Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Marxismo e Filosofia da Linguagem, Notas de estudo de Filosofia

Marxismo e Filosofia da Linguagem de Bakhtin (Volochnov)

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 23/06/2009

geovana-vargas-4
geovana-vargas-4 🇧🇷

1 documento

1 / 193

Documentos relacionados


Pré-visualização parcial do texto

Baixe Marxismo e Filosofia da Linguagem e outras Notas de estudo em PDF para Filosofia, somente na Docsity! 9 MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM BAKHTIN, Mikhail 12ª Edição – 2006 - HUCITEC 10 PREFÁCIO No livro publicado com a assinatura de V. N. Volochínov em Leningrado, 1929-1930, em duas edições sucessivas sob o título de Marksizm i filossófia iaziká (Marxismo e Filosofia da Linguagem), tudo, desde a página de título, só pode surpreender. Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras publicadas no final dos anos vinte e começo dos anos trinta com o nome de Volochínov – como, por exemplo, um volume sobre a doutrina do freudismo (1927) e alguns ensaios sobre a linguagem na vida e na poesia, assim como sobre a estrutura do enunciado – foram, na verdade, escritos por Bakhtin (1895-1975), autor de obras determinantes sobre a poética de Dostoievski e de Rabelais. Ao que parece, Bakhtin recusava-se a fazer concessões à fraseologia da época e a certos dogmas impostos aos autores. Os adeptos e discípulos do pesquisador, particularmente Volochínov (nascido em 1895, desaparecido pelo fim de 1930), com um pseudônimo escrupulosamente observado e graças a alguns retoques obrigatórios no texto e até no título, tentaram um compromisso que permitia preservar o essencial do grande trabalho. O que poderia surpreender igualmente aqueles leitores menos avisados da história do obscurantismo que da história do pensamento científico, é o completo desaparecimento do próprio nome desse eminente pesquisador de toda a imprensa russa durante quase um quarto de século (até 1963); quanto a seu livro sobre a filosofia da linguagem, só o vemos mencionado nesse mesmo período em alguns raros estudos lingüísticos do Ocidente. Recentemente, algumas citações desse livro foram feitas em publicações soviéticas de tiragem insignificante, como a coletânea dedicada ao 75o aniversário de Bakhtin, cuja edição foi de apenas 1.500 exemplares (Tártu, 1973). A obra em questão é reproduzida na série Janua Linguarum (Haia- Paris, 1972) e traduzida para o inglês (Nova Iorque, 1973), mas esse trabalho, como outras obras-primas do pensamento teórico 13 Aplicado à Crítica Literária. Introdução Crítica à Poética Sociológica) que constituiu uma crítica aos formalistas, foi publicado em 1928, também em Leningrado sob a assinatura de Medviédiev.1 Por que, então Bakhtin não os publicou com seu próprio nome? Não há dúvidas quanto à paternidade de suas obras. O conteúdo se inscreve perfeitamente na linha de suas publicações assinadas e, além disso, dispomos de testemunhos diretos. De qualquer modo, na época, o segredo foi bem guardado, pois Borís Pasternak, em uma carta endereçada a Medviédiev, manifestou seu entusiasmo e sua admiração pela presumida obra deste último e confessa que jamais pudera imaginar que em Medviédiev se ocultava “um tal filósofo”. Então, por que esse jogo de testa-de-ferro? Segundo o professor V. V. Ivánov, amigo e aluno de Bakhtin, haveria duas espécies de motivos: em primeiro lugar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo editor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do que mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam, então, proposto a endossar as modificações. A outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia científica. Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser assinado por seu autor. A este respeito, o professor Ivánov o compara a Kierkegaard, que também se escondeu sob pseudônimos. De qualquer forma, em 1929, no mesmo ano em que Volochínov assinava Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin publicou, finalmente, um primeiro livro com seu próprio nome Probliemi tvórtchestva Dostoiesvskovo (Problemas da Obra de Dostoievski2). Ele dedicará o resto de sua vida de pesquisador à análise estilística e literária. Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta. Nesta época, Bakhtin vivia na fronteira da Sibéria e do Casa- quistão, em Kustanai. Sempre ensinando, começou a compor sua monografia sobre Rabelais. Em 1936, foi nomeado para o Insti- 1 Esta terceira obra foi reeditada em 1971, na revista Trudi po znákovim sistiemam (Trabalhos sobre Sistemas de Signos), Universidade de Tártu, 1971. As outras duas nunca mais foram reimpressas. Mouton (Haia) publicou em 1972 um fac-símile da edição de 1929 do Marxismo e a Filosofia da Linguagem. 2 Tradução francesa sob o título: Problèmes de la Poétique de Dostoïevski, Lausanne, L’Âge d’Homme, 1970. 14 tuto Pedagógico de Saransk. Em 1937, instalou-se não muito longe de Moscou, em Kímri, onde viveu uma vida apagada até 1945, ensinando no colégio local e participando dos trabalhos do Instituto de Literatura da Academia de Ciências da U.R.S.S. Aí defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946. De 1945 a 1961, data de sua aposentadoria, ensina de novo em Saransk, terminando sua carreira na universidade desta cidade. A partir de 1963, começou a gozar de uma certa notoriedade, sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoievski (1963) e de sua tese sobre Rabelais: Tvórtchestvo François Rabelais i naródnaia kultura sriednevekóvia i Renessansa (A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da Renascença), Moscou, 19653. Em 1969, instalou-se em Moscou, onde publicou contribuições nas revistas Vopróssi literaturi (Questões de Literatura) e Kontiekst (Contexto). Morreu em Moscou, em 1975, após uma longa doença. II. Marxismo e Filosofia da Linguagem É difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto que se devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov, que deve a informação ao próprio Bakhtin, o título e certas partes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov. Não se poderia, evidentemente, colocar em questão as convicções marxistas de Bakhtin; o livro é marxista do começo ao fim. Todavia como sublinha Jakobson em seu prefácio, o título não deixa de surpreender, pois o conteúdo do livro é muito mais rico do que a capa deixa entrever. Bakhtin expõe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem mas ele aborda, ao mesmo tempo, praticamente todos os domínios das ciências humanas, por exemplo, a psicologia cognitiva, a etnologia, a pedagogia das línguas, a comunicação, a estilística, a crítica literária e coloca, de passagem, os fundamentos da semiologia moderna. Aliás, ele possui de todos esses domínios uma visão notavelmente unitária e muito avançada em relação a seu tempo. Contudo, e nesse aspecto o subtítulo Tentativa de aplicação do método sociológico em lingüística é muito revelador; trata-se, principalmente, de um livro sobre as relações entre linguagem e 3 Tradução francesa sob o título: François Rabelais et la Culture Populaire sous la Renaissance, Gallimard, 1970. 15 sociedade, colocado sob o signo da dialética do signo, enquanto efeito das estruturas sociais. Sendo o signo e a enunciação de natureza social, em que medida a linguagem determina a consciência, a atividade mental; em que medida a ideologia determina a linguagem? Tais são as questões que constituem o fio condutor do livro. Bakhtin foi o primeiro a abordar essas questões, que a humanidade se colocou muitas vezes antes dele, numa perspectiva marxista. Portanto, é indispensável situar sua reflexão em relação ao problema fundamental que foi suscitado pela aplicação da análise marxista à língua – a língua é uma superestrutura? – e conseqüentemente, em relação à controvérsia da lingüística soviética em torno desta questão, controvérsia à qual Stálin pôs fim em 1950 com A Propósito do Marxismo em Lingüística.4 Ao mesmo tempo, é preciso notar que, por sua crítica a Saussure – o representante mais eminente do que Bakhtin chamou o objetivismo abstrato – e aos excessos do estruturalismo nascente, ele antecede de quase cinqüenta anos as orientações da lingüística moderna. Veremos que os dois aspectos se confundem. Bakhtin coloca, em primeiro lugar, a questão dos dados reais da lingüística, da natureza real dos fatos da língua. A língua é, como para Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades da comunicação. Mas, ao contrário da lingüística unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da língua um objeto abstrato ideal, que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações (a fala) individuais, Bakhtin, por sua vez, valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez, estão sempre ligadas às estruturas sociais. Se a fala é o motor das transformações lingüísticas, ela não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comuni- cação, implica conflitos, relações de dominação e de resis- tência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc. Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro 4 Tradução francesa das Editions de la Nouvelle Critique, 1950. 18 mento esquemático. Na verdade, a distinção essencial que Bakhtin faz é entre “a atividade mental do eu” (não modelada ideologicamente, próxima da reação fisiológica do animal, característica do indivíduo pouco socializado) e a “atividade mental do nós” (forma superior que implica a consciência de classe). “O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por conseqüência, fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento”. Também não se pode tratar esquematicamente a questão da língua como superestrutura. Nos anos 20, no momento em que Bakhtin compõe sua obra, duas tendências se confrontam em lingüística, o formalismo e o sociologismo dito “vulgar”, o marrismo. Nicolau Marr leva a suas últimas conseqüências a assimilação da língua a uma superestrutura: existência de línguas de classe e de gramáticas de classe independentes e teoria da evo- lução “por saltos”; é difícil confirmar essa teoria nos fatos: a toda revolução na base deveria corresponder uma tão pronta evo- lução da língua. Tal é, em todo caso, a imagem, sem dúvida parcialmente deformada, que se pode fazer da teoria de Marr a partir da controvérsia de 1950. Bakhtin, por sua vez, insiste sobre a noção de processo ininterrupto. Para ele, a palavra veicula, de maneira privilegiada, a ideologia; a ideologia é uma superestrutura, as transformações sociais da base refletem-se na ideologia e, portanto, na língua que as veicula. A palavra serve como “indicador” das mudanças. Bakhtin não afirma jamais que a língua é uma superestrutura no sentido estrito definido por Marr, o qual acarretará, em 1950, a inapelável condenação stalinista: a base e as superestruturas estão sempre em interação. Em compensação, ele afirma claramente que a língua não é assimilável a um instrumento de produção. Ora, é precisamente esta assimilação que será formulada por Stálin, numa tentativa de dar uma imagem unificante, homogênea, neutra da língua em relação à luta de classes, o que o leva, paradoxalmente, a uma posição própria do objetvismo abstrato. Sabemos sobre que motivações de política interna (a questão das línguas nacionais na U.R.S.S.) repousava sua argumentação. Bakhtin denuncia o perigo de toda sistematização ou formalização exagerada das novas teorias: um sistema que estanca, perde sua vitalidade, seu dinamismo dialético. A acusação poderia se dirigir tanto a Marr como a Stálin. Bakhtin define a língua como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material. Como sua obra permaneceu 19 desconhecida tanto do público soviético como do público ocidental, só o confronto de posições extremas reteve a atenção. Todos aqueles que tinham escrúpulos em considerar a língua como uma superestrutura suspiraram aliviados em 1950, e pro- curaram esquecer a relação da língua com as estruturas sociais até uma época muito recente, com a emergência da sociolin- güística como lingüística e não como variante periférica ou meramente anedótica.5 Na terceira parte do livro, consagrada ao estudo da transmissão do “discurso de outrem”, Bakhtin fez uma aplicação prática das teses desenvolvidas nas duas primeiras. Dessa forma, busca demonstrar a natureza social e não individual das variações estilísticas. Com efeito, a maneira de integrar “o discurso de outrem” no contexto narrativo reflete as tendências sociais da interação verbal numa época e num grupo social dado. Apóia-se, para firmar sua tese, em citações extraídas de Púchkin, Dostoievski, Zola, Thomas Mann, isto é, de obras individuais que ele insere no contexto da época e, portanto, da orientação social que aí se manifesta. Aborda, igualmente, o papel do “narrador”, que toma o lugar do autor da narrativa, com as interferências que isso implica. Esta é, certamente, uma de suas contribuições mais originais. Não há para ele fronteira clara entre gramática e estilística. O discurso indireto constitui um discurso encaixado no interior do qual se manifesta uma interação dinâmica. A passagem do estilo direto ao estilo indireto não se faz de maneira mecânica (isto lhe dá a oportunidade de criticar os exercícios escolares “estruturais”, crítica que permanece totalmente pertinente hoje em dia). Essa passagem implica análise e reformulação completa, acompanhadas de um deslocamento e/ou de um entrecruzamento dos “acentos apreciativos” (modalidade). A análise estilística, parte integrante da lingüística, aparece como a preocupação essencial de Bakhtin. A lingüística – como, ao que 5 Ver a este respeito, na França, as posições de Cohen, Mounin, Marcellesi, Gardin, Dubois, Calvet, Encrevé, etc. Eu citaria simplesmente Marcel Cohen: É preciso ver em que medida a linguagem, assim como a ciência, vai dar na superestrutura por certos aspectos de seu emprego, ligando-se a instituições propriamente ditas ou a elementos ideológicos”. (Matériaux pour une Sociologie du Langage, Maspero, 1956). 20 parece, para Saussure6 – surge como o instrumento privilegiado e indispensável para levar a bom termo os trabalhos de análise literária, que ocuparão a maior parte de sua vida. Como Saussure, ele é, em vários aspectos, um homem do século XIX, um homem de gabinete, de cultura enciclopédica, um verdadeira “não-especialista”. É entre pessoas assim, que freqüentemente, encontramos os melhores especialistas de uma disciplina. Bibliografia V. V. Ivánov, “O Bakhtine i semiotike” (Bakhtin e a Semiótica”), in Rossía (Rússia), 1, Nápoles, 1975; “Znatchénie idiéi Bakhtina o znákie, viskazivánie i dialóguie dliá sovremiénnoi semiotiki” (A Significação das Idéias de Bakhtin sobre o Signo, a Enunciação e o Diálogo para a Semiótica Moderna), in Trúdi po znákovim sistiemam (Trabalhos sobre Sistemas de Signos), Universidade de Tártu, 1973. Ver também “Ótcheki po istorii semiotiki v SSSR” (Ensaios para uma História da Semiótica na U.R.S.S.), Moscou, 1976. Marina Yaguello 6 Ver L. J. Calvet, Pour et contre Saussure, Payot, 1976. 23 Capítulo 11. Discurso Indireto Livre em Francês, Alemão e Russo. 174 Discurso indireto livre em francês. Teoria de Tobler. Teoria de Kalepky. Teoria de Bally. Crítica do objetivismo abstrato hipostático de Bally. Bally e os vosslerianos. Discurso indireto livre em alemão. Teoria de Eugen Lerch. Teoria de Lerch. Teoria de Lorck sobre o papel da imaginação na língua. Teoria de Gertraud Lerch. O discurso citado em francês antigo. Na época do Renascimento. Discurso indireto livre em La Fontaine e La Bruyère. Discurso indireto livre segundo Vossler. Aparição do discurso indireto livre em alemão. Crítica do subjetivismo hipostatizante dos vosslerianos 24 PRÓLOGO Não existe, atualmente, uma única análise marxista no domínio da filosofia da linguagem. Nem sequer há nos trabalhos marxistas relativos a outras questões, próximas daquelas da linguagem, alguma formulação, a respeito desta, que seja um pouco precisa e desenvolvida. Portanto, a problemática de nosso trabalho, que desbrava, de certa forma, um terreno ainda virgem, só pode, evidentemente, situar-se num nível bastante modesto. Não se trata de uma análise marxista sistemática e definitiva dos problemas básicos da filosofia da linguagem. Tal análise só poderia resultar de um trabalho coletivo de grande fôlego. De nossa parte, tivemos que nos restringir à simples tarefa de esboçar as orientações de base que uma reflexão aprofundada sobre a linguagem deveria seguir e os procedimentos metodológicos a partir dos quais essa reflexão deve estabelecer-se para abordar os problemas concretos da lingüística. A atual inexistência, na literatura marxista, de uma descrição definitiva e universalmente reconhecida da realidade específica dos problemas ideológicos tornou nossa tarefa particularmente complexa. Na maioria dos casos, esses problemas são percebidos como manifestações da consciência, isto é, como fenômenos de natureza psicológica. Uma tal concepção constituiu um grande obstáculo ao estudo correto dos aspectos específicos dos fenômenos ideológicos, os quais não podem, de forma alguma, ser reduzidos às particularidades da consciência e do psiquismo. Por isso, o papel da língua, como realidade material específica da criação ideológica, não pôde ser justamente apreciado. É preciso acrescentar a isso que categorias do tipo mecani- cista implantaram-se solidamente em todos os domínios a respeito dos quais os pais fundadores – Marx e Engels – pouco ou nada disseram. Esses domínios, portanto, encontram-se, com respeito ao essencial, no estádio do materialismo mecanicista pré-dialético. Todos os domínios da ciência das ideologias acham-se, atualmente, ainda dominados pela categoria da causalidade mecanicista. Além 25 disso, persiste ainda a concepção positivista do empirismo, que se inclina diante do “fato”, entendido não dialeticamente, mas como algo intangível e imutável. Praticamente, o espírito filosófico do marxismo ainda não penetrou nesses domínios. Por essas razões, foi-nos quase totalmente impossível encontrar apoio em resultados precisos e positivos que tivessem sido obtidos pelas outras ciências que se relacionam com a ideologia. Mesmo a crítica literária, que, graças a Plekhánov, é, todavia, a mais desenvolvida dessas ciências, nada pôde fornecer de útil a nossa objeto de estudo. Este livro apresenta-se, essencialmente, como um trabalho de pesquisa, mas tentamos conferir-lhe uma forma acessível ao grande público. Na primeira parte de nosso trabalho, tentamos mostrar a importância dos problemas da filosofia da linguagem para o marxismo em seu conjunto. Essa importância não tem sido, como dissemos, suficientemente apreciada. E, no entanto, os problemas da filosofia da linguagem situam-se no ponto de convergência de uma série de domínios essenciais para a concepção marxista do mundo e de alguns domínios que têm interessado muito, atualmente, nossa opinião pública. Convém acrescentar que, nesses últimos anos, os problemas fundamentais da filosofia da linguagem adquiriram uma acuidade e uma importância excepcionais. Pode-se dizer que a filosofia burguesa contemporânea está se desenvolvendo sob o signo da palavra. E essa nova orientação do pensamento filosófico do Ocidente está ainda só nos seus primeiros passos. A “palavra” e sua situação no sistema são a parada de uma luta inflamada somente comparável àquela que, na Idade Média, opôs realistas, nominalistas e conceitualistas. Na realidade, no realismo dos fenomenólogos e no conceitualismo dos neokantianos, assistimos, numa certa medida, a um renascimento da tradição das escolas filosóficas medievais. Na lingüística propriamente dita, após a era positivista, marcada pela recusa de qualquer teorização dos problemas científicos, a que se adiciona uma hostilidade, por parte dos positivistas retardatários, em relação aos problemas de visão do mundo, assiste-se a uma nítida tomada de consciência dos fundamentos filosóficos dessa ciência e de suas relações com os outros domínios do conhecimento. E isso serviu para denunciar a crise que a lingüística atravessa, na sua incapacidade de resolver seus problemas de modo satisfatório. 28 PRIMEIRA PARTE A FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MARXISMO 29 CAPÍTULO 1 ESTUDO DAS IDEOLOGIAS E FILOSOFIA DA LINGUAGEM Os problemas da filosofia da linguagem adquiriram, recentemente, uma atualidade e uma importância excepcionais para o marxismo. Na maioria dos setores mais importantes de seu desenvolvimento científico, o método marxista vai diretamente de encontro a esses problemas e não pode avançar de maneira eficaz sem submetê-los a um exame específico e encontrar-lhes uma solução. Para começar, as bases de uma teoria marxista da criação ideológica – as dos estudos sobre o conhecimento científico, a literatura, a religião, a moral, etc. – estão estreitamente ligadas aos problemas de filosofia da linguagem. Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. Um corpo físico vale por si próprio: não significa nada e coincide inteiramente com sua própria natureza. Neste caso, não se trata de ideologia. No entanto, todo corpo físico pode ser percebido como símbolo: é o caso, por exemplo, da simbolização do princípio de inércia e de necessidade na natureza (determinismo) por um determinado objeto único. E toda imagem artístico-simbólica ocasionada por um objeto físico particular já é um produto ideológico. Converte-se, assim, em signo o objeto físico, o qual, sem deixar de fazer parte da realidade material, passa a refletir e a refratar, numa certa medida, uma outra realidade. O mesmo se dá com um instrumento de produção. Em si mesmo, um instrumento não possui um sentido preciso, mas apenas uma função: desempenhar este ou aquele papel na pro- 30 dução. E ele desempenha essa função sem refletir ou representar alguma outra coisa. Todavia, um instrumento pode ser convertido em signo ideológico: é o caso, por exemplo, da foice e do martelo como emblema da União Soviética. A foice e o martelo possuem, aqui, um sentido puramente ideológico. Todo instrumento de produção pode, da mesma forma, se revestir de um sentido ideológico: os instrumentos utilizados pelo homem pré-histórico eram cobertos de representações simbólicas e de ornamentos, isto é, de signos. Nem por isso o instrumento, assim tratado, torna-se ele próprio um signo. Por outro lado, é possível dar ao instrumento uma forma artística, que assegure uma adequação harmônica da forma à função na produção. Nesse caso, produz-se uma espécie de aproximação máxima, quase uma fusão, entre o signo e o instrumento. Mas mesmo aqui ainda discernimos uma linha de demarcação conceitual: o instrumento, enquanto tal, não se torna signo e o signo, enquanto tal, não se torna instrumento de produção. Qualquer produto de consumo pode, da mesma forma, ser transformado em signo ideológico. O pão e o vinho, por exemplo, tornam-se símbolos religiosos no sacramento cristão da comunhão. Mas o produto de consumo enquanto tal não é, de maneira alguma, um signo. Os produtos de consumo, assim como os instrumentos, podem ser associados a signos ideológicos, mas essa associação não apaga a linha de demarcação existente entre eles. O pão possui uma forma particular que não é apenas justificável pela sua função de produto de consumo; essa forma possui também um valor, mesmo que primitivo, de signo ideológico (por exemplo o pão com a forma de número oito ou de uma roseta). Portanto, ao lado dos fenômenos naturais, do material tecnológico e dos artigos de consumo, existe um universo particular, o universo de signos. Os signos também são objetos naturais, específicos, e, como vimos, todo produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar- se signo e adquirir, assim, um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades. Um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser-lhe fiel, ou apreendê-la de um ponto de vista específico, etc. Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é: se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico. 33 A regularidade social objetiva da criação ideológica, quan- do indevidamente interpretada como estando em conformidade com as leis da consciência individual, deve, inevitavelmente, ser excluída de seu verdadeiro lugar na existência e transportada quer para a empíreo supra-existencial do transcendentalismo, quer para os recônditos pré-sociais do organismo psicofisiológico, biológico. No entanto, o ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infra-humanas. Seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem. Sua especificidade reside, precisamente, no fato de que ele se situa entre indivíduos organizados, sendo o meio de sua comunicação. Os signos só podem aparecer em um terreno interindividual. Ainda assim, trata-se de um terreno que não pode ser chamado de “natural” no sentido usual da palavra2: não basta colocar face a face dois homo sapiens quaisquer para que os signos se constituam. É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social. A consciência individual é um fato sócio-ideológico. Enquanto esse fato e todas as suas conseqüências não forem devidamente reconhecidas, não será possível construir nem uma psicologia objetiva nem um estudo objetivo das ideologias. É justamente o problema da consciência que criou as maiores dificuldades e gerou a formidável confusão que encontramos em todas as discussões relativas tanto à psicologia quanto ao estudo das ideologias. De maneira geral, a consciência tornou-se o asylum ignorantiae de todo edifício filosófico. Foi transformada em depósito de todos os problemas não resolvidos, de todos os resíduos objetivamente irredutíveis. Ao invés de se buscar uma definição objetiva da consciência, esta foi usada para tornar subjetivas e fluidas certas noções até então sólidas e objetivas. A única definição objetiva possível da consciência é de ordem sociológica. A consciência não pode derivar diretamente da natureza, como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingênuo e a psicologia contemporânea (sob suas diferentes formas: 2 A sociedade, evidentemente, é também uma parte da natureza, mas uma parte que é qualitativamente distinta e separada dela e que possui seu próprio sistema de leis específicas. 34 biológica, behaviorista, etc.). A ideologia não pode derivar da consciência, como pretendem o idealismo e o positivis- mo psicologista. A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a maté- ria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem. Tudo o que dissemos acima conduz ao seguinte princípio metodológico: o estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela. Como veremos, é antes o contrário que é verdadeiro: a psicologia objetiva deve se apoiar no estudo das ideologias. A realidade dos fenômenos ideológicos é a realidade objetiva dos signos sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e econômicas. A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos. Preliminarmente, portanto, separando os fenômenos ideológicos da consciência individual nós os ligamos às condições e às formas da comunicação social. A existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação. É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos. Mas esse espaço semiótico e esse papel contínuo da comuni- cação social como fator condicionante não aparecem em nenhum lugar de maneira mais clara e completa do que na linguagem. A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. O valor exemplar, a representatividade da palavra como fenômeno ideológico e a excepcional nitidez de sua estrutura semiótica já deveriam nos fornecer razões suficientes para colocarmos a palavra em primeiro plano no estudo das ideologias. É, precisamente, na 35 palavra que melhor se revelam as formas básicas, as formas ideológicas gerais da comunicação semiótica. Mas a palavra não é somente o signo mais puro, mais indica- tivo; é também um signo neutro. Cada um dos demais sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. O signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa. Além disso, existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se da comunicação na vida cotidiana. Esse tipo de comunicação é extraordinariamente rica e importante. Por um lado, ela está diretamente vinculada aos processos de produção e, por outro lado, diz respeito às esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas. Trataremos, no próximo capítulo, com maior detalhe desse domínio especial que é a ideologia do cotidiano. Por ora, notemos apenas que o material privilegiado da comunicação na vida cotidiana é a palavra. É justamente nesse domínio que a conversação e suas formas discursivas se situam. Há uma outra propriedade da palavra que é da maior importância e que a torna o primeiro meio da consciência individual. Embora a realidade da palavra, como a de qualquer signo, resulte do consenso entre os indivíduos, uma palavra é, ao mesmo tempo, produzida pelos próprios meios do organismo individual, sem nenhum recurso a uma aparelhagem qualquer ou a alguma outra espécie de material extracorporal. Isso determinou o papel da palavra como material semiótico da vida interior, da consciência (discurso interior). Na verdade, a consciência não poderia se desenvolver se não dispusesse de um material flexível, veiculável pelo corpo. E a palavra constitui exatamente esse tipo de material. A palavra é, por assim dizer, utilizável como signo interior; pode funcionar como signo sem expressão externa. Por isso, o problema da consciência individual como problema da palavra interior, em geral constitui um dos problemas fundamentais da filosofia da linguagem. É claro que esse problema não pode ser abordado corretamente se se recorre aos conceitos usuais de palavra e de língua tais como foram definidos pela lingüística e pela filosofia da lingua- gem não-sociológicas. É preciso fazer uma análise profunda e aguda 38 CAPÍTULO 2 A RELAÇÃO ENTRE A INFRA-ESTRUTURA E AS SUPERESTRUTURAS Um dos problemas fundamentais do marxismo, o das relações entre a infra-estrutura e as superestruturas, acha-se intimamente ligado, em muitos de seus principais aspectos, aos problemas da filosofia da linguagem. O marxismo só tem pois a ganhar com a resolução ou, pelo menos, com o tratamento, ainda que não muito aprofundado, destas questões. Sempre que se coloca a questão de saber como a infra-estrutura determina a ideologia, encontramos a seguinte resposta que, embora justa, mostra-se por demais genérica e por isso ambígua: “a causalidade”. Se for necessário entender por causalidade a mecanicista, como tem sido entendida até hoje pela corrente positivista da escola naturalista, então uma tal resposta se revela radicalmente mentirosa e contraditória com os próprios fundamentos do materialismo dialético. A esfera de aplicação da categoria de causalidade mecanicista é extremamente limitada; mesmo nas ciências naturais ela se reduz cada vez mais à medida que o materialismo dialético alarga seu campo de aplicação e aprofunda suas teses. Está fora de questão, a fortiori, aplicar esta categoria inerte aos problemas fundamentais do materialismo histórico ou a qualquer ciência das ideologias. A explicitação de uma relação entre a infra-estrutura e um fenômeno isolado qualquer, destacado de seu contexto ideoló- gico completo e único, não apresenta nenhum valor cognitivo. Antes de mais nada, é impossível estabelecer o sentido de uma dada transformação ideológica no contexto da ideologia correspondente, considerando que toda esfera ideológica se apre- senta como um conjunto único e indivisível cujos elementos, sem exceção, reagem a uma transformação da infra-estrutura. Eis porque toda explicação deve ter em conta a diferença quantitativa entre as esferas de influência recíproca e seguir passo a passo todas as etapas da transformação. Apenas sob esta condição a análise desembo- 39 cará, não na convergência superficial de dois fenômenos fortuitos e situados em planos diferentes, mas num processo de evolução social realmente dialético, que procede da infra-estrutura e vai tomar forma nas superestruturas. Ignorar a especificidade do material semiótico-ideológico, é reduzir o fenômeno ideológico, é tomar em consideração e explicar apenas seu valor denotativo racional (por exemplo, o sentido diretamente representativo de uma dada obra literária: Rúdin = “o homem supérfluo”*,. componente este colocado então em relação com a infra- estrutura (aqui, o empobrecimento da nobreza, donde o tema “homem supérfluo” na literatura), ou então, ao contrário, é isolar apenas o componente superficial, “técnico”, do fenômeno ideológico (exemplo: a técnica arquitetônica, ou ainda a técnica dos colorantes químicos) e, neste caso, este componente deduz-se diretamente do nível técnico da produção. Tanto um quanto outro método de dedução da ideologia a partir da infra-estrutura passam à margem da substância do fenômeno ideológico. Mesmo se a correspondência estabelecida for justa, mesmo se “o homem supérfluo” tiver efetivamente aparecido na literatura em correlação com a decadência econômica da nobreza, em primeiro lugar, disto não decorre em absoluto que os reveses econômicos correspondentes engendrem por um fenômeno de causalidade mecanicista “homens supérfluos” nas páginas dos romances (a futilidade de uma tal suposição é absolutamente evidente); em segundo lugar, esta correspondência não tem nenhum valor cognitivo enquanto não se explicitarem o papel específico do “homem supérfluo” na estrutura da obra romanesca e o papel específico do romance no conjunto da vida social. Não parece evidente que entre a transformação da estrutura econômi- ca e o aparecimento do “homem supérfluo” no romance existe um longo percurso que passa por uma série de esferas qualitati- vamente diferenciadas, estando cada uma delas dotada de um con- junto de regras específicas e de um caráter próprio? Não parece evi- * Título de um célebre romance de Turguiéniev, que constitui a confissão de toda uma geração, a dos anos 1830, conhecida na história russa pelo nome de “geração idealista” e marcada pela sua incapacidade de agir. Dela podemos aproximar os personagens “Oblómov” em Oblómov de I.A. Gontcharov, “Deltov” em De quem é a Culpa? de A. I. Herzen e “Bazárov” em Pais e Filhos de Turguiéniev. (N.d.T.f.). 40 dente que “o homem supérfluo” não surgiu no romance de for- ma independente e sem qualquer ligação com os outros ele- mentos constitutivos do romance? Bem ao contrário, o romance no seu conjunto reestruturou-se como um todo único, orgânico, subme- tido a suas próprias leis específicas. Portanto, reestruturam-se tam- bém todos os outros elementos do romance; sua composição, seu estilo. Mas esta reestruturação do romance completou-se também em estreita ligação com as demais transformações no conjunto da literatura. O problema da relação recíproca entre a infra-estrutura e as superestruturas, problema dos mais complexos e que exige, para sua resolução fecunda, um volume enorme de materiais preliminares, pode justamente ser esclarecido, em larga escala, pelo estudo do material verbal. De fato, a essência deste problema, naquilo que nos interessa, liga-se à questão de saber como a realidade (a infra-estrutura) determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformação. As características da palavra enquanto signo ideológico, tais como foram ressaltadas no primeiro capítulo, fazem dela um dos mais adequados materiais para orientar o problema no plano dos princípios. Não é tanto a pureza semiótica da palavra que nos interessa na relação em questão, mas sua ubiqüidade social. Tanto é verdade que a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais. O que chamamos de psicologia do corpo social e que constitui, segundo a teoria de Plekhánov e da maioria dos marxistas, uma espécie de elo de ligação entre a estrutura sócio-política e a ideo- logia no sentido estrito do termo (ciência, arte, etc.), reali- 43 hierarquizada da sociedade têm uma importância imensa no processo de explicitação dos principais modos de comportamento1. Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. Uma modificação destas formas ocasiona uma modificação do signo. É justamente uma das tarefas da ciência das ideologias estudar esta evolução social do signo lingüístico. Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao problema da mútua influência do signo e do ser; é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um processo de refração realmente dialético do ser no signo. Para tanto, é indispensável observar as seguintes regras metodológicas: 1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível). 2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico). 3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material (infra-estrutura). Realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico, e portanto também o signo lingüístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados. Até agora tratamos da forma do signo enquanto determinado pelas formas da interação social. Iremos agora abordar um outro aspecto, o do conteúdo do signo e do índice de valor que afeta todo conteúdo. A cada etapa do desenvolvimento da sociedade, encontram-se grupos de objetos particulares e limitados que se tornam objeto da 1 O problema dos registros da língua familiar só começou a chamar a atenção dos lingüistas e filósofos bem recentemente. 44 atenção do corpo social e que, por causa disso, tomam um valor particular. Só este grupo de objetos dará origem a signos, ––––––––– Leo Spitzer, num artigo intitulado “Italienische Umgangsprache” (1922) foi um dos primeiros a abordar este problema de forma séria, embora destituída de critérios sociológicos. Ele será citado adiante, juntamente com seus precursores e imitadores. tornar-se-á um elemento da comunicação por signos. Como se pode determinar este grupo de objetos “valorizados”? Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reação semiótico-ideológica, é indispensável que ele esteja ligado às condições sócio-econômicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira às bases de sua existência material. Evidentemente, o arbítrio individual não poderia desempenhar aqui papel algum, já que o signo se cria entre indivíduos, no meio social; é portanto indispensável que o objeto adquira uma significação interindividual; somente então é que ele poderá ocasionar a formação de um signo. Em outras palavras, não pode entrar no domínio da ideologia, tomar forma e aí deitar raízes senão aquilo que adquiriu um valor social. É por isso que todos os índices de valor com caracterís- ticas ideológicas, ainda que realizados pela voz dos indivíduos (por exemplo, na palavra) ou, de modo mais geral, por um orga- nismo individual, constituem índices sociais de valor, com pre- tensões ao consenso social, e apenas em nome deste consenso é que eles se exteriorizam no material ideológico. Admitamos chamar a realidade que dá lugar à formação de um signo de tema do signo. Cada signo constituído possui seu tema. Assim, cada manifestação verbal tem seu tema2. O tema ideológico possui sempre um índice de valor social. Por certo, todos estes índices sociais de valor dos temas ideológicos chegam igualmente à consciência individual que, como sabemos, é toda ideologia. Aí eles se tornam, de certa forma, índices individuais de valor, na medida em que a consciência individual os absorve como sendo seus, mas sua fonte não se encontra na consciência individual. 2 A relação do tema com a semântica das palavras individuais que constituem a enunciação será retomada adiante, em seus pormenores. 45 O índice de valor é por natureza interindividual. O grito do animal, enquanto pura reação de um organismo individual à dor, é despido de índice de valor. É um fenômeno puramente natural. O grito não depende da atmosfera social, razão pela qual ele não recebe sequer o esboço de uma formalização semiótica. O tema e a forma do signo ideológico estão indissoluvelmente ligados, e não podem, por certo, diferenciar-se a não ser abstratamente. Tanto é verdade que, em última análise, são as mesmas forças e as mesmas condições que dão vida a ambos. Afinal, são as mesmas condições econômicas que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente, e são as mesmas forças que criam as formas da comunicação ideológica (cognitiva, artística, religiosa, etc.), as quais determinam, por sua vez, as formas da expressão semiótica. Assim, os temas e as formas da criação ideológica crescem juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma só e mesma coisa. Este processo de integração da realidade na ideologia, o nascimento dos temas e das formas, se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra. Este processo de transformação ideológica refletiu-se na língua, em grande escala, no mundo e na história; é ele objeto de estudo da paleontologia das significações lingüísticas, que põe em evidência a integração de planos da realidade ainda não diferenciados no horizonte social dos homens pré-históricos. Sucede o mesmo, em escala mais reduzida, na época contemporânea, já que a palavra, como sabemos, reflete sutilmente as mais imperceptíveis alterações da existência social. O ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata. O que é que determina esta refração do ser no signo ideológico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma só e mesma comunidade semiótica, ou seja: a luta de classes. Classe social e comunidade semiótica não se confundem. Pelo segundo termo entendemos a comunidade que utiliza um único e mesmo código ideológico de comunicação. Assim, classes sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua. Conseqüentemente, em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes. Esta plurivalência social do signo ideológico é um traço da maior importância. Na verdade, é este entrecruzamento dos índices de 48 O primeiro e principal problema que se coloca, a partir dessa ótica, é o da apreensão objetiva da “vivência interior”. É indispensável integrar a “vivência interior” na unidade da vivência exterior objetiva. Que tipo de realidade pertence ao psiquismo subjetivo? A realidade do psiquismo interior é a do signo. Sem material semiótico, não se pode falar em psiquismo. Pode-se falar de processos fisiológicos, de processos do sistema nervoso, mas não de processo do psiquismo subjetivo, uma vez que ele é um traço particular do ser, radicalmente diferente, tanto dos processos fisiológicos que se desenrolam no organismo, quanto da realidade exterior ao organismo, realidade à qual o psiquismo reage e que ele reflete, de uma maneira ou de outra. Por natureza, o psiquismo subjetivo localiza-se no limite do organismo e do mundo exterior, vamos dizer, na fronteira dessas duas esferas da realidade. É nessa região limítrofe que se dá o encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas este encontro não é físico: o organismo e o mundo encontram-se no signo. A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato entre o organismo e o meio exterior. Eis porque o psiquismo interior não deve ser analisado como uma coisa; ele não pode ser compreendido e analisado senão como um signo. A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação é muito antiga e sua história é muito instrutiva. É sintomático que, nos últimos tempos, em ligação com as exigências metodológicas das ciências humanas, isto é, das ciências que se ocupam das ideologias, ele tenha sido objeto de argumentações mais profundas. Um dos seus defensores mais ardentes e bem fundamentados foi Wihelm Dilthey. Para ele a atividade psíquica não se define em termos de existência, como se diria para uma coisa, mas em termos de significação. Se perdermos de vista esta significação, se tentarmos alcançar a realidade pura da atividade mental, na realidade, encontramo-nos segundo Dilthey, diante de um processo fisiológico do organismo, perdemos de vista a atividade mental. Da mesma maneira que, se nós perdemos de vista a significação da palavra, perdemos a própria palavra, que fica, assim, reduzida à sua realidade física, acompanhada do processo fisiológico de sua produção. O que faz da palavra uma palavra é sua significação. O que faz da atividade psíquica uma atividade psíquica é, da mesma forma, sua significação. Se abstrairmos a significação, perdemos, ao mesmo tempo, a própria substância da vida psíquica interior. É por isso que o objetivo da psicologia não poderia ser explicar os fenômenos psíquicos pela causalidade, como se fossem análogos aos processos físicos ou fisiológicos. Assim, a tarefa da 49 psicologia consiste em descrever com discernimento, dissecar e explicar a vida psíquica como se se tratasse de um documento submetido à análise do filólogo. Segundo Dilthey, somente uma psicologia descritiva e explicativa deste tipo pode servir de base às ciências humanas ou às “ciências do espírito”, como eles as chama2. As idéias de Dilthey revelaram-se muito fecundas e continuam a ter, em nossos dias, numerosos adeptos entre os pesquisadores em ciências humanas. Pode-se dizer que a quase totalidade dos eruditos alemães contemporâneos que se ocupam da filosofia estão, alguns mais, outros menos, sob a influência das idéias de W. Dilthey3. A teoria de Wilhelm Dilthey formou-se sobre um terreno idealista e seus seguidores permaneceram neste terreno. A idéia de uma psicologia de análise e de interpretação está estreitamente ligada às premissas idealistas do pensamento, e a muitos aparece como uma idéia especificamente idealista. Realmente, a partir da forma pela qual a psicologia interpretativa foi criada e se desenvolveu até o presente, ela é idealista, e, portanto, inaceitável para o materialismo dialético. Mas, o mais inaceitável é a primazia metodológica da psicologia sobre a ideologia. Segundo a visão de Dilthey e dos outros representantes da psicologia interpretativa, ela deve ser a base de todas as ciências humanas. A ideologia é explicada em termos da psicologia – como a sua expressão e materialização – e não o inverso. É verdade que se diz haver entre o psiquismo e a ideologia uma proximidade, um denominador comum, a significação, que os distingue do resto da realidade, mas afirma-se que é a psicologia, não a ideologia, que dá o tom dessa aproximação. Por sua vez, nas idéias de Dilthey e outros, não se leva em conta o caráter social do signo. E finalmente, e isto constitui o proton pseudos, a primeira mentira de toda sua concepção, não se compreende o vínculo indispensável entre o signo e a significação. Não se percebe a natureza específica do signo. 2 Ver, a este propósito, o artigo em língua russa de Frischeizen- Keller em Logos, 1912-1913, vol. 1 e 2. 3 Sobre a influência de Dilthey, enquanto iniciador dessa corrente, ver Oskar Wahlzehl, Wilhelm Hundolf, Emil Ehrmattinger e outros. Citaremos apenas os representantes mais significativos das ciências humanas, na Alemanha contemporânea. 50 Na verdade, a relação entre atividade mental e palavra, em Dilthey, não passa de uma analogia, destinada a esclarecer uma idéia e, além disso, só muito raramente a encontramos em sua obra. Ele está muito distante de extrair desta comparação as conclusões que se impõem. Por outro lado, não é o psiquismo que ele explica com a ajuda do signo, mas ao contrário, como bom idealista, é o signo que ele explica através do psiquismo. O signo só se torna signo, em Dilthey, na medida em que serve para expressar a vida interior. Esta última confere ao signo uma significação que lhe é inerente. Aqui, a construção de Dilthey encarna uma tendência comum ao conjunto da corrente idealista, que consiste em privar de todo sentido, de toda significação, o mundo material em benefício de um “espírito” fora do tempo e do espaço. Se a atividade mental tem uma significação, se ela não é apenas uma realidade isolada – em relação a esse aspecto Dilthey tem razão – então, obrigatoriamente, a atividade mental deve manifestar-se no terreno semiótico. Tanto isso é verdade que a significação só pode pertencer ao signo – sem o que, ela se torna uma ficção. A significação constitui a expressão da relação do signo, como realidade isolada, com uma outra realidade, por ela substituível, representável, simbolizável. A significação é a função do signo; eis porque é impossível representar a significação (enquanto propriedade puramente relacional, funcional) à parte do signo, como algo independente, particular. Isso é tão exeqüível como considerar a significação da palavra cavalo como sendo o cavalo particular que tenho diante dos meus olhos. Se assim fosse, seria possível, tendo comido uma maçã, dizer que se comeu não uma maçã, mas a significação da palavra maçã. O signo é uma unidade material discreta, mas a significação não é uma coisa e não pode ser isolada do signo como se fosse uma realidade independente, tendo uma existência à parte do signo. É por isso que, se a atividade mental tem um sentido, se ela pode ser compreendida e explicada, ela deve ser analisada por intermédio do signo real e tangível. É preciso insistir sobre o fato de que não somente a atividade mental é expressa exteriormente com a ajuda do signo (assim como nos expressamos para os outros por palavras, mímica ou qualquer outro meio) mas, ainda, que para o próprio indivíduo, ela só existe sob a forma de signos. Fora deste material semiótico, a atividade interior, enquanto tal, não existe. Nesse sentido, toda atividade mental é exprimível, isto é, constitui uma expressão potencial. Todo pensamento, toda emoção todo 53 sistema de leis, ou ainda uma apreciação ética, etc... Esse aspecto objetivo, orientado, da atividade interior é uma propriedade da natureza, da cultura, ou da história e, conseqüentemente, é da competência das disciplinas científicas correspondentes e não da psicologia. A outra faceta da atividade mental é a função de qualquer conteúdo objetivo dentro do sistema fechado da vida psíquica individual. Desta maneira, o objeto da psicologia é a atividade mental efetivada ou em vias de efetivar-se a propósito de todo con- teúdo extrapsíquico. Em outras palavras, o objeto da psicologia funcionalista não é o quê? mas o como? da atividade mental. Assim, por exemplo, o conteúdo de um processo de pensamento qualquer, o seu quê?, não é psíquico e depende da competência do lógico, do teórico do conhecimento (“gnosiólogo”) ou do matemático (se se trata do pensamento matemático). O psicólogo mesmo só estuda o como? dos processos de pensamento com seus vários conteúdos objetivos (lógicos, matemáticos e outros) nas condições de um dado psiquismo subjetivo. Não nos ocuparemos aqui das divergências, por vezes substanciais, existentes entre os adeptos desta escola ou de tendências próximas, acerca do entendimento da função psíquica. Para a tarefa que nos fixamos, uma exposição dos princípios de base é o suficiente. Ela nos permitirá esclarecer nossa concepção do psiquismo e em que a resolução do problema da psicologia é importante para a filosofia do signo, a filosofia da linguagem. A psicologia funcionalista formou-se e desenvolveu-se, também, sobre as bases do idealismo. Mas, em alguns de seus aspectos, ela se mostra diametralmente oposta à psicologia interpretativa de Dilthey. De fato, se Dilthey se esforça por levar, de alguma forma, o psiquismo e a ideologia a um denominador comum, a significação, a psicologia funcionalista, ao contrário, tenta traçar uma fronteira de princípio, das mais rígidas, entre o psiquismo e a ideologia, e isto no interior mesmo do psiquismo. Tudo o que é significante encontra-se, no final das contas, excluído do campo psíquico, na medida em que tudo que é psíquico encontra-se subordinado ao funcionamento puro e simples de conteúdos objetivos isolados, formando uma espécie de constelação individual denominada “alma individual”. Se é preciso falar aqui de primazia, é certo que, na psicologia funcionalista, ao contrário da psicologia interpretativa, é a ideologia que tem a primazia sobre o psiquismo. Pode-se perguntar, agora, qual é a natureza da função psí- quica? Seu tipo de existência? Não encontramos a resposta 54 clara e satisfatória a essa questão junto aos adeptos da psico- logia funcionalista. Nesse ponto, falta-lhes clareza, não se encon- tra unidade, nem acordo. Mas há um ponto sobre o qual eles são unânimes: a função psíquica não pode ser assimilada a um processo fisiológico qualquer. Assim sendo, a compo- nente psicológica é nitidamente demarcada em relação à compo- nente fisiológica. Mas, saber que tipo de entidade é essa – a psíquica – é algo que permanece obscuro, assim como o problema da realidade dos fenômenos ideológicos. A única instância em que os funcionalistas fornecem uma res- posta clara é quando a atividade mental se exerce sobre objetos naturais: à função psíquica opõe-se, aqui, um ser natural, físico: uma árvore, a terra, uma pedra, etc... Mas qual forma pode tomar o ser ideológico frente à função psíquica? A forma de um conceito lógico, de um valor ético, de uma obra de arte, etc.? A maior parte dos representantes da psicologia funcionalista se atém a perspectivas idealistas, essencialmente kantianas, acerca desse problema6. Ao lado do psiquismo individual e da consciência subjetiva individual, eles reservam um lugar à “consciência global”, à “consciência transcendental”, ao “sujeito puramente gnosiológico”, etc... É neste contexto transcendental que eles localizam o fenômeno ideológico, por oposição à função psíquica individual7. Assim, o problema da realidade ideológica fica sem solução nos quadros da psicologia funcionalista. Decorre dessa falta de compreensão do signo ideológico e da natureza específica de sua existência que os próprios problemas do psiquismo permanecem insolúveis. Eles não serão resolvidos enquanto não se resolva o problema da ideologia. Estas duas questões estão indissoluvelmente ligadas. As histórias da psicologia e das ciências ligadas à ideologia (a lógica, a teoria do conhecimento, a estética, as ciências humanas, etc...) são as de uma luta incessante, de uma delimitação recíproca de fronteiras e de uma mútua absorção. 6 Atualmente, encontram-se, ao lado dos funcionalistas, e repartindo o mesmo terreno, os fenomenólogos cujos princípios filosóficos gerais devem muito a Franz Brentano. 7 Como os fenomenólogos, eles conferem às noções ideológicas um estatuto ontológico, postulando a existência de uma esfera autônoma do ser ideal. 55 Tudo se passa como se houvesse uma alternância periódica entre o psicologismo espontaneísta, absorvendo todas as ciências de orientação ideológica, e um antipsicologismo agudo, esvaziando o psiquismo de seu conteúdo e conduzindo-o a um lugar vazio, puramente formal (como na psicologia funcionalista), ou ainda a um simples fisiologismo. Nesse ínterim, a ideologia, privada pelo antipsicologismo de seu lugar habitual no ser (isto é, no psiquismo), não encontra seu lugar em parte alguma e se vê obrigada a emigrar da realidade para as alturas transcendentais. No começo do século XX, tivemos uma vaga poderosa (em- bora não a primeira da história, longe disso) de antipsicologismo. No curso dos dois primeiros decênios do século, pudemos assis- tir a eventos filosóficos e metodológicos da mais alta impor- tância: os trabalhos fundamentais de Husserl8, principal representante do antipsicologismo contemporâneo; os trabalhos de seus discípulos, os “intencionalistas” (fenomenólogos), a guinada brutalmente antipsicológica dos defensores contemporâneos do neokantismo das escolas de Marburg e Freiburg9, a exclusão do psicologismo de todos os domínios do conhecimento, inclusive da própria psicologia (!). Atualmente, a vaga de antipsicologismo está em vias de refluir e uma nova onda, aparentemente muito poderosa, de psicologismo se prepara para substituí-la. A variedade de psicologismo em moda denomina-se Filosofia Existencial. Sob esta etiqueta, o psicologismo mais desenfreado retoma, aceleradamente, todas as posições que teve de abandonar há pouco tempo nas esferas da filosofia e das ciências 8 Ver o vol. I de Logische Untersuchungen (“Investigações Lógicas”) (tradução russa de 1910) que constitui, por assim dizer, a bíblia do antipsicologismo contemporâneo, assim como seu artigo “A Filosofia como Ciência do Rigor” in Logos, 1911, 1912, vol. 1. 9 Ver, por exemplo, o artigo muito instrutivo de Rickert, principal representante da escola de Freiburg, “Duas Abordagens sobre a Teoria do Conhecimento”, na compilação Idéias Novas em Filosofia, no 7, 1913. Nesta publicação, Rickert, sob a influência de Husserl, traduz na linguagem do antipsicologismo sua concepção originalmente psicologista, acerca da teoria do conhecimento. Esse artigo esclarece as relações do neokantismo com o movimento antipsicologista. 58 Esta concepção revela-se radicalmente falsa. “Social” está em correlação com “natural”: não se trata aí do indivíduo en- quanto pessoa, mas do indivíduo biológico natural. O indi- víduo enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, en- quanto autor dos seus pensamentos, enquanto persona- lidade responsável por seus pensamentos e por seus dese- jos, apresenta-se como um fenômeno puramente sócio-ideoló- gico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo “individual” é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a pró- pria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e internamente condicionada por fatores sociológicos11. Todo signo é social por natureza, tanto o exterior quanto o interior. Para evitar os mal-entendidos, convém sempre estabelecer uma distinção rígida entre o conceito de indivíduo natural isolado, não associado ao mundo social, tal como o conhece e estuda o biólogo, e o conceito de individualidade, que já se apresenta como uma superestrutura ideológica semiótica, que se coloca acima do indivíduo natural e é, por conseqüência, social. Estas duas acepções da palavra individualidade (o indi- víduo natural e a personalidade) são habitualmente confundidas, o que faz com que se contaste geralmente, na reflexão da maior parte dos filósofos e psicólogos, um quaternio terminorum: ora se considera uma acepção, ora ela é substituída pela outra. Se o conteúdo do psiquismo individual é tão social quanto a ideologia, por outro lado, as manifestações ideológicas são tão individuais (no sentido ideológico deste termo) quanto psíquicas. Todo produto da ideologia leva consigo o selo de individualidade do seu ou dos seus criadores, mas este próprio selo é tão social quanto todas as outras particularidades e signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o da individualidade, é social. O que constitui a diferença entre o signo interior e o signo exterior, entre o psíquico e o ideológico? A significação realizada por meio do movimento interior é dirigida ao próprio organismo, a um indivíduo 11 Na última parte deste trabalho veremos que os direitos do autor sobre seu próprio discurso são relativos e marcados ideologicamente, e que a língua demora muito tempo para elaborar formas próprias para exprimir claramente os aspectos individuais do discurso. 59 dado, e determina-se, antes de tudo, no contexto de sua individualidade. Neste ponto, as afirmações dos representantes da escola funcionalista contêm uma parcela de verdade. Não se pode deixar de distinguir a natureza específica do psiquismo da natureza dos sistemas ideológicos. Mas o caráter específico da entidade psíquica é inteiramente compatível com uma concepção ideológico- sociológica do psiquismo. De fato, como já dissemos, todo pensamento de caráter cogni- tivo materializa-se em minha consciência, em meu psiquismo, apoiando-se no sistema ideológico de conhecimento que lhe for apropriado. Nesse sentido, meu pensamento, desde a origem, pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis. Mas, ao mesmo tempo, ele também pertence a um outro sistema único, e igualmente possuidor de suas próprias leis específicas, o sistema do meu psiquismo. O caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de meu organismo biológico, mas pela totalidade das condições vitais e sociais em que esse organismo se encontra colocado. Desse modo, o psicólogo adotará, para estudar meu pensamento, uma abordagem orientada para essa unicidade orgânica de minha individualidade e para essas condições específicas de minha existência. O ideólogo, ao contrário, não se interessará por esse pensamento a não ser que ele esteja inscrito de maneira objetiva no sistema do conhecimento. O sistema do psiquismo, determinado por fatores orgânicos e biográficos, no sentido amplo do termo, não reflete, de maneira alguma, somente o ponto de vista da psicologia. É certo que neste último caso trata-se de uma unidade real, como é real a totalidade das condições que determinam a vida do indivíduo. Quanto mais estreitamente ligado à unicidade do sistema psíquico o signo interior estiver e quanto mais fortemente determinado pelo componente biológico e biográfico, mais ele se distanciará de uma expressão ideológica bem definida. Em compensação, na medida em que é realizado e formalizado ideologicamente, ele liberta-se, por assim dizer, do contexto psíquico que o paralisa. É isso que determina a diferença entre os processos de compreensão do signo interior (isto é, da atividade mental) e do signo exterior, puramente ideológico. No primeiro caso, compreender significa relacionar um signo interior qualquer com a unicidade dos outros signos interiores, isto é, apreendê-lo no contexto de um certo psiquismo. No segundo caso, trata-se de apreender um dado signo no contexto ideológico correspondente. É verdade que, mesmo no primeiro caso, é indispensável levar em consideração o significado puramente ideológico 60 desta atividade mental: sem compreender o conteúdo semântico puro e simples de um pensamento, o psicólogo não pode determinar-lhe um lugar no contexto do psiquismo em questão. Se ele abstrai o conteúdo semântico desse pensamento, ele não lidará mais com um pensamento, com signos, mas com um simples processo fisiológico de realização de um certo pensamento, de um certo signo, no organismo. Por essa razão, a psicologia cognitiva deve apoiar-se em uma teoria do conhecimento e na lógica, enquanto que a psicologia, em seu conjunto, deve apoiar-se na ciência das ideologias, e não o contrário. É preciso dizer que toda expressão semiótica exterior, por exemplo, a enunciação, pode assumir duas orientações: ou em direção ao sujeito, ou, a partir dele, em direção à ideologia. No primeiro caso, a enunciação tem por objetivo traduzir em signos exteriores os signos interiores, e exigir do interlocutor que ele os relacione a um contexto interior, o que constitui um ato de compreensão puramente psicológico. No outro caso, o que se re- quer é uma compreensão ideológica, objetiva e concreta, da enun- ciação12. É assim que delimitamos o psíquico e o ideológi- co13. Como se oferecem à nossa observação, ao nosso estudo o psiquismo, os signos interiores? Em sua forma pura, o signo interior, isto é, a atividade mental, é acessível apenas à introspecção. Pode- mos perguntar-nos se ela ameaça a unicidade da experiência exte- rior objetiva. Isso não acontece se a natureza do psiquismo 12 As enunciações do primeiro tipo podem ser de duas espécies: podem servir para informar a respeito do vivido (Eu estou alegre) ou então para exprimi-lo diretamente (Hurra!). Há ainda a possibilidade de varia- ções intermediárias (Estou tão alegre! – com uma entoação expri- mindo grande alegria). A distinção entre esses diferentes aspectos é muito importante para o psicólogo e para o ideólogo. No primeiro caso, não há expressão direta da impressão vivida e, conseqüentemente, não há realização do signo interior. Temos aqui um resultado da auto-obser- vação (por assim dizer, a tradução do signo em signo). No segundo caso, a auto-observação que se exerce sobre a experiência interior abre um caminho para o exterior e torna-se objeto da observação exterior (é verdade que, nesse caso, opera-se uma mudança de forma). No terceiro caso, intermediário, o resultado da auto-observação adquire a coloração do signo interior abrindo caminho para o exterior. 13 Expusemos nossa concepção do conteúdo do psiquismo e da ideologia em Freidizm; cf. o capítulo “Conteúdo do Psiquismo como Ideologia”. 63 das categorias elaboradas pela lingüística para analisar as formas da língua exteriorizada, da fala (lexicologia, gramática, fonética), é aplicável ao discurso interior e, supondo que fossem, elas deveriam ser radicalmente redefinidas. Uma análise mais aprofundada revelaria que as formas mínimas do discurso interior são constituídas por monólogos completos, análogos a parágrafos, ou então por enunciações completas. Mas elas assemelham-se ainda mais às réplicas de um diálogo. Não é por acaso que os pensadores da Antiguidade já concebiam o dis- curso interior como um diálogo interior. Essas unidades pres- tam-se muito pouco a uma análise sob a forma de consti- tuintes gramaticais (a rigor, em certos casos, isso é possível, mas com grandes precauções) e não existe entre elas, assim como entre as réplicas de um diálogo, laços gramaticais; são laços de uma outra ordem que as regem. Essas unidades do discurso interior, que poderiam ser chamadas impressões globais de enunciações15, estão ligadas uma à outra, e sucedem-se uma à outra, não segundo as regras da lógica ou da gramática, mas segundo leis de convergên- cia apreciativa (emocional), de concatenação de diálogos, etc... e numa estreita dependência das condições históricas da situação social e de todo o curso pragmático da existência16. Somente a 15 O termo foi emprestado de Gompertz (Weltanschauungslehre). Parece que o primeiro a utilizá-lo foi Otto Weinninger. A impressão total é uma impressão ainda não isolada do objeto total e que, de qualquer modo, oferece uma impressão do todo, que precede e lança os fundamentos da cognição clara do objeto. Por exemplo, algumas vezes nos vemos na impossibilidade de lembrar uma palavra ou um nome, ainda que os tenhamos “na ponta da língua”, o que significa que nós já temos uma “impressão global” deles, mas que eles não podem se esboçar numa representação concreta e diferenciada. As impressões globais, segundo Gompertz, desempenham um grande papel nos processos cognitivos. Elas constituem equivalentes psíquicos das formas do todo e lhe conferem sua unicidade. 16 A distinção corrente entre os diferentes tipos de discurso interior-visual, auditivo e motor – não é relevante para nossas 64 explicitação das formas que as enunciações completas tomam e, em particular, as formas do discurso dialogado, pode esclarecer as formas do discurso interior e a lógica particular do itinerário que elas seguem na vida interior. É preciso deixar claro que todos os problemas do discurso interior que mencionamos estão fora dos limites de nossa pesquisa. Atualmente, ainda é impossível tratá-los de maneira satisfatória. Antes de tudo, seria preciso reunir um imenso corpus de dados e esclarecer outros problemas elementares e fundamentais da filosofia da linguagem, em particular os problemas da enunciação. Nós pensamos que é dessa maneira que se pode resolver o problema da delimitação de fronteiras entre o psíquico e o ideológico, sobre o território único que os engloba, o do signo ideológico. Essa abordagem nos permite, igualmente, eliminar, de maneira dialética, a contradição entre o psicologismo e o antipsicologismo. O antipsicologismo tem razão em recusar a dedução do ideológico a partir do psiquismo. Ao contrário, é o psíquico que deve ser deduzido da ideologia. A psicologia deve apoiar-se na ciência das ideologias. Originariamente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos, para ser, em seguida, integrada ao organismo individual e tornar-se fala interior. Contudo, o psicologismo também tem razão: não há signo exterior sem signo interior. O signo exterior, incapaz de penetrar no contexto dos signos interiores, isto é, incapaz de ser compreendido e experimentado, cessa de ser um signo, transforma-se em uma coisa física. O signo ideológico tem vida na medida em que ele se realiza no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte ideológico. A atividade psíquica é uma passagem do interior para o exterior; para o signo ideológico, o processo é inverso. O psíquico goza de extraterritorialidade em relação ao organismo. É o social infiltrado no organismo do indivíduo. E tudo que é ideológico é extraterritorial no domínio sócio-econômico, pois o signo ideológico, situado fora do organismo, deve penetrar no mundo interior para realizar sua natureza semiótica. Desta maneira, existe entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel: o psiquismo se oblitera, se destrói considerações aqui. No quadro de cada um desses tipos, o discurso se desenrola sob a forma de impressões globais, visuais, auditivas e motoras. 65 para se tornar ideologia e vice-versa. O signo interior deve libertar-se de sua absorção pelo contexto psíquico (biológico e biográfico), ele deve parar de ser experimentado subjetivamente para se tornar signo ideológico. O signo ideológico deve integrar-se no domínio dos signos interiores subjetivos, deve ressoar tonalidades subjetivas para permanecer um signo vivo e evitar o estatuto honorífico de uma incompreensível relíquia de museu. Essa interação dialética dos signos interior e exterior, do psiquis- mo e da ideologia, muitas vezes atraiu a atenção dos pensa- dores; contudo, ela não foi compreendida de maneira corre- ta até o presente, nem descrita de maneira adequada. Sua aná- lise mais profunda e interessante foi feita há algum tempo pelo fale- cido filósofo e sociólogo Georges Simmel. Ele viu essa intera- ção sob um aspecto que é característico de todo pensamento burguês contemporâneo, isto é, como uma “tragédia cultural”, ou mais exatamente, como uma tragédia da faculdade criadora da personalidade subjetiva. Segundo ele, a personalidade criadora se autodestrói, assim como sua subjetividade e seu caráter pessoal, no produto objetivo que ela própria cria. O nascimento de um valor cultural objetivo custa a morte da alma subjetiva. Não entraremos, aqui, no detalhe da análise que Simmel faz desse problema, análise que contém várias observações justas e interessantes17. Nós assinalaremos apenas o defeito principal de sua concepção. Para ele, entre o psiquismo e a ideologia existe um fosso intransponível. Ele não admite um signo que, remetendo à realidade, seja comum ao psiquismo e à ideologia. Ainda mais, mesmo sendo sociólogo, ele subestima a natureza totalmente social tanto da realidade psíquica quanto da realidade ideológica. E, contudo, uma e outra realidades se apresentam como refrações de um único e mesmo ser sócio-econômico. O resultado é que a contradição dialética viva 17 Pode-se encontrar em tradução russa duas publicações de Simmel, consagradas a esta questão: “A Tragédia Cultural” em Logos, 1911-1912, vols. 2 e 3 e “Os Conflitos da Cultura Contemporânea” em Elementos do Conhecimento, 1923. Petrogrado, publicado sob a forma de volume separado com um prefácio do professor Sviatlovski. Seu último livro, tratando da mesma questão do ponto de vista da filosofia existencial, intitula-se Lebensanschauung, 1919. Esta idéia constitui o leitmotiv da Vida de Goethe, do mesmo Simmel e, em parte de seus trabalhos sobre Nietzsche, Schopenhauer, Rembrandt e Michelangelo. Ele coloca na base de sua tipologia das individualidades criadoras os diferentes modos de solucionar este conflito entre a alma e sua objetivação criadora através das produções culturais. 68 CAPÍTULO 4 DAS ORIENTAÇÕES DO PENSAMENTO FILOSÓFICO-LINGÜÍSTICO No que consiste o objeto da filosofia da linguagem? Onde podemos encontrar tal objeto? Qual é a sua natureza concreta? Que metodologia adotar para estudá-lo? Na parte introdutória de nosso estudo, estas questões concretas não foram abordadas. Nós falamos da filosofia da linguagem, da palavra. Mas o que é a linguagem? O que é a palavra? Não se trata, evidentemente, de formular perfeitas definições destes conceitos de base. Uma tal formulação só poderia mesmo ser realizada no fim e não no início de nossa pesquisa (supondo-se que uma definição científica possa alguma vez ser considerada como perfeita). No início de nosso itinerário, convém propor, ao invés de definições, diretrizes metodológicas: é indispensável, antes de mais nada, conquistar o objeto real de nossa pesquisa, é indispensável isolá-lo de seu contexto e delimitar previamente suas fronteiras. No início do trabalho heurístico, não é tanto a inteligência que procura, construindo fórmulas e definições, mas os olhos e as mãos, esforçando-se por captar a natureza real do objeto; acontece que, em nosso caso, os olhos e as mãos se encontram numa posição difícil: os olhos nada vêem, as mãos nada podem tocar, é o ouvido que, aparentemente mais bem situado, tem a pretensão de escutar a palavra, de ouvir a linguagem. E, com efeito, as seduções do empirismo fonético superficial são muito fortes na lingüística. O estudo da face sonora do signo lingüístico nela ocupa um lugar proporcionalmente exagerado. Tal estudo muitas vezes determina o tom nessa disciplina e, na maioria dos casos, é feito sem nenhum vínculo com a natureza real da linguagem enquanto código 69 ideológico1. O problema da explicitação do objeto real da filosofia da linguagem está longe de ser resolvido. Toda vez que procuramos delimitar o objeto de pesquisa, remetê-lo a um complexo objetivo, material, compacto, bem definido e observável, nós perdemos a própria essência do objeto estudado, sua natureza semiótica e ideológica. Se isolarmos o som enquanto fenômeno puramente acústico, perderemos a linguagem como objeto específico. O som concerne totalmente à competência dos físicos. Se ligarmos o processo fisiológico da produção do som ao processo de percepção sonora, nem por isso estaremos nos aproximando de nosso objetivo. Se associarmos a atividade mental (os signos interiores) do locutor e do ouvinte, estaremos em presença de dois processos psicofísicos ocorrendo em dois sujeitos psicofisiologicamente diferentes e de um único complexo sonoro físico realizando-se na natureza segundo as leis da física. A linguagem, como objeto específico, ainda não a teremos encontrado. E contudo, já lançamos mão de três esferas da realidade: física, fisiológica e psicológica, do que resultou, até que de modo satisfatório, um conjunto complexo de numerosos elementos. Mas este complexo é privado de alma, seus diferentes elementos estão alinhados ao invés de estarem unidos por um conjunto de regras internas que lhe atribuiria vida e faria dele justamente um fato lingüístico. O que mais deve ser acrescentado a este conjunto já tão complexo? É preciso, fundamentalmente, inseri-lo num complexo mais amplo e que o engloba, ou seja: na esfera única da relação social organi- zada. Assim como, para observar o processo de combustão, con- vém colocar o corpo no meio atmosférico, da mesma forma, para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor do som –, bem como o próprio som, no meio social. Com efeito, é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade lingüística, a uma sociedade claramente organizada. E mais, é indispensável que estes dois indivíduos estejam integrados na unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa para 1 Isto diz respeito sobretudo à fonética experimental, que não estuda de fato os sons da língua, mas sim os sons produzidos pelos órgãos da fonação e captados pelo ouvido, independentemente de 70 pessoa sobre um terreno bem definido. É apenas sobre este terreno preciso que a troca lingüística se torna possível; um terreno de acordo ocasional não se presta a isso, mesmo que haja comunhão de espírito. Portanto, a unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo –––––––––––––––––––––––––– seu lugar no sistema da língua e na construção das enunciações. Por outro lado, a ciência fonética tenta a custo reunir, com vistas a seu estudo, imensos corpora de dados sem no entanto se valer de uma metodologia de classificação. físico-psíquico-fisiológico que definimos possa ser vinculado à língua, à fala, possa tornar-se um fato de linguagem. Dois organismos biológicos, postos em presença num meio puramente natural, não produzirão um ato de fala. Mas, como resultado desta análise, o objeto de nossa pesquisa, ao invés de ver-se reduzido como seria desejável, viu-se consideravelmente ampliado e tornado ainda mais complexo. Com efeito, o meio social organizado, no qual inserimos nosso complexo físico-psíquico-fisiológico, e a situação de troca social mais imediata apresentam por si só complicações extraordinárias, comportam relações de diversas naturezas e de múltiplas facetas, e, dentre estas relações, nem todas são necessárias à compreensão dos fatos lingüísticos, nem todas são elementos constitutivos da linguagem. Em suma, o conjunto deste complicado sistema de fenômenos e de relações, de processos, etc., necessita uma redução a um denominador comum. Todas as suas linhas devem reunir-se num centro único: o passe de mágica que constitui o processo lingüístico. Na parte precedente expusemos o problema da linguagem, ou seja, pusemos em evidência o problema enquanto tal e as dificuldades que ele encerra. Que soluções a filosofia da linguagem e a lingüística geral já trouxeram para este problema? Que marcos já colocaram no caminho de sua resolução, que nos possam orientar? Não temos aqui a intenção de fazer um histórico completo da filosofia da linguagem e da lingüística geral, nem mesmo de apresentar sua situação atual. Limitar-nos-emos a uma análise geral das linhas mestras do pensamento filosófico e lingüístico dos tempos atuais2. 2 Não existem atualmente obras especializadas em história da filosofia da linguagem. Encontram-se pesquisas fundamentais apenas no que diz respeito à filosofia da linguagem e à lingüística na antigüidade, como por exemplo Steindahl, Gerschichte der Sprachwissenschaft bei den Griechen und Römern, 73 Os adeptos mais tardios da primeira tendência não atingiram, estes, a profundidade das idéias e a síntese filosófica de Humboldt. Esta escola de pensamento viu-se consideravelmente enfraquecida, particularmente pelo fato de sua assimilação a um modo de pensamento positivista e superficialmente empirista. Em Steintahl já não se encontra mais a amplitude de Humboldt. Em compensação percebe-se um grande esforço de precisão e de sistematização metodológica. Também para Steintahl, o psiquismo individual constitui a fonte da língua, enquanto que as leis do desenvolvimento lingüístico são leis psicológicas7. No psicologismo empirista de Wundt e discípulos, não se encontram mais os fundamentos da primeira escola a não ser sob forma bastante atenuada. A doutrina de Wundt resume-se no seguinte: todos os fatos de língua, sem exceção, prestam-se a uma explicação fundada na psicologia individual sobre uma base voluntarista8. É verdade que Wundt, assim como Steintahl, considere a língua como uma emanação da “psicologia dos povos” (Völker psychologie) ou russa, citemos: B. Engelhardt, A. N. Vesselovsky (Petrograd, 1922). Recentemente foi editado um estudo muito bom e lingüística russa, citemos: B. Engelhardt, A. N. Vesselovski (Petro-interessante de G. Spätt: Vnútrennai forma slóva (etiúdi i variatsii na tiému Gumboldta) [A Linguagem Interior (Estudos e Variações sobre o Tema de Humboldt)]. O autor tenta encontrar as raízes profundas do pensamento humboldtiano camufladas nas interpretações tradicionais (há várias tradições de interpretação de Humboldt). A concepção de Spätt, muito subjetiva, mostra uma vez mais como o pensamento de Humboldt é complexo e cheio de contradições; ele se presta a variantes muito livres. 6 Sua principal obra filosófica é Misl i iazík (Pensamento e Linguagem), (Cracóvia, 1905), reeditado pela Academia de Ciências da Ucrânia. Os discípulos de Potebniá que constituem a escola de Kharkov, publicaram, em intervalos irregulares, uma revista intitulada Vopróssi teorii i psikhológuii tvórtchestva (Problemas da Teoria e da Psicologia da Criação), onde encontramos as obras póstumas do próprio Potebniá e artigos de seus alunos a seu respeito. A principal obra de Potebniá expõe as idéias de Humboldt. 7 Na base da concepção de Steintahl está a teoria psicológica de Herbart, que tenta elaborar todos os dados do psiquismo humano a partir dos elementos dotados de uma representação e vinculados por laços associativos. 8 O voluntarismo postula o livre-arbítrio na base do psiquismo. 74 “psicologia étnica”9. Entretanto, a psicologia wundtiana dos povos é constituída pela soma dos psiquismos separados dos indivíduos. Para ele, apenas estes últimos têm acesso à realidade na sua totalidade. Toda as suas explicações dos fatos de língua, de mitologia e de religião se ligam a explicações puramente psicológicas. Wundt não reconhece a existência de um conjunto de leis específicas, puramente sociológicas, inerentes a todo signo ideológico e não redutíveis a algumas leis psicológicas individuais. Atualmente, a primeira tendência da filosofia da linguagem, tendo rejeitado as vias do positivismo, está a caminho de desa- brochar novamente e de alargar a visão destes problemas na escola de Vossler. Esta última, conhecida por Idealistiche Neuphilologie, constitui incontestavelmente uma das orientações mais fecundas do pensamento filosófico-lingüístico contemporâneo. A contribuição positiva, original, de seus discípulos à lingüística (em romanística e germanística) é também muito importante. Basta lembrar, ao lado do próprio Vossler, discípulos tais como Leo Spitzer, Lorek, Lerch, etc. Iremos citar cada um deles em várias oportunidades. O conjunto da concepção lingüístico-filosófica de Vossler e de sua escola pode ser resumido corretamente pela apresentação que fizemos das quatro proposições fundamentais da primeira escola. O que caracteriza primordialmente a escola de Vossler, é “a negação categórica e de princípio do positivismo lingüístico, que não consegue ver mais além das formas lingüísticas (em particular as fonéticas, as que são positivas) e do ato psicofisiológico que as engendra”10. Donde o aparecimento em primeiro plano do 9 O termo “psicologia étnica” foi proposto por G. Spätt para substituir o termo calcado no alemão Völker Psychologie, ou seja, psicologia dos povos. Esta última expressão, de fato, não é satisfatória e a expressão proposta por Spätt parece-nos bem melhor. Ver. G. Spätt, Vvdiénie v etnítcheskuiu psikhológuiu (Introdução à Psicologia Étnica), edições da Academia Estatal de Artes e Ciências, Moscou, 1927. Encontramos neste livro uma crítica de base do pensamento de Wundt, mas a construção proposta como alternativa por Spätt tampouco é aceitável. 10 O primeiro livro de Vossler, no qual ele expõe os fundamentos de sua filosofia, Positivismus und Idealismus in 75 componente ideológico significante da língua. O motor principal da criação é o “gosto lingüístico”, variedade particular do gosto artístico. O gosto lingüístico é justamente esta verdade lingüística absoluta que dá vida à língua e que o lingüista se esforça por descobrir em cada fato de língua, a fim de dar-lhe uma explicação adequada. “Só pode ter pretensões a um caráter científico”, diz Vossler, “uma história da língua que examine toda a hierarquia causal pragmática com a única finalidade de aí descobrir uma ordem estética, a fim de que o pensamento lingüístico, a verdade lingüística, o gosto lingüístico ou, como diz Humboldt, a forma interior da língua através de suas transformações condicionadas por fatores físicos, psíquicos, políticos, econômicos e culturais em geral, tornem-se claros e compreensíveis”11. Assim é que, para Vossler, os fatores que determinam de uma forma ou de outra os fatos de língua (físicos, políticos, econômicos, etc.) não possuem significação direta para o lingüista; só importa para este o sentido artístico de um dado fato de língua. Eis a concepção que ele tem da língua, uma concepção puramente estética. “A própria idéia de língua”, diz ele, “é por essência uma idéia poética; a verdade da língua é de natureza artística, é o Belo dotado de Sentido12”. Compreende-se que não é um sistema lingüístico acabado, no sentido da totalidade dos traços fônicos, gramaticais e outros, mas sim o ato de criação individual da fala (Sprache als Rede) que será para Vossler o fenômeno essencial, a realidade essencial da língua. Segue-se que, em todo ato de fala, o importante, do ponto de vista da evolução da língua, não são as formas gramaticais estáveis, efetivas e comuns a todas as demais enunciações da língua em questão, mas sim a realização estilística e a modificação das formas abstratas da língua, de caráter individual e que dizem respeito apenas a esta enunciação. Só essa individualização estilística da língua na enunciação concreta é histórica e realmente produtiva. É nela que tem lugar a evolução da língua, logo dissimulada pela formalização gramatical. Todo fato gramatical foi, a princípio, fato estilístico. É a isto que se liga a idéia vossleriana da primazia do estilístico sobre o der Sprachwissenchaft, Heidelberg, 1904, é consagrado à crítica do positivismo em lingüística. 11 “Grammatika i istoria iaziká” (Gramática e História da Língua) In Logos, vol. 1, 1910, p. 170. 12 Ibid., p. 167. 78 Entretanto, será que estas particularidades individuais do som /a/, condicionadas, digamos pela forma única da língua (órgão), do palato e dos dentes dos sujeitos falantes (admitamos que possamos igualmente captar e fixar todas estas particularidades), são essenciais do ponto de vista da língua? Evidente que elas não apresentam qualquer interesse. O que é essencial é a identidade normativa deste som em todas as instâncias em que se pronuncia a palavra ráduga. E esta identidade normativa constitui justamente (posto que não existe identidade de fato) a unicidade do sistema fonético* da língua (neste quadro sincrônico) e garante a compreensão da palavra por todos os membros da comunidade lingüística. Este fonema /a/ identificado por referência a uma norma constitui portanto um fato de língua, um objeto científico da lingüística. Isto se estende legitimamente a todos os outros elementos da língua. Em toda parte encontraremos a mesma identi- dade normativa das formas lingüísticas (por exemplo, os esque- mas sintáticos) ao lado da realização única e não reiterável da aplicação individual de uma forma dada no ato de fala única. O primeiro fato é parte integrante do sistema da língua, o segundo se refere aos processos individuais da fala, condicionados (do ponto de vista da língua como sistema) por fatores contin- gentes, fisiológicos e subjetivo-psicológicos, dos quais não pode- mos inteirar-nos com precisão. É claro que o sistema lingüístico, no sentido acima definido, é completamente independente de todo ato de criação individual, de toda intenção ou desígnio. Do ponto de vista da segunda orientação, não se poderia falar de uma criação refletida da língua pelo sujeito falante16. A língua opõe-se ao indivíduo enquanto norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar como tal. No caso em que o indivíduo não integrasse nenhuma forma lingüística enquanto norma peremptória, esta forma deixa- * O termo “fonologia” ainda não é usado. Lembremos que esta obra é anterior aos trabalhos do Círculo Fonológico de Praga (N.d.T.fr.). 16 Entretanto, como veremos, no terreno do racionalismo tal qual o descrevemos, os fundamentos da segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico são inteiramente compatíveis com a idéia de uma língua universal racional artificialmente criada. 79 ria então de existir para ele como forma da língua para tornar-se simples potencial de seu aparelho psicofísico individual. O indi- víduo recebe da comunidade lingüística um sistema já constituído, e qualquer mudança no interior deste sistema ultrapassa os limites de sua consciência individual. O ato individual de emissão de todo e qualquer som só se torna ato lingüístico na medida em que se ligue a um sistema lingüístico imutável (num determinado momento de sua história) e peremptório para o indivíduo. Quais são, pois, as leis que governam este sistema interno da língua? Elas são puramente imanentes e específicas, irredutíveis a leis ideológicas, artísticas ou a quaisquer outras. Todas as formas da língua, consideradas num momento preciso (ou seja, do ponto de vista sincrônico) são indispensáveis umas às outras, completam-se mutuamente, e fazem da língua um sistema estruturado que obedece a leis lingüísticas específicas. Estas leis lingüísticas específicas, à diferença das leis ideológicas – que se referem a processos cognitivos, à criação artísticas, etc. – não podem depender da consciência individual. Um tal sistema, o indivíduo tem que tomá-lo e assimilá-lo no seu conjunto, tal como ele é. Não há lugar, aqui, para quaisquer distinções ideológicas, de caráter apreciativo: é pior, é melhor, belo ou repugnante, etc. Na verdade só existe um critério lingüístico: está certo ou errado; além do mais, por correção lingüística deve-se entender apenas a conformidade a uma dada norma do sistema normativo da língua. Não se poderia, por conseguinte, falar em “gosto lingüístico” nem em verdade lingüística. Do ponto de vista do indivíduo, as leis lingüísticas são arbitrárias, isto é, privadas de uma justificação natural ou ideológica (por exemplo, artístico). Assim, entre a face fonética da palavra e seu sentido, não há nem uma conexão natural nem uma correspondência de natureza artística. Se a língua, como conjunto de formas, é independente de todo impulso criador e de toda ação individual, segue-se ser ela o produto de uma criação coletiva, um fenômeno social e, portanto, como toda instituição social, normativa para cada indivíduo. Entretanto, o sistema lingüístico, único e sincronicamente imutável, transforma-se, evolui no processo de evolução histórica de uma determinada comunidade lingüística, posto que a identidade normativa do fonema, tal qual nós a estabelecemos, é diferente nas diferentes épocas da evolução de uma língua. Em poucas palavras, a língua tem sua história. Como podemos pensar esta história do ponto de vista da segunda orientação? Para esta segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico, o fato mais significativo é o fosso que separa a história do sis- 80 tema lingüístico em questão da abordagem não histórica, sincrô-nica. A argumentação fundamental da segunda orientação faz deste fosso dialético, um fosso intransponível. Entre a lógica que governa o sistema de formas lingüísticas num determinado momento da história e a lógica (ou antes, a ausência de lógica) da evolução histórica destas formas, nada pode haver de comum. São duas lógicas diferentes. Ou melhor, se nós reconhecemos uma como sendo lógica, então a outra deve ser definida como alógica, isto é, como a negação pura e simples da lógica estabelecida. Na verdade, as formas que constituem o sistema lingüístico são mutuamente dependentes e completam-se como elementos de uma só e mesma fórmula matemática. A mudança de um dos elementos do sistema cria um novo sistema, assim como a mudança de um dos elementos da fórmula cria uma nova fórmula. A relação e as regras que governam as ligações entre os elementos de uma dada fórmula não se estendem, nem poderiam se estender, para a relação entre o sistema ou a fórmula em questão e um outro sistema ou outra fórmula que a eles se seguissem. Podemos utilizar aqui uma analogia grosseira, mas que exprime entretanto com suficiente exatidão as relações que a segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico mantém com a história da língua. Comparemos o sistema da língua com a fórmula de resolução do binômio de Newton. Esta fórmula é regida por regras bem estritas, que subordinam todos os elementos e os tornam imutáveis. Suponhamos que um aluno, utilizando esta fórmula, se engane – que, por exemplo, ele confunda os sinais de mais e menos ou os expoentes. Disto resultaria uma nova fórmula com suas regras internas (esta fórmula, por certo, não mais convém à resolução do binômio de Newton, mas isto não tem importância para efeitos de nossa analogia). Entre a primeira e a segunda fórmulas, já não existe mais relação matemática, análoga à que rege as relações internas de cada fórmula. Na língua, as coisas se passam do mesmo modo. As relações sistemáticas que existem entre duas formas lingüísticas no sistema (em sincronia), nada têm de comum com as relações que unem qualquer destas formas à sua imagem transformada no estágio posterior da evolução histórica da língua. O germânico de antes do século XVI conjugava: ich was – wir waren. O alemão contemporâneo conjuga: ich war – wir waren; ich was transformou-se pois em ich war. Entre as formas ich was – wir waren e ich war – wir waren existe uma ligação lingüística sistemática, os termos se completam mutuamente. Eles se ligam e são complemen- tares, particularmente como formas do singular e plural da primeira 83 e seu sentido não existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo artístico. 4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua; simples refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas normativas. Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do ponto de vista do sistema, irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de motivos. Eles são estranhos entre si. O leitor terá notado que as quatro proposições que resumem a segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico constituem a antítese das quatro proposições correspondentes da primeira orientação. O traçado histórico da segunda orientação é bem mais difícil de ser feito. Aí não encontramos, no início de nossa era, representante ou teórico cuja estatura possa se comparar à de Humboldt. É preciso procurar as raízes desta orientação no racionalismo dos séculos XVII e XVIII. Tais raízes mergulham no solo fértil do cartesianismo18. Foi Leibniz quem exprimiu, pela primeira vez, estas idéias de forma clara, na sua teoria da gramática universal. A idéia de uma língua convencional, arbitrária, é caracterís- tica de toda corrente racionalista, bem como o paralelo estabele- cido entre o código lingüístico e o código matemático. Ao espí- rito orientado para a matemática, dos racionalistas, o que interessa não é a relação do signo com a realidade por ele refletida ou com o indivíduo que o engendra, mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, e não obstante aceito e inte- grado. Em outras palavras, só lhes interessa a lógica interna do próprio sistema de signos; este é considerado, assim como 18 Não resta qualquer dúvida de que um elo interno une em profundidade a segunda orientação ao pensamento cartesiano e à visão geral do mundo do neoclassicismo com seu culto da forma fixa, racional e imutável. O próprio Descartes não publicou nada sobre a filosofia da linguagem, mas encontramos na sua correspondência observações características. Ver a este respeito o capítulo já citado no livro de Cassirer. 84 na lógica, independentemente por completo das significa- ções ideológicas que a ele se ligam. Os racionalistas também se inclinam a levar em conta o ponto de vista do receptor, mas nunca o do locutor enquanto sujeito que exprime sua vida interior, já que o signo matemático é menos passível do que qualquer outro de ser interpretado como a expressão do psiquismo individual; ora, o signo matemático era, para os racionalistas, o signo por excelência, o modelo semiótico, inclusive para a língua. São precisamente estas idéias que se acham claramente expressas no conceito leibniziano da gramática universal19. Convém aqui assinalar que a primazia do ponto de vista do receptor sobre o do locutor é uma constante da segunda orientação. Por isso mesmo, em função do terreno escolhido por esta última, o problema da expressão não é nunca abordado nem, por conseguinte, o da evolução do pensamento e do psiquismo subjetivo tal como ele transpira através da palavra (o que é uma das principais preocupações da primeira orientação). A idéia da língua como sistema de signos arbitrários e convencionais, essencialmente racionais, foi elaborada de forma simplificada já no século XVIII pelos filósofos do Século das Luzes. As idéias que constituem o objetivismo abstrato vieram à luz primeiramente na França e ainda encontram aí seu terreno preferido20. Sem nos determos nas etapas intermediárias do desenvolvimento destas idéias, passaremos imediatamente para a caracterização desta segunda orientação na época contemporânea. A chamada escola de Genebra, com Ferdinand de Saussure, mostra-se como a mais brilhante expressão do objetivismo abstrato em nosso tempo. Os representantes desta escola, particularmente Charles Bally, estão entre os maiores lingüistas contemporâneos. Saussure deu a todas as idéias da segunda orientação uma clareza e uma precisão admiráveis. Suas formulações dos conceitos de base da lingüística tornaram-se clássicas. E mais, ele levou todas suas reflexões a seu termo, dotando assim os traços essenciais do objetivismo abstrato de uma limpidez e 19 Podemos familiarizar-nos com estas considerações de Leibniz lendo a obra fundamental de Cassirer, Leibniz System in seinem Wiessenschaftlichen Grundlagen, Marburg, 1902. 20 É interessante notar que ao contrário da primeira, a segunda orientação desenvolveu-se e continua a desenvolver-se na Alemanha. 85 de um rigor excepcionais. A pouca audiência que a escola de Vossler tem na Rússia corresponde inversamente à popularidade e influência de que a de Saussure aí goza. Podemos dizer que a maioria dos representantes de nosso pensamento lingüístico se acha sob a influência determinante de Sausurre e de seus discípulos, Bally e Sechehaye21 Nós nos deteremos um pouco mais longamente nas concepções de Sausurre, dada a imensa importância de seus fundamentos teóricos para toda a segunda orientação e para a lingüística russa. Mas, aí também, limitar-nos-emos às posições filosófico-lingüísticas de base22. Sausurre parte do princípio de uma tríplice distinção: le langage, la langue (como sistema de formas) e o ato da enunciação individual, la parole. A língua (la langue) e a fala (la parole) são os elementos constitutivos da linguagem, compreendida como a totalidade (sem exceção) de todas as manifestações – físicas, fisiológicas e psíquicas 21 O livro de R. Schor, Iazík i óbchtchestvo (Linguagem e Sociedade), Moscou, 1926, situa-se no espírito da escola de Gene- bra. Schor nele faz uma viva apologia das idéias fundamentais De Saussure, como também no artigo já citado “A Crise da Lingüística Contemporânea”. Vinogradov se situa também como um êmulo da escola de Genebra. Duas escolas lingüísticas russas, a escola de Fortunátov e a de Kazan (Kruchevski e Baudouin de Courtenay), que constituem uma expressão brilhante do formalismo em lingüística, inserem-se perfeitamente no quadro da segunda orientação tal como a esboçamos. 22 A obra teórica fundamental de Saussure, publicada depois de sua morte por seus discípulos, intitula-se Curso de Lingüística Geral (1916). Nós a citaremos aqui na edição de 1922. É de causar admiração o fato de que este livro, tendo em conta sua enorme influência, nunca tenha sido traduzido para o russo. Podemos encontrar uma breve apresentação das idéias de Saussure no artigo já indicado de Schor e no artigo de Peterson, “Óbchtchaia lingvistika (Lingüística Geral), in Petchát i revoliútsia (Imprensa e Revolução), 1923, vol. 6. 88 Destaquemos esta tese fundamental de Saussure: a língua se opõe à fala como o social ao individual. A fala é, assim, absolutamente individual. Nisto consiste, como veremos, o proton pseudos de Saussure e de toda tendência do objetivismo abstrato. O ato individual de fala-enunciação, rechaçado decisivamente para os confins da lingüística, aí encontra todavia um lugar como fator indispensável da história da língua24. Esta última, de acordo com o espírito de toda a segunda orientação, opõe-se rigorosamente à língua como sistema sincrônico, para Saussure. Na história da língua, a fala, com seu caráter individual e acidental, é soberana; razão pela qual é regida por leis completamente diferentes das que regem o sistema da língua. “Assim é que o ‘fenômeno’ sincrônico nada tem de comum com o diacrônico.” (p. 129). “A lingüística sincrônica irá se ocupar das relações lógicas e psicológicas que unem termos coexistentes e formadores de um sistema, tal como eles são percebidos pela mesma consciência coletiva. A lingüística diacrônica estudará, ao contrário, as relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência, e que se substituem uns aos outros, sem formar sistema entre si.” (Op. cit., p. 140; itálicos de Saussure). Estas idéias de Sausurre sobre a história são bem características do espírito racionalista que reina até hoje na segunda orientação do pensamento filosófico-lingüístico e para o qual a história é um domínio irracional que corrompe a pureza lógica do sistema lingüístico. Saussure e sua escola não estão sozinhos no pináculo do objetivismo abstrato contemporâneo. Ao lado deles, nós vemos ascender uma outra escola, a escola sociológica de Durkheim. Nela encontramos uma figura de lingüista como a de Meillet. Nós não nos deteremos numa descrição de suas concepções25. Elas se inserem perfeitamente no quadro dos fundamentos já apresentados da segunda orientação. Também para Meillet não é a qualidade de processo, mas a de sistema estável de normas lingüísticas, que faz da língua um 24 Saussure diz: Tudo o que é diacrônico na língua, só o é através da fala. É na fala que se encontra o germe de todas as mudanças. (Op. cit., p. 138). 25 M. N. Peterson expõe as idéias de Meillet relacionando-as com os fundamentos do método sociológico de Durkheim no artigo já citado, “A Língua Como Manifestação Social”. Ver a bibliografia aí contida. 89 fenômeno social. O fato de opor-se a língua do exterior à consciência individual, e mais o seu caráter coercitivo constituem para ele os traços sociais fundamentais da língua. Não iremos discorrer sobre as inúmeras escolas e tendências da lingüística que não entram no quadro das duas orientações aqui definidas. Falaremos um pouco, entretanto, a respeito dos neogramáticos, cujo movimento constitui uma das mais importantes manifestações da lingüística na segunda metade do século XIX. Por algumas de suas posições, os neogramáticos mostram um certo parentesco com a segunda orientação, da qual eles realçam o componente menor – o fisiológico. O indivíduo criador da língua é essencialmente para eles um ser fisiológico. Por outro lado, no terreno psicofisiológico, os neogramáticos tentaram construir leis lingüísticas calcadas nas ciências naturais, ou seja, leis imutáveis, completamente privadas do livre arbítrio dos indivíduos locutores. Donde a idéia neogramática das leis fonéticas (Lautgesetze26). Em lingüística, como em toda ciência específica, existem essencialmente duas maneiras de se livrar do penoso trabalho que uma reflexão filosófica séria, fundada sobre princípios, exige. A primeira consiste em erigir, logo de saída, todos os princípios em axiomas (academicismo eclético); a outra consiste em descartar todos os princípios e proclamar o fato (factum) como fundamento e critério último de todo ato cognitivo (positivismo acadêmico). O efeito filosófico que resulta destes dois procedimentos para se livrar da filosofia é o mesmo, já que, no segundo caso, podem caber no saco onde se lê “Fato” todos os princípios possíveis e imagináveis. A escolha de uma modalidade ou de outra depende inteiramente do temperamento do pesquisador: os ecléticos são mais relaxados, os positivistas mais exigentes. Encontram-se em lingüística numerosas produções e mesmo escolas inteiras (escolas no sentido de estudo científico-técnico) que se dispensam da tarefa de seguir uma orientação filosófico-lingüística. Mas elas não entram, evidentemente, no quadro de nossa apresentação. Existem, por fim, alguns lingüistas e filósofos não mencionados aqui, como Otto Dietrich e Anton Marty, e que 26 Os principais trabalhos da tendência neogramática são Osthoff, Das physiologische und psychologische Moment in der sprachlichen Formenbildung, Berlim, 1879; Brugmann e Delbrück, Grundriss der vergleichenden Grammatik der indogermanischen Sprachen (cinco volumes, 1886). O programa dos neogramáticos está exposto no prefácio do livro de Osthoff e Brugmann, Morphologische Untersuchungen, Leipzig, 1878. 90 citaremos adiante quando analisarmos os problemas da interação lingüística e da significação. Colocamos no início do capítulo o problema da explicitação e da delimitação da língua como objeto específico de pesquisa. Tentamos descobrir as balizas já colocadas no caminho da resolução deste problema pelas tendências do pensamento filosófico-lingüístico que nos precederam. Por fim, achamo-nos diante de duas categorias de sinalizações colocadas em direções diametralmente opostas. De um lado, as teses do subjetivismo individualista e, de outro, as antíteses do objetivismo abstrato. Mas o que é que se revela como o verdadeiro núcleo da realidade lingüística? O ato individual da fala – a enunciação – ou o sistema da língua? E qual é, pois, o modo de existência da realidade lingüística? Evolução criadora ininterrupta ou imutabilidade de normas idênticas a si mesmas? 93 e imutáveis, é uma outra questão que, por enquanto, será deixada em aberto. Em todo caso, nosso alvo é poder estabelecer uma certa relação objetiva. Qual a posição dos partidários do objetivismo abstrato com relação a esse ponto? Afirmam eles que a língua é um sistema de normas fixas objetivas e incontestáveis ou percebem que este é apenas o modo de existência da língua para a consciência subjetiva dos locutores de uma dada comunidade? A melhor resposta a essa questão é a seguinte: a maioria dos partidários do objetivismo abstrato tende a afirmar a realidade e a objetividade imediatas da língua como sistema de formas normativas. Para esses representantes da segunda orientação, o objetivismo abstrato torna-se simplesmente hipostático. Outros representantes da mesma orientação (Meillet, por exemplo) são mais críticos e percebem a natureza abstrata e convencional do sistema lingüístico. No entanto, nenhum dos objetivistas abstratos chegou a compreender de maneira clara e precisa o funcionamento intrínseco da língua como sistema objetivo. Na maioria dos casos, eles oscilam entre as duas acepções que a palavra “objetivo” possui quando aplicada ao sistema lingüístico: a acepção, por assim dizer, entre aspas (expressando o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor) e a acepção sem aspas (objetivo no sentido próprio). Até Saussure procede dessa maneira. Ele não resolve a questão claramente. Devemos, agora, perguntar-nos se a língua existe realmente para a consciência subjetiva do locutor unicamente como sistema objetivo de formas normativas e intocáveis. O objetivismo abstrato captou corretamente o ponto de vista da consciência subjetiva do locutor? É realmente este o modo de existência da língua na consciência lingüística subjetiva? A essa questão somos obrigados a responder pela negativa. A consciência subjetiva do locutor não se utiliza da língua como de um sistema de formas normativas. Tal sistema é uma mera abstração, produzida com dificuldade por procedimentos cognitivos bem determinados. O sistema lingüístico é o produto de uma reflexão sobre a língua, reflexão que não procede da consciência do locutor nativo e que não serve aos propósitos imediatos da comunicação. Na realidade, o locutor serve-se da língua para suas necessidades enunciativas concretas (para o locutor, a construção da língua está orientada no sentido da enunciação da fala). Trata-se, para ele, de utilizar as formas normativas (admitamos, por enquanto, a legitimidade destas) num dado contexto concreto. Para ele, o centro de gravidade da língua não reside na conformidade à norma da forma 94 utilizada, mas na nova significação que essa forma adquire no contexto. O que importa não é o aspecto da forma lingüística que, em qualquer caso em que esta é utilizada, permanece sempre idêntico. Não; para o locutor o que importa é aquilo que permite que a forma lingüística figure num dado contexto, aquilo que a torna um signo adequado às condições de uma situação concreta dada. Para o locutor, a forma lingüística não tem importância enquanto sinal estável e sempre igual a si mesmo, mas somente enquanto signo sempre variável e flexível. Este é o ponto de vista do locutor. Mas o locutor também deve levar em consideração o ponto de vista do receptor. Seria aqui que a norma lingüística entraria em jogo? Não, também não é exatamente assim. É impossível reduzir-se o ato de descodificação ao reconhecimento de uma forma lingüística utilizada pelo locutor como forma familiar, conhecida – modo como reconhecemos, por exemplo, um sinal ao qual não estamos suficientemente habituados ou uma forma de uma língua que conhecemos mal. Não; o essencial na tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreendê-la num contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular. Em suma, trata-se de perceber seu caráter de novidade e não somente sua conformidade à norma. Em outros termos, o receptor, pertencente à mesma comunidade lingüística, também considera a forma lingüística utilizada como um signo variável e flexível e não como um sinal imutável e sempre idêntico a si mesmo. O processo de descodificação (compreensão) não deve, em nenhum caso, ser confundido com o processo de identifi- cação. Trata-se de dois processos profundamente distintos. O signo é descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e imutável)1. O sinal 1 Karl Bühler, no seu artigo “Vom Wesem der Syntax” (in Festschrift für Karl Vossler, p. 61-69), estabelece distinções interessantes e astuciosas entre, de um lado, o sinal e suas combinações (no domínio marítimo, por exemplo) e, de outro, a forma lingüística e suas combinações, em conexão com os problemas de sintaxe. 95 não pertence ao domínio da ideologia; ele faz parte do mundo dos objetos técnicos, dos instrumentos de produção no sentido amplo do termo. Mais distantes ainda da ideologia estão os sinais com os quais trabalha a reflexologia. Esses sinais, considerados em relação ao organismo que os recebe, isto é, ao organismo sobre o qual eles incidem, nada têm a ver com as técnicas de produção. Nesse caso, não são mais sinais, mas estímulos de uma espécie particular. Só se tornam instrumentos de produção nas mãos do experimentador. Somente um concurso infeliz de circunstâncias e as inextirpáveis práticas da reflexão mecanicista puderam induzir certos pesquisadores a fazer desses “sinais”, praticamente, a chave da compreensão da linguagem e do psiquismo humano (do discurso interior). Enquanto uma forma lingüística for apenas um sinal e for percebida pelo receptor somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor lingüístico. A pura “sinalidade” não existe, mesmo nas primeiras fases da aquisição da linguagem. Até mesmo ali, a forma é orientada pelo contexto, já constitui um signo, embora o componente de “sinalidade” e de identificação que lhe é corre- lata seja real. Assim, o elemento que torna a forma lingüística um signo não é sua identidade como sinal, mas sua mobilidade específica; da mesma forma que aquilo que constitui a descodificação da forma lingüística não é o reconhecimento do sinal, mas a compreensão da palavra no seu sentido particular, isto é, a apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação precisos, uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo2. Disso não se conclui que o componente de “sinalidade” e seu correlato, a identificação, não existam na língua. Existem, mas não como constituintes da língua como tal. O componente de “sinalidade” é dialeticamente deslocado, absorvido pela nova qualidade do signo (isto é, da língua como tal). Na língua materna, isto é, precisamente para os membros de uma comunidade lingüística dada, o sinal e o reconhecimento estão dialeticamente apagados. No processo de assimilação de uma língua estrangeira, sente-se a “sinalidade” e o reconhecimento, que não foram ainda dominados: a língua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o 2 Veremos mais adiante que é justamente a compreensão no sentido próprio, a compreensão da evolução, que se acha na base da resposta, isto é, da interação verbal. É impossível delimitar de modo estrito o ato de compreensão e a resposta. Todo ato de compreensão é uma resposta, na medida em que ele introduz o objeto da compreensão num novo contexto – o contexto potencial da resposta. 98 Quais são, então, as metas da análise lingüística abstrata que conduz ao sistema sincrônico da língua? E de que ponto de vista esse sistema se revela produtivo e necessário? Na base dos métodos de reflexão lingüística que levam à postulação da língua como sistema de formas normativas, estão os procedimentos práticos e teóricos elaborados para o estudo das línguas mortas, que se conservaram em documentos escritos. É preciso salientar com insistência que essa abordagem filológica foi determinante para o pensamento lingüístico do mundo europeu. Esse pensamento nasceu e nutriu-se dos cadáveres dessas línguas escritas. Quase todas as abordagens fundamentais e as práticas desse pensamento foram elaboradas no processo de ressurreição desses cadáveres. O filo- logismo é um traço inevitável de toda a lingüística européia, condicionada pelas vicissitudes históricas que presidiram ao seu nascimento e seu desenvolvimento. Por mais que voltemos os olhos ao passado para traçar a história das categorias e dos métodos lingüísticos, sempre encontraremos filólogos. Os alexandrinos eram filólogos, assim como os romanos e os gregos (Aristóteles é um exemplo típico). Também a Índia possuía seus filólogos. Podemos dizer que a lingüística surgiu quando e onde surgiram exigências filológicas. Os imperativos da filologia engendraram a lingüística, acalentaram-na e deixaram dentro de suas fraldas a flauta da filologia. Essa flauta tem por função despertar os mortos. Mas essa flauta carece da potência necessária para dominar a fala viva, com sua evolução permanente. Nicolau Marr salienta muito corretamente essa essência filológica do pensamento lingüístico indo-europeu: “A lingüística indo-européia, dispondo já há muito tempo de um objeto de investigação estabelecido e completamente formado – a saber, as línguas indo-européias das épocas históricas – e, além do mais, tirando todas as suas conclusões das formas petrificadas das línguas escritas – favorecendo, entre estas, as línguas mortas – foi, com toda evidência, incapaz de descrever o processo de aparição da linguagem em geral e a origem das diferentes formas que ela adquire.”5 Ou ainda: “O que gera os maiores obstáculos (ao estudo da linguagem primitiva) não é a dificuldade das pesquisas enquanto tal, nem a 5 N. Marr, Po etapam iafetícheskoi teórit (As Etapas da Teoria Jafética), 1926, p. 269. 99 insuficiência de dados sólidos; é nosso modo de pensamento científico, forjado por uma visão do mundo tradicionalmente filológica e pela história da cultura; esse pensamento não foi nutrido por uma concepção etnolingüística da fala viva, por suas formas que ela adquire.”6 Essas palavras de N. Marr parecem-nos justas não apenas no que tange aos estudos indo-europeus, que forneceram o tom a toda a lingüística contemporânea, mas também no que respeita à lingüística toda, tal como a conhecemos pela história. Em toda par- te, a lingüística é filha da filologia. Submetida aos imperativos desta, a lingüística sempre se apoiou em enunciações constitutivas de monólogos fechados, por exemplo, em inscrições em monumentos antigos, considerando-as como a realidade mais imediata. A lingüística elaborou seus métodos e categorias trabalhando com monólogos mortos, ou melhor, com um corpus de enunciações desse tipo, cujo único ponto comum, é o uso da mesma língua. E, no entanto, a enunciação monológica já é uma abstração, embora seja uma abstração do tipo “natural”. Toda enunciação monológica, inclusive uma inscrição num monumento, constitui um elemento inalienável da comunicação verbal. Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. Cada inscrição constitui uma parte inalienável da ciência ou da literatura ou da vida política. Uma inscrição, como toda enunciação monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento, isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante. O filólogo-lingüista desvincula-a dessa esfera real, apreende-a como um todo isolado que se basta a si mesmo, e não lhe aplica uma compreensão ideológica ativa, e sim, ao contrário, uma compreensão totalmente passiva, que não comporta nem o esboço de uma resposta, como seria exigido por qualquer espécie autêntica de compreensão. O filólogo contenta-se em tomar essa inscrição isolada como um documento de linguagem e em compará-la com outras inscrições no quadro geral de uma língua dada. É nesse processo de comparação e 6 Ibid., p. 94. 100 de mútua correlação das enunciações de uma dada língua que os métodos e as categorias do pensamento lingüístico se constituíram. Uma língua morta apresenta-se claramente como uma lín- gua estrangeira para o lingüista que a estuda. Por isso é impos- sível afirmar que o sistema das categorias lingüísticas constitui o produto da reflexão epistemológica do locutor de uma língua dada. Não se trata de uma reflexão sobre a percepção que o locutor nativo tem de sua própria língua; trata-se, antes, da reflexão de uma consciência que luta para abrir caminho no mundo misterioso de uma língua estrangeira. A compreensão inevitavelmente passiva do filólogo-lingüista projeta-se sobre a própria inscrição, sobre o objeto do estudo lingüís- tico, como se essa inscrição tivesse sido concebida, desde a origem, para ser apreendida dessa maneira, como se ela tivesse sido escrita para os filólogos. Disso resulta uma teoria completamente falsa da compreensão, que está na base não só dos métodos de interpretação lingüística dos textos, mas também de toda a semasiologia européia. Toda a sua posição em relação ao sentido e ao tema da palavra está impregnada dessa falsa concepção da compreensão como ato passivo – compreensão da palavra que exclui de antemão e por princípio qualquer réplica ativa. Veremos mais adiante que esse tipo de compreensão, que exclui de antemão qualquer resposta, nada tem a ver com a compreensão da linguagem. Essa última confunde-se com uma tomada de posição ativa a propósito do que é dito e compreendido. A compreensão passiva caracteriza-se justamente por uma nítida percepção do componente normativo do signo lingüístico, isto é, pela percepção do signo como objeto-sinal: correlativamente, o reconhecimento predomina sobre a compreensão. Assim é a língua morta-escrita-estrangeira que serve de base à concepção da língua que emana da reflexão lingüística. A enunciação isolada-fechada-monológica, desvinculada de seu contexto lingüístico e real, à qual se opõe, não uma resposta potencial ativa, mas a compreensão passiva do filólogo: este é o “dado” último e o ponto de partida da reflexão lingüística. Originada no processo de aquisição de uma língua estrangeira num propósito de investigação científica, a reflexão lingüística serviu também a outros propósitos, não mais de pesquisa, mas de ensino; não se trata mais de decifrar uma língua, mas, uma vez essa língua decifrada, de ensiná-la. As inscrições extraídas de documentos 103 força, de santidade, de verdade, e obrigou a reflexão lingüística a voltar-se de maneira privilegiada para seu estudo. E, no entanto, a filosofia da linguagem e a lingüística até hoje ainda não se conscientizaram do imenso papel ideológico da palavra estrangeira. A lingüística continua escravizada por ela. Representa, por assim dizer, a última onda trazida pelas águas outrora criativas e vivas da palavra estrangeira, a última peripécia de sua carreira ditatorial e geradora de cultura. Esta é a razão pela qual a lingüística, ela própria produto da palavra estrangeira, está ainda longe de alcançar uma compreensão correta do papel dessa palavra na história da língua e da consciência lingüística. Pelo contrário, os estudos indo-europeus elaboraram categorias de análise da história da língua que excluem completamente qualquer apreciação correta desse papel. Entretanto, esse papel, como vimos, é imenso. A idéia do “cruzamento” de línguas (da interferência lingüís- tica) como fator essencial da evolução das línguas foi avançada com toda clareza por Nicolau Marr. Ele também reconheceu esse fator como fundamental para a resolução do problema da origem da linguagem: “A interferência em geral, como fator que provoca a aparição de formas e de tipos lingüísticos diferentes, é a fonte da formação de novas espécies: isso é observado e apontado em todas as línguas jaféticas e esse é um dos resultados mais bem sucedidos da lingüística jafética (...) O fato é que não existe nenhuma língua onomatopaica primitiva, comum a todos os povos e, como veremos, tal língua jamais existiu nem poderia ter existido. A língua é uma criação da sociedade, oriunda da intercomunicação entre os povos provocada por imperativos econômicos; constitui um subproduto da comunicação social, que implica sempre populações numerosas.”8 No seu artigo intitulado “Sobre a Origem da Linguagem”, ele diz o seguinte: “Em suma, a concepção que a assim chamada cultura nacional possui dessa ou daquela língua, como língua nativa, de massa, de toda a população, é anticientífica e irrealista. Por enquanto, a idéia de uma língua nacional comum a todas as castas, a todas as classes é uma ficção. Ou melhor: assim como a estratificação da sociedade durante as primeiras 8 N. Marr, Po etapam iafetítcheskoi teórii (As Etapas da Teoria Jafética), p. 268. 104 fases de desenvolvimento procede das tribos, isto é, na realidade, de formações tribais – que nem por isso são simples – por via de cruzamento, assim também as línguas tribais concretas, e a fortiori, as línguas nacionais, representam tipos cruzados de línguas – cruzamentos constituídos de elementos simples cuja associação está na base de qualquer língua. A análise paleontológica da linguagem humana não vai além da definição desses elementos tribais; mas a teoria jafética ajusta esses elementos de maneira tão direta e decisiva que a questão da origem da linguagem fica reduzida à questão do surgimento desses elementos, que nada mais são do que as denominações tribais.”9 Os problemas da significação da palavra e da origem da lingua- gem fogem do quadro de nossa pesquisa. Não examinaremos aqui a teoria da palavra estrangeira dos antigos10 e limitar-nos-emos a esboçar as categorias provenientes da palavra estrangeira que serviram de base ao objetivismo abstrato; resumiremos assim o exposto acima e completaremos essa exposição por uma série de pontos essenciais: 1. Nas formas lingüísticas, o fator normativo e estável prevalece sobre o caráter mutável. 2. O abstrato prevalece sobre o concreto. 3. O sistemático abstrato prevalece sobre a verdade histórica. 4. As formas dos elementos prevalecem sobre as do conjunto. 5. A reificação do elemento lingüístico isolado substitui a dinâmica da fala. 6. Univocidade da palavra mais do que polisemia e plurivalência vivas. 7. Representação da linguagem como um produto acabado, que se transmite de geração a geração. 8. Incapacidade de compreender o processo gerativo interno da língua. Consideremos brevemente cada uma dessas particularidades da reflexão dominada pela palavra estrangeira. 9 Ibid., p. 315-316. 10 Assim, a percepção que o homem pré-histórico tem do caráter má- gico da palavra é fortemente marcada pela palavra estran- 105 1. A primeira dispensa qualquer explicação. Já mostramos que a compreensão que o indivíduo tem de sua língua não está orientada para a identificação de elementos normativos do discurso, mas para a apreciação de sua nova qualidade contextual. A construção de um sistema de formas submetidas a uma norma é uma etapa indispensável e importante no processo de deciframento e de transmissão de uma língua estrangeira. 2. O segundo ponto fica também bastante claro à luz do que já expusemos. A enunciação monológica fechada constitui, de fato, uma abstração. A concretização da palavra só é possível com a inclusão dessa palavra no contexto histórico real de sua realização primitiva. Na enunciação monológica isolada, os fios que ligam a palavra a toda a evolução histórica concreta foram cortados. 3. O formalismo e o sistematismo constituem os traços típicos de toda reflexão que se exerce sobre um objeto acabado, por assim dizer, estagnado. Essa última particularidade manifesta-se de diferentes maneiras. De modo característico, é o pensamento alheio que é habitualmente, se não exclusivamente, sistematizado. ––––––––––––––––––––––––––– geira. Estamos pensando aqui na totalidade dos fenômenos com ela relacionados. Os criadores – iniciadores de novas correntes ideológicas – nunca sentem necessidade de formalizar sistematicamente. A sistemati- zação aparece quando nos sentimos sob a dominação de um pensamento autoritário aceito como tal. É preciso que a época de criatividade acabe; só aí é que então começa a sistematização- formalização; é o trabalho dos herdeiros e dos epígonos domi- nados pela palavra alheia que parou de ressoar. A orientação da corrente em evolução nunca pode ser formalizada e sistemati- zada. Esta é a razão pela qual o pensamento gramatical formalista e sistematizante desenvolveu-se com toda plenitude e vigor no campo das línguas mortas e, ainda, somente nos casos em que essas lín- guas perderam, até certo ponto, sua influência e seu caráter autori- tário sagrado. A reflexão lingüística de caráter formal-sistemático foi inevitavelmente coagida a adotar em relação às línguas vivas uma posição conservadora e acadêmica, isto é, a tratar a língua viva como se fosse algo acabado, o que implica uma atitude hostil em relação a todas as inovações lingüísticas. A reflexão lingüística de caráter formal-sistemático é incompatível com uma aborda- gem histórica e viva da língua. Do ponto de vista do sistema, a
Docsity logo



Copyright © 2024 Ladybird Srl - Via Leonardo da Vinci 16, 10126, Torino, Italy - VAT 10816460017 - All rights reserved