do lapso de língua do presidente [ver em [1]]. Uma revista política, acusada de corrupção, se defende em um artigo cujo clímax deveria ter sido: ‘Nossos leitores serão testemunhas do fato de que sempre agimos da maneira mais desinteressada, pelo bem da comunidade.’ O editor a quem fora confiada a preparação do artigo, porém, escreveu ‘da maneira mais interesseira‘. Quer dizer, ele estava pensando: ‘Isso é o que estou obrigado a escrever; porém, tenho idéias diferentes.’ Um membro do parlamento [alemão], que insistia em que se devia dizer a verdade ao imperador ‘rückhaltlos [sem reservas]’, evidentemente ouviu uma voz interior, sobressaltada com sua ousadia e, por um lapso de língua, mudou a palavra para ‘rückgratlos [sem espinha dorsal, sem coragem]’. Nos exemplos já conhecidos dos senhores, os quais dão uma impressão de serem contrações ou abreviações, o que temos diante de nós são correções, acréscimos ou continuações, por meio dos quais uma segunda intenção se faz sentir ao lado da primeira. ‘Os fatos vieram a Vorschein [a luz] - melhor dizer de uma vez: eram Schweinereien [porcarias]; pois bem, então os fatos vieram a Vorschwein [ver em [1]].’ ‘Os que entendem disso podem ser contados nos dedos de uma mão - não, existe realmente apenas uma pessoa que entende disso: portanto, pode ser contada em um só dedo [ver em [1]].’ Ou: ‘Meu marido pode comer e beber o que quer. Mas, como sabem, eu não me submeto à sua vontade em nada, absolutamente; então: ele pode comer e beber o que eu quero [ver em [1]].’ Em todos esses casos o lapso de língua surge, pois, do conteúdo da própria intenção perturbada ou está em conexão com ela. A outra espécie de relação entre as duas intenções mutuamente interferentes parece enigmática. Se a intenção perturbadora não tem nada a ver com a intenção perturbada, de onde pode ter-se originado e por que se faz notar como uma perturbação nesse determinado ponto? A observação, que por si só é capaz de dar-nos a resposta para isso, mostra que a perturbação surge de uma seqüência de idéias que pouco antes se apossou da pessoa referida, e produz esse efeito subseqüente havendo ou não já sido expressa no discurso. Portanto, na realidade deve ser descrita como uma perseveração, embora não necessariamente como a perseveração das palavras faladas. Também nesse caso está presente um elo associativo entre as intenções perturbadora e perturbada, porém não é situado em seu conteúdo, e sim construído artificialmente, muitas vezes através de vias associativas extremamente tortuosas.Aqui está um exemplo simples desse aspecto, derivado de minha própria experiência. Certa vez encontrei nas aprazíveis Dolomitas duas senhoras vienenses vestidas em trajes de passeio. Acompanhei-as parte do caminho e conversamos sobre as delícias e, também, as atribulações de passar um feriado daquela maneira. Uma das senhoras admitiu que passar assim o dia tinha como conseqüência uma boa dose de desconforto. ‘Certamente, não é de todo agradável’, dizia, ‘quando se esteve o dia inteiro perambulando ao sol e transpirando até pela blusa e a camisa.’ Nesta frase, ela teve de vencer uma leve hesitação em determinado ponto. E prosseguiu: ‘Mas então, quando se vai “nach Hose” e se pode mudar….’ Esse lapso de língua não foi analisado, contudo espero que possam compreendê-lo facilmente. A intenção da senhora fora obviamente a de dar uma lista mais completa de suas roupas: blusa, camisa e Hose [calças]. Razões de decoro levaram-na a omitir qualquer menção às ‘Hose‘. Porém na frase seguinte, com seu conteúdo bastante independente, a palavra não dita emergiu como uma distorção da outra de som semelhante, ‘nach Hause [para casa]’. Agora, porém, podemos voltar à questão principal, que por muito tempo adiamos: que espécie de intenções são essas, que encontram expressão nessa forma incomum como perturbadoras de outras intenções? Bem, evidentemente elas são de espécies muito diferentes, entre as quais devemos procurar o fator comum. Com isso em mente, se examinarmos determinado número de exemplos, esses logo se enquadrarão em três grupos. O primeiro grupo contém aqueles casos nos quais a intenção perturbadora é do conhecimento de quem fala e, além disso, foi por este percebida antes de cometer o lapso de língua. Assim, no lapso do ‘Vorschwein‘ [ver em [1]] a pessoa que falava admitiu não somente haver feito o julgamento ‘Schweinereien’/’ sobre os fatos em questão, mas também admitiu que tivera a intenção, da qual depois recuou, de expressar seu julgamento em palavras. Um segundo grupo é formado por outros casos nos quais a intenção perturbadora é igualmente reconhecida como tal pela pessoa que fala; porém, nestes casos, a pessoa não se apercebia de que a intenção estava atuando dentro dela tão logo acabou de cometer o lapso. Desse modo, ela aceita nossa interpretação de seu lapso; ainda assim, permanece surpresa com o mesmo. Exemplos desse tipo de atitude talvez possam ser encontrados em outras espécies de parapraxias, mais facilmente do que nos lapsos de língua. Em um terceiro grupo, a interpretação da intenção perturbadora é vigorosamente rejeitada por aquele que incorreu no lapso; não apenas nega que essa intenção estava atuante nele antes de cometer o lapso, mas procura sustentar a afirmação de que tal intenção lhe é inteiramente estranha. Recordam-se do exemplo do ‘arroto’ [ver em [1] e [2]] e da vigorosa contestação que me foi apresentada pelo orador, pelo fato de eu revelar sua intenção perturbadora. Como os senhores sabem, até agora, em nossas opiniões, ainda não chegamos a um acordo a respeito desses casos. Eu não daria maior importância à contestação formulada pelo proponente do brinde e persistiria serenamente em minha interpretação, ao passo que os senhores; suponho, ainda afetados pelo protesto daqueles, levantam a questão de saber se não deveríamos desistir de interpretar parapraxias dessa espécie e considerá-las como atos puramente fisiológicos, no sentido pré-analítico. Bem posso imaginar que coisa os intimida. Minha interpretação abriga a hipótese de que, quando uma pessoa fala, podem ser expressas intenções das quais ela própria nada sabe e que eu, contudo, posso inferir a partir de provas circunstanciais. Os senhores se detêm ao arrostar essa hipótese nova e momentosa. Posso entender isso e lhes dou razão nesse ponto. No entanto, uma coisa é certa. Se os senhores querem aplicar coerentemente a compreensão das parapraxias, confirmada por tantos exemplos, terão de se decidir a aceitar a estranha hipótese que mencionei. Caso não possam fazê-lo, mais uma vez precisarão abandonar o entendimento das parapraxias, que os senhores vêm de adquirir. Consideremos, por um momento, que coisa é essa que une os três grupos, o que é aquilo que os três mecanismos dos lapsos de língua têm em comum. Isso, felizmente, é um fato inequívoco. Nos dois primeiros grupos, a intenção perturbadora é reconhecida pela pessoa que comete o lapso; ademais, no primeiro grupo essa intenção se revela imediatamente antes do lapso. Porém, em ambos os casos, ela é repelida. O orador decide não expressá-la verbalmente e, após isso, ocorre o lapso de língua: após isso, quer dizer, que a intenção, que foi repelida, é expressa em palavras, contra a vontade de quem fala, seja alterando a expressão da intenção permitida, seja confundindo-se com essa expressão, ou realmente tomando seu lugar. Este é, pois, o mecanismo do lapso de língua. Em minha opinião, posso fazer com que aquilo que acontece no terceiro grupo se harmonize completamente com o mecanismo que descrevi. Apenas tenho de supor ser o diferente grau em que a intenção é repelida, aquilo que distingue esses três grupos um dos outros. No primeiro grupo a intenção existe e se faz notar antes de o orador expressá-la; só então é rejeitada; e faz sua desforra no lapso de língua. No segundo grupo a rejeição vai além: a intenção já deixou de ser perceptível antes de a pessoa expressá-la no lapso. De modo muito estranho, isso absolutamente não impede que ela tenha sua parte na causa do lapso. Essa conduta, porém, nos facilita a explicação do que acontece no terceiro grupo. Eu me aventuraria língua que antecipa a última palavra do que se pretende dizer. Isso causa uma impressão de impaciência por ver terminada a frase, e em geral constitui evidência de uma certa antipatia contra o ato de comunicar a frase, ou contra o todo do comentário que se está fazendo. Chegamos, assim, a casos marginais em que as diferenças entre a opinião psicanalítica a respeito de lapsos de língua e a opinião fisiológica comum se fundem uma na outra. É de supor que, nestes casos, esteja presente um propósito de perturbar a intenção do discurso, porém tal propósito apenas consegue fazer notar sua presença e não aquilo a que ele próprio visa. A perturbação que ele produz se faz então segundo certas influências fonéticas ou atrações associativas; pode ser considerada resultado de a atenção ter sido desviada da intenção do discurso. Contudo, nem essa perturbação da atenção nem as tendências à associação que se tornaram atuantes, atingem a essência do processo. Este, apesar de tudo, se mantém como a indicação da existência de uma intenção que é perturbadora da intenção do discurso, embora a natureza dessa intenção perturbadora não possa ser avaliada a partir de suas conseqüências, conforme é possível fazê-lo em todos os casos de lapsos de língua mais bem definidos. Os lapsos de escrita, aos quais passaremos agora, são tão afins dos lapsos de língua, que nada de novo podemos esperar deles. Talvez possamos acrescentar algum pequeno ponto adicional. Os pequenos lapsos de escrita, extremamente comuns, contrações e antecipações de palavras que deveriam vir depois (especialmente de palavras do fim de frases) indicam, mais uma vez, um desprazer geral de escrever e impaciência por ver o trabalho terminado. Determinados produtos mais marcantes de lapsos de escrita possibilitam reconhecer a natureza e o objetivo da intenção perturbadora. Ao encontrar um lapso de escrita em uma carta, sabe-se geralmente que havia algo de diferente com seu autor, porém não se pode sempre descobrir o que se passava com ele. Um lapso de escrita passa despercebido da pessoa responsável, com a mesma freqüência com que sucede com os lapsos de língua. A seguinte observação é digna de nota. Como sabemos, há pessoas que tem o hábito de reler todas as cartas que escrevem, antes de enviá-las. Outras, não, via de regra; porém, quando excepcionalmente o fazem, sempre encontram alguns lapsos de escrita que chamam a atenção e que elas podem corrigir, então. Como se explica isso? É como se essas pessoas soubessem que haviam cometido um erro ao escrever a carta. Podemos realmente acreditar nesse fato? Um problema interessante diz respeito à importância prática dos lapsos de escrita. Os senhores certamente podem recordar o caso de um assassino, H., que encontrou os meios de obter de instituições científicas culturas de bactérias patogênicas altamente perigosas, apresentando-se como bacteriologista. Usou, então, essas culturas com a finalidade de se desfazer de suas ligações próximas através desse método moderníssimo. Ora, certa ocasião esse homem se queixou aos diretores de um desses institutos que as culturas a ele enviadas eram ineficazes; porém cometeu um lapso de escrita e, em vez de escrever ‘em meus experimentos com camundongos ou porquinhos-da-índia’, escreveu muito claramente‘em meus experimentos com homens’. Os cientistas do instituto ficaram chocados com o lapso, contudo, pelo que sei, daí não tiraram qualquer conclusão. Pois bem, o que pensam os senhores? Não deveriam os cientistas, pelo contrário, ter tomado o lapso de escrita como uma confissão e iniciado uma investigação que teria posto um fim imediato às atividades do assassino? Por ignorarem nossas opiniões sobre parapraxias, não foram responsáveis, nesse caso, por uma omissão de importância prática? Ora, penso que um lapso de escrita como esse deveras me pareceria muito suspeito; porém algo de grande importância se opõe a que seja qualificado como confissão. O assunto não é tão simples assim. O lapso certamente era uma prova circunstancial; mas não era suficiente, por si mesmo, para dar início a uma investigação. É verdade que o lapso de escrita disse que ele estava ocupado com idéias de infectar pessoas, entretanto não tornou possível decidir se essas idéias deveriam ser tomadas como clara intenção de causar dano ou como uma fantasia sem importância prática. É mesmo possível que um homem que tivesse cometido um lapso como esse, teria todas as justificativas objetivas para negar a fantasia, e a repudiaria como algo inteiramente estranho para ele. Os senhores compreenderão ainda melhor essas possibilidades quando, mais adiante, viermos a considerar a diferença entre realidade psíquica e material. Assim, esse é mais um exemplo de parapraxia que adquire importância a partir de eventos subseqüentes [ver em [1] e seg., acima.] Com os lapsos de leitura chegamos a uma situação psíquica que difere sensivelmente daquela encontrada em lapsos de língua ou em lapsos de escrita. Aqui, uma das duas intenções em mútua competição é substituída por uma estimulação sensorial e, talvez por isso, resiste menos. O que a pessoa vai ler não é um derivado de sua própria vida mental, como algo que se propõe escrever. Em grande número de casos, portanto, um lapso de leitura consiste em uma substituição completa. Substitui-se por outra a palavra que deve ser lida, sem haver necessariamente qualquer conexão de conteúdo entre o texto e o produto do lapso de leitura, o qual depende, via de regra, de semelhança verbal. O melhor exemplo desse grupo é o de Lichtenberg, ‘Agamemnon‘ por ‘angenommen‘ [ver em [1], acima]. Se quisermos descobrir a intenção perturbadora que produziu o lapso de leitura, devemos deixar inteiramente de lado o texto que foi lido erroneamente, e podemos começar a investigação analítica com duas perguntas: qual é a primeira associação ao produto do lapso de leitura? e em que situação ocorreu o lapso de leitura? Às vezes o conhecimento dessa situação é, por si só, suficiente para explicar o lapso de leitura. Por exemplo, um homem, sob a pressão de uma necessidade urgente, vagava por uma cidade estranha quando viu a palavra ‘Closet-House‘ numa grande tabuleta, no primeiro andar de um prédio. Mal teve tempo suficiente para se surpreender com o fato de a tabuleta estar colocada tão alta, quando descobriu que, estritamente falando, o que devia ter lido era ‘Corset-House‘. Em outros casos, um lapso de leitura, precisamente do tipo que é muito independente do conteúdo do texto, requer uma análise detalhada, impossível de se efetuar sem a prática da técnica de psicanálise e sem seu apoio. Como regra, entretanto, não é tão árduo encontrar a explicação para um lapso de leitura: a palavra substituída imediatamente revela, como no exemplo Agamemnon, o círculo de idéias do qual surgiu a perturbação. Na atual época de guerra, por exemplo, é coisa muito comum os nomes de cidades e de generais, e de termos militares, que estão constantemente zumbindo à nossa volta, serem lidos onde quer que nossos olhos encontrem palavras semelhantes. Tudo aquilo que nos interessa e nos preocupa se põe no lugar do que é estranho e ainda destituído de interesse. Imagens residuais de pensamentos [anteriores] perturbam novas percepções. Com os lapsos de leitura, também, não faltam os casos de outra espécie, nos quais o texto daquilo que se lê desperta por si mesmo a intenção perturbadora, a qual de imediato o transforma em seu contrário. O que devíamos ler era alguma coisa de indesejado, e a análise nos convencerá de que um intenso desejo de rejeitar o que estávamos lendo deve ter sido responsável por sua alteração. Nos casos mais freqüentes de lapsos de leitura, que mencionamos no início, inexistiam os dois fatores aos quais consignamos um importante papel no mecanismo das parapraxias: o conflito entre dois propósitos, e a repulsa a um deles, que faz sua represália produzindo a parapraxia. Não que algo em contrário ocorra no lapso de leitura. A proeminência da idéia que leva ao lapso de leitura é, contudo, muito mais perceptível do que a repulsa que essa idéia pode ter percebido previamente. São esses dois fatores os que encontramos com mais evidência nas diferentes situações em que ocorrem parapraxias de esquecimento. O esquecimento de intenções é bem livre de ambigüidades, como já vimos [ver em [1]], sua interpretação não é objeto de controvérsias, nem mesmo por parte de leigos. O propósito que perturba a intenção é, em todos os casos, uma contra-intenção, uma relutância; e tudo o que nos resta saber a seu respeito é por que ele não se expressou em alguma forma diversa e menos disfarçada. No entanto, a presença dessa contravontade é inquestionável. Vez e outra também conseguimos entrever algo dos motivos que compelem essa contravontade a ocultar-se; agindo subrepticiamente por intermédio da parapraxia, ela sempre atinge seu objetivo, ao passo que seria seguramente repudiada se emergisse como franca oposição. Se alguma importante modificação na situação psíquica se realiza entre a formação da intenção e sua execução, em conseqüência do que não mais existe a cogitação de executar a intenção, então o esquecimento da intenção se exclui da categoria das parapraxias. Já não parece mais estranho havê-la esquecido e nos apercebemos de que teria sido desnecessário lembrarmo-nos dessa intenção; depois disso ela se extingue em forma permanente ou temporária. O esquecimento de uma intenção somente pode ser denominado parapraxia quando não pudermos acreditar que a intenção tenha sido interrompida desse último modo. Os casos de esquecimento de uma intenção geralmente são tão uniformes e tão evidentes que, por essa mesma razão não interessam à nossa investigação. Assim mesmo, existem dois pontos em que algo de novo podemos aprender a partir de um estudo dessas parapraxias O esquecimento de uma intenção - isto é a omissão de executá-la - revela, como dissemos, uma contravontade que lhe é hostil. Sem dúvida, esse fato procede; nossas porém, também porque nesse caso o nome pertence a outro círculo de associações com as quais a pessoa está mais intimamente relacionada. O nome está, digamos, ali ancorado e se mantém fora de contato com outras associações que foram momentaneamente ativadas. Se os senhores se recordarem dos truques mnemotécnicos verificarão, com certa surpresa, que as mesmas cadeias associativas, deliberadamente estabelecidas para evitar que nomes sejam esquecidos, também podem nos levar a esquecê-los. O mais notável exemplo desse fato é o que se refere aos nomes próprios de pessoas, os quais naturalmente possuem importância psíquica bastante diferente para diferentes pessoas. Para ilustrá-lo, tomemos um primeiro nome, como Teodoro. Para alguns dos senhores ele não terá qualquer significação especial; para outro, será o nome de seu pai, do irmão ou de um amigo, ou seu próprio nome. Assim, a experiência analítica lhes mostrará que a primeira dessas pessoas não corre nenhum risco de se esquecer de que algum estranho usa esse nome, ao passo que as outras terão constantemente a tendência de negar a estranhos um nome que lhes parece reservado a ligações íntimas. Ora, se os senhores considerarem que essa inibição associativa pode coincidir com a atuação do princípio de desprazer e, ademais, com um mecanismo indireto, estarão em condições de formar uma idéia adequada das complexidades existentes na causação do esquecimento temporário de um nome. Uma análise apropriada irá, porém, desemaranhar-lhes uma dessas meadas. O esquecimento de impressões e de experiências demonstra, de forma muito mais clara e exclusiva do que o esquecimento de nomes, a atuação da intenção de manter coisas desagradáveis fora da memória. Naturalmente nem toda a área desse tipo de esquecimento se situa dentro da categoria das parapraxias, mas apenas casos tais como aqueles que, medidos pelo padrão de nossa experiência habitual, nos parecem admiráveis e inexplicáveis: por exemplo, quando o esquecimento atinge impressões que são muito recentes ou importantes, ou quando a lembrança perdida abre uma brecha naquilo que é, por seu lado, uma bem- memorizada cadeia de acontecimentos. Por que e de que modo somos capazes de esquecer em geral, e entre outras coisas esquecer experiências que certamente deixaram em nós uma impressão mais profunda, tal como os acontecimentos dos anos mais remotos de nossa infância - isso constitui outro problema no qual querer evitar impulsos desagradáveis desempenha determinado papel, e, contudo, está longe de constituir a explicação completa. É fato inequívoco que as impressões desagradáveis são facilmente esquecidas. Diversos psicólogos o observaram, e o grande Darwin se impressionava tanto com isso, que tornou ‘regra de ouro’ anotar com cuidado especial quaisquer observações que parecessem desfavoráveis à sua teoria, de vez que se havia convencido de que precisamente elas não permaneceriam em sua memória. Uma pessoa que pela primeira vez ouve falar nesse princípio do afastamento de lembranças desagradáveis por meio do esquecimento, raramente deixa de objetar que, pelo contrário, em sua experiência as coisas aflitivas são especialmente difíceis de esquecer e insistem em retornar, contra sua vontade, a fim de atormentá-la: lembranças, por exemplo, de insultos e humilhações. Isso também é um fato verídico, contudo a objeção não procede. É importante e oportuno começar a levar em conta o fato de que a vida mental é a arena e o campo de batalha de intenções que se opõem reciprocamente ou, para dizê-lo de modo não- dinâmico, que se constitui de contradições e de pares de contrários. A prova da existência de determinado propósito não é argumento contra a existência de um propósito oposto; há lugar para ambos. É apenas uma questão de saber como se colocam esses contrários, um em relação ao outro, e que efeitos são produzidos por um e por outro. Perda e extravio são de particular interesse para nós devido aos vários significados que podem ter - isto é, devido à multiplicidade das intenções que podem se servir dessas parapraxias. Todos os casos têm em comum o fato de ter existido um desejo de perder algo; diferem quanto à origem e quanto ao objetivo desse desejo. Perdemos uma coisa quando está gasta, quando pretendemos substituí-la por outra melhor, quando não gostamos mais dela, quando ela procedeu de alguém com quem não estamos nos relacionando bem, ou quando a adquirimos em circunstâncias que não desejamos mais rememorar. [ver em [1] e [2].] Deixar cair, danificar ou quebrar um objeto podem servir à mesma finalidade. Na esfera da vida social, segundo se diz, a experiência demonstrou que as crianças indesejadas e ilegítimas são muito mais frágeis do que aquelas concebidas legitimamente. Não é necessário atingir a crua técnica das criadeiras profissionais de crianças; para chegar a tal resultado, determinada dose de negligência no trato com as crianças deve ser suficiente. A preservação de coisas pode estar sujeita às mesmas influências que o cuidado com as crianças. No entanto, as coisas podem ser condenadas a serem perdidas sem que seu valor tenha sofrido qualquer diminuição - isto é, quando há uma intenção de sacrificar algo ao Destino, a fim de se proteger de uma outra perda que se teme. A análise nos revela que entre nós ainda é muito comum exorcizar o Destino dessa maneira; e, assim, nossa perda muitas vezes é um sacrifício voluntário. Da mesma forma, a perda também pode servir à intenção de desafio ou autopunição. Para resumir, são incontáveis as mais remotas razões para a intenção de se desfazer de uma coisa por meio de sua perda. Os atos descuidados, assim como outros erros, muitas vezes são usados para satisfazer desejos que uma pessoa deveria negar existirem em si própria. Neles a intenção se dissimula em um auspicioso acidente. Por exemplo, como aconteceu a um de meus amigos, um homem pode ser obrigado, obviamente contra sua vontade, a viajar de trem para visitar alguém perto da cidade em que vive, e em uma estação onde deve fazer baldeação então pode, por engano, embarcar num trem que o leva de volta ao local de onde veio. Ou alguém, numa viagem, pode estar desejoso de fazer uma parada em uma estação intermediária, porém estar impedido de fazê-lo devido a outras obrigações, podendo, assim, negligenciar ou perder uma conexão de modo que, em última análise, é obrigado a interromper sua viagem da maneira como queria. Ou o que sucedeu a um de meus pacientes: eu lhe havia proibido telefonar à moça de quem estava apaixonado, e quando quis telefonar para mim, pediu o número errado ‘por engano’ ou ‘enquanto estava pensando em alguma outra coisa’, e de repente se viu com o número do telefone da moça. Um bom exemplo de descuido cabal com repercussão prática é proporcionado pela observação feita por um engenheiro em seu relato dos fatos que antecederam um caso de danos materiais: ‘Há algum tempo atrás eu trabalhava com diversos estudantes no laboratório da escola técnica, numa série de complexas experiências sobre elasticidade, um trabalho que tínhamos assumido voluntariamente e, contudo, começava a exigir mais tempo de que prevíramos. Um dia, quando retornava ao laboratório com meu amigo F., este comentou como o aborrecia perder tanto tempo justamente naquele dia, quando tinha tantas outras coisas para fazer em casa. Não pude deixar de concordar com ele e, com algum gracejo, referindo-me a um acidente na semana anterior, acrescentei: “Esperemos que a máquina falhe novamente, pois assim poderemos parar com o trabalho e ir para casa cedo.” ‘Ao distribuir o trabalho, sucedeu que a F. coube a regulagem da válvula da prensa; isto é, estava incumbido de abrir cuidadosamente a válvula para deixar o fluido sob pressão sair lentamente do acumulador para o cilindro da prensa hidráulica. O homem que conduzia a experiência colocou-se junto ao manômetro e, quando se atingiu a pressão correta, ordenou em voz alta: “Pare!” À palavra de comando, F. agarrou a válvula e torceu-a com toda a força - para a esquerda! (Todas as válvulas, sem exceção, fecham-se girando para a direita.) Isso fez com que a pressão total do acumulador passasse subitamente para a prensa, um esforço para o qual não estavam destinados os canos de ligação, de forma que um desses canos imediatamente explodiu - um acidente bastante inócuo para a máquina, porém suficiente para nos obrigar a suspender o trabalho por esse dia e irmos para casa. ‘O surpreendente, aliás, é que, quando estávamos discutindo o caso algum tempo depois, meu amigo F. não tinha a mínima recordação de meu comentário, que eu recordava fielmente.’ Isso pode levar os senhores a suspeitar de que não é apenas um inocente acaso que transforma as mãos de nossas empregadas domésticas em perigosos inimigos de nossos objetos de casa. E os senhores também podem se perguntar se é obra do acaso quando as pessoas se machucam e arriscam sua própria segurança. Essas são noções cuja validade os senhores, surgindo a ocasião, podem se dedicar a comprovar analisando suas próprias observações. Senhoras e senhores, isso está longe de ser tudo quanto se poderia dizer a respeito de parapraxias. Muita coisa resta a examinar e discutir. Fico, contudo, satisfeito se nossa discussão do assunto, até aqui, de certa forma agitou suas opiniões anteriores e os deixou um tanto mais preparados para aceitar outras, novas. Contento-me, de resto, com deixá-los defrontando-se com uma situação não esclarecida. Não podemos estabelecer nossas doutrinas a partir de um estudo das parapraxias, e não estamos obrigados a extrair nossas provas a partir apenas desse material. O grande valor das parapraxias para os objetivos que almejamos, consiste no fato de e é esquecida, salvo pequenos fragmentos. E de que modo a interpretação de material desse tipo pode servir como base de uma psicologia científica ou como método de tratar pacientes? Um excesso de críticas pode despertar nossas suspeitas. Essas objeções aos sonhos como objeto de pesquisa obviamente foram longe demais. Já tratamos da questão da não- importância em relação às parapraxias [ver [1] e seg.]. Dissemos que as grandes coisas podem ser reveladas através de pequenos indícios. No que concerne à sua indefinição - esta é uma característica dos sonhos, como outra qualquer: não podemos estabelecer para as coisas quais as características que devem ter. Aliás, também existem sonhos claros e distintos. Ademais, há outros assuntos de pesquisa psiquiátrica que padecem da mesma característica de indefinição - em muitos casos, por exemplo, as obsessões, e estas têm, em última análise, sido abordadas por psiquiatras respeitáveis e conceituados. Recordo-me do último desses casos que encontrei em minha atividade médica. Era uma paciente que se apresentou com estas palavras: ‘Tenho uma espécie de sentimento como se eu tivesse ferido ou desejasse ferir uma criatura viva - uma criança? - não, mais como se fosse um cachorro -, como se a tivesse jogado de uma ponte, ou alguma outra coisa.’ Podemos conseguir superar a deficiência da incerteza ao relembrar sonhos, se decidimos que deve ser considerado como sonho seu tudo aquilo que nos relata a pessoa que sonhou, sem levar em conta o que possa ter esquecido ou tenha alterado ao recordá-lo. E, finalmente, nem mesmo se pode continuar afirmando tão indiscriminadamente que os sonhos são coisas sem importância. Sabemos, por nossa própria experiência, que o estado de ânimo em que uma pessoa acorda de um sonho pode perdurar o dia inteiro; os médicos têm observado casos nos quais uma doença mental começou com um sonho e nos quais persistiu um delírio originário de um sonho; têm sido relatados casos de personagens históricos que, em resposta a sonhos, se aventuraram a importantes empreendimentos. Podemos, pois, indagar qual deve ser a verdadeira origem do desprezo no qual são mantidos os sonhos nos círculos científicos. Acredito que se trata de uma reação contra a supervalorização dos sonhos em épocas antigas. A reconstrução do passado, como sabemos, é tarefa nada fácil, contudo podemos supor com certeza (se é que posso expressá-lo como brincadeira) que há três mil anos ou mais nossos ancestrais já tinham sonhos como os nossos. Até onde sabemos, todos os povos da Antigüidade atribuíram grande importância aos sonhos e pensavam que estes podiam ser usados para fins práticos. Deduziram a partir deles sinais para ler o futuro e neles procuravam os augúrios. Para os gregos e para outros povos orientais pode ter havido época em que as campanhas militares sem interpretadores de sonhos pareciam tão impossíveis, como nos dias atuais pareceria impossível uma campanha sem reconhecimento aéreo. Quando Alexandre Magno iniciou suas conquistas, seu séquito incluía os mais famosos interpretadores de sonhos. A cidade de Tiro, que naquele tempo ainda se erguia sobre uma ilha, ofereceu ao rei tão dura resistência que ele pensou na possibilidade de levantar o cerco. Então, uma noite, ele teve um sonho em que um sábio parecia dançar em triunfo; e quando o relatou a seus interpretadores de sonhos, estes o informaram de que o sonho predizia sua conquista da cidade. Ordenou um assalto e capturou Tiro. Entre os etruscos e os romanos estavam em uso outros métodos de prever o futuro; porém, durante todo o período helênico-romano, a interpretação de sonhos era praticada e altamente conceituada. Da literatura que trata do assunto, o principal trabalho pelo menos sobreviveu: o livro de Artemidoro de Daldis, que provavelmente viveu durante o período do imperador Adriano. Não sei dizer-lhes como aconteceu que, depois disso, a arte de interpretar sonhos sofreu um declínio e os sonhos caíram em descrédito. A difusão da instrução não pode ter tido muita coisa a ver com isso, porquanto muitas coisas mais absurdas do que a interpretação de sonhos da Antigüidade foram ciosamente preservadas nas trevas da Idade Média. Resta o fato de que o interesse pelos sonhos caiu gradualmente ao nível de superstição e pôde sobreviver apenas entre as classes não instruídas. O abuso final da interpretação de sonhos foi atingido em nossos dias com tentativas de descobrir, a partir dos sonhos, os números destinados a serem premiados no jogo do loto. Por outro lado, a ciência exata de hoje repetidamente se ocupou de sonhos, mas sempre com o único objetivo de aplicar a eles suas teorias fisiológicas. Os médicos, naturalmente, consideraram os sonhos como atos não- psíquicos, como a expressão, na vida mental, de estímulos somáticos. Binz (1878, [35]) enunciou que os sonhos são ‘processos somáticos, que em todos os casos são inúteis e, em muitos casos, positivamente patológicos, em relação aos quais a alma do universo e a imortalidade são tão excelsamente superiores como o céu azul sobre um areal plano infestado de ervas’. Maury [1878, 50] compara os sonhos aos desordenados movimentos da dança de São Vito, em contraste com os movimentos coordenados de um homem sadio. Consoante velha analogia, os conteúdos de um sonho são semelhantes aos sons produzidos quando ‘os dez dedos de um homem que nada sabe de música vagueiam sobre as teclas de um piano’ [Strümpell, 1877, 84]. Interpretar significa achar um sentido oculto em algo; naturalmente, não haverá como fazê-lo, se adotarmos essa última opinião sobre a função dos sonhos. Reparem na descrição dos sonhos feita por Wundt [1874], Jodl [1896] e outros filósofos mais recentes. Eles se contentam com enumerar os aspectos em que a vida onírica difere do pensamento desperto, sempre num sentido que deprecia os sonhos - enfatizando o fato de que as associações se rompem, que a faculdade de criticar deixa de funcionar, que todo o conhecimento é eliminado, bem como outros sinais de diminuição do funcionamento. A única contribuição de valor aos conhecimentos sobre sonhos, que temos a agradecer às ciências exatas, refere-se ao efeito produzido no conteúdo dos sonhos pelo impacto de estímulos somáticos durante o sono. Um autor norueguês, recentemente falecido, J. Mourly Vold, publicou dois alentados volumes de pesquisas experimentais sobre sonhos (edição alemã, 1910 e 1912), que se dedicam quase que exclusivamente às conseqüências das alterações na postura dos membros. Foram-nos recomendados como modelos de pesquisa exata sobre sonhos. Os senhores podem imaginar o que diria a ciência exata, se soubesse que desejamos fazer uma tentativa de descobrir o sentido dos sonhos? Talvez ela já o tenha dito. Porém não nos deixaremos atemorizar com isso. Se foi possível às parapraxias ter um sentido, os sonhos podem ter algum, também; e, em muitos e muitos casos, as parapraxias têm um sentido que à ciência exata passou despercebido. Assim, abracemos o preconceito dos antigos e do povo e sigamos as pegadas dos interpretadores de sonhos da Antigüidade. Devemos começar por encontrar nossos propósitos na tarefa à nossa frente e fazer um reconhecimento geral do campo dos sonhos. Então, o que é um sonho? É difícil responder em uma só frase. Porém não tentaremos uma definição, quando só basta que se chame a atenção para algo que é conhecido de todos. Devemos, entretanto, pôr em evidência o aspecto essencial dos sonhos. Este, onde é que se pode encontrá-lo, porém? São tão grandes as diferenças dentro do âmbito em que se inscreve nosso assunto - diferenças em todas as direções. O aspecto essencial provavelmente será algo que podemos apontar como sendo comum a todos os sonhos. A primeira coisa que é comum a todos os sonhos pareceria ser, naturalmente, o fato de que estamos dormindo durante os sonhos. O sonhar é, evidentemente, vida mental durante o sono - algo que tem certas semelhanças com a vida mental desperta, mas que, por outro lado, se distingue dela por grandes diferenças. Essa era, há muito tempo, a definição de Aristóteles. Talvez existam ainda conexões mais estreitas entre sonhos e sono. Podemos ser acordados por um sonho; muito freqüentemente temos um sonho quando acordamos espontaneamente ou quando somos tirados, à força, do sono. Assim, os sonhos parecem ser um estado intermediário entre o sono e a vigília. De modo que nossa atenção se volta para o sono. Bem, então, o que é o sono? Esse é um problema fisiológico sobre o qual ainda existe muita controvérsia. Quanto a esse respeito não podemos chegar a qualquer conclusão; penso, porém, que devemos tentar descrever as características psicológicas do sono. O sono é um estado no qual não desejo saber de nada do mundo externo, um estado no qual retirei do mundo externo meu interesse. Ponho- me a dormir retraindo-me do mundo externo e mantendo afastados de mim seus estímulos. Também vou dormir quando estou fatigado dele. De modo que, quando vou dormir, digo ao mundo externo: ‘Deixe-me em paz; quero dormir.’ As crianças, ao contrário, dizem: ‘Eu não vou dormir agora; não estou cansado e quero ter mais algumas experiências.’ A finalidade biológica do sono parece ser, portanto, a recuperação, e sua característica psicológica a suspensão do interesse pelo mundo. Nossa relação com o mundo, ao qual viemos tão a contragosto, parece incluir também nossa impossibilidade de tolerá-lo ininterruptamente. Assim, de tempos em tempos nos retiramos para o estado de pré-mundo, para a existência dentro do útero. A todo custo conseguimos para nós mesmos condições muito parecidas com aquelas que então possuímos: calor, escuridão e ausência de estímulos. Alguns de nós se embrulham formando densa bola e, para dormir, assumem uma postura muito parecida com a que ocupavam no útero. Parece que o mundo não possui completamente sequer mesmo aqueles dentre nós que são adultos, mas apenas até os dois terços; um terço de nós ainda é como se não fora nascido. Poderíamos tentar explicar essas muitas variações dos sonhos supondo que correspondem a diferentes fases intermediárias entre o sono e a vigília, graus diferentes de sono incompleto. Está bem, mas se assim fosse, o valor, o conteúdo e a clareza de um produto onírico - e também a consciência de se tratar de um sonho - teriam de crescer naqueles sonhos em que a mente estava próxima do despertar; e não seria possível uma parte clara e racional de sonho ser seguida imediatamente de outra que é obscura e não tem sentido, e esta, por sua vez, ser acompanhada de outra parte de boa qualidade. A mente, por certo, não poderia modificar a profundidade de seu sono assim tão rapidamente. Logo, essa explicação não nos auxilia; não há como sair da dificuldade. Por agora, deixaremos de lado o ‘sentido’ dos sonhos e tentaremos chegar a uma melhor compreensão dos mesmos a partir daquilo que verificamos terem eles em comum. Inferimos da relação entre os sonhos e o estado de sono que os sonhos são a reação a um estímulo que perturba o sono. Aprendemos que esse é também o único ponto no qual a psicologia experimental exata pode vir em nosso auxílio: fornece-nos provas de que os estímulos que incidem durante o sono fazem seu aparecimento nos sonhos. Muitas investigações desse tipo foram realizadas, sendo as mais recentes as de Mourly Vold, que já mencionei [ver em [1] e [2]]; e cada um de nós, sem dúvida, tem estado em condições de confirmar estes achados, a partir de observações pessoais. Selecionarei algumas das primeiras experiências. Maury [1878] realizou algumas experiências consigo próprio. Foi-lhe dado para cheirar um pouco de água de colônia, durante o sono. Sonhou que estava no Cairo, na loja de Johann Maria Farina, e houve mais algumas aventuras absurdas. Em outra ocasião, deram-lhe um leve beliscão no pescoço; sonhou que lhe era aplicado um cataplasma de mostarda e sonhou com um médico que o havia tratado quando era criança. Ou ainda, pingaram uma gota d’água em sua testa; estava na Itália, transpirava violentamente e bebia vinho branco de Orvieto. O notável nesses sonhos produzidos experimentalmente será talvez mais visível ainda em outra série de sonhos produzidos por estímulos. São três sonhos relatados por um observador inteligente, Hildebrandt [1875], todos eles reações à campainha de um despertador: ‘Sonhei, então, que certa manhã de primavera eu saía a passeio e vagava pelos verdes campos até chegar a uma aldeia próxima, onde vi os aldeões, em suas melhores roupas, com seus livros de cânticos debaixo do braço, reunindo-se na igreja. Evidente! Era domingo e o culto do início da manhã logo estaria começando. Decidi assistir ao culto, mas, antes, eu estava um tanto acalorado de caminhar, entrei no cemitério que circundava a igreja, para refrescar. Enquanto lia algumas das lápides dos túmulos, ouvi o sineiro subindo a torre da igreja e, lá no alto, via agora o pequeno sino da aldeia, que logo daria o sinal para o início das devoções. Por um momento eu o vi pendente ali, sem movimento, depois começou a balançar, e subitamente seu repicar começou a soar claro e penetrante - tão claro e penetrante que pôs fim ao meu sono. Porém, o que estava soando era o despertador. ‘Aqui está outro exemplo. Era um dia claro de inverno e as ruas estavam cobertas de espessa camada de neve. Eu tinha decidido comparecer a uma festa, em viagem de trenó; contudo, tive de esperar por longo tempo até virem me dizer que o trenó estava à porta. E então se seguiram os preparativos para embarcar - a manta de pele estendida, o abrigo para os pés já colocado - e, por fim, estava sentado em meu lugar. Ainda assim, o momento da partida foi retardado, até que um puxão nas rédeas deu o sinal aos cavalos. De imediato partiram e, em sacudidas violentas, os cincerros do trenó romperam seu tilintar conhecido - deveras com tal violência que, num momento, a teia do meu sonho se havia rompido. E, uma vez mais, era apenas o som estridente do despertador. ‘E agora, um terceiro exemplo. Via uma empregada doméstica, com várias dúzias de pratos empilhados uns sobre os outros, andando pelo corredor que dava para a sala de jantar. A pilha de louça em seus braços me pareceu estar prestes a perder o equilíbrio. “Cuidado”, exclamei eu, “senão você vai deixar cair tudo.” Seguiu-se devidamente a inevitável resposta: ela estava acostumada àquela espécie de tarefa, e assim por diante. E, entrementes, meu olhar ansioso seguia a figura que avançava. Então - justamente como eu esperava - ela tropeçou na soleira e a frágil louça escapuliu e, numa verdadeira sinfonia de ruídos, espatifou-se em mil pedaços no chão. Mas, o barulho prosseguiu sem cessar, e logo não pareceu mais o ruído característico do espatifar de louças, transformando-se no som de uma campainha - e este som, como o meu eu (self) desperto agora percebia, era apenas o despertador desempenhando sua tarefa.’ Esses são sonhos muito bonitos, inteiramente plenos de sentido e pelo menos não tão incoerentes como costumam ser os sonhos. Não estou fazendo objeção a eles, a esse respeito. O que eles têm em comum é a situação, em cada caso, terminar com um barulho que, quando o sonhador acorda, é reconhecido como sendo causado pelo despertador. Assim, vemos aqui como se produz um sonho; aprendemos, porém, algo mais que isso. O sonho não reconhece o despertador - e sequer este aparece no sonho - mas substitui o ruído do despertador por outro; interpreta o estímulo que está pondo fim ao sono, contudo o interpreta de forma diferente em cada uma das vezes. Por que faz isso? Não há resposta; parece questão de capricho. Compreender o sonho significaria poder dizer por que esse determinado ruído, e não outro, foi escolhido para interpretar o estímulo proveniente do despertador. Objeção análoga podemos fazer às experiências de Maury: podemos verificar bem claramente que o estímulo incidente aparece no sonho: porém, por que teve de tomar essa forma particular, isso não nos é dito, e não parece em absoluto ser devido à natureza do estímulo que perturbou o sono. Nas experiências de Maury geralmente aparece também uma série de outros materiais dos sonhos, que se juntam ao efeito direto do estímulo - por exemplo, as aventuras absurdas no sonho da água de colônia -, que não podem encontrar explicação. E agora considerem que os sonhos do despertar oferecem a melhor oportunidade de estabelecer a influência dos estímulos externos perturbadores do sono. Em muitos outros casos será mais difícil. Nem todos os sonhos nos levam a acordar, e se na manhã seguinte nos lembramos de um sonho da noite anterior, como iremos descobrir um estímulo perturbador que talvez possa ter-nos causado um impacto durante a noite? Certa vez consegui identificar um estímulo sonoro desse tipo, de modo retrospectivo, naturalmente, porém, apenas devido a circunstâncias especiais. Acordei, certa manhã, em uma localidade das montanhas do Tirol, sabendo que havia tido um sonho em que o papa havia morrido. Não pude explicar a mim mesmo o sonho; entretanto, mais tarde minha esposa me perguntou se eu tinha ouvido o tremendo barulho do repicar dos sinos, pela manhã, que irrompera de todas as igrejas e capelas. Não, eu nada tinha ouvido, meu sono é mais resistente que o dela; mas, graças à sua informação, eu compreendi meu sonho. Quantas vezes estímulos dessa espécie podem provocar sonhos em uma pessoa que dorme, sem que esta venha a saber deles depois? Talvez muito freqüentemente, mas talvez não. Se os estímulos não podem mais ser identificados, não podemos nos convencer de sua existência. E, em todo caso, mudamos nossa opinião com relação à importância dos estímulos externos que perturbam o sono, pois aprendemos que podem explicar apenas uma pequena parte do sonho e não o total da reação onírica. Não há necessidade para, em virtude disso, abandonar de todo essa teoria. Ademais, ela pode ser ampliada. Obviamente não importa saber o que é que perturba o sono ou leva a mente a sonhar. Como não pode, invariavelmente, tratar-se de estímulo sensorial vindo de fora, pode haver, em substituição, o que se chama de estímulo somático, que surge dos órgãos internos. Essa é uma idéia muito plausível e concorda com a muito popular opinião sobre a origem dos sonhos: ‘os sonhos vêm da indigestão’, dizem as pessoas freqüentemente. Infelizmente, aqui também devemos suspeitar muitas vezes que existem casos em que um estímulo somático atuado sobre uma pessoa em sono, durante a noite, não mais se manifesta após o despertar e, portanto, não se pode provar que tenha ocorrido. Não desprezaremos, porém, o sem números de claras experiências que apóiam a origem dos sonhos em estímulos somáticos. Em geral, não pode haver dúvida de que as condições dos órgãos internos possam influenciar os sonhos. A relação entre o conteúdo de alguns sonhos e uma bexiga muito cheia ou um estado de excitação dos órgãos genitais é tão simples que não pode causar mal-entendidos. Esses casos evidentes levam a outros, nos quais o conteúdo dos sonhos dá origem à justificada suspeita de que houve um impacto causado por estímulos somáticos, porque no conteúdo existe algo que pode ser visto como uma superelaboração atuante, uma representação ou interpretação de tais estímulos. Scherner (1861), que realizou pesquisas com sonhos, argumentava com vigor especial a favor da derivação dos sonhos a partir de estímulos orgânicos e apresentava alguns bons exemplos pertinentes. Por exemplo, em um sonho ele viu ‘duas fileiras de rapazes elegantes, com lindos cabelos e pele delicada, enfrentando-se em formação de combate, fazendo uma investida, atacando uma à outra e, após, retirando-se e voltando novamente à posição anterior, em seguida começando toda a manobra mais uma vez’. Sua interpretação dessas duas fileiras de rapazes como sendo dentes é plausível em si mesma e fenômenos muito generalizados, observáveis mais uma vez tanto nas pessoas sadias como nas doentes, e são facilmente acessíveis ao estudo em nossa própria mente. A coisa mais notável a respeito dessas estruturas imaginárias é que lhes foi dado o nome de ‘devaneios’, de vez que nelas não há qualquer traço dos dois elementos comuns aos sonhos [ver em [1] e segs.]. Sua relação com o sono já é negada em seu próprio nome; e no concernente à segunda coisa comum aos sonhos, nelas não experimentamos nem alucinamos algo, mas imaginamos alguma coisa, sabemos que estamos tendo uma fantasia, não vemos, mas pensamos. Esses devaneios surgem no período pré-púbere, freqüentemente ainda na parte final da infância; persistem até a maturidade ser alcançada e, então, ou são abandonados ou mantidos até o fim da vida. O conteúdo dessas fantasias é dominado por um motivo muito inteligível. São cenas e eventos em que as necessidades egoísticas de ambição e poder da pessoa, ou seus desejos eróticos, encontram satisfação. Em homens jovens as fantasias ambiciosas são as mais proeminentes; nas mulheres, cuja ambição se dirige ao êxito no amor, as fantasias é que o são. Também nos homens, contudo, as necessidades eróticas estão muito freqüentemente presentes nos bastidores: todos os seus feitos heróicos e seus êxitos parecem ter como único alvo a admiração e o favor das mulheres. Em outros aspectos esses devaneios são de tipos muito diferentes e passam por vicissitudes modificadoras. Todos eles, cada qual por sua vez, ou são abandonados após pouco tempo e substituídos por outros novos, ou mantidos, tecidos em longas histórias e adaptados às modificações que surgem nas circunstâncias da vida da pessoa. Eles se acomodam aos tempos, por assim dizer, e recebem uma ‘marca da época’ que testemunha a influência da nova situação. São a matéria-prima da produção poética, pois o escritor criativo usa seus devaneios com determinadas remodelações, disfarces e omissões, para construir as situações que introduz em seus contos, novelas ou peças. O herói dos devaneios é sempre a própria pessoa, seja diretamente, seja por uma óbvia identificação com alguma outra pessoa. Talvez os devaneios atribuam seu nome ao fato de terem a mesma relação com a realidade - para indicar que seu conteúdo é para ser considerado não menos irreal do que o dos sonhos. No entanto, talvez partilhem esse nome por causa de alguma característica psíquica dos sonhos que ainda nos é desconhecida, alguma característica que estamos investigando. Também é possível que estejamos laborando em considerável erro ao tentarmos fazer uso dessa semelhança de nome como algo significativo. Somente mais tarde será possível elucidar esse aspecto. CONFERÊNCIA VI - PREMISSAS E TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO SENHORAS E SENHORES: Aquilo de que necessitamos, então, é um novo caminho, um método que nos possibilitará estabelecer um início na investigação dos sonhos. Apresento-lhes uma hipótese razoável. Consideremos como premissa, desse ponto em diante, que os sonhos não são fenômenos somáticos mas psíquicos. Os senhores sabem o que isso significa; contudo, o que justifica que façamos essa hipótese? Nada: mas também nada há a impedir-nos de fazê-lo. Esta é a situação: se os sonhos são fenômenos somáticos, não têm interesse para nós, podem apenas nos interessar na hipótese de serem fenômenos mentais. Trabalharemos com a hipótese de que realmente o são, para ver o que daí se origina. O resultado de nosso trabalho decidirá se devemos manter essa hipótese e se podemos tratá-la, por sua vez, como dado comprovado. Entretanto, a que realmente queremos chegar? Que objetivo nosso trabalho está buscando? Desejamos algo que é buscado em todo trabalho científico - compreender os fenômenos, estabelecer uma correlação entre os mesmos e, como fim último, aumentar, se possível, nosso poder sobre esses fenômenos.Nesse consenso, prosseguimos com nosso trabalho baseados na hipótese de que os sonhos são fenômenos psíquicos. Nesse caso, são produtos e comunicações da pessoa que sonha, porém comunicações que nada nos dizem, que não entendemos. Pois bem, o que fazem os senhores se Ihes comunico algo ininteligível? Os senhores me farão perguntas, não é mesmo? Por que não faríamos a mesma coisa com a pessoa que sonhou - questioná-la sobre o que seu sonho significa? Como se recordam, certa vez nos encontramos na mesma situação, anteriormente. Quando estávamos investigando determinadas parapraxias - um caso de lapso de língua. Alguém havia dito [ver em [1]]: ‘Então os fatos vieram a Vorschwein ‘ e logo lhe perguntamos - não, felizmente não éramos nós, e sim outras pessoas, que não tinham absolutamente qualquer conexão com a psicanálise - essas outras pessoas então lhe perguntaram o que quis dizer com esse comentário ininteligível. E ele prontamente replicou que tinha pretendido dizer ‘estes fatos eram Schweinereien [repugnantes]’, porém repelira essa intenção em troca da versão mais suave ‘então os fatos vieram a Vorschein [luz]’. Naquela ocasião [ver em [1] e [2]] assinalei aos senhores que essa amostra de informação constituía um modelo para toda investigação psicanalítica e agora compreenderão que a psicanálise segue a técnica de fazer com que as próprias pessoas que estão sendo examinadas, tanto quanto possível proporcionem a solução de seus enigmas [ver em [1]]. Assim, também é o próprio sonhador quem deve nos dizer o que seu sonho significa. No entanto, como sabemos, com os sonhos as coisas não são tão simples. Com as parapraxias funcionou tudo bem, em numerosos casos; houve, porém, outros em que a pessoa, indagada, nada quis dizer e até mesmo recusou, indignada, a resposta que lhe propusemos. Com os sonhos os casos do primeiro tipo são muito escassos; o sonhador sempre diz que nada sabe. Não pode rejeitar nossa interpretação, de vez que não temos nenhuma para lhe apresentar. Devemos, então, desistir de nossa tentativa? Como ele nada sabe e nós nada sabemos, e uma terceira pessoa poderia saber menos ainda, parece não haver perspectiva de descobrir a solução. Nesse caso, se os senhores estão propensos a desistir, desistam da tentativa. Porém, se pensam de forma diferente, podem continuar acompanhando-me. Porque posso lhes assegurar ser completamente possível e, na realidade, altamente provável que o sonhador sabe, sim, o que seu sonho significa: apenas não sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe. Os senhores me assinalarão que, mais uma vez, estou introduzindo uma suposição, já a segunda nesse breve raciocínio, e que, assim fazendo, estou reduzindo enormemente o direito à credibilidade de meu procedimento: ‘Devido à premissa de que os sonhos são fenômenos psíquicos, e devido a uma nova premissa de que há coisas mentais em uma pessoa que sabe sem saber que sabe da existência deles…’ e assim por diante. Sendo assim, basta que se considere a improbabilidade intrínseca de cada uma dessas duas premissas para se poder tranqüilamente desviar o interesse de qualquer conclusão que se possa basear nelas. Eu não os trouxe até aqui, senhoras e senhores, para iludi-los ou para ocultar-lhes determinadas coisas. Em meu programa, é verdade, anunciei uma série de ‘Conferências Elementares para Servir como Introdução à Psicanálise’, contudo, aquilo que eu tinha em mente não era nada nos moldes de uma apresentação in usum Delphini, que lhes daria uma versão agradável, com todas as dificuldades cuidadosamente escamoteadas, com as lacunas preenchidas e as dúvidas explicadas favoravelmente, de forma que os senhores pudessem crer, com a mente despreocupada, que tinham aprendido algo novo. Não, justamente pelo motivo de os senhores serem principiantes, quis mostrar-lhes a nossa ciência como ela é, com suas asperezas e dificuldades, suas exigências e hesitações. Pois sei que o mesmo se passa com todas as ciências e possivelmente não pode ser de outra forma, especialmente em seus começos. Sei também que, em geral, o ensino se dá ao trabalho de se notabilizar pelo fato de encobrir, de quem aprende, essas dificuldades e imperfeições. Com a psicanálise, porém, isso não vai acontecer. De modo que formulei duas premissas, uma dentro da outra; e se alguém acha tudo isso muito laborioso e muito inseguro, ou se alguém está habituado a certezas mais garantidas e a deduções mais elegantes, não deve prosseguir conosco. Penso, no entanto, que absolutamente não deveria se meter com os problemas psicológicos, porquanto é de se temer que em breve achará intransitáveis os caminhos precisos e seguros que escolheu para seguir. E uma ciência que tem algo a oferecer, não tem necessidade de cortejar ouvintes e adeptos. Suas descobertas não podem deixar de angariar adesões; e ela pode esperar até que essas descobertas tenham feito com que as atenções se voltassem para ela. Para aqueles que gostariam de prosseguir com esse tema, porém, posso afiançar que minhas duas hipóteses não são equivalentes. A primeira, a de que os sonhos são fenômenos psíquicos, é a premissa que procuramos demonstrar pelo resultado de nosso trabalho; a segunda já foi demonstrada em outra área de conhecimento, e eu simplesmente estou me aventurando a transportá-la dessa área para nossos próprios problemas. Onde, pois, em que campo, se pôde encontrar a prova de que existe algum conhecimento do qual a pessoa interessada, apesar de tudo, nada sabe, conforme estamos propondo supor a respeito dos sonhos? Em última análise, este seria um fato estranho, surpreendente, um fato que viria alterar nossa visão da vida mental e que não teria por que se levar isso em consideração. Portanto lhes sugiro dividirmos o sonho em seus elementos e iniciarmos uma pesquisa à parte, de cada elemento; ao fazermos isso, a analogia com um lapso de língua se estabelece. Os senhores também têm razão ao pensar que aquele que sonhou, quando interrogado sobre os diversos elementos do sonho separados uns dos outros, pode responder que nada lhe ocorre. Há alguns exemplos nos quais deixamos passar essa resposta, e mais adiante os senhores saberão que exemplos são esses [ver em [1]]; coisa muito estranha, são exemplos nos quais idéias definidas podem ocorrer em nós mesmos. Porém, em geral, se quem sonhou afirma que nada lhe ocorre, contestamos; nós o pressionamos, insistimos em que algo deve ocorrer-lhe - e tornamos a ter razão. Produzirá uma idéia - qualquer idéia, é-nos indiferente qual seja. O sonhador nos dará determinadas informações, que podem ser descritas como ‘históricas’ com especial facilidade. Ele pode dizer: ‘Isso é algo que aconteceu ontem’ (como foi o caso em nossos dois sonhos ‘de verdade’ [ver em [1] e [2]], ou: ‘Isso me lembra algo que aconteceu há pouco tempo’ - e dessa maneira descobriremos que os sonhos se referem a impressões do dia anterior, ou dos dois últimos dias, muito mais freqüentemente do que de início imaginávamos [loc. cit.]. E, finalmente, também recordará, a partir do sonho, acontecimentos de épocas ainda mais anteriores, e até mesmo, talvez, de um passado muito remoto. No seu ponto principal, contudo, os senhores se enganam. Se pensam ser arbitrário supor que a primeira coisa que ocorre ao sonhador forçosamente deva nos revelar aquilo que estamos procurando, nos levar até a meta de nossa procura; se pensam que aquilo que lhe vem à mente poderia ser qualquer outra coisa deste mundo e poderia não ter qualquer relação com o que procuramos; e que ao esperar alguma coisa diferente estou apenas exibindo minha confiança na providência divina - então os senhores estão cometendo um grande equívoco. Uma vez, anteriormente [ver em [1]], arrisquei-me a dizer-lhes que os senhores acalentam uma fé, profundamente arraigada, em acontecimentos psíquicos não-determinados e no livre-arbítrio; que isso, porém, é bastante anticientífico e deve ceder lugar à necessidade de um determinismo cujo princípio se estende à vida mental. Peço que respeitem o fato de que aquilo foi o que veio à mente do homem, e não outra coisa. No entanto, não estou opondo uma fé a outra. Pode-se demonstrar que a idéia referida pelo homem não era arbitrária, nem indeterminável, nem isenta de relação com aquilo que procurávamos. Na realidade, há não muito tempo constatei - posso dizer que sem atribuir muita importância ao fato - que a psicologia experimental também havia obtido provas nesse sentido. Tendo em vista a importância do assunto, solicitarei dos senhores especial atenção. Ao pedir a alguém dizer-me o que lhe vem à mente em resposta a um determinado elemento do sonho, estou lhe pedindo que se entregue à associação livre, enquanto mantém na mente uma idéia como ponto de partida. Isso exige uma atitude especial da atenção, bastante diferente da reflexão, e que exclui esta. Algumas pessoas conseguem essa atitude com facilidade; outras, quando tentam consegui-la, mostram um grau de inabilidade incrivelmente elevado. Existe, no entanto, um grau maior de liberdade de associação: quer dizer, posso eliminar a exigência de manter na memória uma idéia inicial e tão-somente estabelecer a modalidade ou tipo de associação que quero - posso, por exemplo, exigir da pessoa em experiência que deixe vir à mente um nome próprio ou um número, livremente. Aquilo que então lhe ocorre presumivelmente seria ainda mais casual e mais imprevisível do que com nossa técnica anterior. Pode ser demonstrado, porém, que é sempre algo estritamente determinado por importantes atitudes internas da mente, desconhecidas de nós no momento em que atuam - tão pouco conhecidas como as intenções perturbadoras das parapraxias e as intenções causadoras das ações casuais [ver em [1]]. Eu e muitos outros depois de mim fizemos repetidamente essas experiências com nomes e com números pensados ao acaso, e alguns desses experimentos foram publicados. Nessas experiências o procedimento consiste em fornecer uma série de associações ao nome que emergiu; essas associações subseqüentes, em decorrência, não são mais inteiramente livres, porém possuem um vínculo, assim como existe vínculo entre as associações e os elementos dos sonhos. Continua-se com esse procedimento até que se considere esgotado o estímulo para associar. Entretanto, com isso já terá sido esclarecido tanto o motivo como o significado da escolha casual do nome. Essas experiências sempre conduzem ao mesmo resultado; relatos referentes a elas freqüentemente abrangem copioso material e exigem amplas elucidações. As associações com números escolhidos ao acaso são, talvez, as mais convincentes; elas fluem tão rapidamente e avançam com tão incrível certeza em direção a um objetivo oculto, que o efeito é realmente surpreendente. Apresentarei aos senhores um exemplo de uma dessas análises de um nome, de vez que lidar com isso exige uma quantidade de material convenientemente pequena.No decurso do tratamento de um jovem tive ocasião de discutir esse assunto e mencionei a tese de que, apesar de uma escolha aparentemente casual, é impossível pensar em um nome ao acaso que não venha a se revelar como rigorosamente determinado pelas circunstâncias imediatas, pelas características da pessoa em experiência e por sua situação no momento. De vez que ele se encontrava cético, sugeri-lhe que deveria fazer consigo mesmo uma experiência desse tipo, na hora. Eu sabia que ele mantinha relações particularmente numerosas, de todo tipo, com mulheres casadas e com moças, e assim pensei que ele teria à sua disposição uma escolha especialmente ampla se fosse o caso de lhe pedir que escolhesse o nome de uma mulher. Concordou em fazer a experiência. Para minha surpresa, ou melhor, talvez, para sua surpresa, não fui assoberbado por nenhuma avalanche de nomes femininos; permaneceu calado por um momento e então admitiu que apenas um nome lhe tinha vindo à cabeça e nenhum outro além deste: ‘Albina’. - Que coisa curiosa! Mas o que significa esse nome para o senhor? Quantas ‘Albinas’ o senhor conhece? - É estranho dizê-lo, ele não conhecia nenhuma mulher chamada ‘Albina’, e nada mais lhe ocorreu junto com o nome. Dessa forma, podia-se pensar que a análise havia fracassado. Mas não, absolutamente: já estava completa e outras associações não eram necessárias. O homem tinha uma pele excepcionalmente alva e, em conversação durante o tratamento, muitas vezes eu o chamara de albino, por brincadeira. Por essa época estávamos tratando de determinar os componentes femininos de sua constituição. Assim, era ele mesmo essa ‘Albina’, a mulher que mais lhe interessava no momento. Do mesmo modo, pode-se constatar que as melodias que acodem à mente de uma pessoa de modo inesperado são determinadas por uma seqüência de idéias à qual pertencem, e têm o direito de atarefar a mente, sem que haja consciência de sua atividade. É fácil, nesses casos, demonstrar que a relação com a melodia é baseada em sua letra ou em sua origem. Contudo, devo ter o cuidado de não estender essa asserção a pessoas realmente ligadas à música; sucede que com elas não tive qualquer experiência. Pode ser que para essas pessoas o conteúdo musical da melodia é que decide seu surgimento. O primeiro caso é certamente o mais comum. Por exemplo, conheço um jovem que se sentiu durante algum tempo realmente perseguido pela melodia (aliás, uma melodia maravilhosa ) da canção de Páris [de Offenbach] La belle Hélène, até que, em sua análise, ele teve sua atenção voltada para uma rivalidade em torno de sua pessoa e em benefício seu, uma rivalidade entre uma ‘Ida’ e uma ‘Helena’.Se então as coisas que vêm à mente de uma pessoa assim tão livremente, são de tal maneira determinadas e formam parte de um todo inter-relacionado, sem dúvida estamos agindo acertadamente ao concluir que não podem ser menos determinadas aquelas coisas que Ihe acodem à mente com apenas um vínculo - ou seja, o vínculo delas com a idéia que serve como seu ponto de partida. A investigação realmente mostra que, afora o vínculo que lhe fornecemos com a idéia inicial, essas associações são dependentes também de grupos de idéias e de interesses intensamente emocionais, os ‘complexos’, cuja participação não é conhecida no momento - ou seja, é inconsciente.A ocorrência de idéias com vínculos dessa espécie tem sido objeto de pesquisas experimentais muito elucidativas que desempenharam um papel notável na história da psicanálise. A escola de Wundt introduziu o que conhecemos como experiências de associação, nas quais se diz à pessoa uma palavra-estímulo e a pessoa tem de responder a ela tão rapidamente quanto lhe é possível, com qualquer reação que lhe ocorra. Nesse caso, é possível estudar o intervalo de tempo que se passa entre o estímulo e a reação, a natureza das respostas dadas como reação, os possíveis erros quando a experiência é repetida mais tarde, e assim por diante. A escola de Zurique, liderada por Bleuler e Jung, encontrou explicação para as reações que se sucediam na experiência de associação, fazendo as pessoas em experiência elucidarem suas reações por meio de associações subseqüentes, no caso de essas reações terem mostrado aspectos marcantes. Constatou-se então que essas reações marcantes eram determinadas de forma muito definida pelos complexos da pessoa. Assim, Bleuler e Jung estabeleceram a primeira ponte entre a psicologia experimental e a psicanálise.Tendo aprendido tantas coisas, os senhores poderão dizer: ‘Agora reconhecemos que os pensamentos que livremente acodem à mente de uma pessoa são determinados, e não arbitrários, como supunhamos. Admitimos que isso seja verdadeiro também para os pensamentos que ocorrem CONFERÊNCIA VII - O CONTEÚDO MANIFESTO DOS SONHOS E OSPENSAMENTOS ONÍRICOS LATENTES SENHORAS E SENHORES: Como vêem, nosso estudo das parapraxias não foi improfícuo. Graças a nossos esforços com elas, sujeitos a duas premissas que lhes expliquei, conseguimos duas coisas: uma concepção da natureza dos elementos oníricos e uma técnica para interpretar sonhos. A concepção dos elementos oníricos nos diz serem eles coisas não-originais [ver em [1]], substitutos de alguma outra coisa desconhecida do sonhador (como a intenção de uma parapraxia), substitutos de algo cujo conhecimento está presente em quem sonhou, que lhe é, porém, inacessível. Temos a esperança de que será possível aplicar a mesma concepção a sonhos inteiros constituídos de tais elementos. Nossa técnica baseia-se em usar a associação livre para esses elementos, a fim de suscitar a emergência de outras estruturas substitutivas que nos possibilitarão atingir aquilo que se oculta de nossos olhos.Proponho, agora, que devemos introduzir uma modificação em nossa nomenclatura, o que nos dará maior liberdade de movimentos. Em vez de falar em ‘oculto’, ‘inacessível’ ou ‘não-genuíno’, adotemos a descrição correta e digamos ‘inacessível para a consciência do sonhador’ ou ‘inconsciente‘. Com isso quero dizer tão-somente aquilo que pode acudir ao espírito dos senhores quando pensam em uma palavra que lhes escapou, ou na intenção perturbadora de uma parapraxia - ou seja, quero dizer apenas ‘inconsciente no momento‘. Contrastando com esse aspecto, naturalmente podemos referir como ‘conscientes‘ os elementos oníricos propriamente ditos e as idéias substitutivas que, através das associações com estes elementos, são de surgimento recente. Até aqui essa nomenclatura não envolve qualquer formulação teórica. Não se pode estabelecer objeção alguma ao uso da palavra ‘inconsciente’ como descrição adequada e de fácil compreensão. Se estendemos ao sonho total nossa concepção a respeito de seus elementos isolados, procede que o sonho como um todo constitui um substituto deformado de alguma. outra coisa, algo inconsciente, e que a tarefa de interpretar um sonho é descobrir esse material inconsciente. Disso logo resultam, entretanto, três regras importantes que devemos observar durante o trabalho de interpretação de sonhos. (1) Não devemos nos preocupar com aquilo que o sonho parece dizer-nos, seja compreensível ou absurdo, claro ou confuso, de vez que pode não ser o material inconsciente que estamos procurando. (Uma evidente limitação desta regra forçosamente irá impor-se à nossa consideração, mais adiante [ver em [1]].) (2) Devemos restringir nosso trabalho à recordação das idéias substitutivas de cada elemento, não devemos refletir sobre elas, nem considerar se contêm algo importante; e não devemos nos perturbar com o grau de divergência que elas apresentam em relação ao elemento onírico. (3) Precisamos aguardar até que o material inconsciente oculto, o qual procuramos, surja com espontaneidade, exatamente como a palavra esquecida ‘Mônaco’ adveio na experiência que descrevi [ver em [1]]. Agora, também, podemos compreender em que grau é indiferente o fato de muita ou pouca coisa do sonho ser lembrada, sobretudo se lembrada com precisão ou imprecisão. Pois o sonho recordado não é o material original e sim um seu substituto deformado, o qual, mediante a rememoração de outras imagens substitutivas, deve auxiliar-nos a nos aproximarmos do material original, a tornar consciente aquilo que no sonho é inconsciente. Se nossa lembrança foi imprecisa, portanto, causou simplesmente uma deformação a mais desse substituto - uma deformação que, porém, não se efetuou sem motivo. O trabalho de interpretar pode ser executado nos sonhos de cada um, ou nos sonhos de outras pessoas. Na realidade, aprende-se mais consigo mesmo; o processo impõe maior convicção. Se então fizermos uma tentativa, observaremos que algo se opõe ao nosso trabalho. É verdade que as idéias nos ocorrem; porém, não permitimos que todas elas sejam levadas em consideração; influências de julgamentos e de escolhas se fazem sentir. No caso de uma idéia, podemos dizer a nós mesmos: ‘Não, isso não é importante, não tem cabimento aqui.’ No caso de outra idéia: ‘isso é demasiadamente sem sentido’; e no caso de uma terceira: ‘isso é totalmente sem importância’. E depois, somos capazes de observar como, com objeções dessa espécie, podemos encobrir idéias e finalmente rechaçá-las todas juntas, sem exceção, antes mesmo de se haverem tornado bastante claras. Assim, por um lado nos aferramos muito àquela idéia que constituiu nosso ponto de partida, o próprio elemento onírico; e, por outro lado, interferimos no resultado das associações livres ao fazer a escolha. Se não somos nós mesmos enquanto interpretamos o sonho, se tomamos outra pessoa para que o interprete, adquirimos consciência muito nítida de mais um motivo que alegamos ao fazer essa seleção indevida, porque às vezes dizemos para nós: ‘Não, essa idéia é excessivamente desagradável; não quero ou não posso referi-la.’ Essas objeções constituem evidente ameaça ao êxito de nosso trabalho. Delas devemos nos resguardar, e em nosso próprio caso o fazemos resolvendo não ceder a elas. Estando analisando o sonho de uma outra pessoa, estabelecemos como regra inviolável a pessoa não ocultar de nós idéia alguma, ainda que dê origem a uma das quatro objeções - de ser demasiado sem importância, ou sem sentido; ou de ser irrelevante, ou muito desagradável para ser referida. O sonhador promete obedecer à regra, e a seguir podemos ter o aborrecimento de verificar como ele cumpre mal o prometido, quando lhe surge a ocasião. Podemos explicar a nós mesmos o que se passa, de início, supondo que, malgrado a garantia peremptória, ele ainda não se compenetrou da razão de ser da associação livre; e talvez possamos ter a idéia de primeiro convencê-lo teoricamente, dando-lhe livros para que leia, ou enviando-o a conferências que o possam converter em adepto de nossos pontos de vista sobre a associação livre. Contudo, de um erro assim nos manteremos à distância, basta considerarmos nosso próprio caso; do vigor de nossas convicções dificilmente se pode duvidar, afinal de contas as mesmas objeções se apresentam a determinadas idéias, e são afastadas apenas posteriormente - digamos, em segunda instância.Em vez de nos aborrecermos com a desobediência do sonhador, podemos lucrar com essas experiências aprendendo algo novo a partir delas - algo tanto mais importante quanto menos esperamos. Percebemos que o trabalho de interpretar sonhos é executado em presença de uma resistência que a ele se opõe e da qual as objeções críticas constituem manifestações. A resistência independe da convicção teórica daquele que sonhou. Com efeito, aprendemos ainda mais. Descobrimos que uma objeção crítica desse tipo jamais chega a mostrar-se justificada. Ao contrário, as idéias que as pessoas tentam suprimir dessa maneira invariavelmente se revelam as mais importantes e decisivas em nossa busca de material inconsciente. Na realidade equivale a uma marca distintiva uma idéia acompanhar-se de uma objeção desse tipo. A referida resistência é algo inteiramente novo: um fenômeno que encontramos calmamente em relação a nossas premissas [ver em [1] e seg.]; porém, um fenômeno que não se incluía entre as mesmas. O aparecimento desse novo fator em nossos cálculos nos alcança como determinada surpresa não de todo agradável. Logo suspeitamos que ela não irá tornar mais fácil nosso trabalho. Poderia desorientar-nos a ponto de abandonarmos nosso completo interesse pelos sonhos: algo tão sem importância como um sonho e, como se não bastasse, todas essas dificuldades, em lugar de uma única técnica simples, sem rodeios! Em compensação, porém, as dificuldades podem precisamente agir como estímulo e fazer-nos suspeitar que o trabalho valerá a pena. Regularmente deparamos com a resistência ao tentarmos abrir caminho desde o substituto, que é o elemento onírico, até o material inconsciente oculto por trás dele. Podemos, assim, concluir que deve haver algo importante escondido por trás do substituto. Se não, para que servem as dificuldades que tentam manter em vigor o ocultamento? Se uma criança recusa abrir sua mão fechada, para mostrar o que tem escondido, podemos nos sentir seguros de que se trata de algo equívoco - algo que ela não devia ter. No momento em que introduzimos nos fatos em questão a idéia dinâmica de uma resistência, devemos simultaneamente refletir ser esse fator algo que varia em quantidade. Podem existir resistências maiores e menores, e estamos preparados para encontrar essas diferenças revelando-se também durante nosso trabalho. Talvez sejamos capazes de vincular essa experiência com outra que também encontramos durante o trabalho da interpretação de sonhos: às vezes, apenas uma única resposta, ou não mais do que algumas, são requeridas para nos conduzirem desde o elemento onírico até o material inconsciente que nele se oculta, ao passo que em outras ocasiões, para se realizar isso, são necessárias longas cadeias de associações e a superação de muitas objeções críticas. Concluiremos que essas diferenças contudo, também se aclara quando os senhores se dão conta de que o nome da família em questão era Tischler [literalmente, ‘marceneiro’]. Ao fazer seus parentes se sentarem a essa Tisch, ele estava dizendo que também eles eram Tischlers. Aliás, os senhores observarão quão inevitavelmente se é levado a ser indiscreto ao referir essas interpretações de sonhos. E perceberão que essa é uma das dificuldades a que aludi na escolha dos exemplos. Poderia facilmente ter escolhido um outro exemplo em lugar deste, provavelmente; porém, eu apenas teria evitado tal indiscrição e iria cometer uma outra.Parece haver chegado o momento para eu introduzir dois termos que poderíamos ter empregado há muito tempo. Descreveremos como conteúdo manifesto do sonho aquilo que a pessoa que sonhou realmente nos conta; e o material oculto, que esperamos encontrar acompanhando idéias que lhe acodem à mente, chamaremos de pensamentos oníricos latentes. Desse modo, consideramos aqui as relações entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos latentes conforme se mostrou nesses exemplos. Essas relações podem ser de muitas espécies diferentes. Nos exemplos (a) e (b) o elemento manifesto também é um constituinte dos pensamentos latentes, embora sendo apenas uma pequena parte deles. Uma pequena porção da grande e complexa estrutura psíquica dos pensamentos oníricos inconscientes também conseguiu ter acesso ao sonho manifesto - um fragmento desses pensamentos ou, em outros casos, uma alusão aos mesmos, uma manchete, por assim dizer, ou uma abreviação em estilo telegráfico. É atribuição do trabalho de interpretação reunir esses fragmentos ou essa alusão para completar um todo - o que foi conseguido de modo especialmente preciso no caso do exemplo (b). Assim, uma forma da deformação que constitui a elaboração onírica é a substituição por um fragmento ou uma alusão. No exemplo (c) pode-se observar outro tipo de relação, além deste; e a encontramos expressa em forma ainda mais pura e clara nos exemplos que se seguem. (d) O sonhador estava puxando uma mulher (determinada mulher, conhecida sua) de detrás de uma cama. Ele mesmo encontrou o significado desse elemento onírico, partindo da primeira idéia que lhe ocorreu. Significava que estava manifestando sua preferência por essa mulher.(e) Outro homem sonhou que seu irmão estava numa caixa [Kasten]. Em sua primeira resposta, ‘Kasten‘ foi substituída por ‘Schrank‘ [armário], e a segunda deu a interpretação: seu irmão estava se restringindo [‘schränkt sich ein’].(f) O sonhador subia ao cume de uma montanha de onde se descortinava uma paisagem extraordinariamente ampla. Este sonho parece bastante racional e os senhores poderiam supor que não há o que interpretar nele, e que tudo quanto temos a fazer é interrogar sobre qual lembrança deu origem ao sonho e a razão de essa lembrança ter sido despertada. Enganar-se-iam porém. Verificou-se que este sonho estava carecendo de uma interpretação, tanto quanto qualquer outro mais confuso. Pois não foi de nenhuma escalada de montanha que o homem se recordou; na realidade, pensou em um conhecido seu, editor de uma ‘Rundschau‘. que tratava de nossas relações com as mais distantes regiões da Terra. Assim, o pensamento onírico latente era uma identificação desse homem com o ‘Rundschauer‘.Aqui temos um novo tipo de relação entre os elementos oníricos manifesto e latente. O primeiro não é bem uma deformação do último, e sim uma representação deste, um retrato plástico, e seu ponto de partida se localiza nas palavras. Contudo, precisamente por esse motivo ele é, mais uma vez, uma deformação, porquanto de há muito temos esquecido de que imagem concreta a palavra se originou e, por conseguinte, deixamos de reconhecê-la quando substituída pela imagem. Quando os senhores consideram que o sonho manifesto é constituído predominantemente de imagens visuais e, mais raramente, de pensamentos e palavras, podem imaginar que importância se atribui a esse tipo de relação na construção dos sonhos. Os senhores também verão que assim, em face de um grande número de pensamentos abstratos, se torna possível criar quadros que funcionem como substitutos desses pensamentos no sonho manifesto, ao passo que simultaneamente se ajustam à finalidade de ocultar. Essa é a técnica das conhecidas figuras enigmáticas. Por que possuem essas figuras aparência de serem brincadeiras, é um problema especial com o qual não precisamos nos envolver, por enquanto.Existe um quarto tipo de relação entre os elementos manifesto e latente, que devo continuar mantendo em segredo dos senhores até que cheguemos à sua palavra-chave ao tecermos considerações sobre a técnica. Mesmo assim não terei apresentado uma lista completa; porém, serve às nossas finalidades. Os senhores se sentem agora com coragem suficiente para se aventurarem a interpretar um sonho inteiro? Façamos a experiência, para verificar se estamos bem equipados para a tarefa. Naturalmente não selecionarei um dos mais obscuros; mesmo assim, será um sonho que fornecerá um quadro muito aproximado dos atributos de um sonho.Pois bem, vamos ao caso. Uma senhora que, embora ainda jovem, estava casada há muitos anos, teve o seguinte sonho: Ela estava no teatro com seu marido. Um lado da primeira fila de cadeiras estava completamente vazio. Seu marido lhe disse que Elise L. e seu noivo também tinham pretendido ir, porém só poderiam conseguir lugares ruins - três por 1 florim e 50 kreuzers - e naturalmente não poderiam adquiri-los. Ela pensou que não teria sido realmente nenhum prejuízo se tivessem conseguido.A primeira coisa que essa senhora nos referiu foi que a causa precipitante do sonho residia em uma alusão do seu conteúdo manifesto. Seu marido realmente lhe havia falado que Elise L., que era aproximadamente da mesma idade dela, há pouco havia contratado casamento. O sonho era uma resposta a essa informação. Já sabemos [ver em [1]] ser fácil, no caso de muitos sonhos, assinalar uma causa desencadeante como essa do dia anterior, e que a pessoa que sonhou muitas vezes é capaz de estabelecê-la para nós sem qualquer dificuldade. Essa senhora, no presente caso, colocou à nossa disposição informações semelhantes para outros elementos do sonho manifesto, também. - De onde veio o detalhe referente a estar vazio um dos lados das cadeiras? Era alusão a um evento real da semana anterior. Ela havia planejado ir assistir a determinada peça e por isso havia comprado seus ingressos com antecedência - com tanta antecedência, que teve de pagar uma taxa de reserva. Quando foram ao teatro, acabaram verificando que a pressa dela era bastante desnecessária, de vez que uma parte das cadeiras da primeira fila estava quase vazia. Teria sido suficiente a antecipação de comprar os ingressos se os tivesse adquirido no dia em que realmente se realizava a representação. Seu marido não deixou de gracejar com ela por ter tido tanta pressa. - Qual era a origem do 1 florim e 50 kreuzers? Surgiu de uma relação bem diferente, que nada tinha a ver com a anterior, mas que também aludia a algumas informações do dia anterior. Sua cunhada recebera de presente 150 florins de seu marido e tinha tido muita pressa - a tola - de correr a uma joalheria e trocar o dinheiro por uma peça de bijuteria. - De onde veio o ‘três’? Ela não conseguia pensar em nada referente a isso, até que levamos em conta a idéia de que Elise L., sua amiga, que noivara recentemente, era só três meses mais nova que ela, embora ela própria estivesse casada há dez anos, aproximadamente. - E a idéia absurda de adquirir três ingressos para apenas duas pessoas? Ela nada tinha a dizer quanto a isso, e não quis referir mais nenhuma idéia ou informação. De qualquer modo, porém, ela nos havia fornecido tanto material nessas poucas associações, que foi possível, a partir destas, entrever os pensamentos oníricos latentes. Não pode deixar de chamar-nos a atenção o fato de ocorrerem períodos de tempo em diversos pontos das informações que nos deu sobre o sonho, e esses pontos proporcionam um denominador comum das diferentes partes do material. Ela adquiriu os ingressos para o teatro cedo demais, comprou-os superapressadamente, tendo de pagar mais do que o necessário; assim, também sua cunhada estivera com pressa de levar seu dinheiro à joalheria e com ele comprar bijuteria, como se, de outra maneira, fosse perdê-lo. Se, além do ‘cedo demais’ e do ‘com pressa’ que nos chamaram a atenção, tomamos em consideração a causa desencadeante do sonho - a notícia de que sua amiga, embora somente três meses mais nova do que ela, tinha, não obstante, conseguido um excelente marido - e a crítica a sua cunhada, expressa na idéia de que era absurdo ela estar com tanta pressa, então se nos apresenta quase espontaneamente a seguinte construção dos pensamentos oníricos latentes, dos quais o sonho manifesto é um substituto acentuadamente deformado: ‘Realmente, foi absurdo de minha parte ter tanta pressa de casar! Posso ver, pelo exemplo de Elise, que também eu podia arranjar um marido, mais tarde.’ (Estar com pressa demais foi representado por sua própria conduta de comprar os ingressos e pela conduta de sua cunhada, de comprar a bijuteria. Ir ver a peça pareceu um substituto de casar.) Pareceria ser esse o pensamento principal. Talvez possamos ir adiante, embora com menos certeza, pois a análise não deveria prescindir dos comentários da pessoa que sonhou, nos seguintes pontos: ‘E eu poderia ter conseguido um, cem vezes melhor, com o dinheiro!’ (150 florins é cem vezes mais do que 1,50 florim.) No caso de colocarmos seu dote em lugar do dinheiro, significaria que seu marido foi comprado com o dote dela: a peça de bijuteria, assim como os ingressos ruins, seriam substitutos de seu marido. Seria ainda mais satisfatório se o elemento real ‘três ingressos’ tivesse algo a ver com seu marido. [ver adiante, em [1] e [2].] No entanto, até esse ponto ainda não chegamos, por enquanto, em nossa compreensão do sonho. Descobrimos apenas que o estávamos no Simony Hut.’ Assim, fora isso que esperava obter da excursão. Não deu outros detalhes, salvo algo que tinha ouvido antes: ‘Você tem que subir a pé, durante seis horas.’Estes três sonhos nos fornecerão todas as informações de que necessitamos.(2) Como podemos ver, esses sonhos de crianças não são absurdos. São atos mentais inteligíveis, completamente válidos. Os senhores recordarão o que eu lhes disse da opinião médica a respeito de sonhos e da analogia com dedos sem experiência musical passeando sobre as teclas de um piano [ver em [1]]. Não podem deixar de observar quão nitidamente esses sonhos de crianças contradizem tal opinião. De fato, seria por demais estranho se as crianças pudessem executar atos mentais completos, em seu sono, enquanto os adultos se contentassem, sob as mesmas condições, com reações que não fossem nada mais que ‘repuxões’. Ademais, temos toda a razão ao pensar que o sono das crianças é mais eficaz e profundo. (3) Esses sonhos não apresentam qualquer deformação onírica e, por conseguinte, não exigem nenhuma atividade interpretativa. Neles, o sonho manifesto e o latente coincidem. Assim, a deformação onírica não faz parte das características essenciais do sonho. Espero que isso alivie os senhores. Porém, quando examinarmos esses sonhos mais detidamente, reconheceremos, mesmo neles, uma pequena parcela de deformação onírica, determinada diferença entre o conteúdo manifesto do sonho e os pensamentos oníricos latentes. (4) Um sonho de uma criança é uma reação a uma experiência do dia precedente, a qual deixou atrás de si uma mágoa, um anelo, um desejo que não foi satisfeito. O sonho proporciona uma satisfação direta, indisfarçada, desse desejo. Recordemos, agora, nossas discussões sobre o papel que desempenham os estímulos somáticos de fora e de dentro como perturbadores do sono e provocadores dos sonhos [ver em [1] e segs.]. Nessa conexão vimos a conhecer alguns fatos incontestes, mas, por meio destes, apenas nos capacitamos a explicar um reduzido número de sonhos. Nesses sonhos de crianças, entretanto, não há nada que assinale a atuação de estímulos somáticos dessa espécie; nisso não poderíamos estar equivocados, pois os sonhos são completamente inteligíveis e fáceis de apreender. Porém, isso não significa que devemos abandonar a questão do estímulo na etiologia do sonho. Podemos apenas nos perguntar como pôde acontecer que, desde o início, esquecessemos que, além dos estímulos somáticos, existem estímulos mentais que perturbam o sono. Afinal de contas, sabemos que excitações dessa natureza são os principais responsáveis pela perturbação do sono em um adulto, impedindo-o de estabelecer o estado de espírito requerido para o adormecer - o interesse em ser retirado do mundo. Ele não deseja interromper a vida; de preferência, continuaria seu trabalho com as coisas nas quais está interessado, e por essa razão não adormece. No caso de crianças, portanto, o estímulo mental - o desejo que não foi satisfeito - e é a isso que reagem com o sonho. (5) Isso nos abre o caminho mais direto para a compreensão da função do sonho. Na medida em que um sonho é uma reação a um estímulo psíquico, deve equivaler a um manejo do estímulo de maneira tal que este seja eliminado e o sono possa continuar. Ainda não sabemos como esse manejo do estímulo pelo sonho se torna possível, dinamicamente; porém, já estamos verificando que os sonhos não são perturbadores do sono, como erroneamente são denominados, mas guardiães do sono que eliminam as perturbações do sono. Pensamos que deveríamos dormir melhor se não houvesse sonho, porém nos equivocamos; de fato, sem o auxílio do sonho, não poderíamos, absolutamente, ter dormido. É devido a isso que dormimos bem ou mal. O sonho não pode evitar de nos perturbar um pouco, da mesma maneira como um vigia noturno muitas vezes não pode evitar de fazer um pequeno ruído quando persegue os perturbadores do sossego que procuram acordar-nos com seu barulho. (6) O que origina um sonho é um desejo, e a satisfação deste desejo constitui o conteúdo do sonho - esta é uma das características principais dos sonhos. A outra, igualmente constante, é que um sonho não apenas confere expressão a um pensamento, mas também representa o desejo sendo satisfeito sob a forma de uma experiência alucinatória. ‘Gostaria de ir ao lago‘ é o desejo que origina o sonho. O conteúdo do sonho propriamente dito é: ‘Estou indo ao lago.‘ Portanto, mesmo nesses simples sonhos de crianças, há uma diferença entre o sonho latente e sonho manifesto, há uma distorção do pensamento onírico latente: a transformação de um pensamento em uma vivência. No processo de interpretar um sonho, essa alteração necessita, primeiro, ser desfeita. Se tal vier a revelar-se como a característica mais universal dos sonhos, a parte de sonho que lhes referi anteriormente [ver em [1]] ‘Vi meu irmão em uma caixa [Kasten]’ não deve ser traduzida como ‘meu irmão está se restringindo [schränkt sich ein ]’, e sim como ‘Eu gostaria que meu irmão se restringisse: meu irmão deve restringir-se.‘ Das duas características gerais dos sonhos, que agora apresentei, a segunda tem melhor perspectiva de ser aceita sem oposição, do que a primeira. É apenas por meio de exaustivas investigações que podemos estabelecer o fato de que a origem dos sonhos deve ser sempre um desejo, não uma preocupação, uma intenção ou uma censura; isso, porém, não afetará a outra característica: a de que o sonho não faz simplesmente reproduzir esse estímulo, mas remove-o, elimina-o, maneja-o, através de um tipo de vivência. (7) Com base nestas características dos sonhos podemos voltar, mais uma vez, a uma comparação entre sonho e parapraxia. Nesta, distinguimos entre uma intenção perturbadora e uma intenção perturbada [ver em [1] e segs.], sendo a parapraxia uma conciliação das duas. Um sonho pode se ajustar ao mesmo modelo. A intenção perturbada só pode ser a de dormir. Podemos substituir a intenção perturbadora pelo estímulo psíquico, quer dizer, pelo desejo que pressiona por ser manejado, de vez que até o momento não tomamos conhecimento de nenhum outro estímulo psíquico que perturbe o sono. Também aqui, o sonho é o resultado de uma conciliação. Dorme-se, e, não obstante, se vivencia a remoção de um desejo, satisfaz-se um desejo, porém, ao mesmo tempo, continua-se a dormir. Ambas as intenções são em parte realizadas e em parte abandonadas. (8) Os senhores estarão lembrados de que, em certa passagem [ver em [1] e [2]], tínhamos a esperança de nos aproximarmos da compreensão dos problemas dos sonhos a partir de determinadas estruturas imaginativas, muito simples de examinar, conhecidas como ‘devaneios’. Ora, esses devaneios são, na realidade, satisfações de desejos, satisfações de ambições e de desejos eróticos que nos são bem conhecidos; porém constituem pensamento, ainda que vividamente imaginado, e jamais são experimentados sob a forma de alucinações. Das duas principais características dos sonhos, então, a menos constante é aqui preservada, ao passo que a outra está totalmente ausente, visto depender do estado de sono e não poder realizar-se no estado de vigília. O uso idiomático, por conseguinte, encerra uma noção do fato de que a satisfação de desejos é uma característica principal dos sonhos. Diga-se de passagem, se nossa vivência nos sonhos é apenas um tipo modificado de imaginação que se tornou possível devido às condições do estado de sono - isto é, um ‘devanear noturno’ - já podemos compreender como o processo de construção de um sonho pode utilizar o estímulo noturno e proporcionar satisfação, visto que o devaneio também é uma atividade vinculada à satisfação, e, na verdade, somente é exercido por esse motivo. Outros usos idiomáticos, contudo, expressam o mesmo sentido. Existem provérbios conhecidos, como ‘Os porcos sonham com bolotas de carvalho e os gansos sonham com milho’ ou ‘Com que sonham as galinhas? - Com milho.’ Assim, os provérbios descem mais ainda do que nós - abaixo das crianças, até os animais - e afirmam que o conteúdo dos sonhos é a satisfação de uma necessidade. Numerosas expressões idiomáticas parecem apontar na mesma direção: ‘lindo como um sonho’, ‘eu nem sonharia uma coisa dessas’, ‘não imaginei isso nem nos meus sonhos mais ousados’. Neste ponto, o uso idiomático está tomando partido, evidentemente. Tanto que existem também sonhos de ansiedade, e sonhos de conteúdo penoso ou indiferente; porém o uso idiomático permaneceu indiferente a eles. É verdade que se conhece o que se chama de ‘sonhos maus’, mas um sonho é, pura e simplesmente, apenas a doce realização de um desejo. E não existe nenhum provérbio que nos afirme que os porcos e os gansos sonham com sua matança. É naturalmente inconcebível que a realização de desejos, característica dos sonhos, não tivesse sido percebida por pessoas que escreveram sobre o assunto. Pelo contrário, muitas vezes foi percebida; contudo, a ninguém ocorreu a idéia de reconhecer esta característica como sendo universal e transformá-la em ponto capital da explicação dos sonhos. Bem podemos imaginar o que impediu de fazê-lo; entraremos no assunto mais adiante. Mas vejam quantos esclarecimentos obtivemos ao examinarmos sonhos de crianças, e com tão pouco esforço o conseguimos: as funções dos sonhos, na qualidade de guardiães do sono; sua origem situada em duas intenções concorrentes, uma das quais, o desejo de dormir, permanece inalterada, ao passo que a outra luta por satisfazer um estímulo psíquico; a evidência de que os sonhos são atos psíquicos com um sentido; suas duas principais características: realização de desejos e vivência alucinatória. E, ao descobrir tudo isso, quase seríamos capazes de esquecer que estávamos comprometidos com a psicanálise. À parte a relação com as parapraxias, nosso trabalho não leva nenhum sinal especial. Qualquer psicólogo, nada necessidades corporais, geralmente contêm junto com a satisfação um outro material; este deriva de fontes de estimulação puramente psíquicas e exige interpretação para que possa ser compreendido.Além disso, não desejo afirmar que os sonhos de realização de desejos, em adultos, construídos segundo padrões infantis, somente aparecem como reações a necessidades imperiosas, que mencionei. Conhecemos também sonhos breves, claros, do tipo que, sob a influência de alguma situação dominante, inquestionavelmente se originam em fontes psíquicas de estimulação. Existem, por exemplo, sonhos de impaciência: se alguém fez preparativos para uma viagem, para uma representação teatral importante para ele, para ir a uma conferência, ou fazer uma visita, pode sonhar com uma satisfação antecipada de sua expectativa; durante a noite anterior ao evento, poderá ver-se a si mesmo chegando ao seu destino, presente no teatro, em conversação com a pessoa que vai visitar. Existem, ainda, aqueles que são apropriadamente chamados de sonhos de conveniência, nos quais uma pessoa que deseja dormir mais, sonha que já está de pé e se lavando, ou que já está na escola, ao passo que, na realidade, ainda está dormindo e preferiria levantar-se num sonho a fazê-lo na realidade. O desejo de dormir, que temos reconhecido como um dos constantes componentes da construção dos sonhos, aparece abertamente nesses sonhos e se revela como o principal construtor onírico. Existem bons motivos para situar a necessidade de dormir em condições de igualdade com as outras grandes necessidades corporais.Aqui está uma reprodução de um quadro de Schwind, exposto na Galeria Schack, de Munique [ver frontispício], que mostra com que perfeição o artista captou a maneira como os sonhos surgem da situação dominante. Seu título é ‘O Sonho do Prisioneiro’, um sonho cujo conteúdo só pode ser sua fuga. Constitui uma solução feliz dar-se sua fuga através da janela, porque é o estímulo da luz entrando pela janela que põe fim ao sono do prisioneiro. Os gnomos, que estão subindo um em cima do outro, sem dúvida representam as posições sucessivas que ele próprio teria de tomar, à medida que subisse até o nível da janela. E, se não me engano, e se não estou atribuindo demasiada deliberação ao artista, o gnomo que se situa mais em cima, que está serrando as grades - isto é, que está fazendo o que o prisioneiro gostaria de fazer - tem semblante igual ao deste.Em todos os sonhos que não sejam os de crianças nem os de tipo infantil, nosso caminho, como disse, está obstruído pela deformação onírica. De início, não podemos dizer se esses outros sonhos também são realizações de desejos conforme suspeitamos, não podemos determinar, a partir do seu conteúdo manifesto, a que estímulo psíquico devem sua origem, e não podemos provar que também eles se esforçam por eliminar esse estímulo, ou, de algum modo, manejá-lo. Devem ser interpretados - isto é, traduzidos -, sua deformação deve ser desfeita, e seu conteúdo manifesto substituído pelo conteúdo latente antes de podermos julgar se aquilo que encontramos nos sonhos infantis pode ser considerado válido para todos os sonhos. CONFERÊNCIA IX - A CENSURA DOS SONHOS SENHORAS E SENHORES: O estudo dos sonhos de crianças nos ensinou a origem, a natureza essencial e a função dos sonhos. Os sonhos são coisas que eliminam, pelo método da satisfação alucinatória, estímulos (psíquicos) perturbadores do sono. No entanto, conseguimos explicar apenas um grupo dos sonhos de adultos - aqueles que descrevemos como sonhos de tipo infantil. O que se passa com os demais, ainda não sabemos dizer, contudo também não os entendemos. Assim mesmo, chegamos a um dado provisório cuja importância não devemos subestimar. Sempre que um sonho se nos tornou inteiramente inteligível, veio a se revelar como realização de um desejo em forma alucinatória. Essa coincidência não pode ter surgido do acaso, deve ter um significado.Com base em considerações diversas e na analogia com nossa opinião acerca das parapraxias, supusemos, a propósito de sonhos de uma outra espécie [ver em [1] e seg.], que eles seriam um substituto deformado de um conteúdo desconhecido, e que a primeira coisa seria correlacioná-los com esse conteúdo. Nossa tarefa imediata, portanto, consiste em uma investigação que nos leva a compreender essa deformação nos sonhos.Deformação onírica é aquilo que faz com que um sonho nos pareça estranho e ininteligível. A respeito dela queremos saber diversas coisas: primeiro, de onde vem - sua dinâmica - ; segundo, o que faz; e, por último, como faz. Também podemos dizer que a deformação onírica é obra da elaboração onírica; é necessário descrevermos a elaboração onírica e explicarmos as forças que nela operam.E agora, ouçam este sonho. Foi registrado por uma senhora pertencente ao nosso grupo, e, conforme ela nos conta, provém de uma senhora de idade avançada, altamente conceituada e instruída. Não foi feita nenhuma análise do sonho; nossa informante observa que para um analista ele não requer interpretação. E a pessoa que o sonhou também não o interpretou, porém o julgou e o condenou como se compreendesse a maneira de interpretá-lo; pois, a respeito do mesmo, ela disse: ‘E uma coisa chocante e estúpida como esta foi sonhada por uma mulher de cinqüenta anos, que dia e noite não tem outros pensamentos senão os de se preocupar com seu filho!’Aqui, pois, está o sonho - que trata de ‘serviços de amor’ em época de guerra. ‘A paciente dirigiu-se ao Hospital da Guarnição N° 1 e informou ao sentinela do portão que precisava falar com o Chefe do Serviço Médico (mencionando um nome que lhe era desconhecido) visto desejar oferecer seus serviços como voluntária no hospital. Ela pronunciou a palavra “serviço” de tal forma, que o sub-oficial imediatamente compreendeu que ela queria dizer “serviço de amor”. Como se tratava de uma senhora idosa, após alguma hesitação, permitiu que ela passasse. Em vez de encontrar o Chefe do Serviço Médico, contudo, chegou ela a um aposento grande e sombrio no qual estava grande número de oficiais e médicos do exército, alguns de pé e outros sentados em torno de uma longa mesa. Aproximou-se de um cirurgião da equipe com o seu pedido, e ele compreendeu o que ela queria dizer depois de ter esta pronunciado apenas algumas palavras. O fraseado real de seu discurso no sonho foi: “Eu e muitas outras mulheres e moças de Viena estamos prontas para…” nesta altura do sonho, suas palavras se transformaram num sussurro ininteligível “…para as tropas - oficiais e outras patentes, sem distinção.” Ela pôde compreender pela expressão do rosto dos oficiais em parte com uma expressão de constrangimento e em parte de malícia que todos haviam compreendido suas palavras corretamente. Prosseguiu a senhora: “Estou cônscia de que nossa decisão pode parecer surpreendente, mas nossa intenção é realmente séria. Ninguém pergunta a um soldado no campo de batalha se ele deseja morrer ou não.” Seguiu-se um incômodo silêncio de alguns minutos. O médico pôs então um braço em torno de sua cintura e disse: ‘Suponha, madame, que isso realmente viesse a… (murmúrio).” Ela afastou-se dele dizendo com os seus botões: “Ele é como todos os demais”, e retrucou: “Deus do Céu, sou uma velha e nunca poderia chegar a esse ponto. Além disso, há uma condição que deve ser observada: idade deve ser respeitada. Jamais deve acontecer que uma mulher idosa… (murmúrio) … um mero garoto. Isso seria terrível.” “Compreendo perfeitamente”, respondeu o médico. Alguns dos oficiais, e entre eles um que tinha sido pretendente à sua mão quando ela era jovem, riram alto. A seguir, a senhora pediu para ser levada à presença do Chefe do Serviço Médico, pessoa do seu conhecimento, de modo que todo o assunto pudesse ser deslindado, mas verificou, para sua consternação que não podia recordar-lhe o nome. Não obstante, o médico, com o máximo de cortesia e respeito, indicou-lhe o caminho até o segundo andar por uma escada de ferro em caracol muito estreita, que conduzia diretamente da sala até aos andares superiores do edifício. Quando subia, ouviu um oficial dizer: “Essa é uma tremenda decisão a tomar - não importa que uma mulher seja moça ou velha! Belo gesto o dela!” Sentindo simplesmente que estava cumprindo com seu dever ela subiu por uma interminável escada.’‘O sonho se repetiu por duas vezes no decurso de poucas semanas, conforme comentou a senhora, com apenas algumas modificações sem importância e carentes de sentido.’Por sua continuidade, este sonho se assemelha a uma fantasia diurna: nele há poucas interrupções, e alguns dos detalhes de seu conteúdo poderiam ter sido explicados se tivessem sido investigados; porém, como sabem, isto não foi feito. Do nosso ponto de vista, contudo, o que é notável e interessante é que o sonho apresenta diversas lacunas - lacunas não na memória da mulher que o sonhou, mas no conteúdo do próprio sonho. Em três pontos o conteúdo do sonho foi, por assim dizer, extinto; onde ocorrerem essas lacunas o falar foi interrompido por um murmúrio. Como não foi realizada nenhuma análise, estritamente falando, não temos o direito de dizer algo sobre o sentido do sonho. Não obstante, há indícios nos quais podem se fundamentar determinadas conclusões (por exemplo, na expressão ‘serviço de amor’); porém, acima de tudo, as partes do discurso imediatamente anteriores aos murmúrios exigem que sejam preenchidas as lacunas, e de forma nada ambígua. Ao fazermos as inserções, o conteúdo da fantasia se revela como sendo o seguinte: a mulher que teve o sonho, atendendo a uma obrigação patriótica, está apta a colocar-se à disposição das tropas, tanto de oficiais como de outras categorias, para satisfação das necessidades eróticas dos mesmos. Naturalmente, isso é muito censurável, é o modelo de uma fantasia libidinal desavergonhada - tal, porém, absolutamente não aparece no sonho. Precisamente nos pontos onde o contexto reforçados.Desejávamos, no entanto, perguntar quais são os propósitos que exercem a censura e contra que propósitos ela é exercida. Ora, esta questão, fundamental para o entendimento dos sonhos e talvez, na realidade, da vida humana, é fácil de responder se examinarmos a série de sonhos que foram interpretados. Os propósitos que exercem a censura são aqueles reconhecidos pelo julgamento vigil da pessoa que sonhou, aqueles com o quais o sonhador está de acordo. Os senhores podem ter a certeza de que, se rejeitarem uma interpretação de um de seus próprios sonhos, que tenha sido efetuada corretamente, assim estarão agindo pelos mesmos motivos pelos quais a censura do sonho foi exercida, a deformação do sonho foi ocasionada e a interpretação do sonho se tornou necessária. Vejam o sonho da senhora de cinqüenta anos de idade [ver em [1] e [2]]. Ela achou seu sonho repugnante, sem tê-lo analisado, e se teria indignado mais ainda se Dr. von Hug-Hellmuth lhe houvesse dito algo acerca de sua inevitável interpretação; foi precisamente porque essa senhora condenou o sonho que as passagens censuráveis do mesmo foram substituídas por um murmúrio.As tendências contra as quais se dirige a censura de sonhos devem ser descritas, em primeiro lugar, do ponto de vista dessa instância mesma. Assim sendo, apenas pode-se dizer que invariavelmente são de natureza repreensível, repulsiva do ponto de vista ético, estético e social - assuntos nos quais a pessoa absolutamente não se aventura a pensar, ou somente pensa com aversão. Esses desejos, que são censurados e recebem uma expressão deformada nos sonhos, são, primeiro e acima de tudo, manifestações de um egoísmo desenfreado e impiedoso. E, vejam só, o próprio ego do sonhador surge e desempenha o papel principal no sonho, apesar de muito bem saber esconder-se, para o que muito contribui o conteúdo manifesto. Este ‘sacro egoísmo’ dos sonhos certamente não é desprovido de alguma relação com a atitude que adotamos quando dormimos, que consiste em retirarmos nosso interesse de todo o mundo externo.O ego, liberto de todos os compromissos éticos, também se sente à vontade com todas as exigências do sexo, mesmo aquelas que por muito tempo têm sido condenadas pela nossa educação estética e aquelas que contrariam todos os requisitos das barreiras morais. O desejo de prazer - a ‘libido’, conforme o denominamos - escolhe sem inibição seus objetos e, de preferência, os proibidos: não somente as mulheres de outros homens, mas, acima de tudo, objetos incestuosos, objetos sagrados segundo o consenso da humanidade, mãe e irmã de um homem, pai e irmão de uma mulher. (O sonho dessa senhora de cinqüenta anos também era incestuoso; sua libido estava inequivocamente voltada para seu filho. (ver em [1] e [2].) Desejos sensuais, que imaginamos distantes da natureza humana, mostram-se suficientemente fortes para provocar o surgimento de sonhos. Também surgem ódios rancorosos, sem constrangimento. Desejos de vingança e de morte, dirigidos contra aqueles que nos são mais próximos e mais caros na vida desperta, contra os pais, irmãos e irmãs, marido ou esposa, e contra os próprios filhos, não são nada raros. Esses desejos censurados parecem nascer de um verdadeiro inferno; depois que são interpretados, quando estamos acordados, nenhuma censura a eles nos parece tão rigorosa. Porém, os senhores não devem acusar o próprio sonho por causa de seu conteúdo mau. Não se esqueçam de que ele executa a função inocente, e, na verdade, útil, de preservar o sono de qualquer perturbação. Essa ruindade não faz parte da natureza essencial dos sonhos. Com efeito, os senhores também sabem que há sonhos que podem ser reconhecidos como satisfação de desejos justificados e de necessidades corporais prementes. Estes, é verdade, não apresentam deformação; mas também não precisam de deformação, porque podem preencher sua função sem insultar os propósitos éticos e estéticos do ego. Atentem também para o fato de que a deformação do sonho é proporcional a dois fatores. Por um lado, ela é tão maior quanto pior é o desejo a ser censurado; mas, por outro lado, também se torna maior à medida que mais severas forem as exigências da censura no momento. Assim, uma moça, educada rigorosamente, pudica, com uma censura implacável, irá distorcer impulsos oníricos que nós, médicos, por exemplo, teríamos de considerar desejos libidinais permissíveis, inofensivos e acerca dos quais, dentro de dez anos, ela mesma fará julgamento igual.Ademais, ainda não fomos tão suficientemente longe a ponto de sentirmos indignação com esse resultado de nosso trabalho de interpretação. Penso que ainda não o compreendemos acertadamente; porém, nossa primeira obrigação é defendê-lo contra certas calúnias. Não há dificuldade em encontrar nele um ponto fraco. Nossas interpretações de sonhos são feitas com fundamento nas premissas que já aceitamos [ver em [1] e seg.]: que os sonhos em geral possuem um sentido, que é correto transportar do sono hipnótico para o normal o fato de existirem processos mentais que, na época considerada, são inconscientes, e que tudo o que ocorre à mente é determinado. Se, com base nessas premissas, tivéssemos chegado a achados plausíveis originados da interpretação de sonhos, deveríamos ter encontrado justificativa para concluir pela validade das premissas. Mas como conseguir isso, se esses achados parecem ser como lhes mostrei? Estaríamos, então, tentados a dizer: ‘Esses achados são impossíveis, carecem de sentido ou, pelo menos, são muito improváveis; portanto, havia algo de errado nas premissas. Ou os sonhos não são fenômenos psíquicos, ou não existe nada inconsciente no estado normal, ou nossa técnica apresenta em si uma falha. Não é mais simples e mais satisfatório supor assim, de preferência a aceitar todas as abominações que se supõe tenhamos descoberto baseados em nossas premissas?’Sim, com efeito! Mais simples e mais satisfatório, no entanto nem por isso necessariamente mais correto. Concedamo-nos tempo: o tema ainda não está maduro para julgamento. E em primeiro lugar, podemos reforçar ainda mais as críticas à nossa interpretação de sonhos. O fato de os achados provenientes dos sonhos serem tão desagradáveis e repulsivos talvez não devesse ter tanto peso. Um argumento mais forte é que as pessoas que têm os sonhos, a quem somos levados a atribuir essas intenções plenas de desejos mediante a interpretação de seus sonhos, as rejeitem muito enfaticamente, e por boas razões o fazem. ‘O quê?’ diz uma delas, ‘o senhor quer me convencer, com este sonho, de que eu lamento ter gasto dinheiro com o dote de minha irmã e com a instrução de meus irmãos? Mas não pode ser assim. Trabalho exclusivamente para meus irmãos e irmãs; não tenho nenhum outro interesse na vida senão cumprir minhas obrigações para com eles, o que, como o mais velho da família, prometera a minha falecida mãe fazer.’ Ou, então, uma mulher poderá dizer a propósito de seu sonho: ‘Pensa que eu desejaria ver meu marido morto? Isso é chocante disparate! É que não somente estamos vivendo um casamento muito feliz - o senhor provavelmente não acreditaria em mim se eu dissesse isso - mas a morte dele me roubaria tudo o que eu tenho neste mundo.’ Um outro homem nos respondeu: ‘O senhor diz que tenho desejos sensuais por minha irmã? Isso é ridículo! Ela não significa absolutamente nada para mim. Estamos brigados, e com ela não tenho trocado uma palavra há anos.’ Poderíamos, talvez, não dar maior importância se tais pessoas não confirmassem nem negassem as intenções que lhes atribuímos; poderíamos dizer que essas eram justamente coisas que elas desconheciam a respeito de si próprias. Porém, quando sentem em si mesmas justamente o contrário do desejo que lhes interpretamos, e quando conseguem provar-nos, através da vida que levaram, estarem dominadas por esse desejo contrário, seguramente somos tomados de surpresa. Não teria chegado a hora de abandonar todo o trabalho que executamos acerca da interpretação de sonhos, como algo cujos achados se reduziram ad absurdum?Não, ainda não. Até mesmo este argumento mais forte desmorona se o examinarmos criticamente. Tendo como certo que na vida mental existem intenções inconscientes, nada se prova ao mostrar que intenções opostas às intenções inconscientes dominam a vida consciente. Quem sabe, na mente há lugar para existirem lado a lado intenções opostas, contradições. Possivelmente, na verdade, a dominância de um impulso seja precisamente a condição necessária para que seu contrário seja inconsciente. Afinal, restam-nos então as primeiras objeções levantadas: as descobertas da interpretação de sonhos não são simples e são muito desagradáveis. À primeira delas podemos responder que toda a paixão dos senhores pelo que é simples não conseguirá solucionar um só dos problemas dos sonhos. Aqui, os senhores precisam se acostumar a enfrentar um complexo estado de coisas. E à segunda objeção podemos responder que os senhores se enganam redondamente quando usam um gostar ou não-gostar daquilo que sentem como fundamento de um julgamento científico. Que diferença faz se as descobertas da interpretação de sonhos lhes parecem desagradáveis ou, na realidade, embaraçosas e repulsivas? ‘Ça n’empêche pas d’exister‘, conforme ouvi meu mestre Charcot dizer, em situação semelhante, quando eu era um jovem médico. Deve-se ter humildade e refrear as simpatias e antipatias quando se deseja descobrir o que é real neste mundo. Se um físico pudesse provar-lhes que, em certo espaço de tempo, a vida orgânica neste planeta chegaria ao fim por meio do congelamento, os senhores se arriscariam a dar-lhe a mesma resposta: ‘Não pode ser assim, a perspectiva é tão desagradável assim?’ Penso que os senhores se calariam até que outro físico viesse e mostrasse ao primeiro um erro em suas premissas ou em seus cálculos. Quando os senhores rejeitam alguma coisa que lhes desagrada, o que fazem é repetir o mecanismo de construção dos sonhos, em vez de entendê-lo e superá-lo.Ora, os senhores poderão prometer não levar em conta o caráter desagradável dos sonhos de realização de desejo censurados, e se apoiarão no argumento de
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