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Guias e Dicas
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Arquipélago Gulag, Notas de estudo de Engenharia de Materiais

Anne Applebaum

Tipologia: Notas de estudo

2011

Compartilhado em 20/03/2011

marco-antonio-567
marco-antonio-567 🇧🇷

4.3

(13)

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Baixe Arquipélago Gulag e outras Notas de estudo em PDF para Engenharia de Materiais, somente na Docsity! GULAG Uma História dos Campos de Prisioneiros Soviéticos Anne Applebaum http://br.groups.yahoo.com/group/digital_source/ Suas localizações eram um segredo, mas o medo que despertavam era bem conhecido por russos, lituanos, poloneses, armênios e outros tantos que viveram sob a influência da antiga União Soviética. Os campos de concentração do Gulag - literalmente acrônimo para Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou "Administração Central dos Campos", palavra que por fim passou a descrever todo o sistema soviético de punição e trabalhos forçados voltado a prisioneiros criminais e políticos, crianças e mulheres - espalhavam-se por todo o país, da gélida Sibéria às inóspitas regiões da Ásia Central, passando pelas florestas dos Urais e os subúrbios de Moscou. Eles surgiram antes mesmo de seus infames contrapartes nazistas como Auschwitz, Sobibor e Treblinka, e continuaram a crescer muito tempo depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas só agora, após o colapso do comunismo, a história desse sistema de repressão e punição que aterrorizou milhões vem à luz com toda a sua força. Embora a existência desses campos já fosse conhecida no Ocidente graças a clássicos como Um dia na vida de Ivan Denisovitch e Arquipélago Gulag, do dissidente Alexander Soljenitsin, é com esse premiado trabalho de Anne Applebaum que temos o primeiro retrato completo e acurado de um dos maiores crimes cometidos contra a humanidade. Longe de se limitar à frieza dos documentos oficiais, finalmente acessíveis, Applebaum enriquece a história com entrevistas e relatos de sobreviventes, que se sobressaem não só pela força da prosa, mas também pela capacidade de sondar abaixo da superfície do horror cotidiano. Anne Applebaum Este livro é dedicado àqueles que descreveram o que aconteceu. Nos anos pavorosos do terror de Yezhov, passei dezessete meses esperando na fila do lado de fora da prisão de Leningrado. Um dia, alguém na multidão me identificou. Em pé atrás de mim, estava uma mulher, de lábios azulados de frio, que, é claro, nunca antes me ouvira ser chamada pelo nome. Agora, ela de repente saía de nosso torpor habitual e me perguntava num sussurro (ali, todo o mundo sussurrava): "A senhora consegue descrever isto?" Respondi que conseguia. concentração, mas também o próprio sistema soviético de trabalho escravo, em todas as suas formas e variedades: campos de trabalhos forçados, campos punitivos, campos criminais e políticos, campos femininos, campos infantis, campos de trânsito. De modo ainda mais amplo, Gulag veio a significar todo o sistema repressivo soviético, o conjunto de procedimentos que os presos outrora denominaram "o moedor de carne": as prisões, os interrogatórios, o traslado em vagões de gado sem aquecimento, o trabalho forçado, a destruição de famílias, os anos de degredo, as mortes prematuras e desnecessárias. O Gulag tinha precedentes na Rússia czarista, nas turmas de trabalho forçado que operaram na Sibéria desde o século XVII até o início do século XX. Quase imediatamente após a Revolução Russa, ele assumiu sua forma moderna e mais familiar, tornando-se parte integral do sistema soviético. O terror em massa contra oponentes reais ou pretensos foi parte da Revolução desde o começo - no verão de 1918, Lênin, o líder revolucionário, já exigira que "elementos indignos de confiança" fossem encarcerados em campos de concentração fora das cidades principais.3 Uma enfiada de aristocratas, negociantes e outras pessoas definidas como "inimigos" em potencial foi devidamente aprisionada. Em 1921, já havia 84 campos de concentração em 43 províncias, a maioria destinada a "reabilitar" esses primeiros inimigos do povo. A partir de 1929, os campos adquiriram nova importância. Naquele ano, Stalin resolveu usar o trabalho forçado tanto para acelerar a industrialização da URSS quanto para explorar os recursos naturais no extremo norte, quase inabitável, do país. Também naquele ano, a polícia secreta soviética começou a assumir o controle do sistema penal soviético, lentamente arrebatando ao Judiciário todos os campos e prisões. Com o impulso das prisões em massa de 1937 e 1938, os campos entraram num período de rápida expansão. No final da década de 1930, podiam ser encontrados em cada um dos doze fusos horários da URSS. Ao contrário da idéia corrente, o Gulag não parou de crescer quando chegou o final dos anos 1930; ao invés disso, continuou a expandir-se durante toda a Segunda Guerra Mundial e a década de 1940, atingindo seu apogeu no começo dos anos 50. Nessa época, os campos já desempenhavam papel crucial na economia soviética. Produziam um terço do ouro do país, boa parte de seu carvão e madeira e muito de quase tudo o mais. No decorrer da existência da URSS, surgiram pelo menos 476 complexos distintos de campos, consistindo em milhares de campos individuais, cada um dos quais tendo de algumas centenas a muitos milhares de pessoas.4 Os presos trabalhavam em quase todas as atividades imagináveis - derrubada e corte de árvores, transporte dessa madeira, mineração, construção civil, manufatura, agropecuária, projeto de aviões e peças de artilharia - e, na realidade, viviam num Estado dentro do Estado, quase numa civilização em separado. O Gulag tinha suas próprias leis, seus próprios costumes, sua própria moralidade, até sua própria gíria. Gerou sua própria literatura, seus próprios vilões, seus próprios heróis, e deixou sua marca em todos os que passaram por ele, fosse como presos, fosse como guardas. Anos depois de libertados, os habitantes do Gulag muitas vezes eram capazes de reconhecer ex-condenados na rua, simplesmente pelo "olhar". 3 Leggett, pp. 102-20. 4 Okhotin e Roginskii. Tais encontros se mostravam freqüentes, pois a rotatividade nos campos era grande. Embora as prisões fossem constantes, as solturas também o eram. Presos eram libertados porque cumpriam as sentenças, porque se deixava que fossem para o Exército Vermelho, porque eram inválidos ou mães com filhos pequenos, porque haviam sido promovidos de cativos a guardas. Em conseqüência, o número total de prisioneiros nos campos costumava girar em torno de 2 milhões, mas o número total de cidadãos soviéticos que tiveram alguma vivência dos campos, na condição de presos políticos ou comuns, é muito maior. De 1929, quando o Gulag iniciou sua maior expansão, a 1953, quando Stalin morreu, as melhores estimativas indicam que cerca de 18 milhões de pessoas passaram por esse enorme sistema. Aproximadamente mais 6 milhões sofreram o degredo, desterrados para os desertos cazaques ou as florestas siberianas. Legalmente obrigados a permanecer em suas aldeias de degredo, também eles eram galés, mesmo que não tivessem de viver atrás do arame farpado.5 Como sistema de trabalho forçado em massa que envolveu milhões de pessoas, os campos desapareceram com a morte de Stalin. Embora ele houvesse acreditado a vida toda que o Gulag era essencial ao crescimento econômico soviético, seus herdeiros políticos bem sabiam que os campos, na realidade, eram um dos motivos para o atraso nacional e a política de investimento deturpada. Dias após a morte de Stalin, seus sucessores começaram a desmantelá-los. Três grandes rebeliões, mais um sem-número de incidentes menores porém não menos perigosos, ajudaram a acelerar o processo. No entanto, os campos não desapareceram por completo. Em vez disso, eles evoluíram. Durante toda a década de 1970 e o começo da década de 80, alguns foram reformulados e usados como cárcere para uma nova geração de ativistas democráticos, de nacionalistas anti-soviéticos - e de criminosos. Graças à rede de dissidentes soviéticos e ao movimento internacional de direitos humanos, notícias sobre esses campos pós-stalinistas chegavam regularmente ao Ocidente. Aos poucos, elas começaram a desempenhar um papel na diplomacia da Guerra Fria. Mesmo nos anos 1980, o presidente americano, Ronald Reagan, e seu equivalente soviético, Mikhail Gorbatchev, ainda discutiam os campos da URSS. Gorbatchev - ele próprio neto de prisioneiros do Gulag - só começaria a dissolver os campos políticos em 1987. Contudo, embora tenham durado tanto quanto a URSS e milhões de pessoas tenham passado por eles, a verdadeira história dos campos de concentração da União Soviética não era de modo algum bem conhecida até recentemente. Mesmo os fatos concisos até aqui relacionados, ainda que já sejam familiares à maioria dos estudiosos ocidentais da história soviética, não penetraram na consciência popular ocidental. "O conhecimento humano", escreveu Pierre Rigoulot, historiador francês do comunismo, "não se acumula como os tijolos de uma parede, que se eleva gradualmente, acompanhando o trabalho do pedreiro. Seu desenvolvimento, mas também sua estagnação ou recuo, depende da estrutura social, cultural e política."6 Poder-se-ia dizer que, até agora, não existia a estrutura social, cultural e política para o conhecimento do Gulag. 5 Veja Apêndice, para mais detalhes sobre essas estatísticas. 6 Rigoulot, Les Paupieres Lourdes, pp. 1-10. A primeira vez que percebi esse problema foi vários anos atrás, quando caminhava pela Karluv Most, a ponte Carlos, grande atração turística em Praga, cidade que acabava de redemocratizar-se. Ao longo da ponte, havia músicos de rua e garotas de programa, e mais ou menos a cada cinco metros alguém vendia exatamente o que se esperaria encontrar à venda num cartão- postal tão perfeito. Expunham-se pinturas de ruas adequadamente bonitinhas, junto com pechinchas de bijuteria e com chaveiros com a palavra "Praga". Em meio ao bricabraque, podia-se comprar parafernália militar soviética (quepes, insígnias, fivelas) e pequenos buttons, as imagens de Lênin e Brejnev que os escolares soviéticos outrora prendiam nos uniformes. A cena me pareceu estranha. A maioria dos que compravam esses objetos era de americanos ou europeus-ocidentais. Todos eles ficariam enojados com a idéia de usar uma suástica. No entanto, ninguém ali fazia objeções a ostentar a foice e o martelo numa camiseta ou num boné. Foi um episódio menor, mas às vezes é justamente por coisas assim que se observa melhor o clima cultural. Pois ali a lição não poderia ter sido mais clara: se o símbolo de uma matança nos enche de horror, o de outra nos faz rir. Se entre os turistas em Praga havia falta de sensibilidade sobre o stalinismo, isso em parte se explicava pela escassez de imagens sobre o tema na cultura popular ocidental. A Guerra Fria produziu James Bond e thrillers, mais os russos de gibi do tipo que aparecem nos filmes de Rambo; nada, porém, tão ambicioso quanto A lista de Schindler ou A escolha de Sofia. Steven Spielberg, provavelmente o principal diretor de Hollywood (gostem disso ou não), preferiu fazer filmes sobre campos de concentração japoneses (Império do sol) e sobre campos de concentração nazistas, mas não sobre campos de concentração stalinistas. Esses últimos não conquistaram da mesma maneira a imaginação de Hollywood. A cultura dita elevada não se tem mostrado muito mais aberta ao sistema. A reputação do filósofo alemão Martin Heidegger foi profundamente prejudicada pelo breve apoio explícito ao nazismo, um entusiasmo que se desenvolveu antes de Hitler ter cometido suas maiores atrocidades. Por outro lado, a reputação do filósofo francês Jean-Paul Sartre não sofreu nada com o vigoroso apoio ao stalinismo durante todos os anos do pós-guerra, quando provas abundantes das atrocidades de Stalin estavam disponíveis para qualquer interessado. "Já que não éramos membros do Partido", registrou Sartre, "não era obrigação nossa escrever sobre os campos soviéticos de trabalhos forçados; desde que nenhum fato de importância sociológica tivesse ocorrido, estávamos livres para permanecer distantes das desavenças sobre a natureza do sistema."7 Em outra ocasião, ele disse a Albert Camus: "Assim como você, acho esses campos execráveis, mas acho igualmente execrável o uso que todos os dias se faz deles na imprensa burguesa".8 Algumas coisas mudaram desde o colapso soviético. Em 2002, por exemplo, o romancista britânico Martin Amis sentiu-se afetado o suficiente pela questão de Stalin e do stalinismo para dedicar a ela um livro inteiro. Seu trabalho levou outros autores a indagar por que tão poucos membros da direita política e 7 Citado em Johnson, p. 243. 8 Citado em Revel, p. 77. homem que mais danos causou ao anticomunismo foi certamente o senador americano Joe McCarthy. Documentos recentes que mostram que algumas de suas acusações eram verdadeiras não modificam o impacto que teve seu excesso de entusiasmo na perseguição aos comunistas na vida pública americana: os "julgamentos" públicos que ele realizou de simpatizantes do comunismo acabariam por macular com patriotada e intolerância a causa do anticomunismo.16 No fim das contas, as ações de McCarthy não fizeram mais pela causa da pesquisa histórica neutra do que as dos oponentes daquele senador. Entretanto, nem todas as nossas atitudes para com o passado soviético se relacionam à ideologia política. Na realidade, muitas delas estão mais para um subproduto desvanecente de nossas lembranças da Segunda Guerra Mundial. No momento, temos a firme convicção de que aquela foi uma guerra absolutamente justa, e poucos desejam abalar tal convicção. Rememoramos o Dia D, a libertação dos campos de concentração nazistas, as crianças que, eufóricas, davam as boas-vindas aos pracinhas americanos nas ruas. Ninguém quer saber que a vitória Aliada teve outro lado, mais sombrio, ou que os campos de Stalin, nosso aliado, se expandiam justamente quando os de Hitler, nosso inimigo, eram libertados. A certeza moral de nossas recordações daqueles tempos ficaria solapada se reconhecêssemos que os Aliados Ocidentais, ao mandarem milhares de russos para a morte certa quando os repatriaram à força após a guerra, ou ao condenarem milhões de pessoas ao domínio soviético em Yalta, podem ter ajudado outros a cometerem crimes contra a humanidade. Ninguém quer concluir que derrotamos um chacinador com a ajuda de outro. Ninguém quer lembrar quanto esse outro chacinador se dava bem com estadistas ocidentais. "Eu gosto realmente de Stalin", disse a um amigo o então ministro do Exterior britânico, Anthony Eden. "Ele nunca faltou com a palavra."17 Há muitas fotos, muitas mesmo, de Stalin com Churchill e Roosevelt, todos juntos, todos sorridentes. Por fim, a propaganda soviética não deixou de fazer efeito. Tiveram certo impacto, por exemplo, as tentativas soviéticas de semear a dúvida sobre os escritos de Soljenitsin, pintando-o como demente, anti-semita ou bêbado.18 A pressão soviética sobre acadêmicos e jornalistas ocidentais também ajudou a enviesar o trabalho deles. Na década de 1980, quando eu estudava história russa nos Estados Unidos, conhecidos me diziam para não continuar com essa matéria no curso de graduação, pois haveria dificuldades demais: naquele tempo, quem escrevia "favoravelmente" sobre a URSS ganhava mais acesso a arquivos, mais acesso a informações oficiais, vistos para permanências mais longas naquele país. Quem não o fazia arriscava-se a ser expulso e encontrar dificuldades profissionais em conseqüência. Desnecessário dizer, é claro, que a ninguém de fora se permitia o acesso a qualquer material sobre os campos de Stalin ou sobre o sistema prisional pós-stalinista. O assunto simplesmente não existia, e os que metiam demais o bedelho perdiam o direito de ficar naquele país. 16 Ver Klehr, Haynes, e Firsov; e Klehr, Haynes, e Anderson, para o arquivo histórico do Partido Comunista Americano. 17 Citado em N. Tolstoy, Stalin 's Secret War, p. 289. 18 Ver Thomas, pp. 489-95; e Scammell; Sozhenitsyn: A Biography, para detalhes. A tentativa de retratar Soljenitsin como um alcoólatra (Scammell, pp. 664-65) foi deveras desastrosa, pois ele era conhecido por não gostar de bebidas alcoólicas. Outrora, todas essas explicações em conjunto tinham certo sentido. Quando comecei a ponderar seriamente o tema (em 1989, época em que o comunismo entrava em colapso), até vi a lógica por trás delas: parecia natural e óbvio que eu devesse saber muito pouco sobre a União Soviética de Stalin, cuja história secreta a tornava ainda mais fascinante. Mais de uma década depois, meus sentimentos são muito diferentes. Agora, a Segunda Guerra Mundial pertence a uma geração anterior. A Guerra Fria também já acabou, e as alianças e dissensões internacionais que ela produziu mudaram de vez. Hoje, a esquerda e a direita ocidentais competem entre si a respeito de outras questões. Ao mesmo tempo, o surgimento de novas ameaças terroristas à civilização ocidental torna ainda mais necessário o estudo da velha ameaça comunista a essa mesma civilização. Em outras palavras, a "estrutura social, cultural e política" mudou - e o mesmo vale para nosso acesso a informações sobre os campos. No final da década de 1980, na URSS de Mikhail Gorbatchev, começou a aparecer uma enxurrada de documentos a respeito do Gulag. Pela primeira vez, jornais publicavam histórias da vida nos campos de concentração soviéticos. Novas revelações faziam as revistas esgotarem-se. Ressurgiam velhas discussões estatísticas - quantos mortos, quantos presos. Após o trabalho pioneiro da Sociedade Memorial de Moscou, historiadores e associações historiográficas da Rússia passaram a publicar monografias, histórias de campos e indivíduos específicos, estimativas e listas de nomes de mortos. Esse esforço repercutiu e se ampliou entre historiadores nas ex-repúblicas soviéticas e nos países do antigo Pacto de Varsóvia e, posteriormente, entre historiadores ocidentais. Apesar de muitos percalços, essa investigação do passado soviético continua. Ê bem verdade que a primeira década do século XXI se mostra muito diferente das décadas finais do século XX e que a busca pela história já não é mais parte destacada do discurso público soviético, nem é mais tão dramática quanto pareceu em certo período. A maior parte do trabalho que vem sendo realizado por estudiosos, russos ou não, é verdadeiramente monótona, implicando esquadrinhar milhares de documentos e passar horas em arquivos gelados e cheios de correntes de ar, ou dias à procura de fatos e números. Mas isso está começando a dar frutos. Devagar, pacientemente, a Memorial não só alinhavou o primeiro guia dos nomes e localizações de todos os campos de que se tem registro, mas também publicou uma série inovadora de livros de história e compilou enorme arquivo de narrativas orais e escritas de sobreviventes. Junto com o Instituto Sakharov e a editora Vozvrashchenie (nome que significa "Regresso"), ela colocou parte dessas memórias em circulação pública. Jornais acadêmicos russos e publicações internacionais também começaram a imprimir monografias baseadas em novos documentos, assim como coletâneas desses próprios documentos. Trabalho semelhante está sendo executado em outros lugares, sobretudo pela Fundacja Karta, na Polônia; por museus históricos na Lituânia, Letônia, Estônia, Romênia e Hungria; e por um punhado de estudiosos americanos e europeu-ocidentais que dispuseram de tempo e energia para trabalhar nos arquivos soviéticos. Enquanto fazia pesquisas para este livro, tive acesso ao trabalho deles, assim como a dois outros tipos de fonte que não estariam disponíveis dez anos atrás. O primeiro foi a enxurrada de novas memórias que começaram a ser publicadas nos anos 1980 na Rússia, Estados Unidos, Israel, Europa oriental e outros lugares. Ao escrever este livro, fiz amplo uso delas. No passado, alguns estudiosos da URSS relutavam em confiar nesse material sobre o Gulag, argumentando que os memorialistas soviéticos tinham motivos políticos para distorcer suas histórias; que a maioria escrevera muitos anos após a soltura; e que muitos tomavam histórias emprestadas uns dos outros quando a lembrança lhes falhava. Não obstante, após ter lido centenas de reminiscências dos campos e entrevistado umas duas dúzias de sobreviventes, julguei ser possível filtrar o que parecia implausível, plagiado ou politizado. Também concluí que, embora as memórias não fossem confiáveis no referente a nomes, datas e números, elas ainda assim constituíam fonte inestimável de outros tipos de informação, em especial aspectos cruciais da vida nos campos: os relacionamentos entre presos, os conflitos entre grupos, o comportamento de guardas e administradores, o papel da corrupção, até a presença de amor e entusiasmo. De modo consciente, fiz muito uso de apenas um autor (Variam Shalamov) que escreveu versões ficcionalizadas de sua vida nos campos, e isso porque suas histórias se baseiam em acontecimentos reais. Tanto quanto possível, também respaldei as memórias com ampla utilização de arquivos - outra fonte que, paradoxalmente, nem todo mundo gosta de empregar. Conforme ficará claro no decorrer do livro, o poder da propaganda na URSS era tal que ele freqüentemente modificava as percepções da realidade. Por isso, os historiadores outrora tinham razão em não confiar nos documentos oficiais que o governo soviético trazia a público, pois estes muitas vezes tinham o propósito de obscurecer a verdade. Mas documentos secretos - os documentos hoje conservados em arquivos - têm função diferente. A fim de gerir os campos, a administração do Gulag precisava manter certos tipos de registro. Moscou necessitava saber o que estava acontecendo nas províncias, as províncias tinham de receber instruções da administração central, era preciso preservar estatísticas. Isso não significa que tais arquivos sejam de todo confiáveis - burocratas tinham suas razões para distorcer até os fatos mais comezinhos -, mas, se usados com critério, podem explicar algumas coisas sobre a vida nos campos que as memórias não elucidam. Sobretudo, ajudam a explicar por que se construíram os campos - ou, pelo menos, o que o regime stalinista acreditava que eles viriam a alcançar. Também é verdade que os arquivos são muito mais variados do que muitos previam; e que eles contam a história dos campos de muitas perspectivas diferentes. Tive acesso, por exemplo, ao arquivo da administração do Gulag, com relatórios de fiscais, registros contábeis, cartas de diretores de campos a seus supervisores em Moscou, relatos de tentativas de fuga e listas de montagens musicais nos teatros dos campos, tudo isso mantido no Arquivo Estatal Soviético em Moscou. Também consultei atas de reuniões do Partido e documentos reunidos numa parte do osobaya papka de Stalin, seu "arquivo especial". Com a ajuda de outros historiadores russos, pude utilizar não só alguns documentos dos arquivos militares soviéticos, mas também os arquivos dos guardas dos comboios, os quais contêm coisas como listas do que os presos podiam ou não levar consigo. Fora de Moscou, tive ainda acesso a alguns arquivos locais (em Petrozavodsk, Arcangel, Syktyvkar e Vorkuta e nas ilhas Solovetsky) onde se registraram acontecimentos cotidianos dos campos, assim como ao arquivo do Dmitlag (o campo que construiu o canal Moscou - Volga), que fica em Moscou. Todos contêm registros do dia-a-dia nos campos, formulários de requisição, históricos de presos. Em certa altura, trouxeram-me parte considerável do arquivo de Kedrovyi Shor (uma pequena subdivisão de Inta, campo de mineração ao norte do Círculo Ártico) e educadamente me por todo o país. Dentro dos campos, elas se elevaram no começo da década de 1930, quando a fome assolou a URSS inteira. Tornaram a subir durante a Segunda Guerra Mundial: a invasão alemã provocou não apenas milhões de mortes em combate, mas também epidemias de disenteria e tifo, assim como fome, o que afetou as pessoas tanto fora quanto dentro dos campos. No inverno de 1941-2, quando um quarto da população do Gulag pereceu de inanição, talvez 1 milhão de habitantes de Leningrado tenham também morrido de inanição, isolados pelo bloqueio alemão.20 Lidiya Ginzburg, uma cronista desse bloqueio, descreveu a fome de então como "um estado permanente [...] ela sempre estava presente e sempre se fazia sentir [...] durante o processo de consumir alimento, o mais desesperador e excruciante era que a comida acabava com terrível rapidez sem produzir nenhuma saciedade".21 Conforme o leitor verá, as palavras de Lidiya lembram, de modo estranho e inquietante, as utilizadas por ex-condenados. Claro, é bem verdade que os moradores de Leningrado morriam em casa, ao passo que o Gulag destroçava vidas, destruía famílias, arrancava os filhos dos pais e condenava milhões a viverem em ermos a milhares de quilômetros de seus familiares. Ainda assim, as vivências medonhas dos presos podem com justiça ser comparadas às terríveis lembranças de cidadãos soviéticos "livres" como Elena Kozhina, que foi evacuada de Leningrado em fevereiro de 1942. Durante a jornada, ela viu o irmão, a irmã e a avó morrerem de inanição. Enquanto os alemães se aproximavam, Elena e a mãe atravessaram a estepe a pé, deparando com "cenas de derrocada e caos desenfreados [...]. O mundo se despedaçava. Tudo estava permeado de fumaça e um cheiro horrível de queimado; a estepe era claustrofóbica e sufocante, como se espremida num punho quente e fuliginoso". Embora nunca tenha vivido nos campos de prisioneiros, Elena conheceu o frio, a fome e o pavor atrozes antes mesmo de ter completado dez anos de idade, e as lembranças disso a assombrariam pelo resto da vida. Nada, ela escreveu, "conseguiria apagar minha lembrança de quando levaram o corpo de Vadik, com um cobertor por cima; de quando Tanya sufocou, agonizante; de quando mamãe e eu, as que sobraram, caminhamos com dificuldade pela estepe em chamas, através da fumaça e dos estrondos".22 A população do Gulag e a população do resto da URSS compartilhavam muitas outras coisas além do sofrimento. Dentro e fora dos campos, era possível encontrar as mesmas técnicas de trabalho desleixadas, a mesma burocracia criminosamente estúpida, o mesmo descaso sombrio pela vida humana. Quando redigia este livro, descrevi a um amigo polonês o sistema de tufta (a burla com relação às normas de trabalho) que os prisioneiros soviéticos desenvolveram, o qual será descrito mais adiante. Meu amigo caiu na gargalhada: "Você acha que foram prisioneiros que inventaram isso?! O bloco soviético inteiro praticava a tufta". Na URSS de Stalin, a diferença entre a vida nos campos e a vida fora deles era apenas de grau. Talvez por isso, o Gulag foi muitas vezes descrito como a quintessência do sistema soviético. Mesmo na gíria dos presos, o mundo fora do arame farpado era não a "liberdade", e sim a bolshaya zona, a "zona prisional grande", maior e menos letal que a "zona pequena" do Gulag, mas não mais humana - e certamente não mais humanitária. 20 Overy, pp. 112 e 226-27; Moskoff. 21 L. Ginzburg, p. 36. 21. Kozhina, p. 5. 22 Kaczynska, p. 15. Todavia, se o Gulag não pode ser de todo apartado da experiência de vida no resto da URSS, tampouco pode a história dos campos ser de todo separada da história longa, multinacional e transcultural das prisões, degredos, encarceramentos e campos de concentração. O degredo em lugares distantes, onde os prisioneiros podem "pagar a dívida para com a sociedade", tornar-se úteis e não contaminar outros com suas idéias ou sua criminalidade, é prática tão antiga quanto a própria civilização. Os governantes da Roma e da Grécia antigas mandavam os dissidentes para colônias longínquas. Sócrates preferiu a morte em Atenas ao tormento do exílio. O poeta Ovídio foi desterrado para um porto infecto no mar Negro. A Grã-Bretanha georgiana despachava seus punguistas e ladrões para a Austrália. A França oitocentista enviava condenados para a Guiana. Portugal mandava seus indesejáveis para Moçambique. 23 Em 1917, a nova liderança da Rússia não precisou inspirar-se em precedentes de outros países. Desde o século XVII, o país tinha um sistema próprio: na legislação russa, a primeira menção de degredo é de 1649. Na época, ele era considerado uma forma nova e mais humana de punição judiciária - muitíssimo preferível à pena de morte, ou à mutilação e às marcas a fogo -, e era aplicada numa gama enorme de delitos de menor e maior gravidade, desde o consumo de rapé e a prática da adivinhação até o homicídio.23 Grande número de intelectuais e escritores russos, entre eles Pushkin, sofreu alguma forma de degredo, ao passo que a simples possibilidade já atormentava outros: em 1890, no auge da fama literária, Anton Tchekhov surpreendeu todos os seus conhecidos quando foi visitar as colônias penais na ilha de Sacalina, ao largo da costa russa do Pacífico. Antes de ter partido, escreveu a seu perplexo editor, explicando-lhe os motivos: Permitimos que milhões de pessoas apodreçam nas prisões, sem nenhum propósito, sem nenhuma consideração, barbaramente; conduzimos gente por dezenas de milhares de verstas no frio, acorrentadas; nós as infectamos com a sífilis, as pervertemos, multiplicamos o número de criminosos [...], mas nada disso tem nada que ver conosco; simplesmente não é algo interessante [...].24 Em retrospecto, é fácil achar na história do sistema prisional czarista muitos antecedentes de práticas adotadas no Gulag. Assim como esse último, o degredo siberiano, por exemplo, nunca se destinou exclusivamente a criminosos. Uma lei de 1736 declarava que, se uma aldeia decidisse que algum de seus habitantes fosse uma má influência, os líderes locais podiam repartir as posses do infeliz e mandar que se mudasse para outro lugar. Caso ele não conseguisse achar outra morada, o Estado podia degredá-lo.25 (Aliás, essa lei seria citada por Khrutchev em 1948, como parte de sua - bem-sucedida - argumentação para que se degredassem os membros das fazendas coletivas que fossem considerados insuficientemente entusiásticos e trabalhadores.)26 A prática de degredar pessoas que simplesmente não se ajustavam continuou por todo o século XIX. Em seu livro A Sibéria e o sistema de degredo, George Kennan (tio do estadista americano homônimo) descreveu o sistema de 23 Kennan, pp. 74-83. Como no caso de vários dos Inconfidentes. (N. T.) 24 Tchekhov, p. 371. 25 Kaczynska, pp. 16-27. 26 Popov, pp. 31-38. "processo administrativo" que ele observou na Rússia em 1891: A pessoa inconveniente pode não ser culpada de crime nenhum [...], mas, se na opinião das autoridades locais sua presença em determinado lugar é "nociva à ordem pública" ou "incompatível com a tranqüilidade pública", ela pode ser detida sem mandado, mantida de duas semanas a dois anos na prisão, removida à força para qualquer outro lugar dentro dos limites do Império e ali ser colocada sob vigilância policial por um a dez anos.27 O degredo administrativo - que não exigia julgamento nem sentença - era punição ideal não apenas para os encrenqueiros propriamente ditos, mas também para os opositores políticos do regime. Nos primórdios, muitos desses opositores eram aristocratas poloneses contrários à ocupação de seu território e suas propriedades pelos russos. Posteriormente, incluíram-se entre os degredados os dissidentes religiosos e os membros de grupos "revolucionários" e sociedades secretas, como os bolcheviques. Embora não fossem degredados administrativos (pois foram julgados e sentenciados), os mais tristemente célebres "colonos forçados" da Sibéria oitocentista também eram prisioneiros políticos: os dezembristas, um grupo de aristocratas de alto escalão que encetaram uma débil rebelião contra o czar Nicolau I em 1825. Numa desforra que chocou toda a Europa da época, o Czar sentenciou cinco dezembristas à morte. Os outros ele privou de seus títulos e mandou, acorrentados, para a Sibéria; as esposas de alguns, excepcionalmente corajosas, também foram para lá, a fim de reunir-se aos maridos. Só uns poucos viveram o suficiente para ser perdoados por Alexandre II (o sucessor de Nicolau), trinta anos depois, e reinstalar-se em São Petersburgo, quando já eram idosos.28 Fiodor Dostoievski, condenado em 1849 a quatro anos de servidão penal, foi outro prisioneiro político famoso. Após ter retornado do degredo siberiano, escreveu Recordações da casa dos mortos, ainda hoje o relato mais lido sobre a vida no sistema prisional czarista. Assim como o Gulag, o sistema czarista de degredo não foi criado apenas como forma de punição. Os governantes da Rússia também queriam que os degredados, tanto criminais quanto políticos, resolvessem um problema econômico que incomodara durante muitos séculos: a baixa densidade demográfica do extremo leste e extremo norte da Rússia e a conseqüente incapacidade do Império para explorar seus recursos naturais. Tendo isso em mente, o Estado russo começou, já no século XVIII, a sentenciar alguns presos aos trabalhos forçados - modalidade de punição que se tornou conhecida como katorga, do verbo grego kateirgon (forçar). A katorga tinha velhos antecedentes na Rússia. No começo do século XVIII, Pedro, o Grande, utilizara condenados e servos para construir estradas, fortalezas, fábricas, navios e a própria cidade de São Petersburgo. Em 1722, o mesmo czar promulgou uma diretiva mais específica, mandando criminosos para o degredo, com as mulheres e filhos, perto das minas de prata de Daurya, na Sibéria oriental.29 Na época, o uso do trabalho forçado por Pedro foi considerado um grande êxito econômico e político. Aliás, a história das centenas de milhares de servos cujas vidas se consumiram na construção de São Petersburgo teria enorme impacto 27 Kennan, p. 242. 28 Kaczynska, pp. 65-85. 29 Anisimov, p. 177. industrializada" amplamente utilizados durante tais conflitos geraram enorme reação intelectual e artística. Menos notado - exceto, é claro, pelos milhões de vítimas - foi o uso generalizado de métodos igualmente "industrializados" de encarceramento. A partir de 1914, os dois lados construíram pela Europa afora campos de internamente e campos de prisioneiros de guerra. Em 1918, havia 2,2 milhões de prisioneiros de guerra em território russo. A nova tecnologia - a produção em massa de armas de fogo, tanques e até arame farpado - possibilitou esses e os campos posteriores. De fato, alguns dos primeiros campos soviéticos foram construídos sobre campos de prisioneiros da Primeira Guerra Mundial.42 Os campos soviéticos e nazistas também são aparentados porque, juntos, se inserem na história mais ampla dos campos de concentração, a qual começou em fins do século XIX. Com o termo "campos de concentração", refiro-me a campos construídos para encarcerar pessoas não pelo que elas fizeram, mas pelo que elas eram. Diferentemente dos campos de criminosos condenados e dos campos de prisioneiros de guerra, os de concentração foram criados para um tipo específico de prisioneiro civil não-criminoso, membro de um grupo "inimigo" ou, pelo menos, de uma categoria de pessoa que, pela raça ou suposta tendência política, era considerada perigosa ou estranha à sociedade.43 Segundo tal definição, os primeiros campos de concentração modernos foram estabelecidos não na Alemanha, nem na Rússia, mas na Cuba colonial, em 1895. Naquele ano, num esforço para pôr fim a uma série de insurreições locais, o poder imperial espanhol começou a preparar uma política destinada a tirar os camponeses cubanos da terra e "reconcentrá-los" em campos, assim privando os insurgentes de alimento, abrigo e apoio. Em 1900, a palavra espanhola reconcentración já fora traduzida para o inglês e estava sendo usada para descrever um projeto britânico parecido, iniciado por motivos semelhantes, durante a Guerra dos Bôeres, na África do Sul: os civis daquele povo eram concentrados" em campos, de modo a negar guarida e amparo aos combatentes bôeres. A partir de então, a idéia se disseminou ainda mais. Um exemplo: parece que o termo konstlager surgiu em russo como tradução do inglês concentration camp, provavelmente graças à familiaridade de Trotski com a história da Guerra dos Bôeres.44 Em 1904, colonizadores alemães no Sudoeste Africano também adotaram o modelo britânico - com uma variação. Em vez de simplesmente aprisionarem os habitantes nativos da região (uma tribo chamada herero), eles os fizeram realizar trabalhos forçados para a colônia alemã. Há vários vínculos estranhos e inquietantes entre esses primeiros campos de trabalhos forçados germano-africanos e os construídos na Alemanha nazista três décadas depois. Por exemplo, foi graças a tais campos de trabalho no sul da África que a palavra Konzentrationslager (campo de concentração) apareceu pela primeira vez na língua alemã, em 1905. O primeiro comissário imperial do Sudoeste Africano Alemão foi um certo dr. Heinrich Göring, pai do Hermann que, em 1933, estabeleceria os primeiros campos nazistas. Também foi naqueles campos africanos que se realizaram as primeiras experiências 42 Kotek e Rigoulot, pp. 97-107; Okhatin e Roginskii, pp. 11-12. 43 Desenvolvi esta definição em "A History of Horror". 44 Geller, p. 43. médicas alemãs com cobaias humanas: Theodor Mollison e Eugen Fischer, dois dos professores de Joseph Mengele, fizeram pesquisas com os hereros; Fischer o fez na tentativa de corroborar suas teorias sobre a superioridade da raça branca. As crenças desses acadêmicos não eram nada incomuns. Em 1912, um best-seller teutônico, o livro O pensamento alemão no mundo, afirmava que nada poderá convencer pessoas racionais de que a preservação de uma tribo de pretos da África meridional é mais importante para o futuro da humanidade do que a expansão das grandes nações européias e da raça branca em geral [...] só quando os povos nativos aprendem a produzir algo de valor a serviço da raça superior [...] é que se pode dizer que eles têm um direito moral de existir.45 Embora essa teoria raramente fosse enunciada com tanta clareza, sentimentos parecidos muitas vezes jaziam logo abaixo da superfície da prática colonial. Com certeza, algumas formas de colonialismo tanto reforçavam o mito da superioridade racial branca quanto legitimavam o uso da violência contra outra raça. Por conseguinte, pode-se argumentar que a vivência corruptora de alguns colonizadores ajudou a abrir caminho para o totalitarismo europeu no século XX.46 E não apenas europeu: a Indonésia é um exemplo de Estado pós-colonial cujos governantes começaram aprisionando seus críticos em campos de concentração, tal qual os colonizadores haviam feito. O Império Russo, que com muito sucesso conquistara seus próprios povos nativos na marcha para o leste, não era exceção.47 Durante um dos jantares festivos que acontecem no romance Ana Karenina, de Tolstoi, o marido da protagonista (o qual tinha algumas responsabilidades oficiais sobre "tribos nativas") pontifica acerca da necessidade de que as culturas superiores absorvam as inferiores.48 Em algum grau, os bolcheviques, assim como todos os russos instruídos, deviam estar cientes de que o Império dizimara os quirguizes, buriatas, tungúsios e outros. O fato de que isso não interessasse particularmente a esses revolucionários - logo eles, de resto tão preocupados com o destino dos oprimidos - já indica algo de seus pressupostos tácitos. Por outro lado, para desenvolver os campos de concentração europeus, dificilmente se faria necessário ter total ciência da história da África meridional ou da Sibéria oriental: no início do século XX, a idéia de que alguns tipos de pessoa são superiores a outros já era bastante comum na Europa. E isso, enfim, é o que liga no sentido mais profundo os campos soviéticos e nazistas: em parte, ambos os regimes se legitimavam pelo estabelecimento de categorias de "inimigos" e "subumanos" aos quais perseguiam e destruíam em escala maciça. Na Alemanha nazista, os primeiros alvos foram os aleijados e os retardados. Posteriormente, os nazistas se concentraram nos ciganos, nos homossexuais e, sobretudo, nos judeus. Na URSS, as vítimas foram primeiro a "gente de antes" (supostos partidários do antigo regime) e depois os "inimigos do povo", termo vago que viria a abranger não apenas os pretensos opositores políticos do regime, mas também certos grupos nacionais e étnicos, caso eles parecessem (por motivos igualmente vagos) ameaçar o Estado soviético ou o 45 Citado em Kotek e Rigoulot, p. 92. 46 Este relato da pré-história dos campos de concentração vem de Kotek e Rigoulot, pp. 1-94. 47 Kaczynska, pp. 270-85. 48 L. Tolstoy, pp. 408-12. poder stalinista. Em épocas diferentes, Stalin procedeu a prisões em massa de poloneses, baltas, tchetchenos, tártaros e (às vésperas da morte) judeus.49 Embora tais categorias nunca fossem inteiramente arbitrárias, elas também nunca foram inteiramente estáveis. Meio século atrás, Hannah Arendt escreveu que tanto o regime nazista quanto o bolchevique criaram "opositores objetivos" ou "inimigos objetivos", cuja "identidade muda conforme as circunstâncias predominantes - de modo que, tão logo uma categoria é liquidada, se pode declarar guerra a outra". Da mesma forma, ela acrescentava, "a função da polícia totalitária não é descobrir crimes, e sim estar à mão quando o governo resolve prender determinada categoria da população".50 Mais uma vez, as pessoas eram aprisionadas não pelo que tinham feito, mas pelo que eram. Em ambas as sociedades, a criação dos campos de concentração foi, na realidade, o estágio final num longo processo de desumanização desses inimigos objetivos - processo que teve início com a retórica. Na autobiografia Minha luta, Hitler explicou como ele de súbito percebera que os judeus eram responsáveis pelos problemas da Alemanha e que, na vida em sociedade, "todo empreendimento escuso, toda forma de infâmia", estava ligado aos judeus: "ao examinar-se aquele tipo de abscesso com o bisturi, descobria-se de imediato, qual larva num corpo putrescente, um judeuzinho que muitas vezes ficava ofuscado pela brusquidão da luz".51 Lênin e Stalin também começaram culpando "inimigos" pelos inumeráveis fracassos econômicos da URSS: tratava-se de "destruidores", "sabotadores", agentes de potências estrangeiras. A partir do final dos anos 1930, à medida que a onda de prisões começava a expandir-se, Stalin levava essa retórica a novos extremos, acusando publicamente seus opositores de serem uma "imundície" que precisava "submeter-se a limpeza contínua" - tal qual a propaganda nazista identificaria os judeus a imagens de bichos nocivos, parasitas, doenças infecciosas.52 Uma vez demonizado o inimigo, o isolamento legal dele começava para valer. Antes que tivessem sido arrebanhados e deportados para os campos de concentração nazistas, os judeus foram privados da condição de cidadãos alemães. Viram-se proibidos de trabalhar no funcionalismo público, na advocacia, na magistratura; proibidos de desposar arianos; proibidos de freqüentar escolas arianas; proibidos de ostentar a bandeira alemã; forçados a usar estrelas de Davi amarelo-ouro; e sujeitos a espancamentos e humilhações na rua.53 Antes que se tivesse chegado a prendê-los na URSS de Stalin, os "inimigos" também eram rotineiramente humilhados em assembléias públicas, demitidos de seus empregos, expulsos do Partido Comunista, abandonados pelos cônjuges indignados e publicamente acusados pelos filhos furiosos. Dentro dos campos, o processo de desumanização se aprofundava e radicalizava, ajudando tanto a intimidar as vítimas quanto a reforçar a crença dos vitimadores na legitimidade do que estavam fazendo. Em seu livro- 49 Ver Martin, The Affirmative Action Empire, para uma reflexão mais aprofundada sobre a atitude de Stalin em relação a grupos étnicos "inimigos". 50 Arendt, pp. 122-23. 51 Bullock, p. 24. 52 Weiner, "Nature, Nurture and Memory in a Socialist Utopia". 53 Bullock, p. 488. em determinadas épocas, a morte era praticamente certa no caso dos escolhidos para cortar árvores nas florestas hibernais ou trabalhar nas piores minas auríferas de Kolyma. Prisioneiros também eram trancados em celas punitivas até morrerem de frio ou inanição, largados sem tratamento em hospitais subaquecidos ou simplesmente baleados por "tentativa de fuga" quando dava na telha dos guardas. Entretanto, o sistema soviético de campos como um todo não era propositalmente organizado para produzir cadáveres em escala industrial - mesmo que às vezes o resultado fosse esse. São distinções sutis, mas importantes. Embora o Gulag e Auschwitz realmente pertençam à mesma tradição intelectual e histórica, eles ainda assim são fenômenos separados e diferentes, tanto um do outro quanto dos sistemas de campos estabelecidos por outros regimes. A idéia de campo de concentração talvez seja genérica o bastante para que a usem em culturas e situações muito diversas, mas até um estudo superficial da história transcultural desse tipo de campo revela que os detalhes específicos - como se organizava a vida, como o estabelecimento se desenvolvia no decorrer do tempo, quão rígido ou desorganizado se tornava, quão cruel ou liberal permanecia - dependiam do país, do regime político e da cultura.58 Para quem estava encurralado atrás do arame farpado, esses detalhes eram cruciais para a vida, a saúde e a sobrevivência. Na realidade, lendo os relatos daqueles que sobreviveram a ambos os sistemas de campos, impressionam mais as diferenças entre as vivências das vítimas do que as diferenças entre os dois sistemas de campos. Cada história tem suas características próprias, cada campo apresentava tipos diferenciados de horror para pessoas de caráter diferente. Na Alemanha, podia-se morrer pela crueldade; na Rússia, pela desesperança. Em Auschwitz, podia-se morrer na câmara de gás; em Kolyma, congelar na neve até a morte. Podia-se morrer numa floresta alemã ou num ermo siberiano, num acidente de mineração ou num vagão de gado. Mas, ao fim e ao cabo, cada um tinha sua história de vida. Parte I - AS ORIGENS DO GULAG (1917-39) 1. PRIMÓRDIOS BOLCHEVIQUES Teu espinhaço foi esmagado, Minha época bela e lastimável, E, com sorriso inane, Olhas para trás, cruel e fraca, Tal qual bicho que já passou do apogeu, Para as marcas de suas patas. Osip Mandelstam, "Vek"59 Um de meus objetivos é destruir o mito de que a fase mais cruel da repressão 58 Ver Applebaum, "A History of Horror", para mais detalhes. 59 De Stekla vechnosti, pp. 172-73. começou em 1936-7. Penso que, no futuro, as estatísticas mostrarão que a onda de prisões, condenações e degredos já se iniciara no começo de 1918, antes mesmo da declaração oficial, naquele outono, do "Terror Vermelho". A partir daquele momento, a onda simplesmente ficou cada vez maior, até a morte de Stalin. Dmitrii Likhachev, Vospominaniya60 No ano de 1917, duas ondas revolucionárias cobriram a Rússia, varrendo a sociedade imperial como se esta fosse um castelo de cartas. Depois que o czar Nicolau abdicou (em fevereiro), tornou-se extremamente difícil que alguém conseguisse deter ou controlar os acontecimentos. Alexander Kerensky, o líder do primeiro governo provisório pós-revolucionário, escreveria que, no vácuo subseqüente ao colapso do antigo regime, "todos os programas políticos e táticos existentes, não importando quão ousados e bem concebidos, pareciam flutuar no espaço, sem rumo e sem utilidade".61 Mas, embora o governo provisório fosse fraco, embora o descontentamento popular fosse generalizado, embora a raiva com a carnificina causada pela Primeira Guerra Mundial fosse grande, poucos contavam que o poder caísse nas mãos dos bolcheviques, um dos vários partidos socialistas radicais que agitavam a favor de mudanças ainda mais rápidas. Fora do país, eles eram muito pouco conhecidos. Uma narrativa apócrifa ilustra muito bem a atitude estrangeira: consta que, em 1917, um burocrata entrou às pressas no gabinete do ministro do Exterior austríaco, gritando: "Excelência, houve uma revolução na Rússia!" O ministro riu com desdém: "Quem conseguiria fazer uma revolução lá? Com certeza não esse inofensivo herr Trotski, lá no Café Central?" Se o caráter dos bolcheviques era um mistério, seu líder, Vladimir Iliich Ulianov (o homem que o mundo viria a conhecer pelo pseudônimo revolucionário "Lênin"), o era ainda mais. Durante seus muitos anos de revolucionário refugiado no exterior, Lênin fora reconhecido por conta de seu brilhantismo, mas também antipatizado por causa de sua imoderação e seu sectarismo. Vivia arrumando briga com outros líderes socialistas e tinha o pendor de transformar em grandes polêmicas as discordâncias menores sobre questões dogmáticas aparentemente irrelevantes.62 Nos primeiros meses após a Revolução de Fevereiro, Lênin esteve muito longe de ocupar uma posição de autoridade inconteste, mesmo dentro de seu próprio partido. Ainda em meados de outubro de 1917, um punhado de lideranças bolcheviques se opunha a seu plano de desfechar um golpe de Estado contra o governo provisório; argumentavam que o Partido não estava pronto para tomar o poder e nem sequer tinha apoio popular. Lênin, porém, ganhou a discussão, e, em 25 de outubro, ocorreu o golpe. Sob a influência da agitação promovida por Lênin, uma turba saqueou o Palácio de Inverno. Os bolcheviques prenderam os ministros do governo provisório. Num período de horas, Lênin se tornara o líder do país, que ele rebatizou de Rússia Soviética. No entanto, embora Lênin houvesse logrado tomar o poder, seus críticos 60 Likhachev, Vospominania, p. 118. 61 Pipes, pp. 336-37. 62 Ver, por exemplo, Service, Lenin. bolcheviques não estavam de todo errados. Os bolcheviques estavam mesmo muitíssimo despreparados. Em conseqüência, a maioria das decisões iniciais deles, aí incluída a criação do Estado unipartidário, foi tomada para atender às necessidades do momento. O apoio popular aos bolcheviques era realmente fraco, e quase de imediato eles começaram a travar uma sangrenta Guerra Civil, apenas para que pudessem permanecer no poder. A partir de 1918, quando o Exército Branco (dos partidários do antigo regime) se reagrupou para combater o recém-criado Exército Vermelho (liderado pelo "herr Trotski" do "Café Central"), ocorreram nas regiões rurais da Rússia alguns dos combates mais brutais e encarniçados já vistos na Europa. E nem toda a violência se limitava aos campos de batalha. Os bolcheviques se desdobravam para suprimir todo tipo de oposição intelectual e política, atacando não apenas os representantes do antigo regime, mas também outros socialistas - mencheviques, anarquistas, social-revolucionários. Só em 1921 o novo Estado soviético conheceria relativa paz.63 Nesse contexto de improvisação e violência, nasceram os primeiros campos soviéticos de trabalhos forçados. Assim como muitas outras instituições da URSS, foram criados de modo contingencial, às pressas, como medida de emergência no calor da Guerra Civil. Isso não significa que a idéia já não se mostrara atraente. Três semanas antes da Revolução de Outubro, o próprio Lênin esboçava um plano (vago, é verdade) para organizar um "serviço laborai obrigatório", destinado a capitalistas ricos. Em janeiro de 1918, irado com a intensidade da resistência antibolchevique, ele foi ainda mais veemente, escrevendo que veria com bons olhos "a prisão desses sabotadores bilionários que viajam em vagões de primeira classe. Sugiro sentenciá-los a seis meses de trabalhos forçados nas minas".64 A visão de Lênin dos campos de trabalhos forçados como forma especial de punição para certo tipo de "inimigo" burguês se coadunava com outras crenças suas sobre o crime e os criminosos. Por um lado, o primeiro líder soviético era ambivalente no que se referia ao encarceramento e punição dos criminosos tradicionais (ladrões, punguistas, homicidas), os quais considerava aliados em potencial. Na perspectiva de Lênin, a causa básica dos "excessos sociais", ou seja, da criminalidade, era "a exploração das massas". A eliminação dessa causa, acreditava ele, "levará ao esvanecimento dos excessos". Assim, não era necessário impor nenhuma punição especial para deter os criminosos: com o tempo, a própria Revolução os faria desaparecer. Por isso, parte da linguagem no primeiro Código Penal bolchevique teria reconfortado os reformadores penais mais radicais e progressistas do Ocidente. Entre outras coisas, o Código estabelecia que "não existe culpa individual" e que a punição "não deve ser encarada como vingança".65 Por outro lado, Lênin - assim como os teóricos jurídicos bolcheviques que o seguiram - também supunha que a criação do Estado soviético daria origem a um novo tipo de inimigo: o "inimigo de classe". Este se opunha à Revolução e trabalhava às claras (ou, mais freqüentemente, às escondidas) para destruí-la. O inimigo de classe era mais difícil de identificar que o inimigo comum, e muito mais difícil de regenerar. Diferentemente do que acontecia com o criminoso comum, nunca se podia confiar no inimigo de classe para cooperar com o 63 Pipes, pp. 439-505; Figes, pp. 474-551. 64 Geller, pp. 23 e 24. 65 Jakobson, pp. 18-26. tempo, um alto funcionário soviético diria que "só os muito preguiçosos não fugiam".78 A confusão obrigou a Cheka a apresentar soluções novas - os bolcheviques não podiam permitir que seus "verdadeiros" inimigos ficassem no sistema prisional comum. Cadeias caóticas e guardas indolentes podiam servir para punguistas e delinqüentes juvenis; mas, para os sabotadores, parasitas, especuladores, oficiais do Exército Branco, padres, capitalistas burgueses e outros que tanto assomavam na imaginação bolchevique, eram necessárias soluções mais criativas. Uma delas foi encontrada já em 4 de junho de 1918, quando Trotski requereu que um grupo de prisioneiros tchecos refratários fosse pacificado, desarmado e colocado num konstlager - campo de concentração. Doze dias depois, num memorando endereçado ao governo soviético, Trotski tornou a falar em campos de concentração, prisões ao ar livre nas quais a burguesia das cidades e vilarejos [...] deverá ser mobilizada e organizada em batalhões de retaguarda para fazer serviço braçal - limpar casernas, acampamentos e ruas, cavar trincheiras etc. Quem se recusar deverá ser multado e mantido na cadeia até pagar a multa.79 Em agosto, Lênin também se utilizou do termo konstlager. Num telegrama aos comissários de Penza (local de um levante antibolchevique), ele demandou que se empregasse "terror em massa contra os kulaks, padres e Guardas Brancos" e que os "elementos indignos de confiança" fossem "aprisionados num campo de concentração fora da cidade".80 As instalações já existiam: durante o verão de 1918 – na seqüência do Tratado de Brest-Litovsk, que pôs fim à participação da Rússia na Primeira Guerra Mundial -, o regime libertou 2 milhões de prisioneiros de guerra, e os campos vazios foram de imediato transferidos para a Cheka.81 Na época, a Cheka certamente pareceu a entidade ideal para assumir a tarefa de encarcerar "inimigos" em "campos" especiais. Organização totalmente nova, foi concebida para ser "a espada e o escudo" do Partido Comunista, não se subordinando ao governo soviético oficial nem a nenhum departamento deste. Não tinha nenhuma tradição de legalidade, nenhuma obrigação de respeitar o Estado de direito, nenhuma necessidade de consultar a polícia, os tribunais ou o comissário da Justiça. O próprio nome indicava sua condição especial: a Comissão Extraordinária de Combate à Contra-revolução e à Sabotagem, ou (usando as iniciais russas de "Comissão Extraordinária") Ch-K, Cheka. Era "extraordinária" justamente porque existia fora da legalidade "ordinária". Quase tão logo foi criada, a Cheka recebeu uma dessas tarefas extraordinárias. Em 5 de setembro de 1918, Dzerzhinsky foi instruído a implementar a política do Terror Vermelho, de Lênin. Lançada após um atentado contra a vida desse último, era uma onda de terror (detenções, encarceramentos, assassínios) mais organizada que o terror aleatório dos 78 Okhotin e Roginskii, p. 11. 79 Geller, p. 43. 80 Ibid., p. 44; Leggett, p. 103. 81 Inicialmente, a Cheka era responsável pelos campos juntamente com a Congregação Central de Prisioneiros de Guerra e Refugiados (Tsentroplenbezh). Okhotin e Roginskii, p. 11. meses anteriores. Na realidade, tratava-se de um componente importante da Guerra Civil, sendo dirigido contra os suspeitos de atuarem para destruir a Revolução na "frente interna". O Terror Vermelho foi sangrento, impiedoso e cruel - tal qual pretendiam seus perpetradores. A Krasnaya Gazeta, órgão do Exército Vermelho, o descreveu: Sem piedade, sem moderação, mataremos nossos inimigos às centenas e mais centenas. Ou melhor, aos milhares - deixemos que se afoguem no próprio sangue. Pelo sangue de Lênin [...], deixemos que corram rios de sangue da burguesia - o máximo possível [...].82 A política do Terror Vermelho foi crucial na luta de Lênin pelo poder. Os campos de concentração, os chamados "campos especiais", foram cruciais para o Exército Vermelho. Eram mencionados já no primeiro decreto do Terror Vermelho, que determinava não apenas a captura e encarceramento de "representantes importantes da burguesia, proprietários de terras, industriais, comerciantes, padres contra-revolucionários, oficiais anti-soviéticos", mas também o "isolamento deles em campos de concentração".83 Embora não existam dados confiáveis sobre o número de prisioneiros, havia 21 campos registrados na Rússia no final de 1919. No fim do ano seguinte, eram 107 - cinco vezes mais.84 Naquele estágio, contudo, o objetivo dos campos permanecia ambíguo. Os prisioneiros deveriam trabalhar - mas com que propósito? O trabalho se destinava a reabilitá-los? A humilhá-los? Ou a ajudar a construir o Estado soviético? Diferentes líderes e instituições tinham diferentes respostas. Em fevereiro de 1919, o próprio Dzerzhinsky fez um discurso eloqüente para defender o papel dos campos na reabilitação ideológica da burguesia. Os novos campos utilizarão a mão-de-obra dos detidos; dos senhores que vivem sem ter ocupação; e dos que só trabalham quando forçados. Tal punição deveria ser aplicada àqueles que atuam em instituições soviéticas e demonstram atitudes inconscienciosas no que se refere ao trabalho, à pontualidade etc. [...] Dessa maneira, criaremos escolas de trabalho.85 Mas na primavera de 1919, quando se publicaram os primeiros decretos sobre os campos especiais, prioridades ligeiramente diferentes pareceram assumir a precedência.86 Os decretos (uma lista surpreendentemente longa de normas e recomendações) sugeriam que cada capital regional estabelecesse um campo, para não menos que trezentas pessoas, "no limite da cidade, ou em construções próximas como mosteiros, grandes propriedades, fazendas etc.". Estipulavam uma jornada de trabalho de oito horas; horas extras e atividade noturna só seriam autorizadas quando "seguissem a lei trabalhista". Os presos ficavam proibidos de receber comida de fora. Permitiam-se visitas de familiares imediatos, mas só nos domingos e feriados. Os presos que tentassem fugir uma vez teriam as penas multiplicadas por dez; os que tentassem de novo 82 Leggett, p. 108. 83 Decreto "On Red Terror" in Sbornik, 5 de setembro, 1918, p. 11. 84 Ivanova, Labor Camp Socialism, p. 13. 85 Istoricheskii Arkhiv, nº 1, 1958, pp. 6-11; Geller, p. 52. 86 De acordo com o historiador Richard Pipes, Lenin não queria seu nome ligado aos primeiros campos, por isso os decretos eram publicados pelo Comitê Executivo Central dos Sovietes e não pelo Sovnarkom, instituição que ele presidia. (Pipes, p. 834). seriam punidos com a morte - procedimentos extremamente severos se comparados com a leniente legislação czarista, que os bolcheviques conheciam tão bem. O mais importante: os decretos também deixavam claro que o trabalho dos presos se destinava não apenas a reabilitá-los, mas também a pagar pela manutenção dos campos. Presos com alguma incapacidade física deveriam ser mandados para outro lugar. Os campos deveriam ser auto-sustentáveis. De maneira otimista, os fundadores do sistema acreditavam que ele se pagaria.87 Graças ao fluxo irregular de fundos estatais, quem administrava os campos logo se interessou pela idéia de autofinancia-se ou, pelo menos, fazer algum uso prático dos prisioneiros. Em setembro de 1919, um relatório secreto apresentado a Dzerzhinsky se queixava de que as condições sanitárias num campo de trânsito estavam "abaixo da crítica", em grande parte porque deixavam tanta gente doente e incapaz para o trabalho: "Na umidade do outono, não serão lugares para reunir pessoas e empregar sua mão-de-obra, mas viveiros de epidemias e outras enfermidades". Entre outras coisas, o autor propunha que os incapacitados de trabalhar deveriam ser enviados para outro local, assim tornando o campo mais eficiente - tática que depois seria muitas vezes utilizada pela liderança do Gulag. Já naquela época, os responsáveis pelos campos se preocupavam com a doença e a fome só na medida em que presos doentes e famintos não eram presos úteis. A dignidade e a humanidade deles, para nem falar de sua sobrevivência, praticamente não interessavam aos encarregados.88 Na prática, aliás, nem todos os comandantes se preocupavam com a reabilitação ou o autofinanciamento. Preferiam, isto sim, punir os ex-abonados, humilhando-os, dando-lhes um gostinho do sofrimento dos trabalhadores. Um relatório da cidade ucraniana de Poltava, redigido por uma comissão de inquérito do Exército Branco após a recaptura temporária do lugar, observava que os burgueses aprisionados durante a ocupação bolchevique haviam recebido tarefas que se destinavam a escarnecer deles, tentando aviltá-los. Um detento, por exemplo [...], foi obrigado a limpar com as mãos uma grossa crosta de terra num chão imundo. Mandaram outro limpar um sanitário e [...] lhe deram uma toalha de mesa para fazer o serviço.89 É bem verdade que essas sutis diferenças de intenção provavelmente faziam pouca diferença para as muitas dezenas de milhares de presos, muitos dos quais consideravam humilhação suficiente o simples fato de terem sido aprisionados por nenhum motivo. Elas provavelmente também não afetavam as condições de vida dos detentos, as quais eram horrorosas em toda a parte. Um padre enviado para um campo na Sibéria se recordaria da sopa de tripa, dos alojamentos sem eletricidade e do aquecimento praticamente inexistente no inverno.90 Aleksandr Izgoev, político de destaque no período czarista, foi mandado para um campo ao norte de Petrogrado. No caminho, seu grupo de prisioneiros parou na cidade de Vologda. Em vez de encontrarem a comida quente e as acomodações aquecidas que lhes haviam sido prometidas, os 87 Dekrety, vol.V, pp. 69-70 e 174-81. 88 RGASPI, 76/3/65. 89 Hoover, Coleção Melgunov, Caixa 11, Pasta 63. 90 Anônimo, Vo vlasti Gubcheka, pp. 47-53. Eu lhe disse: "Vladimir Iliich, se você chegar ao poder, vai começar a enforcar os mencheviques no mesmo dia". Ele me deu uma olhadela e respondeu: "Só depois que tivermos enforcado o último social- revolucionário". Aí, franziu as sobrancelhas e deu uma risada.98 Contudo, os presos que pertenciam a essa categoria especial também eram bem mais difíceis de controlar. Muitos haviam passado anos em prisões czaristas e sabiam como montar greves de fome, como pressionar seus carcereiros, como estabelecer comunicação entre as celas para trocar informações, como organizar protestos em conjunto. O mais importante: sabiam como contatar o exterior - e quem contatar por lá. A maior parte dos partidos socialistas russos não-bolcheviques ainda tinha diretórios de exilados (geralmente em Berlim ou Paris) cujos membros podiam causar grandes prejuízos à imagem mundial dos bolcheviques. Em 1921, no III Congresso da Internacional Comunista, representantes do diretório externo dos social- revolucionários, o partido ideologicamente mais próximo dos bolcheviques (durante breve período, alguns de seus membros até chegaram a trabalhar em coalizão com esses últimos), leram em voz alta uma carta de seus camaradas encarcerados na Rússia. A carta provocou sensação no congresso, em grande parte porque afirmava que as condições prisionais na Rússia revolucionária eram piores que nos tempos do czar. "Nossos camaradas estão semimortos de fome", proclamava. "Muitos deles se encontram presos há meses, sem visita de parentes, sem correspondência, sem exercício físico."99 Os socialistas exilados tinham condições de agitar em favor dos prisioneiros, e o faziam, tal qual antes da Revolução. Imediatamente após o golpe bolchevique, vários revolucionários célebres, aí incluídas Vera Figner (autora de memórias sobre a vida em prisões czaristas) e Ekaterina Peshkova (mulher do escritor Máximo Gorki), ajudaram a restabelecer a Cruz Vermelha Política, uma organização de auxílio a presos que atuara clandestinamente antes da Revolução. Ekaterina conhecia bem Dzerzhinsky e se correspondia com ele de modo regular e cordial. Graças aos contatos e ao prestígio dela, a Cruz Vermelha Política recebeu o direito de visitar locais de encarceramento, falar com presos políticos, enviar-lhes remessas e até requerer a soltura daqueles que estavam enfermos - privilégios que a organização manteve durante boa parte da década de 1920.100 Posteriormente, essas atividades pareceriam tão inverossímeis ao escritor Lev Razgon, aprisionado em 1937, que ele ouvia as histórias da Cruz Vermelha Política contadas pela esposa (o pai dela fora um dos presos socialistas) como se fossem "contos de fadas".101 A má publicidade gerada pelos socialistas ocidentais e pela Cruz Vermelha Política incomodava um bocado os bolcheviques. Muitos tinham vivido anos no exílio e, por conseguinte, eram sensíveis às opiniões de seus antigos camaradas internacionais. Muitos também ainda acreditavam que a Revolução poderia propagar-se para o Ocidente a qualquer momento e não queriam que o progresso do comunismo fosse retardado pelas notícias negativas. Em 1922, as matérias da imprensa ocidental já os preocupavam o bastante para lançarem a primeira do que seriam muitas tentativas de disfarçar o terror comunista atacando o "terror capitalista". Com esse propósito, criaram uma 98 Service, Lenin, p. 186. 99 Hoover, Coleção Nicolaevsky, Caixa 9, Pasta 1. 100 Ibid., Caixa 99; RGASPI, Conjunto 76/3/87; Genrikh Yagoda, p. 265. 101 Razgon, p. 266. associação "alternativa" de auxílio a prisioneiros: a Sociedade Internacional de Ajuda às Vítimas da Revolução (MOPR, conforme seu acrônimo russo), que supostamente trabalharia para assistir aos "100 mil presos do capitalismo".102 Embora a seção berlinense da Cruz Vermelha Política tenha de imediato atacado a MOPR por tentar "silenciar os gemidos daqueles que estão morrendo nas prisões, campos de concentração e locais de degredo da Rússia", outros engoliram a história. Em 1924, a MOPR afirmava ter 4 milhões de membros e até organizou sua primeira conferência internacional, com representantes do mundo inteiro.103 A propaganda deixou sua marca. Quando pediram ao escritor francês Romain Rolland que comentasse a publicação de uma coletânea de cartas de socialistas encarcerados na Rússia, ele respondeu afirmando o seguinte: Há coisas quase idênticas acontecendo nas prisões da Polônia; nós as temos nas prisões da Califórnia, onde estão martirizando os trabalhadores da IWW;104 nós as temos nos calabouços ingleses das ilhas Andaman [...].105 A Cheka também procurou amenizar as notícias negativas, mandando os socialistas encrenqueiros para mais longe de seus contatos. Alguns foram enviados por decreto administrativo para o degredo em regiões longínquas, tal qual o regime czarista fizera. Outros foram mandados para campos remotos perto da cidade boreal de Arcangel e, em especial, para um campo estabelecido no antigo mosteiro de Kholmogory, centenas de quilômetros ao norte de Petrogrado, próximo ao mar Branco. Todavia, mesmo os desterrados para os locais mais distantes acabavam achando meios de comunicar-se. De Narim, longínqua região da Sibéria, um pequeno grupo de presos políticos num minúsculo campo de concentração conseguiu mandar carta para um jornal socialista no exílio, queixando-se de que estavam "tão categoricamente isolados do resto do mundo que apenas cartas referentes à saúde de parentes ou à nossa própria podem ter a esperança de chegar aos destinatários. Nenhum outro tipo de mensagem [...] nos chega". Esses presos assinalavam que, entre eles, encontrava-se Olga Romanova, anarquista de dezoito anos que fora despachada para um lugar particularmente remoto da região, "onde a fizeram passar três meses a pão e água".106 Tampouco o degredo distante garantia sossego para os carcereiros. Em quase toda a parte, os presos socialistas, acostumados ao tratamento privilegiado outrora dado aos prisioneiros políticos nas cadeias czaristas, exigiam jornais, livros, caminhadas, o direito ilimitado a correspondência e, sobretudo, o direito de escolherem os próprios porta-vozes ao lidarem com as autoridades. Quando os agentes locais da Cheka não entendiam e se negavam a conceder essas coisas (eles decerto não sabiam a diferença entre anarquista e baderneiro), os socialistas protestavam, às vezes com violência. Segundo uma descrição do campo de Kholmogory, um grupo de prisioneiros descobriu que 102 Hoover, Coleção Nicolaevsky, Caixa 99. 103 Ibid. 104 Industrial Workers of the World [Trabalhadores Industriais do Mundo], o mais organizado movimento operário revolucionário dos Estados Unidos, fundado em 1905 e influente até o final dos anos 10. (N. T.) 105 Letters fromRussian Prisons, pp. 1-15. 106 Ibid., pp. 20-28. era necessário travar uma lula pelas coisas mais elementares, como a concessão aos socialistas e anarquistas dos direitos comuns dos presos políticos. Nessa luta, eram submetidos a todos os castigos conhecidos, como confinamento solitário, espancamento, fome, disparos concertados do destacamento militar contra o edifício etc. Basta dizer que, no final do ano, a maioria dos detentos de Kholmogory podia acrescentar a seu histórico greves de fome que duravam de trinta a 35 dias [...].107 Esse mesmo grupo de presos acabou sendo transferido de Kholmogory para outro campo, em Petrominsk, também um mosteiro. De acordo com a petição que enviariam às autoridades, foram recebidos ali com "gritos e ameaças grosseiras", trancafiados seis de uma vez em minúsculas celas de monge e proibidos de praticar exercício ou ter acesso a livros ou material de escrita.108 O camarada Bachulis, comandante de Petrominsk, tentou quebrar o ânimo dos presos privando-os de luz e calor .- e, de tempos em tempos, atirando contra as janelas deles.109 Os presos reagiram lançando outra rodada interminável de greves de fome e cartas de protesto. No fim das contas, exigiram ser tirados do próprio campo, o qual afirmavam ser malárico.110 Outros chefes de campo também reclamavam de tais prisioneiros. Em carta a Dzerzhinsky, um deles escreveu que em seu campo "os Guardas Brancos que se julgam presos políticos" se organizaram numa "turma enérgica", impossibilitando que os guardas trabalhassem: "eles difamam a administração, caluniam-lhe o nome [...] desprezam o nome bom e honesto do trabalhador soviético".111 Alguns guardas resolviam as coisas eles mesmos. Em abril de 1921, um grupo de prisioneiros de Petrominsk se recusou a trabalhar e exigiu mais rações de comida. Fartas dessa insubordinação, as autoridades de Arcangel ordenaram que todos os 540 fossem condenados à morte. Foram devidamente fuzilados.112 Em outros lugares, as autoridades tentavam manter a paz pelo caminho oposto, atendendo a todas as reivindicações dos socialistas. Berta Babina, membro dos social-revolucionários, recordaria sua chegada à "ala socialista" da prisão de Butyrka (em Moscou) como um reencontro jubiloso com amigos, gente "da clandestinidade em São Petersburgo, dos meus anos de estudante e das muitas cidades e lugares menores onde morei durante minhas erranças". Os presos podiam fazer o que quisessem na prisão. Organizavam sessões matinais de ginástica, fundaram uma orquestra e um coro, criaram um "grêmio" que dispunha de periódicos estrangeiros e boa biblioteca. Conforme a tradição (remontando aos tempos pré-revolucionários), todo preso deixava seus livros quando era solto. Um conselho dos prisioneiros designava celas para todos, algumas das quais eram muitíssimo bem supridas de tapetes no chão e tapeçarias nas paredes. Outro preso lembraria que "flanávamos pelos corredores como se fossem bulevares".113 Para Berta, a vida na prisão parecia inverossímil: "Será que eles não conseguem nos prender a sério?"114 107 Ibid., pp. 162-65. 108 Ibid.; Melnik e Soshina. 109 Lettersfrom Russian Prisons, pp. 162-65. 110 Melnik e Soshina. 111 RGASPI, 17/84/395. 112 Doloi. 113 Guberman, pp. 72-74. 114 Bertha Babina-Nevskaya, "My First Prison, February 1922", in Vilensky, Till MyTale Is Told, pp. 97-109. sobreviventes, mas também na memória da polícia secreta soviética.123 Solovetsky pode não ter sido a única prisão da URSS nos anos 1920, mas era a prisão deles, a prisão da OGPU, onde essa polícia aprendeu a usar trabalho escravo com fins lucrativos. Em 1945, numa palestra sobre a história dos campos, o camarada Nasedkin, então principal administrador do sistema, afirmou não só que este teve origem em Solovetsky na década de 1920, mas também que todo o aparelho soviético de "trabalhos forçados como método de reabilitação" se iniciou ali em 1926.124 O arquipélago de Solovetsky, no mar Branco A primeira vista, essa declaração parece estranha, considerando que na URSS os trabalhos forçados já eram reconhecidos como forma de punição desde 1918. No entanto, ela se assemelhará menos estranha se virmos de que maneira o conceito de trabalhos forçados evoluiu na própria Solovetsky. Isso porque, nos primórdios, embora nas ilhas todos trabalhassem, os presos não estavam organizados em nada remotamente similar a um "sistema". Tampouco há provas de que o trabalho deles fosse rentável de algum modo. Antes de tudo, uma das duas categorias de presos em Solovetsky nem sequer trabalhava no começo. Eram os Cerca de trezentos presos políticos socialistas, que na realidade tinham começado a chegar à ilha principal em junho de 1923. Mandados do campo de Petrominsk, assim como da Butyrka e de outras prisões de Moscou e Petrogrado, foram de imediato levados para o Savvatvevo, um mosteiro menor, vários quilômetros ao norte do principal complexo monástico. Ali, os guardas de Solovetsky tinham como garantir que ficassem isolados dos outros presos e não os contaminassem com aquele seu entusiasmo pelos protestos e greves de fome. De início, concederam-se aos socialistas os "privilégios" de presos políticos que eles exigiam havia tanto tempo: jornais, livros e, dentro daquele cercado de arame farpado, liberdade de movimento e de trabalho. Cada um dos principais partidos políticos - a esquerda e a direita social-revolucionárias, os anarquistas, os social-democratas e depois os social-sionistas - escolhia seu próprio líder e ocupava recintos em sua própria ala do velho mosteiro.125 123 Ver Jakobson para uma descrição do sistema prisional dos anos 1920. 124 GARF, 9414/1/77. 125 Juri Brodsky, pp. 30-31; Olitskaya, vol. I, pp. 237-40; Malsagov, pp. 117-31. Para Elinor Olitskaya, jovem social-revolucionária de esquerda presa em 1924, o Sawatyevo no começo "não se parecia em nada com uma prisão" e foi um susto após os meses passados na sombria prisão de Lubyanka, em Moscou. O quarto de Elinor, uma antiga cela de monge no que se tornara a seção feminina da ala dos social-revolucionários, era claro, limpo e recém-lavado, com duas janelas abertas, grandes e largas. A cela era cheia de luz e ar. Nas janelas, não havia barras, é claro. No meio da cela, tinha-se uma pequena mesa, coberta com uma toalha branca. Junto à parede, quatro camas, com lençóis arrumados com capricho. Ao lado de cada uma, um pequeno criado-mudo. Neste, viam-se livros, cadernos e canetas. Enquanto Elinor se admirava com o local, com o chá servido em bules e com o açúcar num açucareiro, suas companheiras de cela lhe explicavam que as presas haviam criado aquele ambiente agradável de caso pensado: "queremos viver como seres humanos".126 Elinor logo descobriu que, embora sofressem de tuberculose e outras doenças e raramente tivessem comida bastante, os presos políticos de Solovetsky se mostravam extraordinariamente bem organizados, estando o "decano" de cada célula partidária responsável pelos serviços de almoxarifado, cozinha e distribuição de alimentos. Dado que ainda tinham status político especial, também podiam receber remessas tanto de parentes quanto da Cruz Vermelha Política. Embora essa última começasse a encontrar dificuldades (em 1922, seus escritórios sofreram batidas, e suas posses foram confiscadas), Ekaterina Peshkova, a bem relacionada líder da organização, ainda tinha autorização pessoal para mandar auxílio a presos políticos. Em 1923, ela despachou um vagão inteiro de víveres para aqueles presos do Sawatyevo. Um carregamento de roupas seguiu para o norte em novembro do mesmo ano.127 Era esta, portanto, a solução para o problema de relações públicas criado pelos presos políticos: dar-lhes mais ou menos o que pediam, mas colocá-los tão longe do resto das pessoas quanto fosse possível. Tal solução não duraria: o sistema soviético não toleraria exceções por muito tempo. Entrementes, era fácil desmascarar a ilusão - pois em Solovetsky havia outro grupo de prisioneiros, muitíssimo maior. "Ao desembarcarmos no chão de Solovetsky, todos sentíamos que estávamos entrando numa fase nova e estranha da vida", escreveu um preso político. "Pelas conversas com os criminosos, ficamos sabendo do regime terrível que a direção lhes aplicava."128 Com muito menos pompa e circunstância, a prisão principal do kremlin de Solovetsky também ia sendo rapidamente lotada com presos cuja situação não era tão garantida. De umas poucas centenas de detentos em 1923, os números subiram para 6 mil em 1925.129 Entre eles, havia oficiais e simpatizantes do Exército Branco, "especuladores", ex-aristocratas, marinheiros que haviam lutado no levante de Kronstadt e verdadeiros criminosos comuns. Para esses presos, era muito mais difícil ter chá em bules e açúcar em açucareiros. Ou melhor, difícil para alguns, mais fácil para outros - pois o que caracterizava a vida na prisão criminal do campo especial de Solovetsky naqueles primeiros 126 Olitskaya, pp. 237-40. 127 Hoover, Coleção Nicolaevsky, Caixa 99; e Hoover, Conjunto 89,73/34. 128 Letters from Russian Prisons, pp. 165-171. 129 Juri Brodsky, p. 194. tempos era sobretudo uma irracionalidade e uma imprevisibilidade que se iniciavam já no momento do desembarque. O memorialista e ex-condenado Boris Shiryaev escreve que, na primeira noite no campo, ele e os outros recém- chegados foram recebidos pelo camarada A. P. Nogtev, o primeiro comandante de Solovetsky. "Eu lhes dou as boas-vindas", disse-lhes Nogtev, com o que Shiryaev descreveu como "ironia". "Como vocês sabem, aqui não há autoridade soviética, apenas a autoridade de Solovetsky. Podem ir esquecendo qualquer direito que tenham tido antes. Aqui, temos leis próprias." A frase "não há autoridade soviética, apenas a autoridade de Solovetsky", seria usada inúmeras outras vezes, conforme atestam muitos memorialistas.130 Nos dias e semanas seguintes, a maioria dos presos vivenciaria a autoridade de Solovetsky" como combinação de negligência criminosa com crueldade fortuita. As condições de vida nas igrejas e celas monásticas adaptadas eram precárias, e pouca atenção se deu a melhorá-las. Na primeira noite na prisão de Solovetsky, o escritor OlegVolkov recebeu um lugar nos sploshnye nary, leitos que na realidade era pranchas largas (das quais voltaremos a falar) onde vários homens dormiam enfileirados. No que Volkov se deitou, os percevejos começaram a atacá-lo, "um depois do outro, como formigas; não consegui dormir". Ele saiu e foi de imediato envolvido por "nuvens de mosquitos [...] olhei com inveja para aqueles que dormiam profundamente, cobertos de parasitas".131 Fora do complexo principal do kremlin, as coisas não eram melhores. Oficialmente, a Slon compreendia nove campos distintos no arquipélago, cada um deles dividido em batalhões. Mas também se mantinham alguns presos em condições ainda mais primitivas, nas matas, perto dos locais de atividade madeireira.132 Dmitrii Likhachev, que depois se tornaria um dos mais famosos críticos literários da URSS, considerava-se privilegiado por não ter sido designado para um dos muitos campos anônimos na floresta. Ao visitar um, "fiquei doente com a visão daquele horror: pessoas dormiam em valas que tinham cavado, às vezes com as mãos nuas, durante o dia".133 Nas ilhas periféricas, a administração central dos campos exercia ainda menos controle sobre a conduta dos guardas e encarregados. Um preso, certo Kiselev, descreveu em suas memórias certo campo em Anzer, uma das ilhas menores. Comandado por Vanka Potapov (outro integrante da Cheka), o campo consistia de três alojamentos e um quartel de guardas, instalado numa antiga igreja. Os presos trabalhavam no corte de árvores, sem pausa, sem descanso e com pouca alimentação. Desesperados por conseguir alguns dias de folga, decepavam as próprias mãos e pés. Segundo Kiselev, Potanov conservava essas "pérolas" numa grande pilha e as mostrava aos visitantes, para os quais também se vangloriava de ter matado mais de quatrocentas pessoas com as próprias mãos. "Ninguém voltava de lá", escreveu Kiselev a respeito de Anzer. Mesmo que seu relato seja exagerado, ele indica o verdadeiro terror que os campos periféricos representavam para os presos.134 Em todas as ilhas, as catastróficas condições de higiene, o excesso de trabalho 130 Shiryaev, pp. 30-37. 131 Volkov, p. 53. 132 Juri Brodsky, p. 65. 133 Likhachev, Kniga bespokoisty, pp. 98-100. 134 Juri Brodsky, p. 190. uso de um "clube" que, pelo menos nas fotos, parece verdadeiramente burguês. As imagens mostram piano, parquete e retratos de Marx, Lênin e Lunacharsky (o primeiro ministro soviético da Cultura), tudo muito aconchegante.146 Usando o velho equipamento litográfico dos monges, os presos de Solovetsky também produziam jornais e mensários que traziam cartuns, poesia extremamente saudosa e ficção surpreendentemente franca. Na edição de dezembro de 1925 da Solovetskie Ostrova (nome que significa "ilhas Solovetsky"), um conto falava de uma ex-atriz que chegara à ilha principal, fora obrigada a trabalhar como lavadeira e não se acostumara à nova vida. A história termina com esta frase: "Solovetsky é amaldiçoada". Em outro conto, um ex-aristocrata que freqüentara "noitadas íntimas no Palácio de Inverno" consola-se com a nova situação só quando visita outro aristocrata e fala dos velhos tempos.147 Pelo visto, os clichês do realismo socialista ainda não eram obrigatórios. Nem todas essas narrativas têm o final feliz que depois seria obrigatório, e nem todos os prisioneiros ficcionais se adaptavam alegremente à realidade soviética. Os periódicos de Solovetsky também continham artigos mais eruditos, indo desde a análise de Likhachev sobre as regras de etiqueta dos criminosos na jogatina até trabalhos sobre a arte e a arquitetura das ruínas de igrejas de Solovetsky. Entre 1926 e 1929, a gráfica da Slon conseguiu lançar 29 edições do trabalho da Associação de Estudos Locais de Solovetsky. Esta conduzia pesquisas sobre a flora e a fauna do arquipélago, concentrando-se em determinadas espécies (os cervos-boreais, as plantas locais) e publicava artigos sobre olaria, correntes eólicas, minerais úteis e criação de animais de pele. Alguns presos ficaram tão interessados neste último tema que, em 1927, quando a atividade econômica do arquipélago estava no auge, um grupo deles importou algumas raposas-prateadas "reprodutoras" para melhorar a qualidade dos rebanhos locais. Entre outras coisas, a associação executou um levantamento geológico, o qual o diretor do museu de história das ilhas ainda usa.148 Esses mesmos presos privilegiados também participavam dos novos ritos e comemorações soviéticos, eventos dos quais uma geração posterior de detentos dos campos seria propositalmente excluída. Na edição de setembro de 1925 da Solovetskie Ostrova, um artigo descreve a comemoração do 1º de maio nas ilhas. Infelizmente, o tempo estava ruim: No 1° de maio, flores se abrem por toda a União Soviética, mas, em Solovetsky, o mar ainda está cheio de gelo, e há muita neve. Apesar disso, estamos nos preparando para comemorar o feriado proletário. Desde manhã cedo, há agitação nos alojamentos. Alguns se lavam. Outros fazem a barba. Um remenda as roupas. Outro engraxa as botas [...].149 146 SLON, vol. 111, maio, 1924 (GARF). 147 Solovetskie Ostrova, vol. 12, dezembro, 1925 (SKM). 148 Conversas com a diretora do SKM Tatyana Fokina, setembro 12, 1998. Ver também, por exemplo, Solovetskie Ostrova, 1925, nos 1-7; Solovetskie Ostrova, 1930, n° 1; ou boletins do Solovetskoe Obshchestvo Kraevedeniya, na coleção do museu ou na coleção do AKB. Ver também Dryakhlitsin. 149 Solovetskie Ostrova, vol. 9, setembro, 1925, pp. 7-8 (SKM). Ainda mais surpreendente (da perspectiva dos anos posteriores) era a grande persistência das cerimônias religiosas nas ilhas. Alexander V. A. Kazachkov, um ex-condenado, lembrou a "grandiosa" Páscoa de 1926. Não muito antes do feriado, o novo chefe da divisão exigiu que todos os que quisessem ir à igreja lhe apresentassem uma declaração. De início, quase ninguém o fez - as pessoas tinham medo das conseqüências. Mas, pouco antes da Páscoa, um número enorme apresentou suas declarações [...]. Ao longo da estrada para a igreja Onufrievskaya, a capela do cemitério, seguia uma grande procissão, com as pessoas caminhando em várias fileiras. Claro que nem todos coubemos na capela. Houve gente que ficou em pé no lado de fora, e os que chegaram atrasados nem conseguiam ouvir o ofício.150 Até a edição de maio de 1924 do Solovetskoi Lageram (outro periódico prisional) trazia um editorial cauteloso, mas positivo, a respeito da Páscoa, "um antigo feriado que comemora a chegada da primavera", o qual, "sob o estandarte vermelho, ainda se pode celebrar".151 Junto com os feriados religiosos, uns poucos dentre os monges que outrora habitavam o lugar também sobreviviam (para espanto de muitos presos) até bem depois de 1925. Serviam na condição de "monges-instrutores", supostamente transmitindo aos presos as habilidades necessárias para tocar os empreendimentos rurais e pesqueiros de lá, antes bem-sucedidos (o arenque de Solovetsky costuma ir à mesa do czar), assim como os segredos do complexo sistema de canais que os religiosos haviam utilizado durante séculos para ligar as igrejas da ilha principal. Com o passar dos anos, juntaram-se aos monges dezenas de outros padres soviéticos e membros da hierarquia eclesiástica, tanto ortodoxa quanto católica, que tinham se oposto ao confisco das propriedades da Igreja ou violado o "decreto sobre a separação entre Igreja e Estado". O clero, de certa maneira como os presos políticos socialistas, estava autorizado a viver à parte, num alojamento específico do kremlin, e também tinha permissão para realizar ofícios religiosos na capelinha do antigo cemitério, e isso até 1930-31. Aos outros presos, tal luxo só era concedido em ocasiões especiais. Esses privilégios parecem ter causado algum ressentimento, e havia tensões ocasionais entre os clérigos e os presos comuns. Uma detenta, removida para uma colônia materna especial na ilha de Anzer após ter dado à luz, recordou que as freiras dali "mantinham-se afastadas de nós, as descrentes [...], eram bravas, não gostavam das crianças e nos detestavam". Outros clérigos, conforme repetem várias memórias, tinham justamente a atitude oposta, dedicando-se à evangelização e às obras sociais ativas, tanto entre os criminosos como entre os presos políticos.152 Para quem o tinha, o dinheiro também podia comprar a dispensa do trabalho nas florestas e servir de seguro contra a tortura e a morte. Solovetsky contava com um restaurante que podia atender (ilegalmente) os presos. Quem tinha condições de pagar o suborno necessário também trazia de fora a própria 150 Reznikova, pp. 46-47. 151 Solovetskoe Lageram, vol. 3, maio, 1924 (SKM) 152 Reznikova, pp. 7-36; Hoover, Coleção Melgunov, Caixa 7, Pasta 44. comida.153 Em certa altura, a administração do campo até estabeleceu "lojas" nas quais os presos podiam adquirir itens de vestuário a preços duas vezes mais altos que nos estabelecimentos soviéticos normais.154 Uma pessoa que teria conseguido livrar-se do sofrimento pagando era o "conde Violaro", uma figura de aventureiro cujo nome aparece (com ampla variedade de grafias) em várias memórias. O conde, em geral descrito como o "embaixador mexicano no Egito", cometera o erro de, logo após a Revolução, ter ido visitar a família da mulher na Geórgia soviética. Tanto ele quanto a esposa foram presos e deportados para o extremo norte. Embora de início ficassem encarcerados (com a condessa tendo de trabalhar como lavadeira), a lenda do campo conta que, pela quantia de 5 mil rublos, o conde comprou o direito de morarem numa casa em separado, com cavalo e serviçal.155 Outros se recordam da presença de um rico comerciante indiano de Bombaim, o qual depois foi embora com a ajuda do consulado britânico em Moscou. Posteriormente, as memórias desse indiano seriam publicadas pela imprensa dos exilados.156 Esses e outros exemplos de presos ricos que viviam bem (e se iam embora logo) eram tão notáveis que, em 1926, um grupo de detentos menos privilegiados escreveu carta ao Presidium do Comitê Central do Partido Comunista, denunciando "o caos e a violência que dominam o campo de concentração de Solovetsky". Usando frases que pretendiam influenciar a liderança comunista, queixavam-se de que "quem tem dinheiro consegue arranjar-se, dessa maneira jogando todas as dificuldades nos ombros dos operários e camponeses sem tostão". Alegavam que, enquanto os ricos compravam tarefas mais fáceis, "os pobres trabalham de catorze a dezesseis horas por dia".157 No fim das contas, não seriam eles os únicos descontentes com as práticas irregulares dos comandantes de campo de Solovetsky. Se a violência fortuita e o tratamento injusto incomodavam os presos, quem estava em escalões mais altos da hierarquia soviética se inquietava com questões um tanto diferentes. Na metade da década de 1920, já ficara claro que a Slon, assim como o sistema prisional "comum", não conseguira atingir a mais importante das metas estabelecidas para os campos: que eles se tornassem auto-sustentáveis.158 Na realidade, não apenas os campos de concentração soviéticos - tanto os "especiais" quanto os comuns - não vinham dando lucro, como também seus comandantes ficavam requerendo mais fundos o tempo todo. Nisso, Solovetsky se assemelhava às outras prisões soviéticas da época. No arquipélago, os extremos de crueldade e conforto eram provavelmente mais flagrantes que em outros lugares, devido à natureza especial dos presos e dos guardas; contudo as mesmas irregularidades caracterizavam outros campos e prisões pela URSS daquele tempo. Em teoria, o sistema prisional comum também consistia em "colônias" de trabalho ligadas a fazendas, oficinas e fábricas, e sua atividade econômica era igualmente mal organizada e não- 153 Nikolai Antsiferov, "Tri glavy iz vospominanii", in Pamyat, vol. 4, pp. 75-76. 154 Klinger, pp. 170-77. 155 Ibid., pp. 200-1; Malsagov, pp. 139-45; Rozanov, p. 55; Hoover, Coleção Melgunov, Caixa 7. 156 Tsigankov, pp. 96-127; Hoover, Coleção Melgunov, Caixa 7. 157 Istoriya otechestvo v dokumentakh, volume 2: 1921-1939, pp. 51-52. 158 Jakobson, pp. 70-102. república soviética à qual Solovetsky pertencia então), realmente deixam clara a importância de Frenkel. Mesmo que não tenha inventado cada aspecto do sistema, ele encontrou um jeito de transformar um campo prisional numa entidade econômica aparentemente rentável, e o fez numa época, num lugar e de uma maneira que podem muito bem ter chamado a atenção de Stalin para a idéia. Mas a confusão tampouco é surpreendente. O nome de Frenkel aparece em muitas das memórias escritas sobre os primeiros tempos do sistema de campos, e por elas fica claro que, mesmo em vida, a identidade daquele homem já estava envolta em mito. Fotos oficiais mostram um indivíduo de aparência calculadamente sinistra, usando boné de couro e bigode muito bem aparado; um memorialista recorda que Frenkel "se trajava como um dândi".168 Um de seus colegas da OGPU, o qual o admirava muitíssimo, surpreendia-se com sua memória infalível e sua aptidão para fazer contas de cabeça: "Ele nunca punha nada no papel".169 Depois, a propaganda soviética também se desfaria em eloqüentes elogios à "incrível memória" dele e falaria de seus "excelentes conhecimentos do trabalho madeireiro e florestal em geral", sua perícia em matéria de agricultura e engenharia e sua excelente cultura geral: Certo dia, por exemplo, ele entabulou conversa com dois trabalhadores do truste que fabrica sabonetes, perfumes e cosméticos. Logo os reduziu ao silêncio, pois exibiu enorme conhecimento sobre perfumaria e até se revelou perito no mercado mundial e nas preferências e aversões olfativas dos habitantes do arquipélago Malaio!170 Outros o odiavam e temiam. Em 1928, numa série de reuniões especiais da célula do Partido em Solovetsky, os colegas de Frenkel o acusaram de organizar uma rede própria de espiões, "de modo que ele, antes dos outros, sabe tudo sobre todos".171 Em 1927, histórias a seu respeito chegavam até Paris. Num dos primeiros livros sobre Solovetsky, um anticomunista francês escreveu que, "graças às iniciativas pavorosamente insensíveis [de Frenkel], milhões de infelizes se vêem oprimidos por terríveis trabalhos forçados, por sofrimentos atrozes".172 Os contemporâneos de Frenkel não se mostram claros a respeito das origens dele. Soljenitsin o chama de "judeu turco nascido em Constantinopla".173 Outro o descreveu como "industrial húngaro".174 Shiryaev alegava que Frenkel era oriundo de Odessa, ao passo que outros diziam que viera da Áustria, ou da Palestina, ou que trabalhara na fábrica da Ford nos Estados Unidos.175 A história fica um tanto mais clara quando se lê seu registro de preso, que informa que ele nasceu em Haifa em 1883, época em que a Palestina era parte do Império Otomano. De lá, ele provavelmente seguiu (talvez por Odessa, talvez pela Áustria-Hungria) para a URSS, onde se descreveu como "comerciante".176 Em 1923, as autoridades o prenderam por "ter atravessado 168 Shiryaev, p. 138. 169 Chukhin, Kanaloarmeetsi, pp. 30-31. 170 Gorky, Belomor, pp. 226-28. 171 GAOPDFRK, 1033/1/35. 172 Duguet, p. 75. 173 Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 76. 174 Malsagov, pp. 61-73. 175 Shiryaev, pp. 137-38; Rozanov, pp. 174-91; Narinskii, Vremya tyazhkikh potryasenii, pp. 128-49. 176 Rozanov, pp. 174-91; Shiryaev, pp. 137-48. fronteiras ilegalmente", o que podia significar que era um comerciante que se permitia fazer algum contrabando, ou que era apenas um comerciante que se tornara demasiado bem-sucedido para o gosto soviético. Foi condenado a dez anos de trabalhos forçados em Solovetsky.177 Também permanece um mistério o modo exato pelo qual Frenkel se metamorfoseou de preso em comandante de campo. A lenda diz que, ao chegar lá, ele ficou tão horrorizado com a má organização, com o desperdício puro e simples de dinheiro e mão-de-obra, que sentou e escreveu uma carta muito ao ponto, descrevendo de maneira precisa o que estava errado com cada uma das atividades econômicas locais, entre elas a silvicultura, a agropecuária e a olaria. Pôs a carta na "caixa de reclamações" dos presos, onde ela chamou a atenção de um administrador, que, por sua vez, a enviou como curiosidade para Genrikh Yagoda, o chekista que então subia rapidamente na burocracia da polícia secreta e acabaria por tornar-se o líder dela. Consta que Yagoda teria exigido conhecer de imediato o autor da carta. De acordo com um contemporâneo (e com Soljenitsin, que não explicita nenhuma fonte), o próprio Frenkel afirmou que, em certa altura, foi levado às pressas para Moscou, onde teria discutido suas idéias também com Stalin e um dos sequazes deste, Kaganovich.178 É aí que a lenda fica mais nebulosa: embora os registros realmente mostrem que Frenkel se encontrou com Stalin nos anos 1930, e embora tenha sido protegido por esse último durante os expurgos no Partido, ainda não se achou nenhuma comprovação de uma visita na década anterior. Isso não quer dizer que ela não tenha acontecido - pode muito ser que os registros não tenham perdurado.179 Algumas provas circunstanciais corroboram tais histórias. Naftaly Frenkel foi, por exemplo, promovido de preso a guarda em surpreendentemente pouco tempo, até pelos padrões caóticos da Slon. Em novembro de 1924, quando estava no campo havia menos de um ano, a administração da Slon já solicitara sua soltura antecipada. O requerimento foi aprovado em 1927. Entrementes, a administração do campo apresentara regularmente declarações à OGPU que descreviam Frenkel nos termos mais elogiosos: "no campo, ele se portou como trabalhador tão excepcionalmente talentoso que ganhou a confiança da administração da Slon e é tratado como autoridade [...] é um dos raros trabalhadores responsáveis".180 Sabemos ainda que Frenkel organizou e administrou o Departamento Econômico-comercial (Ekonomicheskaya Kommercheskaya Chast) da Slon e, nessa condição, procurou tornar os campos de Solovetsky não apenas auto- sustentáveis, conforme requerido pelos decretos sobre os campos de concentração, mas também realmente lucrativos - a ponto de terem começado a tirar trabalho de outros empreendimentos. Embora estes fossem estatais, e não privados, ainda havia elementos de concorrência econômica na URSS dos anos 1920, e Frenkel se aproveitou disso. Em setembro de 1925, com o Departamento Econômico-comercial sob sua direção, a Slon já conquistara o direito de cortar 130 mil metros cúbicos de madeira na Carélia, tendo oferecido condições comerciais melhores que as de determinada empresa civil. A Slon também se tornara cotista no Banco Comunal da Carélia e disputava o direito 177 Registro de prisioneiro de Frenkel. Hoover, St. Petersburg Memorial Collection. 178 Chukhin, Kanaloarmeetsi, pp. 30-31; Soljenitsin, The Gulag Archipelago, vol. II, p. 78. 179 Ver "Posetiteli kabinetu I. V Staling", Istoricheskii Arkhiv, nº 4, 1998, p. 180. 180 Hoover, St. Petersburg Memorial CoUection. de construir uma estrada que iria de Kem à cidade de Ukhta, no extremo norte.181 Desde o começo, as autoridades da Carélia ficaram enervadas com toda essa atividade, em especial porque inicialmente haviam se oposto a própria construção do campo.182 Depois, suas queixas foram aumentando de intensidade. Numa assembléia convocada para discutir a expansão da Slon, autoridades locais reclamaram de que o campo tinha acesso injusto à mão-de- obra barata e, portanto, deixava sem trabalho os madeireiros comuns. Posteriormente, o clima nessas reuniões mudou, e os presentes levantaram objeções mais sérias. Em fevereiro de 1926, numa assembléia do Conselho Careliano de Comissários do Povo (o governo da República Careliana), vários líderes locais atacaram a Slon por exagerar nos preços cobrados a eles e exigir dinheiro demais para construir a estrada de Kem a Ukhta. "Fica claro", resumiu um irado camarada Yuzhnev, que "a Slon é um kommersant, um comerciante com mãos grandes e ávidas, e que seu objetivo básico é o lucro."183 A estatal mercantil da Carélia também ficou em pé de guerra contra a decisão da Slon de abrir uma loja própria em Kem. A estatal não tinha recursos para estabelecer negócio semelhante, mas a Slon, que podia exigir dos presos jornadas de trabalho mais longas e pagar-lhes bem menos (na realidade, nada), conseguiu fazê-lo.184 Pior: as autoridades protestavam que os vínculos especiais da Slon com a OGPU lhes permitiam desconsiderar as leis locais e não contribuir para o orçamento da região.185 A discussão sobre a lucratividade, eficiência e justiça da mão-de-obra prisional continuaria pelo quarto de século seguinte (e voltará a ser abordada mais adiante, de modo mais completo). Contudo, em meados da década de 1920, as autoridades locais da Carélia não estavam levando a melhor no debate. Em seus relatórios de 1925 sobre as condições econômicas no campo de Solovetsky, o camarada Fyodor Eichmanns (na época o segundo de Nogtev, embora depois viesse a comandar o campo) se gabava das realizações econômicas da Slon, afirmando que a olaria, antes em "estado deplorável", agora prosperava; que o corte de madeira já superava a meta anual; que a usina elétrica fora concluída; e que a produção de pescado dobrara.186 Versões desses relatórios seriam publicadas para consumo popular tanto nos periódicos de Solovetsky quanto em órgãos de outras regiões da URSS.187 Traziam cálculos cuidadosos: um relatório estimava em 29 copeques (centavos de rublo) o custo médio diário das rações e em 34,57 rublos o custo anual da indumentária. Constava que o gasto total com cada preso, aí incluídos o traslado e a assistência médica, era de 211,67 rublos por ano.188 Embora em 1929 o campo apresentasse um déficit de 1,6 milhão de rublos189 (bem possivelmente porque a OGPU estava afanando dinheiro do caixa), o suposto êxito econômico de Solovetsky ainda era muito alardeado. 181 NARK, 690/6/(1/3). 182 Baron, pp. 615-21. 183 NARK, 690/3/(17/148). 184 Ibid. 185 Kulikov, p. 99. 186 GAOPDFRK, 1033/1/15. 187 Nogtev, "USLON", pp. 55-60; Nogtev, "Solovki", 1926, pp. 4-5. 188 Juri Brodsky, p. 75. 189 O déficit de Solovetsky é mencionado em Khlevnyuk, "Prinuditelniy trud"; também GAOPDFRK, 1051/1/1. haviam traçado entre quem fora condenado por atividades criminais e quem fora condenado por atividades anti-revolucionárias, uma vez que ambos os grupos eram mandados juntos ao continente para trabalhar nos enormes projetos de abate de árvores e processamento de madeira na Carélia. A Slon já não reconhecia o status de preso privilegiado; em vez disso, via todos os prisioneiros como trabalhadores braçais em potencial.197 Os residentes socialistas do alojamento do Sawatyevo representavam um problema maior. Ficava claro que esses presos políticos não se encaixavam em nenhuma idéia de eficiência econômica, pois se negavam, por princípio, a realizar qualquer tipo de trabalho forçado. Recusavam-se até a cortar a própria lenha. "Estamos em degredo administrativo", reclamou um deles, "e a administração está obrigada a suprir todas as nossas necessidades."198 Não chega a surpreender que tal atitude começasse a causar ressentimento na administração do campo. O comandante Nogtev, em especial, embora houvesse negociado pessoalmente com os presos políticos de Petrominsk na primavera de 1923, e lhes tivesse prometido um regime mais livre em Solovetsky se concordassem em ir para lá pacificamente, parece ter-se melindrado com as intermináveis exigências deles. Tinha de discutir com eles por causa da liberdade de movimentos, do acesso aos médicos, do direito de corresponderem-se com o mundo lá fora. Finalmente, em 19 de dezembro de 1923, no auge de uma altercação particularmente azeda a respeito do toque de recolher, os soldados que guardavam o alojamento do Sawatyevo abriram fogo contra um grupo de presos políticos, matando seis. O episódio causou furor no estrangeiro. A Cruz Vermelha Política contrabandeou para fora do país informes sobre a fuzilaria. Surgiram relatos na imprensa ocidental antes mesmo que na Rússia, e houve apressada troca de telegramas entre a ilha e a liderança do Partido Comunista. De início, as autoridades do campo defenderam os disparos, afirmando que os presos haviam desobedecido ao toque de recolher e que os soldados tinham dado três advertências antes de atirar. Depois, em abril de 1924, embora não chegasse a reconhecer que os soldados não tinham dado nenhuma advertência (e o consenso entre os presos é de que não deram mesmo), a administração do campo forneceu uma análise mais detalhada do que ocorrera. Os presos políticos, explicava o relatório, eram uma "classe diferente" daquela à qual pertenciam os soldados designados para guardá-los. Os presos passavam o tempo lendo livros e jornais; os soldados não tinham livros nem jornais. Os presos consumiam pão branco, manteiga e leite; os soldados não recebiam nada disso. Era uma "situação anormal". Acumulara-se um ressentimento natural, dos trabalhadores para com os não- trabalhadores; e, quando os presos desafiaram o toque de recolher, foi inevitável que houvesse derramamento de sangue.83 Numa reunião do Comitê Central do Partido Comunista, em Moscou, os administradores do campo, para corroborar essas conclusões, leram em voz alta cartas dos presos: "Estou bem disposto e bem alimentado [...] por ora, não precisam mandar roupas nem alimentos". Outras missivas descreviam as lindas vistas.199 Depois, quando algumas dessas cartas foram publicadas na imprensa soviética, presos insistiram em que haviam escrito tais descrições idílicas da vida na ilha só para 197 Juri Brodsky, p. 115. 198 Letters from Russian Prisons, pp. 183-88. 83. Hoover, Conjunto 89, 73/32. 199 Ibid., 73/34. tranqüilizar os parentes.200 Indignado, o Comitê Central resolveu agir. Uma comissão chefiada por Gleb Boky (o maioral da OGPU que estava encarregado dos campos) fez uma visita aos campos de Solovetsky e ao estabelecimento prisional de trânsito de Kem. Em outubro de 1924, seguiu-se uma série de artigos no Izvestiya. "Quem acredita que Solovetsky seja uma prisão deprimente e sombria, onde as pessoas ficam inativas, perdendo o tempo em celas superlotadas, está muito enganado", escreveu N. Krasikov. "O campo inteiro consiste numa enorme organização econômica de 3 mil trabalhadores braçais, atuando nos mais diversos tipos de produção." Tendo entoado loas à indústria e à agricultura do lugar, Krasikov passava a descrever a vida no alojamento dos socialistas no Sawatyevo: A vida que levam pode ser caracterizada como anarcointelectual, com todos os aspectos negativos dessa forma de existência. A contínua ociosidade, a insistência nas mesmas dissensões políticas, as brigas de família, as disputas sectárias e, sobretudo, uma atitude agressiva e hostil para com o governo, em geral, e a administração local e os guardas do Exército Vermelho, em particular [...], tudo isso combinado faz que aquelas trezentas pessoas (mais ou menos) se mostrem refratárias a toda medida e toda tentativa das autoridades locais para introduzir regularidade e organização em suas vidas.201 Em outro periódico, as autoridades soviéticas afirmavam que os presos socialistas usufruíam rações melhores que as do Exército Vermelho. Ainda mais: tais presos tinham liberdade para encontrar-se com parentes (de que outra maneira poderiam contrabandear informações para fora?) e dispunham de médicos à vontade, muito mais do que o normal nas aldeias de trabalhadores. Desdenhosamente, o artigo também alegava que eles exigiam "medicamentos raros e caros", assim como coroas e pontes de ouro nos dentes.202 Era o começo do fim. Após uma série de discussões, durante as quais o Comitê Central ponderou e rejeitou a idéia de mandar esses presos para o exílio no exterior (preocupava-se com o impacto disso sobre os socialistas ocidentais - especialmente, por alguma razão, sobre o Partido Trabalhista britânico), tomou-se uma decisão.203 Ao amanhecer de 17 de junho de 1925, soldados cercaram o mosteiro de Sawatyevo. Deram duas horas para que os presos fizessem as malas. Em seguida, conduziram-nos marchando para o porto, obrigaram-nos a embarcar e os despacharam para longínquas prisões na Rússia central, de regime realmente fechado - Tobolsk, na Sibéria ocidental, e Verkhneuralsk, nos Urais -, onde os presos encontraram condições muito piores que as do Sawatyevo.204 Um deles escreveu: celas trancadas, o ar contaminado pelo velho e fétido balde sanitário, os presos políticos isolados uns dos outros [...] nossas rações são piores que em Solovetsky. A administração se nega a reconhecer nosso 200 Letters from Russian Prisons, pp. 218-20. 201 Krasikov, p. 2. 202 Letters from Russian Prisons, p. 215. 203 Hoover, Conjunto 89, 73/34, 35, e 36. 204 Hoover, Coleção Nicolaevsky, Caixa 782; Coleção Melgunov, Caixa 8. starosta [líder de grupo]. Não há nem hospital nem assistência médica. A prisão compreende dois pisos. As celas do térreo são úmidas e escuras. Nelas ficam os camaradas doentes, alguns dos quais tísicos [...].205 Embora continuassem lutando por seus direitos, enviando cartas para o exterior, telegrafando mensagens uns para os outros pelas paredes das prisões e organizando greves de fome, a propaganda bolchevique seguia sufocando os protestos dos socialistas. Em Berlim, Paris e Nova York, as antigas associações de auxílio aos presos começaram a encontrar maior dificuldade para coletar fundos.206 "Quando se deram os acontecimentos de 9 de setembro", escreveu um prisioneiro a um amigo que estava fora da Rússia, referindo-se aos seis presos que haviam morrido baleados em 1923, "achamos subjetivamente que haveria uma convulsão no mundo - nosso mundo socialista. Mas parece que ele não notou os acontecimentos de Solovetsky, e aí um som de risada adentrou na tragédia."207 No final dos anos 1920, os presos socialistas já não tinham status diferenciado. Compartilhavam suas celas com bolcheviques, trotskistas e criminosos comuns. Na década seguinte, os presos políticos (ou melhor, "contra- revolucionários") seriam considerados não uns privilegiados, mas elementos inferiores, ficando abaixo dos criminosos na hierarquia dos campos. Não mais sendo cidadãos com direitos do tipo que os antigos presos políticos haviam defendido, eles interessavam a seus carcereiros apenas na medida em que se mostravam aptos para o trabalho. E só quando trabalhavam recebiam comida suficiente para permanecer vivos. 3. 1929: A GRANDE GUINADA Quando os bolcheviques chegaram ao poder, eram moles e bonzinhos com os inimigos deles [...] começamos cometendo um erro. A indulgência para com tal força foi um crime contra as classes laboriosas. Isso logo ficou evidente [...]. Josef Stalin208 Em 20 de junho de 1929, o navio Gleb Boky atracou no pequeno porto atrás do kremlin de Solovetsky. Bem acima, presos acompanhavam a cena com grande expectativa. Em vez dos condenados emaciados e calados que costumavam desembarcar do Gleb Boky, um saudável e enérgico grupo de homens, e uma mulher, conversava e gesticulava enquanto caminhava. Nas fotos tiradas naquele dia, a maioria parece estar de uniforme: entre eles, havia vários chekistas de destaque, inclusive o próprio Gleb Boky. Um deles, mais alto que os restantes, dono de um basto bigode, estava trajado com mais simplicidade, usando sobretudo comum e boné de trabalhador. Era o romancista Máximo Gorki. Dmitrii Likhachev era um dos presos que assistiam da janela, e ele também se 205 Hoover, Coleção Nicolaevsky, Caixa 782, Pasta 6. 206 Ibid., Pasta 1. 207 Letters from Russian Prisons, p. 160. 208 Stalin entrevistado por Emil Ludwig, 1934, in Silvester, pp. 311-22. personalidades criminosas e associais em cidadãos soviéticos úteis. Gorki estava reavivando a idéia de Dzerzhinsky de que os campos deveriam ser não meras penitenciárias, mas "escolas do labor", especialmente concebidas para moldar o tipo de trabalhador requerido pelo novo sistema soviético. A seu ver, a meta definitiva do experimento era assegurar a "abolição das prisões" - e ele estava conseguindo. "Se alguma das supostas sociedades cultas da Europa se arrojasse a realizar uma experiência como a dessa colônia", concluía Gorki, "e se semelhante experiência rendesse frutos como os que a nossa rendeu, tal país faria soar todas as trombetas e se vangloriaria de seu feito." Gorki imaginava que só a "modéstia" dos líderes soviéticos os impedira de ter a mesma atitude. Consta que, posteriormente, Gorki disse que nem uma única frase de seu ensaio sobre Solovetsky ficara "intocada pela pena do censor". Na realidade, não sabemos se ele escreveu o que escreveu por ingenuidade, por um desejo calculado de enganar os leitores ou por imposição dos censores.218 Quaisquer que tenham sido suas motivações, esse ensaio de 1929 sobre Solovetsky se tornaria uma pedra fundamental para firmar as atitudes tanto públicas quanto oficiais em face do novo e muitíssimo mais extenso sistema de campos que estava sendo gestado naquele mesmo ano. A propaganda bolchevique anterior defendera a violência revolucionária como um mal necessário, ainda que temporário, uma força depuradora transitória. Gorki, ao contrário, fez a violência institucionalizada dos campos de Solovetsky parecer um componente lógico e natural da nova ordem e ajudou a levar o público a resignar-se ao poder crescente e totalitário do Estado.219 Ao fim e ao cabo, 1929 seria lembrado por causa de muitas outras coisas além do ensaio de Gorki. Naquele ano, a Revolução já amadurecera. Quase uma década se passara desde o fim da Guerra Civil. Lênin morrera havia muito. Experimentos econômicos de vários tipos - a Nova Política Econômica, o comunismo de guerra - tinham sido testados e abandonados. Da mesma forma que o desconjuntado campo de concentração do arquipélago de Solovetsky se tornara a rede de campos conhecida como Slon, o terror aleatório dos primeiros anos da URSS amainara, sendo substituído por uma perseguição mais sistemática àqueles que o regime considerava seus opositores. Em 1929, a Revolução também já adquirira um tipo muito diferente de líder. No decorrer dos anos 1920, Josef Stalin suplantara ou eliminara primeiro os inimigos dos bolcheviques e depois os inimigos dele próprio, em parte encarregando-se das decisões do Partido sobre pessoal, em parte fazendo pródigo uso de informações secretas reunidas para seu benefício pela polícia secreta, na qual ele tinha particular interesse. Stalin lançou uma série de expurgos, que de início significavam a expulsão do Partido, e providenciou para que eles fossem anunciados em assembléias de massa exaltadas e recriminatórias. Em 1937 e 1938, esses expurgos se tornariam letais: à expulsão do partido freqüentemente se seguia uma pena de prisão - ou a morte. Com extraordinária astúcia, Stalin também acabou com Leon Trotski, seu mais importante rival na luta pelo poder. Primeiro, desacreditou Trotski; depois, o 218 Khesto, pp. 244-45. 219 Tolczyk, pp. 94-97. Minha interpretação do ensaio de Gorki é baseada nas perspicazes observações de Tolczyk. desterrou em uma ilha ao largo da Turquia; em seguida, usou-o para estabelecer um precedente. Depois que Yakov Blyumkin, agente da OGPU e ardoroso partidário de Trotski, visitou seu herói no exílio turco (e voltou de lá com uma mensagem de Trotski a seus seguidores), Stalin fez que Blyumin fosse condenado e executado. Dessa maneira, demonstrou que o Estado se dispunha a usar todo o poder de seus órgãos repressivos não apenas contra membros de outros partidos socialistas e o antigo regime, mas também contra dissidentes dentro do próprio Partido Bolchevique.220 Em 1929, porém, Stalin ainda não era o ditador que se tornaria no final da década seguinte. É mais exato dizer que, naquele ano, Stalin estabeleceu as políticas que acabariam por consagrar o poder dele e, simultaneamente, transformar a economia e a sociedade soviéticas de tal maneira que elas ficariam irreconhecíveis. Historiadores ocidentais deram a essas políticas o nome "Revolução de Cima Para Baixo" ou "Revolução Stalinista". Stalin as denominou a "Grande Guinada". No cerne dessa revolução de Stalin estava um novo programa de industrialização extremamente - quase histericamente - rápida. Ao mesmo tempo, a Revolução Soviética ainda não acarretara melhoria material real na vida da maior parte das pessoas. Pelo contrário: os anos da Revolução, da Guerra Civil e da experimentação econômica haviam provocado maior empobrecimento. Então, talvez percebendo o crescente descontentamento popular com a Revolução, Stalin partiu para mudar as condições de vida do povo comum - radicalmente. Com esse objetivo, o governo soviético aprovou em 1929 um novo "Plano Qüinqüenal", um programa econômico que almejava um aumento anual de 20% na produção da indústria. Reinstaurou-se o racionamento de comestíveis. Durante algum tempo, abandonou-se a semana de cinco dias úteis. Em vez disso, o trabalho se baseou em turnos, para que as fábricas não parassem em momento algum. Em projetos de alta prioridade, não se desconheciam turnos de 36 horas, e alguns operários ficavam no trabalho uma média de trezentas horas por mês.221 O espírito da época, imposto de cima mas entusiasticamente adotado embaixo, era uma forma de competição permanente, na qual burocratas e diretores de fábrica, operários e escriturários disputavam uns com os outros para cumprir as metas do Plano Qüinqüenal, superá-las ou, pelo menos, propor maneiras mais novas e mais rápidas de superá-las. Simultaneamente, a ninguém se permitia duvidar da sensatez do Plano. Isso valia para os mais altos escalões: líderes do Partido que punham em dúvida o valor da industrialização apressada não ficavam muito tempo no cargo. Valia também para os escalões mais baixos. Um sobrevivente daqueles tempos lembrou que, no jardim-de-infância, marchava pela sala de aula carregando um pequeno estandarte e cantando: Cinco em quatro, Cinco em quatro, Cinco em quatro, E não em cinco! Infelizmente, o significado dessa frase - que o Plano Qüinqüenal seria 220 Tucker, Stalin in Power, pp. 125-27. 221 Payne, pp. 270-71. completado em quatro anos - escapava inteiramente ao menino.222 Como seria o caso com todas as grandes iniciativas soviéticas, o início da industrialização maciça criou categorias inteiramente novas de criminosos. Em 1926, o Código Penal fora reescrito para incluir, entre outras coisas, uma definição ampliada do artigo 58, que definia crimes "contra-revolucionários". Tendo tido antes apenas um ou dois parágrafos, o artigo 58 agora continha dezoito incisos - e a OGPU se utilizava de todos, sobretudo para prender especialistas técnicos.223 Como seria de prever, não se conseguia acompanhar o ritmo acelerado da mudança. Tecnologia primitiva, aplicada com demasiada pressa, causava erros. Alguém precisava levar a culpa. Donde as prisões dos "destruidores" e "sabotadores", cujos propósitos malévolos impediam a economia soviética de corresponder ao que a propaganda alardeava. Alguns dos primeiros grandes julgamentos públicos - o de Shakhty, em 1928; o do Partido Industrial, em 1920 - eram na realidade processos contra engenheiros e integrantes da intelligentsia técnica. O mesmo ocorria com o processo Metro- Vickers, de 1933, que atraiu muita atenção externa porque entre os réus estavam tanto russos como britânicos, todos acusados de "espionagem e sabotagem" em favor da Grã-Bretanha.224 Mas haveria outras fontes de presos. Isso porque, em 1929, o regi-|me soviético também acelerou o processo de coletivização forçada da agricultura, uma vasta convulsão que, em certos sentidos, foi mais profunda que a própria Revolução Russa. Num período incrivelmente pequeno, os comissários rurais obrigaram milhões de camponeses a abrir mão de suas pequenas propriedades e ingressar em fazendas coletivas, muitas vezes expulsando-os de terras que as famílias desses lavradores cultivavam fazia séculos. A transformação enfraqueceu a agricultura soviética de maneira permanente e criou as condições para as terríveis e devastadoras fomes que ocorreriam na Ucrânia e na Rússia meridional em 1932 e 1934 - e que matariam entre 6 milhões e 7 milhões de pessoas.225 A coletivização também destruiu - para sempre - a percepção russa de continuidade com o passado. Milhões resistiram à coletivização, escondendo cereais nos porões ou se negando a cooperar com as autoridades. Esses refratários eram tachados de kulaks (camponeses ricos), um termo que (de modo muito semelhante à definição de "sabotador") era tão vago que quase todo o mundo se encaixava nele. Ter uma vaca ou um quarto extras já bastava para qualificar como kulaks até camponeses que era visivelmente pobres; a acusação de algum vizinho invejoso tinha o mesmo efeito. Para quebrar a resistência dos kulaks, o regime, na prática, ressuscitou a velha tradição czarista do degredo administrativo. De um dia para o outro, caminhões e vagões simplesmente chegavam a uma aldeia e levavam embora famílias inteiras. Alguns kulaks foram fuzilados; outros, presos e condenados aos campos de concentração. Ao fim e ao cabo, porém, o regime degredou a maioria deles. Entre 1930 e 1933, mais de 2 milhões de kulaks foram desterrados para a Sibéria, o Cazaquistão e outras regiões subpovoadas da URSS, onde passaram o resto da vida como "degredados especiais", proibidos de sair das aldeias que lhes couberam. 222 Tucker, Stalin in Power, p. 96. 223 Sbornik, pp. 22-26. 224 Ver relatos em Tucker, Stalin in Power, e Conquest, Stalin, bem como em Getty e Naumov. 225 Ver Harvest ofSorrow de Conquest, ainda o mais abrangente relato sobre a coletivização e a fome. O relato de Ivnitskii faz uso fiel dos arquivos. Como os exilados, os kulaks aguardam um verdadeiro cronista. gás, petróleo e madeira, tudo isso disponível na Sibéria, no Cazaquistão e no extremo norte. O país também necessitava de ouro para comprar maquinaria nova no exterior, e os geólogos haviam recentemente descoberto esse metal na região de Kolyma, no extremo nordeste. Apesar das temperaturas baixíssimas, das condições de vida precárias e da inacessibilidade, tais recursos tinham de ser explorados com vertiginosa rapidez. No espírito de competição interministerial (então acirrada), Yanson de início propôs que seu próprio comissariado assumisse o sistema e estabelecesse uma série de campos florestais, com o objetivo de aumentar as exportações soviéticas de madeira, importante fonte de divisas externas. O projeto foi posto de lado, provavelmente porque nem todo o mundo queria que o camarada Yanson e sua burocracia judiciária o controlassem. Em vez disso, quando o projeto foi subitamente ressuscitado, na primavera de 1929, as conclusões da Comissão Yanson foram um tanto diferentes. Em 13 de abril, a comissão propôs instalar um novo sistema de campos, agora unificado, que eliminaria a distinção entre os campos "comuns" e os "especiais". Algo mais importante: a comissão entregou esse sistema diretamente à OGPU.233 A OGPU assumiu com assustadora celeridade o controle sobre a população prisional da URSS. Em dezembro de 1927, o Departamento Especial da OGPU tinha a seu cargo 30 mil detentos (cerca de 10% do número de presos do país), a maioria deles nos campos de Solovetsky. O departamento empregava não mais que mil pessoas, e seu orçamento mal excedia 0,05% dos gastos estatais. Para comparação, o sistema prisional do Comissariado do Interior mantinha 150 mil detentos e consumia 0,25% do orçamento estatal. Contudo, entre 1928 e 1930, a situação se inverteu. À medida que outras instituições estatais iam gradualmente abrindo mão de seus presos, de seus cárceres, de seus campos e dos empreendimentos industriais ligados a eles, o número de presos sob a jurisdição da OGPU inflou de 30 mil para 300 mil.234 Em 1931, a polícia secreta também assumiu o controle sobre milhões de "degredados especiais" (a maioria kulaks desterrados), que na prática eram galés, pois estavam proibidos de sair das colônias e locais de trabalho que lhes tinham sido designados, sob pena de morte ou detenção.235 Em meados da década de 1930, a OGPU teria sob seu domínio toda a vasta força de trabalho representada pelos presos da URSS. A fim de dar conta das novas responsabilidades, a OGPU reorganizou aquele seu Departamento Especial e o rebatizou Administração Central dos Campos de Trabalho Correcional e das Colônias de Trabalho. Esse título canhestro acabaria sendo encurtado para Administração Central dos Campos, ou, em russo, Glavnoe Upravlenie Lagerei. Donde o acrônimo pelo qual o departamento, e por fim o próprio sistema, seria conhecido: Gulag.236 Desde que os campos de concentração soviéticos surgiram em larga escala, seus detentos e seus cronistas discutem os motivos por trás da criação desses estabelecimentos. Será que apareceram por acaso, como efeito colateral da 233 Krasilnikov, "Rozhdenie Gulags"; Jakobson, pp. 1-9. 234 Jakobson, p. 120. 235 Khlevnyuk, "Prinuditelniy trud"; Krasilnikov, Spetspereselentsy v zapadnoi Sibiri, vesna 1931 g. - nachalo 1933 g., p. 6. 236 GARF, 5446/1/54 e 9401/1a/1; Jakobson, pp. 124-25. coletivização, da industrialização e de outros processos que ocorriam no país? Ou será que Stalin tramou o crescimento do Gulag com cuidado, planejando de antemão prender milhões de pessoas? No passado, alguns historiadores afirmaram que não havia nenhum grande projeto subjacente à fundação dos campos. Um desses historiadores, James Harris, argumentou que líderes locais, e não burocratas moscovitas, deram o impulso para que se construíssem novos campos na região dos Urais. Estando obrigadas a cumprir as exigências impossíveis do Plano Qüinqüenal, por um lado, e enfrentando grave escassez de mão-de-obra, por outro, as autoridades dali aceleraram o ritmo e a crueldade da coletivização para achar a quadratura do círculo: toda vez que tiravam um kulak das terras dele, criavam mais um trabalhador escravo.237 Outro historiador, Michael Jakobson, concluiu, seguindo vim pensamento semelhante, que as origens do sistema prisional soviético tinham sido "banais": Os burocratas perseguiam metas inalcançáveis de auto-sustentabilidade das prisões e de reabilitação dos presos. As autoridades queriam mão- de-obra e fundos, expandiam suas burocracias e tentavam cumprir metas irreais. Os administradores e carcereiros aplicavam regras e regulamentos. Os teóricos racionalizavam e justificavam. Depois tudo acabava revertido, modificado ou abandonado.238 De fato, se as origens do Gulag houvessem sido acidentais, isso não teria sido surpreendente. Durante toda a primeira metade da década de 1930, a liderança soviética em geral, e Stalin em particular, mudava constantemente de rumo, implementava políticas e então as revertia, fazendo pronunciamentos públicos para ocultar propositalmente a verdade. Quando se lê a história daquela era, não é fácil detectar um grandioso plano maligno que tenha sido concebido por Stalin ou por quem quer que fosse.239 Um exemplo: o próprio Stalin lançou a coletivização e então, assim parece, mudou de idéia, em março de 1930, quando atacou autoridades rurais excessivamente zelosas que estavam "embriagadas pelo sucesso". (Qualquer que tenha sido a intenção desse pronunciamento, ele teve pouco efeito prático, e a destruição dos kulaks continuou na mesma marcha durante anos.) No começo, os burocratas e os secretas da OGPU que planejaram a expansão do Gulag também não parecem ter sido mais claros no que se refere a seus objetivos finais. A própria Comissão Yanson tomou decisões e depois as reverteu. A OGPU também executava políticas que pareciam contraditórias. Durante todos os anos 1930, por exemplo, ela com freqüência decretou anistias, destinadas a acabar com a superlotação nas prisões e campos. Invariavelmente, as anistias eram seguidas de novas ondas de repressão, e novas ondas de construção de campos, como se Stalin e seus sequazes nunca soubessem ao certo se queriam ou não que o sistema crescesse - ou como se diferentes pessoas estivessem dando diferentes ordens em diferentes momentos. De modo semelhante, o sistema de campos passaria por muitos ciclos: ora 237 Harris. 238 Jakobson, p. 143. 239 Por exemplo, ver Kotkin para a descrição de como os planos de outro dos projetos de Stalin - a fundição de aço Magnitogorsk -, que nada tinham a ver com o Gulag, também não deram certo. mais repressivo, ora menos, ora mais repressivo de novo. Mesmo depois de 1929, quando os campos já haviam sido colocados firmemente no rumo da eficiência econômica, subsistiam algumas anomalias no sistema. Em 1937, por exemplo, muitos presos políticos ainda eram mantidos em celas, explicitamente proibidos de trabalhar - uma prática que pareceria contradizer o impulso geral de eficiência.240 Diversas mudanças burocráticas tampouco eram lá muito significativas. Embora a divisão formal entre campos da polícia secreta e campos da polícia comum tenha mesmo chegado ao fim na década de 1930 continuou a haver uma divisão residual entre os campos, que supostamente se destinavam aos criminosos e elementos políticos mais perigosos, e as "colônias", que seriam para os contraventores com penas mais curtas. Na prática, porém, a organização do trabalho, da alimentação e do cotidiano era muito parecida tanto nos campos quanto nas colônias. E no entanto... Hoje, há também um consenso crescente de que o próprio Stalin tinha, se não um plano cuidadosamente preparado, pelo menos uma crença muito grande nas enormes vantagens da mão-de-obra prisional, crença em que ele se manteve até o fim da vida. Por quê? Alguns, como Ivan Chukhin - historiador do sistema inicial de campos e ex- membro da polícia secreta - especulam que Stalin fomentou as primeiras e superambiciosas obras de construção dos campos para reforçar seu prestígio pessoal. Na época, ele ainda estava apenas surgindo como líder do país, após uma longa e renhida luta pelo poder. Talvez tenha imaginado que novas façanhas na frente industrial, realizadas com uso da mão-de-obra escrava do sistema prisional, o ajudassem a consolidar sua autoridade.241 Stalin pode também ter-se inspirado em precedentes históricos mais antigos. Robert Tucker, entre outros, já demonstrou fartamente o interesse obsessivo de Stalin por Pedro, o Grande - mais um governante russo que empregou de maneira maciça a mão-de-obra de servos e condenados para realizar enormes feitos de engenharia e construção. Em 1928, num discurso ao plenário do Comitê Central, feito justamente quando se preparava para lançar seu programa industrial, Stalin observou com admiração: Quando Pedro, o Grande, fazendo negócios com os países do Ocidente, mais avançados, freneticamente construía fábricas para suprir o Exército e fortalecer as defesas do país, tratava-se de um esforço especial para dar um salto à frente e livrar-se das restrições do atraso.242 O grifo é meu, para enfatizar o vínculo entre a "Grande Guinada" de Stalin e as políticas de seu antecessor setecentista. Na tradição histórica russa, Pedro é lembrado como líder tão grande quanto cruel, e não se acha que isso constitua contradição. Afinal, ninguém recorda quantos servos morreram durante a construção de São Petersburgo mas todo o mundo admira a beleza da cidade. Stalin pode muito bem ter levado a peito o exemplo de Pedro. Entretanto, o interesse de Stalin em campos de concentração nem precisa ter tido uma causa racional: o fato de ser obcecado por gigantescos programas de 240 Evgeniya Ginzburg, por exemplo, recebeu uma sentença de prisão que não era de trabalhos forçados, ainda em 1936. Ver E. Ginzburg, Journey into the Whirlwind. 241 Chukhin, Kanaloarmeetsi, p. 25. 242 Tucker, Stalin in Power, p. 64. Contudo o interesse de Stalin não era apenas teórico. Também tinha interesse direto pelos seres humanos envolvidos no trabalho dos campos: quem fora detido, onde fora condenado, o que seria feito de tal e tal pessoa. Lia, e comentava, ele mesmo as petições de soltura que lhe eram enviadas pelos presos ou pelas esposas destes, freqüentemente respondendo com uma ou duas palavras ("Mantenha-o trabalhando" ou "Solte-o").256 Numa fase posterior, exigiria com regularidade informações sobre presos ou grupos de presos que lhe interessavam, como os nacionalistas da Ucrânia ocidental.257 Também há indícios de que a curiosidade de Stalin por determinados presos nem sempre era puramente política e de que ela não se voltava apenas para seus inimigos pessoais. Já em 1931, antes de consolidado seu poder, Stalin fez o Politburo aprovar uma resolução que lhe dava enorme influência pessoal sobre a prisão de certas categorias de especialistas técnicos.258 E o padrão das detenções de engenheiros e especialistas naqueles primeiros tempos faz mesmo pensar em algum nível superior de planejamento. Talvez também não tenha sido apenas coincidência que o primeiríssimo grupo de presos mandados para os novos campos nas jazidas auríferas de Kolyma abrangesse sete conhecidos peritos em mineração, dois peritos em organização do trabalho e um experiente engenheiro hidráulico.259 E pode não ter sido mero acaso que a OGPU haja prendido um dos principais geólogos da URSS às vésperas de uma expedição para, como veremos, construir um campo perto das reservas petrolíferas da República Komi.260 Tais coincidências não podem ter sido planejadas por chefes regionais do Partido que apenas reagiam às pressões do momento. Por fim, uma prova totalmente circunstancial, mas ainda assim interessante, sugere que as detenções em massa no final dos anos 1930 e nos anos 40 talvez também tenham sido ordenadas, em certa medida, para saciar o desejo de Stalin por mão-de-obra escrava, e não - ao contrário do que a maioria sempre supôs - para punir seus pretensos ou potenciais inimigos. Os autores da mais fidedigna história dos campos que até hoje se escreveu em russo assinalam a "relação positiva entre o sucesso da atividade econômica nos campos e o número de presos enviados para lá". Eles argumentam que não deve ter sido por acaso que as penas para crimes de pouca gravidade se tornaram muito mais severas justamente quando os campos se expandiam e, por isso, precisavam com urgência de mais trabalhadores.261 Alguns documentos catados em arquivos aqui e ali fazem pensar o mesmo. Em 1934, por exemplo, Yagoda escreveu uma carta a seus subordinados na Ucrânia, requerendo de 15 mil a 20 mil presos, todos "aptos para o trabalho": eram necessários com urgência para concluir as obras do canal Volga-Moscou. A carta estava datada de 17 de março, e nela Yagoda também exigia que os chefes locais da OGPU tomassem "medidas adicionais" para garantir que os detentos chegassem até 1º de abril. Todavia, não ficava claro de onde deveriam aparecer esses 15 mil a 20 mil presos. Teriam sido detidos para 256 Volkogonov, Stalin, pp. 25213o8-9, e 519. 257 GARF, 9401/2/199 (arquivos pessoais de Stalin). 258 RGASPI, 17/3/746; Nordlander, "Capital of the Gulag". 259 Nordlander, ibid. 260 Kaneva, p. 331. 261 Okhotin e Roginskii, p. 34. atender à requisição de Yagoda?262 Ou - como acredita o historiador Terry Martin - Yagoda estava simplesmente batalhando a fim de garantir um afluxo cômodo e regular de mão-de-obra para seu sistema de campos, uma meta que, na realidade, ele nunca atingiu? Se as detenções se destinavam a povoar os campos, então elas o fizeram com uma ineficiência quase ridícula. Martin e outros também assinalaram que toda onda de prisões em massa parece ter pegado totalmente de surpresa os comandantes de campo, dificultando-lhes obter até mesmo um simulacro de eficiência econômica. Os policiais que faziam as prisões tampouco escolhiam suas vítimas de maneira racional: em vez de restringirem-se aos varões jovens e saudáveis que teriam dado os melhores trabalhadores braçais no extremo norte, também aprisionavam grande número de mulheres, crianças e idosos.263 A flagrante falta de lógica das detenções em massa parece contradizer a idéia de que se planejou cuidadosamente a formação de uma força de trabalho escrava - o que leva muitos a concluir que as capturas se destinavam antes de tudo a eliminar os que eram considerados inimigos de Stalin, e só depois a encher os campos. Mas, ao fim e ao cabo, essas explicações para a expansão dos campos tampouco chegam a ser de todo mutuamente exclusivas. Stalin pode muito bem ter pretendido que as capturas tanto eliminassem inimigos quanto criassem trabalhadores escravos. Pode ter sido motivado tanto pela própria paranóia quanto pelas necessidades de mão-de-obra dos líderes regionais. Talvez o melhor seja formular tudo isso em termos simples: Stalin propunha o "modelo de Solovetsky" a sua polícia secreta, Stalin selecionava as vítimas - e seus subordinados não deixavam passar a chance de obedecer a ele. 4. O CANAL DO MAR BRANCO Onde antes água e penhascos limosos dormiam, Ali, graças à força do trabalho, Fábricas serão construídas, E cidades crescerão. Chaminés se erguerão Sob os céus do norte, E edifícios brilharão com as luzes De bibliotecas, teatros e clubes. Medvedkov, preso do Canal do Mar Branco, 1934.264 No fim das contas, apenas uma das objeções levantadas durante as reuniões da Comissão Yanson viria a causar preocupação. Embora estivessem certos de que a grande nação soviética superaria a falta de estradas, e embora sentissem poucos remorsos de usar presos como trabalhadores escravos, Stalin e seus sequazes continuaram extremamente sensíveis à linguagem que os estrangeiros utilizavam no exterior para descrever os campos prisionais da URSS. 262 Genrikh Yagoda,pp. 375-76. 263 Terry Martin sugeriu-me isto em um e-mail em junho de 2002. 264 Citado em Baron, p. 638. De fato, os estrangeiros daquele tempo, ao contrário do que reza a crença popular, descreviam com bastante freqüência esses campos de concentração. No Ocidente do final dos anos 1920, sabia-se geralmente um bocado a respeito deles, talvez mais do que no final dos anos 40. Extensos artigos sobre as prisões da URSS haviam sido publicados na imprensa alemã, francesa, britânica e norte-americana, sobretudo nos periódicos de esquerda, que tinham amplos contatos com socialistas russos aprisionados.265 Em 1927, um escritor francês chamado Raymond Duguet publicou Uma colônia penal na Rússia Vermelha (Un bagne en Russie Rouge), livro surpreendentemente preciso sobre Solovetsky, descrevendo tudo, desde a personalidade de Naftaly Frenkel até os horrores da tortura dos mosquitos. Em 1926, o georgiano S. A. Malsagov, oficial do Exército Branco que conseguira fugir de Solovetsky e cruzar a fronteira, publicou Inferno na ilha, outro relato acerca das ilhas, em Londres. Como resultado de rumores generalizados sobre os abusos da mão- de-obra prisional pelos soviéticos, a seção britânica da Sociedade Anti- escravagista até lançou uma investigação e escreveu um relatório que deplorava os indícios de escorbuto e maus-tratos.266 Baseando-se no testemunho de refugiados russos, um senador francês escreveu um artigo, muito citado, comparando a situação na URSS às descobertas do inquérito da Sociedade das Nações sobre a escravidão na Libéria.267 Entretanto, após a expansão dos campos em 1929 e 1930, o interesse estrangeiro por eles se modificou, afastando-se do destino dos presos socialistas e enfocando então a ameaça econômica que os campos pareciam representar para os interesses econômicos ocidentais. Empresas ameaçadas, e sindicatos idem, começaram a organizar-se Sobretudo na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, aumentou a pres. são a favor de um boicote aos artigos soviéticos supostamente produzidos por galés. Paradoxalmente, o movimento pelo boicote obscureceu toda a questão aos olhos da esquerda ocidental, que ainda apoiava a Revolução Russa, em especial na Europa, mesmo se muitos líderes se sentiam pouco à vontade com o destino de seus irmãos socialistas. O Partido Trabalhista britânico, por exemplo, opôs-se a uma proibição de importar artigos soviéticos porque suspeitava da motivação das companhias que a promoviam.268 Nos Estados Unidos, porém, os sindicatos (especialmente a American Federation of Labor, AFL) saíram em apoio a um boicote. Por um curto período, tiveram sucesso. Lá, o Tariff Act, de 1930, determinava que "todos os artigos [...] minerados, produzidos ou manufaturados [...] pelo trabalho de condenados e/ou pelo trabalho forçado [...] não poderão ser admitidos em nenhum dos portos dos Estados Unidos".269 Com base nisso, o Departamento do Tesouro proibiu a importação de fósforos e madeira para papel soviéticos. Embora o Departamento de Estado não tenha apoiado a proibição (que durou apenas uma semana), o debate continuou.270 Em janeiro de 1931, a comissão orçamentária do Congresso dos Estados Unidos se reuniu para considerar projetos de lei "relativos à proibição de artigos produzidos pelo trabalho de 265 Dallin e Nicolaevsky, pp. 218-19. 266 Bateson e Pim. 267 Dallin e Nicolaevsky, p. 219. 268 Ibid., p. 221. 269 Ibid., p. 220. 270 Ibid., p. 220; Jakobson, p. 126. meio de pântanos. Apesar disso, mesmo dentre as outras crias da mania de gigantismo dos anos 1930, o Canal do Mar Branco se destacava. Para começo de conversa, o canal representava, como sabiam muitos russos, a realização de um sonho bem antigo. Os primeiros projetos haviam sido elaborados no século XVIII, quando os mercadores czaristas procuravam uma maneira de mandar das águas frias do mar Branco aos portos comerciais do Báltico navios carregados de madeira e minerais, sem fazer a viagem de uns setecentos quilômetros pelo oceano Ártico e, depois, ainda descer a extensa costa da Noruega.278 Também era um projeto de ambição extrema, até temerária, e talvez por isso ninguém houvesse tentado realizá-lo antes. O canal requeria 227 quilômetros de escavação, mais cinco diques e dezenove eclusas. Os planejadores soviéticos pretendiam construí-lo utilizando a tecnologia menos sofisticada possível, numa região pré-industrial do extremo norte, que nunca fora adequadamente desbravada e que, nas palavras de Máximo Gorki, era "hidrologicamente terra incógnita".279 Tudo isso, porém, pode até ter sido parte do atrativo do projeto para Stalin. Ele queria um triunfo tecnológico - um que o antigo regime nunca conseguira -, e o queria o mais depressa possível. Exigiu não apenas que construíssem o canal, mas também que o fizessem em vinte meses. Quando pronto, levaria o nome de Stalin. Stalin foi o maior fomentador do Canal do Mar Branco - e desejava especificamente que o abrissem com o trabalho de presos. Antes de iniciadas as obras, condenou com a maior violência quem indagava se um projeto tão caro era mesmo necessário, dado o volume relativamente pequeno de tráfego no mar Branco. "Disseram-me", escreveu a Molotov, "que Rykov e Kviring querem pôr fim à idéia do canal do Norte, contrariando as decisões do Politburo. Eles deveriam ser colocados no devido lugar e receber uns cascudos." Durante uma sessão do Politburo em que se discutiu o canal, Stalin também escreveu uma nota irritada, rabiscada às pressas, que falava de sua crença no trabalho de presos: Quanto ao trecho norte do canal, tenho em mente confiar na GPU [com mão-de-obra prisional]. Ao mesmo tempo, devemos designar alguém para calcular outra vez as despesas da construção desse trecho. [...] O que me apresentam é caro demais.280 As preferências de Stalin tampouco eram segredo. Depois que o canal ficou pronto, o principal administrador louvou Stalin tanto pela "bravura" em ter-se disposto a construir aquele "gigante hidrotécnico" quanto pelo "fato maravilhoso de que esse trabalho não foi completado com mão-de-obra comum".281 Também se pode ver a influência de Stalin na rapidez com que se partiu para as obras. A decisão de iniciá-las foi tomada em fevereiro de 1931, e elas começaram em setembro do mesmo ano, após meros sete meses de projeto e levantamento topográfico. Administrativa, física e até psicologicamente, os primeiros campos de 278 Gorky, Belomor, (tradução de Kanal imeni Stalina), pp. 17-19. 279 Ibid., p. 40. 280 Lih, Naumov, e Khlevnyuk pp. 225 e 212. 281 Makurov, p. 76. Esta é uma coletânea de documentos selecionados dos arquivos carelianos. prisioneiros associados ao Canal do Mar Branco brotaram da Slon. Os campos do canal se organizavam com base no modelo da Slon, usavam equipamento dela e eram operados por quadros também seus. Tão logo as obras se iniciaram, os encarregados transferiram muitos presos dos campos da Slon nas ilhas Solovetsky e no continente para trabalharem no novo projeto. Por algum tempo, a velha burocracia da Slon e a nova burocracia do Canal do Mar Branco podem até ter competido pelo controle do projeto - mas o canal ganhou. Ao fim e ao cabo, a Slon deixaria de ser entidade independente. O kremlin de Solovetsky foi designado prisão de segurança máxima, e o arquipélago se tornou simplesmente mais uma divisão do Campo de Trabalhos Correcionais Belomor - Baltiiskii (mar Branco-Báltico), conhecido como Belbaltlag. Certo número de guardas e de destacados administradores da OGPU também foi transferido da Slon para o canal. Dentre eles, como se observou, estava Naftaly Frenkel, que gerenciou desde novembro de 1931 até o término das obras o dia-a-dia do projeto.282 Nas memórias dos sobreviventes, o caos que acompanhou a construção adquire natureza quase mitológica. A necessidade de economizar acarretava que os presos usassem madeira, areia e pedra em vez de metal e cimento. Cortavam-se custos sempre que possível. Após muita discussão o canal foi escavado com profundidade de apenas quatro metros, que mal era suficiente para embarcações da Marinha de Guerra. Já que a tecnologia moderna ou era cara demais, ou não estava disponível, os planejadores empregaram enormes quantidades de mão-de-obra não-qualificada. Os cerca de 170 mil presos e "degredados especiais" que trabalharam no projeto ao longo dos 21 meses de construção usaram pás de madeira, mais serras, picaretas e carrinhos de mão muito rústicos, para escavar o canal e construir seus grandes diques e eclusas.283 Nas fotos da época, essas ferramentas decerto parecem muito primitivas, mas só um olhar mais atento revela quanto. Algumas ainda estão expostas em Medvezhegorsk, outrora o portão de entrada do canal e a "capital" do Belbaltlag. Hoje uma aldeia esquecida da Carélia, Medvezhegorsk sobressai apenas pelo enorme hotel, vazio e infestado de baratas, e pelo pequeno museu de história local. As picaretas em exibição ali são, na verdade, pedaços de metal mal afiados que foram amarrados com couro ou barbante a hastes de madeira. As serras consistem em folhas planas de metal grosseiramente dentadas. Em vez de usarem dinamite, os presos quebravam grandes pedras usando "martelos" - pedaços de metal parafusados a cabos de madeira - para inserir nelas barras de ferro. Tudo, desde os carrinhos de mão até os andaimes, era feito à mão. Um preso recordou que não havia absolutamente nenhuma tecnologia. Até automóveis comuns eram raridade. Tudo se fazia à mão, por vezes com ajuda de cavalos. Escavávamos a terra com as mãos e a retirávamos em carrinhos de mão; também escavávamos através dos morros com as mãos e levávamos embora as pedras com a força dos braços.284 282 Okhotin e Roginskii, p. 163. 283 Baron, pp. 640-41; também Chukhin, Kanaloarmeesi. 284 Makurov, p. 86. Até a propaganda soviética se gabava de que as pedras eram removidas em "Fords Belomor": "carretas pesadas com quatro rodas de madeira sólida, feitas de tocos de árvores".285 As condições de vida não eram menos capengas, apesar dos esforços de Genrikh Yagoda, o chefe da OGPU, que tinha a responsabilidade política pelo projeto. Ele parecia realmente acreditar que deviam dar condições decentes de vida aos presos caso se quisesse terminar o canal a tempo; e com freqüência doutrinava os comandantes dos campos para tratarem melhor os detentos e "tomarem o máximo cuidado a fim de garantir que eles estejam alimentados, vestidos e abrigados de maneira adequada". Em seguida, os comandantes fizeram o mesmo, assim corno o chefe da divisão Solovetsky do projeto do canal em 1933. Dentre outras coisas, esse último dirigente instruiu seus subordinados a eliminar as filas para comida à noite, acabar com o furto nas cozinhas e restringir a contagem noturna dos presos a uma hora. Em geral, as normas oficiais sobre alimentação eram mais responsáveis do que viriam a ser alguns anos depois, com salsicha e chá entre os produtos recomendados. Em teoria, os presos recebiam um novo conjunto de roupas de trabalho a cada ano.286 No entanto, a pressa extrema e a falta de planejamento criaram inevitavelmente muito sofrimento. A medida que as obras progrediam, era preciso construir novos acampamentos ao longo do trajeto. Em cada um deles, os presos e degredados chegavam para as obras - e não encontravam nada. Antes de começarem a trabalhar, tinham de construir os próprios barracões de madeira e organizar o suprimento de comida. Entrementes, às vezes acontecia de serem mortos pelo frio congelante do inverno careliano antes de concluírem a tarefa. Conforme alguns cálculos, morreram mais de 25 mil presos, e esse número não inclui os que, soltos devido a doenças ou acidentes, pereceriam logo depois.287 Escrevendo à esposa, o preso A. F. Losev afirmou que preferiria voltar para os porões da prisão moscovita de Butyrka, pois no canal tinha de dormir em estrados tão apinhados que, "se durante a noite você rolar de um lado para o outro, pelo menos outras quatro ou cinco pessoas vão rolar também". Ainda mais desesperado é o testemunho de um menino, filho de kulaks degredados, que foi deportado junto com toda a família para uma das povoações que acabavam de ser construídas ao longo do canal: Fomos morar num barracão com duas séries de estrados. Já que havia crianças pequenas, deram um dos estrados inferiores a nossa família. Os barracões eram compridos e frios. Como a lenha era abundante na Carélia, os fogões ficavam acesos 24 horas por dia. [...] Nosso pai, e principal fonte de comida, recebia em nome de todos nós um terço de balde de uma sopa esverdeada, em cuja água escura boiavam dois ou três tomates verdes ou um pepino e alguns pedaços de batata congelada, misturados com cem ou duzentos gramas de cevada ou grão-de-bico. O menino recordou que o pai, o qual trabalhava construindo casas para os colonos, recebia seiscentos gramas de pão. A irmã, quatrocentos gramas. Isso 285 Gorky, Belomor, p. 173. 286 Makurov, pp. 96 e 19-20. 287 Baron, p. 643. "Vocês deverão organizar os guardas no próprio local. Vocês mesmos os selecionarão." "Muito bem, mas eu não entendo nada de petróleo e derivados." "Pegue o preso-engenheiro Dukhanovich para que seja seu assistente." "De que adianta isso? A especialidade dele é a forja a frio." "Você quer o quê? Será que devemos condenar aos campos de concentração os mestres universitários que você exige? Esse artigo não existe no Código Penal. E não somos a empresa petrolífera." Com essas palavras, Berman manda o agente da OGPU fazer o trabalho. "Uma coisa doida", observam os autores. Entretanto, em "um ou dois meses", o homem da OGPU e seus colegas já se gabam uns para os outros das façanhas que realizaram com seu grupo mambembe de presos. "Tenho um coronel que é o melhor lenhador de todo o campo", alardeia um deles. "Pois eu tenho um engenheiro militar cavando buracos - antes, havia sido condenado por desfalque", diz outro.298 A mensagem é clara: as condições materiais eram difíceis, e o material humano era bruto - mas, embora isto pareça inacreditável, a onisciente e infalível polícia política conseguiu transformá-los em bons cidadãos soviéticos. Desse modo, os fatos - a tecnologia primitiva, a falta de especialistas competentes - foram empregados para dar verossimilhança a um retrato da vida nos campos que, de resto, era fantasioso. Boa parte do livro é gasta com histórias comoventes e quase religiosas de presos que se regeneraram pelo trabalho no canal. Muitos dos assim renascidos eram criminosos, mas nem todos. Ao contrário do ensaio de Gorki sobre Solovetsky, que negava ou minimizava a presença de presos políticos, Um canal chamado Stalin apresentava alguns astros da conversão política. Ainda apegado ao "preconceito de casta, o engenheiro Maslov, ex-sabotador", tenta "cobrir com ferro os sombrios e profundos processos de deturpação da consciência que se reiniciam continuamente em seu íntimo". O engenheiro Zubrik, outro ex-sabotador, mas oriundo da classe trabalhadora, "ganhou honestamente o direito de retornar ao seio da classe em que nasceu".299 O canal não foi de modo algum a única obra literária da época a louvar os poderes reabilitativos dos campos. Uma peça de Nikolai Pogodin, Aristocratas (Aristokraty, comédia sobre o Canal do Mar Branco), é outro exemplo notável, até porque retoma um tema bolchevique anterior: quanto os ladrões podem ser "adoráveis". Encenada pela primeira vez em dezembro de 1934, a peça - que viria a tornar-se um filme chamado Prisioneiros - ignora os kulaks e os presos políticos que constituíam o grosso dos condenados do canal; em vez disso, mostra as alegres travessuras dos bandidos do campo de concentração (os "aristocratas" do título), usando uma forma muito branda de gíria de meliantes. E verdade que há um ou dois momentos sinistros na peça. Num deles, um criminoso "ganha" uma garota num jogo de cartas, significando que o perdedor deve capturá-la e obrigá-la a submeter-se ao outro. Na peça, a garota escapa; na vida real, provavelmente não teria tanta sorte. 298 Gorky,Belomor, pp. 46 e 47. 299 Ibid., pp. 158 e 165. No final, porém, todos confessam seus crimes anteriores, regeneram-se e começam a trabalhar com entusiasmo. Entoa-se uma canção: Eu era um bandido cruel, sim, Eu furtava as pessoas, detestava trabalhar, Minha vida era negra como a noite. Mas aí eles me trouxeram para o canal, E tudo o que passou parece não ter sido mais que um sonho ruim. É como se eu tivesse renascido. Quero trabalhar, e viver, e cantar...300 Na época, coisas desse gênero eram saudadas como uma forma nova e radical de teatro. Jerzy Gliksman, socialista polonês que assistiu a uma apresentação de Aristocratas em Moscou em 1935, descreveu a experiência: Em vez de ficar no lugar de costume, o palco foi construído no centro do edifício, com a platéia sentada em círculo ao redor. O objetivo do diretor foi trazê-la para mais perto da ação, a fim de vencer a distância entre ator e espectador. Não havia cortinas, e os cenários eram extremamente simples, quase como no teatro elisabetano. [...] O tema - a vida num campo de trabalho - já empolgava de per si.301 Fora dos campos, esse tipo de literatura tinha dupla função. Por um lado, desempenhava um papel na incessante campanha para justificar a uma opinião pública estrangeira cética o rápido crescimento dos campos prisionais. Por outro, servia provavelmente para acalmar os cidadãos soviéticos, inquietos com a violência da coletivização e da industrialização, ao prometer-lhes um final feliz: até as vítimas da revolução stalinista teriam a chance de refazer a vida nos campos de trabalho. A propaganda funcionou. Depois de ter visto Aristocratas, Gliksman pediu para visitar um campo de verdade. Um tanto surpreso, foi logo levado ao "campo- vitrine" de Bolshevo, não longe de Moscou. Posteriormente, recordaria "boas camas e lençóis brancos, ótimos banheiros, tudo imaculado". Também se encontrou com um grupo de presos mais jovens que lhe contaram as mesmas histórias edificantes que Pogodin e Gorki. Conheceu um ladrão que no momento estudava para tornar-se engenheiro; e um desordeiro que se deu conta de que agira mal e agora administrava o almoxarifado. "Como o mundo poderia ser belo!", sussurrou ao ouvido de Gliksman um cineasta francês. Infelizmente para Gliksman, cinco anos depois ele se viu no chão de um vagão de gado superlotado, em companhia de presos muito diferentes daqueles da peça de Pogodin, indo para um campo que não tinha nenhuma semelhança com Bolshevo.302 Nos campos, uma propaganda semelhante também desempenhava seu papel. Publicações do campo e "jornais murais" - folhas afixadas a quadros de avisos para que os presos as lessem - continham apenas com ligeiras diferenças de ênfase, o mesmo tipo de história e poema que era apresentado a quem vinha de fora do país. Típico disso era o jornal Perekovka ("Regeneração"), escrito e produzido pelos presos do Canal Moscou-Volga, projeto iniciado na esteira do 300 Pogodin, pp. 109-83; Geller, pp. 151-57. 301 Gliksman, p. 165. 302 Ibid., pp. 173-78. "sucesso" do Canal do Mar Branco. Cheio de elogios aos trabalhadores-padrão e de descrições de seus privilégios ("Eles não precisam ficar em filas, pois garçonetes lhes levam a comida diretamente à mesa!"), o Perekovka gastava menos tempo que os autores de O canal chamado Stalin cantando loas às vantagens da transformação espiritual, e mais expondo os privilégios tangíveis que os presos poderiam ganhar se dessem mais duro. Também não havia tanta empulhação a respeito da superioridade moral da Justiça soviética. A edição de 18 de janeiro de 1933 reproduziu um discurso feito por Lazar Kogan, um dos chefes do campo: Não podemos julgar se alguém foi preso justa ou injustamente. Isso é o trabalho do promotor. [...] Vocês têm a obrigação de criar algo de valor para o Estado com seu trabalho, e nós temos a obrigação de fazer de vocês pessoas de valor para o Estado.303 No Perekovka, também era notável a seção de "reclamações", aberta e bastante franca. Os presos escreviam para reclamar das "brigas e palavrões" nos alojamentos femininos, por um lado, e da "ladainha de hinos religiosos", por outro; das metas impossíveis; da escassez de calçados ou roupas de baixo limpas; do açoitamento desnecessário dos cavalos; da feira do mercado negro no centro de Dmitrov, a sede do campo; e do mau uso da maquinaria ("não há máquinas ruins, apenas administradores ruins"). Posteriormente, desapareceria esse tipo de franqueza sobre os problemas dos campos, banido para a correspondência privada entre os inspetores dos campos e seus superiores em Moscou. No início da década de 1930, porém, tal glasnost era bastante comum, tanto fora quanto dentro dos campos. Fazia parte natural do esforço urgente e frenético para melhorar as condições de vida, melhorar os padrões de trabalho e - acima de tudo - acompanhar as exigências febris da liderança stalinista.304 Caminhando hoje pelas margens do Canal do Mar Branco, é difícil imaginar aquela atmosfera quase histérica. Visitei-o num dia pachorrento de agosto de 1999, na companhia de vários historiadores locais. Em Povenets, paramos rapidamente para olhar o pequeno monumento às vítimas, que traz uma inscrição curta: "Aos inocentes que morreram na construção do Canal do Mar Branco, 1931-1933". Enquanto estávamos ali, um de meus companheiros insistiu em fumar ritualmente um cigarro Belomor. Explicou que a marca, antes das mais populares na URSS, fora durante décadas o único outro monumento aos construtores do canal. Ali perto, ficava uma velha trudposelok (colônia de degredados), agora praticamente vazia. As casas, grandes e outrora sólidas, feitas de madeira ao estilo da Carélia, tinham as portas e as janelas cobertas por tábuas. Várias dessas residências já começavam a desabar. Um morador, que viera originariamente da Bielo-Rússia (até falava um pouco de polonês), nos contou que tentara comprar uma delas alguns anos antes, mas que o governo local se recusara a vender. "Agora, está caindo aos pedaços", disse ele. Numa pequena horta atrás da casa, plantava abóbora, pepino e amora. Ofereceu-nos licor caseiro. Com a horta e a aposentadoria de 550 rublos (na época, cerca de 22 dólares por mês), disse ter o suficiente para ir vivendo. Naturalmente, não 303 GARF, 9414/4/1; Perekovka, 18 de janeiro, 1933. 304 GARF, 9414/4/1; Perekovka, 20 de dezembro, 1932-30 de junho, 1934. morressem... bem, podiam-se achar outras. As tragédias eram muitas, sobretudo no início dessa nova época. Há pouco tempo, a veracidade de um episódio particularmente horripilante, que durante muito tempo fora parte do folclore dos sobreviventes dos campos, viu-se confirmada por um documento encontrado nos arquivos de Novossibirsk. Assinado por um funcionário do Comitê do Partido em Narym, na Sibéria ocidental, e enviado à atenção pessoal de Stalin em maio de 1933, descreve com precisão a chegada à ilha de Nazino, no rio Ob, de um grupo de camponeses desterrados, descritos como "elementos retrógrados". Os camponeses eram degredados, e, como tais, esperava-se que se estabelecessem na terra e, presumivelmente, a lavrassem: O primeiro comboio trazia 5.070 pessoas, e o segundo, 1.044. Ao todo, 6.114. As condições de transporte eram chocantes: a pouca comida disponível não estava em condições de consumo, e os deportados ficavam apinhados em espaços nos quais o ar quase não circulava. [...] O resultado foi uma mortalidade diária de 35 a quarenta pessoas. Contudo, essas condições de vida eram luxuosas se comparadas ao que aguardava os deportados em Nazino. [....] A ilha é um lugar totalmente desabitado, desprovido de povoações de qualquer tipo. [...] Não havia ferramentas, sementes nem comida. Foi assim que começou a nova vida deles. Em 19 de maio, no dia seguinte à chegada do primeiro comboio, recomeçou a nevar, e o vento ficou mais forte. Famintos, emaciados após meses de alimentação insuficiente, sem abrigo e sem ferramentas [...], estavam presos numa armadilha. Nem sequer conseguiam acender fogueiras para espantar o frio. Começaram a morrer em número cada vez maior. [...] No primeiro dia, enterraram-se 295 pessoas. Foi somente no quarto ou quinto dia depois da chegada do comboio à ilha que as autoridades enviaram de barco um pouco de farinha, não mais que algumas libras por cabeça. Depois de recebida a mísera ração, as pessoas corriam para a margem e tentavam misturar um pouco da farinha com água, usando seus chapéus, suas calças ou seus casacos. A maioria simplesmente tentou comê-la assim mesmo, e alguns engasgaram até a morte. Essa minúscula quantidade de farinha foi a única comida que os deportados receberam durante toda a estada na ilha. [...] O funcionário do Partido contava que, três meses depois, em 20 de agosto já haviam perecido quase 4 mil dos 6.114 "colonos" originais. Os sobreviventes só não tiveram o mesmo destino porque comeram a carne dos mortos. Segundo um preso que encontrou alguns desses sobreviventes na prisão de Tomsk, eles pareciam "cadáveres ambulantes", e todos estavam detidos - acusados de canibalismo.308 Mesmo quando a mortandade não era tão horripilante, as condições de vida em muitos daqueles projetos iniciais do Gulag mais conhecidos podiam ser quase tão atrozes. O Bamlag, um campo organizado para a construção de uma 308 Nicolas Werth, "A State against Its People: Violence, Repression and Terror in the Soviet Union", in Courtois, p. 154. Um relato do incidente, como foi feito por um prisioneiro anônimo que encontrou alguns sobreviventes na prisão de Tomsk, também aparece em Pamyat, vol. I, pp. 342-43 também Krasilnikov, Spetspereselentsy v zapad-noi Sibiri, 1933-1938, pp. 76-119. ferrovia do lago Baikal ao rio Amur, no Extremo Oriente russo (parte do sistema da Transiberiana), era exemplo notável de quanto as coisas podiam dar errado por simples falta de planejamento. Assim como no Canal do Mar Branco, a ferrovia se construiu muito às pressas, sem nenhum preparativo. Os planejadores do campo fizeram o desbravamento, o projeto e a construção ao mesmo tempo; as obras começaram antes de concluído o levantamento topográfico. Os desbravadores foram obrigados a elaborar em menos de quatro meses seu relatório sobre aquela rota de 2 mil quilômetros, sem calçados, sem trajes e sem instrumentos adequados. Os mapas existentes eram precários, e, como resultado, cometeram-se erros dispendiosos. De acordo com um sobrevivente, "dois grupos de trabalhadores [cada um fazendo o levantamento de um trecho diferente da linha] descobriram que não poderiam encontrar-se e terminar o trabalho, porque os dois rios ao longo dos quais estavam caminhando só se encontravam nos mapas: na realidade, ficavam longe um do outro".309 Tão logo se iniciou o trabalho, comboios começaram a chegar sem intervalo à sede do campo, na cidade de Svobodny, nome que significa "Liberdade". Entre janeiro de 1933 e janeiro de 1936, o número de presos subiu de uns poucos milhares para mais de 180 mil. Muitos já estavam fracos na chegada, descalços e inadequadamente vestidos, sofrendo de escorbuto, sífilis, disenteria; entre eles, havia sobreviventes das epidemias de fome que tinham varrido a zona rural da URSS no início da década de 1930. O campo estava totalmente despreparado. Os ocupantes de qualquer comboio que chegasse eram postos em alojamentos frios e escuros e recebiam pão coberto de poeira. Os comandantes do Bamlag não conseguiam enfrentar o caos, conforme reconheciam em relatórios que mandavam a Moscou, e estavam particularmente mal equipados para lidar com presos debilitados. Como resultado, os demasiado enfermos para trabalhar eram simplesmente alimentados com rações "disciplinares" e deixados para morrer de inanição. Todos os integrantes de um comboio de 29 pessoas morreram num período de 37 dias após a chegada.310 Até a conclusão da ferrovia, é bem possível que tenham morrido dezenas de milhares de presos. Histórias semelhantes se repetiam por todo o país. Em 1929, no canteiro de obras ferroviárias do Gulag no Sevlag (a nordeste de Arcangel), os engenheiros determinaram que o número de presos designados para o projeto precisaria ser multiplicado por seis. Entre abril e outubro daquele ano, comboios de cativos começaram a chegar conforme o combinado - e não encontraram nada. Um preso recordou: Não existia alojamento nem vila. Havia tendas, ao lado, para os guardas e o equipamento. Não eram muitas pessoas, talvez umas 1.500. Na maioria, camponeses de meia-idade, antigos kulaks. E criminosos. Não havia ninguém que parecesse ser da intelligentsia.311 Mas, embora todos os complexos de campos criados no início da década de 1930 fossem, só para começo de conversa, desorganizados - e todos estivessem despreparados para receber os presos debilitados que chegavam 309 Elantseva. Este artigo se baseia em arquivos encontrados no Arquivo Central da Federação Russa de Tomsk, Extremo Oriente. 310 Ibid.; Okhotin e Roginskii, p. 153. 311 N. A. Morozov, GULAG v Komi krae, p. 104. das áreas assoladas pela fome -, nem todos decaíram no caos assassino. Para alguns, havendo o conjunto certo de circunstâncias (condições relativamente favoráveis no local, combinadas com apoio forte de Moscou), foi possível crescer. Com rapidez surpreendente, desenvolveram estruturas burocráticas mais estáveis, construíram edificações mais permanentes e até deram origem a uma elite local da NKVD. Uns poucos acabariam ocupando enormes faixas de território, transformando regiões inteiras do país em vastas prisões. Dos campos fundados naquela época, dois - a Expedição Ukhtinskaya e o Truste Dalstroi - alcançariam o tamanho e o status de impérios industriais. Suas origens merecem exame mais detalhado. A um passageiro desatento, a viagem de automóvel pela estrada de concreto caindo aos pedaços que vai desde Syktyvkar, capital administrativa da República Komi, até Ukhta, um dos principais centros industriais daquela república, pareceria não oferecer muita coisa de interessante. Essa estrada de duzentos quilômetros, cujo estado de conservação piora em alguns trechos, atravessa infindáveis pinheirais e banhados. Embora se cruzem alguns rios, a paisagem não é, em geral, digna de nota: trata-se da taiga, a impressionantemente monótona paisagem subártica pela qual Komi (e de fato todo o norte da Rússia) é mais conhecida. Ainda que a paisagem não seja espetacular, uma visão mais aproximada revela algumas coisas estranhas. Em certos lugares, caso se saiba para onde olhar, há indentações no terreno logo à beira da estrada. São os únicos vestígios do campo que outrora acompanhava toda a estrada e dos grupos de presos que a construíram. Já que os canteiros de obras eram temporários, os presos ficavam abrigados não em alojamentos, mas em zemlyanki, buracos feitos na terra - donde aquelas marcas no chão. Em outro trecho da estrada, estão os restos de um tipo mais substancial de campo, antes ligado a uma pequena jazida petrolífera. Mato e ervas daninhas cobrem hoje o local, mas é fácil afastá-los para deixar à mostra tábuas apodrecidas (possivelmente preservadas pelo petróleo que saía das botas dos presos) e pedaços de arame farpado. Aqui não há nenhum monumento, embora exista um mais adiante na estrada, em Bograzdino, campo de trânsito que chegou a acomodar 25 mil pessoas. Dele não ficou nenhum vestígio. Em outro ponto ainda à margem da estrada, atrás de um moderno posto de gasolina da Lukoil, uma empresa russa da atualidade, ergue-se uma velha torre de vigia de madeira, cercada de sucata e pedaços de arame enferrujado. Prossiga para Ukhta na companhia de alguém que conheça bem a cidade, e assim a história oculta da cidade logo se revelará. Todas as estradas que levam a Ukhta foram construídas por presos, tal qual todos os prédios de escritórios e de apartamentos da região central. No próprio coração da cidade, há um parque planejado e construído por arquitetos aprisionados; um teatro onde atores presos se apresentavam; e sólidas casas de madeira onde viveram os comandantes do campo. Hoje, os executivos da Gazprom (outra nova companhia russa) moram em edifícios modernos na mesma rua arborizada. Mas Ukhta não é um caso único na República Komi. Embora a principio seja difícil vê-los, indícios do Gulag podem ser achados por toda Komi, essa vasta região de taiga e tundra que fica a nordeste de São Petersburgo e a oeste dos Algumas das expedições se mostraram apenas temporárias. Foi esse o destino de uma das primeiras, que, no verão de 1930, partiu de Ukhta para a ilha de Vaigach, no oceano Ártico. Expedições geológicas anteriores já haviam encontrado depósitos de chumbo e zinco na ilha, embora a Expedição Vaigach, como viria a ser conhecida, também estivesse bem suprida de presos- geólogos. Alguns destes tiveram desempenho tão exemplar que a OGPU os recompensou: receberam permissão para trazer as esposas e filhos para ficar com eles em Vaigach. O lugar era tão remoto que os comandantes do campo pareciam não se preocupar com fugas e permitiam que os presos andassem por onde quisessem, na companhia de outros condenados ou de trabalhadores livres, sem necessidade de permissões ou passes especiais. A fim de encorajar o "trabalho-padrão no Ártico", Matvei Berman, então o chefe do Gulag, concedeu aos presos de Vaigach dois dias comutados das penas para cada dia de trabalho.314 Em 1934, porém, a mina se encheu de água, e no ano seguinte a OGPU retirou da ilha os presos e o equipamento.315 Outras expedições se revelariam mais permanentes. Em 1931, um grupo de 23 partiu de Ukhta para o norte, pelos rios do interior, a fim de iniciar as escavações numa enorme jazida de carvão - a bacia carbonífera de Vorkuta -, que, no ano anterior, fora descoberta na tundra ártica do norte de Komi. Como em todas essas expedições, os geólogos mostraram o caminho, os presos tripularam os barcos, e um pequeno contingente da OGPU comandou a operação, remando e marchando através dos enxames de insetos que habitam a tundra nos meses de verão Passaram as primeiras noites em campo aberto; depois, de algum modo montaram acampamento, sobreviveram ao inverno e construíram, na primavera seguinte, uma minara Rudnik 1. Ukhtpechlag, República Komi, 1937 314 GARF, 9414/1/8. 315 Mitin, pp. 22-26. A rota da Expedição Ukhtinskaya, República Komi, 1929 Usando picaretas, pás e carroças de madeira, sem nenhum equipamento mecanizado, os presos começaram a extrair carvão. Em apenas seis anos, a Rudnik 1 cresceria até se tornar a cidade de Vorkuta e a sede do Vorkutlag, um dos maiores e mais duros campos de todo o sistema Gulag. Em 1938, o Vorkutlag já contava 15 mil presos e produzira 188.206 toneladas de carvão.316 Em termos estritos, nem todos os novos habitantes de Komi eram presos. A partir de 1929, as autoridades também começaram a enviar "degredados especiais" para a região. De início, eram quase todos kulaks, que chegavam com as mulheres e filhos, e esperava-se que começassem a viver da terra. O próprio Yagoda declarara que se deveria conceder aos degredados "tempo livre" para que cultivassem hortas, criassem porcos, pescassem e construíssem suas casas: "De início, viverão das rações de nosso campo; depois, à própria custa".317 Na realidade, embora tudo isso pareça bem róseo, quase 5 mil dessas famílias de degredados (mais de 16 mil pessoas) chegaram em 1930 e, como de hábito, não encontraram quase nada. Até novembro daquele ano, construíram-se 268 barracões, quando pelo menos setecentos teriam sido necessários. Três ou quatro famílias dividiam cada cômodo. Não havia quantidade suficiente nem de comida, nem de roupas, nem de botas de inverno. As aldeias dos degredados não tinham banhos, estradas, serviços postais nem cabos telefônicos.318 Embora alguns tenham morrido e muitos outros tenham tentado fugir (344 já no final de julho), os degredados de Komi se tornaram extensão permanente do sistema de campos da região. Posteriormente, ondas repressivas levaram mais deles para lá, em especial poloneses e alemães. Donde as referências locais a algumas das aldeias de Komi como "Berlim". Os degredados não viviam cercados pelo arame farpado, mas tinham as mesmas tarefas que os presos, às vezes nos mesmos lugares. Em 1940, um campo madeireiro foi transformado em aldeia de degredo - prova de que, de certa maneira, os dois grupos eram intercambiáveis. Muitos degredados também acabariam 316 Exposição do Vorkuta Kraevedcneskii Muzeii; também "Vorkutinstroi NKVD" (MVD, documento de janeiro de 1941), da coleção do Syktyvkar Memorial, República de Komi; Okhotin e Roginskii, p. 192. 317 Kaneva, p. 339. 318 Nadezhda Ignatova, "Spetspereselentsy v respublike Komi v 1930-1940 gg", in Korni travy, pp. 23-25. trabalhando como guardas ou administradores dos campos.319 Com o tempo, esse crescimento geográfico se refletiria na nomenclatura dos campos. Em 1931, a Expedição Ukhtinskaya foi rebatizada Campo de Trabalho Correcional Ukhto-Pechorsky, ou Ukhtpechlag. Ao longo das duas décadas subseqüentes, o próprio Ukhtpechlag seria rebatizado (e reorganizado e dividido) muitas vezes mais, para refletir sua geografia mutável e seu império e burocracia crescentes. Aliás, no final da década, o Ukhtpechlag não seria mais um mero campo prisional. Ele dera origem a toda uma rede de campos, duas dúzias ao todo, incluindo o Ukhtpechlag e o Ukhtizhemlag (petróleo e carvão), o Ustvymlag (madeira), Vorkuta e Inta (mineração de carvão) e o Sevzheldorlag (ferrovia).320 No decorrer dos anos seguintes, o Ukhtpechlag e seus descendentes também se tornaram mais densos, adquirindo novas instituições e novos edifícios de acordo com suas necessidades sempre maiores. Precisando de hospitais, os administradores dos campos os construíam e ainda implantavam sistemas para treinar presos como farmacêuticos e enfermeiros. Precisando de comida, estabeleciam suas fazendas coletivas, seus armazéns e seus sistemas de distribuição. Precisando de eletricidade, instalavam usinas de força. Precisando de material de construção, criavam olarias. Precisando de trabalhadores qualificados, treinaram os que tinham. Boa parte da mão-de-obra que fora kulak era analfabeta ou semi-alfabetizada, o que acarretava enormes problemas quando se lidava com projetos de relativa complexidade técnica. Assim, a administração montou escolas técnicas, que por sua vez exigiam novos edifícios e novos quadros: professores de matemática e física, bem como "instrutores políticos" para supervisionar o trabalho desses docentes.321 Na década de 1940, Vorkuta - uma cidade construída sobre o permafrost, onde todo ano as estradas tinham que ser repavimentadas e as tubulações, consertadas - já ganhara um instituto geológico, uma universidade, teatros e cinemas, teatros de marionetes, piscinas e creches. No entanto, se a expansão do Ukhtpechlag não era muito divulgada, tampouco se fazia a esmo. Sem dúvida, os comandantes do campo desejavam que o projeto crescesse, e seu prestígio pessoal junto com ele. A necessidade premente, e não o planejamento central levava à criação de muitos novos departamentos no campo. Mas havia clara simbiose entre as necessidades do governo soviético (um lugar onde despejar seus inimigos) e as necessidades da região (mais gente para cortar árvores). Em 1930, por exemplo, quando Moscou escreveu oferecendo-se para enviar colonos degredados, os líderes locais adoraram.322 O destino do campo também foi discutido nos escalões mais altos. Vale a pena observar que, em novembro de 1932, o Politburo (com Stalin presente) dedicou a maior parte de uma sessão a discutir o estado corrente e os planos futuros para o Ukhtpechlag, debatendo com surpreendente minúcia as perspectivas e o abastecimento do campo. A julgar pela ata da sessão, parece que o Politburo tomava todas as decisões, ou pelo menos aprovava tudo o que fosse de alguma importância: quais minas o 319 Ibid., pp. 25 e 29. 320 N. A. Morozov, GULAG v Komi krae, pp. 13-14. 321 Kaneva, pp. 337-38. 322 Nadezhda Ignatova, "Spetspereselentsy v respublike Komi v 1930-1940 gg", in Korni travy, pp. 23-25. Por outro lado, o talento de Berzin para criar uma imagem pública auspiciosa pode ter sido exatamente o que a liderança soviética queria pois, embora a Dalstroi viesse a ser diretamente absorvida pela administração do Gulag, no início o truste sempre era mencionado, em público, como entidade distinta, uma espécie de conglomerado comercial, que nada tinha que ver com o Gulag. Sem alarde, as autoridades fundaram o Sewostlag, um campo do Gulag que "alugava" condenados para o Truste Dalstroi. Na prática, as duas instituições nunca concorreram entre si. O chefe da Dalstroi era também o chefe do Sewostlag, e ninguém tinha dúvidas quanto a isso. No papel, porém, mantinham-se separados; e, em público, pareciam ser entidades diferentes.332 Havia certa lógica nesse arranjo. Para começo de conversa, a Dalstroi precisava atrair voluntários, em especial engenheiros e mulheres casadouras - sempre havia escassez de uma e outra coisa em Kolyma -, e Berzin promoveu muitas campanhas de recrutamento, tentando convencer "trabalhadores livres" a emigrarem para a região e até montando escritórios em Moscou, Leningrado, Odessa, Rostov e Novossibirsk.333 Essa talvez já fosse razão suficiente para Stalin e Berzin terem desejado evitar uma identificação muito próxima de Kolyma com o Gulag, temendo que a ligação pudesse afugentar potenciais recrutas. Embora disto não haja nenhuma prova direta, tais maquinações podem também se ter destinado a consumo externo. Assim como a madeira soviética, o ouro de Kolyma seria vendido direto ao Ocidente, em troca de tecnologia e máquinas de que se necessitava desesperadamente. Trata-se de uma circunstância que pode ajudar a explicar por que a liderança soviética queria fazer que as minas de ouro de Kolyma parecessem, tanto quanto possível, um empreendimento econômico "normal". Um boicote ao ouro teria sido muito mais danoso do que um boicote à madeira. Em todo o caso, o envolvimento pessoal de Stalin com Kolyma foi bastante intenso desde o início. Em 1932, ele chegou a exigir relatórios diários sobre a produção de ouro; e, como já observamos, interessava-se pessoalmente pelos detalhes dos projetos de exploração (e do cumprimento de cotas) da Dalstroi. Mandava inspetores para fiscalizar os campos e exigia que os líderes da Dalstroi viajassem com fre-qúencia para Moscou. Quando o Politburo alocava fundos ao truste, Stalin também dava instruções precisas de como gastá-los, tal como fazia com o Ukhtpechlag.334 No entanto, a "independência" da Dalstroi não era de todo fictícia. Embora se reportasse a Stalin, Berzin também conseguiu deixar sua marca em Kolyma, tanto que a "era Berzin" seria depois lembrada com alguma nostalgia. Ele parece ter compreendido sua missão de maneira muito simples: tinha por tarefa fazer os presos extraírem tanto ouro quanto possível. Não estava interessádo em matá-los de inanição assassiná-los nem puni-los - só os números da produção importavam Portanto, sob a administração do primeiro chefe da Dalstroi, as condições não eram nem de longe tão duras quanto viriam a tornar- se, e os presos não passavam tanta fome. Em parte como resultado disso, a produção aurífera de Kolyma aumentou oito vezes nos primeiros dois anos de operação da Dalstroi.335 332 Ibid. 333 Stephan, The Russian Far East, p. 226. 334 Nordlander, "Capital of the Gulag". 335 Stephan, The Russian Far East, p. 227. E verdade que os primeiros anos foram repletos do mesmo caos e da mesma desorganização que predominavam em outros lugares. Em 1932, estavam trabalhando na região quase 10 mil presos - dentre eles, o grupo de engenheiros e especialistas cujas qualificações combinavam tão maravilhosamente com a tarefa -, junto com mais de 3 mil voluntários, ou "trabalhadores livres" (trabalhadores do campo que não eram presos).336 Esses números elevados se faziam acompanhar de elevada taxa de mortalidade. Dos 16 mil presos que viajaram para Kolyma no primeiro ano de Berzin, apenas 9.928 chegaram vivos a Magadan.337 O resto foi atirado, com roupas e proteção insuficientes, às tempestades de inverno: os sobreviventes do primeiro ano afirmariam que só metade do contingente original não perecera.338 Entretanto, assim que passou o caos inicial, a situação de fato melhorou aos poucos. Berzin trabalhou duro para amenizar as condições, ao que parece acreditando, não sem razão, que os presos precisavam estar aquecidos e bem alimentados para extrair grandes quantidades de ouro. Como resultado, Thomas Sgovio, um sobrevivente americano de Kolyma, escreveu que os "veteranos" do campo falavam com entusiasmo do reinado de Berzin: quando a temperatura caía abaixo de quinze graus negativos, não eram mandados ao trabalho. Tinham três dias de descanso por mês. A comida era adequada e nutritiva. Os zeks [presos] recebiam roupas quentes: gorros de pele e botas de feltro.339 Variam Shalamov, outro sobrevivente - cujos Contos de Kolyma são dos mais amargos de toda a literatura dos campos -, também escreveu sobre o período Berzin como época de excelente comida; uma jornada de trabalho de quatro a seis horas no inverno e dez no verão; e salários colossais para os condenados, o que lhes possibilitava retornar para casa como homens de posses quando as penas terminavam. [...] Os cemitérios que datam daquela época são tão poucos que os primeiros moradores de Kolyma pareciam imortais àqueles que vieram posteriormente.340 Se as condições de vida eram melhores do que seriam depois, o comando do campo também tratava com mais humanidade os presos. Na época, não era nítida a linha que separava dos prisioneiros os trabalhadores livres voluntários. Os dois grupos se associavam normalmente; às vezes se permitia que os presos mudassem dos barracões para morar nas vilas dos trabalhadores livres; e os detentos podiam ser promovidos a guardas armados, assim como a geólogos e engenheiros.341 Mariya Ioffe, degredada em Kolyma em meados da década de 1930, obteve permissão para ter livros e papel; e lembrou que as famílias de degredados, na maioria, estavam autorizadas a ficar juntas.342 Os presos também podiam participar, até certo ponto, dos acontecimentos políticos de seu tempo. Assim como no Canal do Mar Branco, Kolyma promovia 336 Kozlov, "Sewostlag NKVD SSSR". 337 Stephan, The Russian Far East, p. 226. 338 Conquest, Kolyma, p. 42. 339 Sgovio, p. 153. 340 Shalamov, Kolyma Tales, p. 369. 341 Kozlov, "Sewostlag NKVD SSSR", p. 81; Nordlander, "Capital of the Gulag". 342 Ioffe, pp. 66-71. seus próprios trabalhadores-padrão e stakhanovistas. Um preso chegou a tornar-se o "instrutor de métodos stakhanovistas de trabalho" da Dalstroi, e os condenados que tivessem bom desempenho recebiam um pequeno distintivo, de "trabalhadores-padrão de Kolyma".343 Da mesma maneira que no Ukhtpechlag, a infra-estrutura de Kolyma logo ficou mais sofisticada. Nos anos 1930, os presos construíram não apenas as minas, mas também as docas e os quebra-mares do porto de Magadan, bem como a única estrada importante da região, a rodovia de Kolyma, que vai de Magadan para o norte. A maioria dos lagpunkts do Sewostlag se localizava ao longo dessa estrada e, aliás, era comumente batizada de acordo com a distância de Magadan ("Campo do Quilômetro 47", por exemplo). Os presos também construíram a própria Magadan, que tinha 15 mil habitantes em 1936 e continuaria a crescer. Ao voltar à cidade em 1947, depois de sete anos servidos nos campos mais remotos, Evgeniya Ginzburg conta ter "quase desmaiado de surpresa e admiração" com a rapidez do crescimento de Magadan. "Só algumas semanas depois percebi que se contavam nos dedos os edifícios grandes. Naquele primeiro momento, foi mesmo uma grande metrópole para mim."344 Aliás, Evgeniya foi uma das poucas prisioneiras que perceberam um paradoxo curioso. Era estranho, mas verdadeiro: em Kolyma, assim como em Komi, o Gulag estava lentamente trazendo para os ermos remotos a "civilização" (se assim podemos chamá-la). Abriam-se estradas onde houvera apenas florestas; construíam-se casas nos pântanos As populações nativas iam sendo afastadas a fim de abrir caminho para cidades, fábricas e ferrovias. Anos depois, uma mulher cujo pai fora o cozinheiro de um distante posto do Lokchimlag, um dos campos madeireiros de Komi, recordou para mim como era a vida ali quando o campo ainda funcionava: "Ah, tínhamos um depósito inteiro cheio de hortaliças, mais campos repletos de abóboras - não era tudo estéril como hoje". Ela agitava o braço, desgostosa, na direção do minúsculo vilarejo que agora ocupava o lugar e das antigas celas punitivas, ainda habitadas. "Também havia luz elétrica de verdade, e os chefes entravam e saíam em seus carrões quase todos os dias." Evgeniya Ginzburg fez, de modo mais eloqüente, a mesma observação: Como é estranho o coração dos homens! Minha alma inteira amaldiçoava aqueles que haviam pensado na idéia de construir uma cidade nesse permafrost, descongelando o chão com o sangue e as lágrimas de inocentes. Mas, ao mesmo tempo, eu tinha consciência de uma espécie de orgulho ridículo... Como a nossa Magadan crescera e ficara bonita durante minha ausência de sete anos! Estava irreconhecível. Eu admirava cada poste de luz, cada trecho de asfalto, até o cartaz que anunciava que a Casa da Cultura estava apresentando a opereta A princesa dos dólares. Damos valor a todos os fragmentos de nossa vida, até aos mais amargos.345 Em 1934, a expansão do Gulag em Kolyma, em Komi, na Sibéria, no Cazaquistão e em todas as outras partes da URSS seguira o mesmo padrão 343 Kozlov, "Sewostlag NKVD SSSR", p. 82. 344 E. Ginzburg, Within the Whirlwind, p. 201. 345 Ibid.
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