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Antropologia e comunicação, Manuais, Projetos, Pesquisas de Ciências Sociais

LIVRO PARA ESTUDANTES E PROFESSORES DE ANTROPOLOGIA, ALÉM É CLARO DAQUELES QUE DESEJAM APROFUNDAR SEUS CONHECIMENTOS DE ANTROPOLOGIA

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2011

Compartilhado em 03/03/2011

julio-cesar-silva-24
julio-cesar-silva-24 🇧🇷

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Baixe Antropologia e comunicação e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Ciências Sociais, somente na Docsity! ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO: PRINCÍPIOS RADICAIS —] | antropologia. 65 1 25/3/2008, 13:52 | Dm Reitor Pe. Jesus Hortal Sánchez, S.J. Vice-Reitor Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J. Vice-Reitor para Assuntos Acadêmicos Prof. José Ricardo Bergmann Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo Vice-Reitor para Assuntos Comunitários Prof. Augusto Luiz Duarte Lopes Sampaio Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Pe. Francisco Ivern, S.J. Decanos Profª Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH) Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS) Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC) Prof. Francisco de Paula Amarante Neto (CCBM) antropologia.p65 25/3/2008, 13:522 5 Os outros e os outros A meu pai, João, e a minha filha, Aline: a todos de quem aprendo a aprender. antropologia.p65 25/3/2008, 13:525 6 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO antropologia.p65 25/3/2008, 13:526 7 Os outros e os outros Apresentação CAPÍTULO I: Homens. Homem? Uma pergunta, muitas respostas Neutralidade? Objetividade? Mundos. Mundo? Vida e comunicação Biologia, sociologia, comunicação Símbolos e sinais Nem só de mel... Símbolos animais? Sinais humanos? Mas, como? Conclusão CAPÍTULO II: Sobre a necessidade e outros mitos S U M Á R I O 9 13 14 16 19 21 24 26 30 37 44 52 53 54 57 62 65 67 69 75 78 80 86 88 90 95 99 Da ciência à sapiência Mecanismo, organismo, informação Ecologia social dos chimpanzés Um pressuposto viciado Nem só de pão... Necessidades orgânicas? Sobrevivência. Qual? De quem? O mito de origem A falácia da miséria original Natureza viva Trabalho Razões. Razão? Homo oeconomicus Conclusão antropologia.p65 25/3/2008, 13:527 10 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO teorias dispersos em função do meu próprio projeto. Um bricollage intelectual, para falar um pouco de antropologuês. Apesar disso, é pouco provável que a maioria de meus colegas venha a estar de acordo com o resultado do meu devaneio. Alguns, dele poderão dizer: um delírio. Tanto melhor: um pouco de efervescência anda fazendo falta em nosso ambiente intelectual. Uma parte razoável deste trabalho foi organizada durante o primeiro semestre de 1987, quando estive vinculado à Indiana University, na condição de professor-visitante do seu Departamento de Antropologia e de pesquisador-associado do seu Research Center for Language and Semiotic Studies. Fiz bons amigos nesta ocasião, que me propiciaram o calor humano tão necessário a que o saber tenha, como dizia Roland Barthes, algum sabor. Fico muito feliz podendo lhes agradecer: Wesley e Mary Hurt, Thomas e Jeane Sebeok, Anthony Seeger, Emilio Morán, Carlos Coimbra, Ricardo Ventura Santos... Importantes agradecimentos devo também aos meus colegas do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense e do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Além de a estas instituições, devo agradecer também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cnpq), à Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), à Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs). Minha gratidão também a meus alunos, pois de muitos deles proveio o estímulo à redação deste trabalho: foi pensando neles que o escrevi, quase que linha por linha. A Ivone Barros, que, linha por linha, heroicamente datilografou o manuscrito. A Júlia Almeida que o revisou misturando carinho e rigor. Também àqueles que se sabem meus amigos: por vocês a vida vale. Este trabalho é dedicado a vocês. antropologia.p65 25/3/2008, 13:5210 ... a finalidade última das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo... reintegrar a cultura na natureza e a vida no conjunto de suas condições físico-quimicas. (Lévi-Strauss, O Pensamento Selvagem, p. 282) Contra o positivismo, que pára diante dos fenômenos e diz: “Há apenas fatos”, eu digo: “Ao contrário, fatos é o que não há; só há interpretações”. (Nietzsche, de um dos fragmentos póstumos) Mente humana, como pára-quedas: funciona melhor aberta. (Charlie Chan) antropologia.p65 25/3/2008, 13:5211 —] | antropologia. p65 25/3/2008, 13:52 15 Os outros e os outros por “humano”. A verdade universal sobre um sujeito universal, o Homem, não há; existem, entretanto, plêiades de verdades de variadíssimos sujeitos, os homens. Embora os sistemas organizados de explicação do Universo sempre tivessem tido o problema do lugar do Homem na existência como objeto central e inabstraível de suas curiosidades, para bem compreendermos a natureza da indagação o que é o Homem? e bem situarmos a perplexidade dos antropólogos diante dela, lembremos que não foram necessários de modo algum os filósofos, os cientistas ou os teólogos – nenhuma reflexão especializada, em suma – para que as questões relativas ao ser próprio do Homem fossem levantadas e as respostas fornecidas. Muito menos foram necessários os antropólogos. A ansiedade huma- na em torno desse tema não dependeu jamais do esforço de sábios que fizessem pelos homens comuns o trabalho intelectual da pergunta e que dessem a estes, como dádiva, um sistema de respostas organizadas. Nada disso: a própria existência cotidiana é pontilhada de ocasiões em que a definição de o que é “ser humano” se apresenta como indispensável. A vida material e pulsante dos homens requer esta determinação, pois sem ela gesto humano algum pode significar. Mais do que simples curiosidade antropológica, o conceito de “homem” constitui um princípio lógico e semântico fundamental, na ausência da qual toda organização humana de idéias, comportamentos e sentimentos se tornaria inviável. Cada um de nós pode verificar, em nossas existências individuais, a intensidade e a veracidade dessa importância. É necessário, por exemplo, que definamos alguém como humano ou não, para que possamos lhe dirigir a palavra, oferecer roupas ou determinados alimentos, aproximar a certa distância, tocar determinadas partes do corpo, abordar sexual-mente... É preciso que eu me veja como “humano”, obedecendo a um conceito definido de o que seja “homem”, para praticar com sentido atos tão mínimos como escovar os dentes e limpar as unhas (e não me sinta conseqüentemente um “porco”), para procurar originalidade em meus atos (e não deixe que me considerem um “macaco”). Para não ser considerado um “papagaio”, é necessário encadear as palavras com certa conseqüência, assim como é preciso manejar com perícia o raciocínio, para não ser rotulado de “burro”. Cada um de nós espera que os outros tenham uma certa vivacidade, que sejam de alguma forma “animados” e não “vegetem”; do mesmo modo que os outros esperam de cada um de nós que seja submisso a certas regras de Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5215 16 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO etiqueta, não se comportando, conseqüentemente, como um “animal”. Torcemos para que ninguém seja cruel e “desumano”, curvando-nos todos diante de alguns valores que dizem respeito à bondade. E esperamos de nossos iguais que não sejam altivos, pretendendo-se divinos, e que admitam padecer de certas limitações típicas de “homens”... Como vemos, não se trata de problema meramente especulativo, entregue a alguns ociosos do pensamento. Não! O que é o Homem? é uma interrogação latente e constante, continuamente respondida em estado prático na vida de cada um – nos gestos e hábitos, nos usos e costumes, nos mitos e rituais, nas estruturas de pensamentos, nas relações com os outros. Um problema concreto, a exigir soluções aqui e agora. As soluções são sempre dadas, em cada movimento da face humana. E são verdadeiras por definição para aqueles que nelas acreditam, como são verdadeiras para nós as características que nós mesmos utilizamos para definir nossa humanidade e para estabelecer, por extensão, aquilo que achamos que o Homem “é”. Assim – dando respostas específicas, encontrando verdades específicas, dando múltiplas respostas, encontran-do verdades múltiplas – os diferentes homens têm vivido semelhan-temente como homens. Neutralidade? Objetividade? É possível que se objete que as idéias até aqui expostas pequem por ignorar o trabalho de cientistas, em busca de conhecimentos neutros e objetivos sobre a história humana. É possível que se argumente, contra o nosso raciocínio, que a ciência, fornecendo-nos conhecimentos baseados em documentos “insofismáveis” e construídos de maneira metódica e rigorosa, poderá um dia colocar entre nossas mãos a palavra verdadeira (e derradeira) sobre o lugar do Homem na existência. É possível que se estranhe que exatamente de um antropólogo provenha a afirmativa de que o enigma do Homem é indecifrável. As páginas seguintes tratarão de derreter essas objeções. Não ob- stante, é preciso reconhecer que os conhecimentos científicos sobre o tema o que é o Homem?, por mais objetivos e neutros, serão apenas mais uma resposta dentre as multiplíssimas formuladas por homens. Como todas as outras, reconheçamos humildemente, a resposta científica será perfeitamente válida para aqueles que nela tiverem fé, pois a legitimidade dos conhecimentos “racionais” depende antropologia.p65 25/3/2008, 13:5216 17 Os outros e os outros previamente de uma espécie de fé nos poderes especiais da razão. Esta crença, sabemos, não é, absolutamente, universal: os conhecimentos “objetivos”, “neutros”, “rigorosos” serão insuficientes e irrelevantes para homens que resolverem continuar definindo suas humanidades a partir de outros critérios. Ainda mais: os conhecimentos científicos só poderão atuar como respostas efetivas na medida em que transpirem dos laboratórios e gabinetes de pesquisa, na medida em que invadam e impregnem as vidas cotidianas e concretas de homens palpáveis, que resolvam aceitá- las e absorvê-las profundamente como suas verdades. Acontece, entretanto, que neste ponto os conhecimentos científicos estarão diluídos entre as mitologias, as opiniões, os sensos comuns, os rituais, as ideologias... Conseqüência: não serão mais (se algum dia o tiverem sido), nem objetivos nem neutros. Serão apenas mais uma crença, a se arvorar única, verdadeira e definitiva – como pretendem todas as ideologias, aliás. Os próprios cientistas talvez se surpreendam pouco com as idéias em questão, uma vez que eles mesmos têm sido os primeiros a reconhecer as limitações e a relatividade dos chamados conhecimentos “objetivos” e “neutros”, das verdades “absolutas” e “definitivas”, das teorias que se crêem apoiadas na “essência das coisas”. Afinal, os cientistas se têm aproximado cada vez mais da convicção de que em ciência não se devem admitir proposições definitivas e derradeiras, aceitando-se as teorias apenas na condição de serem as “melhores” disponíveis em um determinado momento e sob o viés de determinadas preocupações intelectuais. Tais teorias “melhores”, segundo este novo credo, estão fatalmente destinadas à superação, tão logo surjam outras que sejam “ainda melhores” ou que possam responder a solicitações formuladas por novos prismas intelectuais. Colocando o problema de maneira radical, diríamos que o que faz do cientista um cientista é sobretudo a consciência que tem do caráter fundamentalmente acientífico da ciência. Ele não acredita no mito da ciência, em neutralidade e objetividade – e é exatamente essa desconfiança o que lhe permite exigir métodos cada vez mais rigorosos, teorias crescentemente explicativas e bem formuladas, pontos de vista intelectuais sempre mais flexíveis, diversificados e abrangentes. Mais que um dogma que lhe permita esmurrar a mesa e bradar “isto é uma verdade científica!”, os cânones da ciência funcionam Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5217 20 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO um mundo em que o Homem pairaria soberano sobre a natureza. Desse modo, as semelhanças e diferenças entre os homens devem ser pensadas em função das semelhanças e diferenças entre os seres vivos. De um ponto de vista substantivo, o princípio axiomático estaria na consideração dos fatos da vida como fenômenos comunicacionais. Em uma grande diversidade de organismos, a comunicação aparece comprovadamente – de modo que a hipótese de que não existe ser vivo que de algum modo não emita ou receba mensagens nada tem de absurdo. Tão presente na natureza é a comunicação, que poderia ser inclusive considerada uma das propriedades fundamentais da vida. E mais: não seria ilícito supor a existência de tantos sistemas de intercâmbio e processamento de informações quantas forem as espécies sobre o globo. Cada organismo é em si mesmo um desses sistemas. Nos mais complexos, bilhões e bilhões de células devem-se organizar em relações recíprocas. É preciso controlar as reações bioquímicas no interior das paredes celulares, de modo a reter as substâncias úteis e eliminar as indesejáveis. É necessário, além disso, que o organismo disponha de órgãos aptos a recolher informações sobre o mundo exterior, confron- tando-as com dados disponíveis sobre os estados do próprio corpo. Mesmo nas formas de vida que os biólogos consideram menos evoluídas, pode-se constatar a existência das bases de um sistema de comunicação: emissão de sinais interna e externamente, recepção, tratamento e avaliação de informações, transformação de informação em ação... Sabe-se que os organismos percebem seus meios interno e externo apenas mediante seus aparelhos específicos, de maneira que cada um vive em um meio próprio, que é mais ou menos (às vezes completamente) diferente do dos outros organismos e dos homens. Tais variações estão parcialmente baseadas na arquitetura particular dos órgãos sensoriais, mas estão marcadas também pelo modo e condições de vida das diferentes espécies. Voadores, nadadores, insetos, plantas, animais noturnos... se deparam com condições de existência bem diferentes das do Homem. Assim, os cetáceos, que passam quase toda a vida na água, têm o ouvido como um dos seus sentidos principais, possuindo visão reduzida e atribuindo pouca importância aos sinais mímicos. Os carnívoros, ao contrário, vivem em um universo em grande parte visual, situando-se as informações recebidas por esse intermédio entre as mais decisivas para as relações com o meio e os semelhantes. antropologia.p65 25/3/2008, 13:5220 21 Os outros e os outros Cada espécie de organismo, em suma, põe em ação um aparato par- ticular de informação. Os sentidos não são sempre os mesmos, pois alguns se fazem ausentes em certas espécies. Mesmo quando coincidem, os sentidos estão longe de operar da mesma maneira, já que a visão pode não ser igualmente sensível, segundo as espécies, às cores e dimensões, o olfato pode não captar os mesmos estímulos, o tato registrar as mesmas sensações ou o ouvido as mesmas freqüências sonoras... Cada espécie habita um universo informacional que lhe é próprio. E este é o que lhe convém. Em relação a estes universos informacionais é que as espécies devem ser estudadas, pois cada uma está adaptada a este ou àquele seu meio. Conseqüentemente, é ingênuo, deslocado e absurdo hierarquizar “inteligências” de seres diferentes, por meio de experiências, testes e outras parafernálias artificiais: é que só tomando arbitrariamente o Homem como eixo de referência – antropocentricamente, portanto – se poderia cometer a tolice de comparar a “inteligência” (por nós considerada um dos atributos máximos da humanidade) de seres tão diversos entre si como o morcego, o macaco, as plantas, os papagaios... e os homens. Seguindo esta ótica comunicacional, verificamos também que, para sobreviver, o organismo é obrigado a obter muito mais do que as substâncias necessárias ao seu metabolismo – o que em si já seria um fenômeno comunicacional, pois supõe reconhecimento e discriminação dessas substâncias, ou seja, identificação de informação. E obrigado também a receber e recolher informações adequadas sobre o meio circundante: presença de inimigos, disponibilidade sexual dos parceiros, temperaturas do ambiente e assim por diante. Assim, contínuas e complexas interações se devem estabelecer também entre ele e o meio, com outros da mesma ou de diferentes espécies. Comunicação e existência constituem idéias inseparáveis: bom caminho para refletir sobre a vida. Vida e comunicação Sustentar que todos os seres vivos comunicam pode parecer óbvio, e o será certamente. Mas é preciso considerar que apesar de óbvia essa perspectiva nem sempre foi tida como relevante para pensar a questão dos atributos distintivos do Homem. Além disso, mesmo que admitamos a obviedade da colocação, somos obrigados a reconhecer que ela volta nosso pensamento para determinado lado e impulsiona Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5221 22 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO o raciocínio nesta direção. Que os seres vivos comunicam é hoje algo mais ou menos óbvio, mas admiti-lo como princípio significa colocar a questão da semelhança e da diferença entre eles de um modo novo. Um novo panorama se descortina diante de nossos olhos, convidando- nos a trilhar os caminhos que o recortam. Poderemos assim perguntar: “É evidente que os seres vivos comunicam, mas o fazem todos igualmente? Haverá, quanto ao Homem, especificidade comunicacional que o distinga?” Um olhar panorâmico poderia ajudar a começar a caminhada. Poderemos pousar nossa atenção sobre algumas relações nitidamente comunicacionais que a natureza oferece. Encontraremos flores a trocar polens entre si, sob a ação do vento. Veremos outras, cuja polinização não se pode fazer sem ajuda de pássaros ou insetos, assumindo cores e odores a que estes polinizadores são sensíveis, para melhor se adaptarem à necessidade de os atrair. Um pouco adiante, deparamo- nos com plantas capazes de crescer na direção de algum objeto, um galho ou arame em que possam se enroscar, para daí continuar crescendo rumo a novo objeto que possa servir de apoio. Como compreender estes fenômenos, senão supondo neles a existência de alguma forma de captação e processamento de informação? Que dizer, então, de formigas, capazes de assinalar às suas congêneres o local exato onde encontraram alimentos, valendo-se para isto de uma substância química que segregam no percurso de retorno ao formigueiro, cujo odor pode ser seguido pelas outras como se fosse um rastro? De aranhas, habilitadas a perceber a presença de animais e objetos que porventura toquem um fio das teias que armam? E de morcegos, que podem perceber objetos pelo ouvido, e deles se desviar em vôos velocíssimos? Que pensar de alguns peixes que emitem débeis impulsos elétricos continuamente, criando ao redor de si um campo, do qual a mínima perturbação é imediatamente percebida, como acontece quando é invadido por uma presa, cujo corpo conduz a eletricidade melhor do que a água em que vive? Perceberemos patos selvagens, por meio de piados especiais, avisando seus companheiros da presença de um inimigo nas imediações. E aprenderemos que esses sinais são às vezes percebidos por membros de outras espécies. Notaremos que galinhas, que correm em auxílio de seus pintinhos que piam, passam indiferentes por outros que podem ver mas não ouvir, pois estes foram colocados sob uma antropologia.p65 25/3/2008, 13:5222 25 Os outros e os outros estranha, que não é molestada quando apresenta o mesmo odor das que integram o grupo [Penna: 1976, p. 209]. Relações entre organismos, portanto. Um problema de “sociologia animal”? Certamente: pois não é para esta direção que conduzem nosso pensamento fenômenos comunica-cionais que são também fisiológicos [Chauchard: 1960, p. 32], como pombas que só ovulam na presença de um semelhante, mesmo que este seja do mesmo sexo e mesmo que seja apenas sua própria imagem em um espelho? Ou seus machos, que só conseguem produzir alimentos para os filhotes vendo a fêmea empolhando e mostrando-se ostentosa? Quando se vêem nas tardes de inverno os estorninhos executarem suas fascinantes manobras aéreas, reagindo uns aos outros, seguindo-se uns aos outros em uma ordem tão incrivelmente perfeita; quando se vêem “hierarquias” nas quais cada indivíduo do grupo “conhece” perfei- tamente o seu lugar, como se tem observado entre inúmeros pássaros, mamíferos e peixes e como se pode facilmente verificar em um galinheiro – quando estas coisas são constatadas, não é na direção dessa sociologia animal que nosso pensamento é convidado a caminhar? Não estaria nesse tipo de conhecimento, que põe em evidência a comunicação entre os organismos, a chave para compreender como é que em algumas espécies os sinais mantêm contato entre os membros de um grupo [Tinbergen: 1979, p. 96], evitando a dispersão de, às vezes, milhares de pássaros, milhões de peixes ou insetos? Não deve necessaria- mente haver uma rede de relações sociais a reunir, em um todo compacto, organismos que individualmente puderam parecer autônomos? Esta sociologia animal nos ensinaria que comunicação e sociedade estão presentes na natureza e que estão ambas presentes no Homem porque ele é parte da natureza. Aprenderíamos com ela que estas duas coisas são na realidade uma mesma coisa, pois não é possível imaginar sociedade sem comunicação, sistema social em que os membros não estejam em contato dinâmico. Os chamados “processos sociais básicos” – cooperação, competição, conflito, imitação, associação, etc. – são fundamentalmente processos comunicacionais. É possível imaginar sociedade sem comunicação? Claro que não, pois até mesmo o “isolamento social”, a ausência de comunicação, pode ser considerado, sob outro aspecto, uma forma particular de comunicação: entre os animais considerados “solitários”, não haveria, Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5225 26 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO por hipótese, uma partilha de territórios, de modo a garantir a cada um as condições coletivas de sobrevivência? Símbolos e sinais Nesse território comum a todos os seres vivos – relações sociais e comunicação – quais seriam as características mais gerais e abrangentes da comunicação social? Que linhas demarcatórias definiriam o terreno próprio aos animais e plantas? Em relação a estas linhas fronteiriças, onde estaria situado o domínio próprio do Homem, também ser vivo, social e comunicante? Uma primeira observação, já há muito registrada e reafirmada (mas merecendo as ponderações que adiante formularemos), emerge: os animais, e talvez as plantas, se comunicam por sinais organicamente programados. Dito de outro modo, faz parte da constituição biológica de determinados organismos que se comuniquem exatamente da maneira como o fazem, sendo a atividade comunicacional mera manifestação ou atualização do funcionamento fisiológico de um organismo particular. Essa primeira observação poderia ser ilustrada por um mecanismo conhecido como “impregnação”, mediante o qual [Cuisin: 1973, p. 45] patos, gansos, cisnes, cordeiros etc. seguem o primeiro ser semovente que vêem ao nascer – por exemplo, um homem – como se fosse a mãe (que, pelas probabilidades naturais, seria normalmente a primeira a ser vista). Antes de nascer, estes animais estão, por assim dizer, “programados” a apreender certas informações, que em grande medida comandarão seu comportamento futuro. Em muitas ocasiões, pode-se comprovar em laboratório a programação orgânica: por exemplo, criando separadamente certo número de animais e verificando que ainda assim estes animais se entregam a comportamentos específicos extraordinariamente complexos (nidificação, corte à fêmea, resistência a adversários...), como os congêneres criados em liberdade. Nenhum de nós, homens, está assim organicamente programado para a comunicação. Não está absolutamente dado por nossa estrutura orgânica que usemos o preto como expressão de luto, pois há congêneres nossos que preferem o branco para este fim. Que descubramos a cabeça ao entrar em um templo, nada tem de orgânico, pois faremos exatamente o contrário disso se formos mulheres católicas ou judeus do sexo masculino. Nada existe em nossa estrutura biológica que nos obrigue a antropologia.p65 25/3/2008, 13:5226 27 Os outros e os outros evadir quando ouvirmos a palavra “fuja”, pois se formos chineses certamente permaneceremos no mesmo lugar ao ouvi-la. Nossos símbolos, a cruz, a foice-e-o-martelo, a suástica, a rosa, a mão-fechada-com-o-polegar-levantado, o piscar-de-um-olho, a balança, o vermelho-verde-e-amarelo, as palavras... são socialmente programados, dependem de convenções estabelecidas entre os indivíduos que constituem o grupo. Ser humano algum está apto a participar da rede de comunicação formada por seus semelhantes pelo simples fato de ter nascido: ser-lhe-á necessário conviver com o grupo, introduzindo-se nele, embebendo-se dele. A banal observação de recém-nascidos, de crianças em crescimento e de estrangeiros, é suficiente para nos certificar dessas constatações. Embora raros, existem ainda os casos de seres humanos que conseguiram sobreviver ao isolamento em relação à sociedade – os “meninos-lobos”, os “meninos-selvagens’” – e indivíduos que foram mantidos em cativeiro desde tenra idade: quase como em um laboratório “natural”, todos evidenciam o quanto de humano independe de programação orgânica, devendo-se à estrutura social mais que à constituição físico-química dos indivíduos, a símbolos convencionais mais que a sinais organicamente programados. * Além de organicamente programado, o comportamento baseado em sinais é geneticamente transmitido. Depende de uma espécie de programa genético, cuja execução deverá se desdobrar durante a vida do organismo, estabelecendo-se completamente quando o organismo estiver “maduro” e esgotando-se paulatinamente, à medida que o organismo vá vivendo (isto é, morrendo). Desse modo, o desempenho comunicacional de um animal dependeria de sua constituição genética, em primeiro lugar, e, em seguida, do estágio de maturação orgânica em que se encontre. Para emitir o seu piado de alarme, seria necessário ao pato selvagem uma certa herança genética que lhe oferecesse esta possibilidade, mas também um certo grau de maturação orgânica que lhe permitisse exercer esta possibilidade – grau este diferente daquele que simplesmente lhe consentiria receber os sinais. Percebe-se de imediato que estes princípios, de um modo geral, não são os que vigoram no que respeita à comunicação humana. Utilizo a caveira para transmitir a idéia de perigo ou morte, o raio para me referir à energia elétrica, o sino para evocar a companhia telefônica, a Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5227 30 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO convenções, como também a substituí-las por outras, convencionando que as antigas convenções não valem mais: abrem-se desse modo à história. Mais ainda, os homens podem diferir de seus semelhantes, convencionando outras convenções, abrindo-se à alteridade e à diversidade cultural. Nem só de mel... As abelhas talvez proporcionem a melhor oportunidade de ilustrar essas observações. Sabe-se já há algum tempo que possuem uma organização social das mais interessantes e que esta organização se apóia em um sistema de comunicação complexo, cujo desvendamento, sobretudo a partir dos trabalhos de Karl von Frisch [1976], não tem cessado de causar espanto em meios leigos e científicos, pelo que tem revelado de refinamento e precisão. As abelhas de uma colméia devem cumprir, a partir de estrita programação orgânica, uma série de tarefas ou funções sociais, que se sucedem uma após a outra, em uma ordem definida e invariável, na medida em que vão vivendo as suas vidas. Até onde se sabe, as passagens entre as diferentes fases são determinadas por mudanças químicas ocorridas no corpo das abelhas. Cada abelha [Fox: 1940, pp. 107-109] começa a vida com um ovo posto pela rainha em lugar apropriado. Do ovo, vem uma larva, que se transforma em crisálida, de cuja casca uma abelha surge em seguida. Tão logo saída da casca, a abelha se limpa e enxuga, fazendo o mesmo com o alvéolo onde passou sua juventude como larva e crisálida: somente depois de limpo, a rainha botará outro ovo neste local. Ao final de três dias, a “operária” começará tarefa diferente, passando a alimentar larvas em suas células: recolhe mel e polen, dando este alimento às larvas. Após alguns dias neste trabalho, muda de novo de ocupação: agora suga néctar das bocas de trabalhadoras mais idosas, que retornam de suas excursões fora da colméia para coletar este líquido doce e trazê-lo para casa. Dentro do corpo de nossa abelha, o néctar se transforma em mel, sendo então expelido para dentro de células especiais, nas quais é estocado. Além disso, recebe o pólen que as mais velhas trazem para a colméia, guardando-o em outras células de estocagem. Depois de um ou dois dias nesta função, a abelha passa alguns dias carregando “lixo” para fora da colméia. Em seguida, transforma-se em produtora de cera, construindo com esta secreção de seu corpo novas células para a habitação. Terminada a tarefa, uma outra ainda: ser guardiã, barrando a entrada de qualquer congênere que não pertença à comuni-dade. Enfim, antropologia.p65 25/3/2008, 13:5230 31 Os outros e os outros à altura do vigésimo dia, começa a voar para o exterior, coletando néctar e pólen das flores, trazendo alimento para as companheiras. Assim, em vez de uma, a abelha tem várias ocupações em sua vida, uma após a outra, todas em obediência a um programa genético fixo, que se realiza em cada uma das diversas fases da maturação orgânica da abelha individual. Todas as abelhas executam essas mesmas diferentes tarefas na mesma ordem de sucessão. Estas funções estão, portanto, organicamente programadas e são intransformáveis: cada abelha individualmente faz as coisas exatamente como as outras. Não lhe é absolutamente necessário aprender seu trabalho. Na medida em que vai ficando mais velha, mudanças químicas ocorrem dentro de seu corpo, com o resultado de que a abelha seja obrigada a assumir suas sucessivas funções. Tal organização social independe também de tempo e espaço, o que se pode supor, embora precariamente, a partir de amostras disponíveis de abelhas petrificadas: velhos de trinta milhões de anos, esses fósseis mostram já todas as características físicas das abelhas hodiernas [Frisch: 1976, p. 149]. Seria necessário que elas se modificassem organicamente para apresentar uma organização social diferente. Elementos de “complexo” sistema social, “inebriadas” e “felizes” freqüentadoras de flores, “previdentes” acumuladoras de mel perfumado, “admiráveis” construtoras, guardiãs “severas”, merecedoras enfim de tantos elogios antropocêntricos, as abelhas operárias não podem, entretanto, se reproduzir: seu desenvolvimento ovariano é inibido por um ácido secretado pela rainha da colméia, o mesmo que durante o vôo nupcial serve para assinalar aos zangões a presença e a trajetória dela, única responsável pela reprodução, estimulando-os à aproximação. Idêntica determinação orgânica comanda o fascinante sistema de comunicação das abelhas. Von Frisch iniciou o estudo desse sistema de comunicação pelo mecanismo perceptual das abelhas operárias, partindo da observação, já formulada anteriormente por diversos biólogos, de que as flores são coloridas e perfumadas para atrair os insetos que as visitam: cores e perfumes facilitariam aos insetos encontrar seus alimentos, assegurando em troca a polinização das flores. Admitindo este ponto de partida, sua curiosidade se aguça: como isso acontece efetivamente? Serão as abelhas dotadas de percepção de cores? Que cores? Tratou então de responder experimentalmente essas perguntas. Com ajuda do perfume de um pouco de mel é possível atrair abelhas Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5231 32 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO para uma mesa, onde se lhes pode oferecer alimento sobre um cartão de cor azul. As abelhas sugam este mel que, depois de transportado para a colméia, será passado às companheiras. Diversas vezes as abelhas retornam à fonte de alimento que acabaram de descobrir. Após algum tempo, entretanto, Von Frisch retirou o cartão azul perfumado com mel, introduzindo dois novos cartões, sem perfume ou alimento, na mesma posição da primitiva fonte nutritiva. Um cartão azul à esquerda e um vermelho à direita: se as abelhas forem capazes de recordar que o alimento estava sobre o cartão azul e de distinguir o vermelho do azul, então, é lógico que pousarão sobre o azul. Foi isto exatamente o que verificou. Não somente em relação ao azul, mas também ao alaranjado, amarelo, verde, violeta e púrpura. Contudo as abelhas foram incapazes de distinguir o preto do vermelho. Ficou provado que possuem percepção cromática, mas também que esta não é idêntica à do ser humano, uma vez que são cegas no que diz respeito ao vermelho, confundem amarelo com alaranjado e verde, e azul com violeta. Em compensação, são capazes de perceber o ultravioleta, cor a que os homens não têm acesso. Verificou-se também que estas características são inatas e presentes em cada abelha individual, mesmo nas descendentes de abelhas que foram isoladas experimentalmente por diversos anos, impedidas de contato com outras abelhas e com o ambiente natural. Von Frisch dedicou-se também ao estudo da percepção química das abelhas. Seriam capazes de distinguir os perfumes das flores? Também através de procedimentos experimentais, foi possível demonstrar que as abelhas poderiam ingressar em caixas marcadas por um perfume especial, reconhecendo este perfume e podendo distingui-lo de numerosos outros aromas, fazendo uso de suas antenas, seu principal órgão de olfato. Descobriu-se ainda que, apesar de sensível, o olfato da abelha não pode perceber de longe o odor da maior parte das flores, funcionando mais como um instrumento de curta distância e de certificação, complementar à percepção de cores, capacidade utilizada para a percepção de objetos a longa distância. Tais descobertas foram de extraordinária importância para o desenvolvimento ulterior da pesquisa. Esses mecanismos perceptivos estão na raiz daquilo que Von Frisch chamou de “linguagem das abelhas”. Observou, quando fazia expe- rimentos sobre percepção, que às vezes era obrigado a esperar muitas horas e mesmo vários dias até que uma abelha descobrisse a fonte de antropologia.p65 25/3/2008, 13:5232 35 Os outros e os outros enfatizada e precisada pelos movimentos do abdômen da dançarina, acompanhada de um zumbido simultâneo; a duração do movimento abdominal aumenta com a distância e o zumbido se associa ao ritmo de batimento das asas, o que ajuda a definir a distância a percorrer. Mas, como poderiam as abelhas “medir” a distância? Von Frisch observou que com vento contrário as abelhas comunicavam as distâncias como sendo “maiores” do que seriam em um dia sem vento. Pôde, então, logicamente deduzir que as abelhas não informavam propriamente a distância em metros, tal como seriamos antropocentricamente inclinados a acreditar. Diferentemente, emitiam um comunicado sobre a distância, mas baseando-se na energia consumida para cobri-la. Para distâncias curtas, bastaria às abelhas dizer às suas companheiras algo como “voem pelas redondezas”. Para distâncias maiores, todavia, que implicariam uma área muito grande a ser pesquisada, tal informação seria extremamente pobre. Para que o sistema funcione, é necessário, além de uma informação precisa sobre a distância, que se comunique também algo sobre a direção que o vôo deverá tomar. Com a palavra, Von Frisch [1976, pp. 115- 161]: “a linguagem das abelhas é verdadeiramente perfeita e o método adotado para indicar a direção das fontes alimentares é uma das características mais extraordinárias de sua complexa organização social. Se observarmos as dançarinas que retornam de uma fonte de alimentos... verificaremos que todas as abelhas executarão a mesma dança, particularmente orientando sempre na mesma direção o trajeto linear da dança do abdômen. Um caso típico: as abelhas que se juntavam perto de uma fonte a duzentos metros ao sul da colméia dançavam de modo tal que o trajeto linear estivesse sempre orientado para a esquerda. Se, no mesmo momento, outras abelhas recolhiam alimento em um lugar a duzentos metros ao norte da colméia, podia-se observar que orientavam para a direita o trajeto linear da dança. Em outras palavras, a direção da parte linear da dança está de algum modo em relação com a direção da fonte de alimento.” Von Frisch observou também que a mesma fonte não era assinalada de maneira constante, modificando-se gradualmente até tornar-se completamente diferente, conforme o experimento se desse pela manhã ou à tarde. Aprofundando o estudo, pôde descobrir que a direção das danças variava em relação ao ângulo do movimento do sol através do céu e que este servia, portanto, como ponto de referência para este tipo de informação. Ainda mais, na medida em que dentro da colméia Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5235 36 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO não há presença da luz solar e em que a posição das abelhas ao dançar é perpendicular (vertical), enquanto o vôo para a fonte de alimento se dá na horizontal, alguma forma de “transcrição” deve estar presente. De fato: as abelhas orientam o trajeto linear da dança de acordo com determinado ângulo formado com a direção da força da gravidade – ângulo este que é o mesmo obtido entre o percurso feito em vôo para ir da colméia ao alimento e a posição do sol em relação àquela. Assim [p. 117], “se uma dançarina orienta para o alto o trajeto linear de sua dança, isto significa que a fonte de alimento está na mesma direção do sol. Se o trajeto linear se orienta para baixo, quer dizer que as outras devem voar em direção oposta à do sol. Se, durante a fase linear da dança, a abelha se desloca 60º à esquerda em relação à vertical, então o lugar do alimento está 60º à esquerda do sol...” Este elaboradíssimo sistema de comunicação tem deixado fascinados todos os que dele se aproximam. Todavia, mesmo perplexos e maravilhados, podemos enxergar nitidamente o quanto ele é diverso do sistema de comunicação simbólica. Fundamentalmente, o das abelhas é organicamente determinado: é preciso ser da espécie mellifera, para que o sistema que descrevemos vigore, pois na espécie Apis florea ele é diferente. O sistema das abelhas, ademais, é geneticamente transmitido, pois mesmo abelhas criadas em isolamento podem pô-lo em funcio- namento. Paralelamente, uma vez atingido certo patamar de maturação orgânica, cada abelha estará individualmente capacitada a participar da rede de mensagens, sendo o sistema social presidido por esta habilidade orgânica individual – o que não acontece com os homens. Disso tudo resulta que o sistema das abelhas é intransformável, uma vez que a Apis Mellifera está organicamente constrangida a assim se comunicar, inde-pendentemente de tempo, espaço ou circunstância, enquanto ela for organicamente uma Apis Mellifera. Contrariamente ao que acontece nas sociedades humanas, entre as abelhas a inscrição genética se torna imperativamente dominante sobre o comportamento social: o organismo individual detém todo o patri- mônio dos comportamentos coletivos e constrange a sociedade a só se transformar no ritmo das modificações paleontológicas. A comunidade das abelhas funciona como uma espécie de resultante das propriedades sempre idênticas de seus membros, cada um tendendo a executar os movimentos-sinais que provocarão nos outros as reações “corretas” – isto é, exatamente o oposto do que acontece entre os homens. Por isso, antropologia.p65 25/3/2008, 13:5236 37 Os outros e os outros seu fascinante sistema de comunicação contrasta com o humano: pela fixidez dos conteúdos das mensagens, pela referência obrigatória a uma só situação, pela transmissão unidirecional da informação, pela impossibilidade de decompor elementos com sentido em elementos sem sentido pertencentes ao sistema... Símbolos animais? Sinais humanos? Façamos um pequeno balanço de nossa reflexão. Temos até o momento procedido por abstração, isto é, adotado o método de separar ao nível do pensamento coisas que se encontram misturadas ao nível da “realidade”. Quase como se estivéssemos em um laboratório, o método nos propicia a oportunidade de trabalhar com realidades “ideais”, explicitando o “essencial” da comunicação animal, ou a comunicação humana em estado “puro”. O método é bom, pois nos dá acesso às características mais demarcadas do fenômeno em estudo, pondo em evidência as linhas mais expressivas de sua fisionomia. Não obstante, esse método contém o risco de um desvio grave, pois pode sugerir que “no mundo” as coisas se passem exatamente do mesmo modo que em nossas cabeças. Dito de outra maneira, existe o perigo de que consideremos que os fenômenos “em si” tenham a mesma nitidez, coerência e sistematicidade que o nosso método, a nível de intelecto, lhes atribui: que a realidade confusa, múltipla e heteróclita seja substituída pelo pensamento metodicamente conduzido. A rigor, não há solução para este problema epistemológico. Mas é sobretudo necessário controlar suas conseqüências teóricas. No nosso raciocínio, por exemplo, observa-se que o método acabou por conduzir à oposição quase antinômica entre sinal e símbolo, ou seja, entre comunicação animal e comunicação humana. As páginas anteriores não sugerem que sinal e símbolo se opõem termo a termo, cada um deles sendo o exato oposto do outro? Acionemos, então, os freios e façamos ponderações. Compreendamos que sinal e símbolo são construções abstratas do pensamento e que a oposição frontal entre eles é a oposição de conceitos, não de coisas. No “mundo”, a relação entre as coisas designadas por estes conceitos é muito mais complicada, comportando sobreposições, transformações e coexis-tências. Assim, a antinomia intelectual que estabelecemos, um pouco para “limpar o terreno” e para “enxergar na neblina”, não vigora de maneira tão simples ao nível da “realidade”: Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5237 40 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO pelo nome, estalando os dedos ou batendo palmas, em outras – se transforma em determinação orgânica: algo que é um símbolo para os homens é acolhido por animais, transformando-se em (quase) sinais. Tal condicionamento orgânico foi inclusive comprovado algumas vezes por experiências de laboratório [Watzlawick: 1973, p. 96]. Um cão é treinado, por exemplo, a fazer distinção entre círculo e elipse. Ampliando-se grandemente a elipse, ela se parecerá cada vez mais com um círculo, de modo que, a partir de certo ponto, o animal será incapaz de decidir. Como esta distinção foi artificialmente atrelada a alguma coisa importante da sobrevivência do cão (alimentação, por exemplo), a impossibilidade de decidir começa a provocar no animal distúrbios típicos de comportamento: estado comatoso, agressividade extrema, concomi-tantes fisiológicos de grave ansiedade... Lembremos ainda que os animais domados ou domesticados não são os mesmos, segundo as diferentes culturas. Há entre a natureza dos animais e o saber dos homens de cada sociedade uma espécie de jogo de aproximação e afastamento: existem animais mais difíceis ou fáceis de domesticar (o gato e o cachorro são bons exemplos), mas existem também culturas que conhecem melhor ou pior os meios de se relacionar com determinados animais, de modo que um animal doméstico para uma sociedade pode não o ser para outra (o elefante, selvagem na África, mas domesticado na India, não seria uma ilustração disso?). Assim, a domesticação é fundamentalmente um problema de partilha de códigos, em que os animais são forçados a abolir alguns de seus sinais originais, assumindo quase como sinais algumas convenções simbólicas. Os cães, por exemplo, devem deixar de demarcar o território com urina dentro de um apartamento, aprender os horários e locais apropriados... Domesticar um animal é sobretudo submetê-lo a algumas restrições em seu comportamento espacial. É preciso neutralizar tanto quanto possível sua “distância de fuga”, fazendo com que suporte, sem se afastar, a presença de seres humanos ou de animais. É necessário anular ou, pelo menos, canalizar, sua “distância de ataque”, de modo a impedir que o animal agrida aqueles com quem deve compartilhar o território. Enfim, é imprescindível que aprenda a respeitar uma nova “distância social”, atribuindo-lhe limites dentro do novo território. Nem todos os animais têm seus padrões espaciais igualmente flexíveis; mas nem todas as culturas, por outro lado, possuem o saber necessário à manipulação desses padrões. antropologia.p65 25/3/2008, 13:5240 41 Os outros e os outros Trata-se, em suma, de uma troca, envolvendo substituição e partilha de códigos espaciais e especiais. Nesses casos ambíguos, não há símbolos que se transmitam entre gerações pela educação; nem sinais condicionados que passem geneticamente aos descendentes dos animais domésticos. Não obstante, tais casos evidenciam a capacidade do animal de aprender quando se defronta com situações novas – capacidade, entretanto, limitada pelos determinantes orgânicos do animal e existente de maneira notável apenas naquelas espécies que já apresentam um desenvolvimento maior da sociabilidade. Somente nestes últimos a informação aprendida tem alguma chance de ser transmitida aos congêneres e, assim mesmo, em situações relativamente simples. * E quanto à presença de sinais no comportamento humano? Além de símbolos convencionais, estaria a comunicação humana submetida a fatores organicamente programados e geneticamente transmitidos ? Eis uma preocupação cuja procedência se justifica amplamente à primeira vista, pois há numerosíssimos aspectos de nossas vidas que encontram fácil correspondência em outros animais. Não estão aí a alimentação, a toilette, o sono, a amamentação, a excreção de dejetos, o parto, as relações sexuais, a assistência aos filhotes? Quem não é capaz de observar que crianças recém-nascidas choram e que, apenas um pouquinho mais velhas, são capazes de sorrir? Manifestações tão espontâneas de seres tão pouco socializados não seriam sinais? Tomemos o choro como exemplo. É certamente nossa primeira expressão de um estado de ânimo, partilhada provavelmente por muitas outras espécies animais, pois quase todos os mamíferos e muitas aves emitem guinchos, piados, grunhidos, berros, etc., informando aos adultos sobre seu estado orgânico ou psicológico. Os bebês humanos também choram por motivos semelhantes, expressando dor, fome, frustração, insegurança... Mas a semelhança cessa quando se observam as reações dos adultos humanos, pois nesse ponto começam a vigorar os ditames de cada cultura particular. Correr assustada e urgentemente para acudir, embalar, acariciar ou afagar a criança; reagir com energia para que a criança aprenda desde cedo a ser estóica; ouvir com tranqüilidade e indiferença, apoiando-se na convicção de que toda criança chora... tudo isso depende de convenções particulares. Há, pois, uma vastíssima gama de compor-tamentos possíveis dos adultos Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5241 42 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO em relação às crianças, que em absoluto não são programados organicamente. Por conseguinte, somos levados a admitir que, mesmo que crianças muito pequenas emitam sinais, os adultos lhes retribuem símbolos, fazendo com que para satisfazer seus desejos sejam obrigadas desde cedo e progressivamente a se enquadrar no universo adulto: chorar só por determinados motivos, obedecer certos horários para sentir fome, sede ou sono... Sobre o sorriso se pode dizer quase o mesmo. Inicialmente um vínculo entre a criança e o adulto que dela se ocupa, progressivamente vai o sorriso se atrelando a certos motivos culturalmente eleitos, pois segundo os tempos e lugares não se sorri para as mesmas pessoas, pelas mesmas razões, nem significam os sorrisos as mesmas coisas. Em algumas regiões da China, por exemplo, se sorri por constrangimento: um empregado pode ouvir sorrindo – o que para nós seria absurdo – o pito que lhe passa o patrão. Certa vez, assisti, estarrecido, pela televisão ao relato feito por uma japonesa, testemunha ocular dos horrores de Hiroxima. Razão de minha perplexidade etnocêntrica: ela terminou sua narrativa dos pavores que acompanharam a explosão da bomba, com um simpático sorriso estampado nos lábios. Muitas vezes encontrei dificuldades no relacionamento com membros de nacionalidade indiana, porque seus sorrisos com freqüência me pareciam deslocados, a expressão facial ambígua, ou simplesmente não apareciam em momentos fundamentais. Sorrir, então, é um gesto convencional: os sinais-sorrisos emitidos pelas crianças são progressivamente tragados pelas convenções culturais. Há manifestações orgânicas: certa sensação na boca do estômago me diz que tenho fome; certas colorações do rosto expressam susto ou vergonha; certos odores estão ligados à excitação sexual ou à presença de excrementos... Há manifestações de que o Homem é um ser vivo, um animal. Mas como não ver que aquilo que é mais biológico – o sexo, a morte, a alimentação, a saúde, etc. – é também aquilo que está, por toda parte, mais embebido de símbolos e de cultura? Nossas atividades biológicas fundamentais – comer, beber, defecar, copular, morrer – não estão estreitissimamente ligadas a tabus, valores, mitos e rituais? Pois é: jamais existem como sinais em estado puro. São imediata e definitiva-mente enredados pelas malhas das convenções. * Há, ainda, a desafiar a oposição sinal/símbolo, uma outra classe de fenômenos – esta muito mais significativa do ponto de vista antropológico. Trata-se de ocasiões em que certos animais dão antropologia.p65 25/3/2008, 13:5242 45 Os outros e os outros seres, como as plantas, dotados de um psiquismo ainda elementar, desprovidos de sistema nervoso e de verdadeiro comportamento. Há as comunidades animais, nas quais os vínculos, afetados por fatores bioquímicos, biológicos ou psicobiológicos, são muitas vezes de teor afetivo. Há sistemas nos quais a afinidade social não aproxima apenas seres da mesma espécie, pois animais, plantas e bactérias podem ser interdependentes em suas vidas concretas, abastecendo-se uns aos outros como alimentos e transmitindo mutuamente informações... Haveria, pois, lugar para toda uma sociologia da natureza, que pretendesse demonstrar que as tendências à agregação e à associação são universais entre os seres vivos, que estas tendências podem ser organizadas e classificadas e que as expressões mais altas da vida social têm uma longa história natural. Vimos que na linha dessas constatações surgiu uma nova biologia. Uma biologia que não concebe mais a vida como uma qualidade restrita aos organismos, uma biologia que não se encerra mais nos processos físico-químicos. Agora, abre-se ao fenômeno social que, embora largamente presente entre os animais e mesmo entre os vegetais, não era apreendido, por ausência de princípios teóricos e de conceitos. O ponto de vista teórico vigorante atualmente é outro: o organismo é contex-tualizado em seu meio, mas a própria idéia de “meio” também se transformou. “Meio” não é mais um pano de fundo físico-químico, passivo e contextual. É, antes, um sistema global de interinfluências biopsicossociais: é ecológico e também etológico. Com essa nova biologia, morre o biologismo, nascem novos conceitos de “natureza” e de “animal” [Morin: 1975]. É possível que uma nova antropologia surja também. A concepção de um Homem fechado em si, do lado de cá da fictícia linha de separação entre natureza e cultura deverá ceder, dando lugar a uma outra, capaz de abolir o antropocentrismo e de integrar o Homem na natureza de onde sua especialidade provém. Abrindo-se à nova biologia, talvez os antropólogos se reequipem do ânimo de encarar frontalmente o problema da origem da cultura, desenvolvendo os meios teóricos de o fazer. Com uma nova antropologia, uma nova concepção de “Homem” poderá surgir. Sem o antropologismo, a fronteira entre a antropologia cultural e/ou biológica, que os antropólogos sempre souberam artificial, deverá ser redefinida, deixando de ser o lugar onde os respectivos conhecimentos cessam, para assumir caráter de questão efervescente Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5245 46 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO e construtiva. A transposição desses sagrados limites deixará de ser tabu entre os antropólogos e sobre aqueles que praticarem o gesto, hoje sacrílego, de freqüentar o outro lado – antropólogos físicos freqüentando a cultura, antropólogos culturais freqüentando a natureza – deverá deixar de recair o estigma de “fascistas”, “reacionários”, “racistas”... Compreender-se-á, então, que, embora estas categorias acusatórias se justifiquem à luz de recentes acontecimentos de nossa história, elas nada têm de científicas. E que o velho perigo do determinismo biológico deverá desaparecer junto à velha biologia. A nova antropologia far-se-á realidade, com a profecia que Marx formulou no terceiro manuscrito de Paris: A própria história é uma parte real da história natural, do desenvolvimento da natureza para o homem. A ciência natural incorporará um dia a ciência do omem, do mesmo modo que a ciência do homem incorporará a ciência natural. Haverá apenas uma ciência. * A grande interrogação antropológica, por conseguinte, é: qual a origem da Cultura? A indagação é crucial, porque remete imediatamente o pensamento para o problema da relação genética que a Cultura tem com a Natureza, incidindo sobre o fato de o Homem ser ao mesmo tempo um animal e algo diferente de um animal. Relacionando Natureza e Cultura, a pergunta coloca em evidência o problema essencial da antropologia, preocupação sem a qual ela pouco se distinguiria da sociologia e das outras ciência sociais. A tarefa que se apresenta aos antropólogos é árdua. Sabendo que estão condenados à eterna impossibilidade de desvendar o mistério ] enquanto não for possível determinar, por um lado, as modificações de estrutura e funcionamento das organizações sociais naturais e, por outro, estabelecer seus correlativos no plano biológico individual, os antropólogos reconhecem ao mesmo tempo que estão desprovidos dos indispensáveis documentos sobre a história dessas organizações sociais. Os fósseis, que nos dizem o que sabemos sobre os organismos do passado, pouquíssimo esclarecem infelizmente sobre o comportamento social dos animais a que se referem. Não podendo estudar diretamente as vidas sociais que estariam na base da vida social humana, a antropologia se vê, desse modo, obrigada a recorrer às únicas fontes à disposição, isto é, à comparação com organizações sociais de espécies atuais, à analogia e antropologia.p65 25/3/2008, 13:5246 47 Os outros e os outros ao raciocínio hipotético. Conseqüentemente, sobre esta questão, como sobre o problema da origem do Universo, tudo o que se disser deverá ser considerado como pertencendo ao domínio das hipóteses. Não obstante, sabemos hoje com razoável segurança que a espécie humana não inventou uma série de comportamentos sociais, como a corte, a submissão, a estruturação hierárquica e a noção de território. A própria sociedade seguramente não é um fenômeno apenas humano e há aspectos da cultura que encontram evidente correspondência em animais não-humanos. O raciocínio se ampara, assim, além de na consciência de sua própria limitação, no conhecimento de que certas características próprias às sociedades humanas já emergem em muitas sociedades animais, especialmente naquelas cujos membros são biologicamente mais próximos do Homem. É possível supor, então, que as diferentes formas de vida social poderiam ser classificadas tendo em vista o grau de complexidade de intercâmbios que se verifiquem no interior de cada categoria. Desde a agregação simples de organismos até a associação complexa de seres de diversas espécies, poder-se-ia imaginar uma gradação sobre a qual exercitar o raciocínio hipotético acerca da origem da Cultura, tomando sempre como critério a questão da complexidade das relações sociais. Desse modo, a resultante teórica não estaria preocupada com os animais que pudessem incidir eventualmente nessa ou naquela categoria. Cada animal poderia até ocupar mais de uma categoria, sob este ou aquele aspecto de seus comportamentos sociais; e animais de características totalmente diferentes poderiam incidentalmente ocupar a mesma categoria. Pouco importa: o princípio de classificação que valeria seria o da complexidade das organizações sociais. Poderíamos imaginar um primeiro nível de complexidade que traduzisse a condição mais elementar de os organismos estabelecerem relações com outros organismos da mesma espécie ou de espécies diferentes. Pensemos, por exemplo, em aglomerações vegetais, onde se verificassem tendências gregárias, mas onde as relações pouco avançassem além da coexistência no espaço e no tempo e pouco se autonomizassem em relação a fatores orgânicos e inorgânicos. Pensemos, por exemplo, em uma planta projetando sobre outra a sombra que lhe permitisse suportar o calor do sol sem ressecar, mas desta última nada recebendo em troca. Haveria aí, então, um sistema no qual o grau de reciprocidade das relações sociais seria relativamente Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5247 50 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO A história se revelaria, por conseguinte, um elemento de manutenção da sistematicidade de sistemas sociais complexos, através de uma sociogênese contínua: o sinal – organicamente programado, genetica-mente transmitido, intransformável e existente prioritariamente no indivíduo – transformar-se-ia, então, em símbolo, que – socialmente convencionado, socialmente transmitido, transformável e existente prioritariamente no grupo social – representaria o controle do sistema sobre si mesmo e sobre suas partes. Um pouco como a água, que deve refazer sua organização à medida que aumenta a efervescência das relações entre as moléculas que a compõem, também a sociedade deve ter tido que recompor suas estruturações à medida que se complexificassem as relações presididas pelas estruturas anteriores. As transformações da organização social e a emergência da comu- nicação simbólica supõem também transformações orgânicas – contrapartidas ocorrentes nos organismos individuais, que os capaci-tassem a participar de sistemas de relações mais complexas. Mas as transformações sociológicas devem ter sido concomitantes às modificações ontogenéticas dos organismos pré-humanos, formando um único caudal de mudanças biopsicossociais. Fatores genéticos, ecológicos, sociológicos, psíquicos, cerebrais, culturais... devem ter constituído um processo multidimensional, do qual teria resultado o Homo sapiens. As tentativas de separação dos diferentes aspectos desse processo, ou de enfatização de um deles, correspondem em geral a celeumas acadê-micas ou abstrações provisórias que separam no plano do pensamento coisas que a “realidade” mistura. Afirmar que houve primeiro crescimento do volume cerebral, que atribuiu ao Homem um maior número de neurônios e sinapses, possibilitando-lhe operações intelectuais mais complexas que, por sua vez, viriam a lhe propiciar uma vida social de complexidade maior, ou, ao contrário, que teria havido antes o desen-volvimento de uma vida social mais complexa, que exigisse do Homem um cérebro de complexidade maior, etc. – simplesmente não faz sentido. O Homem é um ser com determinado aparelho cerebral e deter- minado tipo de vida social. Por isso, não faria sentido absorver qualquer esquema teórico de causação linear, que nos obrigasse constantemente a perguntar o que teria vindo no início ou no fim: se o polegar em oposição ou a tentativa de manipular objetos, se o andar bípede ou a antropologia.p65 25/3/2008, 13:5250 51 Os outros e os outros liberação das mãos, se a preensão manual ou a dispensa da boca da tarefa de pegar coisas, se a vida terrestre ou a autonomização da cabeça em relação ao esqueleto, se a abolição do constrangimento a pegar objetos com a boca ou a utilização da mesma no desenvolvimento da linguagem... Um ca-minho como este nos levaria a pressupor que a hominização tenha sido um processo cristalino, comportado, enquadrado. E nos conduziria à incapacidade de cogitar que este pudesse ter sido equívoco, hesitante, contraditório, marcado por idas e vindas e por ritmos irregulares, desen-volvendo ora predominantemente isso ora principalmente aquilo – mas, numa escala de milhões de anos, promovendo contínuo movimento do todo. Assim, se, por um lado, foi a evolução “biológica” do cérebro de alguns animais pré-humanos que teria permitido a complexificação social que viria a produzir a Cultura, por outro, no entanto, foi a evolução da vida social e da Cultura que teria impelido determinados homínidas a desenvolver o cérebro [Morin: 1975, p. 873]; passando dos 500cm3 do antropóide, para 600-800 cm3 dos primeiros homínidas, para 1.100 cm3 do Homo erectus, chegando aos 1.500 cm3 do Homo sapiens neanderthalensis e do Homo sapiens sapiens... O desvendamento da hominização, da origem da comunicação simbólica e da cultura, por conseguinte, dependeria, em termos perspec-tivos, não somente de uma espécie de sociologia animal, mas também do progresso associado de uma anatomia e uma fisiologia cerebrais, capazes de trazer à tona os caminhos pelos quais estruturas “próprias” ao Homem poderiam ter-se originado em sistemas governados por sinais, através de um processo de mudanças quantitativas, que teriam feito emergir uma diferença apreciável no que diz respeito à organização da vida social. Onde se vê um precipício enorme entre Natureza e Cultura, seria possível descobrir pontos de junção, por onde o processo de hominização deve ter atravessado. Onde se vê o Homem destacando-se da Natureza por um salto soberbo, pelo olhar de cima, indiferente e orgulhoso de quem se crê de estirpe superior por sua inteligência, técnica, linguagem, cultura... poder-se- ia ver (além de uma ideologia bem definida da sociedade ocidental) alguns desses fatores co-produzindo o Homem, ao longo de muitos milhões de anos: a Cultura sendo gestada no seio da Natureza, por um processo de complexificação ele mesmo complexo. A antropologia deixaria de ser a ciência do devir social do Homem, para se tornar a do devir humano do social. Homens. Homem? antropologia.p65 25/3/2008, 13:5251 52 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO Conclusão A perspectiva comunicacional nos permitiria, assim, mergulhar a cultura na Natureza e descobrir que os universos de diferenças que se constatam entre os homens têm fundamentos profundos na história natural pré-humana. Autorizar-nos-ia também lançar a hipótese de que assim como os animais estão, por obra dos sinais e segundo as espécies, naturalmente programados para a semelhança, os homens também estariam, por intermédio da capacidade de comunicação simbólica, naturalmente condenados à diferença. A diferença constituiria assim, o que de mais igual, comum e semelhante existiria entre os homens: a cultura. Essa perspectiva teórica autorizaria ainda conviver com o paradoxo de ter a antropologia um discurso próprio sobre o Homem e ao mesmo tempo não o querer erigir em saber imperial, sendo antropologia até às últimas conseqüências: relativizando conceitos como “verdade”, “razão”, “realidade’, relativizando-se a si mesma e se vendo como discurso parcial e setorial, cujas ambições globalizadoras devem ser refreadas, contextualizadas culturalmente e mostradas como manifestação característica da visão de mundo de um segmento de uma sociedade particular, a ocidental, em um momento definido de sua trajetória histórica. Relativizar a própria antropologia significa, então, não atribuir a seu saber a condição de absoluto, reconhecer que ele não é melhor nem mais válido que outros saberes, científicos ou não. Dentro do paradoxo de uma ciência que se relativiza a si mesma, a resposta antropológica à solicitação de explicar o que é o Homem só pode ser paradoxal: o Homem não se explica; compreende-se através de homens. Ao invés de garbosos, intelectuais prontos a fazer uso da pouquíssima humana capacidade de responder aos que lhe perguntam o que é o Homem?, os antropólogos poderão se sentir, das lições que continuamente lhes ministram os homens, humildes exemplares, aprendizes e testemunhas: homens enfim. antropologia.p65 25/3/2008, 13:5252 55 Os outros e os outros que sejam obrigatórias e satisfatórias sob todos os aspectos. Afinal, não estamos cercados de pessoas que reivindicam o reconhecimento de novas províncias, nas quais possam acomodar variadíssimos fenômenos que dizem ter presenciado, sentido ou deduzido? Reivindicações que querem para o “mágico”, o “sociobiológico”, o “paranormal”, o “bioenergético”, o “imaginário”, o “inconsciente”, o “extraterrestre”, e assim por diante, um lugar entre os reinos de que a natureza “realmente” se comporia e aos quais pessoas “sábias”, “sãs” e “sensatas” deveriam se conformar? Aí estão os seres que não se enquadram completamente nas províncias oficiais, desaforadamente plantando-se sobre a divisória de dois ou mais lotes, ou esparramando-se indisciplinadamente de modo a simultanea- mente ocupar dois ou mais territórios: são ornitorrincos, botos, morcegos, cogumelos, estados de matéria... que se fazem presentes para ensinar que não devemos nos deixar conduzir pela ilusão antropocêntrica e narcisista de que as categorias intelectuais se confundam com as coisas. Portanto, deparamos com serissímos problemas de premissas quando levantamos hipóteses e tentamos explicações cabais acerca das relações dos seres com a natureza. A própria questão geral contém implicitamente o pressuposto contestável de que “natureza” e “seres” sejam domínios ou instâncias diferentes que “se relacionam”. Fazemos o mesmo quando consideramos as relações de um organismo com o mundo ou com outro organismo: tacitamente admitimos que uma linha demarcatória separe o organismo do meio, que “organismo” e “meio” existam como entidades diferentes e que indivíduos sejam separáveis de indivíduos, cada um sendo uma plenitude em si. Mas será que estas separações, operadas por e no pensamento, encontrariam correspondência no mundo “objetivo”? Assim, as premissas a partir das quais tem sido abordada a questão das “relações dos seres com a natureza” dificilmente resistiriam à reflexão. Não basta lembrar o simples fato de que não haveria “natureza” sem os “seres” que a povoam? E que “natureza” não é outra coisa senão um conceito, o do somatório ou amálgama dos entes que a compõem? Depois, não é elementar que cada organismo “individual” contém em sua origem dois organismos “individuais”, em cujas raízes estão oito outros, em cujas origens... configurando um infindável crescendo para trás e para a frente, em que o “individual” se torna abstração mais e mais impalpável? Mesmo no plano puramente lógico, a idéia de “indivíduo” seria informulável sem que dela participasse alguma noção de “todo”, sob a forma de “natureza”, “espécie”, “sociedade”, “grupo”, “ambiente”, e assim Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5255 56 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO por diante, por oposição à qual a primeira encontraria sentido. A própria idéia de “’indivíduo” não se poderia formular individualmente. Há, por conseguinte, um problema filosófico e semântico funda-mental, na raiz da questão da “relação dos seres com a natureza”: afinal de contas, o que é “natureza”? O que é “ser”? O que autoriza pensar os “seres” como separados da “natureza”? Onde começa, onde termina, no tempo e no espaço, um ser “individual”? Qual o limite entre um “ser” e outro? Tudo indica que tal problema é também lógico, pois suas soluções serão sempre axiomáticas, jamais se as podendo comprovar. Não ob- stante – e o que é especialmente grave – dessas soluções iniciais incomprováveis irão se desdobrar raciocínios e mais raciocínios, nos diferentes sistemas de pensamento, querendo demonstrar que tais e tais verdades derivadas são “verdades comprovadas”, fundamentadas no “ser das coisas”. Não estarão, assim, os sólidos edifícios das “verdades comprovadas” erigidos sobre fundações precárias? É claro que isto tudo vale para as “verdades” que estou proferindo. Talvez seja a sina de todo conhecimento a de em última instância se reduzir (ou se elevar) a uma declaração de fé. Desse destino não escapam os conhecimentos que se autoproclamam “objetivos”, que se querem verdadeiros porque sustentados por “fatos” e “evidências” empíricas: apenas expressam a fé em que o critério que define a Verdade reside nas evidências factuais. Dele também não fogem os conhecimentos que se arvoram verdadeiros em nome da razão: não é algo como uma espécie de fé nos poderes especiais da razão o que os sustenta? Assim, há vários séculos nossos filósofos vêm pateticamente se esforçando para comprovar factualmente o primado dos fatos, ou para demonstrar racionalmente a superioridade da razão. Não faltaram os que quisessem comprovar racionalmente a precedência dos fatos; nem estiveram ausentes os que se dispusessem a fornecer evidências empíricas de que é pela razão que se acede à verdade. Ora, tantos séculos de esforços baldados talvez sejam um indício de que o problema possa estar sendo mal colocado, de que a questão da verdade não comporte maiúscula ou singular. É possível que tenha chegado a hora de sair do círculo vicioso, relativizando tudo isso e relembrando algo palmar: verdade é algo em que se crê, se previamente se aceitam como verdadeiros os critérios que a definem como verdade. No que diz respeito a nosso problema específico, decorreria então que todo esforço seria vão, de descobrir o “verdadeiro” e “objetivo” antropologia.p65 25/3/2008, 13:5256 57 Os outros e os outros caráter da relação dos seres vivos com o mundo. A fortiori, seria vão querer desvendar a “verdade” da relação dos homens com a natureza. Assim, por reconhecer a precariedade das bases sobre as quais a discussão se assenta, está longíssimo da intenção deste trabalho qualquer ambição de Verdade. Por isso – e este é o grande fascínio do jogo intelectual – o leitor será convidado a confrontar pontos de vista, estabelecer diálogo entre teorias, sepultar provisoriamente idéias dominantes, ressuscitar conceitos, inverter pressupostos, desrespeitar o “óbvio”, praticar irreverência diante das autoridades do saber, relativizar “verdades”, relativizar a própria relativização... Sem compromisso com a “verdade”, utilizar-se-ão nas páginas seguintes noções precárias e arbitrárias, noções que muitas vezes serão objeto de crítica – o que será feito sem sentimento de culpa, simplesmente porque não há outras, simplesmente por não se pretender “fechar” aqui a questão. Para mim, e espero que para o leitor, tratar-se-á de um exercício com a linguagem, de um cometimento quase lúdico de escancarar portas e janelas da mente, pelo prazer simples de liberar o pensamento, de fazer da reflexão algo flexível. Talvez isso não seja ciência. Pouco importa: sapiência talvez? Mecanismo, organismo, informação Os seres vivos se relacionam com o mundo de modo mecânico (isto é, modificando-o e sendo modificado) e de modo orgânico (ou seja, retirando do mundo o que lhes é imprescindível). Nada parece existir de errado nessas concepções, se vistas como complementares: a contem-plação da natureza a olho nu nos põe diante dessa “evidência”. Não obstante, é possível submeter o mundo a uma observação mais “fina” e, em lugar de simplesmente admitir que as relações dos seres vivos com a natureza sejam mecânicas e orgânicas, podemos aceitar a premissa de que “mecânico” e “orgânico” são passíveis de ser comunicacionalmente concebidos – pelo menos no que diz respeito a alguns de seus aspectos. Isto significa que, ao invés de supor que as relações dos seres vivos com o mundo se resumam a descontinuidades do tipo pressionar/ser pressionado, determinar/ser determinado, modificar/ser modificado, se adaptar/ser eliminado, ser mais/ser menos apto, ser mais forte/ser mais fraco... podemos considerar que estas relações polarizadas e descontínuas podem ser vistas também sob o prisma de seus aspectos Sobre a necessidade e utros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5257 60 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO por colocar as caixas umas sobre as outras e por utilizar os bastões (ora como prolongamento do braço, ora como apoio para aumentar a capacidade de salto, ora unindo dois bastões pelas extremidades de modo a dilatar a extensão) para atingir bananas que inicialmente estavam fora do alcance. Livres em seus ambientes naturais, os chimpanzés fazem uso de “instrumentos” para retirar térmitas de suas habitações, operando algo parecido com o que fazem alguns pássaros, capazes de se servir de espinhos de cactos para desalojar insetos de seus esconderijos em buracos de árvores. Que dizer de alguns abutres africanos, que tomam pedras de cerca de cento e cinqüenta gramas pelo bico e as lançam várias vezes contra um ovo de avestruz, até quebrar-lhe a casca, para comer o conteúdo? Em casos como estes, nada de simplesmente “orgânico”, atuando de modo “mecânico”. Embora em escala macrobiológica e relativamente insólitos (para nós, que pensamos possuir o monopólio do instrumento, da linguagem, da comunicação, da inteligência, etc.), estes exemplos servem para colocar em evidência o fato de que processos como “luta pela vida”, “sobrevivência dos mais aptos”, “satisfação das necessidades”... comportam intermediações, transações entre o ser e o mundo. E que não seria absurdo admitir que mesmo para comer e viabilizar materialmente sua existência biológica deve o organismo estar inserido em uma rede de comunicação e informações. Alimento pode ser “tudo o que os instintos dos seres vivos colocam na categoria comestível”; mas, muito além disso, é necessário localizar, reconhecer, surpreender, ludibriar, modificar, seduzir... Passando do individual ao coletivo, seria inconcebível uma sociedade – vegetal, animal ou humana – na qual esta rede de relações com a natureza não encontrasse lugar, na qual estas relações não figurassem como uma de suas estruturas fundamentais. Sociedade que não pudesse manter a vida de seus componentes não poderia obviamente manter sua própria existência, na medida em que lhe faltaria este requisito elementar que é a população. Coerentemente, o que se observa em grande escala é a própria sociedade funcionando como intermediação entre os organismos e o “mundo”, do qual os primeiros obtêm os recursos energéticos que lhes permitem viver. Nesse sentido, muitas modificações do meio físico, de modo a elaborar um ambiente propício, são obras coletivas, às vezes resultantes de uma espécie de “divisão do trabalho” entre os organismos. Olhemos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5260 61 Os outros e os outros as formigas, das quais se diz habitualmente serem capazes de construir “verdadeiros palácios subterrâneos extraordinariamente complicados”, construções apenas consistentes com a vida orgânica e social desses animais. Entre elas, há as que se entregam ao “cultivo” de fungos, dos quais fazem uso como alimento desde que estejam em determinado estágio de desenvolvimento que a natureza não produz espontaneamente. Outras – valham todas estas expressões antropocêntricas – “domesticam” pulgas e as “ordenham” para ingerir os sucos que segregam, sendo a troca de matéria alimentícia (assim como entre térmitas, abelhas e diversas outras espécies animais) algo bastante freqüente: quando uma formiga tem fome, pode parar diante de uma congênere e “solicitar” por meio de suas antenas que lhe segregue uma gota de alimento. Em situações como estas, relações com a natureza, relações corporais e relações sociais fundem-se em um amálgama único. Há muito já se observou ser a “divisão de trabalho” uma característica marcante entre as abelhas: as rainhas põem, os machos as fecundam, as fêmeas estéreis são “operárias” (dentre as quais algumas “produzem” cera, outras alimentam as larvas ou fazem guarda à colméia, ou cuidam da limpeza, ou recolhem néctar e pólen...). No mesmo sentido, são numerosos os tipos de organização social nos quais se pode detectar uma espécie de repartição da tarefa de subsistir organicamente. Entre as aves de rapina, por exemplo, em geral é o macho que caça para toda a “família”, embora não alimente diretamente os pequenos, tarefa de que se desincumbe a companheira. Por toda parte, relações sociais e relações com a natureza se confundem: a ausência de inimigos ou competidores pode acarretar hiperpopulação e hiperdensidade social, do mesmo modo que os chamados animais “solitários” muitas vezes podem estar, por meio de uma organização social rarefeita, a oferecer uns aos outros um território suficiente para propiciar a cada um as condições coletivas de sobrevivência individual. Não se poderia conceber no reino natural a existência – a não ser a título excepcional – de padrões de relações sociais que não tivessem simultaneamente a função de permitir a interação dos organismos com o habitat que lhes garante a vida, viabilizando a sobrevivência do indivíduo e (muito mais importante) a da espécie. Sem risco de incorrer em absurdo, poder-se-ia mesmo afirmar que quanto menor a autonomia do organismo individual em relação ao todo social, tanto Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5261 62 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO mais se pode esperar que a coletividade dos organismos tome para si a missão de garantir a permanência orgânica da espécie. Não resulta disso, absolutamente, que os processos de competição, seleção, eliminação, etc. envolvendo organismos individuais estejam excluídos: muito pelo contrário, esta é uma das razões das inúmeras “hierarquias” constatáveis entre animais, nas quais os “superiores” são também os primeiros a terem acesso aos alimentos, às fêmeas, etc. Ao invés de puramente aleatórios e individuais, estes processos estão submetidos a uma espécie de lógica coletiva. Ecologia social dos chimpanzés Em precioso ensaio sintomaticamente intitulado “A Ecologia Social dos Chimpanzés”, Michael Ghiglieri [1985] colocou em evidência de modo bastante característico a questão das relações entre indivíduo, sociedade e natureza. Em suas pesquisas, Ghiglieri procurou seguir a orientação moderna de abordar os modos de vida dos animais preferentemente em seus ambientes espontâneos, admitindo seriamente a ressalva de que as condições de laboratório podem modificar em pontos importantes os comportamentos a observar. Em obediência a isto, seus estudos sobre os chimpanzés baseiam-se fundamentalmente em investigações de campo, nas quais tanto quanto possível o pesquisador se esforça por se adaptar às condições de vida dos animais observados, de certa forma “convivendo” com estes e cuidando de interferir o mínimo em seus hábitos. Pesquisas desse tipo já se haviam desenvolvido em relação aos chimpanzés, não residindo no método geral a característica mais inovadora do trabalho de Ghiglieri. Nos estudos anteriores, entretanto, os pesquisadores costumavam oferecer alimentos aos animais, objetivando facilitar a aproximação. Exatamente neste ponto encontraremos a inovação fundamental que Ghiglieri introduziu: tentando acostumá-los gradativamente à sua presença, freqüentou rotineiramente por dois anos as fontes de alimentos dos que viviam em Ngogo, na reserva florestal de Kibale, em Uganda. Evitando trazer-lhes alimentos, Ghiglieri tornava a observação mais difícil, mas não pagava o preço de modificar o comportamento dos animais por lhes oferecer uma fartura artificial. Como conseqüência, pôde talvez pela primeira vez se aproximar da importância que as relações sociais têm para a sobrevivência entre os chimpanzés. antropologia.p65 25/3/2008, 13:5262 65 Os outros e os outros uma distância dez vezes maior do que a que se exigiria de um grupo de três indivíduos para satisfazer as necessidades nutritivas. Ora, aumentando a distância a percorrer, incrementar-se-iam as exigências metabólicas de cada animal e isto exigiria, no final das contas, que o tempo de locomoção destinado à busca de alimentos passasse dos normais 10 a 12%, para 100% ou mais das horas claras do dia. Graças à estrutura social baseada nos movimentos de concentração e dispersão, os chimpanzés podem conciliar a alimentação individual com as relações coletivas, reduzindo ao mesmo tempo a competição dentro da “comunidade” e os conflitos previsíveis em tempo de escassez. Aliás, em vez do conflito, são notáveis entre os chimpanzés os sinais vocais emitidos por indivíduos isolados (ou em “coro” por um grupo de animais) e que podem se irradiar por até dois quilômetros floresta adentro: tais sinais comunicam aos demais o achado de uma fonte de alimentos, convidando-os a partilhar; mas informam também sobre as dimensões do “coro” que já se encontra explorando a fonte, de modo a evitar viagens inúteis. A dispersão dos indivíduos em busca da sobrevivência não anula absolutamente a coletividade; muito antes, reafirma que a sociedade é simplesmente uma forma de (sobre)viver. Um pressuposto viciado Se não tomarmos o cuidado prévio de afastar os ilusórios pressupostos que apresentam o Homem como um individuo desde sempre pronto e acabado, como alguém completo em sua individualidade, a questão das “relações do Homem com a natureza” será de compreensão difícil. De fato, o fantasma do indivíduo autônomo, dono de si e de seus interesses, vem há muito inspirando as teorias antropológicas e sociológicas. Assim, tanto as que derivam da concepção hobbesiana de que a sociedade é uma espécie de “guerra” de todos contra todos que o Estado vem evitar, como as que se inspiram no pensamento de Rousseau, de que a vida social seria uma espécie de “contrato” associativo, representam – ambas – teorias que supõem a preexistência de indivíduos prontos para “guerrear” ou “contratar”, de indivíduos anteriores e exteriores à sociedade. Não é difícil compreender que concepções dessa natureza sejam compatíveis com a visão de mundo de uma sociedade que cultua a individualidade, que tem o indivíduo, seus “direitos”, suas “necessidades”, sua “originalidade”, sua “propriedade”, etc. como uma Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5265 66 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO de suas instituições (não reconhecida enquanto tal) fundamentais. Nada estranhável em que variações em torno do tema “no princípio eram os indivíduos e fez-se a sociedade” constituam os mais importantes mitos das sociedades contem-porâneas e que estes se materializem em discussões do senso comum, tanto quanto em construções teóricas. Mas é preciso afastar este pressu-posto viciado, pois sem esta providência não escaparemos ao que se encontra predefinido como verdadeiro. A exemplo do que acontece com todos os seres vivos, os homens devem viabilizar materialmente sua existência material. Sociedade humana alguma seria concebível, da qual estivessem ausentes os mecanismos comunicacionais que tornassem possível receber da natureza os recursos energéticos necessários à manutenção da vida: obviamente, impedir-se-ia a si mesma se impossibilitasse a vida de seus membros. Tal como entre animais e plantas, a vida humana em sociedade tem uma função existencial evidente. É vida, no sentido mais corriqueiro e banal do termo. O social humano não é absolutamente um luxo acessório, não é adereço com funções estéticas, a distinguir um ser especial. É requisito da mais concreta materialidade existencial. É componente da mais biológica e orgânica (sobre)vivência. Mas os homens não se relacionam com a natureza de modo idêntico ao de árvores, com suas raízes mergulhadas no solo de onde extraem (quase) individualmente os elementos necessários à manutenção de suas vidas individuais. Diversamente de plantas e animais, os homens não se encontram organicamente programados a esta ou àquela forma de relacionamento com a natureza, não a têm dependente das características biológicas dos organismos individuais. Não há entre homens prescrição genética de buscar este ou aquele alimento específico na natureza, de obter desta ou daquela maneira organicamente prevista os recursos necessários à manutenção da existência. Evidentemente existem precondições naturais, na ausência das quais a vida humana não seria possível. O organismo humano deve respirar e exige que certos elementos estejam presentes na composição do ar; limiares de pressão atmosférica são imagináveis, fora dos quais a sobrevivência humana seria inviável; a exigência de um mínimo calórico abaixo do qual uma dieta não poderá por muito tempo manter o funcionamento do organismo é plausível. É razoável supor limites de temperatura acima ou abaixo dos quais viver seja impraticável para o ser humano... antropologia.p65 25/3/2008, 13:5266 67 Os outros e os outros Não obstante, estes limites são comparativamente amplos e flexíveis. Mais do que entre outros seres vivos, é característica dos homens poder “jogar” coletivamente com estes limites, neutralizando- os ou ampliando-os. Assim, os limiares da sobrevivência dos organismos individuais não se confundem absolutamente com os parâmetros coletivamente construídos: mais do que entre quaisquer outros animais, a “relação dos homens com a natureza” é relação dos homens entre si e depende das convenções simbólicas vigorantes em cada sociedade. Muito mais disso que das determinações biológicas do organismo individual. Desde que a “relação” se dê através de uma cultura na qual se tenham desenvolvido os saberes, as técnicas, os artefatos e as crenças que permitam adaptação ou transformações, é possível aos homens viver sob as mais diversas condições físico-ambientais. E a (sobre)vivência nos ambientes “hostis” se faz possível, contanto que as relações não se verifiquem diretamente entre o organismo individual e o meio físico, mas se efetuem mediante uma coletividade que possua as fórmulas por meio das quais um mundo “inóspito” passa a ser “domestico”. É fácil compreender: largados à nossa própria sorte individual, ser-nos-ia impossível (sobre)viver no ambiente dos beduínos, no dos esquimós, no dos Sanumá. Individualmente, ser- lhes-ia possível (sobre)viver em seus próprios ambientes físicos? Abandonados à nossa própria sorte individual e ao nosso próprio ambiente físico, (sobre)viveríamos. Ora, colocar a questão da sobrevivência em termos de mera relação organismo individual versus ambiente físico corresponde a uma extraor- dinária simplificação do problema, do qual se elimina sumariamente a relação dos organismos entre si, isto é, a sociedade. Se entre animais e plantas, como já pudemos ver, este fator é de importância inabstraível, que dizer de sua relevância no que diz respeito à sobrevivência humana? Percebe-se logo o ponto crucial: como entre todos os seres vivos, e de modo muito menos desprezível, não há ambiente físico nem organismo individual que não seja social. Não há existência, sobrevivência não há – que não seja convivência. Nem só de pão... A alimentação sempre foi considerada um terreno privilegiado para se refletir sobre o caráter das “relações do Homem com a Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5267 70 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO Exemplos como estes nos dão a evidência de que mesmo o gesto elementarmente orgânico de se alimentar depende das relações dos homens entre si, mais que das relações diretas do indivíduo com o meio natural, do qual o próprio organismo é componente. Embora indiretamente é isso mesmo que nos ensinam os “meninos selvagens”, alguns dos quais, segundo relatos [Malson: 1964], teriam absorvido marcas profundas dos animais com que conviveram, a ponto de “farejar” os alimentos e de beber água “por lambidas”: deles aprendemos que muito mais que orgânicas, instintivas ou inatas, as “relações dos homens com a natureza” devem ser aprendidas. Tal faculdade (ou exigência) de aprender as convenções do grupo é uma das características mais genuinamente singularizadoras da especificidade humana. Necessidades orgânicas? Os homens não podem apenas definir largamente o que da natureza é “alimento”. Eles não se limitam a decidir convencionalmente que classes de alimentos são adequadas para que categorias de homens, ou a estabelecer o que se deva comer em circunstâncias especiais (como aniversários, casamentos, funerais, natal, ano novo, semana santa, menstruação, recuperação de doença...). Decidem também quais deles deverão se relacionar diretamente com a natureza para obter a comida de que todos necessitam. Assim, se entre os Bororo as mulheres cultivam o solo, entre os Zuñi esta é uma atividade tipicamente masculina. Entre os Guayaki, os homens caçam enquanto as mulheres coletam e transportam. Estas últimas não devem caçar também para os esquimós, mas para algumas tribos do oeste americano é delas a responsabilidade pela captura de coelhos. Os bosquímanos africanos pensam que os homens não devam colher, embora deles se aguarde a coleta de determinados produtos vegetais. Em cada sociedade, poderemos encontrar uma organização social a comandar as relações dos indivíduos com a natureza, a decidir quem trabalha em quê, com quem e para quem; a estabelecer quem poderá receber o que se produzir, como os produtos deverão circular e quem poderá ser dispensado de produzir diretamente a sobrevivência natural. De tal modo é importante a intermediação da sociedade nas “relações dos homens com a natureza”, que hoje se tornou possível, sem absoluta-mente incorrer em absurdo, perguntar se é mesmo a sobrevivência orgânica dos indivíduos a razão de ser das relações da antropologia.p65 25/3/2008, 13:5270 71 Os outros e os outros sociedade com o mundo. Afinal, será mesmo aquilo que possa satisfazer às necessidades orgânicas individuais, o que os homens vão buscar na natureza? Nas sociedades humanas, terá mesmo a economia a função de prover às necessidades primárias? Estarão mesmo as instituições, as crenças, os ritos, as técnicas, os tabus, os saberes... a serviço da manutenção dos organismos humanos individuais? Até certo ponto, a resposta a estas questões poderia ser positiva, pois para animais, plantas ou homens, não poderia existir sociedade sem população, nem esta última sem indivíduos vivos. Mas, como explicar então que os homens não sejam como árvores, ou como animais de vida social menos elaborada, que extraem da natureza, cada um individual-mente, aquilo de que o organismo individual necessita para viver? Como compreender que nas suas relações com a natureza, os homens não extraiam dela somente o que teria uma explicação imediata na “satisfação de necessidades”? Que sentido atribuir ao fato de que muitas vezes aquilo que se destina a ser trocado, coisas por intermédio das quais se possa (ou não) obter os bens que viriam a satisfazer necessidades orgânicas, seja objetivo das “relações com a natureza”? Em outras palavras, por que os homens produzem também aquilo que não consomem, aquilo que nada tem a ver diretamente com “sobrevivência orgânica”? Muito mais ainda: que razões levariam os homens ao luxo de dispensar, muitas vezes em situação de fome, a ingestão de elementos nutritivos, a destruir ou deixar perecerem montanhas de alimentos? Se “satisfazer necessidades” fosse o motivo fundamental que levasse os homens a procurá-los na natureza, por que então não consumir os alimentos imediatamente e in loco? Por que os gestos de matar, colher, pescar, capturar, coletar, etc., não se confundem com os atos de comer, saciar, satisfazer? Que sentido teria a interposição de rituais, mitos, tabus, se a captura de alimentos e a deglutição deles fossem cometimentos de caráter apenas gastrointestinal? Por toda parte, não se limitam os homens a engolir seus alimentos, uma vez os encontrando na natureza. Não existe alimento humano em estado bruto, devendo cada um receber tratamento ritual e simbólico destinado a promovê-lo de algo “cru” a algo “cozido”. Assando diretamente no fogo, cozinhando com auxílio de água, descascando, lavando, cortando, misturando a outros alimentos, temperando, ralando, estabelecendo condições especiais e maneiras Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5271 72 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO predeterminadas de os consumir... os homens sempre arranjam maneiras de “domesticar” os alimentos, de “desembrutecê-los” e humanizá-los, de culturalizá-los, enfim. Universalmente, distinguem- se as sociedades umas das outras, auto-identificando-se pelos alimentos que ingerem e pelas maneiras particulares de fazê-lo. Exceções aparentemente gritantes mostram-se particularmente ilustrativas dessa regra geral, logo que examinadas com atenção. Tal é o caso, por exemplo, dos Dorze, que apreciam comer carne crua, mas que exigem ao mesmo tempo que os animais tenham sido deitados sobre o lado direito e mortos por um sacrificador especialmente qualificado: recusam os que tenham morrido ou sido mortos por procedimento diferente. Com este “cozimento” simbólico, os Dorze atualizam à sua maneira o princípio geral de transportar os alimentos animais do estado natural para o cultural, do “cru” para o “cozido”, transformando assim uma possível relação orgânica e individual com a natureza em relação cultural e coletiva. Em outras palavras, aí está um aspecto do estilo dorze de transformar “necessidades individuais” em vínculos sociais, de definir socialmente o que entender por “necessidades” [Sperber: 1975, p. 132]. Os esquimós da América observam rigorosa distinção entre animais de “inverno” e animais de “verão”, associando a esta distinção todo um complexo sistema de relações rituais que interconecta a sociedade e os mais importantes desses animais [Radcliffe-Brown: 1973, p. 159-160]. Por causa desse esquema de ordenação do mundo – e apenas por causa dele – os esquimós se vêem interditados de comer carne de rena (alimento de verão) e a de morsa (de inverno) no mesmo dia; além de se obrigar a associar as pessoas nascidas no “verão” ou no “‘inverno” com os animais da estação correspondente. Vemos logo que quase nada, ou muito pouco, existe aí de determinação natural, de função primariamente orgânica e individual. Pelo contrário, são as conveniências coletivas que mais uma vez imperam. Os esquimós da Groenlândia [Eisenberg: 1974, p. 348] se organizam economicamente em torno de um jogo complexo de relações grupais e interpessoais, associado à distribuição de caça e pescado. Aqui, a partilha de alimentos não assegura somente a sobrevivência material: concretiza também uma rede sofisticada de liames sociais, em razão de regras extremamente sutis e complexas que determinam o que deve ser dado a quem e por quem. Teatralizam-se nessas ocasiões os vínculos de parentesco e a identidade dos grupos sociais, pois o simples fato de antropologia.p65 25/3/2008, 13:5272 75 Os outros e os outros inaugura-se um crescendo que pode chegar a suicídios rituais, como acontecia entre os celtas, cujos chefes especialmente encontravam uma maneira “razoável” de não perder estima social ao aniquilar a própria “sobrevivência individual”, destruindo-se a si mesmos – mas honrando o supremo dever de retribuir um presente aceito! O espírito utilitarista certamente não era o que impelia os Chochoni, os Chipewiana, os Klamath, a destruir com os mortos os bens mais importantes. Também não era o que levava os Maido e outras tribos californianas a dilapidar quantidades enormes de riquezas todos os anos nos ritos de aniversário dos mortos. Essas destruições vão todas contra o princípio do benefício material do indivíduo, nada tendo a ver, muito pelo contrário, com “sobrevivência orgânica”. Ao olhar individualisticamente inspirado, típico da cultura em que vivemos, práticas e crenças como estas podem até parecer amontoados de “superstições”, “bobagens”, “ignorância”... Não obstante, as etnogra-fias dos diversos povos nos dão abundantes indicações de existir aí um ensinamento profundo: o de que, embora a “satisfação das necessidades orgânicas” desempenhe um papel não desprezível nas “relações dos homens com a natureza”, sua importância tem sido freqüentemente exagerada por uma reflexão presidida pelo equívoco filosófico de colocar o organismo humano individual como fons et origo das instituições sociais, como semente que germinaria em costumes, hábitos, crenças, técnicas e saberes. Nos confins da perplexidade e do paroxismo, esses costumes tão “exóticos” que acabamos de evocar exibem a nossos olhos princípios banais, sapiências palmares: que o coletivo tem precedência sobre o individual; que conviver é mais importante que viver; que a sobrevivência social é tão importante quanto a orgânica e que esta última só existe para os homens nos quadros de um sistema particular de convenções simbólicas. Sobrevivência. Qual? De quem? Espalhadas por todos os continentes, sabedorias de muitíssimos povos incluem na reflexão sobre a relação dos homens com a natureza não apenas pressupostos sobre relação entre sujeitos e objetos, entre seres vivos e coisas. Os mitos, os ritos, as práticas contêm simultaneamente concepções coletivas sobre as relações entre a vida e a morte, os vivos e os mortos. Por toda parte, os homens reafirmam, contra o elemento natural ameaçador (fome orgânica, morte Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5275 76 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO individual...), a superioridade da vida coletiva – todas elas querendo assegurar que esta última é capaz de independer simbolicamente das determinações orgânicas, todas elas clamando ostensivamente os paradoxos aparentes de que “destruir” é a suprema manifestação do “possuir”, que “ter” não se realiza plenamente senão no “dar” e que – para o pasmo dos que advogam as ideologias individualistas – “morrer” é a mais solene manifestação do “ser”. Acolhendo o que nos dizem estas sabedorias, impor-se-á uma inversão completa dos termos nos quais o problema da “sobrevivência” tem sido pensado, nele incluindo nada mais nada menos que a morte. Ora, apesar de alguns animais, vários insetos em estado larvar ou adulto, manifestarem às vezes uma simulação de morte; apesar de os animais reagirem a um algo de morte contido no perigo, na agressão, no inimigo; a despeito de serem munidos de aparelhos de defesa e ataque, em última instância protetores de vida ou produtores de morte, os homens são os únicos seres dos quais se pode dizer terem consciência da morte, os únicos a saberem da precariedade e do efêmero de suas estadas sobre a terra. E para um ser consciente da morte a questão da “sobrevivência” se coloca de modo muito mais complexo – de forma alguma se limitando à simples manutenção física do organismo individual. É claro que o animal tem certa percepção da morte: não há como negá-lo. Ele a sente, ou pressente, como um perigo que o ameaça e reconhece os seus predadores, reagindo em sentido contrário. Ele tem uma certa sensibilidade quanto à aproximação do seu fim, o que lhe permite procurar um lugar para morrer. Mas, reconheceria a morte a mãe chimpanzé, que passeia com o cadáver decomposto de seu filhote? Seria possível a um animal transmitir a seu congênere a experiência da morte? Não. Animais e plantas não se sabem mortais, não podem se representar a morte, não a podem conceptualizar – ainda que, no plano da sensibilidade, de alguma maneira a possam captar. Os casos de alguns cães, dos quais se disse terem se recusado a abandonar a proximidade do túmulo do dono, ou que vieram a morrer logo após a morte deste, e que demonstrariam assim alguma consciência da morte, são absolutamente excepcionais. São exceções que confirmam a regra, pois mostram bem que a consciência da morte está ligada à participação em uma sociedade humanamente organizada: afinal, não há notícia de comportamento semelhante entre os canídeos em estado selvagem. antropologia.p65 25/3/2008, 13:5276 77 Os outros e os outros Nunca será demais insistir sobre a importância antropológica da consciência da morte, pois ela se situa no entroncamento das relações entre as espécies e o mundo e entre os indivíduos e as espécies. Por ela, os homens se distinguem mais nitidamente dos outros seres vivos e a vida humana adquire sua coloração mais fundamental: “viver” e “sobreviver” adquirem para cada homem, em cada cultura, um conteúdo relativo, uma carga semântica muito além do puramente biológico. Por toda parte acreditam os homens que a morte seja uma forma de continuação da vida, que o morto não cesse de existir, que apenas se liberte do aspecto terrestre de sua existência para continuá- la em outro lugar, sob outra forma. Por isso, eles não cessam de se relacionar com os vivos e não interrompem suas relações com a natureza: para a surpresa dos apologistas da “sobrevivência orgânica”, toda sociedade deve também assegurar a sobrevivência dos mortos. Tal sobrevivência implica igualmente produção, distribuição e consumo. Tanto quanto a dos vivos, exige uma rede de relações entre homens, natureza e “sobrenatureza”. Funda relações de troca que supõem reciprocidade – retribuições por parte dos mortos dos bens que lhes ofereceram os vivos: eis aí o sentido dos sacrifícios, dos alimentos oferecidos aos mortos, das riquezas destruídas em homenagem a estes... Muito distante do pensamento malionowskiano de que as necessi- dades orgânicas do homem fornecem os imperativos fundamentais que conduzem ao desenvolvimento da vida social, as considerações prece-dentes levam-nos obrigatoriamente a duvidar de que o princípio do “instinto de sobrevivência” dos organismos individuais possa continuar sendo aplicado ao entendimento dos seres humanos. Estaria este “instinto” igualmente presente nesses seres para os quais a sobrevivência do outro é tão importante ou mais que a sua própria? Seria imperioso, com a mesma intensidade, esse “instinto”, entre os únicos seres capazes de produzir voluntariamente a autodestruição? Entre estes seres para quem em nome da sobrevivência do e no imaginário coletivo, a porta do suicídio está sempre entreaberta, teriam todos estes termos – “indivíduo”, “orgânico”, “sobrevivência”, “necessidade”, etc. – o sentido naturalista que se lhes tem procurado atribuir? Basta retirarmos as lentes de grau e cor individualistas e individualizantes, através das quais nossas ideologias nos convidam (ou obrigam) a enxergar o mundo: descobriremos ser a resposta um Sobre a necessidade e utros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5277 80 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO montanhas, nos confins perdidos da geografia, não estariam escondidos estes seres “imaturos” – entregues à faina exaustiva de sobreviver, massacrados pelas “necessidades”, caçando, coletando, pescando, apesar da tecnologia “rudimentar”, incapazes de produzir cultura, entregues a superstições, medos e magias – apenas para ilustrar a infância da Humanidade? Não estaria aí o motivo de às vezes nos relacionarmos com eles protetoramente, como se constituíssem uma espécie de patrimônio histórico? Importa pouco, para o raciocínio que estamos seguindo, saber que esta teoria de folk apresenta versões mais sofisticadas e documentadas, apoiadas em doutos saberes. Também não é muito relevante localizar o berço genuíno desses pensamentos: se nas bibliotecas ou gabinetes de trabalho, se nas pesquisas, escavações ou reflexões dos sábios, se no fluxo despreocupado das opiniões e das idéias trocadas nas ruas, nas conversas informais ou nas estórias narradas de avós para netos; se, ainda, nos mitos e lendas de nossa sociedade, por meio dos quais, como em tantas outras, encontramos descrições de como o Homem descendeu de animais e como conseguiu se diferenciar deles... O importante é que esta teoria é um fato cultural – um mito e suas várias versões – passível enquanto tal de ser decifrado e interpretado como documento etnográfico da sociedade de que é manifestação. Que diretrizes de vida apresenta? Que modelos de pensamento, sentimento e ação? Nos últimos anos vários antropólogos têm procurado responder estas questões, tentando cumprir a tarefa de interpretação e lançando seríssimas dúvidas sobre os fundamentos científicos da teoria: há miséria primor- dial? há evolução? há homens menos racionais? tecnologias superiores e inferiores existem? necessidades? entre homens é possível algo como “incapacidade de produzir cultura”? dominar a natureza ou ser por ela dominado correspondem a dilema inexorável? mais poder é sinônimo de mais felicidade? o Homo oeconomicus é o paradigma da natureza humana? e, principalmente, nossos sábios sustentam esta teoria por quê? A falácia da miséria original A tese da miserabilidade inicial do Homem nunca foi tão incerta. Primeiro, porque não há notícia de espécie vegetal ou animal que tenha vivido na miséria em suas condições naturais de existência. Salvo nos casos excepcionais de desequilíbrio ecológico, tais espécies absolutamente não existem. Não bastando esta simples constatação antropologia.p65 25/3/2008, 13:5280 81 Os outros e os outros do bom senso, estão aí, em segundo lugar, indícios arqueológicos que poderiam ser vistos como possíveis contestadores da penúria original: sendo difícil a identificação de objetos líticos pré-históricos (pois podem ser de origem humana ou outra qualquer), a cautela exige do arqueólogo que só atribua sentido aos documentos de pedra ao lado de uma multiplicidade de outros vestígios humanos. Esta quantidade, considerando o tempo decorrido e a dificuldade de conservação, representa outra ainda maior. Ora, não há aí, nesse simples fato, a indicação de uma certa abundância? Algumas vezes os arqueólogos têm encontrado objetos de transporte penoso em locais muito distanciados de seus pontos de origem (seixos longe dos rios, por exemplo): que ser miserável teria desperdiçado tanta energia para esta locomoção custosa e sem recompensa prática, pois os objetos são descobertos apenas amontoados? Mais ainda, se os materiais líticos começam a ser descobertos em grande número, esboçando uma tipologia diversificada, em cada tipo existindo exemplares variados, não podemos com bastante plausibilidade supor terem sido numerosos os objetos de conservação menos fácil, como os feitos de madeira, ossos, peles, galhos, folhas, barro? É claro que não poderemos perseverar no erro grosseiro de acreditar que a ausência destes objetos em nossos museus seja expressão da inexistência deles na vida dos homens! Não apenas a quantidade de objetos insinua não terem sido esses tempos marcados pela míngua: são antiqüíssimos os indícios de um interesse não-pragmático dos homens pelas coisas, da projeção nelas de caprichos religiosos, mágicos ou estéticos, da consideração delas como objeto para a reflexão mais que algo destinado à satisfação de um impulso instintual. É o que testemunham os fragmentos de ocre vermelho em um pedaço de lava verde descobertos em Olduvai, e também na gruta número um de Mas de Caves (400 a 500 mil anos) – documentos por enquanto absolutamente excepcionais, é verdade. Mas na escala de 40 a 60 mil anos os indícios se multiplicam desse desinteresse do pragmático, como uma grande concha de molusco espiralada, cristais de quartzo e de galena, blocos de pirita com formas incomuns, encontrados na gruta de Hyène. Rigorosamente, talvez estes objetos não possam ser considerados obra-de-arte. Mas não deixa de ser interessante que tenham sido deslocados de seus lugares de origem para desempenhar a função única (?) de servir à contemplação do olhar. Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5281 82 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO Lembremos dos afrescos das cavernas, das sepulturas dos Neanderthalenses em Carmel (40 mil anos), Chapelle-aux-Saints (35 a 45 mil anos), Monte Circeo (35 mil anos), dos olhos postiços do crânio de Mas d’Azil... Diante de tais indicações, não seria ao menos inteligente que levantássemos a hipótese de que, mesmo nestes tempos recuados, nem só de pão vivessem os homens? Se devemos admitir que os documentos arqueológicos são ainda paupérrimos para permitir mais que levantamento de dúvidas e hipóteses, multiplicam-se em compensação trabalhos etnológicos em que o pressuposto da miséria primordial é rebatido e revertido de modo insofismável e nos quais são postos a nu os preconceitos ideológicos, políticos e intelectuais que o motivaram. Este é o caso, por exemplo, de vários artigos de Marshall Sahlins, entre eles o ensaio que provocativamente intitulou “A primeira sociedade de abundância” [1974: pp. 1-39] em que, não satisfeito com contestar a pecha de miseráveis atribuída aos “selvagens”, sustenta terem sido eles, paradoxalmente, os primeiros a terem conhecido o estado de plenitude material. Nada há nestes trabalhos dessas troças com que os antropólogos costumam divertir os seus auditórios (e a si mesmos), levando nossas crenças, concepções e costumes ao absurdo. Ao contrário, trata-se de trabalhos seríssimos, desenvolvidos durante muitos anos, em que pesquisadores submetem a reexame toda a chamada antropologia econômica e toda a antropologia subjacente à chamada ciência eco-nômica: idéias tidas por garantidas – como “progresso”, “economia de subsistência”, “racionalidade”, “trabalho”, “produção”, “capital”, etc. – são levadas ao paroxismo, à beira do abismo (e algumas empurradas para baixo). Em geral, estes trabalhos dizem respeito a sociedades de caçadores- coletores, tidos tradicionalmente como os mais “pobres” seres humanos, exemplos contemporâneos da penúria original, personagens indefectíveis das primeiras páginas dos livros de introdução à economia e dos manuais de teoria do desenvolvimento econômico. Constituem, por assim dizer, terreno privilegiado para testar os pressupostos das teorias sobre a origem, pois tais povos são capazes de nos responder se é verdade que os caçadores estejam tão submetidos às necessidades naturais, tão obrigados a trabalhar incessantemente pela sobrevivência que, em conseqüência, não teriam tempo disponível para “construir cultura”. Levando em consideração fundamentalmente aquelas sociedades de caçadores que ainda não foram desestruturadas e miserabilizadas antropologia.p65 25/3/2008, 13:5282 85 Os outros e os outros gelo), no interior das quais, graças à concepção arquitetônica, se conse- guem temperaturas razoáveis. Impossibilitados de qualquer atividade agrícola ou de coleta, os esquimós descobriram uma variedade notável de caças, espécies animais numerosas, das quais obtêm praticamente tudo do que é socialmente definido como necessário. Poderíamos evocar os Nuer e seus saberes em torno da vaca, os pigmeus de Ituri e seu conhecimento da floresta, os indígenas das matas equatoriais da América, os habitantes dos desertos australianos, enfim, várias e várias sociedades que nos atestariam a falsidade da tese da penúria, seja dos “recursos naturais”, seja do “fator trabalho”, seja dos “meios de produção”, nos cosidetti estágios primitivos de evolução das sociedades humanas. Cúmulo da revelação, estas sociedades parecem fazer uma subu- tilização dos “fatores de produção”: muito ao contrário de perambularem pelo mundo à beira da morte, “trabalham” menos do que poderiam, “exploram os recursos naturais” menos do que seria possível, desenvolvem a funcionalidade da “tecnologia” menos do que lhes seria acessível. Em suma, “produzem” um “excedente” muito menor do que estaria a seu alcance. Os Kuikuru, por exemplo, estudados por Robert Carneiro [1957], não gastam mais que três horas e meia por dia para garantir a sobrevivência – duas das quais na agricultura e o restante na pesca. Isso feito, dormem, descansam, divertem-se, entregam-se a variadas atividades sociais. Segundo o autor, apenas meia hora a mais de trabalho por dia poderia permitir a produção de um excedente considerável sem esgotar os recursos ambientais. Analogamente, os Siane da Nova Guiné [Salisbury: 1962], que substituíram os machados de pedra por ferramentas de aço, diminuindo em cerca de trinta por cento o tempo gasto nas tarefas de “subsistência”, dedicaram-se – não absolutamente, como poderíamos esperar nós, ocidentais, ao “incremento da produção” – mas às danças, às festas, às viagens... Não é preciso ser antropólogo ou especialista. Um simples passeio pelos museus de etnografia nos ensina serem as ferramentas indígenas – cuias, arcos, flechas, bordunas, remos, canoas, potes, cestos, etc. – muito mais que objetos técnicos e funcionais capazes apenas de cumprir as tarefas que deles se esperam: são também objetos estéticos, dedicados à contemplação e ao manuseio prazerosos, à veiculação de mensagens míticas e rituais. Estes instrumentos contêm um excesso simbólico, um algo mais, Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5285 86 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO incompatível com seres para os quais o estômago seja mais urgente que o intelecto ou a sensibilidade. Assim, chegamos a uma encruzilhada fundamental da antropologia econômica, bem enunciada por Pierre Clastres [1974: p. 166]: “Eis-nos, pois, bem longe do miserabilismo que envolve a idéia de economia de subsistência. Não somente o homem das sociedades primitivas não é de modo algum constrangido a esta existência animal que seria a procura permanente para assegurar a sobrevivência, mas é mesmo ao preço de um tempo de atividade notavelmente curto que este resultado é conseguido e ultrapassado. Isto significa que as sociedades primitivas dispõem, caso desejem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção de bens materiais. O bom senso questiona, então: por que os homens destas sociedades quereriam trabalhar mais e produzir mais, se três ou quatro horas de calmas atividades cotidianas bastam para assegurar o atendimento das necessidades do grupo? De que isto lhes serviria? Para que serviriam os excedentes assim acumulados? Qual seria o destino destes? É sempre forçados que os homens trabalham além de suas necessidades. E é precisamente esta força que está ausente do mundo primitivo...” Assim, não é propriamente uma falta que caracteriza estas sociedades, mas a recusa de um excesso sem sentido; não a marca de alguma, deficiência ou incapacidade, mas a intolerância em relação ao que seja insignificante e demais. Natureza viva É certamente difícil para nós, ocidentais, que estamos habituados a acreditar no mito da origem miserável do Homem, compreender a atitude desprendida e generosa desses povos em relação à natureza e às riquezas que dela poderiam obter. Nossas filosofias incutem quase sempre em nossas mentes a idéia da supremacia dos humanos sobre as outras formas de vida, assim como a da necessidade de escravização e exploração destas como condição da realização de nossa potencialidade. A natureza se transformou, assim, para nós, em apenas um cenário destinado a enquadrar a existência dos homens sobre o planeta. A propósito, não é isto que sugere esta conhecida passagem do Gênesis (1, 28-29)? Deus os abençoou (o homem e a mulher) e lhes disse: “crescei e mutiplicai-vos, e enchei a Terra, e tende-a sujeita a vós, e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra; e todas as árvores que têm suas sementes em si mesma... para vos servirem de sustento a vós... antropologia.p65 25/3/2008, 13:5286 87 Os outros e os outros Vejamos agora como esta nossa atitude pode soar a uma anciã Wintu: “A gente branca nunca quis saber da terra, dos gamos ou dos ursos. Quando os índios matam carne, comem-na toda. Quando desenterramos raízes, fazemos buracos pequenos... Não derrubamos as árvores. Só usamos madeira morta. Mas a gente branca revolve a terra, abate as árvores, mata tudo... O espírito da terra a odeia. Os brancos arrancam as árvores e tumultuam as entranhas da terra. Serram as árvores. Isto faz-lhe mal, causa-lhe dores. Os índios jamais magoam seja o que for...” [Dubois: 1935]. Quando, por exemplo, quer se referir às suas dificuldades na caça, um Wintu nunca diz “não posso mais matar gamos”, mas “os gamos não querem mais morrer para mim”, pois tem com a natureza uma relação de intimidade e cortesia mútuas tendo horror ao desperdício, não como nós, por acreditar nas virtudes intrínsecas da poupança e da acumulação, mas por respeito aos seres que matam e às plantas que recolhem. Por conseguinte, se quisermos compreender as razões pelas quais os “primitivos” deixam de fazer os “progressos” de que tanto nos orgu-lhamos, é mister que comecemos por retirar os óculos através dos quais estamos habituados a enxergar a natureza e por meio dos quais aprendemos o que significa “Razão”. Acontece que estes povos têm outras razões, outras concepções sobre o que seja bem-estar, felicidade, plenitude... Em nome dessas razões, mesmo em situação de dificuldade material, podem recusar propostas “milionárias” para negociar suas terras. Podem rejeitar a aplicação de técnicas agrícolas, embora as conheçam bem, para a produção mais fácil do alimento de base – como o arroz selvagem entre os Menomini, da região dos Grandes Lagos – mas ao preço de “ferir” a terra: é que concebem o terreno onde vivem como uma espécie de “mãe”, à qual os ligam sagrados vínculos afetivos, que por nada no mundo ousariam profanar. Entre os Koji, de Serra Nevada, acontece coisa parecida, pois se obrigam a trabalhar glebas pequenas, distantes e pouco férteis, quando nas imediações existem terras muito “melhores”, capazes de lhes “poupar trabalho” e de lhes oferecer “rentabilidade” maior: mas nestas terras habitam os espíritos dos mortos, razão pela qual as evitam, aí só comparecendo para lhes levar oferendas. Nós, que estamos acostumados a considerar a natureza como um objeto exterior e distante, certamente nos enriqueceremos com o entendimento do significado da floresta para os Mbuti, conforme a descrição de Maurice Godelier [1978: p. 169]: “A prática religiosa dos Mbuti adota a forma de um culto à Floresta. Esta prática é diária e está presente em todas as atividades: pela Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5287 90 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO Muito afastados do miserabilismo inicial que se lhes quis imputar, estes povos nos ensinam algo elementar, algo que todos reconhecemos secretamente: que em toda sociedade o “trabalho” tem o sentido de viabilizar certos momentos ou situações privilegiados culturalmente e que é a maximização dos valores culturais (não a sobrevivência) a grande razão que impele os homens à transpiração. Por isso, é socialmente estimado quem trabalha bem, não necessariamente quem trabalha muito. Não nos ajuda esta sabedoria a compreender o paradoxo que existe dentro de nós, nesta nossa sociedade em que o trabalho é obrigatório e tem como principal motivação (íntima) a admiração por aqueles que, por serem ricos, sábios, bons-vivants, malandros, etc., podem se dar ao luxo de não trabalhar? Nem explorar a natureza, nem explorar os homens. Aí estão os princípios de uma racionalidade muito distante de ser a nossa, mas sobre qual nem por isso podemos lançar a acusação de ser menos racional. Compreendemos que cada sociedade postula os seus próprios objetivos e suas próprias definições de o que se deva entender por “sobrevivência”, “necessidade”, “riqueza”, “bem-estar”... e normalmente tende a fazer com que seus membros se comportem de modo coerente com estas definições. Nada há, portanto, que se pareça com uma espécie de Racionalidade Absoluta, da qual certos povos estariam mais bem-dotados que outros. Os comportamentos “econômicos” que não conseguimos compreender nas outras sociedades nada têm de menos racional: simplesmente são idiomas estrangeiros para nós, comportando mensagens e sentidos que serão inacessíveis para nós, enquanto não conhecermos os princípios e as regras que lhes são subjacentes. Razões. Razão? Tudo isso se aplica também à tecnologia. É claro que, do ponto de vista de uma Razão Absoluta (tal qual nós a definimos em nossa cultura), a serra elétrica é mais racional que o machado de pedra. Contudo, não são os princípios dessa Racionalidade que operam no dia-a-dia das sociedades não-ocidentais. Assim, vários povos que receberam o machado de aço excluíram-no rigorosamente da produção dos bens de subsistência, porque fortes razões de ordem simbólica vinculavam os alimentos aos machados tradicionais: uma ordem prévia de idéias e sentimentos deveria ser preservada. Outras vezes, como entre os Siane, longe de aumentar a produção, como poderíamos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5290 91 Os outros e os outros esperar, o instrumento “mais avançado” apenas permitiu a liberação de mais tempo livre para as atividades pessoais e comunitárias. Entre os Baruya, por trazerem lateralmente um crescimento do número de porcos, exigindo a construção e manutenção de cercas para a proteção das hortas, e por terem estendido as áreas de plantio, os instrumentos “mais racionais” acabaram por acarretar uma carga maior de esforço. Há casos ainda em que os instrumentos “mais racionais” se mostravam profundamente disfuncionais e “irracionais”, pois a facilitação das atividades técnicas e econômicas acabou em verdadeira destruição da civilização indígena [Métraux: 1979]. Foi o caso dos Yar Yoront do norte da Austrália, estudados por Laurinston Sharp, que, com a adoção dos utensílios de metal perderam o conjunto das instituições econômicas, sociais e religiosas, ligadas à posse, utilização e transmissão dos machados de pedra: com o tempo liberado, o sistema de trocas ficou totalmente desorganizado, as relações de amizade e solidariedade entre as hordas perderam sentido. Na medida em que eram os missionários as fontes desse objeto, as relações de fidelidade se deslocaram dos velhos para estes, cujos critérios de distribuição de bens eram incompreensíveis para os nativos. Mulheres e adolescentes viraram proprietários de machados de aço, passando a desfrutar das mesmas prerrogativas dos adultos masculinos. Roubos começaram a ocorrer, o sistema ético desmoronou, dando margem a conflitos que levaram à dissolução do grupo. Poderíamos evocar o caso dos Chokleng, que passaram a ser vítimas do ataque de povos vizinhos desejosos de seus instrumentos e que, para conseguir seus próprios utensílios, eram obrigados a atacar os brancos, muitos caindo vítimas dos “trovões portáteis”. Os instrumentos de metal passaram progressivamente a ser valorizados como algo que se conquistou ao fim de uma batalha árdua, como um troféu ou símbolo de coragem, mais que como implementos tecnológicos. E o caso dos Tupari, que destinaram às atividades lúdicas o tempo conquistado pelo instrumento “mais racional”. Entretanto, para conseguir estes bens os Tupari eram obrigados a se empregar como seringueiros, contraindo doenças que transmitiram a suas aldeias, destruindo larga percentagem da população. E ainda o caso do Siriono, que em virtude dos novos instrumentos passaram a conseguir a quantidade que quisessem de mel, do qual fabricavam uma bebida alcoólica especialmente apreciada. Resultado: o alcoolismo apareceu, rancores e rivalidades antes socialmente controlados vieram à tona. A Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5291 92 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO competição pelos bens de metal (escassos) atingiu dimensões insuportáveis, o grupo se dissolveu. Nenhum terreno é mais propício para o exame dos preconceitos que nutrimos em relação aos “primitivos” que a ênfase atribuída durante tantos anos à ferramenta e à tecnologia como distintivo da humanidade. O privilégio concedido ao instrumento é engenhoso para a construção do edifício evolucionista, pois, além de ser, segundo se pensa(va), uma exclusividade humana, as aquisições evolucionistas neste domínio poderiam ser demarcadas nitidamente, já que estão cristalizadas em material resistente ao tempo – estando, assim, expostos à análise científica “objetiva”. Na base do critério “neutro” de sua funcionalidade, as ferramentas poderiam mais ou menos facilmente ser dispostas em um continuum, da mais rudimentar à mais desenvolvida, das mais simples às mais complexas. Daí as várias “idades da pedra” e “idades dos metais” de que temos notícia. Absolutizando a idéia de “funcionalidade”, arqueólogos e especialistas em pré-história limitaram durante décadas suas investigações ao estudo de utensílios, retirando, de sua morfologia e dos materiais de que eram feitos, ilações quase sempre conjecturais sobre como deveria ter sido o restante da vida humana naqueles tempos. O exame de outras atividades, para além da fabricação de instrumentos, era secundário, nem de longe merecendo comparável atenção. Sem absurdo algum, poder-se-ia sustentar terem tido esses sábios a tarefa de inventar uma história da Revolução e do Homem Industriais, que se confundisse com a do Homem e da Sociedade. Compreender o Homem seria antes de tudo investigar o Homo faber. Ora, como acabamos de ver, a funcionalidade absoluta está longe de ser defensável. Depois, nada indica que os primeiros homens tenham passado a vida inteira a lascar pedras, a fabricar instrumentos e que as demais dimensões da existência tivessem se subordinado a isto. Ademais, se eles fabricavam instrumentos de pedra, deveriam utilizar outros materiais (ossos, madeiras, conchas, dentes, fibras, peles...) que não puderam resistir ao tempo do mesmo modo. Deveriam se entregar a atividades de difícil materialização, como falar, narrar mitos, praticar rituais, organizar um saber, ensinar as crianças – todas facilmente devoráveis pelos milênios. Como, então, resumir nas lascas de pedra a totalidade das condições de existência dessa humanidadeprimeira? Mesmo que sejamos obrigados a admitir que estes povos estudados pelos antropólogos e pré-historiadores fossem povos caçadores – como os documentos parecem indicar – ainda assim nada nos obrigaria em antropologia.p65 25/3/2008, 13:5292 95 Os outros e os outros Homo oeconomicus Pensemos também nos sistemas de trocas de bens, onde nem sempre vigoram os princípios de nossa racionalidade. Raramente se imagina, por exemplo, que os bens possam ser indiscriminadamente trocados, ou que “quantidade” possa ser um denominador comum para as transações. É comum, em várias sociedades, que os bens sejam considerados qualita-tivamente diferentes, o que impõe limites bastante definidos às permutas. É assim que acontecia entre os Nuer [Evans-Pritchard: 1951, 1956 e 1978], antes de a moeda européia destruir o sistema. Concebiam três esferas diferentes e separadas de bens, entre os quais a convertibilidade era impossível: as mulheres, os obteníveis por guerra ou comércio e os domésticos, como galinhas, cestas, potes, etc. As trocas, conseqüen- temente, eram compartimentadas, pois os bens carregavam valores e significados diferentes, sendo impensável trocar um bem por outro qualquer. Percebe-se facilmente ser o dinheiro inimigo desta racio- nalidade, por funcionar como conversor de um bem em qualquer outro: neste contexto, a “liquidez absoluta” do dinheiro (como gostam de dizer nossos economistas) é completamente irracional. Coisa parecida acontecida entre os Tiv, segundo o testemunho de Paul Bohannan [1955 e 1968]. Aqui, os bens se dividiam em três categorias: os de “subsistência”, os de “prestígio” (escravos, gado, metais) e as mulheres. As trocas eram livres dentro da mesma categoria; entre a segunda e a terceira, certas regras bem definidas permitiam o acesso às mulheres mediante barras de cobre; mas era proibido converter a primeira na segunda e incogitável transformá-la na terceira. Neste caso, igual- mente, a moeda não poderia desempenhar seu papel de denominador comum, senão sob pena de destruir todo o sistema de idéias e senti- mentos. Por esta razão, quando a moeda apareceu, os Tiv tentaram salvar seu sistema de circulação inventando uma quarta categoria: dentro dela, o dinheiro poderia ser trocado por bens europeus ou por si mesmo. Entre os Siane [Godelier: 1978], do mesmo modo, havia três cate- gorias: os bens de “subsistência”, os de “luxo” (tabaco, sal, óleo, por exemplo) e os “preciosos” (bens que faziam parte das despesas rituais em casamentos, iniciações, festas religiosas, etc). A regra principal da circulação de bens era a de que objetos de uma categoria não poderiam ser trocados por bens de outra, razão pela qual não havia uma moeda universal. Em compensação, existiam diferentes moedas para categorias Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5295 96 ANTROPOLOGIA E COMUNICAÇÃO diferentes de bens. Compreende-se, assim, que os Siane tivessem experimentado dificuldade em aceitar que o dinheiro-papel nas moedas européias pudesse ser equivalente ao dinheiro-metal: por esta razão, incluíram as notas na terceira categoria, enquanto as moedas foram alocadas na segunda. Moral da estória: também entre eles, este instrumento sem o qual a nossa economia não poderia funcionar – a moeda – representa mais uma ameaça que propriamente um “progresso na direção de estágios mais avançados de Racionalidade”. A nossa razão, que valoriza a acumulação de bens, simplesmente não pode ser generalizada. É seguro que ficaríamos bem menos intrigados com o despojamento material dos caçadores, se considerássemos que povos desse tipo estão constantemente se locomovendo e que habitações sofisticadas, riquezas acumuladas, etc., constituem, nestas condições, um fardo sem sentido. Além do mais, em boa parte dessas sociedades, aquele que acumula riquezas não poderá com elas fazer outra coisa senão presenteá-las aos companheiros: em cada sociedade, uma razão. Somos fiéis a nós mesmos, quando ficamos indignados ao saber de povos nos quais as mulheres são compradas por seus maridos, trocadas por vacas, cabras, porcos... pois nossa razão nos diz que não há medida comum entre essas coisas e seres humanos e que tais intercâmbios constituem verdadeiro ultraje às mulheres. Tudo bem. Mas, as mulheres “primitivas”, objetos dessas trocas, não necessariamente se consideram diminuídas. Com freqüência, têm respondido assim à curiosidade dos ocidentais: “Eu valho algumas vacas e várias cabras. Orgulho-me disso. Coitadas das mulheres brancas. Nada valem. Nem mesmo porcos os maridos dão por elas!” Quem está com a razão? * Crescemos ouvindo a fábula A Cigarra e a Formiga e a parábola O Filho Pródigo. Repetimos sempre o mote “louco é quem queima dinheiro”. Nada a estranhar, portanto, em que tenhamos tido boas razões para considerar irracional a prática, presenciável em vários povos, que consistia em reunir montanhas de objetos, durante meses seguidos, apenas para destrui-los solenemente. Dificilmente nos passaria pela cabeça a idéia de que nessas culturas possuir riquezas não atribuía prestígio ou estima social e que estes eram obteníveis pelo oferecimento ou pela destruição de bens: pelo livrar-se deles, enfim. A destruição, com freqüência, não é mera destruição. Muitas vezes são sacrifícios, oferendas aos deuses que se obrigam a prodigalizar em antropologia.p65 25/3/2008, 13:5296 97 Os outros e os outros contrapartida: os objetos sacrificados deverão se reproduzir na terra dos deuses, para que estes os possam oferecer à natureza, que os ofertará aos homens. Em vez de uma relação diádica homens-natureza, imagina- se nesses casos uma transação triangular homens-deuses-natureza, estruturalmente semelhante a algumas que acontecem entre nós, por exemplo, quando damos esmola aos pobres: “Deus lhe pague”, “Quem dá aos pobres empresta a Deus”... Na base desses costumes poderemos encontrar a convicção pro- funda de que dar, receber e retribuir são comunitariamente a mesma coisa. Podemos descobrir também a crença de que objeto e pessoa não se separam pelo ato de dar, pois os vínculos que ligam pessoas e coisas continuam existindo quando as últimas são transferidas a alguém com que se tem uma relação de comunidade, isto é, quando são passadas a alguém que é como eu. Não as perco, portanto, quando as dou: não há perigo, só ficará miserabilizado aquele que se retirar do circuito comunitário das trocas. E não havendo separação entre coisas e pessoas, quando troco com uma terceira pessoa aquilo que recebi de você, sinto-me obrigado em relação a você. Assim, o circuito de trocas não tem fim, entregue à sua circularidade e espiralidade: dar algo a alguém é dar-se si mesmo e dar-se a si mesmo. A troca é soberana e tem razões em si. Por isso, muitas vezes, o que se dá e se recebe é completamente desprovido de utilidade. Por isso, muitas vezes, se encontra prazer no esforço de percorrer quilômetros e mais quilômetros para trocar uma coisa por coisa idêntica. Por isso, faz sentido acumular riquezas sem nenhuma finalidade de realizar um “investimento produtivo”, apenas pela satisfação simples de aniquilar ou transferir. Mas a razão dessas práticas é outra: reside no prazer de estabelecer relações sociais, de criar vínculos para o futuro, de honrar os compromissos do passado, de maximizar, enfim, os valores de sociedade. São razões que existem por toda a parte, em todos os continentes, e que nunca poderão ser entendidas pela razão da formiga, pelos “sensatos”, pelos não-pródigos: são extraordinária manifestação simbólica do desprezo pelas “necessidades” de “subsistência”, do prazer da superabundância exibida. São paixões baseadas na intuição serena de que riqueza é desprendimento exuberante, generosidade altiva. Ou simplesmente nada é. * Em resumo, não há racionalidade em si, nem racionalidade univer- sal; racionalidade superior ou inferior. O racional daqui pode ser o Sobre a necessidade e outros mitos antropologia.p65 25/3/2008, 13:5297
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